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“Em 1535, exagerando nas cores, o humanista flamengo Nicolau Clenardo registava
a importância e a concomitância da escravidão moura e negro-africana: Os escravos
pululam por toda a parte. Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal
está a abarrotar com essa raça de gente. Estou quase em crer que só em Lisboa há mais
escravos e escravas que portugueses de condição…” (1)
São tratados como cidadãos de segunda já que os cristãos não lhes reconhecem direitos
de plena cidadania. Entre outras restrições, refira-se que não lhes era permitida a saída
das Mourarias após o pôr-do-sol, não podiam frequentar casas de putaria ou tabernas e,
caso se ausentassem do país sem licença real, viam todos os seus bens confiscados. Eram
obrigados a diferenciar-se dos cristãos através das roupagens, como por exemplo, “no
toucado teriam uma marca branca, as aljubas seriam com dois palmos de largura, nos
albornozes haveriam quartos diantes (…) capas, balandraus, capuzes e escapulários
assinalados com o sinal do Crescente, em vermelho, cozido no ombro. O cabelo deveria
ser rapado à navalha.” (2)
Apesar desse facto, muitos mouros abandonam as cidades e instalam-se no campo, onde
a situação era bastante mais favorável, como é exemplo a dos chamados saloios da
região de Lisboa. A origem do termo “saloio” não reúne consenso, sendo a
explicação mais plausível a que defende que deriva da palavra “ صالةsalat” ou “oração”,
já que designava aqueles que rezavam 5 vezes por dia “fazendo o çala”, e que eram
chamados na época “çaloyos”; esta seria também a origem de “çalayo”, nome
do imposto pago sobre o pão na região de Lisboa; outra explicação é a origem do termo
na palavra “ ساحليsaheli”, que significa “habitante do litoral”; outra ainda é a origem
em “ سالويsalaui” ou habitante da cidade marroquina de Salé, designação local para
a população rural
As classes mais abastadas preferem a fuga para o Norte de Africa, onde podem refazer as
suas vidas de forma digna, fugindo também aos pesados impostos que sobre os mouros
são decretados, o que correspondeu a uma “sangria intelectual” na sociedade.
“…as classes mais elevadas dos muçulmanos, sobretudo intelectuais, homens de ciências
e poetas, terão sido os mais propensos a partir para paragens onde a bandeira do
Crescente ainda flutuasse e onde as suas qualificações fossem melhor apreciadas. Quem
ficou foram sobretudo os de condição mais humilde: camponeses, agricultores, artesãos,
pescadores e pequenos mercadores, que se foram deixando ficar por apego à terra.” (2)
Numa primeira fase, muitos partem para Espanha, tendo para tal pedido à Coroa
Espanhola para se estabelecerem nesse país. O pedido era formulado através das “aljamas
de moros”, fossem mourarias ou comunidades rurais. A migração dos mudéjares para
Espanha explica-se porque naquele país as comunidades muçulmanas eram muito mais
numerosas do que em Portugal e muito melhor integradas na sociedade cristã. Para além
disso, a presença do Reino de Granada constituía uma “tábua de salvação”, senão real,
pelo menos psicológica.
Essa conversão realiza-se com grande “reserva mental” como refere Adalberto Alves, já
que não se processa por fé ou opção própria, mas por imposição. A conversão forçada,
por outro lado, não é acompanhada por quaisquer medidas de integração religiosa e social,
como mostra o facto de “os mouriscos, caídos nas malhas da Inquisição, revelaram, (…)
na sua quase totalidade, ignorar os preceitos e práticas mais elementares da doutrina
cristã”. (2)
A conversão forçada ao cristianismo cria assim uma população híbrida, que é obrigada a
abdicar da sua identidade, sem referências ou perspectivas de futuro, que se refugia em
subterfúgios para teimosamente guardar fragmentos das suas origens, como iludir as
denuncias à Inquisição colocando alheiras de aves nos fumeiros, utilizar a escrita
aljamiada, escrevendo o português com caracteres árabes, e adoptando expressões
encapotadas, como “olá”, “olé” (Wa Allah, Deus) ou “olarilolé” (La ilaha ila Allah,
Não há divindade senão Deus).
Traje de casa das mulheres e meninas mouriscas de Granada . Desenho de Christoph Weiditz, 1529
Para além destes cativos raptados nas suas terras, refiram-se também os mouros cativos
das guerras travadas nas Praças de Marrocos e da chamada guerra do corso, aprisionados
nas povoações costeiras que os corsários portugueses pilhavam ou nos navios por eles
abordados.
“De tal modo dominou a escravização do islamita que a palavra “mouro” tornou-se
designação dominante do trabalhador escravizado, tendo sido a palavra “escravo”, de
uso erudito, introduzida tardiamente. A partir de 1444, negro-africanos capturados na
costa norte-ocidental da África começaram a ser desembarcados em Portugal para
trabalharem nas cidades e nos campos ou serem reexportados para a Espanha e, a
seguir, para as Américas. Inicialmente, os “mouros pretos” labutaram duramente ao
lado dos mouros tout court.” (3)
Estes Mouros Cativos podiam ser alforriados pelos seus donos, ou seja, libertados
mediante determinado pagamento ou por testamento, tornando-se Mouros Forros. Os
Mouros Forros eram no fundo a grande maioria dos mouriscos em Portugal, já que a sua
“alforriação” implicava a sua conversão. Apesar de poderem ser remunerados pela sua
actividade, os Mouros Forros não faziam um trabalho muito diferente dos Mouros Cativos
e não viviam muito melhor do que estes.
Mouriscos do reino de Granada, dando um passeio pelo campo com mulheres e crianças .
Desenho de Christoph Weiditz, 1529
Alguns homens com instrução conseguiam ser empregados como professores e no caso
das mulheres a profissão de dançarina era geralmente bem paga e muito apreciada.
A grande maioria dos mouriscos concentrava-se nas cidades de Lisboa, Setúbal e Évora
e na região do Algarve.
Mulher mourisca fiando e mulher mourisca varrendo a casa . Desenhos de Christoph Weiditz, 1529
Rogério Ribas analisou uma “amostragem de 349 réus penitenciados por práticas
islâmicas nos tribunais de Lisboa, Évora e Coimbra desde a década de 1540 até o ano
de 1600”. Concluiu que “excluídos os 61 para os quais não há dados, nada menos que
276 ou cerca de 96% deles eram estrangeiros, naturais de diversas partes do mundo
muçulmano (67,5% do Norte da África; 11,5% da Índia; 5,2% de Guiné; 4,5% do Império
Otomano; 0,3% da Arábia e 0,3% do Egito) ou da vizinha Espanha, 19, no caso (pouco
mais de 6%, 12 de Castela e 7 de Granada), contra apenas 12 indivíduos ou 4% naturais
de Portugal.” (3)
Vestidos de passeio das mulheres mouriscas de Granada . desenho de Christoph Weiditz, 1529
O processo de Francisca Lopes mostra bem a forma como Portugal lidava com as suas
minorias, culpabilizando-as e castigando-as pelas suas diferenças e retirando-lhes toda a
dignidade e esperança nas suas vidas.
Mourisco transportando pão . Desenho de Christoph Weiditz, 1529
A obra citada de Isabel Braga inclui um capítulo com o título “As diferenças não
toleradas”, no qual a autora esclarece algumas das práticas islâmicas, “enquanto cultura
e religião”, que os mouriscos mantinham e que constituíam crime aos olhos da
Inquisição, como “as abluções, as orações, os pedidos de protecção a Maomé e aos
santos muçulmanos, os juramentos, as esmolas, o jejum do Ramadão, as prescrições
alimentares, o modo de chorar os mortos e as festas em consequência de nascimentos e
casamentos (…)” (5)
Neste capítulo a autora explica que muitos mouriscos não cumpriam à risca os preceitos
do Islão por impossibilidade prática, já que os mesmos eram realizados de forma
dissimulada, ou seriam motivo de denúncia dos “brancos” á Inquisição, como por
exemplo não cumpriam os rituais do nascimento, casamento e morte, não faziam as 5
orações diárias, não jejuavam o mês de ramadão integralmente, comiam porco e bebiam
vinho em público para não levantar suspeitas…ou contrariavam um ditado da época que
dizia “Mouro fino come toucinho e bebe vinho”. (5)
“Em Portugal, nem a Coroa nem a Igreja tiveram qualquer plano sistemático de
assimilação e ou aculturação dos mouriscos (…) De um modo geral, verificou-se que os
mouriscos estavam mal doutrinados. Ou não se sabiam benzer, ou não se sabiam
persignar, ou ignoravam as orações na totalidade ou em parte, ou ainda desconheciam
os mandamentos e o significado das festas da Igreja; havendo ainda os que não sabiam
rigorosamente nada.” (5)
“Em Portugal, no século 15, devido ao carácter normando – real ou pretenso – de parte
da aristocracia feudal que participou e se locupletou da Reconquista, designava-se
genericamente como negro todos os tipos de pele morena, nacionais e estrangeiros.” (6)
Notas:
(2) ALVES, Adalberto. “Em busca da Lisboa Árabe”. CTT Correios de Portugal, 2007
(3) RIBAS, Rogério de Oliveira . “Ser Mourisco em Portugal Durante o Século XVI” .
XII Encontro Regional de História . ANPUH, Rio de Janeiro
(4) BARROS, Maria Filomena Lopes . “Francisca Lopes, uma mourisca no Portugal
do século XVI. Sociabilidade, solidariedades e identidade” . Universidade de Évora
2013
(6) TINHORÃO, José Ramos . “Os Negros em Portugal – uma presença silenciosa” .
Editorial Caminho. Lisboa, 1997
Bibliografia:
ALVES, Adalberto. “Em busca da Lisboa Árabe”. CTT Correios de Portugal, 2007
RIBAS, Rogério de Oliveira . “Ser Mourisco em Portugal Durante o Século XVI” . XII
Encontro Regional de História . ANPUH, Rio de Janeiro
https://historiasdeportugalemarrocos.wordpress.com/2014/12/28/mouros-negros-e-mouros-
pretos/
Acessado em 13/02/2016