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I

Padrões de
manipulação
na grande
imprensa
um ensaio inédito de
Perseu Abramo
apresentação de José A rbex Jr.
prefá cio de H a m ilto n O ctav io Souza

posfácio de A loysio Biondi


F im c ta ^ a o I V r a tti A b r a m »
Instituida pelo Diretório Nacional
cío Partido dos Trabalhadores cm nudo de I L>%

Presidente Nílmário Miranda


Více-presidente; Hldi Pielá

D iretores; Selma Rocha


Flávio Jorge
tole Ilíada
Paulo Fiodlo

E d it o r a F u n ch i^ io P c r s t n A l m im o

Coordenação editorial
Kogírio Chaves

Assistente editorial
Raquel M, Costa

Revisão
Mauricio Bullliazar Leal
Eloísa Artigan
Editoração ektrôníea
Augusto Gomes

Capa
I¿liana Kcstcnbuurn

Impressão
Gráfica Barí ira
Perseu Abramo

Padrões de manipulação
na grande imprensa

Apresentação de José A rh ex Jr.


Prefácio de Hamilton Octavio Souza
Posfácio de Aloysio Biondi

IClílíKlltA rUNDACAO IKKVKIl jUNAMO


I» ediçBo: janeiro de 2003
2* reimpressão: setembro de 2006
y reimpressão: março de 2009
Tiragem: 1.000 exemplares

Todos os direitos reservudos it


Editora FuadaçSo Perseu Abramo
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Copyright © 2003 by Kd.tora Fundaçlo Perseu Abromo


ISBN 85-86469-75-0

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Sumário
A p r e s e n ta ç ã o
O legado ético de Perseu Abramo
e de A loysio Biondi - José Ar hex Jr., 7

P r e fá c io
A atualidade dos estudos do jornalista e professor
Perseu Abramo - Hamilton Octavio Souza, 15

Significado político da manipulação


na grande imprensa - Perseu Abramo, 23

P o s fá c io
Mentira e caradurísimo - Aloysio Biondi, 53
Apresentação

O legado ético de Perseu Abramo


e de Aloysio Biondi

José Arbcx Jr.*

A “grande mídia” brasileira é uma das mais competen­


tes do planeta. A Rede Globo está entre as cinco maiores
redes de canal aberto do mundo; seus programas, não im­
porta o gênero - jornalismo, entretenimento, novelas - , exi­
bem qualidade técnica espetacular, são artigo de exporta­
ção. A mídia impressa, tecnicamente, nada fica a dever a
qualquer grande jornal, mesmo que se incluam na lista os
americanos The New York Times, The Washington Post c Los
Angeles Times. As campanhas publicitárias brasileiras são
mundialmcntc famosas - e premiadas - pela ousadia de sua

*losé Arbcx Jr é editor especial da revista Caros Aminos, do jornal Mundo -


Geografia r Política Internacional c professor dc jornalismo na Faculdade dc
Comunicaçüo Social Cáspcr t.íbcro dc S to Paulo e na Pontifícia Universidade
Católica dc Sflo Paulo (PUC-SP).

7
Padrões df. manipu s ç Ao na grandf. imprensa_____________ _

linguagem, por sua grande qualidade estética, por sua capa­


cidade de sedução.
A zar o nosso.
Nossos dois grandes mestres, Perseu Abramo c Aloysio
Biondi, demonstram detalhadamente, nos textos aqui apre­
sentados, que a “grande mídia” constitui, hoje - com todas
as suas complexidades, os seus paradoxos c suas contradi­
ções - , uma coluna de sustentação do poder. Ela é impres­
cindível como fonte legitimadora das medidas políticas anun­
ciadas pelos governantes c das “estratégias de mercado
adotadas pelas grandes corporações c pelo capital financei­
ro. Constrói consensos, educa percepções, produz “realida­
des” parciais apresentadas com o a totalidade do mundo,
mente, distorce os fatos, falsifica, mistifica - atua, enfim,
como um “partido” que, proclamando-se porta-voz c espe­
lho dos “interesses gerais” da sociedade civil, defende os
interesses específicos de seus proprietários privados.
Ambos, Abramo e Biondi, mostram com grande acui­
dade analítica como isso é feito. Explicitam os “padrões de
manipulação”, as operações normalmente utilizadas para pro­
duzir determinados efeitos. Fornecem um guia para os que
querem aprender a "ler” a mídia. Abramo analisa a impren­
sa escrita, a televisão (específicamente o “padrão global de
comunicação) c o rádio; Biondi detém-se particularmente
na imprensa escrita, embora, obviamente, não haja nenhum
“muro de Berlim" separando o procedimento de manipula­
ção entre as várias modalidades. Ao contrário.
O texto de Abramo é de 1988. Anterior, portanto, à co­
bertura da Guerra do Golfo (janeiro/fcvcrciro de 19 9 1), quan­
do a CNN (Cable News Network) instalou-se, definitivamen­
te. como rede planetária de transmissão instantânea (cm tem-

8
Pem eu A bramo

po real) de imagens c notícias. A cobertura foi, em si mes­


ma, uma proeza de mistificação, um “divisor de águas” na
historia da mídia. Vimos, pela (elcvisào, que “ninguém mor­
reu" em uma guerra que matou pelo menos 140 mil pessoas.
Pela primeira vez na história da humanidade, a tecnologia -
c não o homem - foi o centro da cobertura de uma guerra:
tanto a tecnologia empregada na produção das armas supos­
tamente inteligentes’ c “cirúrgicas" como a que permitia o
funcionamento da própria CNN. A dor, o sangue e a morte
desapareceram das telas (assim como, cm 11 de setembro
de 2001, ninguém viu os corpos das vítimas do alentado
terrorista; não interessava mostrá-los, quando George Bush
júnior preparava a opinião pública de seu país para uma nova
guerra).
A “revolução conservadora” propiciada pela tecnologia
introduziu pelo menos um novo “padrão de manipulação”
nao analisado por Abramo: o que permite fabricar social­
mente a amnésia, mediante a imposição da velocidade in­
formativa. Notícias do mundo inteiro são despejadas em ta­
manha quantidade, c com tanta rapidez, que mal tomamos
conhecimento de um assunto c logo outro já ocupa os tclc-
(ornais e, conscqücntcmentc. as manchetes da mídia impres-
-.1. fazendo que rapidamente seja esquecido aquilo que ha­
via pouco ainda era considerado “fundamental". A "acclera-
S,l° tecnológica" do mundo prova-se um eficaz instrumento
de dominação.
O próprio Abramo nota isso, durante um discurso feito
aos estudantes de jornalismo da Pontifícia Universidade Ca­
tólica de São Paulo (PU C-SP), durante uma cerimônia reali­
zada pelos alunos em sua homenagem, cm dezembro de 1995
(in's meses antes de sua morte):

9
Padrões de manmjiaçao na grande imprensa

O maior desafío desta nossa profissão nos dias de hoje é a


distância entre a técnica c a ética. Cada ve/, mais. avançam
as novas tecnologias, a informática, a telemática, a transmis-
sSo por satélites, ondas hertzianas, fibras óticas, “estradas
eletrônicas", infovias, telefone celular, tax, computador,
modem, a internet c outras redes. E, cada vez mais, o poder
político c econômico dos grandes impérios empresariais e
multinacionais da comunicação se concentra cm um número
cada vez menor de poucas mãos |...| Por isso. peço aos meus
colegas jornalistas que hoje se formam licença para alguns
lembretes. Não se deixent deslumbrar pelas técnicas c pelas
novas tecnologias. Elas de nada valem, se não forem utiliza­
das com profundo sentido ético c com a visão clara de que a
imensa maioria da sociedade, cm todos os países, ainda luta
para libertar-se da exploração, da opressão, da desigualdade
c da injustiça.

Biondi denunciou incessantcmcntc uma grande '‘arma­


ção” chamada Plano Real, da qual o processo de privati­
zações das empresas estatais constituiu coluna mestra (c antes
disso, nas décadas de I960 c 1970, desmascarou com gran­
de coragem a farsa do "milagre econômico arquitetada pelo
signatário do ai-5, Delfim Netto). Com humor cáustico, lin­
guagem simples c incrível capacidade de extrair do cotidia­
no os fatos que demonstram as suas denúncias, ele nos ensi­
nou a “desmontar" as notícias estampadas nos jornais. Mos­
trou os artifícios que permitem aos jornais afirmar, em man­
chetes, o contrário do que realmente aconteceu.
Enquanto jornalistas c “especialistas” regiamente pa­
gos c promovidos - os lais "intelectuais jornalistas de que
fala Pierre Bourdieu - enalteciam (c enaltecem) as virtudes

10
Prrseu Abramo

da “estabilidade econômica”, fechando os olhos para a de­


vastação produzida no país pelo Fundo Monetário Interna­
cional (FM I) c pelo capital financeiro (da qual a Argentina é
hoje um trágico resultado), Biondi c Abramo nunca tiveram
receio de manter uma posição crítica firme, cvcntualmenle
solitária, mas sempre coerente com seus princípios éticos.
"Ictica”, para eles, não era uma palavra vazia, a ser usada em
grandes discursos para, cm seguida, ser arquivada como um
adorno “politicamente correto” (quem teve o privilégio de
conhecê-los sabe que nada poderia ser-lhes mais estranho
do que a demagogia ou a vontade de agradar). “Ética” era
um pressuposto necessário, vital à atividade jornalística.
Apesar de todas as evidencias, é comum encontrar os
que julgam ser exagero falar em manipulação da mídia.
Muitos acreditam que a prática da manipulação deliberada
aplica-se, no máximo, aos grandes fatos internacionais (por
exemplo, a Guerra do Golfo), quando cstào cm jogo os inte-
Iesses de Fstado associados aos das mcgacorporaçõcs, c que
muitas vezes uma notícia mal dada ou um lato simplesmen­
te ignorado é muito mais resultado de desinformação do jor­
nalista do que da vontade dos donos das empresas de comu­
nicação. Claro que a ignorância c a estupidez cumprem a
aia parte, ninguém nega isso. Mas é igualmente claro que a
determinação de manipular a notícia também existe.
Cometo agora a ousadia de contar apenas um exemplo
muito objetivo c inequívoco, do qual fui c sou testemunha. Em
meados de 1999, a revista Caros Am idos (da qual sou editor)
icccheu a denúncia de que, no Paraná, jagunços estavam per­
seguindo, assassinando c torturando militantes do m s t (M ovi­
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), com a conivência
■ eventual participação da Polícia Militar (PM ). Minha primeira
Padrões of. manipulaçAo na grande imprrnsa

reação loi de ceticismo. Afinal, o governador Jaime Lcmer sem­


pre tora apresentado pela "grande mídia" como um sujeito cul­
to, "moderno", político de "primeiro mundo". E nunca apare-
cera nada sobre o assunto nos grandes jornais.
Mas a fonte era séria - João Pedro Slcdilc, o “sataniza­
do" membro da direção nacional do MST - , c por isso fui ao
Paraná para averiguar os fatos. Era tudo verdade. Obtive­
mos uma fita de vídeo, cedida por um oficial da PM-PR mo­
tivado por “conflitos de consciencia", que mostrava uma
“operação de despejo" de um acampamento do MST. Na fita,
dezenas de camburões da PM cercam um acampamento, de
madrugada (o que é proibido por lei), enquanto soldados,
segurando cães ferozes, disparam para o ar tiros de pistolas
c fuzis. Os barracos de lona são destruídos, as famílias (in­
cluindo mulheres c crianças) são arrancadas da cama; os
homens, nus ou seminus, são obrigados a dcitar-sc de bruços
sobre o chão úmido gelado (a operação acontece em maio),
as mulheres são ameaçadas de estupro diante dos filhos.
Apesar das evidências, o governador negou tudo, as­
sim como o seu secretário de Segurança Pública, Cândido
Martins de Oliveira, ou “Candinho" (mais tarde, implicado
em escândalo de narcotráfico). Só que durante o “civiliza­
do" governo I^crncr haviam sido presos, até junho de 1999,
mais de 200 integrantes do MST, seis comprovadamcntc tor­
turados, 15 mortos, além de terem ocorrido outros 30 aten­
tados e 41 ameaças de morte. A reportagem ganhou o Prê­
mio Vladimir Herzog (aliás, criado por iniciativa de Pcrseu
Abramo, cm 1977). Claro que nada disso foi noticiado pela
“grande mídia", exceto por pequenas notas, aqui c ali.
A partir desses fatos, o MST tornou-se lema permanente
da Caros Am igos. Por essa razão, posso afirmar com muita

12
Perseu A bramo

tranquilidade que os casos de m anipulado da informação


contra o MST multiplicam-sc, cm profusão. Basta citar se
quiserem outro exemplo, o deplorável envolvimento do jo.
nulls,a jo s,a s de Souza, da Folha de S.Paulo. Em maio de
XX)’ Jo;Slas lcz um estardalhaço, com a “denuncia" de urna
suposta “prática de corrupção” pelo MST. Não só não se com ­
provou coisa alguma, como o jornalista foi obrigado a ad­
mitir ter feito sua “reportagem" devidamente orientado por
técnicos do governo, que também forneceu os veículos uti-
i/ados nas visitas aos assentamentos!
Em síntese, se a “grande mídia" forma, hoje, uma es­
pécie de Ministério da Verdade orwclliano, encarregado de
manipular as informações sobre a realidade, produzir amné­
sia e m ar consensos, nrts podemos, em contrapartida, con­
feccionar uma Grande Enciclopédia das Manipulações, ado­
tando os métodos c as recomendações feitas por Pcrscu
A bramo e por Aloysio Biondi. Mais do que textos analíti­
cos, cies nos deixaram como legado as suas atitudes em face
do mundo c da profissão.
Sorte nossa.

13
Prefácio

A atualidade dos estudos do jornalista


e professor Ferseu Abrumo

H am ilto n O ctavio S o uzaJ

Porscu Abramo trabalhou 15 anos com o professor do


■ni so de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de
■>.io Paulo (PUC-SP), de 1981 até sua morte, em 1996. Levou
r a.i i PUC-SP a sua experiência acadêmica da Universidade
if. Mi as íl ia (UnB) e a da Universidade Lede ral da Bahia
' i a li A), c sua vivência jornalística das redações dc O Estado
,Y. Paulo, da Folha de S,Paulo e da imprensa alternativa
i |"i nal M ovimento) e partidária (Jornal dos Trabalhadores,
l i Partido dos Trabalhadores - PT).

• il iniili.m Otlavio Souza t fiirmilislii e [wnlessor imtvtrsilíiin> Foi aluno do Ferscu


Mn mm, seu colega dc trabalho c companheiro na organizado do PT. Ocupou a
■" l*i* do Iicparlamento dc Jornalismo da Pontifícia Universidade Calólíca dc Sito
1'ihIii (1'IIC SP) dc 1991 a 1995, no período cm que Perseu Abramo desenvolveu a
i 11»* i sobre manipulação e distorçHn na imprensa Atualmente, i edilor da revista
ipii lo u t, diretor dc comunicação da Fundaçfto de Ensino Octavio Itaslos (PTOB)
* ................... ................... novamente a chefia do Departamento dc Jornalismo da PU

15
Padrões df. manirueaçAo na grande imprensa______________

Além da atividade docente intensa em várias discipli­


nas específicas - desde Introdução ao Jornalismo, no 1“ ano,
até Projetos Experimentais, no 4U ano - , o professor Perseu
Abramo orientou inúmeros projetos de iniciação científica
c a produção de jornais laboratórios. Desenvolveu, mas não
chegou a concluir, por motivos alheios à sua vontade, uma
pesquisa sobre a manipulação da informação c a distorção
da realidade na imprensa brasileira, que resultou cm textos
e relatórios preliminares de excelente conteúdo, irrefutáveis
nos chamados critérios científicos c de profunda atualidade
até hoje.
Essa pesquisa só não foi concluída porque a universi­
dade, entre 1991 e 1992, viveu grave crise financeira e cor­
tou muitos projetos cm andamento sem verificar seu mérito.
Parte da remuneração do professor Perseu vinha dessa ver­
ba, e ele foi obrigado a deixar o trabalho “suspenso” para se
dedicar exclusivamente às aulas, após ter se afastado da S e­
cretaria de Comunicação da administração municipal de
Luiza Hrundina em São Paulo.
Assim mesmo, os relatórios e os textos da pesquisa con­
cluídos por Perseu Abramo, praticamente inéditos, formam
um conjunto de observações, constatações e análises do com­
portamento da imprensa comercial-burguesa, especialmen­
te dos grandes jornais de São Paulo, raramente desvendados
por outros pesquisadores.
Formado em sociologia, Perseu Abramo conhecia per­
feitamente as técnicas da pesquisa científica, as metodologias
c a organização do material coletado conforme os costumes
da academia. Além disso, sabia perfeitamente o que muitos
jornalistas e professores de jornalismo não sabem ainda hoje:
que a atividade somente pode ser entendida c analisada como

16
Perseu Abramo

categoria política, como instrumento de propagação ideoló­


gica de grupos, setores c classes sociais.
Tanto é que o texto mais completo sobre essa pesquisa
recebeu originalmente, entre outros, os títulos de “Imprensa
e política" ou “Significado político da manipulação na grande
imprensa”. E nele são explicitados não apenas os padrões
da manipulação da informação como também as justificati­
vas políticas da distorção c a pretensão de algumas empre­
sas jornalísticas de se organizar e tentar assumir o papel de
partido político.
A comparação que faz entre partido político c organiza­
ção empresarial do jornalismo é antológica. Vale lembrar que
o jornalista Perseu Abramo tinha participado alivamente da
greve da categoria, em 1979, quando era editor da Fotha, foi
demitido pelo jornal (juntamente com centenas de profissio­
nais castigados pelo patronato) c acompanhou - criticamente
o nascimento c a implementação do Projeto Folha, que trans-
lormou o antigo jornal da família Frias numa espécie de seita
dirigida por manuais e “decretos” de revelação dogmática.
Os estudos do professor Perseu desmascaram a auto-
proclamada “objetividade" da imprensa comercial-burguesa,
mostram que se trata de uma "falsa objetividade” e situam o
jornalismo praticado pelo mercado como um instrumento de
controle político das elites, contrário aos interesses maiores
do povo brasileiro. No debate sobre a verdadeira motivação
da empresa de comunicação em manipular a informação c
distorcer a realidade, Perseu coloca o campo econômico, a
busca do lucro, num segundo plano, já que esse pode ser ob-
iido com melhor resultado cm outras atividades empresariais.
Para ele, a motivação real está no campo político, na lógica
do poder.

17
Padrões df. manipuiaçAo na grande imprensa

Os padrões de manipulação observados, identificados e


classificados por Pcrscu Abramo podem ser aplicados de for­
ma integral na análise dos veículos atualmente, inclusive por­
que as distorções que ele denuncia assumiram com muito mais
desenvoltura o domínio das redações - após mais de dez anos
de adesão da imprensa brasileira aos valores do ncolibcralis-
mo c á participação da mídia no exercício do poder formal
das elites dominantes.
Nos governos de Fernando Henrique Cardoso, por
exemplo, a imprensa c os meios de comunicação pratica­
mente substituíram a representação parlamentar, as organi­
zações sociais c as entidades de classe na intermediação com
a sociedade. Os veículos foram transformados em reprodu­
tores c retransmissores do discurso oficial e, até mesmo, das
manipulações forjadas nos palácios de Brasília.
Justamente um dos padrões da manipulação da infor­
mação indicado nos textos de final dos anos 80 é o oficialis­
m o, que tem sido prática constante na trajetória da imprensa
comercial-burguesa no Brasil e ganhou hegemonia absoluta
na segunda metade dos anos 90 - quando a reportagem c o
trabalho investigative foram abandonados c a palavra "po­
sitiva” das autoridades abarcou a maioria das grandes reda­
ções.
À medida que o oficialismo atinge a grande maioria da
atividade jornalística, cm que a diversidade c a pluralidade
de informações e opiniões deixam de ter seu espaço na so­
ciedade, ele se transforma em autoritarismo. Perseu afirma
isso em seus textos com tremenda percepção do que aconte­
ceria nos anos seguintes na imprensa brasileira.
O oficialism o que tomou conta dos meios de comuni­
cação de 1994 para cá reduziu o jornalismo ao proccdimen-

18
r
PUSH) A bramo

in dcclaratório de um número bem-comportado de fontes


niiciais” c previsíveis, todas naturalmente engajadas no
projeto entreguista do governo FHC c na economía de mer-
■ ulo. de tal forma que a relação com o autoritarism o n9o
pudesse mais ser ignorada. íi claro que o discurso perma­
nente continuou sendo o da liberdade de expressão, o da
"isenção” da imprensa c o da “objetividade jornalística”, mas
•.«•in espaço para que veículos destoassem da lógica do pen­
samento único.
Com base em seus textos, utilizados cm aulas, pales-
n as. oficinas, seminarios, com estudantes de graduação, en­
sino médio c com militantes de movimentos sociais interes-
• IIlos na úrea da comunicação, tem sido possível compreen­
dei alguns dos mecanismos empregados por jornalistas c
comunicadores em geral nos veículos c programas idcniifi-
• 'dos c reconhecidos com o predominantemente dedicados
io jornalismo.
l-.ssa é uma questão primordial: a manipulação não re­
li- ir a realidade da sociedade brasileira, está estruturada no
modo de produção do jornalismo c é exercida por profissio-
••**»•• egressos das universidades, muitos dos quais com per-
I* lu> domínio das técnicas de comunicação c dos “macetes”
•dotados pelos jornalistas tanto para ocultar, fragmentar ou
Inverter os fatos.
Nada mais atual do que a ocultação total, parcial ou
d» a-pee tos da realidade; a fragmentação nas edições; a
Invrisflo da relevância das informações ou a mais prirni-
*•' ' descontextualização dos acontecim entos - práticas
observadas hoje em cada página do jornal diário, da rc-
' 1'♦*•• semanal c nos noticiários das em issoras de rádio e
di IV .

19
Padrões m: manipulação na grande imprensa

O estudo desses padrões descritos por Perseu A bramo


fornece ao jornalista c ao cidadão um instrumental precioso
para a leitura correta c precisa do jornalismo praticado pela
imprensa comercial-burguesa. Fornece, principalmente aos
professores de todas as áreas c cursos, elementos valiosos para
O entendimento sobre o papel da mídia numa sociedade capita­
lista. de massas, sobre os “truques” contidos cm cada notícia e
sobre a necessária atenção que os pesquisadores devem ter ao
utilizar o material jornalístico como fonte de suas pesquisas.
Na parte cm que trata da inversão da forma pelo con­
teúdo, um dos pontos do padrão da inversão, Perseu Abramo
sintetiza, numa operação de sintonia fina, toda a dimensão
de um problema praticamente escamoteado pelo jornalismo
de mercado e deliberadamente ignorado pelas escolas afun­
dadas nas “teorias” que cuidam da aparência, do visual, da
imagem c do signo. Ele afirma:

O texto passa a ser mais importante que o fato que ele repro­
duz; a palavra, a Irase, no lugar da informação; o tempo c o
espaço de cada matéria predominando sobre a clareza da ex­
plicação; o visual harmônico sobre a veracidade ou a fideli­
dade; o ficcional espetaculoso sobre a rculidade.

A riqueza desse pequeno trecho comporta inúmeros de­


bates, reflexões e análises. É possível discutir desde o papel
c a precisão da linguagem na descrição de um fato até o
“jornalismo virtual" praticado em larga escala atualmente
muito mais criação ficcional do que informação relativa a
algo real c concreto.
F.sse tipo de inversão, que é uma manipulação que dis­
torce a realidade, consome os veículos de comunicação lo-

20
Perseu Abramo

«los os dias, às vc/.es de maneira sutil, comida, outras, de


modo escancarado, grosseiro c agressivo.
Utilizei durante anos a edição do jornal O listado de S.
I'tndo de 30 de junho de 1998 como exemplo radical desse
padrão indicado por Perseu Abramo. Naquele dia. o tradi­
cional jornal paulista, empenhado que eslava na reeleição
tic I‘'ornando Henrique Cardoso, apresentou na capa cinco
chamadas (a manchete principal c quatro submanchetcs) ba­
scadas em previsões de futuro, em promessas vagas, do tipo
privatização das leles criará 2 milhões de empregos”, "go­
verno abrirá financiamento da casa própria”, "balança c o ­
mercial terá superávit” c coisas parecidas.
E claro que as chamadas do jornal jamais se concreti­
zaram na época, no prazo e nas condições apontadas pelas
matérias, as quais, na verdade, não guardavam nenhuma re­
lação com fatos reais, mas apenas com intenções e declara­
ções de pessoas do governo devidamente comprometidas
com a reeleição de FHC.
Pica patente que os estudos realizados pelo professor
IVi seu Abramo continuam fornecendo instrumental precio­
so para a compreensão do fazer jornalístico predominante
no país, o qual, obviamente, tem a ver com a organização do
•mema de comunicação, com o tipo de propriedade e cx-
ploração desses meios c com a natureza do sistema capita­
lista.
Certamente, a divulgação de um desses estudos - edi­
tado agora juntamente com o texto de Aloysio Biondi e
t u debate mais amplo na sociedade contribuirão não ape­
nas para alargar a visão crítica - necessária - dos esquemas
Ir manipulação da informação c de distorção da realidade,
unis fundamentalmente para formar a base da transforma-

21
Padrôrs dp. maniptiaçâo na grandp. imprrnsa

çâo c estimular a formulação de um novo jornalismo - trans­


parente, democrático, participativo e comprometido com os
destinos da maioria do povo brasileiro.

22
Significado político
da manipulação
na grande imprensa1

Pcrscu Abranlo

A m a n ip u la ç ã o

Uma das principais características do jornalismo no


llrasil, hoje, praticado pela maioria da grande imprensa, é a
manipulação da informação.
O principal efeito dessa manipulação 6 que os órgãos
•le imprensa não refletem a realidade. A maior parte do ma­
terial que a imprensa oferece ao público tem algum tipo de
relação com a realidade. Mas essa relação 6 indireta. É uma
u lerenda indireta à realidade, mas que distorce a realidade,
l udo se passa como se a imprensa se referisse à realidade
apenas para apresentar outra realidade, irreal, que ó a con-
1ralação da realidade real. É uma realidade artificial, nâo-
><al, irreal, criada c desenvolvida pela imprensa e apresen-

I Kxto c-vcrito cm 1988.

23
PADHÍil'í niiMANIIT'IAÇto NAGRASrMMPRRNW

Luda n o lu g a r Ja real idade real. A rclB(|So Cfllrt; a imprensa c


a realidade é parecida com aquela entre um espelho defor­
mado c um objeto (| lic ele aparente mente relíete, a imagem
do espelho tem algo a ver com o objeto, mas não só não é o
objeto como também não é a sua imagem; é a imagem de
outro objeto que não corresponde ao objeto real.
Assim, o público - a sociedade - é cotidiana e sistema­
ticamente colocado diante de uma realidade artificialmente
criada pela imprensa c que se contradi/,, se contrapõe c
frequentemente se superpõe e domina a realidade real que
ele vive c conhece. Como o público é fragmentado no leitor
ou no telespectador individual, ele só percebe a contradição
quando se trata da infinitesimal parcela de realidade da qual
ele 6 protagonista, testemunha ou agente direto, c que, por­
tanto, conhece. A imensa parte da realidade, ele a capta por
meio da imagem artificial c irreal da realidade criada pela
imprensa; essa é, justamente, a parle da realidade que ele
não percebe doctamente, mas aprende por conhecimento.
Daí que cada leitor tem, para si, uma imagem da reali­
dade que na sua quase totalidade não é real. B diferente e
até antagónicamente oposta à realidade. A maior parte dos
indivíduos, portanto, move-se num mundo que não existe, c
que foi artificialmente criado para ele justamente a fim de
que ele se mova nesse inundo irreal.
A manipulação das informações se transforma, assim,
em manipulação da realidade.

O s padrões de nnmipulaçiut

A manipulação da realidade pela imprensa ocorre de


várias e múltiplas formas. É importante notar que não é

24
P erseu A m u m o

todo o material que toda a imprensa manipula sempre. Se


fosse ass i ni se pudesse ser assim o fenóm eno seria
autodcsmistil’icador e autodcstruidnr por si mesmo, e sua
importancia seria extremamente reduzida mi quase insig­
nificante. Também nfio é que o fenômeno ocorra uma ve/,
ou outra, numa ou noutra matéria de um ou outro jornal; sc
fosse esse o caso, os efeitos seriam igualmente nulos ou
insignificantes.
A gravidade do fenômeno decorre do fato de que ele
marea a essência do procedimento geral do conjunto da pro­
dução cotidiana da imprensa, embora muitos exemplos ou
matérias isoladas possam ser apresentados para contestar a
característica geral.
Essa característica geral pode ser observada quando sc
procura tipi Hear as formas mais usuais de manipulação. K
isso permite falar cm padrões de manipulação observáveis
na produção jornalística. Os padrões devem ser tomados
como padrões, isto é, como tipos ou modelos de manipula­
ção, cm torno dos quais gira, com maior ou menor grau de
aproximação ou distanciamento, a maioria das matérias da
pittdução jornalística,
li possível distinguiré observar, portanto, pelo menos
qnaim padrões de manipulação gerais para toda a imprensa
■ mais um específico para o lelcjornalismo, c que a seguir
sã o delineados.I

I P a d rã o de ocultação - É o padrão que se refere à ausén-


<i.j e ã presença dos fatos reais na produção da imprensa.
Náo se (luta, evidentemente, de fruto do desconhecimento,
i nem mesmo de rnera omissão diante do real. H, ao contrã-
Mo, um deliberado silêncio militante sobre determinados

25
Padrões de manipuiaçAo na grande imprensa

fatos da realidade. Esse é um padrão que opera nos antece­


dentes, nas preliminares da busca da informação, isto é, no
“momento” das decisões de planejamento da edição, da pro­
gramação ou da matéria particular daquilo que na imprensa
geral mente se chama de pauta.
A ocultação do real está intimamente ligada àquilo que
freqücntementc se chama de fa to jornalístico. A concepção
predominante - mesmo quando não explícita - entre em ­
presários c empregados de órgãos de comunicação sobre o
lema é a de que existem fa to s jo rn a lístico s c fatos não-
jornalísticos c que, portanto, à imprensa cabe cobrir c expor
os fatos jornalísticos c deixar de lado os não-jornalísticos.
Evidentemente, essa concepção acaba por funcionar, na prá­
tica, como uma racionalização a posteriori do padrão de
ocultação na manipulação do real.
Ora, o mundo real não se divide cm fatos jornalísticos
e não-jornalísticos, pela primária razão de que as caracte­
rísticas jornalísticas, quaisquer que elas sejam, não resi­
dem no objeto da observação, c sim no sujeito observador
c na relação que este estabelece com aquele. O “jornalístico”
não é uma característica intrínseca do real cm si, mas da
relação que o jornalista, ou melhor, o órgão do jornalismo,
a imprensa, decide estabelecer com a realidade. N esse sen­
tido, todos os fatos, toda a realidade pode ser jornalística,
c o que vai tornar jornalístico um fato independe das suas
características reais intrínsecas, mas depende, sim, das ca­
racterísticas do órgão de imprensa, da sua visão de mundo,
da sua linha editorial, do seu “projeto”, enfim , com o se di/
hoje.
Por isso o padrão de ocultação é decisivo c definitivo
na manipulação da realidade: tomada a decisão de que um

26
PraSEUAhramü

imo -nao é jornalístico”, não há a menor chance de que o


lator tome conhecim ento de sua existência por m eio da
imprensa. O tato real foi eliminado da realidade, ele não
existe, O fato real ausente deixa de ser real para se transfor­
mar cm imaginário. E o fato presente na produção jorna­
lística. real ou ficcional, passa a tomar o lugar do Tato real c
a compor, assim, uma realidade diferente da real. artificial,
criada pela imprensa.

Padrño de fragm entação - Eliminados os fatos definidos


como não-jornalísticos, o "resto” da realidade é apresenta-
......lcla ,mPrcnsa 110 lcilor na» com o uma realidade, com
Mias estruturas e intcrconcxõcs, sua dinâmica e seus m ovi­
mentos c processos próprios, suas causas, suas condições c
suas consequências. O todo real é estilhaçado, despedaça-
•!». fragmentado em milhões de minúsculos fatos partícula-
lirados, na maior parte dos casos desconectados entre si,
despojados de seus vínculos com o geral, desligados de seus
antecedentes c de seus consequentes no processo cm que
ocorrem, ou reconectados c revineulados de forma arhitrá-
' * c quc nâo “ " “ Ponde aos vínculos reais, mas a outros
ficcionais c artificialmente inventados. Esse padrão também
•' opcracionaliza no "momento" do planejamento da pauta
principalmente no da busca da informação, no da ela-'
fioiaçao do texto, das imagens c dos sons, c no de sua apre-
••• inação, na edição.
o padrão de fragmentação implica duas operações bá-
......... “ se,et a° * “ 'rectos, ou particularidades, do fa to c a
</<scontextualização.
A seleção de aspectos do fato que é objeto da atenção
jornalística obedece a princípios semelhantes aos que ocor-

27
P aDRÔF-S DF. MANIPULAÇÃO NA C.RANDF. IMPRENSA

rcm no padrão dc ocultação. Embora tenha sido escolhido j


com o um fato jornalístico c, portanto, digno dc merecer es­
tar na produção jornalística, o fato 6 decomposto, atomizado,
dividido cm particularidades ou aspectos, c a imprensa sele­
ciona os c|uc apresentará ou não ao público. Novamente, os
critérios para essa seleção não residem necessariamente na
natureza ou nas características do fato decomposto, mas sim
nas decisões, na linha, no projeto do órgão de imprensa, que
são transmitidos, impostos ou adotados pelos jornalistas
desse órgão.
A descontextualizaçâo 6 uma decorrência da seleção
dc aspectos. Isolados como particularidades de um fato, o
dado, a informação, a declaração perdem todo o seu signifi­
cado original c real para permanecer no limbo, sem signih-
cado aparente, ou receber outro significado, dilcrente e mes­
mo antagônico ao significado real original.
A fragmentação da realidade em aspectos particulari­
zados. a eliminação dc uns c a manutenção dc outros c a
dcscomcxtualização dos que permanecem são essenciais,
assim, à distorção da realidade c à criação artificial dc uma
outra realidade.

3. Padrão da inversão - Fragmentado o fato cm aspectos


particulares, todos eles dcscontcxtualizados. intervém o pa­
drão da inversão, que opera o reordenamento das partes, a
troca dc lugares e dc importância dessas partes, a substituição
dc umas por outras c prossegue, assim, com a destruição da
realidade original c a criação artilicial da outra realidade. É
um padrão que opera tanto no planejamento com o na coleta
c na transcrição das informações, mas que tem seu reinado
por excelencia no momento da preparação c da apresenta­
P&RSkUA«KAMO

ção final, ou da edição, dc cada matéria ou conjunto dc ma­


térias.
Há várias formas dc inversão. 1*requente men te muitas
debts são usados na mesma matéria; em quase todas as ma­
terias ocorre uma ou outra inversão. As principais são:
' I. Inversão da relevância dos aspectos: o secundário é
apresentado como o principal c vice-versa; o particular pelo
geral c vice-versa; o acessório c supérfluo no lugar do im­
portante e decisivo; o caráter adjetivo pelo substantivo; o
pitoresco, o esdrúxulo, o detalhe, enfim, pelo essencial.
V2. Inversão da fo rm a pelo conteúdo: o texto passa a ser
mais importante que o fato que ele reproduz; a palavra, a
liase, no lugar da informação; o tempo c o espaço da mató-
n.i predominando sobre a clareza da explicação; o visual
harmônico sobre a veracidade ou a fidelidade; o ficcional
i spetaculoso sobre a realidade.
t 3. Inversão da versão pelo fato: não é o fato cm si que
passa a importar, mas a versão que dele tem o órgão de im­
prensa, seja essa versão originada no próprio órgão de im­
prensa, seja adotada ou aceita de alguém - da fonte das dc-
»Iorações c opiniões. O órgão de imprensa praticamente re­
nuncia a observar c expor os fatos mais triviais do mundo
nutural ou social c prefere, em lugar dessa simples opera­
ção, apresentar as declarações, suas ou alheias, sobre esses
lutos, frequentemente, sustenta as versões mesmo quando
os fatos as contradizem. Muitas vezes, prefere engendrar
versões c explicações opiniáticas cada vez mais complica­
das c nebulosas a rcndcr-sc á cvidôncia dos fatos. Tudo se
passa como se o órgão dc imprensa agisse sob o domínio de
um princípio que dissesse: se o fato não corresponde à mi­
nha versão, deve haver algo errado com o fato.

29
Padrões df manipuiaçAo na grano*, imprensa

3.3.1. Um dos extrem os desse padrão de inversão ó o


fra sism o , o abuso da utilização de frases ou de pedaços de
frases sobre uma realidade para substituir a própria realida­
de. Acoplado às demais formas de manipulação - ocultação,
fragmentação, seleção, descontcxtuali/.ação. várias inversões
etc. o frasismo surge, assim, quase como a manipulação
levada aos seus limites: uma frase, um trecho de Irase, às
vezes uma expressão ou uma palavra, são apresentados com o
a realidade original. O abuso é tão excessivo que quase to­
dos os grandes órgãos de imprensa chegam a criar uma "se­
ção de frases”, isto é, uma realidade robótica, extraterrena,
pura ficção, embora —c aí a gravidade da manipulação -
parcccndo-sc ao máximo com a mais pura forma de realida­
de, porque, afinal, aquelas palavras foram ditas por aquelas
pessoas e fielmente registradas, de preferência com grava­
dor, e literalmente transcritas.
3.3.2. O outro extremo da inversão do fato pela versão 6 o
oficialism o, expressão aqui utilizada para indicar a fonte
“oficial” ou “mais oficial” de qualquer segmento da socie­
dade, e não apenas as autoridades do Estado ou do governo.
No lugar dos fatos uma versão, sim. mas de preferencia a
versão oficial. A melhor versão oficial é a da autoridade, c a
melhor autoridade, a do próprio órgão de imprensa. À sua
falta, a versão oficial da autoridade cujo pensamento é o
que mais corresponda ao do órgão de imprensa, quando se
trata de apresentar uma realidade de forma “positiva , isto
é, de maneira que o leitor não apenas acredite nela mas a
aceite c adote. A autoridade pode ser o presidente da Repú­
blica, o governador do estado, o reitor da universidade, o
presidente do centro acadêmico, do sindicato, do partido
político ou de uma sociedade de amigos de bairro. Ela sem-

30
PhKMUARRAMO

I'm vale inais do que as versões de autoridades subalternas,


" tupie muito mais que a dos personagens que nüo detêm
qualquer forma de autoridade c, evidentemente, sempre in-
Ii ni lamente mais do que a realidade. Assirn, o oficialism o se
ti uniforma cm autoritarismo.
' I Inversão da opinião pela informação. A utilização sis­
temática c abusiva de todos esses padrões de manipulação
l< va quase inevitavelmente a outro padrão: o de substituir,
inteira ou parcialmente, a informação pela opinião. Deve-se
destocar que não se trata de dizer que, além da inform ação,
" órg&o de imprensa apresenta também a opinião, o que se­
ita justo, louvável c desejável, mas sim que o órgão de im­
prensa apresenta a opinião no lugar da informação, e com a
agravante de fa ze r passar a opinião peta informação. O ju ízo
de valor 6 inescrupulosamente utilizado como se fosse um
juízo de realidade, quando não como se fosse a própria mera
exposição narrativa/descriliva da realidade. O leilor/espec-
tadorjá não tem mais diante de si a coisa tal como existe ou
acontece, mas sim uma determinada valorização que o ór­
gão quer que ele tenha de uma coisa que ele desconhece,
porque o seu conhecimento lhe foi oculto, negado c esca­
moteado pelo órgão.
Essa inversão é operada pela negação, total ou quase
total, da distinção entre juízo de valor c juízo de realidade,
entre o que já se chamou de “gêneros jornalísticos”, ou seja,
de um lado a notícia, a reportagem, a entrevista, a cobertura,
o noticiário, c, de outro, o editorial, o artigo, formas de
apreensão c compreensão do real que, coexistentes numa
mesma edição ou programação, se completavam entre si c
ofereciam ao leitor alternativas de formar sua (do leitor)
opinião, de maneira autônoma c independente. Hoje, exata­

31
Padrões df. manipuuçAo na grande imprensa

mente ao contrário, o fato 6 apresentado ao leitor arbitraria­


mente escolhido dentro da realidade, fragmentado no seu
interior, com seus aspectos correspondentes selecionados e
dcsconlextuali/.ados, reordenados invertidamente quanto a
sua relevância, seu papel e seu significado, e, ainda mais,
tendo suas partes reais substituídas por versões opiniáticas
dessa mesma realidade. O jornalismo, assim, não relíete nem
a realidade nem essa específica parte da realidade que é a
opinião pública ou do seu público. Ao IcitoiVespcciador, as­
sim, não é dada qualquer oportunidade que não a de consu­
mir, introjetar c adotar como critério de ação a opinião que
lhe é autoritariamente imposta sem que lhe sejam igualmen­
te dados os meios de distinguir ou verificar a distinção entre
informação e opinião. Ksla se introduz sub-reptieiámenle
no meio da matéria, substitui ou prepondera sobre a infor­
mação, c passa a ser não apenas o eixo principal da matéria,
mas sua principal ou única justificativa de existência como
matéria jornalística, como objeto dc produção c de edição,
apresentação c vciculação. A informação, quando existe,
serve apenas dc mera ilustração exemplificadora da opinião
adrede formada e definida - a tese - c que, esta sim, se quer
impor à sociedade.
Essa particular inversão da opinião sobre a informação
pode às vezes assumir caráter tão abusivo e absoluto que
passa a substituir a realidade real até aos olhos do próprio
órgão dc informação. Não é incomum perceber que às vezes
os responsáveis pelos órgãos cometem erros - aí, sim, invo­
luntários - porque passaram a acreditar integralmente nas
matérias do próprio órgão, sem perceber que elas não
correspondem à realidade.

32
P eksru An ramo

I 1'adrão de indução - É necessário repetir que os padrões


• manipulação alé aqui descritos não ocorrem necessaria­
mente cm todas as matérias c programas de todos os órgãos
Impressos, auditivos ou televisivos, diariamente ou periodi-
« ámenle, ti possível encontrar, diariamente, um grande mi­
ni, i o de matérias em que esses processos de manipulação
não existam ou existam cm grau mínimo, e também encon-
h .ii certo número dc matérias cm que as distorções da rca-
lld.tde são frutos dc erros involuntários ou dc limitações na-
•ni -lis á capacidade de captare transmitir informações sobre
i u .ilidade. É possível, até, que o número de matérias em
qne tal ocorra seja eventualmente superior ao daquelas cm
•Ine seja possível identificar a existência dc padrões dc ma­
nipulação. E, finalmente, deve-se levar cm conta, também,
i variação da intensidade dc utilização da manipulação se­
cundo o órgão em exame ou o assunto, o tema ou a "editoria”
.1. cada órgão.
Mas o que torna a manipulação um fato essencial e ca­
i u m ístic o da maioria da grande imprensa brasileira hoje é
•|u« .i hábil combinação dos casos, dos momentos, das for­
mas e ilos graus de distorção da realidade submete, em geral
r i m seu conjunto, a população á condição dc excluída da
p" síbilidadc de ver c compreender a realidade real c a in­
duza a consumir outra realidade, artificialmente inventada.
I isso que chamo de padrão de indução.
Submetido, ora mais, ora menos, mas sistemática e cons­
tantemente, aos demais padrões dc manipulação, o leitor é
induzido a ver o mundo não com o ele é, mas sim com o que-
•cm que ele o veja. O padrão de indução é, assim, o resulta­
do i ao mesmo tempo o impulso final da articulação combi­
nada de outros padrões de manipulação dos vários órgãos

33
Padrões de manipulação na grande imprensa

tic comunicação com os quais clc lem contato. O padrão de


indução tem a ver, como os demais, com os processos de
planejamento, produção c edição do material jornalístico,
mas ultrapassa esses processos c abarca, ainda, os planos de
apresentação final, no parque gráfico ou nas instalações de
radiodifusão, distribuição, índices de tiragem c audiência
de publicidade etc. - ou seja, os planos de produção jorna­
lística como parte da indústria cultural c do empreendimen­
to empresarial-capitalista.
A indução a enxergar a outra realidade - diferente c
até oposta à realidade real —é o fruto da manipulação do
conjunto dos m eios de com unicação, em que cada qual, in­
dividualmente, tem a sua parte, c cm que evidentemente a
parte preponderante c de maior responsabilidade deve ser
atribuída aos maiores meios de comunicação, isto é, aos mais
poderosos, aos que têm maior tiragem e audiência, aos que
têm e ocupam maiores espaços, aos que veiculam mais pu­
blicidade. Em outras palavras, aos melhores.
A indução se manifesta pelo reordenamento ou pela
rccon tcxtualização dos fragm entos da realidade, pelo
subtexto - aquilo que é dito sem ser falado —da diagramação
c da programação, das manchetes c notícias, dos comentá­
rios, dos sons c das imagens, pela presença/ausêneia de te­
mas, segmentos do real, de grupos da sociedade c tie perso­
nagens.
Alguns assuntos jamais, ou quase nunca, são tratados
pela imprensa, enquanto outros aparecem quase todos os
dias. Alguns segm entos sociais são vistos pela imprensa
apenas sob alguns poucos ângulos, enquanto permanece na
obscuridade toda a complexa riqueza de suas vidas c ativi­
dades. Alguns personagens jamais aparecem em muitos ór-

34
Persbu Abramo

güos tic comunicação, enquanto outros comparecem abu­


sivamente, ít saciedade, com uma irritante c enjoaliva fre­
quência. Alguns aspectos sào sistematicamente relembrados
na composição das matérias sobre determinados grupos so­
ciais, mas igualmente evitados de forma sistemática quando
se trata de outros. Depois de distorcida, retorcida c recriada
ficcionalmente, a realidade é ainda assim dividida pela im­
prensa etn realidade do campo do Bem e realidade do cam­
po do M al, c o lei tor/espectador é induzido a acreditar não
só que seja assim, mas que assim será eternamente, sem
possibilidade de mudança.

5. Padrão global ou o padrão específico do jornalism o de


televisão e rádio - O jornalismo de radiodifusão (TV c rá­
dio) passa por todos os quatro tipos gerais de padrões de
manipulação, mas ainda apresenta outro que lhe é específi­
co. F.mbora haja pequenas diferenças entre o radiojornalismo
e o telejornalismo, o padrão global é o mesmo para ambos,
grosso m odo. Vamos dcscrcvc-lo sumariamente, tomando
como ponto de referencia o jornalismo de televisão.
A expressão global é aqui empregada com o sentido de
total, completo ou “redondo”, isto é, do problema à sua so­
lução.
O padrão global se divide cm três momentos básicos,
como se fossem três atos de um espetáculo, de um jogo de
cena:
I - O Primeiro Momento, ou l u Ato, é o da exposição do
fato. Submetido a todos os padrões gerais de manipulação,
o lato ¿ apresentado sob os seus Angulos menos racionais e
mais emocionais, mais espetaculares c mais sensacionalis­
tas. As imagens c os sons mostram o incêndio, a tempesta-

35
Padrões de manipuwçAo na grande imprensa

de, a enchente, ou a convenção do partido majoritário, a pas­


seata, a greve, o assalto, o crime etc. As imagens são ampara­
das por textos lidos ou Talados.
2 - C) Segundo Momento, ou 2UAto, é o da sociedade fa la .
As imagens c os sons mostram detalhes e particularidades,
principalmente dos personagens envolvidos. F.les apresen­
tam seus testemunhos, suas dores e alegrias, seus apoios c
suas críticas, suas queixas c propostas.
3 - 0 Terceiro Momento, ou 3UAto, é o da autoridade resol­
ve. Sc se traia de um fato “natural” (incêndio, tempestade,
enchente), a autoridade (do papa ou do presidente da Repú­
blica ao guarda, nessa ordem) anuncia as providências, isto
6, as soluções já tomadas ou prestes a serem tomadas. Se se
trata de fato social (greve, passeata, reunião de partido, ses­
são do Parlamento, homicídio, assalto etc.) a autoridade re­
prim e o M al e enaltece o Hem, c também anuncia as solu­
ções já tomadas ou a tomar, para as duas situações. Nos dois
casos, a autoridade tranquiliza o povo, desestim ula qual­
quer ação autônom a e independente do povo, m antém a au­
toridade e a ordem, submete o povo ao controle dela, autori­
dade.
É claro que pode haver variações, ampliação ou redu­
ção de momentos, maior ou menor amplitude de latos, ver­
sões e opiniões diferenciadas, mas a maior parte do noticiá­
rio de TV segue esse padrão global. E, Trcqüentemente, ao
Terceiro Ato - o da autoridade resolve - seguc-sc um epílo­
go, cm que a própria emissora, por seu apresentador ou co­
mentarista, reforça o papel resolutorio, tranquilizador e
alienante da autoridade ou a substitui ou contesta quando a
mensagem da autoridade não é suficientemente controlado­
ra da opinião pública.

36
Perseu Abramo

I.. óbvio que u retenção dessas im agens fin a is da notí­


cia do telejomalismo vai subsistir, no telespectador, como a
mensagem essencial da matéria, individualizada nas ima­
gens iniciais. Assim, o padrão de indução da outra realidade
se completa c se reforça com o poderoso instrumento do
radiojomalismo c do telejomalismo.
A transformação está completa. A realidade real foi subs­
tituída por outra realidade, artificial c irreal, anti-real. c é
nesta que o cidadão tem que se mover c agir. D e preferên­
cia, não agir!

O b je tiv id a d e e s u b je tiv id a d e

() processo dc manipulação da realidade é uma carac­


terística intrínseca ao jornalismo ou é a marca, apenas, de
um tipo dc jornalismo? Seria possível fazer um jornalismo
não-manipulador, ou que, pelo menos, minimizasse ao má­
ximo a manipulação, dc lorma a reduzir drasticamente os
seus eleitos, a torná-la apenas um fato ocasional e excepcio­
nal?
A resposta a essa questão passa pela discussão do tema
da objetividade c da subjetividade no jornalismo.
Hm primeiro lugar, é necessário distinguir o conceito
de objetividade de um conjunto de outros conceitos aos quais
sempre aparece vinculado: neutralidade, imparcialidade,
isenção, honestidade.
Há diferenças fundamentais entre a objetividade e os
demais conceitos. Neutralidade, imparcialidade, isenção,
honestidade etc. são palavras que se situam no campo dc
ação. Dizem respeito aos critérios do fazer, do agir, do ser.
Keferem-sc mais adequadamente a categorias dc comporta­

37
Padrões de manipuiaçAo na grande imprensa

mento moral. Os próprios conceitos tem caráter moralista e


moralizante, c, quando conjugados aos seus antônimos, for­
mam pares que tendem a nos convocar a um ajuizamento do
tipo bom/mau, ccrio/crrado ele.
Com exceção do par honestidade/desonestidade, no qual
o pressuposto é de que todos nós devamos sempre louvar o
pólo positivo, bom - isto é. a honestidade - , os demais reque­
rem uma postura mais crítica quando se trata de jornalismo.
Vejamos: é desejável, para um jornalista, para um ór­
gão de comunicação, uma postura de neutralidade, im parcia­
lidade ou isenção, no lugar de seu contrário, isto ó, a tomada
de posição? Na medida em que o jornalismo tem de tratar
do mundo real. “natural” ou “histórico”, c que esse mundo
real é repleto de contradições reais, de conflitos, de antago­
nismos c de lutas, o que significa realmente ser neutro, im ­
parcial ou isento? "Neutro” a favor de quem, num conflito
de classes? “Imparcial” contra quem, diante de uma greve,
da votação de uma Constituição? “Isento” para que lado,
num desastre atômico ou num escândalo administrativo?
Assim, é defensável que o jornalismo, ao contrário do
que muitos preconizam, deve ser não-neutro, não-im parcial
c não-isento diante dos fatos da realidade. E em que mo­
mento o jornalismo deve tomar posição? Na orientação para
a ação. O órgão de comunicação não apenas pode mas deve
orientar seus Icitorcs/cspcctadorcs, a sociedade, na forma­
ção da opinião, na tomada de posição c na ação concreta
com o seres humanos c cidadãos. É esse, exatamente, o cam­
po do juízo de valor, do artigo de fundo, da opinião, do co­
mentário, do artigo, do editorial.
O conceito de objetividade, porém, situa-se em outro
campo, que não o da ação: o campo do conhecim ento. A

38
l’iiRSEUA bramo

objetividade é uma categoria gnosiológica, epistemológica,


mais que deontológica ou ontológica. A objetividade tem a
ver com a relação que se estabelece entre o sujeito observa­
dor c o objeto observável (a realidade externa ao sujeito ou
externalizada por ele), no momento do conhecimento. A
objetividade não 6 um apanágio nem do sujeito nem do ob­
jeto, mas da relação entre um c outro, do diálogo entre sujei­
to e objeto; é uma característica, portanto, da observação,
do conhecimento, do pensamento.
É claro que a objetividade - bem como o seu contrário,
a subjetividade - não existe cm absoluto c cm abstrato. Fu­
tre a subjetividade e a objetividade existe uma gradação,
cm que os dois pólos indicam os limites tangenciais dessa
gama variada c graduada. Da mesma forma, há sempre ele­
mentos de subjetividade na objetividade c de objetividade
na subjetividade. Assim, nunca se é inteiramente subjetivo
nem totalmente objetivo na relação de apreensão c conheci­
mento do real. Mas é possível proceder mais ou menos ob­
jetivamente ou subjetivamente, c é esta noção que 6 funda­
mental reter: a da possibilidade concreta de buscar a objeti­
vidade e de tentar aproximar-se ao máximo dela.
Quais os requisitos para que essa possibilidade concre­
ta se torne viável, se realize de fato?
Fm primeiro lugar, o conhecimento mesmo dos limites
e das condições da capacidade humana de apreender c cap­
tar o real, das circunstâncias que influenciam a capacidade
de observação, dos fatores que intervêm nas operações men­
tais do raciocínio, das limitações da possibilidade de ver­
balização c de transmissão do apreendido. Quanto maior a
capacidade de conhecer c colocar sob controle os fatores de
subjetividade inerentes à relação sujeito-objeto, maiores as

39
Padrões de manikjiaçAONAGRANDE imprensa

possibilidades de se aproximar de uma captação objetiva da


realidade.
Em segundo lugar, da disposição de alcançar essa ob­
jetividade. Sc se parte apenas da constatação de que a obje­
tividade absoluta não existe e de que, portanto, não vale a
pena procurar uma objetividade relativa, não se sairá jamais
da mais completa subjetividade. Sc se acredita que não existe
qualquer possibilidade de obter a objetividade, chafurda-sc,
então, num mar de subjetividade, sem remissão. A volição,
portanto, além do conhecimento c do autocontrole, é requi­
sito básico.
Em terceiro lugar, o conhecimento da realidade é tanto
mais objetivo quanto mais o sujeito observador não se pren­
de às aparências, procura envolver totalmente o objeto da
observação, busca seus vínculos com o lodo ao qual perten­
ce, bem como as intcrconcxõcs internas dos elementos que
o compõem, investiga os momentos antecedentes e consc-
qücntcs no processo do qual o objeto faz parte, reexamina o
objeto sob vários ângulos e várias perspectivas. Se o sujeito
observador faz isso, tem grandes probabilidades de conhe­
cer, com o máximo de objetividade possível, o objeto real
cm que está interessado. Se não faz, gradativamente cede
terreno â subjetividade. Esta, é claro, prescinde desses re­
quisitos e cuidados. No limite, a subjetividade prescinde do
objeto. A objetividade, portanto, necessita de conhecimen­
to, vontade, controle e método.
Existe, é claro, uma fa lsa objetividade, que pervagou
por muito tempo manuais de jornalismo c mesmo certos jor­
nais da grande imprensa. É uma objetividade falsa não por­
que relativa, mas porque aparente e subjetiva. Esse método
de objetividade restringe-se aos aspectos meramente apa-

M)
Persku Arramo

rentes e quantificáveis da realidade, aos dados mais flagran­


tes e numéricos, supondo, com isso, que assim vê objetiva­
mente a realidade. Ora, nem toda a realidade é dimensionável,
redutível a números, cifras, pesos, melros, quantias e quan­
tidades, anos de idade e datas etc. E frequentemente os da­
dos mais aparentes e espetaculares de uma realidade são tam­
bém os mais irrelevantes c secundários. Esse tipo de falsa
objetividade tornou-se tão abusivo e irracional que prova­
velmente provocou uma reação contrária igualmente irracio­
nal c abusiva, isto é, o abandono, a renúncia a qualquer ten­
tativa séria de procurar ver c descrever objetivamente a rea­
lidade. É necessário fazer a crítica da fa lsa objetividade e
repor a discussão do lema cm termos serenos, porém lu ­
mes, da metodologia do conhecimento sob uma abordagem
lógica não-convencional.
Voltando agora à questão inicial: é possível fa ze r jo r ­
nalismo com o nuiximo possível de objetividade. Mais ain­
da, é desejável fazê-lo porque essa é a única forma de redu­
zir ao máximo o erro involuntário c impedir a manipulação
deliberada da realidade.
O reino da objetividade é a informação, a notícia, a
cobertura, a reportagem, a análise, assim com o o reino da
tomada de posição era a opinião, o comentário, o artigo, o
editorial. É fundamental separar e distinguir informação
de opinião, indicar as diferenças de conteúdo c forma dos
gên eros jo r n a lístic o s, e apresentar toda a produção
jornalística ao Icitor/tclcspcctador de forma que ele perce­
ba ¡mediatamente o que é exposição da realidade e o que é
ajuizamento de valor.
Padrões of. manipulaçAo na grande imprensa

O s ig n ific a d o p o lític o d a m a n ip u la ç ã o

Sc é possível fazer jornalismo com objetividade, por


que o jornalismo manipula a informação c distoree a reali­
dade? Se é possível identificar c distinguir padrões reite­
rativos de manipulação, cía é fruto do erro involuntário, da
causalidade excepcional ou das naturais limitações da capa­
cidade de observação c conhecimento? Certamente, não. A
conclusão a que se pode chegar, pelo menos com o hipótese
de trabalho, 6 a de que a distorção da realidade pela manipu­
lação da informação 6 deliberada, tem um significado e uní
propósito.
Não é necessário cstendcr-sc na demonstração de que,
na sua imensa maioria, os principais órgãos de comunica­
ção no Brasil de hoje são propriedade da empresa privada.
Também não 6 necessário demonstrar o grau de controle que
as empresas exercem sobre a produção, de onde 6 possível
concluir que são os proprietários das empresas de comuni­
cação os principais - embora não os únicos - responsáveis
pela deliberada distorção da realidade, pela manipulação das
informações.
A discussão que deve ser feita, portanto, é a que possa
nos levar a compreender p o r que os em presários da com uni­
cação manipulam e distorcem a realidade.
Uma das explicações para essa questão procura situar a
raiz. da resposta no campo económico. E há duas vertentes
para a explicação economicista do fenômeno. A primeira
desloca para a figura do anunciante a responsabilidade últi­
ma e maior pelo produto final da comunicação: segundo essa
vertente, 6 por imposição - direta ou indireta - desse anun­
ciante (privado ou estatal) que o empresário se vê obrigado

42
Perseu Ahkamo

a manipular c distorcer. A segunda vertente centra a explica­


ção na am bição de lucro do próprio empresário de comuni­
cação: ele distorce c manipula para agradar seus consumi­
dores c, assim, vender mais material de comunicação e au­
mentar seus lucros: a responsabilidade é do próprio empre­
sário de comunicação, mas a motivação é econômica.
B bastante provável que ambos esses elementos entrem,
cm maior ou menor grau, no comportamento de grande parte
das empresas de comunicação. Mas não parecem explicar todo
o fenômeno. O peso de cada anunciante individual sobre o
órgão de comunicação, ou mesmo de seu conjunto, é muito
ponderável na pequena imprensa, aquela em que a manipula­
ção surte menos efeito. Onde a manipulação impera é na gran­
de imprensa, a que conta, como recriadora de uma realidade
artificial, c, nessa, o peso econômico do anunciante como
expressão editorial é quase nulo ou bastante reduzido.
A ambição de lucro, por outro lado, não explica, por si
só, a manipulação e a distorção. Em primeiro lugar, porque
muito provavelmente o empresário, no Brasil de hoje, teria
mais chances de obter lucros mais gordos c mais rápidos
aplicando seu capital cm outros ramos da indústria, do co­
mércio ou das finanças, c não precisaria investi-lo na com u­
nicação. Em segundo lugar, porque nada garante que outro
tipo de jornalism o, não-m anipulador, não tivesse uma
audiência infinitamente maior do que a que consom e os pro­
dutos de comunicação manipulados. E evidente que os ór­
gãos de comunicação, e a indústria cultural de que fazem
parte, estão submetidos á lógica econômica do capitalismo.
Mas o capitalismo opera também com outra lógica - a lógi­
ca política, a lógica do poder - , c é aí, provavelmente, que
vamos encontrar a explicação da manipulação jornalística.

43
Padrões nr manipuuçao na grande imprensa

Assim, 6 sustcnlávcl a afirmação - pelos menos cm


caráter de hipótese de trabalho - de que os órgãos de comu­
nicação se transformaram cm novos órgãos de poder, cm
órgãos político-partidários, c é por isso que eles precisam
recriar a realidade onde exercer esse poder, c para recriar a
realidade precisam manipular as informações. A manipula­
ção, assim, torna-se uma necessidade da empresa de comu­
nicação, mas, como a empresa não foi criada nem organiza­
da para exercer diretamente o poder, ela procura transfor­
mar-se em partido político. Aliás, os grandes c modernos
orgãos de comunicação, no Brasil, parcccm-sc efetivamen-
tc muito com partidos políticos.
1. Da mesma forma que os partidos tem seus manifestos de
fundação, seus programas, suas teses, os órgãos de com uni­
cação têm seus projetos editoriais, suas linhas editoriais, seus
artigos de fundo.
2. Os partidos têm estatutos, regimentos internos c regula­
mentos; os órgãos de comunicação têm seus manuais de re­
dação, suas normas de trabalho.
3. Os partidos têm seu aparato material: sedes, m óveis e
equipamentos, verbas, veículos etc. Os órgãos de com uni­
cação também têm seu aparato material, frequentemente mais
diversificado e mais moderno que o da média dos partidos.
4. Os partidos têm seus filiados, seus militantes, seus qua­
dros dirigentes centrais c intermediários. Os órgãos de com u­
nicação têm o equivalente: empregados, chefes, diretores, edi­
tores, de quem exigem adesão c fidelidade frcqücntemcnle
maior que a que os partidos exigem de seus filiados.
5. Os partidos têm normas disciplinares com as quais apli­
cam sanções aos filiados que se afastam da linha partidária.
Os órgãos de com unicação também têm normas disciplina-

44
Perseu Abramo

res, com as quais aplicam prêmios de reforço aos mais fiéis


c rebaixamentos, suspensões c expulsões aos que se des­
viam da linha editorial.
6. Os partidos tem sede central, diretórios regionais c lo­
cais, células, núcleos, áreas de influência c intercâmbio com
entidades do movimento social. Os órgãos de comunicação
têm sede central ou matriz, sucursais, correspondentes c
enviados especiais, contratos c convênios com outros ór­
gãos c com agências internacionais.
7. Os partidos são um ponto de referência para segmentos
sociais, têm seus simpatizantes c seu eleitorado. Os órgãos
de com unicação também são um ponto de referência para
milhares ou milhões de lcitores/cspcctadorcs, têm seus sim­
patizantes c seguidores, o seu leitorado.
8. Os partidos procuram ter os seus boletins, o seu jornal, a
sua revista, os seus volantes c panfletos, os seus carros de
som c os seus palanques com alto-falantes, enfim, os seus
meios de comunicação. Os órgãos de com unicação são os
meios de comunicação de si mesmos com o partidos.
9. Os partidos procuram conduzir partes da sociedade ou o
conjunto da sociedade para alvos institucionais, para a con­
servação de algumas instituições e para a translormação de
outras; têm enfim um projeto histórico relacionado com o
poder. Os órgãos de com unicação também procuram con­
duzir a sociedade, cm parte ou no todo, na direção da con­
servação ou da mudança das instituições sociais; têm, por­
tanto, um projeto histórico relacionado com o poder.
10. Os partidos têm representad vidade, cm maior ou menor
grau. na medida em que exprimem interesses c valores de
segmentos sociais; por isso destacam, entre seus membros,
os que disputam c exercem mandatos de representação,

45
Padrôfs de manipulaçAo na grande imprensa

legislativa ou executiva. Os órgãos de com unicação agem


com o se tambóm recebessem m andatos de representação
popular, c alguns se proclamam explicitamente com o de­
tentores de mandatos. Oscilam entre se auto-suporem de­
miurgos da vontade divina ou mandatários do povo, e con­
fundem o consumo dos seus produtos ou o índice de tira­
gem ou audiência com o voto popular depositado em urna.
Essas analogias não constituem apenas - como pode­
ria parecer - um mero jogo de palavras, uma brincadeira
semântica c retórica. Elas revelam um significado mais pro­
fundo do que as aparências formais indicam. Na verdade,
elas dizem que os órgãos de comunicação se transformaram
cm entidades novas, diferentes do que eram cm sua origem,
distintas das demais instituições sociais, mas extremamente
semelhantes a um determinado tipo dessas instituições so­
ciais, que são os partidos políticos.
Sc os órgãos não são partidos políticos na acepção ri­
gorosa do termo, são, pelo menos, agentes partidários, enti­
dades parapartidarias, únicas, siti generis. Comportam-se e
agem como partidos políticos. Deixam de ser instituições
da sociedade civil para se tomar instituições da sociedade
política. Procuram representar - mesmo sem mandato real
ou delegação explícita c consciente - valores c interesses de
segmentos da sociedade. E tentam fa/.cr a interm ediação
entre a sociedade civil c o Estado, o poder. É por essa ra/.ão
que os principais órgãos de comunicação podem proclamar
sua autonomia c sua independência, não só diante dos anun­
ciantes com o diante do governo c do Estado. Na realidade,
esses grandes órgãos efetivamente são autônomos c inde­
pendentes, cm grande parte, em relação a outras fôrmas de
poder. Mas não - como querem fa/.cr crer - porque estejam
P krsf.u A bram o

acima dos conllitos de classe, da disputa do poder ou das


divergencias partidárias. Nem porque estejam a serviço do
Brasil ou da parte do Brasil que constitui o seu específico
leitorado. Mas sim porque süo eles mesmos, cm si. fonte
original de poder, entes político-partidários, e disputam o
poder maior sobre a sociedade cm benefício dos seus pró­
prios interesses c valores políticos. A frase publicitária utili­
zada por um desses grandes órgãos - “A Folha está de rabo
preso com o leitor” - só tem seu verdadeiro significado des­
vendado quando recolocada de pé sobre o chão c lida com a
re-in versão de seus termos: o leitor é que está de rabo preso
com a Folha, por extensão com todos os grandes órgãos de
comunicação. Porque, cfetivamenlc, é assim que os órgãos
de comunicação se relacionam com os leitores, isto é, com a
sociedade, com a população. Recriando a realidade ti sua
maneira e de acordo com os seus interesses político-parti­
dários, os órgãos de com unicação aprisionam os seus leito­
res nesse círculo de ferro da realidade irreal, e sobre ele
exercem todo o seu poder. O Jornal Nacional faz plim-plim
e milhões de brasileiros salivam no ato. A Folha de S.Paulo,
o Estado de S. Paulo, o Jorna! do Brasil, a Veja dizem algu­
ma coisa c centenas de milhares de brasileiros abanam o
rabo cm sinal de assentimento e obediência.

C irc u n s ta n c ia o u te n d ê n c ia ?

Para finalizar esta exposição, e à guisa de conclusão


geral, é preciso colocar algumas questões.
Até que ponto as características aluais da imprensa bra­
sileira constituem apenas uma situação transitória, tempo­
rária, circunstancial c conjuntural? Em que medida não rc-

47
Padrões de manipuiaçAo na grande imprensa

prcscntam uma excessiva reação ã época cia ditadura mili­


tar, em que a censura do Estado sobre a imprensa a tornava
quase totalmente inócua c estéril? Até que ponto não expri­
mem, por outro lado, o estado confuso c ambíguo da atual
conjuntura geral do país, cm que parece haver vazios insti­
tucionais e a dissolução das formas “convencionais” de po­
der? Em que medida a própria imprensa - quer pela ação de
seus proprietários, quer pela dos jornalistas - não acabará
por encontrar, de imediato, correções de rumo c redefinição
de significados ou papéis?
Por outro lado, serão essas características indicadores
de uma tendência histórica, de um avanço e de marcos
inexoráveis, irredutíveis c irrecorríveis? Estaremos assistin­
do, de fato, ao nascimento de um novo tipo de jornalismo,
de imprensa, de novos papéis, significados c funções so­
ciais e políticas dos órgãos de comunicação?
Estaremos com efeito diante de um novo tipo, definiti­
vo, sem retorno, do fazer jornalístico? De um novo tipo de
imprensa, que ganha cm eficácia no exercício do poder po­
lítico, mas perde em credibilidade, em confiabilidade, cm
dar resposta à necessidade social da busca da informação,
do conhecimento da realidade? De um novo tipo de poder?
A primeira ordem de questões - que privilegia o cir­
cunstancial c o provisório das características da imprensa -
pode encontrar respostas no campo imediato c pragmático
da contra-reação, dos conflitos internos das redações, da luta
sindical c prática do dia-a-dia.
Mas se estamos na perspectiva da segunda ordem de
questões, isto é, na perspectiva de uma tendência histórica
de mudanças decisivas c sem retorno, é fundamental antever
também as principais transformações que necessariamente

48
Perseu Arramo

deverão efctuar-sc no outro pólo da contradição nascente.


Basicamente haverá a tendência, igualmente histórica, de a
sociedade também mudar sua postura tradicional diante dos
órgãos de comunicação. Essa mudança de postura prova­
velmente se dará cm três planos. Como são os grandes em ­
presários de comunicação - a burguesia - que se situam na
parte dominante da sociedade, às classes dominadas caberá
o papel fundamental das transformações na visão do jorna­
lismo pela população.
Num primeiro plano, as classes politicamente domina­
das tenderão, cada ve/, mais, a desm istijicar o jornalismo e a
imprensa. Não mais terão motivos para acreditar ou confiar
na imprensa c seguir suas orientações. Passarão a intensifi­
car sua postura crítica, sua análise de conteúdo c forma, dian­
te dos órgãos de comunicação. Por meio de seus setores mais
organizados, as classes dominadas contestarão as informa­
ções jornalísticas, farão a comparação militante entre o real
acontecido c o irreal comunicado, farão a denúncia sistemá­
tica da manipulação e da distorção. Tomarão com o uma das
suas principais tarefas de luta a de.sm istificação organizada
da imprensa e das empresas de comunicação.
No segundo plano, as classes dominadas tenderão a
passar a um nível superior de defesa c contra-ataque cm
relação à imprensa. Passarão a tratar os órgãos como eles se
apresentam c se comportam, isto é, com o entes político-par­
tidários\ c não como instituições de informação e conheci­
mento, acima do Bem c do Mal, acima da luta de classes c
distantes da disputa do poder. Exigirão que esses novos c
sui generis partidos políticos sejam tratados em níveis de
equivalência com os demais partidos c demais instituições
político-partidárias, tenham os mesmos direitos, sem rega-

49
Padrões de manipulaçAo na grande imprensa

lias especiais, c sejam submetidos a diversas formas de con­


trole público. ConseqUÔncia inevitável serão a revisão c a
reformulação de conceitos tradicionais como os de “liber­
dade de imprensa”, "liberdade de expressão" etc. Evidente­
mente, o grau de intensidade dessas mudanças estará condi­
cionado pela correlação de forças, mas os alvos perseguidos
provavelmente conduzirão a uma regulamentação rigorosa
sobre toda a atividade de comunicação, como forma de ga­
rantir o controle público sobre as empresas jornalísticas.
No terceiro plano, as classes dominadas lutarão pela
transformação da própria natureza dos meios de comunicação.
Sc os órgãos de comunicação passaram de instituições da
sociedade civil a instituições da sociedade política, se deixa­
ram de ser órgãos de comunicação para se transformar em
entes político-partidários, não haverá mais razão para aceitá-
los com o institutos de direito privado, c deverão se trans­
formar cm institutos de direito público. Em outras palavras,
a parte dominada da sociedade passará a questionar o regime
de propriedade privada dos órgãos de comunicação.
A tendência poderá caminhar no sentido de vedar ao
empresário privado a exploração desse setor de atividades.
A comunicação c, principalmente, a informação passarão a
ser objeto de exploração apenas por parte do Estado ou de
instituições de direito público, sob controle público. A assun­
ção por parte do Estado de toda a comunicação de massa e
de toda a informação também dependerá da conjuntura c da
correlação de forças sociais. Para a parle dominada da so­
ciedade ela é tão indesejável quanto a propriedade privada
dos meios de comunicação. As classes dominadas, portan­
to, tenderão a lutar pela transformação dos órgãos privados
c estatais cm órgãos públicos, sob formas e mecanismos que

50
Persgu Abramo

evidentemente ainda estilo por ser engendrados e desenvol­


vidos. E finalmente, entilo, o jornalismo poderá se libertar
do seu pior inimigo: a imprensa tal como ela existe boje.

51
Posfácio

Mentira e caradurismo
(Ou: a imprensa no reinado FHC ) 1

Aloysio Biondi

“Uni, então o governo c seus aliados também sabem que o


Brasil está mal?" Coçando a cabeça, era essa a reflexão do pobre
cidadão brasileiro, cm novembro último, ao ter, ver ou ouvir figu­
rões de Brasilia e celebridades da mídia explicarem que a infla­
ção, subitamente renascida, não preocupava nem um pouco, “Ah",
di/iam candidamente os Polianas, “essa alta é passageira. Não tem
jeito de a ínilação avançar..." Por quâ? “É simples”, pontificavam.
“(] brasileiro está sem poder aquisitivo, amassa salarial [total de
salários pagos petas empresas] caiu 5%, por isso o consumo des­
pencou. Então, a indústria e o comércio não têm condições de
majorar seus preços, mesmo que sofram aumentos forçados de

I. Publicado Ofigirudmcnle no Antidna de Jnnuilixmo 1999 du Factddadc dc Coinu-


nicuçfto Social Cílspci Libero (Sdn Paulo, Ano I, n‘ I, p, \9-27) Fui lartihím publicado
na mvislii Cam i Amigou (SJln Pwilo, Edilofu Cnwi Amarela, n“ 41. u^o. 2iXXh, p. K-lh

53
Padrões dr manipulaçAo na grande imprensa

custos dc matérias-primas, como o petróleo, ou de peças e compo­


nentes que importam de suas matrizes» encarecidos este ano com a
alta do dólar. Sc aumentarem preços, ai que as empresas não ven-
derSo mesmo.”
A surpresa do perplexo cidadão brasileiro não era, certamen-
te, com o otimismo de Brasília, delirantemente exibido nos últi­
mos anos. Tampouco com o adesismo dos dc-formadores de opi­
nião, cada vez mais desnudados aos olhos do público, a ponto de
alguns deles provocarem engulhos até cm antigos admiradores. A
surpresa, mesmo, era com o total caradurismo do governo FHC e
adeptos: “Uai, ué”, refletia o cidadão, “até há poucos dias, a gente
só via, lia c ouvia esse pessoal dizer que o Brasil ‘surpreendeu’. a
economia está muito bem; a indústria, em recuperação; o consu­
midor, voltando às compras... Cumé que, da noite para o dia, o
governo c a imprensa passam a dizer exatamente o contrário, a
admitir que o Brasil está cm recessão, forçados a mudar dc con­
versa para dizer que a inflação não assusta?".
Na verdade, a volta da inflação criou uma das poucas opor­
tunidades em que o povo brasileiro pôde descobrir, por si mes­
mo. a gigantesca e mais do que vergonhosa, deprimente c lesa-
sociedade. manipulação do noticiário econômico (c político) no
governo FHC. Sem medo dc exagerar, pode-se comprovar que as
técnicas jornalísticas c a experiência dc profissionais regiamente
pagos foram utilizadas permanentemente para encobrir a reali­
dade. Valeu lançar mão de tudo: de manchetes falsas, inclusive
“invertendo a informação”, a colocar o lide no final das matéri­
as. isto é. esconder a informação realmente importante nas últi­
mas quatro linhas.
Segue-se um pequeno roteiro dos truques mais usados pelos
meios dc comunicação para ajudar o leitor a ler, ver c ouvir os
meios dc comunicação brasileiros neste reinado de FHC. Ou para

54
Persf.u Abhamo

ajudar os estudantes dc comunicação c jornalistas principiantes a


decidirem se cstào dispostos a aderir ao jogo da manipulação.
Advertência essencial: é absolutamente injusta, e até politi­
camente equivocada, a mania dc criticar o adesismo desta ou da­
quela rede dc TV, deste ou daquele jornal e, principalmente, deste
ou aquele columsta/comcntarista de economia c política. Esse é
um grave erro político, porque transmite à opinião pública a falsa
impressão de que a manipulação permanente tem sido feita por
este ou aquele veículo, ou por este c aquele profissional. Com isso.
acaba-se levando a sociedade a acreditar que se trata de exceções,
quando a verdade é que a manipulação é generalizada e constante,
contando-se nos dedos os profissionais c veículos que tem pro­
curado manter a equidistancia em relação ao governo FHC c inte­
resses a ele ligados. Por isso mesmo, como seria injusto citar espe-
cificamcntc determinados veículos e jornalistas, todos os exem­
plos abaixo são reais, retirados do noticiário c devidamente guar­
dados cm nossos arquivos, mas deixamos de identificar seus
autores.

T ru q u e 1 - M a n c h e te à s av e ssa s

A falta dc ética da imprensa chegou a tal ponto que se chega


a inverter completamente a informação para enganar o público.
Excelente exemplo dessa prática ocorreu com uma pesquisa sobre
o endividamento das famílias brasileiras, realizada por uma em­
presa dc consultoria. As conclusões foram aterradoras: nada me­
nos dc 40% do orçamento familiar já estava "amarrado” com o
pagamento dc compromissos financeiros: cartões dc crédito, che­
ques pré-datados, prestações diversas. E mais exatamente: esse
comprometimento havia exatamente duplicado, de 20% para 40%,
após o Real. Qual a importância desse dado? Ele já mostrava as

55
Padrões df. manipulaçAo na grande imprensa

perspectivas de problemas sérios para a economia, com menos di­


nheiro disponível para o consumo, isto é, mais recessão c aumento
inevitável da inadimplência, ou “calote” forçado, por parte dos
consumidores. Os resultados da pesquisa ganharam uma manche­
te na edição dominical. Mas, pasme o leitor: o editor fez uma má­
gica desonesta. A manchete dizia: “Dobra o acesso do consumidor
ao crédito”, e o texto mentia que, “graças à estabilidade da moeda,
as famílias brasileiras já estão conseguindo planejar seus orçamen­
tos, c programar o endividamento desejado, lá-rá-li-lá-rá-lá, e as
instituições financeiras, reconhecendo a nova situação criada pelo
Real, blém-blém-blém, até duplicaram a concessão de financia­
mentos ao consumidor..." Pois é. Cinismo total. Com um toque de
mágica e muita falta de ética, os problemas foram transformados
em "novas vantagens” do Real, martelando-se na tecla da "estabi­
lidade da moeda”, que tantos dividendos políticos trazia ao gover­
no FHC...

T r u q u e 2 - M a n c h e te s e n c o m e n d a d a s

O governo fornece textos c dados estatísticos para os meios


de comunicação noticiarem com destaque, geralmentc cm man­
chete, mentiras ou verdades aparentes. A estratégia é usada cm
muitas ocasiões: para obter apoio da opinião pública, para impedir
a formação de CPls (Comissões Parlamentares de Inquérito], para
esconder desmandos do governo, para forçar a aprovação de "re­
formas”, para justificar "privatizações", para desmoralizar oposi­
cionistas c assim por diante. Exemplos? O governo FHC massa­
crou a agricultura com a cobrança da TR |Taxa Referencial 1. até
40% acima da inflação, c cortes violentos no crédito para plantio.
Os agricultores, arruinados, pediram a renegociação das dívidas,
para poder pagá-las a longo prazo. O governo pautou os jornais e

56
Perseu Abramo

as revistas para provar que os produtores eram “caloteiros". Mató-


rías sórdidas foram publicadas contra eles. No entanto, nos últi­
mos dias de 1999, cm entrevista à Folha de S.Paulo, o presidente
FHC reconheceu como “um dos maiores erros do seu governo” que
os agricultores tinham razão, c que ele havia pensado que era tudo
“choradeira" (esse reconhecimento por parte do presidente nào teve
nenhum destaque na edição da entrevista. A opinião pública conti­
nua a acreditar, portanto, que os agricultores são "caloteiros”).
Como desmoralizar oposicionistas? Em novembro, manche­
te anunciava que “Aposentadorias fraudulentas foram descobertas
no Banco Central". A notícia revelava um caso insignificante, com
a descoberta de uma quadrilha que havia falsificado documentos
para 50 funcionários públicos, dos quais 16 do BC. Por que ga­
nhou a manchete, de forma duplamente desonesta, já que dava
todo o destaque ao pessoal do BC, que nem sequer era a maioria
dos beneficiários (50) envolvidos? Claramente, material c desta­
que pedidos pelo governo, porque o pessoal do Banco Central es­
tava denunciando ao Congresso aberrações cometidas pelo presi­
dente do BC, que iriam reduzir a fiscalização sobre os bancos c a
remessa de dólares, o narcotráfico, a lavagem de dinheiro etc.

T r u q u e 3 - C if r a s e n g a n o s a s

Mais mágicas? A falta de apoio ao Nordeste, no auge da seca,


contribuiu para derrubar a popularidade presidencial. Para ganhar
o perdão da opinião pública nada melhor, portanto, do que refor­
çar aquela velha ladainha de que o dinheiro destinado à região é
mal aplicado, desviado pelas elites c coronéis. Maquiavelicamente,
manchete (sempre encomendada) de domingo dizia: "Empresas
do Nordeste desviam 550 milhões de reais". O que o texto mostra­
va? Que os incentivos (desconto do Imposto de Renda) para proje-

57
Padrões oe manikraçAo nacrandf. imprensa

tos no Nordeste tinham sido mal utilizados, com empresas benefi­


ciadas indo à falencia, ou mesmo aplicando cm ‘‘projetos-fantas­
ma'’. Para os leitores, uma “prova da bondade do governo", e urna
“prova de que o Nordeste é um suco sem fundo". Os brasileiros
sempre se impressionam com cifras que falam cm “milhões”, não
conseguindo ver a diferença entre eles, “milhões" c “bilhões”. A
manchete se aproveitava disso, dando a impressão de um “rombo
gigantesco" que, na verdade, não passa de meio bilhão de reais
contra os 42 bilhões (com "b") de reais doados para socorrer os
banqueiros com o Procr (Programa de Estímulo a Reestruturação
c ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional), por exem­
plo. Mas a desonestidade dessa manchete e do governo foi muitís­
simo mais longe: o texto dizia que aquele “rombo” foi acumulado
desde a fundação da Sudene [Superintendencia de Desenvolvimen­
to do Nordeste], em 1959. Isto é, o "rombo" maquiavelicamente
anunciado era a soma de todas as perdas e os desvios ao longo de,
nada mais, nada menos, 40 anos. Conta que, evidentemente, ne­
nhum leitor faz e por isso mesmo é função dos jornalistas fazerem
quando querem informar, c não manipular pró-governo. E tem mais:
se os 550 milhões de reais forem divididos pelos 40 anos, darão
apenas uns 13 milhões (com "m") por ano, cifra absolutamente
ridícula, verdadeiros tostões.
Mas a manchete maquiavélica cumpriu a missão de “salvar a
cara" do governo FHC, à custa do reforço dos preconceitos contra
o Nordeste e os nordestinos. Missão duplamente cumprida.

T r u q u e 4 - L id e à s av essas

Conhecer este truque ajuda muito a quem não quer gastar


muito tempo lendo jornais e revistas, e quer a informação verda­
deira. No jornalismo do reinado FHC é bobagem confiar nos títulos

58
Prrseu Ahramo

c na abertura, ou primeiras linhas (lide) da matéria, que são sem­


pre otimistas. Os editores escondem a verdade, isto é, os proble­
mas, nas “últimas quatro linhas” - o que lhes permite fingir que
não estão deixando de noticiar nada, uma atitude hipócrita, pois
eles sabem muitíssimo bem que a informação que impressiona o
leitor é aquela estampada no título e no lide. Técnica de edição,
certo? Diariamente, os jornais estão cheios desse truque de cscon-
dcção da verdade. Um exemplo frequente se refere às vendas do
comércio, que vão mal há muito tempo. São publicadas extensas
entrevistas com fontes pró-governo di/.endo que está tudo ótimo;
lá nas últimas quatro linhas vem a informação verdadeira, que é a
violenta queda nas consultas ao Telecheque (como aconteceu no
último Natal) ou ao SPC |Scrviço de Proteção ao Crédito], utiliza­
dos como “termômetros das vendas”.

T ru q u e 5 - P ro m e te n d o o f u tu r o

Poucos brasileiros sabem que a venda de automóveis caiu a


menos da metade no país: cram 180 mil veículos por mês cm 1997,
e menos de 80 mil nos últimos meses de 1999. Da mesma forma
que a venda de televisores despencou de 8 milhões para 4 milhões
por ano (como se vê. o presidente da República e os dc-formado-
res de opinião têm toda a razão quando dizem que a "crise" não é
tão grande quanto os “catastrofistas" previam... imagine-se se fos­
se). Por que essas informações são desconhecidas? Primeiro, por­
que nunca chegam às manchetes. Há mais, porém. Aqui, o truque
é esconder o resultado do mês (nas últimas quatro linhas, de prefe­
rencia) c entrevistar o presidente da associação, federação ou con­
federação do setor, geralmente capachildos pró-governo. Como
bom capachildo, ele fará uma previsão de que “no próximo mês. o
setor deve crescer 10% a 20%", c os jornalistas poderão alegre -

59
Padrões de manipumçAo na grande imprensa

mente colocar esse futuro otimista no título mantendo a ética, o


respeito à informação, é claro. Todos hipócritas.

T r u q u e 6 - 0 s u je ito e r r a d o

“Sujeito”, dizem os gramáticos, ”é quem pratica a ação". Não


para os jornalistas do reinado FHC, claro. Em abril, títulos de pági­
nas internas gritavam que “Seca aumenta a mortalidade infantil no
Nordeste”. No texto, as verdades, c as mentiras. Terríveis: no inte­
rior nordestino, a mortalidade infantil chegou a 400 crianças mor­
tas para cada 1.000 crianças de até 1 ano. Um dado espantoso,
pois representa o recorde do índice mundial de 200 crianças mor­
tas pertencente até então... à África subsaariana, devastada pela
seca e pelas guerras tribais. No texto, a causa da mortandade: dis­
tribuição de cestas básicas suspensa há três meses. Corte de 60%
nas “frentes de trabalho” c atraso de tres meses no pagamento aos
flagelados que continuaram trabalhando. Moral da história: quem
está matando as crianças (c adultos também) do Nordeste não é a
"seca”. O autor da ação, o “sujeito", é outro portanto: o governo
FHC, que cortou c reteve as verbas para a região como, de resto,
para todas as áreas sociais, dentro do programa de “ajuste fiscal”,
ou saldo positivo para o Tesouro (sem contar o pagamento dos
juros), combinado com o FMI lFundo Monetário Internacional!.
Nestes tempos de hipocrisia c cinismo, os dc-formadores de opi­
nião encobrem até genocídios c depois, angelicalmente, escrevem
ou fazem comentários indignados quando, cm certa época do ano,
aparecem os relatórios de organismos como o Unicef [Fundo das
Nações Unidas para a Infância! falando das mazelas sociais no
Brasil. Indignação, porque? Sâo cúmplices do genocídio e de tudo
o mais...

60
Perseu Abramo

T ru q u e 7 - 0 b ife p elo b o i

Ouira técnica para esconder a realidade é deixar de lado o


quadro geral, negativo, c “pinçar” um dado positivo para dar des­
taque a ele no título e no lide. Exemplo incrível, mas verdadeiro:
cm um trimestre, houve queda no PIB (valor dos bens c serviços
produzidos no país), isto é, a economia recuou. Agricultura, in­
dústria. comércio, tudo recuou. Houve somente uma exceção: a
economia do Rio cresceu, por causa do valor da produção de pe­
tróleo na fantástica bacia de Campos. Os jornalistas não tiveram
dúvida: começaram a matéria por aí. c tascaram no título: “Econo­
mia do Rio cresce". O bife no lugar do boi.

T ru q u e 8 - 0 b o i p elo bife

No truque anterior, cscolhe-sc um determinado aspecto da


notícia, ou o bife, para não falar do todo. isto é. do boi. E há tam­
bém o truque inverso, isto é. falar do boi para esconder o bife.
Como assim? Lá vai mais um exemplo real. Ao contrário do que
dizem o governo c os de-formadores de opinião, os banqueiros
não voltaram a emprestar ao Brasil, em 1999. Sempre escondidos,
os dados sobre financiamentos externos ou vendas de títulos no
exterior, quando surgiam, eram sempre acompanhados de afirma­
ções tipo “os banqueiros internacionais estão emprestando menos
para os países emergentes, porque estão com medo do bug do mi­
lênio". Isto é, os cofres não estavam fechados apenas para o Brasil
(o bife), mas para todos os países emergentes (o boi). Essa versão
foi plenamente confirmada na manchete “Banqueiros emprestam
menos à América Latina", de uma reportagem de página inteira
publicada no final de 1999. O texto também confirmava a ladai­
nha. Mas a publicação trazia também uma tabela de estatísticas, e

61
Padrões df. manipuiaçAo PMgrande imprensa

quem se dispusesse a analisá-la teria uma “surpresa": realmente,


os empréstimos à América Latina (o boi) como um todo haviam
caído 12 bilhões de dólares. Mas, analisando-se a tabela, via-se
que a Argentina recebeu X bilhões de dólares a mais; o México. I
bilhão a mais; o Chile, I bilhão de dólares a mais. Lm resumo,
esses três países juntos receberam 10 bilhões de dólares a mais, na
comparação com o ano anterior. Por que então a América Latina
ficou com 12 bilhões a menos? Porque o Brasil, sim, recebeu 22
bilhões de dólares a menos. Essa era a notícia c o título verdadei­
ros: bancos não emprestam ao Brasil. Como isso desmascararia o
governo c seus dc-formadorcs, a tática foi deixar os números só na
tabela c publicar manchete c texto enganosos.

T r u q u e 9 - O m issã o e s c a n d a lo s a

Este breve roteiro da manipulação no reinado de FHC poderia


ser alongado infinitamente. Por enquanto, fica-se por aqui. Não se
pode deixar de falar, no entanto, na omissão total de determinadas
informações, levantando-se desde já uma ressalva. Sempre pare­
ceu odioso os meios de comunicação ignorarem determinados fa­
tos. Mas será mesmo que é menos odioso toda a manipulação vista
acima, que acaba transmitindo conceitos errados à opinião públi­
ca, levando-a a apoiar propostas incorretas c a rejeitar caminhos
que melhor atenderiam os interesses do país? Como exemplo má­
ximo da omissão total c indecente de informação, não se pode
deixar de citar o acordo entre o governo c os meios c profissionais
de comunicação para esconder a disparada dos preços do petróleo
no mercado mundial, que mais do que duplicaram desde janeiro/
fevereiro de 1999. Durante dois anos, os preços do petróleo se
mantiveram cm queda no mercado mundial, saindo de 20 dólares
para menos de 10 dólares o barril, cm janeiro deste ano. A partir

62
Perseu Abramo

daí, os países produtores iniciaram negociações para cortar a pro­


dução c forçar a recuperação dos preços, que entraram em alta já
em fevereiro. O acordo foi feito em 23 de março, os preços subi­
ram 30%. 40%, 60%, 100%, sem que aparecesse nenhuma infor­
mação na imprensa brasileira - que, ironicamente, sempre foi ex­
tremamente preocupada com o menor reajuste que houvesse para
os combustíveis. Essa conspiração do silencio foi tão intensa que
a opinião pública levou um susto quando os preços da gasolina
subiram: ninguém sabia da alta mundial. Por que essa conspira­
ção? Porque o governo havia marcado leilões para doar, a multi­
nacionais, as áreas de petróleo descobertas pela Petrobrás, exigin­
do apenas "preços simbólicos” em troca. O grande argumento do
governo para essa “doação" era, exatamente, que o mercado mun­
dial de petróleo havia desabado c “ninguém queria mais explorá-
lo”. Quando os preços dispararam, foi preciso esconder a realida­
de para evitar reações no Congresso - ou da opinião pública. A
conspiração pactuou com um dos maiores assaltos praticados con­
tra a sociedade brasileira: há áreas na região do litoral de Campos
com reservas de até 2 bilhões de barris, isto é. que podem faturar
40 bilhões (com a letra “b”) de dólares, ou 80 bilhões de reais,
com o barril a 20 dólares (preço “normal" dos últimos anos). O
maior preço recebido pelo governo brasileiro foi de míseros 150
milhões (com a letra “m”) de dólares, já incluído aí o ágio ofereci­
do pela multinacional. Crime de lesa-sociedade, só possível com a
conivência c cumplicidade da imprensa, mestra da manipulação
no reinado FHC.

63
Recriando a realidade à sua maneira e de acordo com os seus interesses
político-partidários, os órgãos de comunicação aprisionam os seus
leitores nesse circulo de ferro da realidade irreal, e sobre ele exercem
todo o seu poder.

Perseu Abramo

Além do texto "Significado político da manipulação na grande


imprensa','de Perseu Abramo, este volume traz também, a título de
posfácio, um artigo de Aloysio Biondi a respeito da manipulação do
noticiário económico nos anos recentes no Brasil, expressivamente
intitulado' Mentira e caradurismo"

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