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AS REVOLUÇÕES
FRANCESAS
PERIODICIDADE BIMESTRAL
N.º 77 · JUNHO/JULHO 2023
5 MAI Inaugura-se, em Versalhes, 2 ABR Morre subitamente, 21 JAN Luís XVI é executado
uma reunião dos Estados Gerais provavelmente envenenado, na guilhotina.
(compostos por Nobreza, Clero e Mirabeau, que tinha sido uma
Terceiro Estado ou Povo), convocada figura de destaque dos primeiros 1 FEV A França declara
por Luís XVI na tentativa de encontrar tempos da Revolução. guerra à Inglaterra, à Holanda
uma solução para a grave crise e à Espanha.
financeira. 20-21 JUN A família real tenta fugir
para o estrangeiro, mas é travada em 7 MAR Portugal envolve-se na
17 JUN O Terceiro Estado Varennes e forçada a regressar a Paris. desastrosa Campanha do Rossilhão,
proclama-se Assembleia auxiliando a Espanha na guerra contra
17 JUL Em torno da assinatura de uma petição
Nacional, dando a França revolucionária.
que retiraria os poderes ao rei, ocorre
início à revolução o Massacre do Campo de Marte, que faz cerca
política; dias depois 10 MAR É estabelecido
de 50 mortos e centenas de feridos.
juntar-se-lhes-ão o Tribunal Revolucionário.
alguns nobres 3 SET É aprovada a primeira Constituição
e elementos francesa, que institucionaliza o Estado de Direito. 6 ABR O Comité de Salvação
do baixo clero. Pública assume o governo
9 NOV A Assembleia intima os nobres da França, enquanto o Comité
emigrados a regressarem a França, sob pena de Segurança Geral vigia e
de morte. detém suspeitos de serem
CRONOLOGIA
Os dez anos
da Revolução Francesa 2 e 83
REVOLUÇÃO FRANCESA
O que desencadeou
a Revolução Francesa 4
Como se soube em Portugal
da Tomada da Bastilha 14
O caso do colar da rainha 16
A jornada das mulheres 20
JACQUES MARIE/GETTY IMAGES
REVOLUÇÃO DE 1830
Os Três (dias) Gloriosos 38
A
Literatura, o retrato social 49
s recentes – e intensas – manifestações em França conta o aumento da
idade da reforma vieram, uma vez mais, chamar a atenção para uma COMUNA DE PARIS
realidade incontornável: a propensão dos franceses para o protesto A revolução esmagada 52
político-social, a manifestação violenta, a construção de barricadas,
O relato de Eça de Queiroz 60
a ocupação das ruas. É sintomático que chamemos simplesmente
Revolução Francesa à grande convulsão que ao longo de uma década,
entre 1789 e 1799, abalou a França, a Europa e o mundo. MOTINS DE 1934
Mas a história político-social da França é, desde então, uma cavalgada de regimes A República treme, mas não cai 62
políticos que se aniquilam e se substituem por meio de golpes, motins ou levanta-
mentos populares. Assim, à já referida «mãe de todas as revoluções» sucederam-
-se o golpe que colocou Napoleão no poder, o Império, uma fugaz Restauração MAIO DE 68
monáquica bourbónica, de novo o Império, de novo a Restauração, a Monarquia Geração ‘Soixante-huitarde’ 66
burguesa de Luís Filipe a partir da revolução de 1830, a revolução de 1848, o golpe Entrevista Sérgio Godinho 72
de Napoleão III e a fundação do II Império, a grande insurreição da Comuna de
Paris em 1871 e o seu esmagamento em sangue, a fundação da III República, a sua
queda em 1940 face à invasão hitleriana, a IV República, a V República nascida
SÉCULO XXI
Hinos à insubordinação 74
do «golpe» de De Gaulle, o violento romantismo do Maio de 68, as tumultuosas
manifestações dos coletes amarelos já na presidência de Emmanuel Macron, Entrevista Juan Branco:
agora as tempestuosas manifestações relacionadas com a idade da aposentação… ‘Uma manifestação é um
Do fudamental destas convulsões damos conta neste número da VISÃO História, simulacro de uma revolução’ 78
onde, como sempre, recorremos à colaboração de autores especializados nos Opinião de José Gil:
temas abordados. Sociedade ou Estado? 80
Os títulos, subtítulos e destaques dos artigos são da responsabilidade da redação Última página ‘Fake news’
Foto da capa: Pormenor da pintura Le Liberté guidant le Peuple, de Eugène Delacroix na Comuna de Paris 82
VISÃO H I S T Ó R I A 3
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
O QUE DESENCADEOU
A REVOLUÇÃO FRANCESA
Diversos fatores juntaram-se para fazer detonar a mais emblemática de todas
as convulsões políticas e sociais. Nos finais do século XVIII, em França, começava
a Época Contemporânea
Por Daniel Alves*
4 VISÃO H I S T Ó R I A
Os Estados Gerais
As três ordens (Clero,
Nobreza e Terceiro
Estado) começaram
por se reunir na sala
dos Menus Plaisirs, no
Palácio de Versalhes
VISÃO H I S T Ó R I A 5
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
E
m agosto de 1786, Calonne, o con-
trolador-geral das Finanças de Luís
XVI, apresentou ao monarca um
relatório sobre o qual trabalhava
há alguns anos. Propunha a convo-
cação da Assembleia dos Notáveis,
órgão consultivo do rei que não se reunia
desde o início do século XVII. O ministro
tinha sido nomeado em 1783, sucedendo
a Necker e a dois outros conselheiros que
estiveram no cargo pouco tempo. O relatório
contestava o valor do orçamento publicado
por Necker em 1781, que oficialmente decla-
rara um superavit nas finanças da França,
mas que na realidade se tinha «esquecido»
de contabilizar o custo dos juros sobre os
empréstimos contraídos nos anos anteriores.
ALEXANDRE DEBELLE/MUSEU DA REVOLUÇÃO FRANCESA
6 VISÃO H I S T Ó R I A
Jornada das Telhas criação de um imposto sobre toda a proprie- literárias, frequentadores de salões, todos
No dia 7 de junho dade, a ser cobrado em géneros e aplicado de influenciados pelas ideias do Iluminismo.
de 1788, a população
forma permanente. Esse foi o principal ponto Mas também pelo povo nas ruas e nos cafés,
de Grenoble
arremessou telhas, de discórdia e resistência, até porque todos que bebia as palavras da revolta através de
do alto dos prédios, os presentes eram proprietários. panfletos e de discursos inflamados de jorna-
aos representantes Não tendo conseguido convencer os Notá- listas, alimentando o descontentamento na
do rei
veis, Calonne decidiu apelar para a opinião exata medida em que faltava o pão na mesa.
pública e distribuiu em Versalhes e Paris os Algumas
g medidas do p plano original
g de
seus relatórios,
tórios, com uma introdução em que Calonne, como a criação de assembleias
denunciava,
ava, de forma indireta, a atitude obs- provinciais, não foram difíceis de imple-
trucionista
sta dos Notáveis. Esta jogada levou à mentar. O problema estava nos impostos,
conspiração
ção entre os mais intransigentes, que com a subvenção territorial à cabeça. Mesmo
conseguiramram convencer o rei a demitir Calon- depois de alterados foram recusados pelos
ne a 8 de abril, sendo nomeando Brienne, um parlamentos, com a principal resistência a vir
arcebispo o próximo da rainha Maria Antonieta. do Parlamento de Paris. O rei ainda tentou
Os trabalhos
balhos prosseguiram, mas a maioria um golpe de força contra o Parlamento de
continuou u a recusar o ponto principal de toda Paris, em maio de 1788, mas isso foi muito
a reforma,a, a subvenção territorial. Mais signi- mal recebido por uma opinião pública cres-
ficativo é que uma parte dos Notáveis pensava centemente hostil ao soberano e aos seus
que aquelaela Assembleia não era competente ministros.
para decidir
cidir matérias de âmbito nacional.
Esta posição
ção resultava de uma convicção cada
vez mais partilhada entre a elite: só uma as-
sembleia a eleita podia votar um novo imposto.
Para alguns,
uns, essa legitimidade só poderia vir
da reuniãoão dos Estados Gerais, que também
ANTOINE-FRANCOIS/WIKIMEDIA
não eram m convocados desde o século XVII.
No diaa 25 de maio, o rei encerrou a Assem-
bleia. A questão passava agora para os parla-
mentos, mas a sugestão de con-
parlamentos e forçar empréstimos afastava vocar os Estados Gerais não
investidores, como acontecera em 1785. seria esquecida
uecida e nos meses
seguintess foi amplamente
A Assembleia dos Notáveis discutida a por quase todos:
A Assembleia dos Notáveis iniciou os tra- os Notáveis,
veis, os membros
balhos em fevereiro de 1787. Era composta dos parlamentos,
amentos, comercian-
por 144 elementos, na grande maioria per- gados e juristas, mem-
tes, advogados
tencentes às duas primeiras ordens do rei- bros das academias e sociedades
no, o Clero e a Nobreza. Eram presidentes
de tribunais e procuradores-gerais, bispos
e arcebispos, a alta nobreza, comandantes Luís XVI
e governadores militares, os irmãos do rei, Ao convocar
car
os Gerais,
os Estados
o duque de Orleães, militares da Guerra da o rei não suspeitava
Independência dos EUA, como o marquês do que viria
ria
de Lafayette, presidentes de municípios e de a seguir e da sorte
grandes cidades, entre outros. Apenas quatro que lhe estava
stava
reservada a
eram do Terceiro Estado – o povo.
As reformas administrativas, a liberaliza-
ção do comércio de cereais, o fim de algumas
alfândegas internas e a reforma de pequenos
impostos foram relativamente bem recebidos
pelos Notáveis. Mas tudo isso eram paliativos.
A grande medida do plano de reformas era a
VISÃO H I S T Ó R I A 7
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
Esta opinião pública era composta essen- vilégios fiscais e a igualdade de todos os cida-
cialmente por indivíduos letrados e já com dãos perante o Estado e a administração. Foi
alguma experiência de administração, justiça exigido que todos os delegados aos Estados
ou política. Eram indivíduos influenciados Gerais fossem eleitos. Apelou-se ainda para
pelas ideias do Iluminismo e da Revolução que outras províncias seguissem o exemplo,
Americana. Os escritos de Voltaire, Rosseau e sendo enviados emissários para várias cidades
Montesquieu, por exemplo, com críticas diri- no sentido de convencer as elites locais.
gidas às instituições e às tradições, incluindo O apelo foi feito ao mesmo tempo que o rei
a aristocracia, a Igreja e a Monarquia, foram e Brienne começavam a ceder à pressão dos
muito divulgadas através da Enciclopédia parlamentos e da opinião pública. Em julho
publicada por Diderot e D’Alambert. chegavam a Versalhes centenas de panfletos,
cartas e protestos a exigir a convocação dos
As ideias novas Estados Gerais. A 8 de agosto o rei marcou os
Estas ideias circulavam também por socie- Estados Gerais para maio de 1789. Isto deu
8 VISÃO H I S T Ó R I A
5 de maio de 1789
Um aspeto da
sessão de abertura
dos Estados Gerais
VISÃO H I S T Ó R I A 9
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
10 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Juramento do Jogo
da Péla Os delegados
comprometeram-se
a não se separarem sem
que antes tivesse sido
aprovada uma Constituição
para a França
VISÃO H I S T Ó R I A 11
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
ANÓNMO/MUSEU CARNAVALET
JEAN-BAPTISTE LESUEUR
que levará o povo de Paris até à Bastilha, a subiu quase 50% e com ele, subiu o preço A ordem do rei de 27 de junho, instando
14 de Julho de 1789. do pão, principal alimento da população. a que os restantes delegados do Primeiro e
A crise económica começou no principal Este tipo de crise, contudo, já tinha ocor- do Segundo Estados se juntassem à Assem-
setor de atividade da época, a agricultura, e rido em 1770 e em anos anteriores, mas bleia Nacional, aparentemente tinha como
é possível verificar o seu impacto através, por agora juntavam-se outros fatores, como objetivo ganhar tempo para reunir tropas
exemplo, das séries de preços. Estes aumen- a liberalização do mercado de cereais in- suficientes para se opor à Revolução. No dia
taram de forma gradual entre 1725 e 1760, troduzida em 1786, bem como o acordo 8 de julho, o rei recusou o pedido da Assem-
mas depois, e até cerca de 1770, subiram a comercial assinado com a Inglaterra nesse bleia Nacional para desmobilizar o exército e
um ritmo mais significativo. Entre 1770 e ano, que abriu a economia francesa à im- Necker foi demitido a 11. Apesar de tudo, ele
1789 atingiram o seu máximo. Em parte, portação de têxteis baratos. Isto teve um era um político popular e foi este o rastilho
isto esteve relacionado com a desvaloriza- impacto grande em várias cidades do norte para a revolta da população parisiense.
ção da moeda e com razões climáticas que da França e, em especial, em Paris, onde
geravam más colheitas. Juntamente com a terá originado cerca de 80 mil desempre- A revolta popular
subida dos preços vinham as subidas nas gados. A capital tinha então mais de 600 No dia 11 de julho, uma marcha de protesto
rendas agrícolas que os senhores cobravam mil habitantes. Destes, cerca de 100 mil contra a demissão de Necker foi dispersada
nas suas terras. Os dois fatores trouxeram eram o que podemos classificar de pequena de forma sangrenta por tropas mercenárias
dificuldades económicas a uma larga fatia dos burguesia, que vivia em casas próprias, alemãs que estavam na altura ao serviço de
camponeses de França que correspondiam trabalhando como oficiais do governo da Luís XVI. No dia 12, uma multidão excita-
a 85% da população. Mas no comércio e na cidade ou em profissões ligadas ao pequeno da assaltou duas prisões de Paris e libertou
indústria os preços tinham também subido comércio e às oficinas. Havia ainda algu- prisioneiros, entre eles militares franceses
de forma significativa, cerca de 60% desde o mas centenas de milhares de trabalhadores presos por se terem recusado a disparar con-
início do século. Já os salários dos trabalha- urbanos, lavadeiras e vendedores ambu- tra a multidão no dia anterior. Alguns destes
dores subiram apenas cerca de 25 por cento. lantes, criados, jornaleiros, vagabundos militares irão ajudar na tomada da Bastilha.
As diferenças entre preços e salários e prostitutas (estas seriam cerca de 40 Na noite de 12, os postos fiscais existentes nas
tiveram impacto, com a fome e o desem- mil). Estes últimos grupos eram os que várias entradas da cidade foram atacados. Ao
prego a regressarem de forma significativa mais estavam a sofrer com o preço do pão mesmo tempo foi assaltado um dos principais
entre 1770 e 1787 e depois de forma muito e o frio intenso. Mas a pequena burguesia mosteiros parisienses, o de São Lázaro, em
aguda, devido aos maus anos agrícolas. era também afetada pela crise económica, busca de cereais, bem como todas as lojas
Em julho de 1788, tempestade e granizo pelas importações de produtos ingleses e de ferreiros e armeiros, em busca de armas.
destruíram as colheitas no norte da França pela subida dos preços. Será destes dois Com o sentido de tentar repor a ordem,
e em particular nos arredores de Paris. grupos populares que sairá o grosso dos no dia 13 de julho foi nomeada uma nova
Seguiu-se um dos invernos mais rigorosos indivíduos que irão marchar em direção autoridade municipal para a cidade de Paris,
do século XVIII, e entre o verão de 1788 à Bastilha na manhã do dia 14 de julho de liderada por Jacques de Flesselles, um rico
e a primavera de 1789 o preço dos cereais 1789. O que levou a esses acontecimentos? comerciante, e formada uma milícia com
12 V I S Ã O H I S T Ó R I A
‘Cartoons’ armas e munições para armar a sua milícia,
Aspetos com medo das tropas reunidas em torno
da Revolução
de Paris e Versalhes, transformou-se numa
caricaturados
em desenhos multidão enraivecida com um alvo distinto,
da época a destruição da Bastilha.
A população reunida em frente à Câmara
Municipal, maioritariamente constituída por
pequenos artífices e lojistas, algumas mulhe-
res e antigos soldados, recebeu as notícias dos
feridos e do tiro de canhão. Excitada também
pela interceção de uma carta de Flesselles
onde este apelava ao governador para não
ANÓNIMO/MUSEU CARNAVALET
circularem rumores de uma marcha sobre a próprias famílias – foram levados da Bastilha
Bastilha, foi só nesta altura que a sugestão para a Câmara Municipal. Pouco depois o rei
se transformou numa palavra de ordem que cedia e mandava retirar as tropas. O povo de
rapidamente percorreu a cidade. A 14 DE JULHO, Paris ganhava a sua Revolução e salvava a As-
O comité revolucionário encarregado do sembleia Nacional!
governo da cidade e reunido no Hôtel de A PALAVRA
Ville, alarmado com a potencial escalada DE ORDEM «TODOS * Daniel Alves é professor na Universidade Nova
de Lisboa e investigador do Instituto de História
dos acontecimentos, enviou uma delegação
à Bastilha para convencer o governador, o
À BASTILHA» Contemporânea
VISÃO H I S T Ó R I A 13
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
‘N
a noite de segunda-feira, 13 do corrente para o Arsenal, e onde, dado que não haja agora armas, há pólvora e bala.
dia 14, os sinos de todas as freguesias da capital As ditas patrulhas tendo-se dirigido ao governador da Bastilha, e
[francesa] continuaram a tocar a rebate, e as intimado que vinham para que ele as deixasse tomar posse desta
igrejas eram o lugar em que se congregavam os fortaleza em nome da Nação, o governador (M. de Auné, Cava-
habitantes, e de onde saíam leiro da Ordem de S. Luís) lhes respondeu
uns armados, outros a bus- amigavelmente que podiam entrar com toda
car armas, e a aumentar o grande número a segurança pela ponte levadiça. Mas apenas
de tropas que marchavam pelas ruas em entraram, ordenou ele que esta se levantasse
patrulhas. Entre as armas que traziam havia e que os soldados inválidos e suíços fizessem
poucas espingardas: a maior parte delas fogo sobre as patrulhas que estavam dentro,
eram paus, chuços, lanças, espadas, foices A ‘Gazeta de Lisboa’ por efeito do que ficaram sete mortos e mais
e várias espécies de paus com ferros agu- A Gazeta de Lisboa foi o principal de trinta feridos da parte das ditas patrulhas.
dos nas pontas, preparados à pressa pelos órgão de informação português entre Havendo esta aleivosia irritado os ânimos
ferreiros e serralheiros. 1715 e 1820. O jornal, de periodicidade de uma delas, que ficara de fora da fortale-
No dia 14 pela manhã, a Casa da Câmara semanal mas com muitos números za, e de todos os cidadãos, acudiu gente de
desta cidade mandou afixar editais para que extra (suplementos), era impresso na toda a parte à Bastilha. Às duas horas foi
Régia Oficina Tipográfica com licença
nos 60 distritos da capital todos os cidadãos acometido o armazém da pólvora e morto o
da Real Mesa da Comissão Geral
se continuassem a armar, e propôs que se sobre o Exame e Censura dos Livros. sargento-mor que comandava a guarda que
formasse uma Ordenança, ou Milícia Pa- A censura impediria a publicação defendia este armazém e outros do Arsenal,
risiense, de 50 mil homens, bem regulada de muitas mais notícias sobre os onde estavam as balas de artilharia. Em
e toda com espingardas, etc. Mas aonde se acontecimentos convulsivos de França, breve se viu a Bastilha rodeada de patru-
haviam de ir buscar espingardas, pólvora mas a descrição da tomada da Bastilha, lhas; mas como estas não sabiam atacar
e bala para tanta gente? Esta dificuldade que aqui se reproduz, pôde ver a luz em ordem, recorreu-se aos granadeiros do
do dia, entusiasmando os pensadores
inquietava todos os cidadãos, porque, sem Regimento das Guardas Francesas, os quais
progressistas «afrancesados»
embargo de se acharem mais de 300 mil com e aterrorizando a Corte e os conduziram três peças de artilharia para a
armas, estas armas não eram espingardas, conservadores em geral. combater. Não foi, porém, necessário que
ou pelo menos as espingardas eram raras. a artilharia jogasse, porquanto os grana-
Durou porém este embaraço pouco tempo: deiros, apesar das sucessivas descargas que
a fermentação era grande, e cada vez se fazia maior por todos os os soldados inválidos davam das torres, assaltaram a fortaleza
ânimos. [...] e fizeram prisioneiros os quarenta e tantos soldados que nela
Às dez horas da manhã um grande número de patrulhas atacou diziam que havia. [...]
a Casa dos Inválidos, por lhe constar que nela havia armas escon- O governador da Bastilha vendo que muitos mil homens vi-
didas. Estes soldados, ainda que mais de 3 mil em número, não nham armados contra ele, e que não podia escapar à morte, quis
fizeram resistência, deixando entrar as patrulhas, as quais desco- bebê-la por suas próprias mãos, e o conduziram preso à Casa
briram em diferentes casas e lugares subterrâneos mais de 30 mil da Câmara. O furor, porém, do povo era tão grande contra ele,
espingardas, que dentro de poucas horas foram repartidas pelos que antes de chegar à dita casa recebeu muitas feridas; e tendo
cidadãos dos diferentes bairros da capital. As mesmas patrulhas se finalmente caído por terra agonizante, lhe cortaram a cabeça.
apoderaram também de vinte e tantas peças de artilharia, que se Não parou aqui a vingança do povo, porquanto pôs fogo às casas
achavam à roda da sobredita Casa dos Inválidos, e as conduziram do assassinado governador, que arderam quase todas, e nenhu-
para diferentes partes da cidade. [...] ma das [casas] vizinhas haveria escapado a não ser o vigilante
Toda a Nação tinha um grande ódio à fortaleza da Bastilha, por cuidado que tiveram as patrulhas de atalhar logo o incêndio. A
ser considerada como uma torre, instrumento de tirania. Às 11 cabeça do governador, e a do sargento-mor que fica mencionado,
horas da manhã, um pequeno número de patrulhas tomou a reso- foram nessa noite levadas ao Palais Royal, e sobre lanças expostas
lução de ir surpreender esta fortaleza, e ao mesmo tempo atacar o ao numeroso povo que aí se achava. O preboste dos mercadores
14 V I S Ã O H I S T Ó R I A
também sucumbiu na mesma tarde ao furor popular, havendo Nesse dia não veio aqui [a Paris] El-Rei, por se achar indisposto.
sido degolado. Os cidadãos porém, desconhecendo sempre os novos ministros,
Nesse dia, a Assembleia Nacional tinha enviado uma deputa- foram aumentando as patrulhas cada vez mais. Todas as pessoas
ção a Sua Majestade para lhe anunciar que a capital se achava que passavam em carruagem eram reconhecidas, e da cidade
armada e em uma geral desordem, suplicando-lhe mandasse nada saía sem ser revisto. [...]
que as tropas postadas à roda de Paris e Versalhes se retirassem. As Guardas Francesas começaram a ensinar o exercício aos
A isto respondeu o soberano, que a deputação era inútil, porque habitantes, e eram alojadas e alimentadas nas casas destes, por
tinha em seu poder meios de renovar o sossego na capital. [...] temerem ir dormir aos seus quartéis, dizendo que os seus oficiais
A resposta de El-Rei causou na capital grande consternação, os queriam envenenar e tinham posto barris de pólvora em alguns
havendo-a todos lançado a má parte, persuadidos de que S. M. dos mesmos quartéis para os matar à traição.
mandava entrar na cidade as tropas e dar assalto. Toda a capital, No dia 16 se anunciou em todas as igrejas paroquiais que El-
pois, se dispôs para as receber como seus verdadeiros inimigos. [...] -Rei se propunha nesse dia vir à Câmara desta cidade. Todas as
El-rei e toda a Corte não patrulhas dos habitantes
ficaram menos assustados armados se dispuseram
com a notícia da tomada a recebê-los com alegria.
da Bastilha e [das] ca- S. M., pois, partiu de Ver-
beças cortadas. Demais salhes acompanhado da
disso, S. M. foi nessa noi- ordenança daquela cida-
te obrigado a levantar-se de e chegou às portas de
fora de horas, por o ter Paris em uma carruagem
acordado o seu camaris- tirada por seis cavalos.
VISÃO H I S T Ó R I A 15
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
RÉPLICA/CASTELO DE BRETEDIL
O caso do colar
da rainha
Uma burla famosa conferiu um tom de intriga
ao prelúdio da Revolução Francesa. Mais profundas
foram, porém, as causas do grande movimento social
que espalharia o terror entre os privilegiados
da Europa e mudaria a face do Ocidente
Por Luís Almeida Martins
S
e já existisse imprensa cor-de-rosa tiça retributiva que não existia. Por seu lado,
no último quartel do século XVIII, os proprietários das manufaturas (a que hoje
um dos seus temas centrais seria chamaríamos empresários) ambicionavam
certamente a figura de Maria An- deter um poder político a que se achavam
tonieta. Esta princesinha austría- com direito mas que lhes era negado. A ociosa
ca da casa de Habsburgo, filha da aristocracia, essa vivia no meio de luxos e dos
imperatriz Maria Teresa, casou-se em 1770, mais escandalosos desvarios, à custa de um
aos 15 anos incompletos, com o herdeiro do Erário Régio, que se ia esvaziando.
trono francês, o futuro Luís XVI, cerca de Desde o reinado de Luís XIV, uns cem anos
um ano e meio mais velho, e foi viver para a antes, que grande parte da nobreza – 15 mil
pompa do palácio de Versalhes, a sumptuosa pessoas, calcula-se – deixara os seus castelos
residência real mandada construir no século da província e habitava sem nada produzir
anterior por Luís XIV nos arredores de Paris. em Versalhes, aquela construção faraónica
Era tal o contraste entre a opulência da aris- mandara erigir pelo Rei Sol e que serviria de
tocracia e a miséria do povo que o mal-estar modelo a outras, em ponto mais pequeno,
social em França aumentava de dia para dia. espalhadas pelos reinos europeus (uma das
Os camponeses, esfomeados e esmagados por quais é o nosso Palácio de Queluz). Ali, pas-
toda a espécie de impostos (alguns remontan- savam aqueles ociosos todo o dia em festas,
do à Idade Média e pagos a senhores locais), jogos, brincadeiras, infantilidades, banquetes,
suplicavam às autoridades do reino uma jus- mexericos, prazeres de alcova e tráficos de in-
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Maria Antonieta
A austríaca, mulher
de Luís XVI e rainha
consorte de França,
era o «ódio de estimação»
da generalidade do povo
VISÃO H I S T Ó R I A 17
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
movimento de ideias progressistas que flo- Através das declarações do cardeal no pro-
A ALTA
resceu no século XVIII e que constitui a raiz cesso apurou-se, no entanto, que a iniciativa
ideológica da Revolução Francesa – escreveu ARISTOCRACIA de adquirir o colar não fora sua, mas do enig-
uma peça de teatro intitulada O Barbeiro de IMPEDIA A mático José Bálsamo, conde de Cagliostro, e
Sevilha. Nessa peça, destinada a tornar-se da aventureira condessa Jeanne de La Motte.
famosa, satirizava certeira e violentamente ASCENSÃO SOCIAL Teriam sido estas duas hábeis personagens da
os abusos da nobreza. O Barbeiro de Sevilha À PEQUENA NOBREZA grande comédia da História a convencê-lo de
foi proibido pela Censura Régia, e o mesmo que a oferta do colar seria a melhor forma de
sucederia a uma sua sequela igualmente cé-
E AOS BURGUESES cair nas boas graças da rainha, o que lhe abriria
lebre, As Bodas de Fígaro. Fraco e hesitante ENRIQUECIDOS não só as portas da sua alcova, mas também,
como era, Luís XVI acabaria, no entanto, por eventualmente, os portões do poder político.
autorizar uma representação – uma só – de Um exímio falsário contratado pelos cons-
O Barbeiro de Sevilha, que obteria um sucesso piradores forjara então cartas que foram di-
retumbante junto do público. A estouvada rigidas ao joalheiro com uma imitação da
e diletante Maria Antonieta foi ainda mais dia, habitada por camponeses «de verdade», assinatura da rainha, manifestando o desejo
longe: organizou uma encenação de As Bodas como ela própria fazia questão de acentuar. de comprar o colar. Jeanne de La Motte, que
de Fígaro no seu pavilhão predileto do parque A filha da imperatriz austríaca entretinha-se servia de intermediária na aquisição, recebe-
de Versalhes, um palaciozinho chamado Petit ali a mungir vacas e a fabricar pão, não só ria entretanto de Rohan o valor da primeira
Trianon, reservando para si própria o prin- porque (como já sabemos) era moda entre prestação, vigarice que constituía a razão
cipal papel. O público era composto apenas a aristocracia, mas também como forma de de ser de toda a iniciativa. Cagliostro, esse,
por aristocratas convidados, mas foi aberta combater a monotonia de uma vida dema- além de ver uma parte dos lucros, assistiria
uma exceção para o autor, Beaumarchais, siado fácil e despreocupada. ao espetáculo de contemplar o mais poderoso
que também assistiu e que, ironicamente, foi Escusado será dizer que o colar a tentou, trono da Europa vacilar com o escândalo, o
muito aplaudido exatamente por aqueles que mas não se atreveu a propor a sua compra que aumentaria a sua influência enquanto
mais satirizava nos seus textos dramáticos. ao rei, que por seu lado preenchia os longos feiticeiro de salão e vaticinador remunerado
Este «retrato de grupo» tirado em França ócios montando e desmontando relógios e de desgraças públicas. Num daqueles seus
era extensivo aos outros países do continente, dedicando-se a outros pequenos trabalhos romances em muitos volumes, Memórias de
com a relativa exceção da Inglaterra, onde os de serralharia, atividade que muito apre- um Médico, o genial folhetinista Alexandre
nobres eram também de algum modo o que ciava. Um dia, a rainha recebeu uma carta Dumas prende-nos a estes acontecimentos
hoje se chama «empresários» e onde o Par- do joalheiro na qual este lhe perguntava res- como hera a um muro: se nos arrancarem
lamento ia regulando os abusos e, de algum peitosamente quando poderia contar com o dali ficamos um tanto despedaçados...
modo, atenuando os contrastes. Mas, de uma pagamento da primeira prestação do colar. O cardeal de Rohan seria absolvido e a con-
forma geral, era assim, oco e inconsciente, o Surpreendida e assustada, pois não adquirira dessa de La Motte e o conde de Cagliostro
mundo dos privilegiados do Antigo Regime. o adereço, Maria Antonieta foi contar ar ao condenados. Mas se o processo teve enorme
Esta loucura infantil de que a França se tor- marido o sucedido. E este, provavelmente ente
nou o paradigma incluía ainda conspirações pousando sobre a mesa a lupa de relojoeiro,
eiro,
de bastidores e facadas nas costas – se não mandou proceder a averiguações.
desferidas fisicamente com o objeto cortante Veio a descobrir-se que fora o ambicioso
cioso
propriamente dito, dadas com uma subtileza e mundano cardeal de Rohan quem com-
retorcida semelhante às dos dias de hoje. prara o colar, a fim de o oferecer à rainha,
nha,
O curioso romance epistolar As Ligações por quem se teria apaixonado. Rohan, per-
Perigosas (Les Liaisons Dangereuses), da tencente a uma das grandes famílias tradi-
radi-
autoria de um militar daquele tempo muito cionais de França, não era dotado de espe-
observador e talentoso, Choderlos de Laclos, ciais talentos nem possuía uma inteligência
ência
dá-nos conta desse ambiente. aguda, mas (tal como muita gente nestas estas
condições) ambicionava ser ministro,, e a
A fraude do colar oferta do colar à rainha poderia abrir-lhe
he as
Por volta de 1785, um joalheiro parisiense portas do poder. Algo surpreendentemente ente
fabricou um sumptuoso e valiosíssimo colar para o seu espírito conciliador, Luís XVI
cuja venda propôs a Maria Antonieta. Esta ordenou que o cardeal, de 51 anos, fosse
passava quase todo o dia no Petit Trianon, imediatamente detido e julgado, decisão são a
junto do qual fizera construir uma aldeiazi- que não terá sido alheia a corte descarada
rada
nha que hoje nos faz lembrar a Disneylân- que ele fazia à sua mulher.
18 V I S Ã O H I S T Ó R I A
nericamente, o Terceiro Estado, ou seja,
Junto do Petit Trianon
A aldeiazinha de Maria os burgueses, os trabalhadores manuais, e
Antonieta era habitada por a grande massa dos camponeses, que não
camponeses «de verdade» eram nem nobres nem eclesiásticos) ocasião
para lançar as responsabilidades da crise
sobre as ordens privilegiadas. Porque, tal
como no Portugal Antigo Regime, a França
estava dividida em três ordens sociais: Clero,
Nobreza e Terceiro Estado (ou seja, Povo).
O Clero e a Nobreza escapavam à maior
arte dos impostos diretos que recaíam sobre
VISÃO H I S T Ó R I A 19
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
A jornada
das mulheres
Elas foram peças fundamentais durante toda
a Revolução, e em especial quando, em outubro de 1789,
a população de Paris foi a Versalhes
exigir pão e buscar à força o rei, a rainha e o delfim
Por Daniel Alves
A
participação das mulheres na Re- Aprovada a 26 de agosto de 1789, a Decla-
volução Francesa é hoje reconhe- ração era baseada num projeto original do
cida e estudada, mas nem sem- Marquês de Lafayette. O texto tinha claras
pre assim foi. Apesar de terem influências da Revolução Americana, refletin-
representado um papel de relevo do muitas das ideias de Locke, Montesquieu
20 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A Versalhes!
Armadas de piques
e de baionetas e
arrastando um
canhão, milhares de
mulheres foram, de
5 para 6 de outubro
de 1789, cercar o
palácio onde habitava
o rei e decorriam
os trabalhos da
Assembleia Nacional
de ser aprovada e publicamente aceite pelo por exemplo, foi organizada uma marcha de em vários panfletos, para além do debate polí-
monarca. Nas discussões sobre a futura Cons- protesto, com algumas centenas de partici- tico, cada vez mais surgia um discurso radical,
tituição, o rei ocupava ainda um papel central pantes, liderada por um ex-nobre, que tinha conspirativo e denunciatório para protestar
no novo regime. Contudo, este sentimento de como objetivo ir a Versalhes e trazer o rei e contra as hesitações do monarca. Um dos
confiança dos deputados em relação ao rei não a Assembleia para Paris. Esta iniciativa foi jornais nascidos nesta altura foi o Ami du
era acompanhado pela população de Paris e, travada, mas era já um sinal de que as coisas Peuple, de Jean-Paul Marat, que recorria com
em parte, esta divergência de opiniões, que se podiam ficar fora de controlo. Na imprensa e muita frequência a teorias conspirativas para
fazia sentir muito através da imprensa, ajuda fazer passar a sua mensagem revolucionária.
a explicar o que foram os acontecimentos de A este clima de efervescência política, jun-
5 para 6 de outubro de 1789, para os quais foi tavam-se as dificuldades económicas ainda
central o papel das mulheres de Paris causadas pelo mau tempo e pelas más colhei-
ERAM AS tas de 1789. Não só faltavam cereais, como
Efervescência em Paris MULHERES QUE, aqueles que existiam tinham dificuldades em
O atraso do rei em dar a sua concordância às circular em rios gelados e estradas em mau
medidas da Assembleia, em especial à Decla-
TRADICIONALMENTE, estado. E no verão tinha sido a seca a tirar a
ração de 26 de agosto, levantava suspeitas de VINHAM PRIMEIRO água dos moinhos, fazendo que faltasse fari-
que apenas estaria a atrasar o processo para PARA AS RUAS nha. Apesar de o preço do pão ter baixado no
possibilitar um golpe contrarrevolucionário, final de julho e no mês de agosto, em setembro
e isso começou a gerar protestos em Paris. MANIFESTAR-SE voltou a aumentar e com ele aumentaram
Esses protestos começaram no final de agosto CONTRA O PREÇO também as revoltas populares, desta feita com
e durante a primeira semana de setembro, as mulheres de Paris a exigirem às autoridades
quer através de iniciativas populares quer
DO PÃO que regulassem o mercado de cereais e os
através da imprensa. No dia 30 de agosto, preços do pão.
VISÃO H I S T Ó R I A 21
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
22 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Clube Patriótico As tricoteiras
das Mulheres Imagem icónica
Reuniam-se em da Revolução, durante
sessões vedadas o Terror assistiam
a homens, em que às execuções sem
debatiam o decorrer parar de fazer tricô
dos trabalhos da
Assembleia Nacional
intelectual, tendo desempenhado um papel bates e na Revolução desde 1789, mesmo to, se tinham criado um pouco por toda a
de relevo na introdução da questão feminina que não tenham participado na jornada França, quer em Paris quer nas províncias.
na Revolução, em especial entre 1789 e 1793. de outubro. Por exemplo, Claire Lacombe, O caso mais conhecido é o de Olympe de
Muitas escreveram em jornais, abriram os que em 1793 propôs à Câmara de Paris um Gouges, que, entre escritos políticos, filosófi-
seus salões ao debate político e intelectual, conjunto de medidas revolucionárias e de cos e teatrais, redigiu, em 1791, uma propos-
assistiram aos debates nos clubes e na As- reforma social, como a prisão das mulheres ta de Declaração dos Direitos da Mulher e da
sembleia ou participaram nas jornadas re- dos nobres emigrados ou medidas de reabili- Cidadã. Outras participaram na imprensa
volucionárias, falando muito da questão do tação das prostitutas. Ou Madame Roland e ou editaram os seus próprios jornais, como
voto e da participação política das mulheres, Madame Condorcet, que organizaram salões foi o caso de Louise de Keralio, que publicou
mas menos sobre o seu papel na família, o literários e políticos nas suas casas onde era em Paris, nos dias imediatamente a seguir
divórcio ou a igualdade civil e económica costume debater-se as ideias revolucionárias à jornada das mulheres a Versalhes, o seu
com os homens. e a política do dia-a-dia. Etta Palm foi outra Journal d’État et du Citoyen, especifica-
destas mulheres, empenhada em organizar mente dedicado a um público feminino.
Nomes a reter a participação feminina na Revolução, pro- Continuou a publicar outros jornais até ju-
São vários os exemplos de mulheres que pondo em 1791 um projeto de federação das lho de 1791, quando abandonou a atividade
tiveram um papel de destaque nestes de- várias sociedades femininas que, entretan- política para se dedicar à filha que nasceria
pouco tempo depois. Por fim, o exemplo de
Théroigne de Méricourt, que assistia com
muita frequência aos debates da Assembleia
e que geria um salão frequentado por muitos
Olympe Louise de Keralio deputados.
de Gouges Publicou em Paris, Para saber mais:
Em 1791, redigiu nos dias a seguir à Hunt, Lynn, A invenção dos direitos humanos:
uma proposta jornada das mulheres, uma história, São Paulo, Companhia das Letras, 2009.
Marand-Fouquet, Catherine, A mulher no tempo da
de Declaração o Journal d’État e du Revolução, Mem-Martins, Editorial Inquérito, 1993.
dos Direitos Citoyen Melzer, Sara E.; Rabine, Leslie W. (eds.), Rebel
da Mulher e da Cidadã daughters: women and the French Revolution,
Oxford, Oxford University Press, 1992.
VISÃO H I S T Ó R I A 23
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
para o ‘Terror’
1789; a abolição da nobreza, em 1790; ou
a Constituição Civil do Clero (que pratica-
mente transformava os membros do clero
em funcionários públicos, obrigando-os a
Realidades e mitos coexistem na imagem que formamos um juramento), no mesmo ano – colocaram o
da Revolução Francesa, um dos períodos históricos rei cada vez mais em confronto político com
que mais convocam o imaginário coletivo os revolucionários. No fundo, eram ataques
aos privilégios e ao poder simbólico dos dois
Por Daniel Alves
grupos sociais que sempre tinham sido os
D
sustentáculos do poder real.
epois da queda da Bastilha, é e sociais, é necessário recuar até 1791. A fuga Estes fatores conjugaram-se no início de
provável que o período chama- de Luís XVI nesse ano, a radicalização dos 1791. Por um lado, uma parte do clero tinha
do «Terror» seja o evento que a clubes políticos de Paris, o começo da guerra recusado jurar a Constituição. Por outro, o
maioria das pessoas associa ime- em 1792, a queda da monarquia em agosto Papa tinha determinado a excomunhão de
diatamente à Revolução Francesa. desse ano, o julgamento e a morte do rei todos os que aceitassem os sacramentos pelos
O mesmo acontece com o nome no início de 1793, a guerra civil que estalou padres que tivessem jurado. Numa sociedade
de Robespierre, talvez o revolucionário mais pouco depois, bem como a profunda crise profundamente religiosa como ainda era a
conhecido. Muitas vezes confundem-se os económica e os protestos populares, tudo França do século XVIII, isto representou
três: a Revolução Francesa é o «Terror» e contribuiu para que a Revolução fosse levada uma séria divisão social e política. Luís XVI
este é indissociável da figura de Maximilien para a voragem de violência política que o era um homem crente e temeroso. Para não
Robespierre. Contudo, uma parte desta his- «Terror» representou entre setembro de 1793 incorrer no que considerava ser um pecado,
tória corresponde a uma mitologia ou fabri- e julho de 1794. tinha decidido sair de Paris na Páscoa de 1791
cação construída já depois do fim daquele para obter o sacramento da confissão com um
período de violência política e de governo Fuga do rei para Varennes padre não ajuramentado, em Saint-Cloud,
revolucionário. Uma fabricação alimentada Depois da queda da Bastilha, Luís XVI foi um palácio real nos arredores da capital.
pelos adversários de Robespierre e repetida aconselhado a fugir de França. O mesmo Contudo, a população de Paris revoltou-se e
desde então pela cultura popular e por algu- aconteceu após a jornada das mulheres a impediu o rei de sair das Tulherias. O hesitan-
ma historiografia. Versalhes. Entre 1789 e 1791, contudo, o rei te Luís XVI aceitou então um plano de fuga
A caricatura, com o seu exagero e simpli- recusou essa solução, em parte porque era um desenhado por nobres e pela rainha (com a
ficação, ajudou a perpetuar essa mitologia. homem hesitante, em parte porque acredita- ajuda do alegado amante desta, o conde sue-
Talvez a mais conhecida seja a que representa va poder controlar os acontecimentos. Mas a co Axel von Fersen). A fuga ocorreu na noite
Robespierre Guilhotinando o Carrasco, de radicalização da população de Paris, afetada de 20 de junho. Contudo, a família real foi
autor anónimo, datada de 1794 (ver imagem). pela crise económica e pela desconfiança face travada em Varennes, uma localidade perto
Nela é descrita uma revolução que perseguia ao monarca e, em especial, à rainha Maria da fronteira com a atual Bélgica. O pior era
e matava todos, que apenas tinha gerado que o rei tinha deixado para trás uma carta
violência, tendo sido chefiada por um úni- onde criticava as medidas da Assembleia
co homem, Robespierre. Mas na caricatura Nacional. Este documento era a prova das
estão também mencionados quase todos os traições da monarquia e ajudou a radicalizar
que vão ser protagonistas do caminho até a revolução.
à implementação da política do «Terror»
A TENTATIVA
(e algumas das suas vítimas). As letras da DE FUGA DO REI Posições face à guerra
legenda, associadas a cada guilhotina da ca- A fuga acelerou o caminho para a guerra com
ricatura, permitem identificar esses grupos,
ACELEROU A as potências estrangeiras e fez crescer o repu-
interpretar o seu papel na época e guiar-nos GUERRA COM blicanismo. A guerra foi uma das primeiras
pela história que levou ao período mais con- O ESTRANGEIRO discussões da nova Assembleia Legislativa,
turbado da Revolução Francesa. em outubro de 1791, sendo um dos fatores
Para compreender como foi possível uma E FEZ CRESCER O que geraram maior divisão entre os revo-
revolução que inaugurou os direitos do ho- REPUBLICANISMO lucionários. Os mais ativos neste período
mem e do cidadão ter experimentado grande eram os Jacobinos, assim chamados por se
violência e profundas perturbações políticas reunirem num antigo convento na Rua de
24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Robespierre guilhotinando
o carrasco Esta caricatura
de autor anónimo, de 1791,
pretendia denunciar o terror
indiscriminado
VISÃO H I S T Ó R I A 25
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
26 V I S Ã O H I S T Ó R I A
quem acusavam de estar por detrás do golpe.
Esta revolta, conhecida como Federalista, foi
mais um fator de pressão sobre a Revolução,
para além da guerra externa e da guerra civil
da Vendeia.
Paris era agora dominada pelos radicais,
com os Hébertistes a manifestarem-se por
medidas populares quase todos os dias.
Juntamente com os Enragés, começaram
MARAT HÉBERT SAINT-JUST a exigir que a guilhotina funcionasse como
1743-1793 1757-1794 1767-1794 arma dissuasora de traições e conspirações.
Médico, cientista, filósofo, Jacques Hébert, líder da Grande defensor da política
teórico político e jornalista, fação ultrarrevolucionária do «Terror», membro do Na Convenção discutia-se uma nova Consti-
Jean-Paul Marat defendia da extrema-esquerda Comité de Salvação Pública tuição, que seria aprovada a 24 de junho de
no jornal L’Ami du jacobina, foi o redator e representante máximo 1793, mas que seria suspensa devido a um
Peuple a perseguição dos do jornal radical Le Père da ala mais radical do
conjunto de medidas de exceção pensadas
moderados, o que o tornou Duchesne. Entrou em jacobinismo, o montagnard
muito popular nas ruas. confronto com Robespierre Louis Antoine Léon de para combater as dificuldades, as traições e
Seria assassinado por e este ordenou a sua Saint-Just, consagrado a contrarrevolução, mas também para que a
uma jovem conservadora, detenção e execução, na memória com o epíteto Convenção e os comités pudessem tomar as
Charlotte Corday, que juntamente com os seus de «Arcanjo do Terror»,
conseguiu introduzir-se em partidários, os chamados foi determinante para a
rédeas do poder, cada vez mais pressionado
sua casa armada de uma hebertistas. condenação de Luís XVI. O pela população de Paris. Vão ser essas me-
faca, e que seria por sua seu ideal era a criação de didas, adotadas entre agosto e setembro de
vez julgada e guilhotinada. uma República de pequenos 1793, que na prática vão colocar o «Terror na
Marginalmente, note-se proprietários, artesão e
que foi Marat quem cunhou trabalhadores assalariados. ordem do dia», como era comum ouvir-se
a expressão «inimigo do Acabaria também por ser na época. No fundo, a população e os políti-
povo», adotada na URSS ele próprio guilhotinado. cos revolucionários, com medo de traições,
durante a Grande Purga de reais ou imaginadas, pressionados pela crise
1936-38.
e pela guerra, com o perigo de ver os direitos
L.A.M.
conquistados desfeitos, decidiram levar esse
mesmo medo, esse «Terror», aos inimigos
da Revolução.
Em 23 de agosto, o Comité de Salvação
uma série de motins contra o recrutamento, entre março e abril, com o objetivo de conter Pública propôs um recrutamento em massa
no final de março iniciava-se uma guerra civil. a guerra civil, controlar as movimentações para resolver os problemas militares. Julho
A guerra no exterior trazia outros pro- contrarrevolucionárias e levar à prisão os tinha sido o pior momento para a Revolu-
blemas. Dumoriez, general nomeado pelos traidores. Vão ser os instrumentos centrais ção, com tropas estrangeiras a ultrapassar
Girondinos, publicou uma declaração contra da política do «Terror», criados ainda com a fronteira na Flandres e nos Pirenéus. Em
a República a 11 de março, na qual ameaçava o apoio dos Girondinos que, entretanto, ti- agosto, os ingleses tinham tomado Toulon.
levar o exército, derrotado na Bélgica, contra nham abandonado o Clube dos Jacobinos. A revolta federalista estava em crescendo e
Paris. O mesmo comportamento teve Custi- As traições levaram ao agravamento das a guerra civil da Vendeia continuava. Per-
ne, outro general girondino, que abandonou tensões com a população de Paris. Os sans- manecia a crise económica, com nova seca
o exército na região do Reno. Eram duas -culottes (um grupo popular politizado assim e a desvalorização da moeda a fazer subir
traições à Revolução diretamente conotadas chamado por usar calças e não os calções – o preço do pão. Em Paris eram frequentes
com os Girondinos. Dumoriez entregou-se culottes – típicos da nobreza) começaram a as manifestações a pedir melhores salários
aos austríacos, mas Custine acabaria por ser acusar os Girondinos em petições e protestos e controlo dos preços dos bens essenciais.
preso e condenado à guilhotina pelo Tribunal durante o mês de abril. A 31 de maio houve Em 5 de setembro, milhares de parisienses
Revolucionário (letra D), criado em março uma tentativa de os expulsar da Convenção, dirigiram-se à Convenção para exigir que o
de 1793. com milhares de populares a entrarem na «Terror» fosse colocado «na ordem do dia».
assembleia. Os deputados resistiram, mas a
Recrutamentos em massa 2 de junho uma nova invasão levou à cedência 250 mil mortos
Este tribunal, juntamente com os Comités e a maioria votou a destituição e prisão de Foram então votadas outras medidas, como
de Salvação Pública (letra B) e Segurança Brissot e dos Girondinos. Presos em casa, a lei dos suspeitos, a 17 de setembro, que
Geral (letra C), que funcionavam como bra- uma parte fugiu para as cidades de origem e colocava sob suspeição praticamente todos
ços executivos da Convenção, foram criados incentivou uma revolta contra os Jacobinos, a os que, pela sua conduta, palavras ou escri-
VISÃO H I S T Ó R I A 27
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
O calendário revolucionário
Entre 22 de setembro de 1792 e 31 de dezembro de 1805,
em França, os anos foram renumerados e os meses
receberam novos nomes
De acordo com o calendário revolucionário, ou republicano, os anos foram
numerados em conta romana a partir de 1792 (ano I da República).
O ano começava no equinócio do outono, data da proclamação da República.
Os nomes dos meses, de grande beleza, foram concebidos pelo poeta
Fabre d’Églantine e eram alusivos às condições climáticas de cada época
e ao correspondente ciclo agrícola.
28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Execução
de Luís XVI
O palco onde
funcionava a
guilhotina era a atual
Praça da Concórdia, leis que retiravam garantias judiciais aos
antiga Praça Luís XV
suspeitos, dando início ao que ficou conhe-
batizada ao tempo de
Praça da Revolução cido como o período do «Grande Terror».
Entre 11 de junho e 27 de julho, o Tribunal
Revolucionário de Paris pronunciou 1376
sentenças de morte.
Ao mesmo tempo os discursos de Robes-
pierre e dos seus aliados, entre eles Saint-
-Just, apontavam para múltiplas conspira-
ções. Nos comités registaram-se violentas
discussões entre o grupo mais fiel a Ro-
bespierre e outros, como Billaud-Varenne,
Carnot e Collot d’Herbois. As denúncias e
desconfianças mútuas continuaram, levan-
do Robespierre a pronunciar, a 26 de julho,
um violento discurso na Convenção, recla-
mando a punição de traidores que nunca
chegou a nomear. Para os deputados, aquela
ameaça genérica que pairava sobre a cabe-
ça de todos, aliada às dissensões políticas,
levaram a que no dia seguinte, 27 de julho
(9 de Termidor, no calendário republicano),
a Convenção votasse a detenção de Robes-
pierre, de Saint-Just e outros, guilhotinados
no dia seguinte.
Terminava o «Terror», curiosamente pela
mão de antigos apoiantes e dirigentes desse
na Vendeia. Após várias batalhas, com as liderado por Robespierre, apesar de este, regime de exceção que vigorava desde setem-
tropas revolucionárias a serem reforçadas em alguns casos, ter procurado negociar e bro de 1793, como Billaud-Varenne, Carnot
por voluntários sans-culottes, o exército adiar as decisões. ou Collot d’Herbois. Alguns deles tinham
vendeano foi derrotado em dezembro. Nos Na Convenção, a maioria dos deputados, assinado, juntamente com Robespierre, as
meses seguintes foram perseguidos os sus- por medo ou convicção, continuou a apoiar ordens de prisão que levaram à guilhotina
peitos de terem participado na guerra civil as medidas, sendo todos os meses votada Hébert ou Danton, por exemplo. Foram
e no final terão sido mortos perto de 250 a permanência de Robespierre e dos seus depois estes e muitos outros, alguns deles
mil franceses, entre os confrontos militares aliados no Comité de Salvação Pública, por profundamente implicados no «Terror» e
e a guilhotina. exemplo. A 10 de junho, votaram também acusados de excessos e matanças injustifi-
A política do «Terror» permitiu salvar a cadas – como foi o caso de Collot d’Herbois,
Revolução, com o fim da guerra civil, a recu- líder da repressão na cidade de Lyon – que
peração do controlo interno e uma resposta ajudaram a construir o mito de que tudo
eficaz à guerra externa, mas os revolucio- nesta altura teria sido pensado e liderado por
nários continuaram a ser pressionados em Robespierre, caraterizado como um ditador
1794. Por um lado, as fações mais radicais sanguinário que, no fundo, como demons-
e os sans-culottes exigiam que o «Terror» AS FAÇÕES MAIS trava a caricatura da época, não se coibia de
fosse ainda mais longe, pois havia cons- guilhotinar todos os que se lhe opunham,
RADICAIS QUERIAM
tantemente boatos de novas conspirações incluindo o próprio carrasco. Estava criado
e traições. Por outro lado, um grupo de QUE O ‘TERROR’ SE o mito histórico!
revolucionários, chamados «indulgentes» PROLONGASSE, POIS Para saber mais:
ou moderados, conotados com Danton, Alves, Daniel, A Revolução Francesa – Das Origens
consideravam que já não havia razão para HAVIA CONSTANTES ao Terror: Cinco Momentos Decisivos, in Fátima Sá
e Melo Ferreira, Isabel do Carmo e Miriam Halpern
continuar a violência política. Entre março BOATOS DE Pereira (eds.), Rebeliões, Revoltas e Revoluções,
Lisboa, Imprensa Naciona-Casa da Moeda, 2022, pp.
e abril de 1794, radicais e indulgentes foram
presos, julgados e guilhotinados às ordens
CONSPIRAÇÕES 31–114. Andress, David, O terror: a guerra civil na
Revolução Francesa, Porto, Civilização, 2007. Tackett,
Timothy, The Coming of the Terror in the French
do Comité de Salvação Pública, à época Revolution, Harvard, Harvard University Press, 2015.
VISÃO H I S T Ó R I A 29
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
O voo da águia
Coroado de louros como um César, Napoleão Bonaparte
não foi um revolucionário, mas transportou para fora de
França, na ponta das baionetas, o essencial da Revolução
Por Luís Almeida Martins
‘A
inda há de vir um César!» Assim tratado de Campo Formio, o domínio do norte
se exprimiu premonitoriamente, da Itália e dos Países Baixos, reservando aos
manifestando os seus receios, o austríacos o controlo de Veneza – cláusula esta
radical Robespierre. A previsão do que Bonaparte não respeitaria, pois entrou
líder revolucionário cumprir-se-ia com as suas tropas na velha «Rainha do Adriá-
quando, após o golpe de estado de tico», pôs fim à milenar república depondo
9 de novembro de 1799 (18 do Brumário do o último doge e saqueando os seus tesouros.
ano VIII, pelo calendário republicano), Napo- Cada vez mais conhecido e influente na
leão Bonaparte, o general que se distinguira política francesa, e ciente de que para levar
nas guerras de Itália e na campanha do Egito, de vencida o arqui-inimigo da França revo-
concentrou em si o poder. lucionária, que era a Inglaterra, seria preciso
Napoleone Buonaparte – de seu nome de suplantar a Marinha britânica, o que se afigu-
batismo – nascera em Ajaccio, na Córsega, em rava utópico, Bonaparte planeou uma expe-
1769, meses depois de esta ilha do Mediter- dição militar ao Egito, destinada a minar os
râneo ter transitado da posse da república de interesses do Reino Unido no Mediterrâneo
Génova para a do reino da França. Até neste oriental e dificultar o acesso à Índia. Militar-
facto teve sorte o jovem rebento (um de oito mente, a campanha foi um insucesso (embora
irmãos sobreviventes à mortalidade infantil) tenha funcionado como tiro de partida para
de uma família da pequena nobreza local. Uma uma nova ciência, a egiptologia), e a dada
bolsa permitiu-lhe fazer estudos militares em altura Bonaparte deixou o seu exército nas
França, frequentando primeiro a academia margens do Nilo e regressou a França para
de Brienne e depois a Escola Militar de Paris. liderar o golpe de Estado de 18 do Brumário
O sotaque italiano e o próprio nome provo- (9 de novembro de 1799), que derrubou o
cavam o riso dos camaradas, o que o levou a Diretório e instaurou o Consulado.
afrancesar o nome para Napoleon Bonaparte.
Nomeado comandante da Artilharia das Autocoroado imperador
forças da República no cerco do Toulon, Na cavalgada de leis fundamentais que se
saiu-se bem da missão, com o resgate da ci- seguiam umas às outras, a Constituição do
dade antes entregue pelos monárquicos aos ano VIII (1800) fez de Bonaparte primeiro
ingleses, sucesso que lhe valeu a promoção a cônsul por dez anos. A Constituição do ano X (1802) transformou-o em cônsul vitalício,
general. Mas foi a repressão dos insurretos e a do ano XII (1804), pôs fim ao Consulado
monárquicos da jornada de 13 do Vindemiário e instituiu o Império. E, no dia 2 de dezembro
do ano IV (5 de outubro de 1795), em Paris, de 1804, Bonaparte coroou-se imperador na
que lhe trouxe súbita fama. catedral de Notre Dame de Paris, sob o nome
Durante o governo do Diretório, Bonaparte
O CONSULADO E O de Napoleão I, na sequência de um plebiscito
casou-se com Josefina de Beauharnais, viúva IMPÉRIO FORMAM que que lhe atribuiu 3,5 milhões de «sins»
do general Alexandre de Beauharnais (guilho- UM TODO CONTÍNUO, contra apenas 2580 «nãos». O próprio papa
tinado em 1794) e, protegido pelas novas auto- Pio VII, de certo modo «prisioneiro» de Bo-
ridades, foi nomeado comandante do exército QUE É A ÉPOCA naparte, visto que o território de Roma, antigo
de Itália, que obteve fulgurantes vitórias sobre NAPOLEÓNICA, Estado pontifício, fora anexado à República
as tropas piemontesas e austríacas. Depois de Francesa, foi forçado a deslocar-se a Paris
terem penetrado na Áustria e conquistado
ENTRE 1799 E 1815 para estar presente na cerimónia; mas não
novos triunfos, os franceses garantiram, pelo pode dizer-se que tenha presidido a ela, visto
30 V I S Ã O H I S T Ó R I A
18 de Brumário
Um golpe de Estado
fez de Napoleão
Bonaparte primeiro
cônsul, terminando
assim formalmente
a Revolução Francesa
Reformas administrativas
As reformas administrativas sucediam-se na
época napoleónica, alterando, por via de regra,
o rumo apontado pela Revolução, embora
sem perder de vista os seus princípios bási-
cos. A uniformização do Direito foi levada a
cabo através da elaboração de códigos, como o
Código Civil de 1804 (conhecido por «código
napoleónico»), que retomava alguns princí-
FRANÇOIS BOUCHOT/PALÁCIO DE VERSAILLES
VISÃO H I S T Ó R I A 31
FRANÇA // REVOLUÇÃO FRANCESA
32 V I S Ã O H I S T Ó R I A
nhol que teve de se haver, mas sim contra todo Quando toda a gente menos esperava, os
um povo, que, apoiado pelas tropas ingleses e trabalhos da reunião foram interrompidos
portuguesas, foi infligindo, em operações de pelo regresso ao poder de Napoleão, em Paris.
guerrilha e escaramuças, sucessivas derrotas O imperador derrubado tomara a resolução
ao Grande Exército. de abandonar o exílio que lhe fora imposto
Quando, em 1812, Napoleão sonhou subme- na ilha italiana de Elba (pertencente à França
ter a Rússia, também o povo do país invadido desde a assinatura do tratado de Lunéville) e,
lutou ao lado dos exércitos do czar e, com a acompanhado de um milhar de fiéis, desem-
ajuda do rigoroso inverno – o «general Inver- barcar no sul de França. Desde o golfo Juan,
no, como costuma dizer-se – , transformou a na Provença, até Paris, foi uma caminhada
derrota napoleónica em derrocada. triunfante, com apoiantes a aplaudirem Na-
A Alemanha, por sua vez, revoltou-se em poleão e tropas encarregadas de lhe barrar o
1813, e a França acabou por ser invadida por caminho a juntarem-se a ele. Mas esta «se-
tropas de uma coligação de potências inimigas gunda vida» do Império e do seu homem forte
em 1814, levando à abdicação de Napoleão e não duraria muito tempo, pois os chamados
JACQUES-LEWIS DAVID/MUSEU DO LOUVRE
à restauração monárquica na pessoa de Luís «Cem Dias» terminaram com a derrota defi-
XVIII, um irmão mais novo do malogrado nitiva das tropas napoleónicas em Waterloo,
Luís XVI que estivera exilado em Inglaterra. na atual Bélgica, face aos ingleses comandados
por Wellington e aos prussianos de Blücher,
O Congresso de Viena em 18 de junho de 1815.
e os Cem Dias O segundo exílio de Napoleão, na remota
Vitoriosos, os Aliados reuniram-se em Viena ilha de Santa Helena, uma pequena colónia
para redesenhar o mapa da Europa. O aus- britânica no Atlântico Sul, seria definitivo. Ali
tríaco Metternich, o britânico Castlereagh e viria a morrer, em 1822, o homem cuja esta-
ses, que citava com frequência nas ordens de o francês Talleyrand, juntamente com o czar tura dominara a Europa durante três lustros
serviço. O mesmo faziam outros comandan- russo Alexandre I, que esteve pessoalmente – ditando as suas memórias a um grupo de fiéis
tes britânicos, como Beresford ou Trant, este presente, desempenharam um papel de pri- acompanhantes, sobretudo ao conde de Las
último filho de um comerciante de vinho do meiro plano nesse famoso Congresso de Viena, Cases, autor do Memorial de Santa Helena.
Porto e conhecedor da nossa língua. que se prolongou por nove meses (de setembro Depois da batalha de Waterloo, os parti-
A Europa napoleónica parecia ter alcança- de 1814 a junho de 1815), com as reuniões cipantes no Congresso de Viena, novamente
do o apogeu em 1810-1811. A França, com as entremeadas com bailes e outros festejos. tranquilizados, redigiram uma ata final que
fronteiras muito alargadas à custa de territó- insistia no princípio da «legitimidade», sem
rios das atuais Bélgica, Holanda, Alemanha e que, porém, nem todos os soberanos do Antigo
Itália, contava então com 130 departamentos Regime tivessem visto restabelecidos os seus
– por exemplo, Roma, Bruxelas, Amesterdão alegados direitos. Por exemplo, os cerca de 300
ou Hamburgo eram prefeituras francesas. Na- estados alemães existentes em 1789 viram-se
poleão reorganizou a Itália e a Alemanha, onde reduzidos a 39, cada um deles dotado de es-
o Sacro Império desapareceu, substituído em cassos poderes e agrupados na Confederação
1806 pela Confederação do Reno, pratica- Germânica. O antagonismo crescente entre
mente um protetotado francês. Membros da Berlim e Viena desfez as esperanças que mui-
família Bonaparte reinaram em Espanha, em tos acalentavam num nacionalismo germâni-
Nápoles e na Vestefália, quando a maior parte co. Por outro lado, os Países Baixos austríacos
dos Estados do continente eram oficialmente
O HOMEM QUE formaram com as Províncias Unidas o reino
aliados da França. MANDOU NA da Holanda, para melhor se defenderem da
Mas, na realidade, este edifício só se man- EUROPA DURANTE vizinhança da fronteira norte de uma França
tinha de pé à custa da repressão que se abatia que continuava a ser vista como ameaçadora
sobre quem se lhe opunha, crescendo cons- 15 ANOS MORREU pelos restantes países do continente.
tantemente o número de opositores à medida EXILADO NUMA ILHA As monarquias da Europa de 1815 quiseram
que o Império também se alargava. ressuscitar o passado, mas é lícito perguntar
A queda de Napoleão e da sua construção
REMOTA, DITANDO se seria possível passar uma esponja sobre a
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imperial estava próxima. Quando, em 1808, o AS SUAS MEMÓRIAS tempestuosa epopeia da França revolucio-
novo árbitro dos destinos da Europa interveio nária e da sua continuidade no Consulado e
em Espanha, não foi contra o exército espa- no Império.
VISÃO H I S T Ó R I A 33
FRANÇA // OPINIÃO
Decifrar o enigma
da Revolução Francesa
‘Foi a Revolução Francesa, e não a Americana, 1830 (derrube do absolutismo), de fevereiro
que incendiou o mundo’ de 1848 (reimplantação da República) e em
(Hannah Arendt, On Revolution) março-maio de 1871, na sangrenta aventura
coletiva da Comuna de Paris?
O P
que se designa como Revolução Francesa costuma incluir ara decifrar o enigma, será útil analisar-
um período que decorre de 20 de junho de 1789, com a mos alguns exemplos do impacto univer-
POR VIRIATO formação da Assembleia Nacional Constituinte (a tomada sal da Revolução Francesa ao longo do
SOROMENHO MARQUES da Bastilha é sobretudo um símbolo), e se conclui, uma dé- tempo. Desde logo, importa referir que muitos
Professor
catedrático da cada depois, em 10 de novembro de 1799, com a abolição do dos países ocupados pelas tropas napoleónicas
Faculdade de Letras Diretório e a sua substituição pelo Consulado de Napoleão encontraram apoiantes de Paris entre elemen-
da Universidade de Bonaparte. Durante a fase inicial da Revolução foram aprovadas três tos dos grupos sociais mais cultos e reformis-
Lisboa, onde rege as
Constituições (1791, 1793 e 1795), correspondendo, respetivamente, ao tas. O Código Civil (1805) foi exportado para
cadeiras de Filosofia
Social e Política período da monarquia constitucional, ao auge republicano da Convenção numerosos territórios, como por exemplo a
e de História das e ao seu refluxo com a formação do Diretório. O que é que distingue Baviera – erigido ao estatuto de reino por
Ideias na Europa a Revolução Francesa e lhe confere a sua aura perpétua, não apenas Bonaparte –, pela mão do famoso jurista An-
Contemporânea e
gaulesa, mas também universal, que parece sempre pronta a ressurgir? selm Feuerbach. Contingentes de voluntários
coordena o mestrado
em Filosofia da Apesar da sua produtividade constitucional, a verdade é que as primeiras internacionais lutaram nas fileiras imperiais,
Natureza e do constituições contemporâneas surgiram na sequência da Revolução como foi o caso da Legião Portuguesa, onde se
Ambiente Americana, que levou à independência das treze colónias inglesas na destacou o malogrado general Gomes Freire
América do Norte. As primeiras leis fundamentais foram de âmbito de Andrade, que esteve na invasão da Rússia
estadual, aprovadas logo após a Declaração de Independência em 4 e em várias outras campanhas. Em 1830, Al-
de julho de 1776. De âmbito federal, foram produzidos dois institutos, meida Garrett – cuja família se exilara na ilha
Os Artigos de Confederação (1781), ainda durante a guerra contra o Graciosa para escapar às Invasões Francesas –,
Império Britânico, e depois a Constituição dos EUA, ainda vigente, num escrevendo do seu exílio londrino durante a
processo que decorre da Convenção de Filadélfia, em 1787, e se conclui nossa guerra civil entre liberais e absolutis-
com a aprovação da Bill of Rights (que corresponde aos dez primeiros tas, afirmava que até as tropas napoleónicas
aditamentos constitucionais) em 15 de dezembro de 1791. transportavam a liberdade e a «civilização»,
Se a Revolução Francesa não foi pioneira, ao contrário dos EUA, na como «contrabando» (1). Em janeiro de 1911,
criação de regimes representativos constitucionais, será que o seu pres- numa das suas últimas Farpas, Ramalho
tígio se ficou a dever à solidez dos seus resultados concretos? A resposta Ortigão revestia no imaginário da Revolu-
também parece só poder ser negativa. A Revolução Americana realizou ção Francesa a sua crítica ao «jacobinismo»
o seu programa, criando as bases do que Raymond Aron chamaria do Governo Provisório, chefiado por Teófilo
de República Imperial. Mesmo durante a Guerra Civil (1861-1865), a Braga, companheiro de tantas lutas: «Não me
Constituição foi preservada por ambos os lados da contenda, e mantida parece, portanto – repito –, que o Governo
após a vitória da União sobre os Estados secessionistas. Por contraste, Provisório de Lisboa seja mais autenticamente
a Revolução Francesa iniciou um período de 26 anos que arrastou a o prefácio de uma liberal república que o da
França e a Europa para lutas civis e guerras entre Estados sem paralelo mais despótica tirania» (2).
nos séculos anteriores, devorando milhões de vidas. Quando o Império Em terras germânicas, filósofos da dimensão
tombou, em Waterloo, a monarquia absolutista regressou. Durante de Kant e Fichte manifestaram o seu apoio
a década revolucionária propriamente dita, abundaram os episódios ao conteúdo universal de uma revolução que
de Terror Jacobino e Terror Branco, misturaram-se as violências das defendia a dignidade humana e a procura
lutas fratricidas com o combate organizado nos campos de batalha. da paz nos seus princípios constitucionais.
A pergunta mantém-se, pois. Se não foi por ter sido um sucesso, o que O naturalista Georg Forster representou na
faz conferir à Revolução Francesa o seu esplendor e força de atração? Convenção de Paris a cidade alemã de Mainz,
Por que foi ela invocada, sucessivamente, nas revoluções de julho de que havia aderido à Revolução Francesa, en-
34 V I S Ã O H I S T Ó R I A
tendida por Kant como potencial núcleo fe-
derativo aglutinador de Estados republicanos
no seu ensaio Para a Paz Perpétua, de 1795.
Existiu, na verdade, uma certa inveja alemã
pelo desembaraço prático dos franceses, ca-
pazes de combater fisicamente os bastiões da
tirania, enquanto os alemães tendiam para
o conformismo, pelo menos desde o esma-
gamento das revoltas camponesas de 1525.
Talvez para compensar a escassa vitalidade
teutónica, Heinrich Heine, em 1834, no seu
exílio em Paris, considerava que a coragem
política associada ao ato de decapitar um
rei (Luís XVI), tinha sido ultrapassada na
Alemanha pela coragem filosófica de Kant na
sua Crítica da Razão Pura (1781). Com essa
obra, começaria uma nova idade, a da morte
de Deus: «Esse livro é a espada com a qual o
deísmo foi executado na Alemanha (...) Esse
angustiante anúncio de morte talvez necessite
de alguns séculos até se ter espalhado univer-
salmente, mas nós há já muito que estamos
de luto. De profundis!» (3). Na mesma linha, o
jovem Marx, n’ A Ideologia Alemã, designaria
a filosofia de Kant como a «teoria alemã da
Revolução Francesa».
A
primeira chave do enigma da Revolução
Francesa talvez se encontre nesta aber-
tura para as ideias de justiça e razão uni-
versal que ela abriga. Foi, aliás, um dos seus
MUSEU DE BEAUVAIS
VISÃO H I S T Ó R I A 35
FRANÇA // OPINIÃO
Aquilo que separa a Revolução Americana compromissos entre o Norte e o Sul até que
a guerra entre Estados se tornou inevitável.
da Revolução Francesa é que a primeira O sucesso da Revolução Americana explica-se,
tentou realizar apenas a liberdade política assim, também pelo seu programa ambicioso,
mas limitado. Tratou-se de construir uma
(a criação de uma esfera de visibilidade arquitetura de leis e de instituições capazes de
comum, um espaço «comunicacional» garantir a liberdade política, numa socieda-
de onde, ao contrário da Europa, não existia
da esfera pública), enquanto, no seu auge, miséria social, pois a escravatura pertencia «a
a segunda sacrificou a liberdade (freedom) uma obscuridade ainda mais escura do que a
obscuridade da pobreza» (7).
à libertação (libération) da pobreza Na Revolução Francesa, pelo contrário, a
e da escassez, levando a revolução para pobreza esmagou os revolucionários entre o
dilema da liberdade política e os imperativos
um objetivo desmesuradamente inatingível de atender às emergências humanitárias, pro-
tagonizadas nos protestos e revoltas dos sans-
-cullotes. Antecipando o que se passaria nas
revoluções do século XX, lideradas por partidos
de orientação marxista, a «felicidade», vista
como libertação das várias faces da «necessi-
França saída do despotismo esses princípios constituíam uma quimera dade» material, passou a ter um lugar cativo no
de razão, condenada a chocar contra a força das coisas. discurso e nos programas políticos. Em súmula:
Como Hannah Arendt nota bem no seu ensaio Sobre a Revolução (1963), aquilo que separa a Revolução Americana da
Burke compreendeu que a Revolução Francesa rompia com o tradicional Revolução Francesa é que a primeira tentou
entendimento astronómico do conceito de revolução, que consistia no realizar apenas a liberdade política (a criação
retorno a um estado anterior. Por exemplo, a Revolução Inglesa de 1688 de uma esfera de visibilidade comum, um
visava restaurar as «liberdades inglesas», que estariam em perigo com espaço «comunicacional» da esfera pública),
a presença de um católico no trono. O próprio Thomas Jefferson, dois enquanto, no seu auge, a segunda sacrificou a
anos antes de escrever a Declaração de Independência dos EUA, havia liberdade (freedom) à libertação (libération) da
redigido uma respeitosa petição ao rei Jorge III, em que o argumento pobreza e da escassez, levando a revolução para
não se baseava nos «direitos naturais e inalienáveis», mas nos «direitos um objetivo desmesuradamente inatingível
dos súbditos de sua Majestade na América», colocando, assim, a tradição (8)
. Contudo, foi essa desmesura que, levando
no centro de gravidade (5). Dessa forma, em vez de uma restauração, de ao fracasso prático da Revolução Francesa,
um regresso a valores de tradição traídos, como sustentava Burke para paradoxalmente, a elevou a farol de esperança
as revoluções legítimas, a Revolução Francesa abria-se para um novo e para os pobres e explorados de todo o mundo,
subversivo modelo de inovação radical, desenhado por uma argumen- garantindo a sua persistente influência no curso
tação racional e doutrinária, rompendo com o passado, em vez de o da História contemporânea.
considerar como suporte fundamental. Não surpreende, por isso, que
(1)
Marx, perante a Comuna de Paris, e Lenine, em face da oportunidade Garrett, Almeida, Portugal na Balança da Europa – Do
que tem sido e do que ora lhe convém ser na nova
que culminaria na tomada do poder pelos bolcheviques, tenham usado ordem de coisas do mundo civilizado, Londres, S. W.
a mesma fórmula, de ressonâncias teológicas: a revolução constituía Sustainance, 1830, p. 35.
(2)
um «assalto ao Céu» (Angriff auf den Himmel). Por isso tem plena Ortigão, Ramalho, As Farpas de Ramalho Ortigão.
Escritos sobre Política – Antologia, Lisboa, 2020,
razão Hannah Arendt quando sublinha ter sido a Revolução Francesa, p. 315.
e não a Americana, a espalhar a chama revolucionária pelo mundo (6). (3)
Heine, H., Zur Geschichte der Religion und Philosophie
in Deutschland, Werke, ed. P. Stapf, Wiesbaden, s. d.,
A
Bd. 2, pp. 291 e 303-305.
segunda chave que ajuda a desvendar o enigma da atração uni- (4)
Burke, Edmund, Reflections on the Revolution in France,
versal e duradoura da Revolução Francesa reside numa outra and on the Proceedings in Certain Societies in London
Relative to That Event [1790], Conor Cruise O’Brien (ed.),
componente, que esteve completamente ausente da Revolução London-New York, Penguin Books, 1986, p. 58 ss.
Americana: a esfera da compaixão pelo sofrimento causado pela pobreza (5)
Jefferson, Thomas, A Summary View of the Rights of
e a miséria social. Nos EUA o problema não era, como em França, a British America (1774), in, The Complete Jefferson.
Containing his Major Writings, Published and
extrema miséria dos camponeses e dos indigentes urbanos, mas sim Unpublished, Except his Letters, organizado por Saul
o abismo ontológico entre os cidadãos livres e os seus escravos negros. K. Padover, New York, Duell, Sloan & Pearce Inc.,
A expressão «instituição peculiar» (peculiar institution), usada na 1943, pp. 5-22.
(6)
Arendt, Hannah, On Revolution, New York, Viking
época para designar a escravatura, mostra bem como a Revolução Press, 1963, p. 49.
Americana colocou esse tema fora da esfera da decisão política. E esse (7)
Arendt, Hannah, On Revolution, p. 66.
mesmo recalcamento seria repetido, posteriormente, em sucessivos (8)
Arendt, Hannah, On Revolution, p. 107-8.
36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
FRANÇA // REVOLUÇÃO DE 1830
OS ‘TRÊS (DIAS)
GLORIOSOS’
À queda do Império napoleónico seguiu-se
a Restauração bourbónica, e a esta
a «Monarquia de Julho», com um
«rei-cidadão» à cabeça. Mas foi preciso
que a violência voltasse às ruas
Por Daniel Alves
38 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A Liberdade
conduzindo o Povo
O célebre quadro
de Eugène Delacroix
(1798-1863) é um
verdadeiro ícone
do espírito
revolucionário
da França
VISÃO H I S T Ó R I A 39
FRANÇA // REVOLUÇÃO DE 1830
A
Revolução de 1830 foi, essen- mavera de 1830 se entrasse numa fase de
cialmente, um acontecimento radicalização política e, depois, na revolução.
parisiense, depois aceite pela Desde 1815, com o fim do Império na-
França provincial. Foi na capital poleónico e com a restauração no trono da
que se iniciaram os atos políti- monarquia Bourbon, que existia em França
cos e de violência popular que um relativo consenso entre a classe política,
caracterizaram a revolução e foi da capital que aceitava tacitamente o compromisso go-
que foram expedidas ordens e decretos para vernativo entre um rei com bastante poder
a construção administrativa e política do e um parlamento onde a oposição liberal se
novo regime a que a revolução deu origem, podia expressar seguindo as regras definidas
a chamada Monarquia de Julho. na Carta Constitucional de 1814.
A revolução ocorreu na sequência de uma Este compromisso foi possível duran-
tripla crise. Por um lado, uma crise económi- te o reinado de Luís XVIII, monarca que
ca motivada por más colheitas nos anos entre manteve um certo equilíbrio de forças na
1827 e 1832 e também pelas dificuldades administração do Estado, conseguindo a
financeiras que estavam a levar a falências colaboração de antigos oficiais e funcioná-
e ao desemprego nas indústrias manufatu- rios do tempo napoleónico. O seu último
reiras, motivadas pela redução do nível de governo foi chefiado pelo conde de Villèle,
consumo das populações. Por outro lado, um político conservador mas considerado
estes problemas estavam a influenciar um por todos como um administrador eficiente
conjunto de revoltas e demonstrações por e competente. Fruto deste relativo apazigua-
parte de artesãos nas cidades, em especial em mento pós-Congresso de Viena, na Câmara
ANÓNIMO/MUSEU CARNAVALET
Paris, e pela população campesina devido à dos Deputados a oposição liberal era quase
falta de cereais e ao aumento do preço do pão. incipiente, detendo, em 1824, cerca de 20
Por fim, em julho de 1830 estas contes- deputados num total de 430.
tações transformaram-se em revolução por Quando, em setembro de 1824, Carlos X
intermédio da terceira componente da crise, a sucedeu a Luís XVIII (os dois eram irmãos
luta política entre o rei Carlos X e a oposição de Luís XVI, guilhotinado em 1793), que
liberal que se já se fazia sentir, pelo menos, fugira da França logo a seguir à tomada da
desde 1827, em parte agravada pelo reforço Bastilha, as primeiras medidas do governo do monarca haveriam de se revelar determi-
da influência dos setores ultraconservado- novo rei, ainda controlado pelo mesmo conde nantes na viragem política que pouco depois
res que pretendiam tornar mais agressivo o de Villèle, pareciam contrariar a áurea de começou a verificar-se em França. Carlos X
programa político da Restauração iniciada político ultraconservador que tinha cultivado chegava ao poder com 67 anos de idade e não
em 1815. Todos estes fatores contribuíram enquanto conde de Artois. Efetivamente, conseguia esconder o facto de durante a sua
para que a oposição liberal se organizasse e nos primeiros meses do reinado foi abolida juventude, no eclodir da Revolução Francesa
conseguisse com maior facilidade garantir a censura e decretado um perdão parcial de 1789, ter sido um dos mais fervorosos de-
o apoio popular para as suas reivindicações, para os crimes políticos. Contudo, a própria fensores de uma repressão em grande escala
levando, em última análise, a que na pri- personalidade e história pessoal do novo que terminasse com os Estados Gerais e a
MESES ESCALDANTES
16 MAI 23 JUN 5 JUL 25 JUL 27-29 JUL
Para forçar
çar eleições e obter Surpreendentemente, o os Na tentativa de Carlos X suspende a Depois do encerramento
ioria parlamentar
uma maioria eleições
liberais vencem as elei promover o prestígio do liberdade de imprensa, de jornais que não tinham
el, Carlos X
favorável, legislativas. regime monárquico da dissolve de novo a Câmara cumprido a nova lei e de
dissolve a Câmara Restauração, o exército dos Deputados, altera a um abaixo-assinado de
utados.
dos Deputados. francês conquista Argel; lei eleitoral, recompõe jornalistas, o povo de Paris
inicia-se a anexação o Conselho de Estado e revolta-se durante as «Três
da Argélia, que estará convoca eleições para [jornadas] Gloriosas»; há
concluída 17 anos depois. setembro. combates por toda a capital
e Carlos X e a família fogem
do palácio das Tulherias.
40 V I S Ã O H I S T Ó R I A
28 de julho de 1830
As imediações da
Porta de Saint Denis
foram cenário de
violentos combates
no segundo dia da
grande insurreição
parisiense. Ao lado:
Carlos X
Assembleia Nacional. Quando esta última conder essas tendências, e um dos primeiros mais conservadores da política e da sociedade
triunfou, em parte como consequência da sinais disso mesmo foi a exigência de que a francesas, nomeadamente da Igreja.
queda da Bastilha, o então conde de Artois sua coroação fosse levada a cabo de forma O lado confessional do regime ficaria ain-
foi dos primeiros a emigrar e, em 1824, esta tradicional, na também tradicional catedral da espelhado através da aprovação de uma
faceta ultraconservadora ainda não estava de Reims, onde eram consagrados e ungidos lei que determinava a pena de morte para
esquecida na opinião pública francesa. os monarcas absolutos do Antigo Regime. aqueles que cometessem atos de sacrilégio.
Este ato foi logo entendido pela oposição Apesar de a mesma nunca ter sido aplicada,
Regresso ao tradicionalismo liberal como um regresso ao passado e um ficava o simbolismo da atitude do novo mo-
O certo é que Carlos X pouco fez para es- sinal do reforço da influência dos setores narca. Começaram então a circular boatos
VISÃO H I S T Ó R I A 41
FRANÇA // REVOLUÇÃO DE 1830
42 V I S Ã O H I S T Ó R I A
29 de julho vido aos rendimentos que provinham do mont, outro dos generais que tinham atrai-
de 1830 exercício de atividades profissionais. Num çoado Napoleão. Aos revoltosos juntavam-se
Foi na Rua de
país com aproximadamente 30 milhões de agora membros das Guardas Nacionais, que
Saint Antoine
que a população habitantes, o eleitorado era de cerca de 100 embora tivessem sido dissolvidas em 1827,
sublevada e mil, mas ficava agora ainda mais reduzido, a nunca tinham sido desarmadas.
as forças leais apenas 23 mil. Um último decreto marcava
a Carlos X se
novas eleições para o mês de setembro. Luta nas barricadas
enfrentaram
com especial vigor Os decretos foram conhecidos no dia 26 Os tumultos foram crescendo de intensidade
de julho e os dias seguintes foram de luta e e as forças do exército resumiam-se a cerca de
construção de barricadas nas ruas de Paris. 7 mil homens, sendo que muitos começaram
A primeira reação veio dos jornalistas li- a desertar em favor dos revoltosos ou recusa-
gados à oposição liberal, que declararam ram-se a disparar contra eles. À medida que
a atitude do rei como um ato de força ao cresciam os gritos contra o rei e o governo,
qual era necessário responder na mesma aumentavam os vivas à República e a Na-
moeda. No dia 27, o primeiro dos «Três Glo- poleão, assustando tanto os conservadores
riosos», como ficaram conhecidos estes dias como os próprios deputados liberais. A 28, a
de revolução, surgiram confrontos nas ruas, Guarda Nacional começou a ser novamente
com trabalhadores dos jornais, artesãos e reorganizada, sendo chefiada pelo eterno La-
estudantes a erguerem barricadas para se fayette, que já tinha participado na Revolução
oporem à polícia. O governo decidiu chamar Americana e na Revolução Francesa de 1789.
o exército, comandado pelo duque de Mar- A luta nas barricadas continuou.
A 29 de julho, Carlos X ainda tentou fa-
zer reverter a situação, demitindo Polignac
e anulando os decretos, mas nesta altura
Paris já era governada por uma comissão
municipal de tendência republicana e alguns
parecem ter preferido «Satanás» e os liberais deputados liberais estavam já em negociações
regressaram reforçados com 270 deputados! com o duque de Orleães no sentido de este
assumir o poder, evitando assim a violência
Os quatro decretos popular e os pedidos para a instalação de
A reação de Carlos X ao novo figurino do uma República ao estilo de 1792.
FRANZ XAVER WINTERHALTER/PALÁCIO DE VERSAILLES
parlamento foi um novo golpe de Estado, ou Carlos X não teve outra solução que não
assim foi entendido pela imprensa liberal. fosse a abdicação e a fuga para o exílio, fi-
Em 25 de julho de 1830 assinou quatro cando o trono vago em 3 de agosto. No dia
decretos que levariam a população de Pa- 7 o parlamento voltou a reunir-se e no dia 9
ris, instigada pelos liberais, para as ruas. Luís Filipe de Orleães era designado como
O primeiro decreto suspendia a liberdade «rei cidadão». Para a população de Paris,
de imprensa e impunha uma forte censura que tinha novamente sido guiada pela Li-
aos jornais, panfletos e opúsculos. O se- berdade (retratada no célebre quadro de
gundo decreto dissolvia o novo parlamento Eugène Delacroix), Luís Filipe era «o rei
antes mesmo de este ter oportunidade de das barricadas». No fundo, tinha sido a luta
se reunir, com a desculpa de que tinham da população nas ruas a fazer vencer a re-
ocorrido irregularidades eleitorais. O ter- volução. Nascia a chamada «Monarquia de
ceiro decreto mudava de forma drástica LUÍS FILIPE Julho» e impunham-se as barricadas como
as regras eleitorais, reduzindo o número um definitivo instrumento revolucionário,
de deputados para apenas 238 (eram 430 DE ORLEÃES FICOU determinante na próxima vaga de revoluções
antes) e apertando a malha do censo elei- CONHECIDO que afetariam a Europa entre 1848 e 1851.
toral, agora reduzido a apenas um quarto
dos eleitores mais ricos e apenas aqueles
E «REI CIDADÃO» Para saber mais:
Aprile, Sylvie; Caron, Jean-Claude; Fureix, Emmanuel
que fizessem prova dos seus rendimentos OU «REI DAS (eds.), La liberté guidant les peuples: Les révolutions
de 1830 en Europe, Seyssel, Editions Champ Vallon,
através do imposto sobre as propriedades.
BARRICADAS» 2013. Gildea, Robert, Children of the Revolution:
the French, 1799-1914, Harvard, Harvard University
Ficavam assim afastados da participação
Press, 2008. Pilbeam, Pamela M., The 1830 revolution
eleitoral todos aqueles que votavam de- in France, Macmillan, 1991.
VISÃO H I S T Ó R I A 43
FRANÇA // REVOLUÇÃO DE 1848
ABAIXO O REI!
Uma litografia
representando a
queima do trono
de Luís Filipe,
a 25 de fevereiro
de 1848, na Praça
da Bastilha, em Paris
ANÓNIMO/ MUSEU CARNAVALET/ GETTY IMAGES
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A PRIMAVERA
DOS POVOS
A França foi um dos países percorridos pelas grandes
convulsões do ano de 1848, que ficou gravado
com números de sangue – mas também de esperança
– na História da Europa
Por Ricardo Silva
VISÃO H I S T Ó R I A 45
FRANÇA // REVOLUÇÃO DE 1848
D
ificilmente um menino chamado itálica e forçou os reis a reagir para conter o Por coincidência, no dia seguinte à sua pu-
Charles Louis Bonaparte poderia descontentamento: com Carlos Alberto, da blicação, 22 de fevereiro de 1848, o povo de
ter tido um berço mais promissor. Sardenha, promulgou uma Constituição que Paris saiu às ruas para se manifestar contra o
Nasceu no apogeu da era napoleó- concedia liberdades civis, algo que o próprio governo de François Guizot, primeiro-minis-
nica, em 1808, quando os exércitos Fernando II se viu forçado a fazer. tro de Luís Filipe, exigindo reformas sociais
franceses dominavam meio conti- Mas a revolta não se limitou aos reinos ita- e políticas. Ao longo do dia o protesto subiu
nente e ameaçavam a outra metade. Quis o lianos, com as notícias dos acontecimentos na de tom até se converter em insurreição, com
acaso que nesse mesmo dia o rei Fernando Sicília a servirem de rastilho para uma vasta artesãos, operários e estudantes a exigirem
VII de Espanha se avistasse em Bayonne com onda insurrecional. Era o cenário idealiza- o sufrágio universal e apoios sociais para
o tio e futuro padrinho de Charles Louis, um do pelos intelectuais que teorizavam sobre combater a miséria. Não tardou muito até
génio militar chamado Napoleão Bonaparte, novos modelos sociais revolucionários, como se fazer ouvir o apelo ao regresso da Repú-
o homem mais temido da Europa. Karl Marx e Friedrich Engels, dois prussianos blica, o que levou à intervenção da Guarda
Tudo parecia encaminhado para um futuro a viver em Inglaterra que se destacavam pelo Nacional e à morte de cerca de 500 pessoas.
de grandeza, mas em 1815 ocorre a queda defi- seu ativismo político e pela publicação de O medo deu lugar à raiva, após os corpos
nitiva do imperador francês, e com ele cai tam- textos de crítica ao capitalismo. As notícias serem colocados em carros iluminados que
bém o futuro risonho de Charles Louis. Exilado chegaram numa altura crucial, com a publi- circularam pelas ruas num cortejo que fo-
na Alemanha e na Suíça, deixou-se encantar cação do Manifesto Comunista, a 21 de feve- mentou intensos combates urbanos e levou
pela veia revolucionária da Carbonária, de que reiro de 1848, texto em que os dois filósofos multidões enfurecidas a tomarem de assalto
foi membro. A sua vida sofre nova reviravolta definiam a luta de classes de forma analítica os edifícios do poder.
em 1832, quando morre o único filho de Napo- e apelavam à revolução como método de luta Ao amanhecer o dia 24, o rei foi a terreiro
leão Bonaparte e ele se torna o herdeiro formal para pôr fim à exploração das massas. inspecionar as tropas com que contava es-
do antigo imperador. Com apenas 24 anos e magar a revolta, mas foi vaiado. Os arsenais
uma mente sonhadora, decide reclamar o lugar Revolta em Paris rebelaram-se e Luís Filipe viu-se forçado a
do tio e volta a França em 1836, para tentar O Manifesto era um guião para o estilo de abdicar e a procurar refúgio em Inglaterra.
amotinar a guarnição de Estrasburgo contra revoltas prestes a rebentar por toda a Europa. Após a restauração da República, formou-se
o rei Luís Filipe I. Acaba por ser derrotado e um governo que juntava elementos modera-
é forçado a escapar para Inglaterra, mas não dos da burguesia, republicanos e socialistas,
desiste e regressa em 1840, para tentar novo com um programa progressista que visava
golpe. Desta vez é preso e condenado a prisão reformar a sociedade. O sufrágio universal (só
perpétua, e foi nesse momento de desespero para eleitores masculinos) foi estabelecido, a
que escreveu L’extintion du paupérisme, um jornada de trabalho foi reduzida de 12 para 10
ensaio em que analisa os problemas sociais do horas diárias e criaram-se Oficinas Nacionais
momento para desenvolver um «bonapartismo para combater o desemprego; contudo, o
INSURGENTE DE 1848/BNF
popular» como solução geral, o que lhe valeu direito ao trabalho foi esvaziado de efeitos
o apoio do proletariado. palpáveis e os direitos laborais continuavam
a primar pela ausência, devido à pressão da
O rastilho siciliano burguesia que temia qualquer ameaça ao seu
Demos agora um salto até à Sicília. Nesta ilha poder económico.
conhecida pela sua resistência aos impérios
que a dominaram ao longo dos tempos, a re- A Europa em chamas
volução que estalou a 12 de janeiro de 1848 Com os acontecimentos de França a mos-
parecia ser apenas mais um episódio local. trarem que era possível derrubar até um dos
A IMPETUOSA ONDA
Começou como um protesto contra Fernando mais poderosos monarcas europeus, a onda
II, que reinava na ilha e em boa parte do sul de REVOLUCIONÁRIA revolucionária alastrou rapidamente aos es-
Itália a partir do seu palácio em Nápoles, exi- INICIADA EM tados alemães, onde uma revolução eclodiu
gindo-lhe o retorno do governo parlamentar em Baden a 1 de março. Dois dias depois o
outorgado durante as guerras napoleónicas. FRANÇA ALASTROU povo saiu às ruas em Munique e o rei Luís I da
A revolta popular alastrou por quase toda a RAPIDAMENTE Baviera teve de abdicar, seguindo-se um mês
ilha, permitindo a restauração da Constitui- com o continente a ferro e fogo e rebeliões
ção de 1812 e a formação de um parlamento.
AO RESTO DO a eclodirem em Viena, Budapeste, Berlim,
Nos meses seguintes a Sicília tornou-se uma CONTINENTE EUROPEU Milão, Polónia e Veneza, prolongando-se e
autêntica república rodeada por monar- espalhando-se nos meses seguintes à Moldá-
quias, o que inspirou protestos na península via, ao Palatinado, à Transilvânia e à Valáquia,
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numa vaga a que nem Roma escapou, com
Napoleão III Aos o papa Pio IX em fuga quando a República
24 anos, decidiu foi proclamada na Cidade Eterna.
reclamar o lugar
Mas, apesar das derrotas dos últimos tem-
do tio, Napoleão
Bonaparte, e voltou pos, os exércitos monárquicos começaram
a França para tentar a reagir e a Sicília voltou a mostrar o futuro
destronar Luís da Europa. O rei Fernando II começou por
Filipe I
reforçar a guarnição do forte de Messina, a
única posição que lhe restava, com soldados
napolitanos e mercenários suíços, um podero-
so parque de artilharia e apoio naval, iniciando
uma campanha para reconquistar a ilha.
No início de setembro, Messina foi alvo
de bombardeamentos, seguindo-se um as-
salto que desbaratou as defesas e deixou a
população à mercê das tropas. As igrejas
onde grupos de mulheres procuravam refúgio
tornaram-se cenário de violações que termi-
navam numa orgia homicida, com crianças
e idosos despedaçados em plena rua com
golpes de armas brancas e doentes esfaquea-
dos nas camas onde repousavam. Famílias
inteiras foram devoradas pelas chamas dos
incêndios provocados pelos soldados, que
não hesitavam em pegar fogo a ruas inteiras
em busca de pilhagem. A violência em Mes-
sina motivou uma resistência siciliana que se
prolongou até maio de 1849, mas que, sem
apoio externo, era incapaz de ter sucesso.
No continente a situação não era me-
lhor, com as tropas da Confederação Alemã
a dominarem Baden e as forças prussianas
a intervirem no Palatinado, na Polónia e em
Dresden. Os russos aproveitaram para ocu-
par a Moldávia e os otomanos a Valáquia,
os austríacos reconquistaram Veneza e o
papa voltou a Roma com o apoio de forças
espanholas e francesas. Seguiu-se a repres-
são generalizada numa Europa onde o povo
ousara sonhar com uma sociedade diferente.
O II Império Francês
Voltemos agora a Charles Louis Bonaparte,
que deixámos refugiado em Londres. Em
1848, com a instauração da II República
Francesa, volta a França para participar na
vida da jovem democracia e acaba por ser
eleito à Assembleia Constituinte, onde se des-
GEORGE EASTMAN HOUSE
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FRANÇA // REVOLUÇÃO DE 1848
HENRI FÉLIX PHILIPPOTEAUX
Revolução de 1848 Falando às massas, o famoso poeta republicano Lamartine opõe-se ao uso da bandeira vermelha,
alegando ser emblema do terror e da luta contra as desigualdades, substituindo-a pela tricolor
seguir os adversários, num mandato que se a Roménia. Procurou também modernizar a popularidade do imperador. O escritor Victor
caracterizou por um autoritarismo crescente economia através de fortes investimentos na Hugo apelidou-o de «Napoleão, o Pequeno»
que delapidou muito do seu apoio popular. ferrovia (que permitiram passar de 3500 km e na imprensa multiplicavam-se os artigos a
Em 1851, quando se aproximavam novas elei- de via férrea em 1851 para mais de 20 mil em criticar a falta de soluções para a miséria que
ções presidenciais que lhe estavam vedadas 1870), encorajando a constituição de novos grassava no país. Era um perigo interno que
pela Constituição, promove um golpe e im- bancos (como o Crédit Lyonnais e a Société punha em causa a estabilidade do regime,
põe uma ditadura com o apoio da burguesia Générale) e renovando Paris com a abertura mas era a nível externo que se encontrava o
e do exército, fazendo-se entronizar como de amplos boulevards e jardins e a construção maior risco. Com a ascensão económica e mi-
Napoleão III, imperador dos franceses, e de estações majestosas ou da Ópera de Paris, litar da Prússia, o poder francês viu-se amea-
procurando emular o seu tio com a promessa à época o maior teatro do mundo. çado por um rival que procurava unificar os
de um renovado Império Francês. estados alemães e criar uma potência capaz
A governação de Napoleão III caracteri- O regresso da República de dominar a Europa. A tensão acabou por
zou-se por um liberalismo autoritário que Apesar de todo o progresso económico, o levar à eclosão da Guerra Franco-Prussiana, a
passou por várias fases. No início combateu estilo autoritário de Napoleão III e a falta de 19 de julho de 1870, e que se revelaria trágica
a oposição no parlamento e tentou restringir legitimidade democrática tinham minado a para Napoleão III. A batalha de Sedan ter-
a imprensa, procurando governar de forma minou de forma humilhante para o exército
absoluta num país conhecido pela sua re- francês, com a captura do próprio imperador,
sistência ao absolutismo. Depois moderou o que deixou a França sem liderança numa
a abordagem, com a suspensão de algumas A GOVERNAÇÃO altura crítica.
restrições às liberdades civis e o aligeiramento O vazio de poder foi rapidamente ocupa-
da censura. A nível externo, procurou ser o ár-
DE NAPOLEÃO III do pelos que há anos conspiravam contra
bitro das grandes questões mundiais através CARACTERIZOU-SE Napoleão III, abrindo caminho para a sua
de uma ação diplomática musculada, parti- POR UM LIBERALISMO deposição formal e o fim do II Império, o
cipando na Guerra da Crimeia contra a Rús- que – com os acontecimentos da Comuna
sia, aliando-se aos britânicos contra a China AUTORITÁRIO QUE de Paris pelo meio – possibilitou o ansiado
na Segunda Guerra do Ópio, intervindo no PASSOU POR VÁRIAS retorno da República Francesa, modelo para
México com a Legião Estrangeira e apoian- republicanos de países como Portugal, que
do a independência de estados controlados
FASES em 1910 teve a sua própria revolta popular
pelo Império Otomano, como a Moldávia e e a instauração da República.
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Literatura,
sões territoriais consideráveis. No entanto,
a derrota na batalha de Waterloo, em 1815,
levou à queda de Napoleão e à restauração
o retrato social
da monarquia. Nesta altura, sobe ao trono
Luís XVIII, seguindo-se o breve reinado de
seu irmão, Carlos X. Todo este período foi
marcado por conflitos políticos e sociais, com
Stendhal, Balzac, Hugo, Flaubert, Zola, Baudelaire, crescente insatisfação do povo.
Rimbaud e muitos outros foram testemunhas críticas Consequentemente, em julho de 1830
de uma época pontuada pelas revoluções liberais sucederam-se Les Trois Glorieuses (As Três
Gloriosas), uma sequência de três levan-
Por Rosa Fina* tamentos contra Carlos X a 27, 28 e 29 do
referido mês, que culminaram na abdicação
En France, il y a toujours une révolu- foi na verdade mais sinuoso em França do de Carlos X e na ascensão de Luís Filipe I
tion possible à l’état de calorique latent. que noutros países que mimetizaram o lema ao trono – a Monarquia de Julho. Embora
«Liberdade, Igualdade, Fraternidade». Para tenha sido uma monarquia constitucional,
Q
Victor Hugo, Choses Vues, 1848
enquadrar estas transformações sociais e po- Luís Filipe I enfrentou críticas crescentes
uando se fala de revolução em líticas, serão apontados os principais aconte- devido às suas políticas conservadoras e ao
França, a primeira associação que cimentos que marcaram e moldaram o século descontentamento social. Dezoito anos de-
é feita é com a Revolução France- XIX francês. pois, em 1848, há novo levantamento social
sa de 1789, provavelmente a mãe Logo após a Revolução de 1789, desen- e político que leva à proclamação da II Re-
de todas as revoluções europeias volveram-se as Guerras Revolucionárias pública Francesa, marcada pela adoção da
subsequentes que libertaram aos Francesas, das quais Napoleão Bonaparte Constituição, o sufrágio universal masculino
poucos os países dos seus governos absolutis- emergiu como um líder militar e político e diversas reformas sociais. Na subsequente
tas. No entanto, depois da Revolução Francesa proeminente. Em 1804, autoproclamou- eleição, Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho
aconteceram outras transformações mais ou -se imperador, estabelecendo o I Império e herdeiro de Napoleão Bonaparte e depu-
menos inesperadas, entre elas uma das mais Francês. A sua liderança foi marcadamente tado à Assembleia,
Assem chega a presidente nesse
marcantes: a ascensão ão de Napoleão Bonapar- centralizada e trouxe reformas administra- mesmo ano – o primeiro presidente francês
te ao poder. O caminho inho para a República tivas, legais e educacionais, além de expan- eleito por voto direto. No entanto, como não
lhe fosse permitido
perm concorrer a um segundo
mandato, lide
lidera um golpe de Estado em 1851,
que acaba por estabelecer o II Império Fran-
cês no ano seguinte,
seg como legítimo herdeiro
do trono imperial
imp de seu tio.
Luís Napoleão
Napo Bonaparte, agora com o
título de Napoleão
Nap III (considera-se que o
«II» foi o filh
filho de Napoleão, morto aos 21
ETIENNE CARJAT (VICTOR HUGO); NADAR (ALEXANDRE DUMAS)
Victor Hugo
e Alexandre Du Dumas
Os seus romanc
romances
retratam a realid
realidade
social e política da
época, denuncia
denunciando
injustiças e
desigualdades
Cosette A personagem m
eis,
fictícia de Os Miseráveis,
s
de Victor Hugo, vive as
agruras das camadas mais
baixas da sociedade
49
TEMA // CABEÇA
anos), tornou-se assim imperador e estabe- tância de não recuar diante dos obstáculos,
leceu o seu governo, que se caracterizou por
EM OS MISERÁVEIS, o excerto instiga os leitores a perseverarem
diversas reformas urbanas, modernização DE VICTOR HUGO, na luta por mudanças sociais significativas.
económica e expansão colonial. Nunca arregi- O ESPÍRITO Por outro lado, as revoluções liberais tam-
mentando porém a simpatia da classe política bém influenciaram a temática e a estética
ou cultural, que não se coibiu de apoucar a DA REVOLUÇÃO literária da época. A ênfase na liberdade in-
figura até pela sua condição física, em di- ESTÁ LATENTE dividual, na justiça social e na luta contra a
versos panfletos, livros e artigos de impren- tirania refletiu-se profusamente nas obras
sa – Victor Hugo, por exemplo, apelidava-o
EM TODA A OBRA literárias. A literatura romântica, e princi-
de «Napoleão, o Pequeno». Foi, no entanto, palmente a realista, popular durante o século
a derrota na Guerra Franco-Prussiana, em XIX, explorou as contradições e os conflitos
1870, nomeadamente na batalha de Sedan, que se vão cruzando no seu caminho, Victor sociais resultantes desses eventos históricos.
a 2 de setembro, que levou à queda deste II Hugo retratou as condições sociais nefastas vi- Autores como Honoré de Balzac, Émile Zola,
Império e à proclamação da III República, vidas pelas camadas mais baixas da sociedade. Stendhal e Gustave Flaubert capturaram a
que se estendeu até 1940. A obra denunciou a pobreza, a exploração e a atmosfera turbulenta e as mudanças sociais
injustiça social, influenciando a opinião públi- nas suas narrativas.
A época do Romantismo ca e despertando a consciência coletiva sobre as
Tendo em conta este turbilhão de aconte- desigualdades sociais da época. Decorrendo a Realismo e Naturalismo
cimentos e mudanças sucessivas do estado ação da narrativa entre a batalha de Waterloo Balzac e Zola, os grandes escritores france-
das coisas, a arte em geral e a literatura em (1815) e a instabilidade social de 1832, o espí- ses da corrente realista-naturalista, que ins-
particular não poderiam deixar de espelhar rito da revolução está latente em toda a obra. piraram outros escritores europeus, como
estes conflitos e sentimentos complexos que Dos diversos possíveis excertos, salienta- Eça de Queirós, por exemplo, tentaram
insuflaram a sociedade contemporânea. Na -se o seguinte, do capítulo XV do primeiro elaborar através da sua obra uma espécie
verdade, a literatura francesa do século XIX volume, dedicado à história de Fantine: «Ci- de retrato social da França sua contempo-
desempenhou um papel significativo como dadãos, a revolução não tem outro limite, rânea. Por sua vez, Balzac ensaia mesmo
instrumento de resistência e propaganda du- nem outro término, senão as necessidades, o que o próprio apelidava de tratado de
rante as revoluções liberais. Neste período os desconhecidos e as misérias humanas. «história dos costumes» com a sua Comé-
turbulento, a literatura protagonizou uma Ela abre o seu caminho, tudo abate, tudo dia Humana um conjunto de mais de 90
forma poderosa de comunicação e expres- despedaça, tudo arranca, tudo lança ao vento. títulos, todos com o tempo narrativo da
são das ideias revolucionárias, dando muitas Aprendei, pois, que não deveis ter medo de primeira metade do século XIX, abordando
vezes voz à insatisfação popular, desafiando um excesso; quando se está no combate, o que portanto as vicissitudes e vivências dos
o status quo e incitando à mudança social. se pode temer é o recuo.» Constata-se aqui a tempos revolucionários de 1830 e 1848.
Um dos principais exemplos dessa uti- revolução como um movimento implacável Gustave Flaubert, apesar de também tentar
lização da literatura como instrumento de em busca de justiça e igualdade, evocando retratar e assim criticar a sociedade francesa,
ancesa,
resistência foi o movimento literário conhe- a necessidade de confrontar e superar as distingue-se no estilo e na estética literária.
erária.
cido como Romantismo. Os romancistas dificuldades e desafios para alcançar uma A Educação Sentimental, romance publicado
blicado
românticos, como Victor Hugo, Alexandre sociedade mais justa. Ao enfatizar a impor- em 1869, narra a vida de um jovem francês,
rancês,
Dumas ou George Sand, escreveram am obras
que retratavam a realidade social e política
da época, denunciando injustiçass e desi-
gualdades. Estes autores abordaram m temas Gustave Flaubertbert
O romance
como a opressão das classes trabalhadoras,
adoras, a A Educação
corrupção política e as disparidadess sociais, Sentimental,
utilizando a narrativa ficcional comomo uma publicado em 1869,
ulariza
satiriza e ridiculariza
forma de expor as falhas do sistema. a.
ancesa
a sociedade francesa
Um dos exemplos mais notáveis táveis e sua contemporâneaânea
por isso incontornáveis é o romance
NADAR
50 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Rimbaud e Baudelaire
Os dois poetas
exploraram temas
controversos
e transgressores,
rompendo com
as convenções
literárias da época a monarquia e defendendo assim os ideais
revolucionários. A peça foi recebida com
grande entusiasmo pelo público e granjeou
rapidamente a fama de ser um símbolo da
ETIENNE CARJAT
ETIENNE CARJAT
resistência à opressão e à tirania.
Além dos romancistas e dramaturgos, tam-
bém os poetas desempenharam um papel
importante na utilização da literatura como
Frédéric Moreau, que testemunha a revolução disso, O Vermelho e o Negro aborda questões instrumento de resistência e propaganda. Poe-
de 1848 e a fundação do II Império e que se de classe e de poder. A obra reflete a tensão tas como Charles Baudelaire e Arthur Rim-
apaixona por uma mulher mais velha. O tom entre a aristocracia e a burguesia emergente, baud, que escreveu poemas como Fome ou As
da narrativa é por vezes irónico e pessimista, que foram fatores-chave nas revoluções do Catadoras de Piolhos desafiaram as conven-
ridicularizando, em diversas ocasiões, a socie- século XIX. O protagonista, um jovem de ções estabelecidas, rompendo com as normas
dade francesa. As inclinações de Frédéric para origem humilde, aspira a romper as barreiras literárias e explorando temas controversos e
o luxo, bem como a sua disposição incondi- impostas pela sociedade aristocrática; logo, transgressores. Isto pelo simples facto de a
cional para tudo fazer ao longo do livro com a sua trajetória pode ser interpretada como inspiração para a sua poesia, ao invés de temas
vista a alcançar esse modo de vida elevado, são uma crítica ao sistema de privilégios e desi- clássicos, elevados e bucólicos, ser buscada nas
alguns dos elementos que satirizam a socieda- gualdades sociais da época. ruas e naquilo que rodeia o indivíduo, que mais
de francesa de então, quando estavam prestes não é que a miséria e a pobreza. Com efeito, as
a fracassar uma vez mais os ideais burgueses Panfletos e poemas suas composições muitas vezes expressavam
liberais e a dar-se o regresso à monarquia. Movendo a perspetiva, a literatura oitocen- críticas sociais, políticas e morais, e foram
Em sentido semelhante, Stendhal, autor tista também foi usada como uma forma por isso recebidas com entusiasmo por uns e
de O Vermelho e o Negro, também recorre de propaganda política durante as revolu- desconfiança por outros.
ao romance para mostrar a sua perspetiva ções liberais. Panfletos, folhetins e peças de A relação das revoluções liberais do século
sobre um dos períodos mais conturbados teatro tornaram-se veículos importantes XIX em França com a literatura foi profunda
do século XIX francês – aquele que, como para disseminar ideias revolucionárias e e multifacetada. Através da literatura, os es-
vimos anteriormente, vai de 1827 a 1830. mobilizar a população em prol da mudança. critores da época deram voz às suas críticas,
O romance retrata a ascensão social e a luta de Essas obras literárias transmitiam mensa- esperanças e visões para uma sociedade mais
Julien Sorel, o protagonista, numa sociedade gens políticas e incentivavam a luta pela justa. Simultaneamente, as revoluções liberais
extremamente estratificada. O seu objetivo liberdade, igualdade e justiça. forneceram inspiração, temas e cenários para
é ascender na escala social unicamente por Exemplo de propaganda literária é a peça a criação literária. A literatura desempenhou,
meio das suas habilidades intelectuais e am- de teatro Ruy Blas (1838), novamente de pois, um papel ativo nas transformações po-
bição. Nesse sentido, a personagem de Julien Victor Hugo. A obra, cujo enredo se tecia líticas e sociais, ajudando a moldar as ideias
representa a aspiração individual no contexto em torno de um servo que consegue ascen- e as aspirações da época. Com efeito, esta
de um sistema social rígido e hierárquico, der socialmente através de uma mentira,
d interação entre eventos históricos e produção
características que eram contestadas e desa- abordava temas de corrupção política e de-
ab literária ilustra claramente o papel insubsti-
fiadas pelas revoluções do século XIX. Além sigualdade social, criticando abertamente
si tuível da arte tanto como espelho da socie-
dade, como enquanto agente de mudança.
Melhor dizendo, verificamos assim o duplo
papel da literatura: um plano passivo, sofren-
Honoré de Balzac do os efeitos dos acontecimentos históricos
Nas suas obras,
o autor descreve e refletindo-os, e paralelamente um papel
a atmosfera turbulenta ativo, interferindo, estimulando consciências
e as mudanças sociais e desencadeando ações. Em suma, esse é um
a que assistiu durante
dos principais valores da arte, no passado, no
toda a vida
presente e certamente no futuro.
VISÃO H I S T Ó R I A 51
FRANÇA // COMUNA DE PARIS
A REVOLUÇÃO ESMAGADA
Durante 72 dias, de 1871, a Comuna de Paris revelou-se uma tentativa
concreta de transformação social conduzida pelo povo da capital francesa
contra a santa aliança dos governos europeus – até ser afogada em sangue
Por Pedro Caldeira Rodrigues
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Março-maio
de 1871
As barricadas armadas
com canhões foram
o símbolo da mais
destruidora das
revoluções
de que Paris foi palco
BRAQUEHAIS/MUSEU CARNAVELET
VISÃO H I S T Ó R I A 53
FRANÇA // COMUNA DE PARIS
E
m março de 1871, o escritor, mate-
mático, filósofo e ex-militar russo
Piotr Lavrov, forçado a exilar-se em
França no ano anterior devido aos
seus ideais revolucionários, envia
uma correspondência desde Paris.
«Bem! Eis mais uma revolução! Mas
esta não se parece com as outras! Quem
está a liderar tudo isto? Pessoas conhe-
cidas! Sim, simples operários!... E é isso
que torna original este movimento dos
últimos dias… E que deve fornecer um
interesse particular a cada socialista, a
todo o aderente da Associação Interna-
cional dos Trabalhadores.»
PIERRE RICHEBOURG/METROPOLITAN MUSEUM/GETTY IMAGES
54 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ANÓNIMO/ MUSEU CARNAVALET
O colapso do Segundo Império
A Guerra Franco-Prussiana, que se travou germânicas em direção a
entre julho de 1870 e janeiro de 1871, Paris. A suprema humilhação
opôs a França à Prússia, que liderava uma gaulesa consistiu na unificação
coligação de Estados alemães. O pretexto dos estados germânicos e na
foi um incidente diplomático entre os proclamação do Império Alemão
dois países relacionado com a sucessão de Guilherme I (II Reich) em
da coroa de Espanha, quando o príncipe plena Galeria dos Espelhos do
alemão Leopoldo de Hohenzollern- Palácio de Versalhes, em 18 de
-Sigmaringen, primo do rei Guilherme I da janeiro de 1871, bem como na
Prússia, se disponibilizou para aceitar o ocupação simbólica da Avenida
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trono de Madrid, vago desde a revolução dos Campos Elísios pelas forças
de 1868. prussianas entre 1 e 3 de março.
A França opõe-se e o contencioso é Após o armistício de janeiro,
habilmente gerido pelo chanceler Otto von Guerra Franco-Prussiana Soldados germânicos junto a paz será ratificada em 10 de
Bismark – após a decisiva vitória prussiana de artilharia francesa capturada na batalha de Sedan maio de 1871 pelo Tratado de
sobre a Áustria, que tinha alarmado Paris Frankfurt. Para além da cedência
–, ao publicar o chamado Despacho de territórios da Alsácia-Lorena, no centro da Alsácia e de parte da Lorena, Paris é
Ems, um imbróglio diplomático que acirra do contencioso franco-alemão que se forçada a pagar uma indeminização de
o sentimento mútuo em favor do conflito prolongaria até à I Guerra Mundial. 5 mil milhões de francos.
armado. O descalabro militar francês a leste, Adolphe Thiers, chefe do poder executivo
Mal preparada pela França, esta guerra em particular a batalha de Sedan da então criada III República Francesa
resultaria num desastre para este país, (setembro de 1870, onde Napoleão III (Presidente a partir de 31 de agosto de
anunciando a queda do Segundo Império, é feito prisioneiro e inicia o seu exílio 1871), beneficiaria do apoio de Bismark
de Napoleão III (1852-1870), e a perda dos definitivo), abre as portas das tropas para esmagar a Comuna de Paris.
VISÃO H I S T Ó R I A 55
FRANÇA // COMUNA DE PARIS
A ‘Virgem Vermelha’
Louise Michel (1830-1905) é um figura personagens do romance princípios pelos quais morrerei»,
emblemática da Comuna de Paris, de Victor Hugo Os escreveu nas suas Mémoires.
participando em todos os combates, tanto Miseráveis. Seria de novo detida em 1883, e
políticos como militares. Presente em várias quando saiu da prisão era uma
Solteira, livre-pensadora, fundadora barricadas, Louise Michel foi mulher solitária. Viajou, instalou-se
de escolas livres, já em 18 de março detida após o esmagamento brevemente em Londres, deu dezenas
de 1871 se encontrava no alto de da revolução e levada a conselho de conferências e envolveu-se no
Montmartre empunhando uma de guerra, onde assumiu a responsabilidade movimento anarquista.
carabina. Durante a insurreição será dos seus atos, tornando o seu processo «Por todo o lado passaremos com a
guarda nacional, enfermeira, professora numa denúncia implacável contra bandeira negra das greves e a bandeira
primária (a sua profissão e vocação), Versalhes. «Se não forem cobardes, vermelha da revolução, porque chegou
animadora do Clube da Revolução e matem-me», lançou em desafio aos o momento de acabar com as nossas
presidente do Comité Republicano de juízes após a execução do revolucionário misérias», proclamava a inflexível
Vigilância do XVIII bairro de Paris. communard Théophile Ferré. opositora das «ruínas da sociedade
O poeta Paul Verlaine, que a batizou Deportada para a Nova Caledónia, a colónia burguesa».
de «Virgem Vermelha», escreveu uma francesa no Pacífico Sul, Louise Michel Reconhecida pela sua simplicidade e
balada em sua honra e Victor Hugo manteve a sua determinação, denunciou generosidade, nos últimos anos de vida
dedicou-lhe um poema. a pobreza, instruiu o povo canaca local, e percorreu as estradas de França em favor
Militante internacionalista sem nunca quando as tribos se revoltaram tomou o seu dos desempregados e dos grevistas e
ter militado numa organização socialista partido. em campanhas contra a pena de morte e
(apesar de ter aderido à I Internacional), Regressou a Paris em 1880, após uma contra as desigualdades homem-mulher.
Louise Michel destacou-se como pedagoga amnistia pressionada pelo então deputado Morreu em Marselha em 1905, vítima de
e mulher de letras revoltada contra as e futuro primeiro-ministro Georges pneumonia, saudando as revoluções na
desigualdades, escrevendo romances Clémenceau, com direito a acolhimento Rússia e na Polónia. O seu funeral atraiu
sob o pseudónimo de Enjolras, um dos triunfal. «Regressei da deportação fiel aos uma imensa multidão.
legal… Estes parisienses que se proclamam o de face ao cerco prussiano. progressão das tropas. Em algumas horas, é
suprassumo da civilização aceitam por chefes Após o armistício de janeiro, a Guarda declarada a Comuna de Paris.
energúmenos cujos interesses são, na maioria tinha federado os seus batalhões e contestava O movimento garante apoios imediatos
das vezes, opostos aos seus.» o governo de Thiers e um parlamento maio- nos bairros populares do leste da cidade e
A hostilidade à Comuna também se re- ritariamente monárquico após as eleições entre os seus dirigentes emergem diversas
velará entre muitos académicos, jornalistas legislativas de fevereiro de 1871, ambos estes correntes e de aspirações políticas, mas com
ou escritores, como George Sand, a autora órgãos de poder refugiados em Versalhes. um objetivo comum. A bandeira vermelha,
de Indiana, que denota particular desprezo As mulheres, que se levantavam cedo para símbolo da «República do trabalho» na ex-
pelos insurgentes, definidos como «loucos e ir ao mercado, emitiram o alerta sobre a che- pressão de Marx, é hasteada e flutua no topo
imbecis transformados em bandidos». gada do exército profissional. Os seus homens do Hôtel de Ville, a Câmara Municipal.
A Comuna de Paris inicia-se com a in- impedem a
surreição de 18 de março de Governo do povo
1871. Por ordem de Adolphe A maioria dos comandantes da Guarda
Thiers, chefe do governo provi- Nacional, provenientes das classes po-
sório, as tropas estacionadas em pulares e com influência no seu bairro,
Versalhes dirigem-se a Belleville identificam-se com os ideais republica-
e Montmartre para se apodera-
rem dos canhões e desarmarem
a Guarda Nacional de Paris, em
fase de pré-insurreição e inte- Comunicado,
março de 1871
grada por cidadãos comuns que
Informação aos cidadãos
entre setembro de 1870 e janeiro sobre as primeiras
de 1871 tinham defendido a cida- medidas da Comuna
56 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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Coluna de Vendôme
O monumento mandado
FRANCK/METROPOLITAN MUSEUM
erigir por Napoleão em 1806
para comemorar a vitória
de Austerlitz (em cima) seria
derrubado pelos communards
em maio de 1871 (ao lado)
nos radicais. Resistem ao desarmamento, dão de março o Jornal Oficial da Comuna de Paris. Gustav Courbet, o dirigente da AIT Eugène
início à construção das barricadas e aderem à Animados pela concretização da demo- Varlin, a militante feminista Nathalie Lemel
aventura de uma alteração da ordem vigente cracia participativa e do direito à insurrei- e Louise Michel (ver caixa).
conduzida pelas classes trabalhadoras. ção proclamado pelo Constituição de 1793, São adotadas medidas de emergência
Erguidas inicialmente de forma espontâ- empenhados na resolução da questão social, devido à deplorável condição económica e
nea, a edificação das barricadas será depois diversos grupos de ação política impõem sanitária das classes trabalhadoras. Promo-
coordenada por uma comissão especial da uma inédita forma de governar. Entre os ve-se a distribuição de pão e outros produ-
Comuna da Paris e por um diretor-geral. communards destacam-se os jornalistas tos essenciais, a proibição dos despejos das
Todos os cidadãos são convidados a participar Charles Delescluze e Jules Vallès, o pintor habitações ou medidas para evitar a falência
na sua construção. Em paralelo, emerge uma de quem não podia pagar as suas dívidas.
dupla soberania, o Comité central da Guarda A Comuna vai ocupar-se de todos os aspetos
Nacional e o Conselho geral da Comuna, elei- da vida da cidade.
to pela população no final do mês de março.
«A LUTA DE PARIS A sua primeira legitimidade reflete-se na
Durante os 72 dias da revolução, os pari- FEZ ENTRAR NUMA eleição dos seus membros, em 26 de março,
sienses põem em prática a ideia de um go- com mandatos revogáveis e o compromisso
verno do povo por si dirigido, e uma força
NOVA FASE A de informar em permanência a população
militar com capacidade para enfrentar um LUTA DA CLASSE dos bairros.
exército profissional. OPERÁRIA CONTRA Numerosos estrangeiros são incluídos
«Os proletários da capital, confrontados no processo. Muitos tinham combatido ao
com o incumprimento e as traições das classes A CAPITALISTA» lado das tropas francesas contra os invasores
governantes, compreenderam que chegou a Karl Marx prussianos após a proclamação da III Repú-
hora de salvar a situação e tomar em mãos a blica, incluindo Garibaldi e os seus «camisas
direção dos serviços públicos», indicava em 21 vermelhas». A eleição de um operário nas-
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FRANÇA // COMUNA DE PARIS
58 V I S Ã O H I S T Ó R I A
CHARLES MARVILLE/BNF
Hôtel de Ville O edifício da sede da Câmara Municipal de Paris foi incendiado durante a Semana Sangrenta
versaillais – como era designado o governo as tropas de Versalhes já detêm um terço da tos sumários durante cinco dias. Entre 35
de Thiers – contra antigos soldados que se capital. Os communards retiram-se para os mil e 40 mil detidos serão enviados para
tinham tornado communards e envolvidos seus bairros, enquanto as forças de Thiers, Versalhes. Após simulacros de processos
em escaramuças nos arredores da capital, a apoiadas por prussianos, ocupam edifícios judiciais, ordena-se a deportação de 3
Comuna faz seis reféns, incluindo o arcebispo próximos das barricadas para atingir de for- mil insurgentes para a Nova Caledónia,
George Darboy. ma mais eficaz os insurretos. a colónia francesa do Pacífico Sul. Outros
Em 16 de maio, uma imensa multidão as- Em 24 de maio os communards incen- conseguem escapar e seguir para Inglaterra,
siste ao derrube da coluna de Vendôme, «uma deiam o Hôtel de Ville, a Câmara Municipal, Bélgica ou Suíça.
afirmação do militarismo, uma negação do eliminando um elemento decisivo da defesa «Já não falamos de socialismo e fazemos
direito internacional», enquanto o ruído da leste da cidade. No mesmo dia, o arcebispo bem. Desembaraçámo-nos do socialismo», re-
artilharia de Versalhes se sentia cada vez Darboy e cinco outros reféns são executados, jubila Adolphe Thiers. O socialismo não está
mais próximo. enquanto prosseguem os bombardeamen- morto, mas exangue. Segue-se a «República
Em simultâneo, ocorrem levantamentos tos dos versaillais e da artilharia prussiana, dos duques, a República sem republicanos»
solidários em Lyon e Marselha, e ainda em como milhares de mortos nos combates. que ergueu a «ordem moral» em programa
Saint-Étienne, Limoges, Narbonne e Creusot, A repressão é brutal, feita à medida dos de governo, na expressão do intelectual repu-
mas sem o envio de reforços para Paris. receios que se tinham apoderado das «pessoas blicano e anticlerical Edgar Quinet.
As 12 mil tropas regulares na região pa- honestas» do partido da ordem. Numa sema- A amnistia dos sobreviventes communards
risiense que obedecem a Versalhes são re- na, entre 20 mil e 30 mil pessoas, envolvidas ocorre em 1880, após a eleição para a Presi-
forçadas após o chanceler alemão Bismarck ou não no movimento, são executadas su- dência da República, em janeiro do ano ante-
ordenar a libertação imediata de cerca de 60 mariamente. No cemitério de Père-Lachaise, rior, de Jules Grévy, um republicano convicto.
mil prisioneiros de guerra, que se juntam às cercados e flagelados pela artilharia inimiga, A Semana Sangrenta anuncia os demónios
forças de Thiers. os communards resistem até à noite de 27 de do século XX. Foi nessas últimas barrica-
Os versaillais serão 120 mil no início da maio. No dia seguinte, 147 sobreviventes são das que combateu Jean Baptiste-Clément,
Semana Sangrenta e entram na capital pela executados sumariamente frente ao «Muro que em 1866 tinha escrito a letra da canção
porta não vigiada do Point-du-Jour, em 21 dos Federados». Terminava a experiência da Le Temps des Cerises (O Tempo das Cerejas),
de maio. A Guarda Nacional contava com Comuna. com música de Antoine Renard composta
cerca de 220 mil membros, e cerca de 20 Desde a Praça do Châtelet, no centro da dois anos depois, e que para sempre ficará
mil ainda se batem pela Comuna. cidade, os prisioneiros são levados para o associada à Comuna da Paris.
Um dia após o início do ataque decisivo, quartel Lobau, onde decorrem fuzilamen-
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FRANÇA // COMUNA DE PARIS
‘N
os fins de maio de 1871 havia gran- estive com minha mulher... Que infâmia! Que patifaria!
de alvoroço na Casa Havaneza, ao Mas espalhara-se que o ministério recebera outro
Chiado, em Lisboa. Pessoas esbafori- telegrama mais desolador: toda a linha do boule-
das chegavam, rompiam pelos grupos vard da Bastilha à Madalena ardia, e ainda a Praça
que atulhavam a porta, e alçando-se da Concórdia, e as avenidas dos Campos Elísios até
em bicos de pés esticavam o pescoço, ao Arco do Triunfo. E assim tinha a revolta arrasado,
por entre a massa dos chapéus, para a grade do balcão, Eça numa demência, todo aquele sistema de restaurantes,
onde numa tabuleta suspensa se colavam os telegramas de Queiroz cafés-concertos, bailes públicos, casas de jogo e ninhos de
da Agência Havas; sujeitos de faces espantadas saíam prostitutas! Então houve por todo o Largo do Loreto até
consternados, exclamando logo para algum amigo mais pacato ao Magalhães um estremecimento de furor. Tinham pois as chamas
que os esperava fora: aniquilado toda aquela centralização tão cómoda da patuscada!
— Tudo perdido! Tudo a arder! Oh, que infâmia! O mundo acabava! Onde se comeria melhor
Dentro, na multidão de grulhas que se apertava contra o balcão, que em Paris? Onde se encontrariam mulheres mais experientes?
questionava-se forte; e pelo passeio, no Largo do Loreto, defronte Onde se tornaria a ver aquele desfilar prodigioso de uma volta do
ao pé do estanco, pelo Chiado até ao Magalhães, era, por aquele Bois, nos dias ásperos e secos de inverno, quando as vitórias das
dia já quente do começo de verão, toda uma gralhada de vozes cocottes resplandeciam ao pé dos fáetons dos agentes da Bolsa?
impressionadas onde as palavras «Comunistas! Versalhes! Petro- Que abominação! Esqueciam-se as bibliotecas e os museus: mas
leiros! Thiers! Crime! Internacional!» voltavam a cada momento, a saudade era sincera pela destruição dos cafés e pelo incêndio dos
lançadas com furor, entre o ruído das tipoias e os pregões dos lupanares. Era o fim de Paris, era o fim da França!
garotos gritando suplementos. Num grupo ao pé da Casa Havaneza os questionadores politi-
Com efeito, a cada hora, chegavam telegramas anunciando os cavam: pronunciava-se o nome de Proudhon que, por esse tempo,
episódios sucessivos da insurreição batalhando nas ruas de Paris: se começava a citar vagamente em Lisboa como um monstro
telegramas despedidos de Versalhes num terror dizendo os palácios sanguinolento; e as invetivas rompiam contra Proudhon. A maior
que ardiam, as ruas que se aluíam; fuzilamentos em massa nos parte imaginava que era ele que tinha incendiado. Mas o poeta
pátios dos quartéis e entre os mausoléus dos cemitérios; a vingança estimado das Flores e Ais acudiu dizendo «que, à parte as asneiras
que ia saciar-se até à escuridão dos esgotos; a fatal demência que que Proudhon dizia, era ainda assim um estilista bastante ameno».
desvairava as fardas e as blusas; e a resistência que tinha o furor Então o jogador França berrou:
de uma agonia com os métodos de uma ciência, e fazia saltar uma — Qual estilo, qual cabaça! Se aqui o pilhasse no Chiado ra-
velha sociedade pelo petróleo, pela dinamite e pela nitroglicerina! chava-lhe os ossos!
Uma convulsão, um fim do mundo — que vinte, trinta palavras de E rachava. Depois do conhaque o França era uma fera.
repente mostravam, num relance, a um clarão de fogueira. Alguns moços, porém, a quem o elemento dramático da ca-
O Chiado lamentava com indignação aquela ruína de Paris. tástrofe revolvia o instinto romântico, aplaudiam a heroicidade
Recordavam-se com exclamações os edifícios ardidos, o Hôtel de da Comuna — Vermorel abrindo os braços como o Crucificado,
Ville, «tão bonito», a rua Royale, «aquela riqueza». Havia indi- e sob as balas que o trespassavam gritando: Viva a humanidade!
víduos tão furiosos com o incêndio das Tulherias como se fosse O velho Delecluze, com um fanatismo de santo, ditando do seu
uma propriedade sua; os que tinham estado em Paris um ou dois leito de agonia as violências da resistência...
meses abriam-se em invetivas, arrogando-se uma participação de — São grandes homens! — exclamava um rapaz exaltado.
parisienses na riqueza da cidade, escandalizados por a insurreição Em redor as pessoas graves rugiam. Outras afastavam-se pálidas,
não ter respeitado os monumentos em que eles tinham posto os vendo já as suas casas na Baixa a escorrer de petróleo e a mesma
seus olhos. Casa Havaneza presa de chamas socialistas. Então era em todos
— Vejam vocês! — exclamava um sujeito gordo. — O palácio os grupos um furor de autoridade e repressão: era necessário que
da Legião de Honra destruído! Ainda não há um mês que eu lá a sociedade, atacada pela Internacional, se refugiasse na força
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dos seus príncipes conservadores e religiosos, cercando-os bem Não fazem senão desacreditar-nos... Destroem no povo a veneração
de baionetas! Burgueses com tendas de capelistas falavam da pelo sacerdócio...
«canalha» com o desdém imponente de um La Trémouille ou de — Caluniam-nos infamemente, disse num tom profundo o
um Ossuna. Sujeitos, palitando os dentes, decretavam a vingança. cónego.
Vadios pareciam furiosos «contra o operário que quer viver como Então junto deles passaram duas senhoras, uma já de cabelos
príncipe». Falava-se com devoção na propriedade, no capital! brancos, o ar muito nobre; a outra, uma criaturinha delgada e
De outro lado eram moços verbosos, localistas excitados que pálida, de olheiras batidas, os cotovelos agudos colados a uma
declaravam contra o velho mundo, a velha ideia, ameaçando-os cinta de esterilidade, pouff enorme no vestido, cuia forte, tacões
de alto, propondo-se a derruí-los em artigos tremendos. E assim de palmo. — Cáspite! — disse o cónego baixo, tocando o cotovelo
uma burguesia entorpecida esperava deter, com alguns polícias, do colega.— Hem, seu padre Amaro?... Aquilo é que você queria
uma evolução social: e uma mocidade, envernizada de literatura, confessar.
decidia destruir num folhetim uma sociedade de dezoito séculos. — Já lá vai o tempo, padre-mestre — disse e pároco rindo
Mas ninguém se mostra- — , já as não confesso senão
va mais exaltado que um casadas!
guarda-livros de hotel, O cónego abandonou-
que do alto do degrau da -se um momento a uma
Casa Havaneza brandia a grande hilaridade; mas
bengala, aconselhando à retomou o seu ar po-
França a restauração dos deroso de padre obeso,
VISÃO H I S T Ó R I A 61
FRANÇA // MOTINS DE 1934
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A República treme,
e assente em pequenas empresas que se au-
tofinanciam, retarda os impactos da Grande
Depressão. A crise só se instala verdadeira-
A
exercício de determinadas profissões e ins-
s manifestações de 6 de feve- O «6 de Fevereiro» é a expressão do profundo tituem quotas de trabalhadores estrangeiros
reiro de 1934, convocadas em descontentamento dos «deixados por conta», nas indústrias em tensão. A redução do nível
França pelas ligas e associações isto é, a revolta das classes médias que, com de vida, com a descida de salários e pensões,
de antigos combatentes para a Grande Depressão, sofreram uma perda de atinge particularmente as classes médias,
protestar contra a corrupção da rendimentos. Porém, este terreno propício à os pequenos proprietários e industriais, os
classe política e a decadência da contestação social foi habilmente explorado pensionistas e os veteranos de guerra.
nação, degeneraram em confrontos de rua, pela direita e a extrema-direita. O 6 de Feve- O regresso ao poder das esquerdas, em
os mais sangrentos desde os acontecimentos reiro é, assim, o ponto de convergência entre 1932, após quatro anos de governos de di-
da Comuna de Paris, em 1871, e constituem as vítimas da crise económico-financeira e as reita, relança a contestação política e a ação
a ameaça mais séria contra as instituições estratégias de ação política delineadas pela das ligas. A agitação política, a instabilidade
da III República. O rastilho da contestação direita e extrema-direita a partir da vitória governamental (16 governos desde 1929),
é ateado pelo Caso Stavisky, um escândalo eleitoral do segundo cartel das esquerdas, a descrença nos partidos e a corrupção da
político-financeiro que envolve altos dig- em maio de 1932. classe política implicada em vários escânda-
nitários do Estado francês, e que encontra Em França, a crise económica começara los financeiros geram falta de confiança nas
um terreno fértil no clima social degradado ainda antes do final dos anos 1920. Mas a instituições por parte de largas camadas da
que se vive em França e na forte descrença estrutura produtiva francesa, largamente opinião pública. O sentimento generalizado
na classe política e nos partidos clássicos. virada para um mercado interno protegido é de um poder exercido de modo opaco, por
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um grupo que mobiliza as estruturas do Es- O escândalo inicia-se a 24 de dezembro, Paris, 6 de Fevereiro Organizações
tado em proveito próprio, e de um Estado com a prisão do diretor do Crédito Municipal de direita e de extrema-direita,
como a Solidariedade Francesa
minado no topo pela corrupção. A nível social, de Bayonne, seguida, dois dias depois, pela
e as Juventudes Patrióticas,
a agitação acompanha a curva ascendente do deputado radical de Bayonne, acusado confrontaram-se com a polícia
do desemprego, e que estão na origem das pelos crimes de roubo e desvio de fundos, na Praça da Concórdia
«marchas da fome» de 1932-1933. burla e abuso de confiança. A 8 de janeiro,
a imprensa anuncia o suicídio de Stavisky e
O Caso Stavisky revela a extensão da rede de cumplicidades do Trabalho num precedente governo, e de fa-
Nas vésperas do 6 de Fevereiro, a tensão social de que este gozara no seio das altas esferas da miliares de Chautemps, que deram cobertura
e a agitação das ligas atingem o rubro. O Caso política e do Estado francês. O escândalo Sta- a Stavisky (o irmão era advogado de Stavisky,
Stavisky, escândalo protagonizado por um ju- visky acaba por atingir o governo, presidido e o cunhado, procurador-geral, permitira que
deu ucraniano naturalizado francês que burla pelo radical Camille Chautemps, através do o julgamento de outros casos em que estava
o Estado francês em 200 milhões em falsos ministro das Colónias, que recomendara os implicado fosse 19 vezes adiado). O suicídio de
títulos do Crédito Municipal de Bayonne, é o títulos do Crédito Municipal de Bayonne às Stavisky lança a dúvida sobre a implicação de
acontecimento que determina a reacção dos companhias de seguros quando era ministro Chautemps, e a posição delicada do governo
descontentes com a situação política. As ligas agrava-se ao recusar a constituição de uma
vão exercer um papel catalisador do descon- comissão de inquérito sobre as circunstâncias
tentamento. Estas são movimentos de massa da morte de Stavisky, sendo acusado pela
vocacionados para o combate extrapartidário,
AS LIGAS DE CUNHO imprensa de procurar abafar o escândalo.
que se desenvolvem à margem dos partidos de MONÁRQUICO OU DA O Caso Stavisky é habilmente explorado
direita e extrema-direita, mas que na prática pela imprensa de extrema-direita, antissemita
lhes proporcionam meios auxiliares de com-
DIREITA AUTORITÁRIA, e xenófoba, que durante o mês de janeiro
bate, nomeadamente através da ação direta. ALGUMAS PRÓXIMAS mantém a pressão de rua, organizando pro-
A dimensão atingida pelo Caso Stavisky deve- DO FASCISMO, testos quase diariamente. Às ações de rua,
-se ao sucesso da campanha orquestrada pela iniciadas pela Ação Francesa a 9 de janeiro,
Acção Francesa, organização monárquica e CONSTITUEM juntam-se a partir de 22 outras ligas (Fede-
antiparlamentar que soube magistralmente A ESPINHA DORSAL ração Nacional dos Contribuintes, Solidarie-
canalizar a frustração e a raiva dos «deixados dade Francesa, Juventudes Patrióticas), num
por conta» contra o Estado corrupto e explo-
DO PROTESTO crescendo de violência política e de confrontos
rá-la contra o regime parlamentar. com a polícia. A 5 de fevereiro é a vez de as
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FRANÇA // MOTINS DE 1934
64 V I S Ã O H I S T Ó R I A
cargas policiais e ataques dos manifestantes.
Os confrontos sucedem-se até às 2 da manhã,
estendendo-se a sua geografia aos bairros li-
mítrofes. O balanço é de 15 mortos e mais de
2 mil feridos, entre manifestantes e forças
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da ordem.
Daladier procura ainda declarar o estado
Demissão O chefe do governo, Camille Chautemps (na foto) acabou de sítio, mas acaba por ser compelido a pedir
por resignar ao cargo, sendo substituído pelo radical Édouard Daladier a demissão sob a pressão da rua, que o res-
ponsabiliza pelo derrame de sangue, e aban-
donado pelo Partido Radical. Sucede-lhe um
governo de União Nacional, presidido por
Gaston Doumergue, no qual a direita se en-
contra maioritariamente representada, mas
que será efémero. Na imprensa de direita, a
violência e o vandalismo dos manifestantes
são minimizados, enquanto os jornais de
esquerda apresentam o 6 de Fevereiro como
uma tentativa de derrube da III República,
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considerando-o uma ameaça fascista.
Como resposta ao 6 de Fevereiro e às ligas,
o PCF convoca uma nova manifestação para
Barricadas Nas ruas de Paris, as grades de proteção das raízes das 9 de fevereiro, que rapidamente degenera
árvores foram utilizadas para bloquear a passagem da polícia
em confrontos com a polícia, fazendo quatro
vítimas mortais. Mas é a manifestação de 12
Ministério da Marinha é incendiado; no Jar- Croix de Feu de participar nos combates da de fevereiro, desta vez organizada, em Paris
dim das Tulherias, as grades de proteção das Praça da Concórdia. Com o fracasso dos desfi- e na província, pelos socialistas da SFIO e os
árvores são transformadas em lanças; pedras, les oficiais, impedidos de atingir à Concórdia, sindicalistas da CGT, com participação dos
garrafas, blocos de asfalto, trapos incendiados os manifestantes afluem à praça em peque- militantes comunistas, que lança as bases de
embebidos em gasolina são lançados sobre a nos grupos. Entregues a si próprios e sem um entendimento das esquerdas, até então
polícia, que riposta com cargas de cavalaria e enquadramento por parte das organizações, profundamente desunidas.
tiros. Para impedir o avanço da cavalaria, os os manifestantes acabam por se misturar e A 27 de julho de 1934 é assinado um pacto
manifestantes espalham rolamentos e lan- combater lado a lado sem ter em conta a fi- de unidade de ação das esquerdas, ao qual
çam bombas sob as patas dos cavalos, ou cor- liação (veteranos da UNC e da ARAC, asso- aderem os radicais em 1935, dando forma à
tam-lhes os tendões com lâminas de barbear. ciações rivais, chegam à Concórdia integrados Frente Popular, que em maio de 1936 ganha-
Erguem-se barricadas. O clima abeira-se da nos mesmos grupos, e combatem ao lado dos rá as eleições. O 6 de Fevereiro tornou-se no
insurreição. homens das ligas). O momento mais crítico é mito fundador da unidade antifascista. Tam-
atingido entre as 23h30 e a meia-noite, entres bém a extrema-direita faz o balanço do 6 de
Parlamento ameaçado Fevereiro: Charles Maurras, teórico da Ação
Entretanto, na margem esquerda do Sena Francesa, propõe uma frente comum das ex-
AS FORÇAS
as colunas das Croix de Feu evoluem até às tremas-direitas, que levará à constituição da
imediações do Palácio Bourbon, sede da Câ- POLICIAIS, Frente Nacional, em maio de 1934, mas que
mara dos Deputados, o parlamento francês. EM NÚMERO terá pouco sucesso. À direita, é o coronel La
Mas, face ao perigo da situação, o coronel Rocque quem capitaliza ganhos políticos com a
La Rocque dá ordem de dispersão aos seus INSUFICIENTE, VEEM- recusa de avançar para o golpe de Estado. Com
homens, recusando lançar o assalto contra -SE BLOQUEADAS E a interdição das ligas, em 1936, funda o Partido
a Câmara dos Deputados e avançar para o Social Francês, que será a maior organização
golpe de Estado (o que a Ação Francesa e as
DISPARAM CONTRA da direita conservadora. No 6 de Fevereiro de
ligas de extrema-direita não lhe perdoarão, OS MANIFESTANTES 1934 a República treme, mas não cai.
acusando-o do fracasso do 6 de Fevereiro). * Cristina Clímaco é professora associada
As ordens de La Rocque não impedirão os da Universidade de Paris 8
VISÃO H I S T Ó R I A 65
FRANÇA // MAIO DE 68
GERAÇÃO
‘SOIXANTE-HUITARDE’
Em França, alguns exilados portugueses viveram os acontecimentos
de Maio de 1968 na primeira linha – nas barricadas ou nas fábricas.
Para quase todos, há um antes e um depois
Por João Pacheco
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FRANÇA // MAIO DE 68
S
e aquele avião militar não se tives- Quando começou o Maio de 68 em França, aquilo era muito aberto, integrei-me em dois
se despenhado no início da guerra João Freire estava em Paris há dois meses e comités d’action, na Sorbonne e noutra uni-
em Angola, tudo poderia ter sido sentia que tinha sido adotado como neto pela versidade. Eram comités de ação que aco-
muito diferente para um dos pro- escritora feminista Maria Lamas. Enquanto lhiam qualquer pessoa. Ali mesmo, discutia-
tagonistas desta história. Em maio não abriam as inscrições para a faculdade, -se o momento político e decidiam-se ações:
de 1968, João Freire fora até há inscreveu-se na Alliance Française. Através do vamos distribuir panfletos à fábrica disto ou
pouco tempo oficial da Marinha portuguesa. apoio aos estudantes, arranjou um chambre de daquilo.» Houve momentos que pareciam
E era filho do general Carlos Silva Freire, o bonne na Rue Camus, muito próximo da torre um filme. «Lembro-me de ver o [realizador
comandante militar em Angola que, em 1961, Eiffel. Encontrou trabalho como rececionista Jean-Luc] Godard na manhã seguinte à noite
foi responsável pelas primeiras operações da de hotel, vendeu jornais, lavou pratos. E mal das barricadas, a descer a rua com a equipa
guerra. O pai morreu num acidente de aviação começou a confusão no Quartier Latin, per- dele e com a [atriz] Melina Mercouri. Eram
na então província ultramarina portuguesa, cebeu que era um acontecimento importante. meia dúzia de pessoas e traziam uma câmara
com outras 16 pessoas. Sete anos depois desse «Pensei: estou aqui a assistir, não sei o que vai de 16 milímetros.» E preocupou-se com a
acidente, João Freire optou pela deserção, ser, mas se calhar pode ser uma revolução. Na ideia de ser expulso de França? «Estava tão
abandonando o plano secreto de afundar o noite das barricadas estive no Quartier Latin entusiasmado com aquela situação que isso
navio de guerra onde comandava a artilharia, até às 10 da noite, porque depois entrava ao ser- não me ocorreu. Consegui nunca ser detido
junto à costa de Moçambique. Enviou para viço no hotel. E tive de ir a correr para o hotel, naquelas camionetas da polícia a que chama-
Portugal cartas a justificar a deserção e Ma- onde fiquei a ouvir a reportagem radiofónica.» vam panier à salade, nem ser identificado,
nuel Alegre leu uma dessas cartas na rádio, a Apesar de ter interrompido a revolução o que me teria posto provavelmente logo
partir de Argel. para ir trabalhar, sentia-se estudante. «Como na fronteira. Tinha cautela com isso, nessa
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FOTOS: GETTY IMAGES
JUNHO JULHO
13 Greve geral coloca 16 São decretadas 24 Na segunda noite 30 O presidente 30 Nas eleições 10 Couve de
um milhão de pessoas greves e ocupadas das barricadas, De Gaulle dissolve legislativas, os Murville substitui
nas ruas de Paris. Os várias fábricas e um manifestante o parlamento e gaullistas alcançam Pompidou à frente
protestos estendem-se empresas; a economia morre em Paris e um convoca eleições. maioria absoluta do governo
ao operariado. paralisa comissário da polícia É alvo de uma grande
A Sorbonne é ocupada sucumbe em Lyon marcha de apoio em
22 Daniel Cohn-Bendit, Paris
15 Ocupação da fábrica de nacionalidade alemã,
da Renault, em Cléon, é expulso e fica proibido 31 O governo é
a que se segue a da de voltar a França remodelado
fábrica de Billancourt durante dez anos
altura não tinha documentos nenhuns, nem te de um pequeno Fiat e quando chegou ao fugisse de Portugal. Em Espanha vivia-se sob
sequer de estudante.» Quartier Latin percebeu que a polícia estava a ditadura de Franco e, se fossem capturados,
a dispersar uma manifestação. O cinema fe- os opositores portugueses eram entregues ao
Pedreiros e mulheres-a-dias chara e não deu para estacionar perto. Já a regime de Salazar.
Há histórias pessoais fortes para cada exilado pé, voltou para onde havia confusão. «Fiquei Além de funcionar como refúgio para os
português que viveu de perto o Maio de 68. ali a ver, com cuidado. Estava sozinho, ainda exilados portugueses, muitos deles refratários
Em comum, para quase todos há um antes por cima. O movimento era muito juvenil, no ou desertores da Guerra Colonial, a França
e um depois, tal como passou a haver para início. Ia fazer 28 anos e tinha uma filha de 3.» era também o principal destino da emigração
a sociedade francesa, marcada pela revolta Em Portugal, Manuel Villaverde Cabral ti- económica portuguesa, feita sobretudo de
estudantil e pela grande greve geral que pa- nha sido militante do ilegal Partido Comunista forma clandestina e a um ritmo acelerado a
ralisou o país 13 de maio (ver cronologia). Português (PCP). Escapara à prisão por sorte, partir do final dos anos 1950.
Houve também quem marcasse esse antes e quando em 1963 a PIDE prendeu quase toda
esse depois com uma mudança pessoal, como a célula partidária de que fazia parte. Tinha Há uma parte de teatro
fez logo nas primeiras horas do Maio de 68 o acabado de se casar, de mudar de trabalho e Ao contrário da maioria dos portugueses que
exilado português Manuel Villaverde Cabral. de casa. Fugiu primeiro para Espanha, onde viviam em França em 1968, Manuel Villaverde
Saiu de casa por razões que nada tinham que tinha família, e chegou depois a França com Cabral era muito politizado. Nessa altura já
ver com reivindicações políticas. Estava cha- um passaporte legal, obtido quando precisara tinha abandonado do PCP. Pertencera de-
teado com a mulher e a ideia era ir sozinho de ir em trabalho à Feira do Livro de Frankfurt. pois ao Comité Marxista-Leninista Português,
ao cinema. Acabaria por não voltar para casa, Para evitar ser preso, passou a viver em França. entretanto desmembrado pela PIDE. E, a
consumando-se a separação. Partiu ao volan- Era o país mais próximo para alguém que partir de Paris, passou a imprimir de forma
VISÃO H I S T Ó R I A 69
FRANÇA // MAIO DE 68
GETTY IMAGES
Barricada na Rue Gay-Lussac Fernando Medeiros morava nesta rua e abrigou em casa manifestantes que fugiam ao gás lacrimogénio
artesanal o jornal Cadernos de Circunstância, granito à polícia. Uma pedrazita e tal, talvez.» característica da História francesa ao longo
onde escreveram outros exilados como João A partir da varanda do 5º andar a vista era tão dos séculos? «Não. Em França, a expressão
Freire, Jorge Valadas ou Fernando Medeiros. boa que uma noite esteve lá uma equipa de da vontade popular não se limita ao voto.
Na infância e na adolescência, Fernando filmagens, a filmar as barricadas. «Na manhã A manifestação tem o seu lugar perfeitamente
Medeiros viveu em Moçambique. Já em Lis- a seguir a essa noite das barricadas, a rua ficou instituído e praticado. Mas isso não quer di-
boa, envolveu-se no movimento estudantil. toda desmontada, os paralelepípedos estavam zer que haja um revolucionarismo constante.
Depois partiu para Paris em 1963, para esca- nas barricadas. E os polícias estavam a tomar Existe é uma mitologia revolucionária. Há
par à Guerra Colonial. Em Maio de 68, pre- conta daquilo e a comentar de forma a que aqui um imaginário muito marcado pela re-
parava-se para terminar a licenciatura em nós ouvíssemos, na varanda do quinto andar: volução, é o país da Grande Revolução. Mas
Ciências Sociais, estava já casado com uma ‘Pois, aqueles atiravam paralelepípedos lá de também há uma parte de teatro. Sabendo ao
mulher francesa. Tinham um bebé e viviam cima’.» Quando perceberam que o cenário que podem conduzir os confrontos políticos
num pequeno apartamento no Quartier La- era parecido com o de uma guerra urbana, mais violentos, toda a gente representa um
tin, na Rua Gay-Lussac. «Foi a rua onde se enviaram o filho para casa dos avós, fora de bocadinho essa peça de teatro.»
edificaram as célebres barricadas do Maio de Paris. «Assisti a cenas tremendas a partir da
68. A primeira era ao pé do edifício onde eu minha varanda. Lembravam os relatos da Meninos bem
morava. Da varanda no 5º andar tinha vista repressão policial feita em França durante a e comunistas fanáticos
para a principal barricada.» Como muitos Guerra da Argélia [1954-1962], as célebres Os acontecimentos cresceram numa escalada
vizinhos, abrigou em casa manifestantes em rattonades.» Havia contas a ajustar entre a de tensão, desde que em 1967 os estudantes do
fuga ao gás lacrimogénio, às detenções e às polícia e os estudantes, dos anos de contes- campus universitário de Nanterre protestaram
bastonadas da polícia. E ficou sem o carro, um tação contra a Guerra da Argélia. E essa era contra a restrição de visitas entre rapazes e
Citroën 2 CV, que estava na Rue Gay-Lussac. uma das especificidades francesas, dentro do raparigas nos dormitórios da universidade,
«Todos os carros estacionados nessa rua ser- contágio global de revoltas estudantis ligadas que eram separados por género. Em janeiro
viram de instrumento de barricada e foram aos movimentos cívicos norte-americanos e de 1968, o líder estudantil Daniel Cohn-Bendit
incendiados.» aos protestos contra a Guerra do Vietname. aproveitou a inauguração de uma piscina em
Mas quando fala sobre os manifestantes diz Fernando Medeiros, hoje doutorado em Nanterre para confrontar com essa questão o
«nós». É que chegou a ir às barricadas. «Com História Social, continua a viver em Paris. ministro da Educação e do Desporto, François
prudência, porque como estrangeiro arriscava E a propósito, será que ter uma sociedade Missoffe. O ministro sugeriu ao líder estudan-
bastante. Nunca atirei um paralelepípedo de combativa e propensa a revoluções é uma til que se atirasse para a piscina, para arrefecer
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o desejo. Cohn-Bendit respondeu que essa era
uma afirmação própria de um regime fascista.
Os protestos foram crescendo ao longo
dos três meses seguintes, incluindo numa
residência para estudantes portugueses e
numa residência universitária norte-ame-
ricana em Paris, por vezes com violência.
O reitor mandou fechar o campus de Nanterre.
E a 3 de maio de 1968, a polícia foi chamada
à Sorbonne, no Quartier Latin. A ideia era
D.R..
retirar os 300 estudantes reunidos no pátio
da universidade parisiense, que ali estavam Treinando para as barricadas Em jeito de brincadeira, Helena Cabeçadas (à direita) ensaia,
depois de terem sido impedidos de protestar com os portugueses exilados em Bruxelas, técnicas de ataque para os protestos de Paris
em Nanterre, a 16 quilómetros da Sorbonne.
Seguiram-se detenções e estava aceso o ras- Alegre e Daniel Filipe. Meses antes do Maio de Portugal, «mais ou menos ligada ao PC».
tilho do que viria a ser conhecido primeiro de 68, criara a banda-sonora do filme O Salto, Conta que os cartazes de divulgação dessas
como les évènements (os acontecimentos) e do realizador Christian de Chalonge. festas tinham frases como «Luís Cília e tam-
mais tarde como o Maio de 68. Por essa altura, estava já afastada a hipótese bém há chouriço.»
Um dia depois dessas detenções, Álvaro de uma eventual expulsão de França. Depois Luís Cília diz que sempre teve pouco espírito
Manuel Machado fez 28 anos em Paris e o de uma viagem de Paris a Havana para cantar, de obediência, quando conta que em 1967 foi
aniversário nada teve de especial. «Passei ao Luís Cília tinha tido problemas na fronteira, expulso do PCP. A expulsão fora decidida por
lado do Maio de 68», diz Machado, que na ao voltar a Paris vindo de um país de leste Carlos Antunes, futuro dissidente do PCP e
altura vivia na capital francesa com dificuldades onde fizera escala. Pediu então ao editor dos cofundador das Brigadas Revolucionárias,
económicas. Tinha três filhos e trabalhava nos discos para o ajudar a obter o estatuto de refu- que era nessa altura dirigente do partido em
arquivos da televisão francesa e como consul- giado político. Conseguiu-se esse passaporte França. Tudo porque Cília recusou deixar de
tor da editora Gallimard. «Não que achasse a especial atribuído pelas Nações Unidas. E a abrir a porta de casa a portugueses que Antu-
revolta absurda ou inútil ou mesmo injustifi- partir desse momento, o cantor estava à von- nes considerava indesejáveis, por não serem
cada, apesar de ter grande admiração por De tade para viver em França, para viajar, para do PCP e estarem alinhados com movimen-
Gaulle. Mas sentia-me alheio ideologicamente ter atividade política. Em Paris, costumava tos e partidos esquerdistas, num contexto de
e condenava os excessos exibicionistas ou par- tocar à borla na Associação dos Originários conflitos sino-soviéticos. «Dois anos depois, o
tidários. Nunca fui de nenhum partido, apenas dirigente [do PCP] Joaquim Pires Jorge veio
execrava a odiosa ditadura salazarista, com ter comigo, a dizer que aquilo tinha sido um
a sua ridícula visão colonialista. Sobretudo, erro. E retomei o contacto com o PC.»
achava que os ‘meninos bem’ franceses de uma Já o contacto próximo com o músico espa-
execrável sociedade consumista, bem como, nhol Paco Ibáñez nascera a seguir a uma sessão
no outro extremo, os comunistas fanáticos dos de música solidária nos arredores de Paris.
sindicatos nada tinham a ver comigo, que nessa Foi em Champigny, onde viviam milhares de
altura ambicionava ser professor universitário». emigrantes portugueses, num bairro de lata.
Mais tarde, Cília haveria de tocar em Paris
Também há chouriço com José Mário Branco e Sérgio Godinho.
O cantor Luís Cília tinha nascido em Angola. Mas durante o Maio de 68, foi com a francesa
Sobrevivera a colégios internos entre os 5 e os Colette Magny, o espanhol Paco Ibanéz (ambos
18 anos. E crescera de repente no ambiente
LUÍS CÍLIA, cantautores) e o violinista israelita Ivry Gitlis
intelectual e político da Casa dos Estudantes NA ALTURA que formou um quarteto. Estavam sempre a
do Império, em Lisboa. Quando começou o caminho de onde fossem chamados, desde fá-
JÁ EXILADO EM
Maio de 68, já estava exilado em Paris desde o bricas ocupadas a uma residência universitária
dia das mentiras de 1964. Depois de uns anos FRANÇA, CANTOU da Gulbenkian que tinha sido ocupada por
iniciais de adaptação, acabara por se dedicar EM FÁBRICAS E estudantes portugueses. «Quando íamos dar
à música. Já tinha editado três discos, logo espetáculos, havia sempre atores que monta-
a começar por Portugal-Angola: Chants de EM RESIDÊNCIAS vam pequenas peças, sobretudo baseadas em
Lutte, que inclui o tema Canto do Desertor, OCUPADAS textos de Brecht e nas canções de Kurt Weil.»
com letra do próprio Cília. E que tem também Um dia, estavam a dar um concerto em frente
canções com letras de poetas como Manuel de uma fábrica ocupada pelos trabalhadores
VISÃO H I S T Ó R I A 71
FRANÇA // MAIO DE 68
A
os 20 anos, Sérgio Godinho muito poética: «Sous les pavés, la plage», que Não havia revoluções irreversíveis.
deixou o Porto para estudar era «Debaixo dos paralelepípedos, a praia». Não havia. Senti o mesmo quando voltei,
psicologia em Genebra. Ao fim Foi um movimento em crescendo. As pessoas depois do 25 de Abril, quando se falava das
de dois anos, desinteressou-se estavam muito motivadas, falavam na rua. conquistas irreversíveis. Embora isso nunca
do curso. Vagabundeou pela Com opiniões divergentes, mas sempre com me tenha impedido de ser participante ativo
Europa à boleia, atravessou o vontade de discutir. Um movimento que co- em tudo o que aconteceu.
Atlântico a bordo de um navio holandês, meçou com os estudantes e que depois atin-
onde trabalhou na cozinha. E chegou a Paris giu os trabalhadores. Até haver 10 milhões No Maio de 68, tocou com José Mário
no final de 1967. de trabalhadores em Branco?
greve. Paris e a França Com o José Mário, com
O que fazia em Paris antes do Maio de 68? estavam praticamente o Luís Cília, com a Co-
Era um empregado eventual naquilo que paradas. lette Magny. Ainda não
aparecesse. Trabalhei como porteiro de noite tinha, praticamente,
em hotéis e noutros trabalhos. E, de repen- Qual era o seu enqua- material meu, só duas
te, cai sobre mim aquela contestação dos dramento político? ou três canções. O meu
estudantes em Nanterre. Tudo se produziu Era anarquista. Sem- primeiro disco, Os So-
muito rapidamente, a intervenção da po- pre fui de esquerda, até breviventes, é de 1971.
lícia de choque desencadeou uma grande por educação familiar. Cantava canções mi-
revolta estudantil... Nunca a polícia tinha As ideias anarquistas nhas, outras populares,
entrado numa universidade. Foi uma coisa eram muito atraentes, uma do Lopes Graça...
fundadora da revolta dos estudantes, que se na altura. No Maio de
espalhou naquela noite em que se ergueram 68 viam-se quase tan- Escreveu uma canção
barricadas, em que estive ativamente envol- tas bandeiras negras em francês sobre os
D.R.
vido. Não tinha obrigações familiares. Estava como bandeiras ver- événements?
Sérgio Godinho numa
disponível para ser um observador atento e melhas. Mas qualquer foto da altura Escrevi uma canção
um participante naquela luta. movimento anarquista chamada Les Mille et
acaba por se desagre- Une Nuits (As Mil e
Ajudou a construir as barricadas? gar, por falta de autoridade. Há uma con- Uma Noites). Sei a música...
Também. tradição em si no anarquismo. Pretende que
haja um poder descentralizado, e isso é muito Não se lembra dos versos?
E atirou pedras à polícia? interessante, mas não tem sobrevivência. Sen- Lembro-me do refrão: «Un fait deux et deux
Não sei se atirei pedras, mas participei. Os tia que estava a viver no dia-a-dia e que aquele font trois / Ça fait Mille et Une Nuits / Le
paralelepípedos eram bastante pesados… movimento se ia engrossando e era imparável. roi chante et le roi rit / Toi, on n’entend pas
Dormi várias noites na Sorbonne e uma vez a ta voix.» Tinha depois várias referências
polícia atirou granadas de gás lacrimogénio. Em Paris, onde vivia? à realidade. Era uma canção circunstan-
Estava a dormir no chão e veio uma que atin- Vivia com mais três portugueses na mar- cial. Fomos cantar em fábricas ocupadas,
giu a pessoa ao meu lado, num olho. Cegou-a, gem direita, a seguir aos Campos Elísios. em locais de trabalho. Éramos convidados
provavelmente. Era só sangue. No fim desse maio, houve a primeira ma- espontaneamente. Antes, fiz parte da ocu-
Estava muito envolvido e, com uma certa nifestação da chamada Maioria Silenciosa. pação da Casa dos Estudantes Portugueses.
ingenuidade, sentia que era um movimento Vinham a descer os Campos Elísios com Era uma casa com muitos filhos de pes-
que seria imparável. Essa ingenuidade não bandeiras tricolores e eu ia a subir a pé soas do regime. Um edifício grande, com
era só minha, era também de muita gente para casa. Tive uma imersão na realidade. piso térreo e primeiro andar. Ocupámos e
que participou. Parecia que cada dia estava a Pela primeira vez, saí um pouco da minha tornou-se um fórum de tudo o que estava
acontecer qualquer coisa. Apareciam de ma- ingenuidade e compreendi que a História a acontecer.
nhã cartazes que tinham sido feitos durante se faz com passos à frente e passos atrás. Eu Não tinha medo de ser expulso de França?
a noite, com frases como «É proibido proi- estava a andar no sentido diferente daquela Não. Havia uma inconsciência. Entretanto
bir» ou «A imaginação ao poder». Ou outra, gente que vinha a descer os Campos Elísios. saímos dessa casa e a polícia foi lá à procura
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desses portugueses que teriam estado
envolvidos na ocupação. Mas acabei por
nunca ser importunado nem chamado.
GERARD-AIME/GETTY IMAGES
Nós não éramos uma rede organizada,
não era fácil caçar-nos.
O ambiente tornou-se bastante ten-
so, a seguir. Sobretudo com as polícias
especiais, os CRS. Uma vez, um polícia
pediu-me os documentos e perguntou-
-me se tinha trabalho. Acho que tinha ‘Sous les pavés, la plage’ Ao retirarem do pavimento os paralelepípedos
que atiravam à polícia, ficava areia
trabalho num armazém de acessórios de
flores. E ele disse-me: «Agora, vai cortar e o violinista Ivry Gitlis tocou um tema de os paralelepípedos para construir um mun-
o cabelo.» E eu respondi: «Então tem de Bach. Nessa altura, passou pelo grupo um do novo. Não era só o prazer de contestar
me dizer onde há um barbeiro.» Era um cortejo fúnebre, com o caixão sobre um carro a sociedade de consumo e um sistema que
jogo de intimidação. Também não tinha puxado por cavalos. «Aquilo era muito surreal. considerávamos injusto. Esse entusiasmo
o cabelo assim tão grande, só mais tarde Naquela altura não havia combustíveis, havia não seria extensível a toda a sociedade fran-
é que entrei no musical Hair e deixei uma greve geral.» cesa, como se veria depois nas eleições. Mas
crescer o cabelo realmente. de qualquer maneira, esse lado poético da
Para construir um mundo novo revolução ou do movimento de Maio ‘Fazer
Lembra-se de ver Daniel Cohn-Bendit Aos 17, Helena Cabeçadas já era militante do amor, não a guerra’ e ‘A imaginação ao poder’
com o cabelo pintado? PCP há dois anos. Decidiu exilar-se depois era entusiástico para a juventude e não só,
Sim. O Cohn-Bendit tinha dupla nacio- de passar dois dias presa em Caxias e de ser porque apelava não apenas ao sonho mas
nalidade e tinha ido para a Alemanha. expulsa de todas as escolas do País, quando também a algo de melhor. Tinha 20 anos
Era um dos líderes importantes. E caris- caiu todo o setor estudantil do partido por e vivíamos uma época em que tudo parecia
mático e ruivo. Então, um dia houve um ação da PIDE. Ainda esteve dividida entre possível. Estávamos todos convictos de que
sururu e fomos para o maior anfiteatro ir para o exílio ou entrar na clandestinidade, íamos mudar o mundo. Estavam a acontecer
da Sorbonne. Diziam: «O Cohn-Bendit seguindo o exemplo do militante com quem os movimentos de libertação das colónias e
está aí, voltou.» E ele apareceu. Com o namorava. Mas em 1965 decidiu-se por partir dos países do Terceiro Mundo, os grandes
cabelo pintado de preto. E com o sorriso para a Bélgica, onde a Universidade Livre de movimentos cívicos pelos direitos dos negros
inconfundível e muito radioso que ele Bruxelas lhe abria as portas através de exa- nos Estados Unidos, o [movimento e partido
tinha. Foi um momento de exaltação. mes de acesso, apesar de ter sido impedida político] Black Power, também. A revolução
Discursou, aquilo era uma finta monu- de terminar o liceu em Portugal. cubana era um farol para todos nós, na altura.
mental. O Cohn-Bendit impôs-se como Quando a revolta estudantil aqueceu em Claro que a revolução chinesa também. Ha-
um líder natural, mais até do que outros Paris, Helena estava no 3º ano de Antropo- via toda uma sensação de que ia ser possível
de alas mais trotskistas, mais alinhados. logia em Bruxelas. Viajou então de comboio uma revolução que tornasse o mundo mais
para a capital francesa, juntando-se ao na- fraterno, mais solidário, mais igualitário.»
Na altura deu-se alguma mudança na morado, Jean-Claude Garot, diretor do jornal E no meio de todas estas forças, qual foi o
forma de as pessoas se darem umas belga Le Point. Helena haveria de ficar três lugar do feminismo? «A relação entre os sexos
com as outras? semanas em Paris, onde esteve nas barrica- é um legado do Maio de 68 que se afirmou
Foi a primeira vez que senti que havia al- das, nas noites da Sorbonne ocupada pelos muito, a partir daí, e que ficou. Esse direito
guma coisa de vivencial, para lá da política, estudantes, no teatro Odéon ocupado pelos ao prazer, o direito à igualdade não só nos
algo de fraternal. Essas marcas acabaram artistas e na fábrica da Renault Boulogne salários mas também na partilha das ativi-
por ficar, mesmo depois de reposta a or- Billancourt ocupada pelos operários. Logo dades domésticas. E depois as relações entre
dem. Aquele país viveu algo tão anómalo de início, participou na atividade de arrancar professores e alunos, entre patrões e emprega-
que tinha de deixar marcas. Essas marcas paralelepípedos da rua, no Quartier Latin. dos. Houve alterações importantes e o legado
repercutiram depois para outros países, «Dava prazer: sous les pavés, la plage (sob o de Maio ficou também, não se perdeu tudo.
inclusivamente para Portugal. pavimento, a praia), era isso. Arrancavam-se Ainda está vivo.»
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FRANÇA // SÉCULO XXI
Hinos à
insubordinação
Desde os motins nos subúrbios aos coletes amarelos,
passando pelo aumento da idade da reforma, as
mobilizações sociais e políticas têm agitado o século XXI
em França. Com muita violência policial à mistura
Por Ana Navarro Pedro
‘L
uís XVI foi decapitado por nós. hemiciclo e a rua amotinada grita: «Insurrei-
Macron, nós podemos recome- ção.» Mas Macron não verga. Não negoceia,
çar.» Em francês, a frase rima. não cede em nenhum ponto e esmaga a revolta
74 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Clichy-sous-Bois, 2005
Aquela que ficou conhecida
como ‘a revolta dos subúrbios’
foi desencadeada pela morte
de dois jovens neste bairro
dos arredores de Paris
VISÃO H I S T Ó R I A 75
FRANÇA // SÉCULO XXI
Novas mobilizações
Estamos em janeiro de 2006 e a França vive
uma forte mobilização coletiva contra o Pri-
meiro Contrato de Trabalho – abreviado para
CPE, em francês. Com 25% de desemprego
juvenil, o primeiro-ministro Dominique de
Villepin responde ao problema com uma
maior flexibilidade das regras de contratação
e despedimento para o primeiro emprego.
A resposta de estudantes, pais, professores,
funcionários e sindicatos é unânime contra
a medida. As manifestações reúnem mais de
1,5 milhões de pessoas, liceus e universidades
CRÉDITO FOTOXXXXX
76 V I S Ã O H I S T Ó R I A
pequeno suplemento na minha vida. Os meus
pais não me faltaram com nada. Mas nunca
tiveram dinheiro para irmos a um cinema, ou
a um restaurante – só a um McDonald’s nos
meus anos.» As férias eram em casa dos avós,
na casa da aldeia, com um pequeno jardim.
como membros da sociedade. Além disso, qual são «parolos de extrema-direita enchar-
nenhuma exigência política precisa e realista cados em vinho».
é realmente formulada – à exceção de uma: a Como nos motins dos subúrbios, é, antes
criação de um Referendo de Iniciativa Cidadã de tudo, a repressão policial que gradual-
(RIC), que permitiria aos cidadãos propor ou mente vai desencorajar o movimento. Inú-
revogar leis, aprovar ou não tratados e modi- meros casos de pessoas que perderam um
ficar a Constituição. olho devido a balas de borracha disparadas
Por detrás da contestação tributária está a à altura das cabeças, de comoções cerebrais,
No ano seguinte, Emmanuel Macron sucede procura de justiça social inequívoca – recor- de mãos e joelhos esfacelados esgotam a
a François Hollande no Eliseu e dá nova ma- de-se que desde o início, a política fiscal de mobilização.
chadada no Código do Trabalho. Há algumas Macron lhe mereceu a alcunha de «presiden- Segundo a cientista política americana Ma-
manifestações no outono, mas o inesperado te dos ricos». A 8 de dezembro, na segunda ria J. Stephan, ocorreu no início do século uma
acontece em 2018, com o anúncio de um au- grande manifestação dos coletes amarelos em rutura na «interlocução política entre povos e
mento dos impostos sobre os combustíveis. Paris, na retaguarda de uma batalha campal poderes, quebrando o implícito pacto político
Uma petição em zona rural – onde os carros extremamente violenta nos Campos-Elísios, e democrático segundo o qual o cratos (poder,
são indispensáveis, dada a indigência dos encontrámos Phillipe, vindo de Amiens: «Te- em grego) não pode ser superior ao demos (o
transportes públicos – é a ponta de lança de nho 24 anos e nunca soube o que é ter um povo)». Na busca pelo consentimento popular,
um movimento da classe média desclassificada os estados parecem ter passado da construção
que vai explodir em novembro. Isso implica paciente da hegemonia ao estabelecimento
especialmente os 60% de franceses que usam brutal da obediência.
o carro todos os dias. Não é por acaso que o Passado o interregno da epidemia e dos
emblema do movimento é o famoso colete de confinamentos, o movimento francês contra a
segurança amarelo fluorescente obrigatório O MOVIMENTO reforma das pensões teve traços de anteriores
para os automobilistas. mobilizações de sobrevivência ou resistência
O movimento dos coletes amarelos é fasci-
DOS COLETES contra o aumento do custo de vida e a auste-
nante por muitas razões. Começa por ser um AMARELOS CRIOU ridade, a escassez de água ou eletricidade, a
reencontro societal nas rotundas ocupadas, NOVOS LAÇOS perda de estatuto social e a desvalorização do
onde se criam novos laços de convivialidade trabalho, e até contra as consequências sociais
esquecidos numa França que se sente margi- DE CONVIVIALIDADE da gestão da pandemia.
nalizada. Parte da contestação ao aumento do ESQUECIDOS O verão que desponta fará talvez esquecer a
preço dos combustíveis, mas depressa abran- revolta, mas ficam frustrações e cóleras recal-
ge outros temas. A seguir, estes franceses da cadas, prenunciadoras de outras explosões.
VISÃO H I S T Ó R I A 77
FRANÇA // SÉCULO XXI
JUAN BRANCO
Participou na defesa jurídica do fundador do
Wikileaks, Julian Assange, e de líderes do
movimento dos coletes amarelos, mas foi quando
se envolveu na divulgação de um vídeo de conteúdo
sexual que fez cair um ex-ministro – o caso
Griveaux – que polarizou a discussão e mostrou
não estar na política «só por estar». Filho de mãe
espanhola e do produtor de cinema português
Paulo Branco, publicou em 2019 Crépuscule,
um livro que é um ataque cerrado ao presidente
Emmanuel Macron, e lançou este ano Coup d’ État
– Manuel Insurrectionnel, onde analisa os cenários
de uma mudança de regime através de uma
eleição, uma revolução ou um golpe de Estado.
ENTREVISTA
‘Uma manifestação é um
simulacro de revolução’
Para o advogado e ativista francês, a luta contra o aumento da idade da reforma
falhou por culpa dos sindicatos, dos media e dos partidos de esquerda
Por Clara Teixeira
A França ficou a ferro e fogo por causa abdicou de uma parte do poder para a Comis- ficar inquieto com as consequências de ter
do aumento da idade da reforma. Porque são Europeia, mas ao mesmo tempo exerce tanta gente na rua a querer provocar um
são os franceses tão combativos, muito uma influência enorme sobre as instituições golpe de Estado, ou uma rutura. Só assim
mais do que os portugueses? europeias. Nada se decide em Bruxelas sem o povo consegue influenciar as decisões
A França tem uma tradição muito forte de o apoio da França e da Alemanha. Temos dos governantes. Caso contrário, eles não
independência e de soberania. Quando se consciência de que podemos fazer pressão se preocupam.
vive num país que tem de cuidar do seu sobre o governo e influenciar decisões fun-
próprio futuro, não se perde esse direito damentais que escapam um pouco ao povo O aumento da idade da reforma foi apro-
sem se lutar. Portugal é diferente por ra- português. Isso faz-nos desafiar o poder… vado. Porque é que, desta vez, o protesto
zões históricas. Durante a ditadura, perdeu de rua não foi eficaz?
influência à escala internacional e, depois, Os franceses desafiam o poder sobretudo Historicamente tem funcionado. Funcionou
quando entrou na União Europeia (UE), na rua. Porque é que, nas eleições, não com os coletes amarelos, que se manifesta-
ficou muito dependente das instituições votam numa mudança do sistema? ram quando o governo quis aumentar um
europeias e dos grandes países, como a O sistema eleitoral francês já não funcio- imposto [sobre as emissões de carbono] que
França. Trocou soberania pelos recursos na, o que tem provocado uma abstenção iria agravar o preço dos combustíveis. Além
de que precisava para investir e recuperar a muito forte. Nas últimas eleições legis- de travarem a medida, conseguiram apoio
capacidade económica perdida nas décadas lativas chegou a quase 70%, e em algu- financeiro para as pessoas em dificuldades
anteriores. A combinação desses dois fatores mas regiões atingiu mais de 80 por cento. e com baixos salários. Foi o resultado não
faz que Portugal ainda não tenha uma cons- Isso resulta da falta de representatividade de negociações sindicais, porque os sindi-
ciência forte e, por isso, não consiga, nem dos políticos e também do sistema, que é catos não participaram, mas das manifes-
tente, fazer manifestações tão populares muito presidencialista. A solução é a rua, tações que decorriam todas as sextas-feiras.
como em França. de forma pacífica ou violenta. Em geral, A mobilização contra o aumento da idade da
é eleita a forma pacífica porque há uma reforma não funcionou, mas vai ter efeitos
A França também perdeu poder. A «gran- ritualização da relação com o poder. Mas indiretos. O governo fez concessões sobre
deza» da França já não é o que era… uma manifestação é sempre um simulacro questões relacionadas com a precariedade
Perdeu parcialmente. Como todos os países, de revolução. Só produz efeito se o poder do emprego.
78 V I S Ã O H I S T Ó R I A
mas eu passo a minha vida a tentar ajudar
[como advogado] opositores políticos e ma-
nifestantes que são perseguidos por razões
absurdas, com o único objetivo de intimidar e
de desestruturar os movimentos de oposição.
“
Qual é o problema da esquerda? Porque dãos. O objetivo deste livro é propor isso.
é que não é capaz de se unir em torno de Macron parece ser um
um candidato capaz de vencer a direita e
a extrema-direita em França?
presidente social-democrata, É uma proposta ambiciosa…
Um pouco. Mas é importante seguir as uto-
O controlo do espaço mediático francês, que mas eu passo a vida a tentar pias. Quem é que imaginava [na Revolução
está nas mãos de multimilionários próximos
do poder político, é o primeiro problema.
ajudar opositores políticos e Francesa] que um rei tão poderoso como o
francês, o mais poderoso da Europa, iria cair
É muito complicado para a esquerda chegar manifestantes perseguidos tão facilmente? São coisas que ninguém espera
ao espaço público e transmitir as suas ideias, por razões absurdas mas que, num certo momento, acontecem.
VISÃO H I S T Ó R I A 79
FRANÇA // OPINIÃO
A Sociedade
contra o Estado?
A
história da França é uma história
de guerras incessantes. Guerras
pelo território e pelo poder, mas
também guerras e rebeliões con-
tra o poder. Desde os primórdios
da formação da «França», no sé-
culo XIII, até à estabilização definitiva das
POR JOSÉ GIL suas fronteiras (século XX) e à unificação do
Filósofo, licenciado poder do Estado moderno (século XVIII), as
pela Sorbonne, guerras inquietaram e devastaram regiões
exilado em Paris no inteiras, cidades e aldeias, durante séculos. E
ESTELLE RUIZ/NURPHOTO/GETTY IMAGES
tempo da ditadura
em Portugal, os povos, sobretudo rurais, foram as grandes
foi considerado vítimas desses tumultos que opunham nobres
por Le Nouvel contra nobres, nobres contra reis, e monarcas
Observateur um de um país contra os soberanos de outro país.
dos 25 grandes
pensadores Só o conhecimento histórico e sociológico
do mundo poderia mostrar os efeitos deste constante es-
tado bélico na subjetividade das populações.
Não o possuindo, resta-nos arriscar uma
hipótese: as guerras intermitentes agitaram
de tal maneira a vida quotidiana dos fran-
ceses que neles nasceu e se desenvolveu um da idade da reforma, o espírito de revolta do povo francês explode
espírito de revolta, aliado à defesa das iden- regularmente contra os poderosos, detentores do poder político.
tidades locais, que nunca mais se extinguiu.
M
Os donos da guerra mudavam e os povos, li- as a história desse espírito não opõe só o povo contra o Es-
gados à mesma terra, permaneciam. Criou-se tado. A própria formação da sociedade e do Estado tornam
uma tradição de revolta, que atravessou os mais complexa a natureza e o desenvolvimento desse tra-
regimes políticos, monárquicos e republica- ço das subjetividades. Evoquemos apenas um aspecto, o que se
nos, e que se sedimentou na subjetividade chamou tradicionalmente o «individualismo» do povo francês.
popular. Tanto mais que as razões para o O individualismo pode caracterizar-se, sumariamente, como a
povo se revoltar continuaram sempre vivas: afirmação dos direitos individuais acima de todo outro tipo de
a exploração que tomava as formas mais direitos (comunitários, estatais, institucionais). Para que uma tal
diversas, desde o recrutamento dos homens mentalidade se formasse, foi preciso que a noção de «indivíduo»
para a guerra às pesadas taxas e impostos nascesse primeiro. A França foi o país em que essa noção mais e
que levavam à fome e à miséria; a destruição melhor se definiu, com contornos filosóficos únicos, que irradiaram
periódica dos seus recursos pela pilhagem por toda a cultura europeia: o «sujeito» ganhou consistência com
sistemática a que os populares eram sujeitos Descartes, influenciando a elaboração jurídica do «sujeito jurídico»
pelos senhores da guerra; a perda das especi- e do «cidadão» político através dos cartesianos dos finais do século
ficidades e independência regionais, cada vez XVII e dos iluministas de todo o século XVIII (Rousseau, Mon-
mais ameaçadas e reduzidas, à medida que tesquieu, Voltaire, Diderot, D’Alembert, etc.). E sabemos como as
a soberania do Estado central se afirmava ideias fundamentais da democracia moderna foram forjadas contra
por todo o território, através, sobretudo, da os poderes da monarquia absoluta que impediam a expressão dos
administração, do fisco e da justiça. Desde direitos individuais. Na génese complexa da noção de sujeito dois
as jacqueries medievais e um sem-número grandes nomes, também franceses, devem ser assinalados, Mon-
de revoltas populares dos séculos seguin- taigne e La Boétie, no século XVI.
tes, até à Revolução Francesa, e às grandes Vê-se como o espírito de revolta e os seus valores – liberdade,
manifestações de 2023 contra a mudança tolerância, justiça – é transversal a toda a sociedade: estão enrai-
80 V I S Ã O H I S T Ó R I A
zados no povo e na defesa da identidade regional, mas atravessam As guerras intermitentes agitaram
as classes eruditas e a burguesia, com os intelectuais iluministas.
E contaminam e subvertem todos os planos da vida social, não só a de tal maneira a vida quotidiana dos
política e o direito, mas a cultura, a literatura e as artes, a filosofia, franceses que neles nasceu e se
a educação, a moral, a religião e os costumes. É, por assim dizer,
toda a subjetividade francesa que é contaminada, continuando desenvolveu um espírito de revolta,
depois da Revolução Francesa até hoje. No século XIX, o anarquis- aliado à defesa das identidades
mo francês, com Proudhon, e os utopistas (Saint-Simon, Fourier,
Cabet) prolongam o espírito de revolta do Iluminismo. locais, que nunca mais se extinguiu
Não é possível caracterizar este estado propício à contestação do
poder sem tomar em conta o seu avesso, a história da formação
do Estado. Também neste campo a França é um país exemplar.
P
O Estado francês constitui um modelo da construção do aparelho ara compreender a dinâmica destas duas
de poder político central. Lembremos que o grande pioneiro da forças – contra e a favor do poder centra-
teoria da soberania absoluta do Estado foi Jean Bodin, no século lizado – poderíamos utilizar a expressão
XVI. Em áreas tão diversas como a administração e a justiça, mas célebre que um etnólogo, Pierre Clastres, apli-
também na saúde pública e na educação, os diferentes planos da cou às comunidades primitivas: «A socieda-
história do Estado francês foram convergindo para o poder político de contra o Estado.» Não parece exagerado
absoluto (séculos XVII e XVIII) para entrarem em conflito e di- extrapolá-la, com as devidas diferenças, para
vergência com as forças contrárias que se manifestaram no próprio as manifestações reivindicativas do povo fran-
seio do Estado republicano e democrático. Os maiores teóricos do cês. Não que os gilets-jaunes ou os revoltados
século XIX da ideologia conservadora, nacionalista e racista, como contra os projetos de lei da mudança da idade
Maurras e Gobineau, foram também franceses. da reforma representem versões de uma per-
manente afirmação da autarcia da «sociedade
P
odemos então considerar duas tendências opostas e com- contra o Estado». Mas é um facto que, histo-
plementares do espírito francês: a tendência à revolta e à ricamente, a defesa dos direitos do indivíduo
liberdade, e a tendência à afirmação do poder absoluto do se foi enxertando nas lutas pela autonomia
Estado. Napoleão, imperador e libertador dos povos, tirano e regional ou nas lutas sindicais, disseminando-
revolucionário, seria o epítome dessas duas tendências. Conviria -se umas nas outras, e acabando por emergir
então fazer a história das relações, conflitos, sobreposições e com- com novas formas de expressão. Foi o caso, por
binações entre o vetor contestatário e o vetor conservador, entre exemplo, de Maio de 68, em que culminaram
os direitos do indivíduo e os direitos do Estado e da sociedade correntes anarquistas vindas do século XIX e
por ele representada, para compreender melhor a complexidade mesmo do anarco-sindicalismo, comunistas,
das forças em presença. Porque o que chamámos «espírito de troskistas e maoístas, fourieristas e outras
revolta» implica muitas componentes diversas, às vezes mesmo correntes que se «fundiram» e confundiram,
contraditórias (segundo as nossas categorias políticas habituais). e produziram um movimento «político» de
Por exemplo, muitas das revoltas atuais (Córsega, Bretanha) dos um tipo completamente novo.
povos regionais contra o Estado jacobino centralizador, parecem de A sociedade francesa não é contra o Estado
«direita», como pareciam ser as antigas «guerras dos camponeses» porque é também, sem dúvida, pró-Estado –
da Flandres e do Luxemburgo, guerras contrarrevolucionárias mesmo se os franceses desconfiem, em geral,
contra a República francesa (1789). Na verdade, as categorias do seu poder soberano. Mas, se é certo que,
de «direita» e «esquerda» já não se aplicam adequadamente a reativamente, o espírito de revolta se ergue
estes casos. Há, antes, um desejo de independência, digamos, contra o Estado que, paradoxalmente, o vai
existencial, de autarcia de um viver identitário, que subjaz às alimentando, positivamente exprime o desejo
reivindicações políticas, e com elas se mistura – e de que se veem profundo de autonomia e liberdade, sedimen-
traços no famoso «nacionalismo francês», de que o último grande tado e reforçado por séculos de lutas concretas
expoente foi De Gaulle. e de ideias libertárias.
VISÃO H I S T Ó R I A 81
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Commune, uma série de nove fotografias na, não terá estado presente no momentos
da insurreição que revelavam a brutalida- dos disparos, ao contrário do que sugere
de dos rebeldes. a imagem de Appert que o «mostra», de
Mas, embora baseadas em aconteci- barba e de cabeça descoberta, à esquerda
mentos reais, as imagens foram totalmen- da fotografia.
te fabricadas. Appert contratou atores Estas imagens foram posteriormente
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os corpos desses figurantes e colocou-os desinformação e propaganda política.
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FRANÇA // CRONOLOGIA
4 DEZ O massacre de
19 MAI Hasselt põe fim a dois meses
Bonaparte derrota as forças do Sacro de revolta belga contra os
Império na batalha de Lodi, em Itália. ocupantes franceses.
26 DEZ É criado
o Conselho de Estado.
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