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I.

A África e o Ocidente
A ruptura da consciência histórica
africana: o principal obstáculo para
o renascimento africano
Bwemba Bong^

Introdução
o factor dominante da realidade internacional consiste no facto de,
neutralizada por uma agressão ocidental multimilenar, a África Negra
entrar no IIF milênio num estado de fracasso sem precedentes na
História conhecida da Humanidade, sinal prenunciador da iminência
do caos. Com efeito, o povo negro permanece sempre exposto à lógica
mortífera do Ocidente, tal como a França o demonstrou no Ruanda,
em 1994, e mais recentemente, em Novembro de 2004, na Costa do
Marfim, com a i n t e r v e n ç ã o da sua p r e t e n s a c o o p e r a ç ã o franco-
-africana.
Para alêm disso, por forma a evitar ir de mal a pior, o nosso povo
deve apoderar-se deste instrumento de luta necessário que ê a consciên-
cia histórica.

1. A consciência histórica da África Negra en-


quanto base da resistência do povo negro
Sendo a mistificação histórica um dos meios privilegiados através
do qual se age sobre a consciência individual, de uma colectividade
ou de um povo de modo a dominá-lo, o Ocidente recorre à ideologia
da falsificação sob todos os aspectos, com vista a perpetuar a sua mão
invisível na África Negra, a fim de manter o povo negro na escrava-
tura, atê mesmo exterminá-lo, caso este não tome consciência das
ameaças que pairam sobre ele. Neste sentido, tudo aquilo que concerne

1. Historiador, membro do Círculo SAMORY.

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ao verdadeiro passado da África Negra é encoberto. Nas bibliotecas
mais inacessíveis para os investigadores africanos dignos deste nome,
encontram-se testemunhos escondidos, recolhidos por missionários
acerca da historiografia da África Negra, enquanto que se fabricam fac-
tos reconhecidos desvalorizantes para a "raça" negra, com o objectivo
de a denegrir. Assim sucede com a civilização negra, cuja paternidade
se atribui geralmente ao "gênio semita" nomeadamente, grupo huma-
no acerca do qual se sabe que terá vivido no Egipto faraônico negro,
enquanto simples comunidade de trabalhadores imigrados, tal como
confirma a Bíblia, mesmo sendo conveniente opor o mais categórico
desacordo face à tese da pretensa "escravatura" dos Judeus no Egitpo:

Estabeleceram sobre ele (o povo judeu) chefes de trabalho forçado, com o objec-
tivo de oprimi-los nos seus fardos; e edificaram cidades como lugares de ar-
mazenagem a Faraó, a saber, Pitom e Ramsés. Mas, quanto mais os oprimiam,
tanto mais se multiplicavam e tanto mais se espalhavam, ainda que sentissem
um pavor mórbido por causa dos filhos de Israel. Por conseguinte, os Egípcios
fizeram osfilhos de Israel trabalhar como escravos sob a tirania. E tornaram-lhes a
vida amarga com dura escravidão no pilão em argila e em tijolos, e com toda
forma de servidão nos campos, onde eram usados como escravos dominados
pela tirania.^

Tal como salienta Ivan Van Sertima:

Quando o conde de Volney se viu perante a sombra da grande Esfinge, em


1783, e viu estas montanhas, criadas pela mão do homem, que se elevavam
no deserto, este ficou esclarecido e perturbado. Tinha atravessado a região
plana, pontuada por cabanas em palha e grandes tamareiras. Sobre o verde
resplandecente da terra, uma rede estreita de canais de irrigação. Era pos-
sível ver, na margem dos canais, homens esguios de tez negra ou escurecida,
a maior parte negróides, "de nariz curto e achatado, com uma boca larga... e
lábios carnudos"; com um movimento balançado e ritmado, erguiam os bal-
des de rega agarrados à picota. Tratava-se de Egípcios, que, pela tez e pelos
traços, eram semelhantes a muitos escravos do Império Francês. Como é que
as coisas podiam ter sido transtornadas a este ponto? Como é que o sentido da
história podia ter-se invertido tão violentamente?
O conde de Volney sentiu-se invadido por um estranho sentimento de culpa.
Era tão natural considerar os Negros enquanto "lenhadores e carregadores
de água". Quando é que esta maldição teria começado? "Quanto espanto
ressentimos, escreve o autor, ao reflectirmos sobre os Negros, actualmente

2. Êxodo, cap. 1, v. 11 a 14.

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nossos escravos e objecto do nosso desprezo, a quem devemos as nossas artes,
as nossas ciências...".
Quinze anos mais tarde, Bonaparte dirigia uma expedição ao Egipto. Os sábios
que o acompanhavam ficaram igualmente impressionados e surpreendidos.
Concluíram, tal como os Gregos tinham feito mil anos antes, que uma raça
negra estava na origem da civilização egípcia.
Esta redescoberta do Egipto antigo pelos Europeus, bem como a revelação da
forte ascendência negro-africana de uma civilização à qual a Europa tanto
devia, causaram uma espécie de mal-estar; a mesma sobrevinha no momento
mais inoportuno e ameaçava dinamitar o mito da inferioridade inata dos
Negros, necessária para a boa consciência cristã de uma Europa que devia
a sua prosperidade à exploração massiva dos escravos negros. A África era
sistematicamente despovoada. Os seus impérios tinham sido destruídos, a sua
história enterrada, o seu desenvolvimento, paralelo ao de outras civilizações
do mundo, subitamente travado. Apenas alguns elementos antigos ou inaces-
síveis permaneceram intactos, para mais tarde dar origem a falsos testemunhos,
a partir dos quais se deliberou acerca da dimensão e da complexidade da sua
evolução.^

Os Ocidentais não ignoram o facto de a consciência histórica desem-


penhar um papel importante na libertação e elevação mental de um
povo que toma consciência do seu passado. Ao adquirir, deste modo,
um orgulho suficiente, torna-se difícil de manipular; por outro lado,
escolheram também apresentar a historiografia da África Negra de
acordo com uma visão totalmente desfavorável para o povo negro,
com o intuito de o levar à maleabilidade total. O filósofo alemão Hegel
foi um dos que mais se dedicou a este empreendimento:

A África não faz parte do mundo histórico, não manifesta nem movimento,
nem desenvolvimento, e aquilo que ali aconteceu, isto é, no norte, resulta do
mundo asiático e europeu... Aquilo que apreendemos, em suma, pelo nome de
África, é um mundo a-histórico não desenvolvido, inteiramente prisioneiro do
espírito natural e cujo lugar ainda se encontra no limiar da história univer-
sal*
E, no entanto, escreve Edem Kodjo,foi aqui, em África, que a história começou.
Longe de se tratar de uma firmação gratuita, esta asserção representa uma
realidade científica inegável que se constata ao sulcar o mundo em busca dos
vestígios das civilizações primeiras.^

3. Sertima, Ivan Van, Ils y étaient avant Christophe Colomb-, Flammarion, pp. 133 a 135.
4. Hegel, Friedrich, La Raison dans l'Histoire-, Ed. 1 0 / 1 8 , 1 9 8 2 , p. 269.
5. Kodjo, Edem, Et demain l'Afrique; Ed. Stocit, 1985, p. 309.

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Porém, tal como refere Meinrad Hegba acerca do estudioso Cheikh
Anta Diop, que foi um dos primeiros investigadores a pôr em evidência
a origem negra do povo e da civilização do Egipto faraónico,

... quando Cheikh Anta Diop, homem de erudição enciclopédica, publicou a


sua famosa obra Nations nègres et culture, este foi atacado por todos os
lados, ridicularizado, vilipendiado, porque a sua visão da história ousava de-
safiar o esquema dogmático traçado, entre outros, por Hegel e Gobineau, e
que torna o homem negro naquele que nunca contribuiu para o património
da humanidade. Cheikh Anta Diop foi atacado não somente por historiadores
competentes, mas também por pequenos escritores e jornalistas europeus in-
capazes de ler Heródoto ou Diodoro da Sicília no texto, mas que se arrogavam
o direito de rejeitar desdenhosamente as crónicas egípcias destes historiadores
conscienciosos, ... levando o preconceito racista e a má fé ao ponto de recu-
sar o irrecusável, a saber, os traços negróides da Esfinge, por exemplo, ou o
carácter egípcio de tais figuras negras... que a ciência da falsificação e da ma-
nipulação não podia ainda assim classificar como falsas. Face à avalanche de
escárnios, insultos, humilhações desenfreadas contra o investigador senegalês,
quantos intelectuais africanos tiveram a coragem de o defender? Em nome
da história "científica" dos seus mestres, alguns chegaram a segui-los para
denunciar as "teses simplistas" de Cheikh Anta Diop.^

Meinrad Hegba prossegue:

Reteremos dos testemunhos concordantes e independentes de Heródoto, Dio-


doro da Sicília, Ibn Batouta, Volney, bem como dos monumentos históricos
extremamente explícitos, que homens de raça negra criaram e desenvolveram,
nos séculos passados, um elevado grau de civilização, numa época em que as
povoações e as tribos europeias ainda estavam fincadas na barbárie. A re-
viravolta espectacular das situações operadas desde então, não invalida de
modo algum os factos, mas debilitam os fundamentos da teoria arriscada
da evolução linear e irreversível das civilizações. Temos, evidentemente, que
admitir algumas regressões por vezes severas, rupturas de continuidade e
saltos. Restituída a estas pretensões moderadas, a tese defendida por nós já
representa um tema... de orgulho para os nossos povos.^

A ideologia dominante da África Negra é tão vigorosa nos Ociden-


tais, que estes chegam geralmente a acusar os Africanos de manter o
olhar virado para o passado, enquanto que eles próprios se empenham
em instituições responsáveis pela restauração histórica do seu país.

6. Hegba, Meinrad, "L'Homme Vit Aussi de Fierté" in Présence Africaine, 9 9 / 1 0 0 , 9. 21.


7. Hegba, Meinrad, op. cit., p. 39.

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tal como o comprovam as escavações arqueológicas realizadas no Oci-
dente:

... uma necrópole merovíngia foi detectada durante o fim-de-semana pas-


cal em Rummusheim, perto de Mulhouse. Treze túmulos datando dos anos
680-750 foram descobertos a cerca de cinqüenta centímetros por baixo de
um campo de milho. Alguns guardavam objectos, tais como fivelas de cintos,
facas e potes.^

Tendo sido a historiografia da África Negra dita francófona, nome-


adamente, geralmente confiada a funcionários coloniais sem qualquer
formação na matéria, para não mencionar os seus preconceitos negró-
fobos, a conseqüência foi o freqüente surgimento de fragmentos de
antologia. Num artigo publicado em 1972, Henri Brunschwig escreve:

Os Negros não foram frustrados da sua História, porque estes nunca tiveram
História, nem sentiram a necessidade de ter uma... Os Negros só descobri-
ram o mundo enquanto escravos... Esta estranha passividade faz com que a
História da África Negra até ao século XIX seja não somente colonialista, mas
ainda epidérmica.'^

Ora, se os Áfricanos se obstinam em desviar a África Negra da sua


historiografia, é mais pelo receio daquilo que possam descobrir acerca
do seu passado: o medo da verdade que, pela sua essência, levaria a
tomar consciência da fraude e da mistificação, podendo e devendo a
descoberta da verdade - tanto quanto a tomada de consciência da in-
justiça provocar a revolta da consciência negra que se revelaria em
simultâneo com a verdade. Certamente, a memória histórica não pos-
sui um valor absoluto, mas participa, no entanto, no desenvolvimento
da consciência, mesmo que esta não seja a única razão que motive a
necessidade, no caso da África Negra por exemplo, de reapropriação
da sua história. Porque...

Todos estes factos da Pré-história devem ser relembrados aos homens da


actualidade, a fim de que o papel da África no desenvolvimento da civilização
seja enfatizado e o seu lugar reconhecido no progresso do gênero humano,
não só através da sua posição norte-oriental centrada no Nilo, mas também
na sua totalidade. A história consiste num todo e a natureza não concretiza
saltos. O gênio humano representa um conjunto. A partir da nebulosidade

8. Jornal La Nation de 12 de Abril de 1985, p. 16.


9. Brunschwig, Henri, "Histoire, Passé et Frustration en Afrique Noire", in Annales, n.® 5, 1962,
pp. 8 7 5 e 878.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 29
inicial partiram as primfcias da civilização actual. E se as revoluções indus-
triais ou políticas se afiguram caóticas e surgidas do nada, estas são apenas o
ponto culminante da obra obscura iniciada há milénios.^^

Por conseguinte, a História não pode limitar-se a um estudo neutro


e insípido dos acontecimentos passados. O seu conhecimento e a sua
mestria são indispensáveis para a acção e para a vida, e não para
embelezar as bibliotecas; tem ainda muito menos por vocação sobre-
carregar a memória, tendo em conta que concerne o homem activo
que necessita de modelos anteriores e de iniciadores.
O Africano deve, neste sentido, escrutinar os vestígios do passado do
seu povo, com o propósito de suscitar assuntos históricos. Esta tomada
de posição constitui o sinal de uma fidelidade e de um real patriotismo.
Porque, na verdade, a história representa o bem do homem que olha
fielmente e com entusiasmo para as suas origens, para o mundo dos
seus antepassados. Partir de si para chegar a si é uma das variantes do
círculo que deve ser percorrido pelo pensamento histórico. É aquilo
que o saudoso presidente Kwame Nkrumah explicita:

O nosso renascimento africano insiste significativamente no modo de apre-


sentar a história. Deve escrever-se a nossa história enquanto a história da
nossa sociedade, não enquanto história de aventureiros europeus. A socie-
dade africana deve ser considerada como um reflexo de si própria, e os con-
tactos com os Europeus só devem constar sob o ângulo da experiência dos
Africanos, mesmo que tenham sido uma experiência mais importante do que
todas as outras. Por outras palavras, os contactos com os Europeus devem
ser narrados e julgados sob o ponto de vista da harmonia e do progresso
desta sociedade. Quando a história é exposta desta maneira, esta pode deixar
de ser uma narrativa... para se transformar no quadro do drama cada vez
mais trágico e do triunfo final da nossa sociedade. Então, a história da África
poderá guiar e inspirar a acção dos Africanos. A história africana pode, deste
modo, dar a conhecer a ideologia que deve dirigir e inspirar a reconstrução
africana.^^

Ao identificar-se com o gênio familiar do seu povo, o Africano adquire


uma dívida de reconhecimento perante o passado, fazendo com que a
destruição da noção ideológica e mítica da a-historicidade da África o
reconcilie de imediato com a sua natureza. E, ao decifrar o passado,
a linguagem misteriosa que apreende à partida revela-lhe a sua ver-
dadeira identidade. A história torna-se, assim, vital; ê revigorante e

10. Kodjo, Edem, op. cit., p. 38.


11. Nkrumah, Kwame, Le Consciencisme; Ed. Présence Africaine, 1976, pp. 80-81.

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serve a vida. Por outro lado, o olhar retrospectivo do Africano deve
diferenciar-se da atitude do vendedor de antiguidades. Com efeito, se
este lança um olhar sobre o passado longínquo, que se torna subita-
mente próximo e vivo, é para dele extrair lições do declínio da brilhante
civilização que os seus antepassados construíram. Não é através deste
regresso ao passado que o mesmo poderá desvendar as taras da sua
sociedade, os erros cometidos pelos seus antepassados; aqueles que
estavam demasiado confiantes neste facto não souberam proteger-se
dos perigos exteriores.
Em suma, a atitude histórica é compatível com um ponto de vista
crítico: deve vasculhar as suas raízes, revelar as fragilidades que estão
na base da sociedade tradicional, não demonstrar complacência
perante um certo imobilismo latente desta sociedade. Se o Africano
tem conhecimento de que a tradição representa, por natureza, uma
fonte de verdade e uma norma de afirmação, o mesmo não deve igno-
rar que esta pode ser uma constante de inércia. Deste modo, deverá
desconfiar daqueles para quem unicamente a tradição ou o passado
possuem legitimidade, aqueles para quem a simples evocação deste
sistema de referência constitui uma ocasião para discursos adulatórios.

2. As fragilidades e os defeitos da sociedade


africana
A civilização primeira conhecida da humanidade germinou no vale
do Nilo. O Saara, em vias de dessecação, esvaziar-se-á de uma grande
parte do seu povo que partirá do centro da África ao Sul do Saara e
emigrará para a zona onde o Nilo Azul e o Nilo Branco confluem. Um
outro contingente deste Povo subirá em direcção ao mesmo vale do
Nilo para fundar a civilização egípcia, cujos vestígios continuam ainda
hoje a deslumbrar a humanidade:

Contrariamente a estes historiadores que, para satisfazer a sua visão etnocên-


trica do homem, se obstinam em construir, com base em vestígios arqueológi-
cos menos significativos da Mesopotâmia, uma anterioridade e uma primazia
de civilização que os factos e as descobertas recentes vêm hoje desmentir, é de
facto, segundo as fontes mais reconhecidas actualmente, no solo africano, que
a aurora da civilização se eleva}^

Todavia, mesmo se a África deve orgulhar-se dos vestígios da An-


tiguidade e da bela época dos seus grandes Impérios do X.s ao XV.^

12. Kodjo, Edem, op. cit, p. 40.

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séculos, este regresso ao passado deve sobretudo ajudar o seu povo a
compreender o movimento dialéctico da história, através do qual a to-
talidade humana se constrói e desconstrói; com efeito, a um dado mo-
mento da sua história, os povos erigem poderosas civilizações que se
podem desmoronar depois de terem conhecido um esplendor notável:

As civilizações são certamente mortais, mas a sua morte tem causas e no que
concerne às civilizações passadas da África, devemos estudar os motivos do
seu desmoronamento por forma a melhor preparar os jovens Africanos relati-
vamente ao domínio do seu destino. No que diz respeito aos Estados africanos
da Antiguidade e aos impérios medievais, factores internos e causas externas
convergiram para precipitar o seu declínio, e, posteriormente, o seu desapa-
recimento. De entre os inúmeros factores internos figuram a organização in-
terna da sociedade, o sistema educativo e de transmissão dos conhecimentos
e as dificuldades de administração do território.^^

Estas causas internas constituem, ainda hoje, uma das fragilidades


da sociedade africana. Em particular devido ao sistema de castas que,
ainda que com tendência a desaparecer, não deixa de permanecer rela-
tivamente vigoroso na África ocidental, nomeadamente nas zonas sahe-
lianas. Este sistema tem por base a divisão do trabalho, que faz com que
cada função artesanal corresponda a funções sagradas, a vias iniciáti-
cas: unicamente a casta dos ferreiros deverá conhecer os mistérios do
fogo e da transformação da matéria; os artesãos da madeira, por sua
vez, são versados no fabrico dos objectos rituais e das máscaras devido
ao seu conhecimento dos segredos do mato e da vegetação. Devem eles
próprios cortar a madeira necessária para a sua obra; os fabricantes das
pirogas são iniciados nos segredos da água, por exemplo, e cada casta
conserva zelosamente os conhecimentos secretos que detém.
Torna-se evidente que este tipo de organização social favorece a es-
tagnação e impede as mudanças necessárias às alterações sociais, ou
seja, ao progresso. Esta contribuiu grandemente para o enfraqueci-
mento interno da África do passado, não tendo as diferentes castas
que compunham uma parte do mundo do trabalho aceitado divulgar o
conhecimento de que eram detentoras. Sistema do gosto pelo segredo
que, acrescido ao da educação então em vigor, acabaram por prejudi-
car a África, como refere Edem Kodjo:

Por outras palavras, prevalecia um sistema de educação e de transmissão de


conhecimentos isolados. Na verdade, as sociedades africanas eram submetidas
pelos grandes sacerdotes detentores do conhecimento. Verdadeiros mestres

13. Kodjo, Edem, op. cit, p. 41.

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da sabedoria, estes possuíam o domínio da sociedade e constituíam uma casta
isolada que mantinha os seus conhecimentos e o seu savoir-faire zelosamente
afastados do povo. Organizadas em sociedades esotéricas, no seio das quais
o conhecimento só se transmitia por iniciação a uma ínfima minoria de indi-
víduos admitidos por cooptação rigorosamente programada, estes grandes
sacerdotes tinham interesse em manter o povo na ignorância a fim de refor-
çar o seu próprio poder. Deste modo, as massas populares não tinham, de
modo algum, acesso ao conhecimento que as poderia ter ajudado a domi-
nar o seu meio natural... Nestas condições, não é de estranhar que uma vez
liquidada a grande casta dos sacerdotes, detentora da sabedoria, da ciência
e da destreza técnica, as sociedades africanas se tenham visto subitamente
privadas de memória científica e técnica. De facto, o progresso científico e
técnico sempre foi resultado de uma acumulação de conhecimentos difusos
e conservados nas maiores camadas do povo... Por não terem seguido este
procedimento, as grandes civilizações africanas do passado desmoronaram-se,
por falta de renovação e de alargamento do seu pessoal científico e técnico,
frequentemente em resultado do desaparecimento súbito das suas classes
dirigentes, sob o golpe de invasões estrangeiras^*,

Na África antiga, muitos eruditos morreram sem ter partilhado a


mais pequena parcela dos seus conhecimentos. Os túmulos africanos
encontram-se, assim, cheios de sabedoria perdida para a eternidade.
Por outro lado, Ahmadou Hampaté Bâ afirmou em 1 9 7 6 :

Os depositários africanos tradicionais das artes, das ciências e das técnicas


antigas ainda existem. Porém, são pouco numerosos e, de um modo geral,
de idade bastante avançada. O tesouro dos conhecimentos, pacientemente
transmitido há milénios, pode ainda ser recolhido e salvo caso a isso nos
dediquemos atempadamente e aceitemos escutar atentamente as narrativas
dos antigos eruditos.^^

Neste sentido, cabe a cada geração de investigadores africanos ter


em conta este apelo, bem como o futuro do povo africano; a lei do
silêncio imposta pela iniciação exige ser rompida. Não para introduzir
os inimigos do nosso povo aos segredos científicos, que acentuaria o
seu domínio sobre nós e o mundo, mas para colocar a África Negra ao
abrigo de qualquer espécie de imperialismos estrangeiros que garan-
tiram a sua ruína. Ora, pelo facto de ter procurado transmitir conheci-
mentos ao historiador africano Youssef Tata Cissé, Wa de krina, grande

14. Id., op., cit., pp. 41-42.


15. In Courrier de IVNESCO, 1976, p. 17.

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sacerdote depositário das tradições ocultas da antiga ciência egípcia,
de Thot e de Amon-ra, perdeu a vida.

E quando o rumor das suas revelações chegou aos ouvidos dos seus colegas,
Wa Kamissoko recebeu a visita dos representantes mais ilustres da função de
griot do Mandé. Estes ordenaram que se calasse. Aquele desobedeceu.^^

Viria a falecer pouco tempo mais tarde, vítima da Lei do silêncio que
proscreve qualquer colaboração dos sábios africanos da sua sociedade,
com base num mal-entendido repousando sobre a distância entre os
depositários dos conhecimentos ancestrais e os novos quadros forma-
dos na escola dos Brancos; nomeadamente no que concerne à concep-
ção do tempo. Com efeito, se para os Africanos formados na escola oci-
dental, tempo é dinheiro, e estes têm geralmente pressa em distinguir
a dissertação, obtendo o máximo de informações possível em tempo
recorde; para os sábios africanos, sendo a confiança a força motriz
de qualquer relação, uma tal agitação para penetrar nos segredos do
conhecimento representa uma grande contrariedade. Tal como afirma
Hampatá Bâ, só a confiança "fornece aquilo que nem a astúcia, nem a
força das armas vos pode proporcionar e aquele que não tem tempo a
perder, nada tem a fazer em África." Certamente, mas a perda de um
erudito da espécie de Kamissoko representa uma grande perda para o
nosso Povo; sobretudo se este não teve tempo de transmitir os conheci-
mentos necessários para a libertação da África e do povo negro.
A este respeito, Hampaté Bâ foi justo ao escrever que em África, "um
ancião que morre é uma biblioteca que se incendeia". Porém, ainda há
muito a fazer para transformar o modo de transmissão dos conheci-
mentos, que coloca em evidência a natureza particularmente aleatória
do sistema da oralidade.
Por outras palavras, para que o incêndio da biblioteca de Hampaté Bâ
seja deplorado, é ainda necessário que esta tenha inicialmente a linha
orientadora de entregar os seus segredos deixando as suas portas
abertas, a fim de que novas gerações de investigadores, da África e do
povo negro, possam aí saciar a sua sede de conhecimento, com vista a
contribuir para a construção do futuro do nosso povo.
A contrario, portanto, é necessário assumir a responsabilidade de
dizer aos sábios iniciados africanos que, impassíveis, continuam ainda
hoje a ver o nosso povo desagregar-se progressivamente a cada dia,
que uma biblioteca que queima cheia de pó, pelo facto de não ser
frequentada por força das suas portas encerradas, não realizou a sua

16. Afrique Asie, número citado.


17. Courrier de l'UNESCO, número citado.

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função que consiste em ser o lugar primeiro de transmissão do conheci-
mento; que o excesso de gosto pelo segredo constitui sempre a consa-
gração da ignorância, bem como um grave perigo para um povo.
Outra das fragilidades da África Negra consiste no respeito demasi-
ado grande pela vida e pela natureza. Sob um determinado prisma, o
respeito pela vida representa uma força, tendo em conta que o mesmo
demonstra que o homem e a natureza são apenas um; que no univer-
so, cada objecto representa uma actualização da "palavra divina". Para
além disso, ao rejeitar a fragmentação dualista do mundo, porque o
homem está integrado no universo e porque o corpo não é a sombra
do espírito, a concepção africana da vida estabelece uma intimidade
entre a consciência e o mundo, entre a Natureza e Deus.
O pensamento africano oferece assim um monismo protector e um
humanismo divino. Por outro lado, o valor encontra-se carregado de
uma dimensão religiosa; está impregnado de sacralidade. A própria
vida é sagrada, uma vez que a mesma é um dom de Deus; esta não pode
ser, nem suprimida, nem tomada pelo homem. As banalidades das
religiões monoteístas ocidentais acerca do amor pelo próximo, como
imagem de si mesmo, só podem, assim, conduzir a grandes gargalha-
das naqueles que estão impregnados pela filosofia africana da vida,
filosofia segundo a qual o estrangeiro de passagem num país está sem-
pre na sua casa, ainda que em terra desconhecida, uma vez que este
pode ser a manifestação de um antepassado ou de um deus chegado
para testar o nosso grau de hospitalidade. Eis uma filosofia da vida
organizada em sistema comunitário, no qual triunfam os princípios
essenciais de solidariedade e de humanismo.
O pensamento africano, ignorando o individualismo, relaciona in-
timamente o indivíduo ao seu meio natural e humano; a simbiose
homem-natureza é perfeita:

Enquanto que o homem ocidental apenas soube instituir entre o homem e


a natureza, desde o Renascimento, relações de conquistadores, relações de
senhores a escravos, os Africanos dão provas, pelo contrário, de que o homem
e o mundo são apenas um, que toda a natureza representa um corpo e que
eu próprio tomo parte na interacção universal das forças da vida, a vida to-
tal dos homens, dos outros homens e das coisas. O sentimento da vida, é em
primeiro lugar esta comunhão permanente com um mundo vivo, animado,
significante, que pode ser decifrado como um rosto no qual se lêem directa-
mente a angústia, a cólera ou o amor e que não deu origem ao absurdo dualismo
da alma e do corpo. O homem, bem como o mundo no qual vive, é todo uma
alma e todo um corpo.^^

18. Garaudy, Roger, Appel aux vivants-, Ed. Seuil, p. 74.

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Certamente, mas deve dizer-se, o respeito pela vida e pela nature-
za constituiu um obstáculo fundamental para o pensamento técnico,
tendo em conta que não permitiu ao pensamento científico africano já
existente nos templos e nos conventos, explorar e atingir o povo negro.
O revés do pensamento espiritual e humanista africano consiste assim
na sua incapacidade de se afastar do poder divino:

É pelo facto de o espírito africano ainda estar marcado por uma visão do
mundo e uma concepção da existência sempre dominadas pela idéia de uma
potência criadora transcendental, imanente, coexistente a todas as coisas, a
qualquer idéia, a qualquer acção, que o mesmo permaneceu hostil a qualquer
processo de violação e de conquista brutal da natureza exigido por aquilo
que designamos comumente por desenvolvimento. Uma tal visão filosófica do
Africano limita a sua capacidade de investigação e de criação a um universo
não dominado, reduzido ao seu espírito de inciativa, ao seu gosto pelo risco e
pela aventura, logo que se trate de romper a harmonia primordial para orga-
nizar esta vasta reviravolta social que é o desenvolvimento.^'^

Para se compreender até que ponto a mentalidade africana resul-


tante desta concepção do mundo e desta filosofia da existência consti-
tuiu um factor negativo, basta compará-la à idéia que se tem acerca
da natureza na Europa do século XVII. De facto, na obra de Galileu,
publicada em 1 6 3 2 e intitulada Les Dialogues sur les Deux Principaux
Systèmes du Monde, a natureza, deusa universal, foi interpretada con-
sequentemente como uma simples máquina.
Defronte, a organização da cidade antiga grega enquanto fundamen-
to cultural do Ocidente, dá uma idéia da atitude do homem ocidental
face ao estrangeiro: cada cidade, para lá do seu espaço urbano, com-
preendia divisões territoriais ou aldeias que cercavam o aglomerado.
As primeiras eram propriedade de homens ricos, e ali viviam
freqüentemente escravos e eventualmente estrangeiros. Qualquer
estrangeiro fora da sua cidade podia ser mantido na escravatura ou
condenado à morte. Nem mesmo as casas se podiam tocar. No interior
da Cidade existia a mesma injustiça: nem todos os habitantes eram ci-
dadãos; os escravos não possuíam qualquer direito. E quando alguns
estrangeiros eram autorizados a trabalhar, estes só podiam, no máximo,
transportar armas. O pensamento dos Gregos antigos face aos es-
trangeiros constitui uma das conseqüências directas de um individu-
alismo exacerbado, na medida em que o Outro, não é considerado nem
como um irmão, nem como um semelhante, o que faz com este seja
expulso da esfera dos homens. Uma filosofia para a qual aquilo que

19. Kodjo, Edem, op. cit., p. 93.

36 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


conta, sou EU, sendo outrém um estrangeiro, este não possui qualquer
direito. Desde os Gregos, antepassados dos Ocidentais, a Natureza era
aquilo que a ciência contemplava. Ali se decobria uma ordem, pelo
facto de constituir um modelo e uma satisfação estética da inteligên-
cia. É este o motivo pelo qual a arte, incapaz de imitar a originalidade
da natureza, tinha por objectivo reproduzi-la de modo servil, procu-
rando pelo menos arremedá-la. Durante a mesma época, os homens
das ciências dedicavam-se à tarefa de conhecer os seus princípios, não
em laboratórios, mas através da reflexão acerca da essência das coisas.
Só os artesãos, os escravos e todos aqueles que aceitavam dedicar-se
a actividades consideradas vis e indignas de um homem livre é que
se dedicavam à técnica. Com efeito, do Vil- ao XVI^ século, mesmo se
os artesãos e os engenheiros ocidentais permanecem, apesar de tudo,
no exterior desta grande corrente intelectual posta em prática pelas
potências árabes, as universidades europeias ensinam o pensamento
científico e filosófico árabe, ele próprio inspirado em larga medida no
Egipto faraônico. Em 1632, Galileu, ao solicitar aos engenheiros que
descobrissem o verdadeiro sistema do mundo, atribui-lhes dignidade:

O engenheiro conquista a dignidade do sábio, porque a arte de fabricar trans-


formou-se no protótipo da ciência. O que comporta um nova definição do
conhecimento, que já não ê contemplação, mas utilização, uma nova atitude
do homem face à Natureza. Este deixa de observá-la como uma criança
observa a sua mãe, enquanto um modelo; pretende conquistá-la, tornar-se
seu senhor e detentor.^"

Deixando a Natureza de representar um mistério para ele, o homem


ocidental deixava de adoptar perante aquela a atitude da criança que
escuta: este interrogava-a e levava-a a responder-lhe:

O homem vai acostumar-se aos sacrilégios de Prometeu e de ícaro; já não


teme ser fulminado pelos deuses. Descartes, Galileu, Gassandi, e todos os seus
discípulos menores consideram doravante evidente que, conhecer éfabricar, e
que a Natureza nada mais faz a não ser realizar em grande aquilo que apenas
podemos reunir em detalhe e à nossa escala, graças ao engenho dos nossos
técnicos... Não somente já não se receia a ira divina devido a este rapto da
Natureza, mas acredita-se também que Deus nos deu a missão de trabalhar
à sua imagem, de construir o mundo no nosso pensamento, tal como ele o
criou ao oferecer-lhe as suas leis. O físico da Idade Média voltava-se para Deus
descobrindo as suas intenções, as finalidades da Natureza, o físico mecanista
volta-se para Deus penetrando o próprio segredo do engenheiro divino.

20. Lenoble, Robert, Histoire de l'Idée de nature; Ed. Albin Michel, 1969, p. 312.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 37
colocando-se no seu lugar para compreender, juntamente com ele, o modo
como o mundo foi criado.

A Natureza tornou-se, deste modo, uma máquina para o sábio de-


positário do segredo divino. O Grande Livro da Natureza estava escrito
em linguagem matemática. Galileu, que o escreveu, viria a influenciar
a sua época. Já não se ouvia a Natureza, usava-se a mesma:

A partir dos anos 1620, sábios e filósofos, qualquer que fosse a sua corrente de
pensamento,... todos, apesar de todas as divergências de Escola e das polémi-
cas frequentemente entusiásticas, concordam em afirmar que a Natureza
constitui uma máquina e que a ciência representa a técnica de exploração
desta máquina.^^

A Natureza, tal como se observa, dessacralizava-se na mentalidade


ocidental. Nesta parte do mundo, o homem assumia o objectivo de a
dominar e de, a partir dela, usufruir de um bem-estar inexprimível,
tendo ambos sido feitos para se harmonizar na consertação do domínio
de uma pela outra. Aquilo que é de salientar neste Ocidente, que já se
auto-atribui a missão de dominar o mundo, é que apesar destas cor-
rentes mecanista e cientista que abalavam a sociedade, a religião e o
saber não eram incompatíveis. A visão religiosa acomodava-se à crise
intelectual, tanto mais facilmente que, para um Descartes, por exem-
plo, sendo Deus o abonador da Verdade, um ateu não se podia tornar
matemático, ou seja, compreender a Natureza é o mesmo que viver
feliz. A ciência adquiria, assim, um novo estatuto. O homem europeu
não estava preocupado com as suas descobertas, uma vez que estava
convencido de que Deus tinha dado ao homem o poder de dominação
sobre a Natureza, mas que somente o pecado que, retirando-lhe este
estatuto, tinha travado o desígnio divino. Daí o homem europeu ter de
adquirir o domínio das coisas do mundo para concretizar a vontade
divina. Prometeu, filho de Jápeto e irmão de Atlas, transformado em
tenente de Deus, já não teme os seus raios:

A verdadeira ciência, que nos permite, de algum modo, compreender a obra


criadora e nos encaminha a penetrar no segredo divino, torna-se assim, por
acréscimo, num meio de louvar o criador; edificar uma ciência verdadeira é,
tal como repete frequentemente, trabalhar para a causa de Deus. Por fim, a
lei da caridade impõe-nos o auxílio ao trabalho dos homens, bem como o seu
alívio através da invenção de máquinas.^^

21. Lenoble, Robert, Ibid., p. 313.


22. Ibid., p. 315,
23. Lenoble, Robert, op. cit, p. 321.

38 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Em suma, existe aqui o confronto de duas atitudes religiosas: uma,
africana que, decifrando a Natureza enquanto a marca de Deus, vive
em simbiose com esta; a outra, ocidental que, considerando que o de-
ver do homem que pretende ser fiel a Deus, consiste na escravização
da natureza pelo homem. Cada uma destas atitudes tem o seu reverso:
hoje, no Ocidente, perante os estragos causados pela Ciência e pelos
seus derivados, procura-se voltar a uma reconciliação do Homem com
a sua Natureza:

Deve então conceber-se a esfera antropo-sociológica, não somente na sua


especificidade irredutível, não somente na sua dimensão biológica, mas tam-
bém na sua dimensão física e cósmica... Deve então reencontrar-se a Nature-
za para encontrar a nossa Natureza, tal como tinham sentido os românticos,
autênticos guardiãos da complexidade durante o século da grande simplifi-
cação... A Natureza da Natureza está na Natureza. O nosso desvio, relativa-
mente à Natureza, é animado pela Natureza da Natureza.^'^

Claramente, Edgar Morin pretende afirmar que o Ocidente acreditou


durante muito tempo que o homem podia destruir a Natureza impune-
mente. Ora, este aperecebe-se doravante que ele próprio diminuiu o
seu espaço vital, uma vez que este último participa na vida universal.
Por outras palavras, depois de ter fundamentado a sua sabedoria na
lógica da exclusão, a saber que, se eu tivesse razão, estaríeis errado, a
vida sobre a morte, preto ou branco, bem ou mal, acontece por vezes,
ao homem ocidental, perceber que a realidade é hoje mais complexa.

Ora, a biologia mostra-nos que não existe oposição tão vincada na natureza.
Qualquer relação ou equilíbrio baseia-se no pluralismo, na diversidade, na
causa mútua. Não existe lógica de exclusão ou de oposição, mas uma lógica
de associação ou de complementaridade.'^^

O povo negro ganharia caso considerasse esta reviravolta da ciência


contra o homem. Todavia, este pacto estabelecido pelo homem afri-
cano entra a vida e a Natureza não deve, de modo algum, constituir um
obstáculo à sua liberdade, portanto, à sua sobrevivência.

A África, envolvida com a sua sobrevivência, deve poder meditar nas lições da
História. Deve poder abordar a hora da reflexão e, indo para lá da sua visão
filosófica, tão rica pelo seu humanismo e pela sua harmonia, conceber as vias
e os meios do renascimento através de uma abordagem renovada do facto

24. Morin, Edgar, La Vie de la Vie-, Ed. Seuil, pp. 373-374.


25. Rosnay, Joël de, Le Microcosme; Ed. Seuil, p. 254.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 39
científico que lhe assegura o progresso, respeitando simultaneamente a sua
cultura}^

3. As lições que a África Negra deve extrair da


história
Algumas causas internas à África que contribuem para o seu en-
fraquecimento, bem como o do seu povo, acabam de ser revistas. Estas
não são, infelizmente, as únicas. Outros factores diferentes, nomeada-
mente a ética que se opõe à acumulação de riquezas, a exclusão da pro-
moção social, a crença mítica de que os ricos não são abençoados por
Deus, a socialização do indivíduo que não contribuiu para o desenvolvi-
mento de uma massa de desfavorecidos, necessária para a revolta que
teria conduzido à Revolução, as relações familiares particularmente
alargadas e protectoras, geradoras de uma certa indolência, e que con-
tribui geralmente, quer para gerar, quer para alimentar os comporta-
mentos e os actos etnicistas extremamente perigosos para a África Negra,
representam tantos pólos de inércia, os quais devem desaparecer
urgentemente. Para além destes factores, note-se também "os efeitos da
demonstração", a necessidade de aparecer, que origina despesas sump-
tuosas durante as cerimónias fúnebres, por exemplo, práticas correntes
da concepção que os Africanos têm da morte, que não representa o fim
da vida, mas sim uma passagem para uma outra forma de vida.
Torna-se evidente que esta visão da morte, bem como a do casamen-
to e do baptizado, representam obstáculos pesados nos nossos países
devido, entre outras coisas, às dívidas que a família é frequentemente
levada a contrair para responder àquilo que se dirá. Esta corrida à
demonstração desenfreada da opulência enganosa é, por outro lado,
intensificada por aventureiros ao serviço do Ocidente que ocupam o
poder artificial na África Negra, e que se entregam a demonstrações
ostentatórias de riquezas, de resto adquiridas.
A estas causas externas acresce a situação internacional da África
Negra que, há praticamente dois mil e quinhentos anos, sofreu um de-
clínio que não pára de se agravar. Com efeito, o Egipto negro, cujas rique-
zas nunca tinham deixado de ser cobiçadas pelos povos estrangeiros,
era, há milénios antes de Cristo, alvo de vários ataques, entre os quais
um, de origem asiático, teve lugar sob a VIF dinastia. Porém, a pior
pressão exercida sobre o país negro foi nomeadamente a das hordes
Hicsos, bárbaros de origem asiática. O sacerdote egípcio, Manethon,
refere:

26. Kodjo, Edem, op. cit, pp. 86-87.

40 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Sob o reinado de Timaios, a ira divina assolou o Egipto; sem se saber porquê;
contra qualquer expectativa, homens de uma raça desconhecida, provenientes
do Oriente, ousaram invadir o país, apoderaram-se dele sem combate, tomaram
chefes como prisioneiros, incendiaram as aldeias selvaticamente, saquearam os
templos dos deuses e maltrataram duramente os habitantes, degolaram uns e
reduziram outros a escravos com as suas mulheres e crianças.

Foi deste modo que, durante perto de dois séculos, de 1 7 8 0 a


1580 a.C., o Egipto foi submetido ao domínio obscurantista dos Hicsos. A
libertação do país só chegará em 1580, do Sul, da realeza de Tebas, pelo
rei Kamósis e o seu sucessor Amósis 1, que travaram uma verdadeira
guerra de libertação para conseguir expulsar estas hordas estrangei-
ras do Egipto. Edouard Schure, que se dedica a esta época, escreve:

Cerca do ano 2000 a.C., o Egipto atravessa a crise mais temível que um povo
possa atravessar: a da invasão estrangeira e de uma semi-conquista... Con-
duzida pelos reis pastores chamados Hicsos, esta invasão estendeu-se sobre
o Delta e o Médio Egipto. Os reis cismáticos traziam com eles uma civilização
corrompida, a languidez jónica, o luxo da Ásia, os costumes do harém, uma
idolatria grosseira. A existência nacional do Egipto estava comprometida, a
sua intelectualidade em perigo, a sua missão universal ameaçada.^'^

As hordas bárbaras que não deixarão, contudo, de se basear no Egip-


to, enfraquecerão o Médio Império até serem escorraçadas do país, que
atravessará, no entanto, apenas um curto período de prosperidade alter-
nado com pequenos ataques externos imediatamente reprimidos. To-
davia, a morte de Ramsés II em 1 2 0 5 reavivou os ataques estrangeiros
contra o Egipto. Nomeadamente os dos povos do mar, de origem indo-
-europeia que, contrariamente aos Hicsos, não conseguirão ocupar o
Egipto, ainda que este se encontre num período de anarquia cada vez
maior; esta anarquia levará Ramsés 111 a integrar, no exército egípcio,
militares estrangeiros contratados enquanto estrangeiros auxiliares
sob o nome de Kehek, ao lado da armada nacional propriamente dita:
"Veremos que são os elementos estrangeiros, que nada relacionava
sentimentalmente à terra do Egipto, que provocarão a deliquescência
dos costumes políticos a partir de Psamético"^®, escreve Cheikh Anta
Diop, que prossegue:

... O exército egípcio desnacionaliza-se. Acaba por ser essencialmente uma

27. Schure, Edouard, Les Grands Initiés-, Ed. Livre de Poche, p. 165.
28. Diop, Cheilch Anta, Antériorité des Civilisations Nègres. Mythe ou Vérité Historique?; Ed.
Présence Africaine, 1967, pp. 169 e 171.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 41
armada de mercenários livres ou semi-servis comandados pelos seus chefes na-
cionais; só o alto comando e alguns destacamentos de arqueiros permanecerão
egicpios... O processo atingirá o seu ponto culminante sob os usurpadores
líbios da XXVI- dinastia, mais precisamente sob Psamético. É então que
os elementos nacionais de uma das guarnições da armada egípcia acanto-
nada em Daphne, em Mocéa e na Ilha deAbu recusaram obedecer ao "rei" es-
trangeiro e partiram para oferecer os seus serviços ao rei de Cuche, do Sudão
Nubiano; trata-se da expedição dosAutomolos de que fala Heródoto..P

Apesar de tudo, estes ataques estrangeiros esgotaram o Egipto, que


foi progressivamente enfraquecendo, sem jamais voltar a reencontrar
o seu esplendor, nem mesmo os seus territórios do Médio-Oriente,
para mais tarde se desmoronar completamente sob os ataques suces-
sivos dos invasores Assírios, Persas, Gregos e, por último. Romanos.
Esta presença física de uma autoridade estrangeira nas terras do Egip-
to provocará grandes êxodos de Africanos que emigrarão em direcção
ao Centro da África, ao Oeste, ao Sul, e que vão constituir uma parte
do povoamento actual da África, cujos grandes Impérios (Gana, Mali,
Songhai, Monomotapa, etc.) vão, por sua vez, sofrer estas invasões
estrangeiras para finalmente se desmoronar, nomeadamente sob os
ataques dos Almorávidas. Em 1706, Gana, a capital, desintegrar-se-á:

Os Almorávidas tinham manifestado uma crueldade excepcional aquando da


tomada do Gana: os bens eram pilhados, os habitantes massacrados. Após
esta interrupção de 10 anos, o Gana será ainda atacado pelos vassalos Sossos,
mas conseguirá manter-se até ã investida da capital por Soundiata Keita, em
1240.^°

Segundo Wa Kamissoko, Soundiata Keita, que vai atribuir ao Mali todo


o seu poder, levará a cabo uma guerra implacável contra os vassalos
Sossos, a fim de acabar com a escravatura e com o comércio de negros
que estes cortesãos, antepassados espirituais dos actuais presidentes
africanos autoproclamados, praticavam com os Árabes. Porém, o Império
do Mali será anexado pelo Império do Songhai que, durante a batalha
de Tondibi, será destruído por Marroquinos equipados com armas de
fogo e conduzidos pelo eunuco espanhol Djader Pacha. Na África Cen-
tral, os reinos do Kongo, Lunda, Luba e Kuba foram desintegrados sob
os ataques Europeus. As agressões contra a África Negra terão, por fim,
como ponto alto as razias negreiras transatlânticas que se prolongarão
durante quatro séculos, e que levarão cerca de 4 0 0 milhões de Africanos:

29. Diop, Cheikh Anta, Ibid.


30. Diop, Cheikh Anta, L'Afrique Noire Précoloniale: Ed. Présence Africaine, p. 71.

42 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


o tráfico, esta tragédia de múltiplas facetas, continuará a ser o empreendi-
mento mais significativo de escravização e de degradação do homem. Esta
agressão cruel, na qual praticamente todas as nações europeias participa-
ram... desorganizou a sociedade africana no seu mais profundo âmago. Ao
liquidar os Estados constituídos, ao destruir as bases morais das sociedades
estabelecidas, ao saquear as estruturas de produção intectual e material e ao
deportar os recursos humanos mais vigorosos e mais brilhantes, o tráfico deixou
marcas indeléveis na consciência e na vida social dos povos africanos^^,

escreve Edem Kodjo.


Foram estas diversas invasões que provocaram a desestruturação
da sociedade, que se manifestará pela fuga desordenada das popula-
ções aterrorizadas. É deste modo que os Estados outrora constituídos,
apenas terão doravante uma existência efêmera, face à implementa-
ção do desenvolvimento de reinos de agentes negreiros, à ascen-
são ao poder e ao triunfo de toda a espécie de criminosos arrivistas
totalmente corrompidos, colocados e mantidos no poder através das
armas dos países estrangeiros, tal como acontece hoje com a matilha
de presidentes-grandes-timoneiros-pais-da-nação, peritos em qualquer
categoria de fraude eleitoral e outras trapaças ou vigarices reveladas.
O povo negro deve, por conseguinte, ter consciência de que as in-
vasões que fragilizaram a África Negra, que permitiram a sua ocupação
pelos povos estrangeiros, bem como a deportação esclavagista de cen-
tenas de milhões de Africanos, só foram possíveis devido a numero-
sos factores, entre os quais o facto de os construtores de impérios, os
grandes chefes cercados por toda a parte, terem de combater simulta-
neamente em duas frentes: contra os invasores árabes e ocidentais. No
plano africano, esta estratégia de deslocação da África Negra forçou,
no seu tempo, El Hadj Omar e Ahmadou Bamba a enfrentar a revolta
fula, enquanto combatiam os Franceses. Samory [antigo rei na actual
Guiné), por seu turno, cerca de 1890, estava em guerra contra os Fran-
ceses, ao mesmo tempo que se defendia contra Tieba, rei de Sikasso
(Mali); Behanzi (Benim), escorraçado do trono, viu o seu irmão Agon-
glo ser proclamado rei pelo sanguinário capitão Dodds; o Mohro-Naba
(actual Burkina Faso), enfraquecido pelos bandos Zerma provenientes
da região de Niamey, não conseguiu fazer face durante muito tempo à
barbárie da expedição francesa de 1896. No Tchade, as guerras con-
tínuas que se travavam entre os quatro Estados do Kanem-Bornou,
do Baguirmi, do Ouaddai e do Darfur, prestaram grandes serviços ao
invasor francês, que se instalou impiedosamente nesta região, e que
continua até hoje, tal como nas suas restantes possessões africanas.

31. Kodjo, Edem, op. cit., p. 96.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 43
a manipular a seu bel-prazer. Esta filosofia política é expressa por
Lyautey^^ que declara sem rodeios:

... a acção política é de longe a mais importante; esta extrai o seu maior vigor
do conhecimento do país e dos seus habitantes Se existem tradições e cos-
tumes a respeitar, existem também ódios e rivalidades que é necessário
desemaranhar e utilizar em nosso proveito, opondo-as umas às outras, apoi-
ando-nos sobre umas, para melhor vencer as outras.^^

Por conseguinte, torna-se imperativo, para o povo negro em geral


e para a África Negra em particular, meditar tanto na história do seu
passado, como na do seu presente. As divisões suscitadas pelos desen-
tendimentos e pelas rivalidades são e serão sempre exploradas pelos
interesses estrangeiros à África Negra e ao povo negro. As traições e as
ganâncias, que gangrenam a África Negra, são frequentemente devidas
à falta de patriotismo de um grande número de Africanos, consequên-
cia da ruptura da sua consciência histórica. Foram estas dificuldades
que fizeram sombrear a África Negra, pelo erro passado de reis de-
masiado confiantes no estrangeiro, e hoje de arruaceiros de colarinho
branco, sedentos de poder, fonte de estipêndios de toda a espécie. A
desunião da África Negra, no presente e no futuro, não prejudicará so-
mente o continente subsaariano, mas arrastá-lo-á para o caos inevitável,
caso o povo negro, principalmente a sua juventude, não se manifeste
através de um sobressalto salutar; porque o povo negro deve saber que
a renúncia a qualquer desejo de independência representa também o
indício de uma traição: "A lealdade a uma potência estrangeira, mesmo
amiga, nunca adquiriu outros ares que não o de uma alta traição". Para
além disso,

as elites africanas devem convencer-se que os seus países não podem continuar
a ser o prolongamento das grandes potências e a amizade, se não mesmo
a cooperação, que se podem estabelecer devem ser exclusivas a qualquer de-
pendência, a qualquer submissão ou servilismo?'^

Os países estrangeiros que colocaram e mantêm actualmente, no


poder da África Negra, déspotas cujo um dos objectivos consiste em
perdurar o máximo de temppo possível a fim de provocar o maior
número de estragos possível para a África Negra, são estes mesmos

32. P. Lyautey é citado por P. Guillaume in Le Monde Colonial. Ver também P. Lyautey, L'Empire
Colonial Français-, Ed. de France, 1931.
33. Kodjo, Edem, op. cit.. p. 109.
34. Kodjo, Edem, op. cit., p. 111.

4 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


que, há menos de um século, praticavam as razias esclavagistas que
continuam a sangrar a África e toda a raça negra. Aqueles nunca foram,
e nunca serão amigos do povo negro. Esquecer isto seria não somente
cometer um erro grave, mas uma opção de suicídio. O povo africano
deve mobilizar-se para concretizar urgentemente a sua unidade políti-
ca, única garantia do futuro do povo negro.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 40

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