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147 Reescrita de textos: uma pratica social e escolar Raquel Salek Fiad’ Resumo: In this paper I discuss rewriting as a social practice and as a school practice as a contribution to studies about teaching of writing. Initially, this practice is pre- sented as it occurs in literary texts, what is an argument to defend its presence in other non-literary texts, including students’ texts. Secondly, rewriting is presented as it occurs in official documents about language teaching in Brasil, where itis proposed both as a means of correcting texts and as a means of suggesting new stylistic possi- bilities to the texts. Finally, rewriting is presented as it occurs in Portuguese teaching classes and a few suggestions are added as a conclusion to the paper. Palavras-chave: reescrita; estilo; ensino de escrita. 1. A reescrita como pratica social Neste texto, discuto alguns aspectos sobre a pratica de reescrever textos, com 0 objetivo de contribuir para uma reflexio mais ampla sobre o ensino da escrita na escola. Antes de iniciar a discussao, é importante explicar 0 que entendo por rees- crita, ja que o termo admite algumas interpreta¢Ges diferentes. Adoto aqui a explicagéo fornecida por Fabre e Cappeau (1996). Esses autores distinguem algumas interpretacdes. Uma delas aproxima reescrita e parafrase. No aspecto didético, estariam ai representadas varias atividades desenvolvidas em classe, envolyendo produgées orais ¢ escritas do professor e alunos, Em uma segunda Raquel Salek Fiad ¢ Professora do Departamento de Linguistica Aplicada, Instituto de estudos da Linguagem, Unicamp e Bolsista CNPq. itganon, Porto Alegre, n* 46, janeiro-junho, 2009, p. 147-159 Raquel Salek Fiad 48 inci j odi- interpretagao, o termo reescrita refere-se principalmente ao conjunto de See ficagGes escriturais pelas quais diversos estados do texto constituem as sequ inal. E i tacao de reescri- is vil ‘0 terminal. Esta segunda interpreta r recuperaveis visando um text On aca impor s e também p ta—que é a adotada pelos autores Ne I ‘ 7 eae no contexto de ensino de lingua devidoa a por ucnlad ee te . 5 emo : tivos mais gerais, possibilitan c re-se aos processos enuncial is possibilitand oe ees ¢0 it m alguma orientag4o, me V ente 2 sentagoes sobre a escrita €, CO} ae 6 i -se também aos processos 1 is ‘tas; por outro lado, refere-se ; Pe wanda ost di de aprendizagem. i iferentes percursos de ap) ; caracterizando os alunos em seus e 4 Ta ici iscutil escrita no contexto do ensino > Inicialmente, antes de discutir a re 0 eae i des sobre essa pratica, presente na at apresento algumas consideragoes ‘ cecrta tanto de escritores consagrados como i Caan bg a sagrados itos li ios i muito bem como \ Os manuscritos literdrios ilustram m “ agra yeescrevem seus textos. Apresento, aqui, um ra de aa eee i = ta la : - is a escritora consagrada — a poe ee oem Xl de Ama Teenjunto de sua obra ese estudo possi i: conjunto de sua Poema XI de Amavisse. Faz parte do conju Ren esto PoE i a i des ocorridas durante a escrita, an h lita a observaco das modificagdes 0 cin antes de cheer a a iti € publicada, Podemos perceber qi a sua versio definitiva e que - Da Jo mui tio presentes em qui 6 ela autora sao muito freqiientes, estao pres: a Casunre ‘sci Timinagbes. Enfim, esse ma cimos como ¢ 6 5 a © texto, compreendem tanto acres: ¢ e mes ito é i bra publicada, a qual temos ace: uscrito € bastante diferente da 0 i ‘a fre O manuscrito nos mostra 0 processo da escrita, processo este que fi ‘oculto no texto finalizado € publicado. por u caso. Observemo: Ss ino historias”. fantil, escrito por uma menina de 9 anos, de San- ta Catarina, Este texto nao for ¢ Jlar. Ele € 0 inicio de um foi escri arina. Est = “Uma av E SUMARIO : Sopra iso Ngo nicshe hist oviesumetvio nto ete E tude Wu tha “pewlada wi que’ ce TAN! Voces devem estar se pengur eer “Que Reagan corter ) ° ie " a few na yer veto! As historias 4 | ORE come team assim! Vee de rove’ SEM Bam DOON Cao's oH) 2 wenca) g kame nal sC)Cquente wegelallmoravam Cecilia lech “tia, @ Axthwr Cham lee Amthan Ceotlia, Arr 7 I eeenes Jeske 20QQN (dois mil quase P oee)\+ wie ambos cecebe- _ Ce Teve Uma vee Ge vee OSCVIEO rame pracu aul esou.to, n& Floresta: 0 enhaye | est PERO Um © ele Q) ve, BB scrito novamente. ga em seu texto, poderfamos dizer ~ras, em seguida, decidiu que iria ‘meiras palavras do texto, a “ io”, iscado e€ es ‘A crianga inicia com 0 titulo “Sumério’, que é risca Se terminassem af as intervengoes da cra que ela ficou em dtivida quanto a0 a , ee manté-lo e o reescreveu. No entanto, logo nas p) is isténcia crianga mostra que esta questionando a existén tee A to de 2 Este exemplo faz parte do conjun doutorado intitulada “Indicios de um esti dados analisados por Rosana Koerner em sua tese de Jo em dados de aquisigao da escrita”” Crganon, Porto Alegre m4, aneio-junho, 200%, do Sumario em seu livro: 147-159 Reescrita de textos: uma pritica social escolar 151 “Nao! Nesta hist6ria, sumério nao entra! £ tudo numa paulada s6.” Podemos interpretar que a supressdo e a reescrita da palavra “Suméario” estado relaciona- das ao questionamento que a crianga faz sobre a organizacao de seu livro. De- monstra, ainda, saber que “sumérios” muitas vezes existem em livros e que de- cide nao incluir esse componente em seu livro. Ao fazer esse questionamento e deixé-lo explicito em seu texto, a crianca nos oferece mais do que uma rasura ou uma modificacao em seu texto. Ela nos oferece a reflexao que esté fazendo sobre a sua escrita, sobre as suas decisdes, sobre o género no qual escreve. Ha, no exemplo, outras ocorréncias de distanciamento do texto e de questionamento da prépria escrita. A crianga se dirige ao leitor (“Vocés devem estar se pergun- tando...”), critica 0 uso de express6es usuais em histérias (“Era uma vez...nao! As historias SEMPRE comegam assim!”), questiona o uso obrigatério de virgu- las, que emprega (“quanta virgula!”). O sujeito que escreve é também o que comenta 0 que escreve, critica 0 que escreve, mostrando uma multiplicacao de papéis do escritor: 0 que escreve, o que lé, que se comenta, que se auto-censura, que reescreve. 2. A reescrita como pratica escolar: documentos oficiais Apés situar a reescrita como uma pratica social, cabe contextualiz4-la como uma pratica também escolar. Para isso, recorro a documentos oficiais sobre 0 ensino de lingua no Brasil e destaco passagens que ilustram propostas sobre a reescrita no ensino de escrita em lingua materna. O texto Unidades basicas do ensino de portugués, escrito em 1981, com am- pla divulgacao a partir de 1984 quando foi publicado na coletanea O texto na sala de aula, introduz 0 conceito de “pratica de andlise linguistica” e apresenta algumas “consideracdes de ordem geral sobre esse tipo de atividades”, Dentre elas, ...fundamentalmente, a pratica de andllise linguistica deve se caracterizar pela retomada do texto produzido na aula de produgéo|...] para reescrevé-lo no aspec- to tomado como tema da aula de andlise (GERALDI, 1984, p. 63). A expresso “andllise linguistica” sera adotada em varias Propostas Curriculares elaboradas na década de 80. Na Proposta de Santa Catarina, encontramos: Na presente proposta, da-se o nome de andlise linguistica aos momentos de explo- ragdo da lingua a partir dos conhecimentos epilingtifsticos e das atividades re- alizadas com textos no ambito da escola e fora dela (ESTADO DE SANTA CATARINA, 1997, p.45). Ai estd presente a idéia de “exploragao”, “construgao”, “retomada’, “reconstrugao”, “transformagao” do texto, ou de “operacao” sobre o texto. Na Proposta Curricular do Estado de Sao Paulo, no item intitulado Das atividades de linguagem a descricao gramatical, podemos ler: Organon, Porto Alegre, n? 46, janeiro-junho, 2009, p. 147-159 Raquel Salek Fiad 152 ig 5 procedimentos No desenvolvimento da linguagem, tomamos conse Ht dos pro aterial lingtisti répria lingua- ‘em uso, refletimos € operamos sobre 0 Se ones nie Sede gem se toe oat de nose Waa jor ulainamos ent sho" 8 one er de nossas expressOes, rages OU tEXtOS, compararos unas sn more on sentidos. Trata~ nancis, com suas PAY ao do texto escrito sto muito frequent epilinguistica. ass sca atividade: tornamos conscientes 05 propdsitos © mente, 0 esbas® 'ntecipar a imagem dos interlocutores & que nos dirigimos, texto, procuramos al nae izaga Mm aos Sramornos por ae Eira pans es ma i mos ¢ selec tos e aos interlocutores, compara} : s ae expressivos, as figuras mais relevantes, 08 argumentos mais convincentes. ( PAULO, 1991, p-25) , i tseepye tte 5 ea dade Nos dois textos, ha referéncia a conhecimentos epilinguistices ea mera > n ‘ : epilinguistica, que se caracteriza essencialmente pea ae a aaoat ‘ i ‘bili e e! +. i i ta, a possibilidade de que ela seja agem, enfatizando, na escri ossibilide eee Te iestol fica claro que aatividade: epilingufstica tem como obi ee ai do das formas-padrao € 0 desenvolvimento dos recursos as ee acs da escrita: As atividades com os textos e sobre 0s textos po Te re be outra dimensao gramatical: a de desenvolver e enriquecer os rect SS pr de que dispoe 0 aluno e de tornd-los operantes na produgi si interpretagao.(SAO PAULO, 1991, p45) , Bac Os Parametros Curriculares Nacionais do ter ca dos posteriormente aos textos apresentados ie is ‘io " cE ade i inti fact y ic ai tos, um item intitulado Pratica de produgao de textos, quarto ciclos, publica- ao apresentarem @ mos ler que: ocesso da escrita: durante a elaboragao de um texto, se refaccio faz parte do pr i deum tense a refacgio ies Pivara prosseguir a redagao, se reformmulam passagens nee que "Tais procedimentos onto seré quase sempre produto de sucessivas versdes- Fewer set ensinados e podem a aprendidos, ae nto de produgac : 2 Separar, no tempo, 0 momento 7 Sh gine vests vateressantes para o ensino e a aprendizager™ de um di « - : . od permite que o aluno se distancie de sea proprio texto, obre ele criticamente; ie ot oe ata pilita que o professor possa elaborar atividades ¢ cxerciios —o i i 0 texto. pa ve instrumentos lingiifsticos para o aluno poder ese re i a se opera nao € mera 7aGAO, erspectiva, a xefacgao que > € mera hig as ro funda avateuturacio do texto, jé que entrea primeira verso °2 defin nda série de atividades foi realizada. F Os procedimentos de refacgao comesam de de maneira a poder maneira externa, através da media- Organon, Porto Alegre nt 46, janeiro-junho, 2009, p. 147-159 Reescrita de textos: uma pritica sociale escolar 153 40 do professor que elabora os instrumentos e organiza as atividades que per- mitem aos alunos sair do complexo (0 texto), ir ao simples (as questées linguis- ticas e discursivas que estao sendo estudadas) ¢ retornar ao complexo ( 0 texto). Gragas & mediagéo do professor os alunos aprendem nao s6 um conjunto de instrumentos lingiifstico-discursivos, como também aprendem técnicas de re- visdo (rasurar, substituir, desprezar). través dessas praticas mediadas, progres- sivamente, os alunos se apropriam das habilidades necessérias A auto-corresao. (BRASIL, 1998, pp.77-78) Ainda nos PCNs, hé uma segao intitulada Pratica de anilise linguistica, que pode ser entendida, no documento, como a realizagao tanto de atividades epilinguisticas como de atividades metalinguisticas. Nessa seco, é introduzida arefaccao de textos: ‘Um dos aspectos fundamentais da pratica de anélise linguistica é a refacgéo dos textos produzidos pelos alunos. Tomando como ponto de partida o texto pro- duzido pelo aluno, o professor pode trabalhar tanto 0s aspectos relacionados as caracteristicas estruturais dos diversos tipos textuais como também os aspectos gramaticais que possam instrumentalizar 0 aluno no domfnio da modalidade escrita da lingua. (idem, p.80) As passagens de documentos oficiais sobre o ensino de lingua portuguesa nos mostram que ora hi a indicagao de “pratica de andlise linguistica” como desencadeadora de operagoes epilinguisticas e metalinguisticas sobre a escrita, ora hd a indicagao de “refacgao de textos”, Poderiamos concluir dessa leitura que, nos documentos oficiais, o trabalho de retomada da escrita privilegia mu- dangas que adequem o texto as exigéncias da modalidade escrita da lingua, tanto nos aspectos gramaticais, como nos aspectos textuais. Ao lado desses textos, produzido na mesma época, no mesmo contexto de discussao sobre 0 ensino de portugués, ha o texto Criatividade e Gramdtica (FRANCHI, 1987) que associa 0 “longo exercicio de operagao sobre a lingua- gem e a lingua’, ou seja, as atividades epilinguisticas, ao aspecto criativo da linguagem, que é entendido como “um atributo do comportamento verbal”. Nessa perspectiva, o trabalho sobre a linguagem visa nao apenas a adequacao , mas também a exploracao dos recursos lingiiisticos e expressivos. Desta breve exposicao sobre o contexto de discussdo e de proposta de uma pratica escolar que envolve a reescrita de textos, tiro algumas conclusdes: (a) a proposta para a reescrita esté presente nas recomendagies oficiais; (b) essa pro- posta oscila entre um trabalho que vise mais 4 corregao do texto (praticamente em substituigio ao ensino gramatical tradicional) e um trabalho que vise 4 exploracao de recursos lingiifsticos, visando nao apenas a adequagao do texto, mas também atento aos aspectos estilisticos do texto (estilo, aqui, entendido num sentido bakhtiniano, como recursos lingiiisticos do género discursivo). Organon, Porto Alegre, n* 46, janeiro -junho, 2009, p. 147-159 Raquel Salek Fiad - mas uma possibilidade de se isando tanto atica de reescrita de textos, NO contexto Se etme co a teton mo um trabalho estilistico com os textos cae ae 8 eS iets oe jnfantil apresentado acima, podemos 0} ae ca tena exer listcamente seu texto, refletindo sobre 0 8 a crianga tral possibilidades. Ascilacdo pode significar nao um problema, 3. Arescrita como pratica escolar: a sala de aula i leitura . A colar a partir da aaa ta como pratica escolar a p ics alizagao da reescri go dessa pratis Feta a content vam, fica a pergunta sobre & Tee entes para apTe- de textos que a tem: ula, Nao disponho de dados suhcien ita m sala de aula. jacdo da pratica de reescri por professor sobre as possibilidades de apropriagso, - Eee eens Sais cots deensino fundamental © médio. Os estu ee reee diferentes prd- PO eS ere analsar 0 ensino de portugues ei en. oy an Jeitura, gramitica etc - a re de aoa ates Dioiealares ticas: escrita, Pb fessores, de propos! j lu- riagdo, por professors izer, a partir de conc pasate Srersfiada Em rego a ressrit, paso 0 ra de textos de é bastante divs feitas pelo contato com professors era er nlpieeen sdes subjet A ino fundamental, que Si je iferentes séries do ensi re o ensino da escr oe eceid a muitos discursos de professores D8 corregio de textos oe vz scout muitas vezes como uma alternati Ya sents dos alunos, ta (b) que acontece Mdm provocado poucas MANGES OS HS pelo professor (c) 4 ectos gramaticais e textuais, (d) quer ro conchisBes aos asp! iscursi sstilisticos. js discursivos € &: eS i tos visando aspectos antitativo, apen madangas nos xt ven comprovacao de levantamento (Nani oe in entar, i que ouso a do que pude conhecer. Reconhego a ne tus corn profess0- Poe arrne praticas a patti de observagio de aulas, O° TS jas as be . ‘tos de is 7 restonslise de materiais didaticos, eae de er ae ossibilitem 0 eck res, asihad le pesquis pill “ do, nao dispomos ileiro, contamos J io ee Sa ne de reescrita em contexto escolar bras mento sobre a pr com um conjunto mesmo quanto 2 itas por professoras que refletiram sobre as de pesquisas feitas por Pro! ss0Tas : sas salas de aula. Essas andlises apresentam poss! ibi- 8 iE p terial para ‘ di ti ri iets waballo ‘escolar realizado e nos fornecem material ps lidades distin i 99 1995), a das: Nascimento (1 1), Grillo (1995). inco andlises realiza' nna on) tela (2000) e Vieira (2005) eas apresento em dois 8 Almeida ; que revelam dois mome tos da pesquisa sobre a reese ‘ita. ‘isa sobre a reescr! ment pes (Os trabalhos de Nascimento, Grillo e Almeida detiveram-se na ob: aig Jas mud. izadas nos textos de estudantes a partir de suas proprias ob- das mudangas real j! 1-159 Organon, Porto Alegre, n° 46, janeiro janhos 2009, p. 147 Reescrita de textos: uma pratica social e escolar 1s servacdes ou de observagoes feitas pelo professor e/ou por colegas. Nascimento refletiu sobre o processo de revisdo feita por criangas de um 2° ano de Ciclo Basico, de uma escola ptiblica de Campinas, em seus préprios textos esponta- neos ou em textos de colegas, durante um ano letivo. Procurou verificar 0 que as criangas privilegiaram ao rever os textos produzidos em classe e destacou a importancia de levar a crianga a assumir o papel de leitor do préprio texto. Grillo analisou a intera¢ao professor/aluno em atividades de revisao ou reescri- ta de textos, focalizando 0 modo como as orientagdes da professora/pesquisa- dora interferiram na reescrita de textos de dez alunos de uma 7a. série de um curso supletivo. A anélise dos textos foi feita observando como os comentarios escritos na la. versdo dos textos dos alunos interferiram nas alteragdes ocorri- das na 2a. versao, Verificou-se que 0 sucesso das atividades de reescrita depen- deu tanto do tipo de orientacao do professor, quanto da habilidade do aluno em alterar seu texto. Orientagdes que explicitavam o problema ec apresentavam possiveis solucées tiveram mais chance de serem respondidas adequadamente, do que aquelas que somente explicitavam o problema. Alunos com uma maior familiaridade com a escrita apresentaram mais facilidade para reescrever seus textos seguindo as instrugées escritas do professor. Entretanto, fatores relativos ahistéria pessoal dos alunos como o contato extra-escolar com a escrita, a ocu- pacdo profissional, a militancia em movimentos politicos, e fatores relativos ao tipo de ensino como os textos utilizados na preparacdo para a produgao e 0 tipo de texto proposto também interagiram no processo de reescrita, interfe- rindo na interagio professor/aluno. Almeida investigou 0 papel do outro no processo de refaccao de texto, a partir de textos de quatorze sujeitos de uma 6a série, de uma escola estadual. Observou que a interacdo com 0 outro consti- tuiu-se em uma forma de apoio para solucionar os problemas percebidos du- rante 0 processo de refaccao. Esses trabalhos exemplificam um momento em quea pesquisa sobre a rees- crita ressalta a importancia das observagées feitas pelo professor no texto do aluno como provocadoras de operagoes de reescrita pelo aluno. No entanto, pouco se discutia sobre a natureza das modificacées efetuadas e sobre as possi- bilidades outras que ndo eram exploradas nessas observagées feitas. Esses tra balhos foram, de certo modo, influenciados por questdes de pesquisa que per- segui, em um certo momento, e que podem ser caracterizadas como tentativas de classificar as mudangas efetuadas nos textos por alunos de diferentes niveis de escolaridade. Como exemplo dessa abordagem, cito a anilise realizada em 1991, intitulada “Operages linguisticas presentes nas reescritas de textos” (FIAD, 1991). Essa abordagem foi influenciada pela leitura de artigos de Fabre (1986, 1987), que propés que as mudangas efetuadas podem ser classificadas em qua- tro operagées (adi¢ao, eliminagao, substituicao e deslocamento). Os trabalhos de Melo e Vieira, embora analisem dados produzidos em situ- agGes distintas e que permitiram diferentes enfoques, preocupam-se com as- Organon, Porto Alegre, n? 46, janeiro-junho, 2009, p. 147-159 186 Raquel Salek Fiad pectos discursivos das produgdes escritas, Em sua dissertagio, Melo procurou entender o processo da produgao escrita a partir da observagao da escrita por duplas de estudantes de ensino médio. Ao elaborarem conjuntamente um tex- to, as estudantes discutiram, negociaram, escrevendo e alterando o texto conti- naamente. A possibilidade de escrita conjunta proporcionou a pesquisadora— que era a professora também - 0 acesso ao texto em sua execugao, tanto pelo que foi escrito como pelo que foi falado durante a escriia, Como esse processo foi filmado e a escrita foi feita em computador com um software especifico que gravava todas as modificagées efetuadas na escrita, a pesquisadora dispos de material para confrontar 0 escrito e o falado durante todo o tempo da produ- gao textual. Esse trabalho possibilitou uma reflexdo sobre a apropriagao de um género discursivo - @ noticia ~ a partir nao sO das modificagoes efetuadas no texto escrito, mas também das modificagdes que puderam ser observadas nas negociagoes orais. Completando essa anilise, a pesquisadora entrevistou as es- tudantes a respeito dessas modificagdes, provocando um outro momento de auto-reflexdo, mais consciente do que © anterior. Nesse caso, a situagao de es- rita foi fundamental para que 0 processo ocorresse de forma mais explicita e consciente. Vieira, que também era a professora dos estudantes cujos textos foram ana- Jisados, enfocou especificamente um tipo de trabalho que os aprendizes fazem em relagao ao texto: 0 modo como vio aprendendo a marcar sett posicionamento a partir do trabalho com as vores discursivas existentes, isto é, a forma como aprendem a marcar, através de mecanismos lingiiistico-discursivos, o limite entre avozeo posicionamento do outro ea sua propria voz & posicionamento diante de uma questdo. Seu trabalho de professora e, posteriormente, de professora, teve como preocupagio a constituigao de sujeitos-escritores, formados no pro- cesso de leitura de escrita, em que o principio dialdgico da linguagem foi fundamental. Essa amostragem de pesquisas sobre situagdes escolares de praticas de rees- crita mostra que, Mesmo em pequena escala, pode-se falar que ha um movi mento de mudanca, abandonando a preocupacdo com aspectos dlassificatérios, nna direcao de pesquisas que consideram as situagdes de reescrita fundamentais para que se possa observar um trabalho efetivo com a linguagem em situagoes escolares. 4. Algumas propostas Para finalizar este texto, apresento dois textos infantis com 0 objetivo de proporcionar uma reflexao sobre © trabalho que pode ser conduzido junto as criangas visando reescreve-los. Organon, Porto Alegre,n® 46, janeiro jumbo, 2009p. 147-159 Reescrita de textos: uma pritica social e escolar 157 O primei i i i 7 iro texto, escrito por um menino de 1* série, tem uma organizagio ‘ual i i er astante proxima de textos de cartilhas — periodos simples, justaposi¢gao elementos coesivos — mas, ef i : em um determinado mom: i i ento, a crian elementos de uma narrati a h fagia de rrativa que nao é desenvolvida: “a mi volvida: “a minha mie fugit casa, quan i ai i fe eu “ a qu ce pinks ee fugiu de casa era sexta-feira”. Também, junto a uma crigio padronizada dos membros da famili i ‘os da familia (O nome d i deenipiops ; e do meu pai..., 0 nome ... eu tenho um irmao..., et i , 8 ... eu adoro minha familia), o aluno i eae ; ia), o aluno interca- le dcop nada padronizadas, pouco previsiveis em textos escolares: “a mi mae a i i ‘ " me enche 0 saco, eu nao sou muito feliz, eu nunca gostei da minha mae”. O nome do meu pai é Braz. O nome da minha v6 e Terezinha. Eu adoro a minha familia. O nome da minha Professora é Ditinha. Eu tenho um irmao que se chama André. ‘A minha mae me enche 0 saco. ‘A minha mae fugiu de casa. Ela fugiu pela janela. O meu nome é Mateus. Quando minha mie fugiu de casa era sexta-feira Eu nao sou muito feliz O meu pai trabalha na sifco Sabem porque Porque minha mae fugiu de casa. Eu nunca gostei da minha mae ‘ Enema minha mie gosta de mim. Eu queria ser um passaro A reesci a eescrita de um texto como esse poderia incluir nao sé a construgao de relagdes coesivas, eliminando repetigGes das es 01 struturas sintaticas basic icas (como ‘o nome de...”), mas, principalmente, a construcao de um posicionamento so- bre a familia, que pudesse ser expresso livremente pela crianga, evitando os conflitos entre 0 que deve s eo quea crianga er dito (eu adoro a minha fe familia jue a quer dizer (eu nunca gostei da minha mae). ; ° et 7 segundo texto foi escrito por uma menina de 8 anos, de 3¢ série em uma escola particular em Joinville, SC (a mesma que escreveu 0 “Sumario” apresen- sma que esc a tado no inicio) . Tradi igit 0 id . Tradicionalmente, em um ensino , que busca apenas corrij que estd inadequado, esse texto nado mere aior atencdo por parte do pro- » mereceria maior aten fessor, que se limitaria a elogia-lo e avalid-lo positivamente. No entanto, em > itaria gi uma proposta de ensino de escrit re mo parte funda- ‘a que inclua a reescrita cot mental do exercicio da esc 10S CO: bi em uma anilise e rita, textos corretos também. merecem uma andi uma retomada com 0 objetivo de explorar outras possibilidades linguisticas. jetin xplorar outr: PI S possil s linguist Organon, Porto Alegre, n* 46, janeiro-junho, 2009, p. 147-159 158 Raquel Salek Fiad Chapeuzinho Azul pre uma ver uma linda menina chamada Clara. Ela tinha um vestido € um capuz. Os dois eram azuis. Bla nunca desgrudava deles, e por isso ganhou 0 apelido de Azulzinha. Um dia ela foi passear no shopping. Ela foi na loja de Dringuedos, na loja de sapatos, na sorveteria, na loja de roupas, na lanchonete ¢ finalmente... na loja de CHAPEUS! Ta tinha vermelho, amarelo, verde, rosa, azul... E entao, l6gico, escolheu o azul. Entio cla voltou para casa com a sacola theig, Colocon o chapéu e mostrou para a stia mae. Entao ela nao desgrudou desse chapéu e ficou sendo chamada de ~~ Chapeuzinho Azul! A reescrita desse texto deveria permitir que a crianga jncorporasse, aos que jé tem, novos saberes sobre a escrita: _ a substituicéo de oragbes justapostas por oragoes coordenadas e subordina- das: “Era uma vez uma menina chamada Clara, que tinha um vestido ¢ um capuz, ambos azuis” ou “Clara era uma ‘menina linda, que tinha..” a exploragao de elementos de coesdo, por exemplo substituindo “ela” por “Clara” (que s6 ocorre nO inicio do texto), por “a menina’s 6 acréscimo de mais informagdes sobre personagens, Jocais, objetos, a partir da formulacao de questdes, como, por exemplo: “por que Clara era uma linda menina?”, “como eram © yestido ¢ 0 capuz?”, “como era a loja de chapéus?” Certamente, um texto que pode parecer ja terminado e definitivo, ainda Lem de ensinar as criangas novas possibilidades gre° merece ser reescrito. Isso, da escrita pode ser algo agradavel e maticais € estilisticas, ensina que 0 exercicio intermindvel. ‘Termino este texto com o desejo de ter deixado aqui expressa a idéia de que a reescrita € uma pratica que ndo se dissocia da escrita, que pode e deve ser incorporada ao ensino deescrita, que pode levar 08 alunos a se descobrirem nas possibilidades da lingua e a gostarem de reescrever Bibliografia ALMEIDA, M. S. Refaciio como ago pedagégica: 0 olhar do outro sobre o texto orienta a refaccaio? Dissertagao de Mestrado em Linguistica Aplicada. Unicamp/ TEL. 2001. ANGELO, Ivan. A Face Horrivel. RJ:Nova Fronteira, 1986. BRASIL. Secretaria de Educagao Fundamental. Pardmetros curriculares nacio- nais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: lingua portuguesa. Secre- taria de Educagao Fundamental. Brasilia: MEC/SEB, 1998. Organon, Porto Alegr,n* 46, janeizo-junho, 2009, p. 147-159 Reescrita de textos: uma pratica social e escolar 159 ESTAD S eet CATARING Secretaria de Estado da Educagao e do Des . loria Geral de Ensino. Proposta Ci : FIAD, R. Operagies linguisti rece ie tavon , R. O guisticas presentes na reescrita de Hi is : Internacional de Lingua Portuguesa, AULP, n° 4, Tisboa ei Peet ps ScaREN Des variantes de brouillons au Cours Préparatoire. Em: Etude: Linge Apolige ©2, Paris: DidiecPrudition, 1986. ——- Ia récriture dans Pécriture: lé cas des aj : ri ure dan Ire: jouts dans les écrits scolaii E Buds de Lingisique Applique 6, Par Dir rearraurenaauaad Feel ee pain nts dynamique de Vapprentissage: lecture/écriture/ a iguistique Appliquée 101, Paris: Didier Erudition, FRANCHI, C. Criatividade e Gramiti U1, C. sramitica, Em: Trab i ic i : EH Unicamp/IEL, Campinas, SP, v. 9, 1987. eee 5 J. W. (org.) O texto 5: ei Dr Acero na sala de aula; leitura e produgao. 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