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Sertão Junino 2020: Apresenta: A Fome que nos move.

Um texto de Jonh Darly, inspirada na obra “A Casa que a Fome Mora” de Antônio Francisco, e na vivência
cotidiana do nosso povo sertanejo do nordeste Brasileiro.

Personagens: Justino, Felícia, Faminen, Ganâncio, Afano, Formosinha, Dona Vida, Filó,
Cantador, Cangaceiro 1 (Isqueiro), Cangaceiro 2 (Candeeiro), Padre, Juíz, Figurantes.

Cantador de viola senta no seu banco e canta a música enquanto imagens do dia a dia passam
pelo meio da cena, e corre um figurante anunciando a chegada dos figurantes a cidade de
todos nós.

CENA 1:

CANTADOR:

Eu de tanto ouvir falar dos danos que a fome faz, um dia sai atrás da casa que ela mora.
Passei mais de uma hora rodando numa favela, por gueto, beco e viela, mas voltei
desanimado, aborrecido e cansado sem ter visto o rosto dela.

Vi a cara da miséria zombando da humildade, vi a mão da caridade num gesto de um mendigo


que dividiu o abrigo, a cama e o travesseiro, com um velho companheiro eu estava
desempregado, vi da fome o resultado, mas dela nem o roteiro

Vi o orgulho ferido nos braços da ilusão, vi pedaços do perdão pelos iníquos quebrados, vi
sonhos despedaçados partidos antes da hora, vi o amor indo embora vi o tridente da dor mas
nem de longe via a cor da casa que a fome mora.

Vi num barraco de lona um fio de esperança nos olhos de uma criança, de um pai abandonado
primo carnal do pecado irmão dos raios da lua, com as costas seminuas tatuadas de caliça
pedindo pão e justiça do outro lado da rua.

FIGURANTE: Vai timbora seu Francisco Bessa, que os justiceiros estão vindo aí. As coisas no
sertão está tão difícil que até os cangaceiros voltaram findaram em aparecer de novo. (Ele
corre e deixa seu Francisco sozinho, enquanto Justino e seu bando chegam na cidade de
Todos nós)

JUSTINO- Inté que fim chegamo por essas banda, foi muito chão até chegar por aqui.
CANGACEIRO 1- Mas capitãozim, o q foi que ´nóis vinhemo fazer por aqui, nesse fim de
mundo, parece uma cidade fantasma, não tem nada, todo mundo se escondeu quando
chegamo.

JUSTINO– Deixe de ser abestado, foi por isso mermo que vinhemo pra cá, não ta vendo a
situação dessa cidade, onde a miséria e a desesperança são as companheira de todo dia.
CANGACEIRO 2- Capitaozin... deixe de adular o capitão, puxa saco.

JUSTINO – Vamo parar vamo parar, fazendo favor, que eu já pedi pra não me chamar de
capitão, pq me lembra um fí duma égua aculá;

CANGACEIRO– Marvixe, então é pra chamar de que.

JUSTINO – Macho num me azogue não, que eu não tenho paciência.

CANGACEIRO 2- Oh Justino, nós tamo com fome, (Olhando em suas coisas) e num tem mais
nem um punhado de farinha, nem um pedacim de rapadura...

CANGACEIRO 1- Eu queria tanto uma rapadurinha, nem que fosse só um bilisquim.

CANGACEIRO 2- Num seja por isso. (belisca o companheiro)

CANGACEIRO 1- Ai peste, azalado de pai e mãe.

JUSTINO – é camaradas... nós chegamos aqui exatamente pra isso, vamo matar a infeliz da
fome, que paira nessa região, o rastro de miséria e sofrimento que percorremos nos levou até
aqui. Vamo procurar essa desavergonhada que ta matando nosso povo.

(Um dos cangaceiros percebe a chegada de uma senhora com um balaio)

CANGACEIRO 2- Parou parou, quem é a senhora... que ta chegando de mansim...

VIDA- Menino pela hóstia santa, num atire em mim não, eu não tenho muita coisa mas pode
levar tudo. Só me deixe viva.

JUSTINO – Num se adiante não senhora, que ninguém vai te fazer mal.

VIDA – Ah pois essa armas aí.

JUSTINO- Aqui é só por precaução pra combater o verdadeiro inimigo, e com certeza não é o
povo. Eu vim aqui pra matar a fome.
CANGACEIRO 2- Qual é sua graça.
VIDA- E desde quando pobre tem graça? É só desgraça mesmo.
CANGACEIRO- Pois qual sua desgraça?
VIDA- Vixe meu fi, meu nome é Vida, sou pobre lascada, sem dinheiro pra comprar uma
bolacha, vivo sem luz, água só quando o carro pipa aparece, e comida, uma vez por dia
quando consigo um lavado de roupa, uma faxina. Mas por aqui é difícil, todo mundo passa as
mesmas dificuldade, só o prefeito e a famía que vive no luxo. E nós o povo toma naquele
canto.
CANGACEIRO– A senhora sabe qual o problema?
VIDA- Qual?
CANGACEIRO- O rico cada vez fica mais rico.
CANGACEIRO 2- E o pobre cada vez fica mais pobre.
CANGACEIROS- E o problema todo mundo já conhece é o que de cima sobe! E o debaixo
desce.
JUSTINO- É mas isso vai mudar... fé em Santa Dulce dos pobres, que as coisas vão mudar. Eu
tenho fome de justiça, meu povo do sertão vai encontrar fartura.
VIDA- É meu fí, a gente é pobre mas num esmurece não. Só quem sabe as dificuldades da
vida, sabe o valor que ela tem. Deus há de fazer justiça, desses cornos que tira de nós pra
colocar no bolso. Ta na bíblia. Bem aventurados os que tem fome e sede de justiça, pois eles
serão saciados.
(ouve se uma voz dando uma risada bem diabólica ecoando pela cena)
CANGACEIROS- Vailei-me Cristo.
CANGACEIRO- O cão ta por aqui.
CANGACEIRO 2- (com medo) Acampa seus anjos meu pai, vai quebrando todo o mal.
JUSTINO- Isso é a danada da fome, debochando da nossa cara, essa condenada, vai ter o que
merece. Venho caçando essa sibita, desde a infância, quando ela matou meus pais, eu fui
criado pelo mundo. Comendo dia sim dia não, roubando caju, macambira, o que tivesse mais
fácil. A senhora tá certa, dona vida, só quem vive a dificuldade, sabe o valor das coisas. Minha
fome de justiça vai ser saciada. Vamo atrás dessa enguiçada.
VIDA- Oxe, mas como é que você vai procurar a fome? onde será que ela tá?
JUSTINO- dona vida, eu aprendi desde cedo que a fome assola os pobres, mas é causada
pela ambição dos ricos. É nesse rumo que nós vamos. Rumbora pessoal. (Saem de cena).
VIDA- Menino... O caldo vai é esquentar!
(Vida fica ajeitando sua cesta de qualquer coisa que caiu, enquanto chega Felícia apavorada).
FELÍCIA- Dona vida pela misericórdia, eu tava indo pra casa quando ouvi um rebuliço, o
pessoal falando que uns cangaceiros invadiram a cidade. Que conversa é essa.
VIDA- Menina vai pra casa, que se eles te veem assim toda arrumadinha, igual uma
barbiezinha, eles roubam tudo que você tem. Se eles sabem que você é filha do prefeito, nem
sei o que eles fazem. (muda de tom) Deus me perdoe minha filha, mas todo mundo sabe que
seu pai não vale um pacote de bolacha, todo mundo sabe que a situação de abandono e
miséria que a gente vive hoje é culpa do roubo e desvio que ele faz na prefeitura.
FELÍCIA- Eu queria poder ajudar a senhora, e o povo da cidade, mas não sei o que fazer... eu
não sei se meu pai é mesmo corrupto, ou só um pateta que não soube administrar.
VIDA- venha comigo que eu vou te levar pra casa, já fiquei amiga íntima dos canga. (pega na
mão de Felícia pra sair de cena com ela, mas Justino chega anunciando que ouviu toda a
conversa).
JUSTINO- Opa... opa.. opa. Filha do prefeito é...
VIDA- Não machuque ela, ela não tem nada a ver com as coisas do pai.
(Eles se viram e se encaram romanticamente, ao som do instrumental criminal da Britney
spears)
FELÍCIA- Você que é o tal cangaceiro que invadiu a cidade??
JUSTINO- Sou... Não está com medo?
FELÍCIA- (se fazendo de corajosa) Medo?? Eu não. Nunca fiz mal a ninguém...
JUSTINO- É... E o seu pai?? Me parece que toda a cidade está na miséria, enquanto na sua
casa todos vivem no luxo.
FELÍCIA- O que você está tentando insinuar??
JUSTINO- Que seu pai, e pessoas como ele são responsáveis por toda miséria e fome que
vimos nessa região.
FELÍCIA- E o que você pensa em fazer a respeito?
JUSTINO- Justiça!
FELÍCIA- Olha seu justiceiro (abrindo aspas), o senhor está muito enganado meu pai não tem
nada a ver com isso, pelo menos assim espero.
JUSTINO- Isso é o que vamos ver... Vou la vossa casa, pra ter certeza.
FELÍCIA- (com medo) Na minha casa???
JUSTINO- Olha moça, você sabia que so um abestado responde uma pergunta com outra
pergunta?
FELÍCIA- Eu?? Digo... (mudando de tom) me respeite, só por que vc ta com isso aí. (aponta
pra espingarda) você pode me desrespeitar. Seu bruto.
JUSTINO- Vixe maria, que eu sou doido por uma mulher valente.
FELÍCIA- (Ri envergonhada mas se faz de difícil) é mas eu não sou pro seu bico... Aqui não é
romance amore! (e sai).
JUSTINO- Olhe aqui senhorita... Eu vou ate a casa do seu pai, meus homens já estão no
caminho.

CENA 2:

AFANO (caracterizado e com a voz da fome)- Maldição!!!! Esse Justino me encontrou, eu devia
ter matado esse intrometido assim que tive a chance. Já me disfarcei de tudo, imperadores,
princesas, marechais, coronéis, fazendeiros, presidentes, sempre me safei, mas nunca alguém
me caçou tão de perto. Tenho que fazer alguma coisa... (prefeito chega, e Afano pigarreia e
volta com uma voz humana).

GANANCIO- Afano (com medo cômico) que história é essa que os justiceiros invadiram a
cidade?? E agora minha nossa senhora da fortuna... Eles vão vim pra cá, vão levar tudo.
Abençoa meu pai, cega eles.
AFANO- Chama a polícia, você é autoridade máxima nessa cidade.
(Filó que escutava toda a conversa)
FILÓ Minino... tu num soube não, ele botou a polícia todinha pra correr. Também, dois
soldados véi mequetrefes tem coragem de enfrentar ninguém... Outro dia com os fogos de
artificio eles correram pensando que era tiro).
GANANCIO- Vai lá pra dentro fazer seu serviço e deixa de bisbilhotar aqui mixiriqueira. e pare
de comer minha comida, morta fome.
FILÓ- Unha de fome! (sai)
GANANCIO- Eu tenho que esconder meu milhão, se não eles vão levar. (pega o milhão e trata
com carinho).
AFANO- Deixe de ser besta homi, (coloca o prefeito em uma espécie de transe). Você pode ter
muito mais, é só desviar da prefeitura, em obras fantasmas, obras superfaturadas... Na
merenda da escola que nunca chega (deboche) Diga me do que você tem fome...
GANANCIO- Eu... Tenho fome de poder, de dinheiro!
AFANO- Isso... Poder e dinheiro nunca são demais, principalmente quando me fortalece
(risada).
GANANCIO- Dinheiro e Poder nunca são demais!
FORMOSINHA- (chega gritando e quebra o transe) Acode aqui Gansinho, que os cangaceiros
tomaram tudo, tá na boca pequena que eles tão vindo pra cá. Meu deur do céu eu tenho que
me arrumar, se for pra morrer, quero tá pelo menos bela e chique. Eles vão querer levar meus
cremes caros, minhas roupas finas. Oh meu deus, cancela esse povo.
GANANCIO- Aquieta esse facho mulher que ninguém vai morrer não! Num é Afano...
AFANO- (desconversando) De jeito nenhum.
FILÓ- Olhe eu não posso morrer hoje não! Eu tenho criança.
(Batidas na porta)
FORMOSINHA- Meu deus eles chegaram! Filó pelas chagas de cristo ressuscitado não abra
essa porta! Eu vou buscar passar meu batom e vestir uma roupa boa, tô muito basiquinha.
FILÓ- Eu mermo num vô abrir essa porta não minha filha, se você tiver pensando. Tire seu
cavalinho da chuva.
GANANCIO- Tá legal, todo mundo calmo. Eu vou abrir.
FILÓ- Vou correr pela porta da cozinha. Vocês que lutem, por que eu vou pegar o beco.
(GANANCIO vai abrir a porta, e dar de cara com Felicia
GANANCIO- Filha... Ah Graças a... Justino aparece por trás de Felicia. Ai Jesus...
(JUSTINO CHEGA apontando a espingarda na cabeça do prefeito).
JUSTINO- Você que é o capiroto, que é prefeito dessa cidade.
GANANCIO- (Pigarreando) Sou eu sim senhor, capitão....
JUSTINO- Não gosto que me chamem de capitão...
GANANCIO- Perdoe minha ignorância.
JUSTINO- Olhe o seguinte é esse.
FELICIA- Justino calma, você está fazendo suposições, mas não sabe se meu pai é realmente
culpado.
GANANCIO- Culpado? Eu? De que? (desconversando)
JUSTINO- Não se faça de tolo, seu canalha. Você não vê como está a população que o senhor
deveria proteger, e promover o bem estar social.
AFANO- O que o senhor quer dizer com isso... A população está ótima! As crianças felizes, o
povo satisfeito. Infelizmente a crise que toma conta do nosso país cortou muitas verbas da
prefeitura... E não se pode fazer muita coisa. Mas pergunte ao povo como nosso perfeito é
excelente, infelizmente Filó foi embora... ela poderia confirmar.

(Ganancio, concordando com a cabeça, e Filó surge do nada escondida em algum objeto do
cenário que faz parte da casa.

FILÓ- Deixe de ser sem vergonhe, cabra vei sem vergonhi, que isso é tudo mentira. As
pessoas estão indo embora da cidade, por falta de oportunidades, não se tem mais emprego,
nem expectativa de vida, felizmente ganho uma mixaria aqui pra dar de comer minhas crias.
Mas muitos não tem nem como se manter, procuram comida no lixo pra não morrer de fome; a
sorte é os vizinhos que se juntam. Porque se for pra sair e sofrer nas ruas do mundo, é melhor
contar com a sorte em casa ao lado dos amigos. Porque quem tem amigo tem tudo.

GANANCIO- Diabo de mulher linguaruda. Tu não disse que ia embora sibita...


FILÓ- Eu ia mas não podia perder esse babado e confusão. E tem mais amore, eu vou rasgar o
véu da viúva, porque ninguém me cala, eu sou empoderada. Seu Justiceiro, eu tava
bisbilhotando a conversa desse aí com esse cão miúdo. E vi eles escondendo um milhão...
Dizendo que foi todo de dinheiro da prefeitura.
FORMOSINHA- Valha mulher como você é fuxiqueira deur me livre.
FILÓ- Valha o que mulher? Eu só falei os fatos amore, sinto muito sou verdadeira.
JUSTINO- Que história essa hem seu fuleiro, cadê esse milhão.
AFANO- Homi deixe de conversa essa mulher tá é brôca e rôta. O milhão que ela viu foi ali da
horta do seu Zé, ela cheirou poeira demais e tá vendo visagem.
FILÓ- O senhor me respeite, seu corno. Eu sou pobre, mas tenho honra. Venha me chamar de
brôca que quebro esse cabo de vassoura no seu espinhaço.
JUSTINO- (apontando a espingarda pro Ganancio).
FORMORSINHA- Pelo amor de Deus, não machuca Gansinho, sou muito jovem e bonita pra
ser viúva.
FILÓ- Seu menino, leve o dinheiro, açoite esse sem vergonha, mas num bula com minha
bichinha não viu. Felicia não tem nada a ver com as presepadas desses dois.
FORMOSINHA- Essa gentinha é assim, a gente coloca dentro de casa, dá emprego, dá o pirão
pra comer, e depois da a facada nas costas né Filó. Você tá demitida.
FILÓ(debochando) Mulher se eu fosse você é eu tinha era vergonha na cara. Quantos meses
faz que você me dá uns trocadinhos, 1kg de arroz, 1 kg de farinha, pra trabalhar... E o dinheiro
que eu mereço receber nada né... Cansei amada. Não sou bacorinha pra comer resto.
FORMORSINHA- Bicha nojenta.
FILÓ- Eu já tava pra me demitir. Esse tipo de ajuda que você diz que dar... Troca um pedaço
de pão por um pedaço de céu, tenha vergonha na lata mulher.
FELÍCIA- Vamos todos nos acalmar por favor, pai, eu sempre fui cega em não ver tudo isso
que você fez, que vergonha, trocar sua honra por dinheiro, por poder.
JUSTINO- Olha eu só quero saber onde tá esse milhão. Se falar não vai dar problema pra
ninguém. Não sou a favor da violência. Eu sou um servo da justiça com os mais pobres.
AFANO- Justiça?? As coisas estão indo bem, obrigado. Pobre já é acostumado com miséria,
foi assim, sempre foi. É a roda da vida, ricos e pobres, uns em cima e uns embaixo,
exploradores e explorados, não será você quem vai fazer essa roda parar de girar. O mundo é
dos mais fortes.
JUSTINO- O senhor tem razão, eu não quero que essa roda pare de girar. Eu quero destruir,
esbagaçar essa roda. Eu ainda verei meu povo com uma vida digna sem viver humilhado, e
podendo ter as mesmas oportunidades de quem tem dinheiro. Nesse país a cultura de vc so
vale o que você tem, um dia acaba! E essa é minha missão de vida, e serei um mártir por essa
causa.
FELÍCIA- Você tá certo, Mas tem outras maneiras de fazer justiça.
JUSTINO- Infelizmente nós somos o que vemos. Aos oito anos vi meu pai e minha mãe
morrerem de fome, sempre buscando oportunidades, e sempre explorados e humilhados por
serem pobres. Por pouco também não morri, comia frutos do mato pra sobreviver.
AFANO- Seu tolo. (Se revelando) Quem você pensa que é. Você nunca vai me destruir.
FELÍCIA- Quem é você??

AFANO- Eu? Me chamo Faminem.


Sou a fome que assola a humanidade, ataco vila e cidade, deixo o campo moribundo. Eu não
descanso um segundo, atrofiando e matando me escondendo e zombando dos governantes do
mundo.

Me alimento das obras, que são superfaturadas, das verbas que são guiadas pros bolsos dos
marajás, e me escondo por trás da fumaça do canhão, dos supérfluos da mansão. Da soma
dos desperdícios, da queima de artifícios que cega a população.

Tenho pavor da justiça, e medo da igualdade me banho na vaidade da modelo desnutrida, da


renda mal dividida na mão do cheque sem fundo, sou pesadelo profundo do sonho do boia fria,
e almoço todo dia nos cinco estrelas do mundo.
JUSTINO- Pois hoje você morre desgraçada.
FAMINEM- Será?? (Congela todos) Vocês são uns hipócritas, todos vocês têm ambições,
desejos, todos sentem fome de algo. E isso é o que me alimenta Contem-me do que vocês têm
fome.
GANANCIO- Eu tenho fome de poder.
FORMOSINHA- Beleza.
FILÓ- Tenho fome de trabalho.
CANGACEIRO 1- Tenho fome de pirão com peixe.
CANGACEIRO 2- E eu de feijão com rapadura.
FELÍCIA- Eu tenho fome de amor, que nunca tive.
JUSTINO- Minha fome é de justiça para meu povo.
FAMINEM- Que meloso. Vocês nunca conseguirão me pegar. (sai)

(todos congelados) CANTADOR- Ganancia veste terno e gravata, onde a esperança sucumbiu,
vejo a liberdade aprisionada seu livro eu não sei ler Brasil.

JUSTINO- Já chega! Meu povo vai sim ter sim alegria, vai ter festa, dinheiro e uma vida digna.
Olha prefeito, não vou machucar você e sua família. Mas estou ordenando que o senhor
renuncie o cargo! Esse milhão vai ser dado pro povo, e o senhor ainda vai fazer a festa de são
João pra toda a cidade. Entendeu??
GANANCIO- Cla.. claro. (pigarreia).
CANGACEIROS- Eita... Vamo encher a pança ieeei.
FORMOSINHA- Huum Festa, vou usar meu melhor vestido.
FELICIA- Escuta aqui Justino, vc não pode tentar mudar o mundo na violência. Existem outros
meios.
JUSTINO- Quais?
FELÍCIA- Casa comigo??
TODOS- Casar??
FORMOSINHA- Minha filha pelo amor de Deus, desmaia nos braços do esposo.
GANANCIO- Você tá doida minha filha?? Vai casar com um pirangueiro desses.
JUSTINO- Oxe, eu aceito, mas eu quem deveria te pedir.
FELICIA- Eu serei sua companheira de luta por justiça. Mas espalharemos a educação e
esperança ao invés de violência.
FORMOSINHA- Menina se aquiete, você quer matar sua mãe de desgosto.
(musica Criminal Britney).
FELÍCIA- Mas, mamãe, eu estou apaixonada por um criminoso
E esse tipo de amor não é racional, é físico
Mamãe, por favor não chore, ficarei bem
Pondo a razão de lado, não posso negar, eu amo aquele cara.
JUSTINO- Então tá decidido! Vai ter festa e casamento tudo junto, pra fazer uma festança só.
Oh Filó, quero que você faça um caldeirão de canjica que alimente a cidade todinha, o inverno
foi bom, tem milho o suficiente pra todo mundo. E vai ser tudo as custas do pai da noiva.
GANANCIO- O que?? (Desmaia nos braços da esposa).
FILÓ- Você tá me achando com cara de escrava pra fazer um caldeirão de comida pra tanta
gente.
JUSTINO- Você vai receber o dinheiro pelo trabalho, criatura, e pode contratar muita gente
como ajudante porque quero o mais rápido possível. Bora cuida, todo mundo ajudando pra
festa ser inesquecível.
(todos saem)
CANTADOR- (Fala a escolher para a chegada do elenco e cenário.
(Cenário de festa, na praça da igreja, um ambão ao ar livre, e o grande caldeirão de canjica
fervendo.
VIDA- Menino que coisa mais chique, que cheiro bom dessa canjica, quero me empanzinar
aqui hoje.
CANGACEIRO 1- Mas vixe que a festa vai ser é grande mesmo, Justino pediu pro casamento
não ser dentro da igreja, é pra ser no meio da rua pra todo mundo participar.
CANGACEIRO 2- É até melhor, se a policia aparecer, é mais fácil de correr. E coma pouco pra
não ficar entisicado.
FILÓ- Quero todo mundo provando dessa canjica que ficou perfeita.
VIDA- Filó, amiga cê ta boa?
FILÓ- Boa e bonita.
VIDA- Que vestido lindo mulher... Chique, olha.
FILÓ- Gostou? Roubei da Formosinha.
VIDA- Roubou mulher?
FILÓ- Roubei. Foi dona Cidalia quem fez, e ela nunca pagou um real, e tem mais, a doida fez
um de cada cor, passei mão e tudim, e sai distribuindo pras vizinha tudo,
VIDA- Mulher deixa de ser acanalhada, amundiçada.
FILÓ- Minha filha isso é reparação histórica, agora é os pobre que toma dos ricos, eles que
lutem. (As duas riem)
VIDA- Oh mulher... E você não me deu um, bicha ingrata.
FILÓ- mulher você agora vai ser a prefeita da cidade, Seu Ganancio renunciou, e Justino disse
ao povo que votasse em você, que chique a primeira prefeita da cidade, que não é de família
rica, mulher você é perfeita, tudo pra mim.
VIDA- Para mulher, fico encabulada, só aceitei por que sei que as coisas nessa cidade não
funcionavam por causa de corrupção. E Eu prometi a Santo Antônio, vou fazer um governo
digno e transparente. Uma gestão voltada pros pobres.
FILÓ- Essa é minha prefeita, quem sabe me candidato a vereadora, pra ve se as coisas
funcionam com nós mulher no poder. quero a mulherada toda sendo eleita.

(Chega o padre comendo milho)

PADRE- Bora meu povo cadê os noivos, e os familiares, o povo ta esperando pra comer,
rumbora.

(Chega os noivos e familiares)

FELÍCIA- Tamo aqui padre, cuida que o povo já tá se preparando pra fazer a quadrilha.
JUSTINO- Repara Felícia, que ficou tudo bonito. Tudo pra nós dois.
FELÍCIA- Bora casar que depois da festa nós vamos ganhar esse sertão de meu deus.
GANANCIO- Ficou bonito né formosa... Imagino o preço dessas coisas Ai jesus!
FELÍCIA- Deixa de ser pão duro pai, o senhor roubou o povo o quanto quis, vai pagar sim. E
sem chororô.
FORMOSINHA- Filha ainda dá tempo desistir do casamento, vamo embora por favor.
FELÍCIA- Estou onde quero, e devo estar mãe, um dia a senhora acostuma. Você agora tem
uma filha justiceira e muto bem amada.
JUSTINO- Chega aqui Padre, hoje tem muita coisa sendo comemorada aqui, o nosso
casamento, a renuncia do prefeito, e a candidatura de dona vida a prefeitura, é festa pra mais
de metro pra tanta felicidade, nessa terra agora vai reinar a paz, a alegria e a fartura. Ninguém
mais vai passar fome nessa região. E se depender de mim e de Felícia, o nordeste tudo vai
viver dias eternos de fartura.
FELÍCIA- Avia padre, casa logo.
PADRE- Perai menina que eu to comendo milho.
FORMOSA- Vamo vê. Oh Felicia, se você queria me matar porque não deu logo uma facada
no meu peito.
VIDA- Amem meu deus, que a prosperidade reine pros filhos dessa terra.
PADRE- Estamos reunidos em nome do pai do filho, e do espirito san... (Tosse)
CANGACEIRO- O que é isso padre...
PADRE- (com voz falha) Me engasguei com milho, dá uma aguinha aí pelo amor de Deus.
VIDA- Vou buscar padre perai.
PADRE- Continuem ai que eu vou abençoando.
JUSTINO- Felicia Fortuna, você me aceita como seu marido pro resto da vida??
FELICIA- Aceito demais. E Você, Justino... Como é seu sobrenome??
JUSTINO- Num sei, só Justino mesmo.
FELÍCIA- Você só Justino me aceita como sua esposa?
JUSTINO- Marminino, precisa nem perguntar duas vezes.
PADRE- Eu vos declaro então Marido e mulher, que a felicidade e o respeito prevaleçam em
vossas vidas.
FORMOSINHA- Pronto! A desgraça tá feita.
TODOS- Amém.
FAMINEM surge em cima do caldeirão
FAMINEM- Felicidade???? Hahahaha Vocês já viram pobre viver feliz? Você acham mesmo
que vão mudar o mundo, enquanto eu viver, estarei sempre presente na vida desse povo
mulambento.
Se vocês continuarem me caçando nas favelas, nos lamaçais das vielas, Nunca vão me
encontrar, eu vou continuar, usando terno xadrez, metendo a bola da vez, Atrofiando e e
matando, me escondendo e zombando da burrice de vocês.
(Filó chega por trás do monstro, e dá uma milhada nele, que ele cai dentro do
caldeirão).
FILÓ- apois vá zombar na baixa da égua, seu imundo.
FAMINEM- Nãão!
VIDA- Será que esse diabo morreu??
FILÓ- Oh meu deus, vai azedar minha canjica. Vamos comer sim, oq não mata engorda,
Ninguém é filho de barão pra tá desperdiçando comida não.
JUSTINO- Será que essa pesta tá viva ainda?
FELÍCIA- Não sei, mas se tiver, nós vamo atrás....
CANGACEIRO- Se tiver viva nunca mais vem agourar por essas bandas.
CANGACEIRO 2- Dona Filó é porreta viu. Matou a fome de um monte de gente, ainda matou a
fome de vera.
CANGACEIRO- Quem é Vera?
CANGACEIRO- Meu fí é burro mesmo ou se faz de abestado??
JUIZ DE PAZ- Desculpe o atraso, meu povo, é que eu tive um probleminha de caganeira mas
tá tudo resolvido. Assinem aqui pra oficializar o casamento, e vamo encher o bucho na festa.
FILÓ- Tu num disse que tava com caganeira, já quer comer de novo??
JUÍZ- Deixe, num é de sua conta. Boca foi feita pra cumer. Quem não aguentar que se levante.
Venha cá dance quadrilha comigo.
FILÓ- Você, é muito atrevido. Mas vamo.
JUSTINO- E você minha bichinha, tá pronta pra mudar o mundo comigo.
FELICIA- Não sei se vamos conseguir, mas vamo tentar!
JUSTINO- Minha Flor, sou cangaceiro mas nunca me orgulhei, só queria justiça pelo meu
povo, nós somos fruto da injustiça e do abandono, o cangaço é um protesto violento, contra a
ordem social sertaneja,
FELÍCIA- Você tá certo, a pobreza e miséria não nascem sozinhas, é fruto de problemas do
passado, injustiças que nunca foram resolvidas. Mas vamos tentar mudar essa realidade. Mas
agora, é hora de festejar nosso casamento, vem dançar quadrilha que já tá todo mundo
esperando.
TODOS- Bora!
CANTADOR- Sendo assim se a fome é feita, de tudo que é do mal, é consertando a origem,
que a gente muda o final. Fiz uma conta ligeiro, se juntar todo dinheiro dessa tal corrupção,
mata a fome em todo canto, e ainda sobra um tantão, pra saúde e educação.
FIM.
15 de Janeiro de 2020 @jdobento

Nota para posteridade: Esse texto nunca foi encenado, foi escrito para o são joão de 2020, que foi adiado por 2 anos por
conta da pandemia de COVID-19. Com a pandemia a fome e a desigualdade se tornou cada vez mais evidente e expôs a
necessidade de políticas públicas de amparo as pessoas em situação de vulnerabilidade. A cultura também bastante abalada,
foi um setor de muita importância para as angustia dos dias de incerteza e isolamento. Em meio ao caos e negacionismo a
cultura foi luz e resistência. Viva arte, a ciência e a cultura popular. Bem aventurados os que tem fome e sede de justiça, pois
serão saciados. Mateus 5:6

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