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gradiva
Editor GUILHERME VALENTE
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Indice
Introdução......... ...................................................................... 7
Anexos
Versículos do Alcorão que encorajam a escravização dos
não-muçulmanos pelos muçulmanos ............................. 209
A maldição de Cam ........................................................... 211
Testemunho de H ayrettin Effendi, último eunuco do
último sultão .................................................................. 213
Balizas cronológicas ...................................................... ..... 215
Glossário ............................................................................ 219
Bibliografia ...... ....... .. ..... ..... .. ......... .................. ...... ....... ...... 227
Estudos ................................................................................ 23 1
Agradecimentos .................................................................. 233
Intro dução
DoUToR CuREAu
não existia, pelo menos no sentndo que lhe atribuímos hoje. Pro-
gressivamente, o enriquecimento e a elevação social acabarão por
depender da possibilidade de cultivar o máximo de superfície. Daí
a necessidade de dispor de uma mão-de-obra de peso. Na servidão
africana, quanto mais um homem possuísse cativos para cultivar
as suas terras e mulheres tivesse, mais rico era; e quanto mais rico
era, mais apto estava a aumentar o seu <• património» de mulheres
e servos. Estava assim aberto o caminho para os conflitos, com o
objectivo de obter uns e outros. O que suscita ao historiador Marc
Ferro a seguinte declaração: «Como não existia a noção de posse
de terras, os homens e as mulheres constituíam a única fonte de
riqueza. A sua captura e o seu comércio, fosse pela guerra ou por
outro meio, animavam os conflitos entre os reinos.»
lhes perm1t1a ter uma famí lia e uma existência isenta de preo-
cupações matena1s.
ERIC W!LLIAMS
·····················································
Terá alguém ensinado a nobreza a este negro eunuco?
A sua parenrela «branca» ou os seus régios anrepassados?
Ou a sua orelha, que sangra nas màos do negreiro,
Ou o seu valor, que nào chega a dois tosrões?
É preciso desculpá-lo, rendo em coma as baixezas -
Mas uma desculpa é por vezes uma censura -
E se assim é porque os garanhões brancos
Sào incapazes de nobreza, então que dizer
De eunucos negros?
,. .. ,.
Em geral, nas sociedades do Norte de África, a distinção fun-
damental entre escravos e homens livres responde sempre a um
critério de cor de pele: os escravos - ou ditos descendentes de
escravos - são negros e os homens livres são brancos. No mundo
árabo-muçulmano, raros são os negros que chegam a postos de
responsabilidade na função pública. O seu amigo estatuto e a cor
da sua pele continuam a prendê-los numa inferioridade jurídica
de fac to. Todas estas situações têm raízes nas práticas esclavagis-
tas do passado destes povos. O efeito mais nefasto da escravidão
no mundo árabo-muçulmano - questão, no entanto, largamente
debatida noutros pomos - é a persistência do mito da inferiori-
dade ligada à cor negra. O que explica, pelo menos em parte, o
raçjsmo e o desprezo de que sofrem os negros em tais sociedades.
Estas últimas proclamam praticar a filosofia «tolerante » e huma-
nista do islão, a qual os povos islâmicos - num mov1mento de
conquista arrasador - acabaram por impor aos africanos.
•
3
.,
A conquista ára be de Africa
tDOUARO G UILLAUMET
árabe, tal como na palavra rabata, remete para uma ideia de local
de reunião. Os almorávidas tornar-se-ão uma ordem militar e reli-
giosa que desencadeará uma guerra santa em 1042 para se apo-
derar das minas de ouro e controlar as suas vias de acesso. Estes
monges-guerreiros, que iam saquear o Império do Gana, eram mais
atraídos pelas suas riquezas do que pela conversão das populações.
Foi à freme de um exército de cerca de 30 mil homens que
estas boas almas puseram a ferro e fogo as províncias tidas como
refractárias aos ensinamentos do profeta Maomé. Levaram a
cabo uma cruzada mortífera até à destruição, no ano de 1076,
de Kumbi Saleh, capital do Império do Gana. Esta amiga grande
potência africana desaparecerá em proveito de pequenas entidades
geográficas, demográficas e culturais, como o Senegal, o Mali e o
Songai. Já a presença dos almorávidas foi muito curta. Durante a
sua passagem, converteram os povos do Senegal, sobretudo uolo-
fes, sereres e tuculores. Os almorávidas levaram consigo ouro e
milhares de cativos.
DAV ID LlVINGSTONE
elires, mas acabou por arravessar o Sara para chegar aos grandes
cemros de comércio da África Ocidemal e do Sudão. A Núbia e
o Alro Nilo converter-se-ão muiw mais tarde, com o cristianismo
a praticar-se merameme em cerras regiões da Eriópia (rerras do
Presre João).
As colónias muçulmanas multiplicaram-se e, enquanto o islão e
a cultura árabe se difundiam em África, desenvolviam-se rambém
as récnicas de caça ao homem, de prática de razias e de escra-
vização das populações. Isto ia durar: em 1870, Sch weinfurth
estimava em 2700 o número de árabes mercadores de escravos
estabelecidos no Alto Ubangui e em Bahr ei-Ghazal. No movi-
mento de islamização de África, a maior parte das conversões de
chefes ou de populações era, de início, simplesmeme estratégica.
Eles [os negros] têm o nome do rio marerno e não o do pai; não
são os filhos que herdam dos pais, mas os sobrinhos, filhos da irmã
do pai. Nunca encontrei tal costume, excepro na terra dos infiéis de
Malabar, na Índia.
Foi assim que este erudito, muito respeitado pelos seus com-
patriotas, elaborou uma espécie de «etnografia religiosa » que dis-
tinguia, no seio dos próprios povos negros, os muçulmanos dos
pagãos. Correlativamente, proibia a captura de homens entre os
primeiros e autorizava-a entre os segundos. Durante quase 200
anos, nos séculos XVIII e Xl X, esta distinção servirá de pretexto
a líderes africanos, como Ousmane Dan Fodio ou Elhadji Ornar,
para levar a cabo guerras santas sangrentas, como a de Sokoto,
no norte da acrual Nigéria.
riores de que <•a maioria dos negms revoltados sabe ler e escrever,
numa língua desconhecida para mim mas que se parece com o
árabe». Neste dia - 25 de Janeiro de 1835 -,em apenas algumas
horas, escravos iorubás revoltados reduziram a cinzas a cidade de
São Salvador da Bahia. Na verdade, muito ames desta sublevação,
a maioria dos escravos resistia espiritualmente. Buscavam a sua
inspiração no islão, pregando a superioridade desta religião rela-
tivamente à dos senhores portugueses. Viam estes últimos como
yéffers («infiéis » ou «pagãos impuros»), pakhés ((<incircuncisos»)
e facínoras. Assim, a desculturação, que funcionou relativamente
em muitos deportados africanos dos Estados Unidos e de certas
ilhas das Caraíbas - pela «desnegrificação» ou através de poli-
ricas falsamente assimilacionistas - , confrontou-se no Brasil com
urna resistência espiritual mais eficaz, graças ao islão. Certamente
porque, nestes locais de escravização, o opressor não era árabe.
Aliás, tal como no Iraque, terra islâmica, os revoltados africanos
(zenjs) recorrerão a outros valores.
freme na sela, com as mães logo atrás, presas aos rabos dos cavalos,
caso elas não tivessem perecido no fogo.
Por fim , após numerosos assaltos das forças coligadas, Ali Ben
Moharnmed, líder dos rebeldes, foi morto. Todo o seu estado-
-maior e oficiais serão igualmen.te assassinados, ou então feitos
prisioneiros e transferidos para Bagdade, onde serão decapitados.
A maioria dos resistentes africanos preferirá a morte em combate
à rendição. Muitos daqueles que foram capturados vivos serão
degolados um por um, enquanto outros sofrerão suplícios atro-
zes. Entretanto, ai-Muffawaq, irmão do califa ai-Mutamid que
por tanto tempo lutara conrra os zenjs, decidiu indultar muitos
deles, os quais serão incorporados nos exércitos do califa, numa
homenagem à bravura e à combatividade dos africanos.
Na verdade, contrariamente às teses de certos autores, esta
guerra dos zenjs não foi uma série de confrontos obscuros mal
conhecidos e sem datas. Tal sobressalto dos escravos negros con-
120 O G ENOCIDIO OCU LT A DO
tra a servidão, que durou 14 longos anos, entre 869 e 883, terá
provocado em terras islâmicas, de acordo com os historiadores
árabes, de 500 mil a dois milhões de vítimas. As diferentes revoltas
de escravos africanos terão chamado a atenção geral para a explo-
ração maciça da mão-de-obra negra no mundo árabe-muçulmano.
De resto, permanecem na memória árabe corno os maiores acon-
tecimentos que abalaram seriamente os próprios fundamentos do
que restava do império da Mesopotâmia e que marcaram o iní-
cio do seu declínio, muito antes do golpe de misericórdia dado
pelos invasores mongóis no século XIII. De igual forma, sérias
revoltas entre 1576 e 1598 abalaram violentamente o sistema
das plantações de cana-de-açúcar em Marrocos, cu ja mão-de-obra
era, na sua maioria, constituída por africanos. O resultado destas
numerosas revoltas, sobretudo no Iraque, foi o desaparecimento
dos locais que tinham sido palco do martírio dos africanos, com
o abandono das empresas de dessalgação de terrenos alagadiços.
No seguimento disco, a culmra da cana-de-açúcar praticamente
desapareceu do mundo árabe-muçulmano.
6
Bestialização, razias /
e perseguições, ou a Africa
a ferro e fogo
1. Razia de escravos
na África Central
2. Negros do Sudão
abatídos por terem
resistido durante
uma razia
3. Mercador de escravos árabe 4. Negreiros a guiar uma
conduzindo uma caravana caravana de escravos
no deserto africano à chicotada
lJA TRAITE DES f'{Oli1S
lmpêrio de Canem.SOrnu
a p~rtrr do séc.-
BachweZI
... . ...
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·..
•
7
TLEMCEN
GADAMÉS
TAUOENI
ARAOUANE
TOM8UCTU
•
•
6. A escravatura em África 8. Embarque de escravos
africanos num navio
7. Rotas transarianas negreiro
do tráfico de negros
9. Escravos (crianças e
adultos) libertados, a
bordo do HMS London,
por volta de 1880
AS CUMPLICIDADES AFRICANAS
10
,,
12 1l
15
lBN KHALDUN
panicular para rratar dos eunucos. Apesar disso, o número dos que
morrem é superior ao dos vivos, visco que para eles é terrível serem
transportados de um locaJ para o outro sem o menor cuidado.
MARC FERRO
[o] chefe árabe nos deixa comprar, entre as vítimas da caça desta
tarde, as mulheres e as crianças cujo preço podemos pagar. Gastamos
tudo o que temos. Imagine-se a alegria dos eleitos que podem voltar
aos seus lares, mas também o desespero dos pobres desgraçados que
não podem participar na libertação e que são levados à força, acor-
renrados às cangas, entre gritos de desespero! Oh, que infelicidade,
não podermos libertá-los a todos.
Alá favoreceu, com a Sua mercê, uns mais do que outros; porém,
os favorecidos não repartem os seus bens com os seus servos, para
que com isso sejam iguais. Desagradecerào, acaso, as mercês de Alá?
exige justiça perante a H istória. Tanto mais que esta última parece
vacilar no Darfur (cf. Introdução). Para que o famoso <<Nunca
mais! » lançado a seguir à Segunda Guerra Mundial possa adqui-
rir sentido, nenhuma amnésia colectiva deveria conseguir ocultar
indefinidamente acontecimentos comprovados - pois a memória
humana assimilou que os horrores da H istó ria nunca devem cair
no esquecimento.
Anexos
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Versículos do Alcorão que encorajam
a escravização dos não-muçulmanos
pelos muçulmanos
xxxm, 52. Além dessas nao re S!erá permitido casares com outras,
nem rrocá-las por outras mulheres, ainda que as suas belezas re
encanrem, com excepção das que a tua mão direita possua. E Alá é
Observador de rudo.
XVI, 71. Alá favoreceu, com a Sua mercê, uns mais do que ourros;
porém, o s favorecidos não repartem os seus bens com os seus servos,
para que com isso sejam iguais. Desagradecerão, acaso, as mercês
de Alá?
V, 43. A esposa não rem o direiro de se opor ao marido quanro a pos-
suir escravas fêmeas e t er relações [sexuais] com elas [violá-las]. E
Alá sabe mais que rodos.
IV, 24. Também vos esrá vedado desposar as mulheres casadas, salvo as
escravas que possuís. [ ... ] Alá é S:apienre, Prudenríssimo.
XXIII, 1. É cerro que prosperarão os cremes [... ]
- , 5. Que observam a castidade
- , 6. Excepro para com os seus cônjuges ou cativas [... ).
XXXIII, 50. O Profeta, em verdade, tornamos lícitas para ri as esposas
que tenhas dotado, assim corno as que a tua mão direita possui -
que Alá tmha feito cair em tuas mãos - , as filhas de reus rios e
ruas rias paternas, as filhas de teus rios e ruas rias maternas [...].
110 O GENOC { D IO OCULTADO
No mundo árabo-muçulmano
OM1ADAS
ABÁSSrDAS
FATIMrDAS
Em África
Cerca do século VI a. C. Périplo carraginês ao longo das costas OCI-
dentais de África.
Século vu d. C. A Etiópia, suplantada pelo islão no mar Vermelho,
retira-se para os cumes do Amhara e do Xoa. Início do tráfico
negreiro pelos árabes.
763 Kaya Maghan Cissé no Gana.
Final do século VIII O geógrafo árabe AJ-Fazari menciona pela primeira
vez o Gana como «país do ouro».
9 30 Ibn Hau!fal menciona os saô (sô) do lago Chade.
1076 Saque da capital do Gana pelos almorávidas.
Século XII Os ára bes estabelecem-se em Sofala. Expansão dos iorubás.
Difícil desenvolvimento do Mali. O reino de Sosso domina a
região após o declínio do Gana.
1235 Sundiata Keita, depois de ter vencido o rei de Sosso, Sumanguru
Cante, reina sobre o Império do Mali. Desenvolvimento dos rei-
nos costeiros do Congo.
1312-133 7 Mansa Muça reina sobre o Império do Mal i.
1486 Bartolomeu Dias chega ao cabo da Boa Esperança.
14 98 Vasco da Gama chega à costa oriental de África (Melinde).
Cerca de 1500 Navegadores porrugueses chegam a Madagáscar.
Século xv11 A Costa Suaíli encontra-se sob domínio omanês.
1742 Início da exploração das Seicheles por Picaulc.
1815 Em Fevereiro, as potências europeias comprometem-se a proibir o
tráfico negreiro no Congresso de Viena. Em 29 de Março, decreto
de Napoleão I, durante os Cem Dias, a proibir o tráfico de negros.
1865-1870 Grandidier explora Madagáscar.
1885 Início da rivalidade anglo-germânica na África Orienral.
BALIZAS C RONOLOGICAS 217
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- -, • La traíre de s esclaves noirs en libye au XV III.' siecJe,. ,]. A. H.,
1982.
230 O GENOCIDJO OCUlTADO
li S. · S AÚDE E FRATERNIDADE!• -
A REPÚBLICA POSSfVEL !1911).1926)
Fernando Pereira Marques
Sete séculos ames do tráfico de escravos europeu, que não
poderia ter, aliás, a dimensão que teve sem a participação dos
negreiros árabes e africanos, os árabes fizeram razias na África
subsariana durame treze st:culos sem imerrupçào. A maior parte
desses milhões de seres humanos que deportaram desapareceu,
em resultado do tratamento inwnano que lhes foi infiigido.
Essa dolorosa página da H istória dos povos negros não foi
ainda definitivamente voltada.
gradiva