Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Fernando Lattman-Weltman1
Introdução:
1
Cpdoc/FGV e PUC-RJ; weltmanf@fgv.br
1
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
civil, política e social – a “democracia” –, ele aí inseriu a nova instituição com seus
contraditórios potenciais. Além de inevitável, a imprensa, para Tocqueville, era um mal
necessário (TOCQUEVILLE, 1973).
Ora, o que ainda podemos aprender com o peculiar misto de conformismo e
desconfiança com que genial visionário francês caracterizou a importância e os riscos
inerentes à liberdade de expressão e de imprensa? De que modo sua prudente – e, no
entanto, resoluta – atitude diante do fenômeno pode nos auxiliar, hoje, no debate sobre
seu funcionamento e (des)regulação?
Para dar conta, minimamente, dessas e outras questões, precisaríamos, primeiro,
atentar para o caráter de novidade que o estatuto da liberdade de imprensa assumia à
época. Ao contrário do que poderíamos inferir de nossas condições atuais, a existência
de sociedades como a nossa, em que se pretende dotar o debate, a coleta, o
processamento e a difusão de “informações”, da mais ampla liberdade – e, em níveis
variados, de quase ausência de regulação – não constitui propriamente a regra na
história e na diversidade da experiência humana, mas sim, muito mais a exceção. Com
efeito, se quiséssemos poderíamos datar o surgimento de uma defesa explícita da
liberdade de expressão como tomando forma, ou “consciência de si”, somente em
meados do século XVII – tendo como índice, por exemplo, a publicação, na Inglaterra,
da Areopagítica de John Milton – e desenvolvendo-se, de modo contraditório até,
eventualmente, o século de Tocqueville, quando, como vimos, já estamos propriamente
diante de uma instituição, com sua legitimidade relativamente consolidada, e
razoavelmente conhecidos e estimados os seus efeitos e defeitos. 2
Por isso mesmo, por se tratar muito mais de uma instituição perfeitamente
datada – e, portanto, circunscrita a uma forma de vida social muito particular –, é
necessário também atentar para as especificidades históricas e para as eventuais
(des)funcionalidades próprias à sua operação. Principalmente no que diz respeito a seus
impactos éticos, culturais e políticos mais significativos, ou, dito de outro modo, seus
riscos inerentes. Já que sua especificidade está relacionada de modo indissolúvel à
configuração institucional peculiar em que assumiu seu sentido e importância atuais.
Acima de tudo, a validade de um enfoque histórico – ou historicista – como o
aqui proposto, dependerá exatamente da capacidade que tivermos de demonstrar o
quanto as origens da moderna liberdade de imprensa não se vinculam, necessariamente,
2
Sobre a evolução do conceito da liberdade de imprensa, ver, por exemplo, Holmes (1995) e Kelley;
Donway (1995).
2
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
É sempre atraente a crença de que nossas idéias mais agradáveis a nosso próprio
respeito, e que os ideais que julgamos mais edificantes em nossa própria cultura e
sociedade, constituam, de fato, as suas verdadeiras bases operacionais. Ou, de modo
semelhante, as molas propulsoras do seu desenvolvimento histórico, e que certamente
nos conduziram de etapas anteriores – e infelizes – ao bem-estar atual. Não seria
realmente nem um pouco desagradável se os aspectos mais prezados por nós em nossa
realidade atual fossem mesmo produto de tais valores tão caros a nós. A liberdade de
imprensa, por exemplo: não seria bom acreditar que é a ela que devemos todas as
demais liberdades e direitos, hoje experimentados? E que, desde o surgimento dessa
3
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
4
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
5
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
6
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
Leviatã passa a ser um “Estado de Direito”: uma unidade política auto-contida em sua
soberania para a garantia dos direitos individuais e seus sucedâneos.
Assim, também de uma perspectiva econômica, a auto-contenção do ser sobre-
humano gerado pela agregação dos interesses individuais atomizados passaria a se
traduzir, ao mesmo tempo, na pré-condição de funcionamento e na liberação de um
mecanismo impessoal e incerto de distribuição de riquezas – o mercado –, onde esses
mesmos indivíduos poderiam buscar a realização material de seus interesses, livres de
entraves ou barreiras adscritas (que não aquelas próprias da distribuição prévia e
razoavelmente aleatória – quer dizer, sujeita aos mesmos riscos de um mercado “livre”
– dos diversos recursos econômicos).
Um mercado onde a própria informação passaria a conter não apenas, como
antes, um determinado valor de uso – o que já a tornaria perfeitamente assimilável como
mercadoria –, mas onde também poderia assumir, portanto, determinados valores de
troca. Desse modo, não haveria, em 1º lugar, qualquer empecilho à transformação da
atividade jornalística em empresa capitalista – e sem prejuízo, inclusive, de suas
vocações anteriores, sejam estas pensadas em termos estritamente informativos ou
políticos (LATTMAN-WELTMAN, 1994). Em segundo lugar, isso significava também
que mesmo sendo a liberdade de imprensa originada de um longo processo em que,
como vimos, interesses econômicos podem ter tido restrita relevância original em sua
promoção – ao lado de preocupações predominantemente religiosas, e, pour cause,
eminentemente políticas –, uma vez superados os conflitos confessionais, com a
autonomização relativa (mas decisiva) do Estado moderno, o direito de livre expressão e
difusão de informações podia assumir ele mesmo um valor institucional econômico
praticamente – ou aparentemente – auto-suficiente.
Não obstante, como veremos a seguir, se todo esse longo processo e seus
conflitos hoje se apresentam quase como que esquecidos – dando lugar, como
sugerimos inicialmente, a verdadeiras mitologias democráticas (LATTMAN-
WELTMAN, 2007) –, os seus elementos contraditórios seguem se manifestando na
diversidade de modelos e pontos de vista invocados para o (des)controle e a
(des)regulação das práticas jornalísticas e assemelhadas.
Modelos de regulação
7
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
3
Como, por exemplo, as que se referem à emancipação civil e política dos indivíduos e ao provimento de
direitos sociais e de bem-estar.
8
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
9
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
4
É o caso, por exemplo, da chamada fairness doctrine, posta em prática nos Estados Unidos durante
importante período pelo FCC, Federal Communications Comission. (LICHTENBERG, 1995; JONES,
2001).
10
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
11
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
Seja qual for o modelo, ou modelos, a se privilegiar, creio ser importante não
perder de vista duas lições cruciais mencionadas na breve recapitulação histórica
anterior: 1) que todos esses valores a que se referem tais modelos de (des)regulação não
devem ser tomados como premissas incontestes ou desprovidas de contradição de uma
suposta Ordem Liberal, ou Democrática monolíticas, cuja operação possa ser pensada
como derivada simples e naturalmente de “justos” preceitos ético, jurídicos ou
metafísicos; 2) que ainda é a própria História a melhor fonte para a compreensão dos
riscos e potenciais inerentes à adoção de quaisquer mecanismos de (des)regulação
institucional.
Nesse sentido, encerro este artigo em seguida, com brevíssima análise do quadro
midiático brasileiro contemporâneo e seu contexto histórico e institucional.
O quadro brasileiro
12
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
13
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
14
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
par com boas regras para o funcionamento dos veículos de mídia eletrônica, mostram-se
hoje igualmente imprescindíveis, em face de problemas evidentes da produção nacional.
Quer se trate, por exemplo, do combate a efeitos perversos de convergência de
conteúdos e enfoques na oferta de informação disponível, ou na apropriação sem
controle de concessões públicas de rádio e tv barganhadas de modo pouco transparente
entre os poderes Público e privados, ou ainda no modo como se tem praticado, entre
nós, o denuncismo irresponsável, em busca do escândalo fácil e do lucro imediato –
com os possíveis efeitos conseqüentes de deslegitimação das instituições democráticas –
, essas e outras questões poderiam ser minimizadas por um esforço amplo de debate e
concertação entre as diversas forças envolvidas e interessadas num melhor
funcionamento de nosso sistema.
Certamente nenhum dos modelos supramencionados é isento de falhas, nem
muito menos o encaminhamento satisfatório dos problemas aludidos – ou outros que se
queira aqui incluir – se encontra efetivamente em suspenso (porventura aguardando
somente nossa tomada de consciência, ou consenso sobre como agir). Como vimos
acima, muitas das instituições hoje em operação são o resultado não previsível de
processos históricos muito complexos e anárquicos.
Mas é justamente por conta da consciência que hoje possuímos a respeito dos
elevadíssimos custos humanos de tal “evolução natural ou espontânea” o que deve nos
conduzir, para além do imobilismo e do conforto de nossas convicções normativas, no
sentido de uma ação política e institucional conseqüente.
Referências
BURKE, Peter; BRIGGS, Asa. Uma história social da mídia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.
COSTELLA, Antônio. Lei de Imprensa. In: ABREU, Alzira Alves de et al (coords.),
Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-30. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2001.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
HARVEY, Sylvia. Doing it my way – broadcasting regulation in capitalist cultures: the
case of ‘fairness’ and ‘impartiality’. In: Media, Culture and Society, v.20, 1998.
15
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
16