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A África e o Ocidente
A ruptura da consciência histórica
africana: o principal obstáculo para
o renascimento africano
Bwemba Bong^
Introdução
o factor dominante da realidade internacional consiste no facto de,
neutralizada por uma agressão ocidental multimilenar, a África Negra
entrar no IIF milênio num estado de fracasso sem precedentes na
História conhecida da Humanidade, sinal prenunciador da iminência
do caos. Com efeito, o povo negro permanece sempre exposto à lógica
mortífera do Ocidente, tal como a França o demonstrou no Ruanda,
em 1994, e mais recentemente, em Novembro de 2004, na Costa do
Marfim, com a i n t e r v e n ç ã o da sua p r e t e n s a c o o p e r a ç ã o franco-
-africana.
Para alêm disso, por forma a evitar ir de mal a pior, o nosso povo
deve apoderar-se deste instrumento de luta necessário que ê a consciên-
cia histórica.
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ao verdadeiro passado da África Negra é encoberto. Nas bibliotecas
mais inacessíveis para os investigadores africanos dignos deste nome,
encontram-se testemunhos escondidos, recolhidos por missionários
acerca da historiografia da África Negra, enquanto que se fabricam fac-
tos reconhecidos desvalorizantes para a "raça" negra, com o objectivo
de a denegrir. Assim sucede com a civilização negra, cuja paternidade
se atribui geralmente ao "gênio semita" nomeadamente, grupo huma-
no acerca do qual se sabe que terá vivido no Egipto faraônico negro,
enquanto simples comunidade de trabalhadores imigrados, tal como
confirma a Bíblia, mesmo sendo conveniente opor o mais categórico
desacordo face à tese da pretensa "escravatura" dos Judeus no Egitpo:
Estabeleceram sobre ele (o povo judeu) chefes de trabalho forçado, com o objec-
tivo de oprimi-los nos seus fardos; e edificaram cidades como lugares de ar-
mazenagem a Faraó, a saber, Pitom e Ramsés. Mas, quanto mais os oprimiam,
tanto mais se multiplicavam e tanto mais se espalhavam, ainda que sentissem
um pavor mórbido por causa dos filhos de Israel. Por conseguinte, os Egípcios
fizeram osfilhos de Israel trabalhar como escravos sob a tirania. E tornaram-lhes a
vida amarga com dura escravidão no pilão em argila e em tijolos, e com toda
forma de servidão nos campos, onde eram usados como escravos dominados
pela tirania.^
A África não faz parte do mundo histórico, não manifesta nem movimento,
nem desenvolvimento, e aquilo que ali aconteceu, isto é, no norte, resulta do
mundo asiático e europeu... Aquilo que apreendemos, em suma, pelo nome de
África, é um mundo a-histórico não desenvolvido, inteiramente prisioneiro do
espírito natural e cujo lugar ainda se encontra no limiar da história univer-
sal*
E, no entanto, escreve Edem Kodjo,foi aqui, em África, que a história começou.
Longe de se tratar de uma firmação gratuita, esta asserção representa uma
realidade científica inegável que se constata ao sulcar o mundo em busca dos
vestígios das civilizações primeiras.^
3. Sertima, Ivan Van, Ils y étaient avant Christophe Colomb-, Flammarion, pp. 133 a 135.
4. Hegel, Friedrich, La Raison dans l'Histoire-, Ed. 1 0 / 1 8 , 1 9 8 2 , p. 269.
5. Kodjo, Edem, Et demain l'Afrique; Ed. Stocit, 1985, p. 309.
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Porém, tal como refere Meinrad Hegba acerca do estudioso Cheikh
Anta Diop, que foi um dos primeiros investigadores a pôr em evidência
a origem negra do povo e da civilização do Egipto faraónico,
Os Negros não foram frustrados da sua História, porque estes nunca tiveram
História, nem sentiram a necessidade de ter uma... Os Negros só descobri-
ram o mundo enquanto escravos... Esta estranha passividade faz com que a
História da África Negra até ao século XIX seja não somente colonialista, mas
ainda epidérmica.'^
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inicial partiram as primfcias da civilização actual. E se as revoluções indus-
triais ou políticas se afiguram caóticas e surgidas do nada, estas são apenas o
ponto culminante da obra obscura iniciada há milénios.^^
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séculos, este regresso ao passado deve sobretudo ajudar o seu povo a
compreender o movimento dialéctico da história, através do qual a to-
talidade humana se constrói e desconstrói; com efeito, a um dado mo-
mento da sua história, os povos erigem poderosas civilizações que se
podem desmoronar depois de terem conhecido um esplendor notável:
As civilizações são certamente mortais, mas a sua morte tem causas e no que
concerne às civilizações passadas da África, devemos estudar os motivos do
seu desmoronamento por forma a melhor preparar os jovens Africanos relati-
vamente ao domínio do seu destino. No que diz respeito aos Estados africanos
da Antiguidade e aos impérios medievais, factores internos e causas externas
convergiram para precipitar o seu declínio, e, posteriormente, o seu desapa-
recimento. De entre os inúmeros factores internos figuram a organização in-
terna da sociedade, o sistema educativo e de transmissão dos conhecimentos
e as dificuldades de administração do território.^^
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sacerdote depositário das tradições ocultas da antiga ciência egípcia,
de Thot e de Amon-ra, perdeu a vida.
E quando o rumor das suas revelações chegou aos ouvidos dos seus colegas,
Wa Kamissoko recebeu a visita dos representantes mais ilustres da função de
griot do Mandé. Estes ordenaram que se calasse. Aquele desobedeceu.^^
Viria a falecer pouco tempo mais tarde, vítima da Lei do silêncio que
proscreve qualquer colaboração dos sábios africanos da sua sociedade,
com base num mal-entendido repousando sobre a distância entre os
depositários dos conhecimentos ancestrais e os novos quadros forma-
dos na escola dos Brancos; nomeadamente no que concerne à concep-
ção do tempo. Com efeito, se para os Africanos formados na escola oci-
dental, tempo é dinheiro, e estes têm geralmente pressa em distinguir
a dissertação, obtendo o máximo de informações possível em tempo
recorde; para os sábios africanos, sendo a confiança a força motriz
de qualquer relação, uma tal agitação para penetrar nos segredos do
conhecimento representa uma grande contrariedade. Tal como afirma
Hampatá Bâ, só a confiança "fornece aquilo que nem a astúcia, nem a
força das armas vos pode proporcionar e aquele que não tem tempo a
perder, nada tem a fazer em África." Certamente, mas a perda de um
erudito da espécie de Kamissoko representa uma grande perda para o
nosso Povo; sobretudo se este não teve tempo de transmitir os conheci-
mentos necessários para a libertação da África e do povo negro.
A este respeito, Hampaté Bâ foi justo ao escrever que em África, "um
ancião que morre é uma biblioteca que se incendeia". Porém, ainda há
muito a fazer para transformar o modo de transmissão dos conheci-
mentos, que coloca em evidência a natureza particularmente aleatória
do sistema da oralidade.
Por outras palavras, para que o incêndio da biblioteca de Hampaté Bâ
seja deplorado, é ainda necessário que esta tenha inicialmente a linha
orientadora de entregar os seus segredos deixando as suas portas
abertas, a fim de que novas gerações de investigadores, da África e do
povo negro, possam aí saciar a sua sede de conhecimento, com vista a
contribuir para a construção do futuro do nosso povo.
A contrario, portanto, é necessário assumir a responsabilidade de
dizer aos sábios iniciados africanos que, impassíveis, continuam ainda
hoje a ver o nosso povo desagregar-se progressivamente a cada dia,
que uma biblioteca que queima cheia de pó, pelo facto de não ser
frequentada por força das suas portas encerradas, não realizou a sua
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Certamente, mas deve dizer-se, o respeito pela vida e pela nature-
za constituiu um obstáculo fundamental para o pensamento técnico,
tendo em conta que não permitiu ao pensamento científico africano já
existente nos templos e nos conventos, explorar e atingir o povo negro.
O revés do pensamento espiritual e humanista africano consiste assim
na sua incapacidade de se afastar do poder divino:
É pelo facto de o espírito africano ainda estar marcado por uma visão do
mundo e uma concepção da existência sempre dominadas pela idéia de uma
potência criadora transcendental, imanente, coexistente a todas as coisas, a
qualquer idéia, a qualquer acção, que o mesmo permaneceu hostil a qualquer
processo de violação e de conquista brutal da natureza exigido por aquilo
que designamos comumente por desenvolvimento. Uma tal visão filosófica do
Africano limita a sua capacidade de investigação e de criação a um universo
não dominado, reduzido ao seu espírito de inciativa, ao seu gosto pelo risco e
pela aventura, logo que se trate de romper a harmonia primordial para orga-
nizar esta vasta reviravolta social que é o desenvolvimento.^'^
20. Lenoble, Robert, Histoire de l'Idée de nature; Ed. Albin Michel, 1969, p. 312.
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colocando-se no seu lugar para compreender, juntamente com ele, o modo
como o mundo foi criado.
A partir dos anos 1620, sábios e filósofos, qualquer que fosse a sua corrente de
pensamento,... todos, apesar de todas as divergências de Escola e das polémi-
cas frequentemente entusiásticas, concordam em afirmar que a Natureza
constitui uma máquina e que a ciência representa a técnica de exploração
desta máquina.^^
Ora, a biologia mostra-nos que não existe oposição tão vincada na natureza.
Qualquer relação ou equilíbrio baseia-se no pluralismo, na diversidade, na
causa mútua. Não existe lógica de exclusão ou de oposição, mas uma lógica
de associação ou de complementaridade.'^^
A África, envolvida com a sua sobrevivência, deve poder meditar nas lições da
História. Deve poder abordar a hora da reflexão e, indo para lá da sua visão
filosófica, tão rica pelo seu humanismo e pela sua harmonia, conceber as vias
e os meios do renascimento através de uma abordagem renovada do facto
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científico que lhe assegura o progresso, respeitando simultaneamente a sua
cultura}^
Cerca do ano 2000 a.C., o Egipto atravessa a crise mais temível que um povo
possa atravessar: a da invasão estrangeira e de uma semi-conquista... Con-
duzida pelos reis pastores chamados Hicsos, esta invasão estendeu-se sobre
o Delta e o Médio Egipto. Os reis cismáticos traziam com eles uma civilização
corrompida, a languidez jónica, o luxo da Ásia, os costumes do harém, uma
idolatria grosseira. A existência nacional do Egipto estava comprometida, a
sua intelectualidade em perigo, a sua missão universal ameaçada.^'^
27. Schure, Edouard, Les Grands Initiés-, Ed. Livre de Poche, p. 165.
28. Diop, Cheilch Anta, Antériorité des Civilisations Nègres. Mythe ou Vérité Historique?; Ed.
Présence Africaine, 1967, pp. 169 e 171.
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armada de mercenários livres ou semi-servis comandados pelos seus chefes na-
cionais; só o alto comando e alguns destacamentos de arqueiros permanecerão
egicpios... O processo atingirá o seu ponto culminante sob os usurpadores
líbios da XXVI- dinastia, mais precisamente sob Psamético. É então que
os elementos nacionais de uma das guarnições da armada egípcia acanto-
nada em Daphne, em Mocéa e na Ilha deAbu recusaram obedecer ao "rei" es-
trangeiro e partiram para oferecer os seus serviços ao rei de Cuche, do Sudão
Nubiano; trata-se da expedição dosAutomolos de que fala Heródoto..P
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a manipular a seu bel-prazer. Esta filosofia política é expressa por
Lyautey^^ que declara sem rodeios:
... a acção política é de longe a mais importante; esta extrai o seu maior vigor
do conhecimento do país e dos seus habitantes Se existem tradições e cos-
tumes a respeitar, existem também ódios e rivalidades que é necessário
desemaranhar e utilizar em nosso proveito, opondo-as umas às outras, apoi-
ando-nos sobre umas, para melhor vencer as outras.^^
as elites africanas devem convencer-se que os seus países não podem continuar
a ser o prolongamento das grandes potências e a amizade, se não mesmo
a cooperação, que se podem estabelecer devem ser exclusivas a qualquer de-
pendência, a qualquer submissão ou servilismo?'^
32. P. Lyautey é citado por P. Guillaume in Le Monde Colonial. Ver também P. Lyautey, L'Empire
Colonial Français-, Ed. de France, 1931.
33. Kodjo, Edem, op. cit.. p. 109.
34. Kodjo, Edem, op. cit., p. 111.
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