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NOJO!

de Marcos André Tavares

‘Pobre terra da Bruzundanga!


Velha, na sua maior parte,
como o planeta,
toda a sua missão tem sido criar a vida e a fecundidade
para os outros,
pois nunca os que nela nasceram,
as que nela viveram,
os que a amaram e sugaram-lhe o leite,
tiveram sossego sobre o seu solo!’

(Lima Barreto, in Os Bruzundangas)

Dedico ao Vianinha, Taiguara e Teresinha Landau,


cujas memórias me alimentam a utopia de um Brasil possível.

Cena 1. Queria ser americano


Off - “Não me canso de me admirar com os Mas a sorte não me deu vez
verdadeiros canalhas. Não estou falando dos Minha vingança é vender tudo
amadores. Refiro-me aos profissionais sérios, Trair todos e aprender inglês
esforçados, que imprimem um espírito de missão à
canalhice; o canalha por opção, enfim. Vendo-os Venci porque vendi
agir, crápulas impávidos, orgulhosos de suas Vendi porque era meu
ações, certos de suas imunidades, me convencem Se não era o que me importa
que o verdadeiro canalha, das três uma: 1) ou Sem dinheiro não fico nem morta
acredita mais do que ninguém na capacidade Queria ser cubano
divina de perdoar; 2) acredita-se imortal; 3) Mas foi um inglês que me sorriu
simplesmente está tão ocupado em mentir e roubar Minha vingança é vender tudo
que ainda não pensou no assunto. Bons pais de E vocês vão pra puta-que-o-pariu
família, excelentes maridos, hábeis homens de
negócios, os canalhas brasileiros têm esta (Fala.) Alguém, por favor!
capacidade incomum de odiar o povo que os Chefe da Casa Civil - Sim, senhor. Desculpe a
sustenta.” (Tirado do Livro “O dia em que demora. Limpávamos vossa egrégia latrina.
comeram o ministro” de Fausto Wolff.) Eles - E precisam ir todos?
Chefe da Casa Civil – A serventia do palácio,
Eles - Eu venci, venci, venci. Não tenho mais sempre comemos juntos, senhor. Nós coletamos
concorrência. Acabou! Acabou! Sou o único, tudo, oramos e comemos...
único! Sozinho, sozinho! Sou o dono de tudo! E Eles – Me poupe dos detalhes...
agora, o que que eu faço? Acender um charuto e Chefe da Casa Civil - Inclusive, hoje nos era um
música, quero música. (Canta.) dia especial. Soubemos, senhor. A conversa
chegou até a latrina, senhor.
Venci porque vendi Eles - Vocês ficaram sabendo que a partir de agora
Vendi porque era meu o mundo, digo, o Brasil é meu?!
Se não era o que me importa Chefe da Casa Civil - Soubemos, senhor.
Eu roubo, eu mato e arrombo a porta Eles - Vocês não entendem. Mas é muito
Do cofre e do barracão importante para a nação não existir mais
Sou político do Brasil concorrência. Estou sozinho. Venci!
Eu vivo é de comissão Chefe da Casa Civil - Nós...
Minha pátria é a corrupção Eles - Pode falar.
Chefe da Casa Civil - Queríamos, apenas, vos
Venci porque vendi perguntardes, senhor. Sim. Desculpe-nos a
Vendi porque era meu curiosidade. Porém, o quê do Brasil, exatamente,
Se não era o que me importa lhe pertence, Senhor?!
Nação pobre eu quero é morta
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Eles - Vocês não entendem! Restou somente eu no Eles - Mas vocês não vieram juntos?!
comando da nação! Agora fica mais fácil Chefe da Casa Civil - Não sei, senhor. (pausa) A
governar. Poderei realizar as reformas necessárias, bem da verdade, Senhor... Eu insisto em dizer que
sem nenhum incomodo de vozes contrárias, vozes não conheço ninguém até a presente data!
ignorantes contrárias às reformas óbvias que Eles - Com o quê concordo plenamente....Não
necessitam o país...enfim. importa mais quem chegou primeiro. Até porque
Chefe da Casa Civil - Sabe, Dr.º Eles, é que ... só restaram vocês mesmos. Lembra-se de alguma
Bem, o Senhor nos desculpe ... a ousadia. música para cantar para mim?
Entretanto, não restou nada! Nem ninguém. Via de Chefe da Casa Civil - Não, Dr.º Eles.
fato, não resta mais nação a ser comandada, Dr.º Eles - E de alguma poesia?
Eles. Acabou o Brasil! Chefe da Casa Civil - Nem desconfiamos o que
Eles - O que vocês querem dizer com isto?! Vocês seja poesia, excelso Dr.º Eles.
não entendem! Agora posso ajudar todo mundo. Eles - O que vocês lembram?
Eu sempre disse, lembram-se? Tudo o que faço é Chefe da Casa Civil - Nada, magnânimo Dr.º
para o bem do povo brasileiro. Quanto ainda Eles.
temos de população? Eles - E sempre foi assim?
Chefe da Casa Civil - Lamento dizer que não Chefe da Casa Civil - Não, Senhor! Dedicação!
existe mais ninguém, Senhor. Ou morreram, ou Sempre tivemos muita dedicação! Lembrar é uma
foram embora...ou...sabe-se lá. tarefa muito árdua, Egrégio Senhor. Não é tarefa
Eles - Repovoemos. E de território quanto ainda para nós!
temos?! Eles - Entendo. Podem ir.
Chefe da Casa Civil - Receio dizer, Dr.º Eles, que Chefe da Casa Civil - Boa noite, Senhor!
não temos mais nenhum território. Foi tudo
loteado ao longo dos séculos e vendido. Só restou Cena 2.
isso aqui. Isso aqui é o Brasil. Eles - Para quê falam? São tão repetitivos. Mas eu
Eles - Fiquei tão ocupado trabalhando pelo Brasil lembro. Lembro de Berta. Ela era interessante.
que não notei estes detalhes acontecerem. Vocês Berta (surge.) - Você achava mesmo, Eles?!
não entendem! Trabalho toma nosso tempo Eles - Lógico, lógico... você quer cachaça?
mesmo. Então, eu vou ajudar a quem?! Berta - Você quer me dar cachaça? Você odiava
Chefe da Casa Civil - Não sabemos, senhor. Um cachaça quando era pobre...mudou? ou é a velha
instante, Dr.º Eles. demagogia?
Eles - Caramba! O que será que aconteceu com o Eles (repreende suavemente.) - Berta! (canta.)
Brasil, enquanto eu estava trabalhando?! (canta.)
Berta, aberta, Berta aborta na cozinha
Aonde enfiaram o Brasil? Berta, aberta, Berta aborta no quintal
Será que desmaterializou? Berta, aberta, abate a patroa mesquinha
Ou foi na rua comprar pão? Berta, aberta, aborte o logo serviçal ...
Ou será que o vento levou?
Berta, aberta, aborta e junto fica morta
Será que eu emprestei pro vizinho? Mas retorna pra vingar-se deste mal
Será que a empregada roubou?
Será que caiu no caminho? O inferno é do doutor,
Será que a polícia o matou? Do pião e do lavrador
O inferno é aqui
Mas será que vai voltar? O inferno é o que sou
Mas será que ele existiu?
Será que fui eu a sonhar? Berta, aberta, aborta a vida na latrina
Berta, aberta, Berta aborta um redentor
Aonde enfiaram o Brasil? X4 Perde tudo inclusive a própria vida
Mas não deixa eu esquecer a minha dor!
(Retorna o Chefe da Casa Civil com charuto e
cachaça.) Berta, aberta, Berta aborta na cozinha
Chefe da Casa Civil - Trouxemos seus caprichos Berta, aberta, Berta aborta no Quinta
habituais, Senhor. Berta, aberta, abate a patroa mesquinha
Eles - Ah! Melhor assim. Berta, aberta, aborte o logo serviçal ...
Chefe da Casa Civil - Mais alguma coisa banal,
Senhor? Berta - Você sabe que não gosto do meu nome.
Eles - Respondam, há quanto tempo trabalha aqui? Parece que estou escancarada...
Chefe da Casa Civil - Já não nos lembramos, Eles - Continua a mesma Berta.
Senhor. Berta - Por que continuo a não gostar dos judeus?
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Eles - Eu nunca entendi esta sua atitude. Os judeus Eles - Mas que maçada! Berta, isto vale até ...?
no Brasil eram tão obscuros, nos vinha pelo Berta (cortando.) - Para todos! Todos! RICOS e
cinema e pela televisão. Raramente em carne e pobres. Todos vêm para o inferno por causa do
osso. Você conheceu algum judeu? excesso de frouxidão e covardia! Estou no inferno
Berta - Talvez. Não sei. Conhecemos tanta gente e agora sei ler e escrever. Estou pronta para fazer
durante a vida. Nunca soube ao certo o porquê tua biografia, Dr.º Eles. A biografia do Dr.º Eles!
desta atitude, mas não gosto de judeus e basta. Eles - E o que você escreveria sobre mim, Berta?!
Não gosto deles. Berta - Apenas o que vi. Você com o ministro,
Eles - Quando estudei na Suíça fiquei amigo de você sentado no colo dele, ele rindo. Eu morta
vários. Todos filhos de banqueiros. junto com teu filho... a garrafa de uísque do
Berta - Quando você foi para a Suíça eu fiquei só. cachaceiro teu pai escondida... em tudo o que ouvi
Vomitando e enjoando na cozinha, quando sua de você e acreditei...
mãe desconfiou que eu estava grávida de um filho Eles - Só a narração do sórdido!
teu me mandou embora. Berta - É o que o povo gosta de ler!
Eles (surpreso.) - Foi?! Eles - Eu vou acabar com teu sofrimento.
Berta - Deixa de ser cretino! Parece um negro! Escreverei um bilhete a um dos meus senadores...
Eles - Você também nunca gostou de negros. Por Berta (corta.) - Tentando corromper uma morta,
que isso Berta? Eu não tenho preconceitos. Eles?!
Berta - Eu morri no aborto! Você soube? Hein, Eles - Não escreva aquelas coisas! Eu lhe
soube?! Eu só queria saber isso. Você soube que arranjo...
eu morri matando teu filho? Berta (corta.) - Não preciso de nada. Já morri
Eles - Da Suíça eu fui para os Estados Unidos. mesmo. E também, Eles, já não existe mais
“Carreira promissora”, foi o que aquele ministro, ninguém, esqueceu que você vendeu tudo!
amigo de papai, me disse: “Carreira promissora” Eles (aliviado.) - É verdade! (pausa.) Vocês são
Isso foi pouco antes da minha viagem para a muito fraquinhos, não resistem a nada, nem a uma
Suíça. Na festa de despedida o ministro pegou crise momentânea. Morrem em qualquer parto...
minha mão e a colocou na bunda dele. Me deu Berta (corta seca.) - Aborto!
prazer apalpar aquela bunda oficial. Eu me sentia Eles - Que seja! Tanto faz! Quantos anos tínhamos
como se pudesse mudar o curso da história do naquela época?!
Brasil com uma dedada naquele excelentíssimo Berta - Você dezessete e eu dezoito. (corte brusco
cu! e debochado.) Por que você dava o cu para o
Berta - Você sempre gostou de senhores de idade. ministro? Hein?
Eu lembro que vi você com o ministro no quarto. Eles - Você insiste nisso! Aquilo eram negócios,
Eles (constrangido.) - Viu?! negócios... coisas que a tua moral burguesa não
Berta - Vi! Tive ciúmes quando você se ajoelhou entenderia! Gente pobre é burra mesmo! Não
na frente dele e deu aquela mamada... eu, uma entendem negócios. Um agradinho para o ministro
empregada, tendo ciúmes, mas tive nojo quando o depois fazer o que eu quisesse. Me dever um
ministro te enrabou. favorzinho, entende?
Eles - Só porque ele era ministro? Berta - Eu era uma doméstica. Como poderia ter
Berta - Por que eu gostava de você e não queria te uma moral burguesa?
dividir! Eles - As leis e a moral burguesas são para os
Eles (repreensivo.) - Berta. (surta.) Eu gemia, pobres. Não para os ricos. Entende agora?! É por
gemia, Berta. Doeu, mas eu consegui ser alguém isso que você não gosta de judeus, negros e tem
na vida! toda a sorte de preconceito!
Berta - Você já nasceu alguém! Você teve berço Berta - Nem aqui no inferno tem sociologia para
de ouro! pobre... não entendo ainda assim!
Eles - Por acaso você está insinuando que eu sou Eles - Por isso você era escrava na cozinha e eu...
pederasta?! Que aquilo não era uma reunião de Berta (corta debochada.) - Viadinho de ministro!
negócios? (Cantam.)
Berta - Não sei. Você que está dizendo.
Eles - É por isso que vocês não devem mesmo Eu, você e o ministro
saber ler, nem escrever. Já pensou se você Num triângulo cheio de dor
escrevesse minha biografia? O que você iria Nós três
escrever? Responda ! O poder, a Doméstica
Berta - Ora, Eles... você não sabe, mas aqui deste E o jovem promissor
lado tem um supletivo muito bom. O jovem viajou,
Eles - E pra que serve esta merda aí no céu?! A doméstica morreu
Berta - Céu?! (Ri. Pausa.) Brasileiro vem pro E o ministro tanto que gozou
inferno, Eles. Brasileiro vem direto para o espeto E hoje o que posso dizer
do coisa ruim! o que ninguém jamais ousou:
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Todo poder desta terra hoje sou eu. L (complementando.) - ...perguntarmos...


K - ...somente uma coisa, senhor?
Eles – Não, fracassada. Eu, só sobrou eu! O único Eles - Sim.
endinheirado do Brasil! (Os seres entreolham-se receosos.)
Berta - Grandes vantagens, não existe mais o R - É o seguinte.
Brasil, anta! Sabe quantos anos teria o teu filho K - Quem viria, senhor?
hoje?! L - Todos foram vencidos e o restante, embora
Eles - Já faz tanto tempo assim?! chamados restantes eram a maioria esmagadora,
Berta - Já. A estupidez é uma sangria muita lenta, bem, o restante ou morreu ou virou escravo,
Eles. Eu trouxe teu filho para que você o senhor!
conheça... ficou sem rosto. Quem não nasce fica Eles - Realmente é muita ousadia. Muita ousadia.
sem rosto, acontece a mesma coisa com quem Porém, saibam que não conto com esta gentinha
nasce mas não come, o rosto vai se apagando, para a minha festa. Ora, virão os americanos, os
apagando... até que não existe mais ninguém. alemães, talvez os franceses. Não basta?!
Entra, meu filho. Entra. Este teria sido teu pai se R - Senhor.
você tivesse nascido. L - Senhor.
Eles - Qual o nome dele?! Eles - O que?!
Berta - Não tem. K - Permite, senhor, mais...
Eles - Como não tem?! Filho meu tem que ter L (complementando.) - ...ousadia, senhor.
nome! Eles - E por que não?! Estou feliz o bastante hoje
Filho - Posso brincar de aeroporto, posso mãe? até para ouvir.
Berta – Pode, meu filho. R - Eles o desprezam, senhor.
Filho - Puxa, como é legal aqui! Eles - Como “Eles” o desprezam! “Eles” sou eu e
Berta - Pode meu filho. (para Eles.) Já viu quem eu não me desprezo?!
não nasce ter nome?! Tua mãe não quis que ele K - Queremos dizer, senhor é que os americanos,
tivesse um nome e um rosto. E você deixou. alemães, japoneses e todos os demais desprezam
Fingiu que não sabia da minha gravidez. ao senhor. Eles não gostam do senhor, senhor.
Filho - Puxa! Eu quero brinca de exército! Eles - Tal ousadia não esperava. Homessa, mas
Eles - Você ficou amarga, Berta. Amarga. Por que que maçada! Como não gostam de mim?! Eu me
tanto rancor? Você guarda muito rancor! fiz gostar. Aprendi inglês, alemão, japonês,
Berta (irônica.) - Desculpe, Eles. Compreenda, eu francês... aprendi sobre vinhos, música, enfim,
morri. Vou me embora, mas não se tranqüilize, tudo sobre eles. Eu aprendi para ser reconhecido
pois eu volto, Eles. como um igual. Vendi tudo com desconto de mais
Eles - Só você teve coragem de me chamar apenas de 100% para me tornar um deles. Mas como?!
pelo meu nome. Não seria bem tratado?!
Berta - Grandes coisas! Esse nome ridículo! R - Não.
“Eles”. Este nome só serve para sujeito K - Também acho que não, senhor.
indeterminado. Será que era por isso que você L - Não queremos ver o senhor triste.
dava o cu para o ministro, hein? Por que você era Eles (canta.)
um sujeito indeterminado?!
Eles - Você ficou mais sabida depois que morreu. Não sejam rancorosos, nojentos!
Berta - Pelo menos no inferno pobre pode estudar. Não sejam comigo daninos!
Agora eu vou. Filho, vamos embora. Não tenham inveja do meu dinheirinho.
Filho - Ah! Mãe. Agora que eu estava brincando. Não tenham inveja, por favor não tenham
Berta - Você não brinca. Você não nasceu. Vamos
embora, que eu tenho que jogar tarô para satanás, Só porque sobrou somente eu vocês querem me
vamos. agredir.
Dizem que matei o travesti e me associei ao FMI.
Cena 3. Se vocês são contra essas vendas porque votaram
Eles (depois de uma pausa.) - Estou com fome! em mim.
(Entram os seres.) Agora vocês reclamam como loucos pedindo o
R - Sim, senhor. meu fim.
K - Caviar, senhor? Só que já vendi o Brasil todo ninguém mais pode
L - Com torradinhas, senhor?! impedir.
Eles - Pode ser, pode ser. Darei uma grande festa! Voltem pras senzalas, nojentos!
Uma grande festa para comemorar minha vitória
sobre todos. Eles - E vocês como subalternos por que estão
R - Senhor. com toda esta preocupação?!
Eles - Sim?! K - Por que, senhor...
K - Poderíamos ousar e... R (complementando.) - ... querendo ou não...
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L (completa.) - ... o senhor é um de nós, senhor! nossas defesas: imunidade parlamentar, cobrança
Eles - Não sejam idiotas. Não é porque fui de favores, compra de sentenças, gastar um pouco
presidente do Brasil que eu tenho alguma coisa de dinheiro público ... agora não há mais ninguém
que ver com aquela gentalha que existia aqui. para subornar. (breve pausa.) Ninguém nunca
Aliás, só restaram vocês por minha bondade. entendeu nada. A coisa era fazer parte da máfia
K,L e R (um de cada vez.) - Perdão, senhor. principal, não cabia lugar para batedor de carteira
Eles - Cadê meu caviar?! (Os seres saem.) Triste? ou ladrão de galinha. A sobrevivência é ser amigo
Por que eu ficaria triste?! Sou um vencedor. de “Al Capone”. O século passado foi muito bom
Somente eu... não há mais ninguém. Não há mais para se ganhar dinheiro, principalmente depois do
povo, é verdade. Mas era o único caminho para o golpe de 1964, do Ai 5 em 1968, quando nos
progresso pacífico do Brasil. Por que não livramos de vários inúteis que eram contra o nosso
gostariam de mim?! Eu fiz tudo que pediram. Em progresso! Todos, todos inimigos do progresso da
nome do Brasil e pela paz no mundo! pátria.(Emenda antes que possa ser cortado.) A
história nos absolverá, afinal os fins justificam os
Cena 4. meios!!! Aquele golpe militar foi um grande
(Surge o espectro de Samanta.) negócio!
Samanta – O senhor até que pode dizer que Samanta – As raposas ficaram sozinhas no
acabou com a fome e as doenças do Brasil. Afinal, galinheiro. Com o tempo a nação acaba e nem a
não existe mais Brasil, nem mais ninguém para história resta para condenar ninguém!
sentir fome ou dor. Eles – Ainda está aí?!
Eles – Homessa! Uma voz sensata. Aproxima-te. Samanta – Reconheço que nunca achei que o
A conheço? senhor chegaria tão longe. Confesso que jamais
Samanta – Muito... não se lembra?! Fui sua acreditei muito no estilo de V.Ex.ª, entretanto vejo
secretária na câmara dos deputados. que aprendeu o que precisava. Agora é o único.
Eles – Samanta! Como está se sentindo?!
Samanta – Perfeitamente. O senhor ainda se Eles – Estou me sentindo único!
lembra do meu nome, Dr.º Eles. Samanta – Mas bem?!
Eles – Claro, Samanta. Sempre gostei do teu Eles – Ainda não sei. Faz pouco tempo que sou o
nome. Pronunciá-lo já é prática de sexo oral. único. Nesse momento me sinto a pessoa mais
Chega mais perto. Continua bonita. importante do mundo! Não somos diferentes... a
Samanta – Ué, já não me acha mais uma única diferença era quem detinha o poder de
“negrinha” medrosa?! decisão.
Eles – (contrariado.) – Você é rancorosa! Todos Samanta – Então, por que mandou me matar?!
vocês são rancorosos! Eu disse aquilo num Eles – Nunca achei que fizesse o seu perfil a
momento de fúria. Não estava pensando quando corrupção. Por isso tive medo de você. Você me
falei. parecia honesta, por que se meteu naquela
Samanta – Mas no seu acesso de fúria mandou roubalheira?
me matar! (breve pausa.) Ficou com medo que a Samanta – A fome ou mata ou corrompe! (A
“nega” medrosa abrisse o bico?! frase fica em eco no espaço, Samanta sai.)
Eles – Quando a CPI apontou as minhas emendas
fantasmas no orçamento temi pelo pior. E aí, Cena 5.
homessa, quando vasculharam tua conta bancária e Entram os seres.
levantaram aquele dinheiro eu precisava fazer R – Caviar!
alguma coisa. Diabos, antigamente tinha aquele L - Torradinha!
turma de babacas que queriam investigar, “fuçar”. K – Guardanapo!
Aquele dinheiro ia ser roubado mesmo, e porque Eles – Fome. Fome. Vocês têm fome?!
não por mim, que sei aplicar em coisas úteis?! R – Não, senhor.
Samanta – Úteis para você! O que deixou o L – Limpamos as latrinas.
senhor com medo? O senhor sabia que aquilo não K – Todos os dias, senhor.
ia dar em nada mesmo. R – Não nos falta nada por isso, senhor.
Eles – Mania de perseguição, sei lá. Mas você Eles – De onde vocês vêm?!
reclama de quê? Bem que você entrou na grana R – Não lembramos mais, senhor.
também! L – Não faço a menor idéia, senhor.
Samanta – Então, por que mandou me matar?! K – Mas eu desconfio que ...
Eles – Porque você sabia de tudo. E mamãe me R (cortando) – Não incomode o senhor.
ensinou que não devemos fazer “coisa feia” na L – É! Não maltrate os ouvidos do senhor com as
frente de todo mundo.(Ri desgraçadamente.) Bons suas palavras tortas, sujas e maltrapilhas.
tempos aqueles... 10% pra lá, 20% pra cá, se desse Eles – Caviar... eu ouvi dizer que se comia ratos
algum problema com os “chatos”, “retrógrados” no sertão, é verdade?! (Ninguém responde.) A
resto imundo da cortina de ferro, levantávamos culinária é muito estranha. Os costumes mudam de
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um lugar para outro. Eu me lembro que uma vez, ter que trabalhar, aqui não tem mais nada para se
eu ainda era senador, estávamos votando um fazer. Não há mais nada para vender. Ficou sem
projeto para vender alguma coisa... esqueci o quê graça. Agora saiam, arrumem suas coisas e adeus!
agora, mas um rapaz no meio da multidão que (O seres ficam chocados.)
gritava me disse que estavam comendo as crianças L – Nunca pensei que aconteceria comigo.
que morriam no sertão. Que costume estranho! K – Também não.
Uma vez eu comi cérebro de macaco na China, R – Puxa, eu sou o único em minha descendência
mas gente nunca! que tinha emprego em 40 anos, e agora...
K – Eu vim do sertão! L – Mas senhor...
R – Cale-se! Eles (corta entusiasmado.) – Ora, não sejam
L – Você não sabe se conter?! sentimentais. Eu sei que foram felizes aqui. Mas
K – Não!!! acontece. Eu não tenho necessidade de mantê-los
R – Está se sublevando? aqui, e é preciso fazer contenções de despesas. E,
L – Está sendo subversivo? pensando bem, vocês agora podem aproveitar o
Eles - O que vocês cochicham tanto aí? tempo que sobra para ganhar dinheiro, quem
K – Senhor. trabalha não tem tempo para ganhar dinheiro...
L – Cale-se! (O seres saem cabisbaixos. Berta surge.)
R – Não é nada, senhor. (Aponta K.) Ele não está
muito bem. Cena 6.
Eles – Tirem ele daqui, então. Detesto gente Berta – Oi, bicha.
doente perto de mim. Vão, retirem-se. Eles – Não me trate assim!
K – (Enquanto é arrastado e espancado pelos Berta – Agora já era, eu vi você e o ministro.
outros.) – Eu sou do sertão! Eu sou do sertão! Eles – Isso já foi há mais de quarenta anos!
Eles (sem dar importância, repete.) – Sertão, Berta – Eu te trouxe mais uma pessoa para te ver.
sertão ...”exemplo único em toda a história, Eles – Quem?
resistiu até o esgotamento completo. Expugnando Berta – Lembra de Silvestre?
palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu Eles – Não conheço.
no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus Berta – Como não conhece, Eles? Talvez como
últimos defensores, que todos morreram.” Todos, Vanessa você se lembre.
ouviu bem?! Todos... inclusive eu! Euclides da Eles – Vanessa eu lembro, mas...
Cunha já falava de mim... “ caíram seus últimos Berta – Exatamente, também está morta.
defensores (...)” Eles – Eu não quero vê-la.
L – O senhor é muito culto! Berta – Por que não? Ele te lembra coisas que
R – Muitíssimo. você quer esquecer? Ou melhor, coisas que você
K – Homem de muitas letras, mas nunca foi no quer esquecer que existiram em você ?!
sertão. Eles – Essas coisas não existem e nunca existiram
Ele (irônico.) – É que sempre gostei das letras de em mim!!!
câmbio. Mas quem disse que era do sertão?! Berta – Não estou falando de tua bichice enrustida
(Antes de qualquer resposta emenda.) Também ou sua corrupção crônica. Estou falando de amor!
não importa. O sertão foi negociado com os Eles – Eu nunca amei ninguém !
americanos, agora não tem mais seca lá. Eu Berta – Na prática não. Mas Vanessa te amou e o
sempre achei que a seca era uma questão de que você reservou para ela?
indolência dos caboclos. Eles – Eu não tive culpa nenhuma.
L, R e K (juntos) – Indo... o que? Berta - Não?!
Eles – Eu não quero vê-la! Não quero!
(Cantam “O Problema do Nordeste” de Eduardo Berta – Por que não quer vê-lo?
Dusek e Luiz Carlos Goes.) Eles – Ela não.
Vanessa (entrando. Canta “Esperame nel cielo
Eles – Indolência, vagabundagem dos nordestinos. coraçon.”) – Lembra da sua candidatura para
Eles não procuravam água, ora! Só queriam vir prefeito?! Você tinha medo que me descobrissem
para o Rio de janeiro pra ver mulher pelada na e mandou me calar. Eu jamais falaria a ninguém,
praia. Preferiam o turismo ao trabalho! Eu lembro te amava tanto que aceitaria tudo, até não existir,
quando vendi o Recife para os holandeses. Ganhei ficar invisível. Eu ainda lembro, na noite anterior
muito dinheiro, e dinheiro é bom. Não gerei tantos você colou a boca no meu ouvido e me falou
empregos quanto prometi, mas... As pessoas baixinho que até me arrepiou...
falaram de mim, ora foi apenas um bom negócio! Eles (cortando desesperado.) – Não!!!
Gente burra, se não fosse um negócio bom para o Vanessa (insistindo.) - ...disse...
Brasil não teria sido eleito. (Pausa.) Vocês estão Eles ( cortando .) – Na hora do sexo dizemos
demitidos! Podem ir embora. Eu vou me mudar todas as coisas, qualquer coisa... eu apenas me
para New York. Já montei um escritório lá. Vou divertia deste mundo infeliz.
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Vanessa – Eu sei agora que você se divertia, aliás


eu descobri que você também se divertia quando Eles – Ei, que idéia é esta de furar o meu
os seus capangas vieram me apagar. Mas eu te assoalho?! Quem são vocês?!
amei tanto que morreria por você, por isso eu pulei Edgar – Desculpe, desculpe. Mas precisamos
a janela antes que eles me matassem. Eu me matei subir um pouco, está na nossa época de observar o
como prova de amor! inexistente. Nossa dama ordenou a observação.
Eles (baixo.) – Bicha louca! Eles – Nossa dama?
Vanessa – Na noite anterior você me disse: ‘Eu te Edgar – Sim. A nossa líder.
amo’. E eu acreditei. (Canta.) (A dama sobe. Shortinho apertado, top, muito
sexy, calça botas de borracha vermelha.)
Morte a bicha, morte a bicha! Dama – Como vai? Edgar, traga os outros. Puxa,
Eu preciso me defender. enfim um pouco de ar, não me atrevo a dizer puro,
Morte a biba, morte a biba! mas fresco. Desculpe a vestimenta, imagino que
E o amor vá se foder. não seja adequada para tão suntuoso salão, mas
embaixo da terra é muito quente. Qual a sua
A primeira dama ela não pode ser, graça?
Sobre minha vida muito pode dizer Eles – Eles!
Ela vai me crocodilar, Dama – Eles? Eles são Edgar e o casal Fontoura.
Contando que eu também gosto de dar! Mas eu perguntei o seu nome.
Eles – Eles, eu me chamo Eles. Ou melhor, me
Morte a bicha, morte a bicha! fizeram conhecido por esta alcunha: Dr.º Eles!
Eu preciso me eleger. Dama – Bem, Seu Eles, pode me chamar de
Morte a biba, morte a biba! Dama. Não iremos ficar muito tempo, só o
E o povo vá se foder. suficiente para observarmos a inexistência.
Eles – Mas por que na minha sala?
Nas cerimonias ela não pode ir, Dama – Na verdade, observamos em qualquer
Ela é escandalosa e vai me denegrir lugar.
A esquerda vai logo me escrotizar Eles – Sei, mas ..
Dizendo que eu dava o meu cu! Dama (cortando.) – Com licença, tenho que
organizá-los.
Morte a bicha, morte a bicha! (Eles fica observando curioso a desenvoltura do
grupo em organizar um ‘convescote’ na sua sala.)
(Todos saem. Eles fica sozinho.) Dama – Agora sim. O que dizia?
(Antes que Eles possa dizer qualquer coisa o casal
Cena 7. Fontoura dispara na conversa.)
Eles – Por que todos me agridem assim?! Eu Sr. Fontoura – O Sr. se lembra quando o ACM
sempre procurei o melhor para o Brasil. Isso é batia em repórteres?
inveja das minhas vitórias pessoais. Inveja! É isso! Sr.ª Fontoura – E o Figueiredo que preferia
Quando fui para o senado, eu lembro, me disseram cheiro de cavalo?
‘cuidado, aquilo é um ninho de cobras’. Depois, Sr. Fontoura – O Sr. lembra? O banco econômico
ajudei uma empresa a ser anistiada dos tributos deu um rombo de 20 bilhões, ninguém pagou a
que não recolhia havia 40 anos, por pura dívida, nem foi preso.
dificuldade, disseram:’ É a maior cobra do Sr.ª Fontoura – Você foi, meu velhinho. Sabe, ele
senado’. Tudo porque ajudei, ajudei... assegurei deu uma pedrada no prédio do Banco Central,
empregos. Ingratos, só porque recebi um presente. ficou meses preso.
Presente não, prêmio pelos meus esforços para Sr. Fontoura – O Sr. lembra quantos milhares de
assegurar aqueles empregos. Povo maldito. Nunca pessoas foram mortas pelas ditaduras do século
ia ser nada mesmo, não entendem a lógica do passado no Brasil?!
mercado. Eles (corta irritado.) – Não. Eu estava trabalhando
(No meio desta esquisitice monologal- pela riqueza do Brasil. Não tinha tempo para
resmungativa começam a surgir do solo cabeças acompanhar bobagens!
de pessoas que compõem o povo do lixo. São Sr.ª Fontoura – Puxa, o senhor trabalhou muito
representantes históricos que confirmam a lenda mal, então. O Brasil acabou!
de terem existido povos no Brasil. Sobreviveram a Edgar (Para o casal Fontoura.) – Vamos parar
fome se refugiando no subsolo das regiões sem com isso. Deixem nosso anfitrião em paz.
minério do Brasil. Eles, os povos do lixo, muitas Sr. Fontoura – Você é um reacionário filho-da-
vezes cavam até a superfície para períodos que puta, Edgar. O dia que eu fizer uma revolução no
chamam de observações da inexistência.) Brasil eu fuzilo você, na hora, pode acreditar!
Edgar – Seu caduco, o Brasil foi vendido! Não
(Cantam “Saindo do Buraco”) existe mais Brasil, palhaço.
8

Sr. Fontoura – Não fale assim com o meu (Entram no buraco brigando.)
velhinho. Sr. Fontoura – Estão sempre assim.
Edgar – Então, mande ele calar a boca. Sr.ª Fontoura – Já colocamos eles também na
Sr. Fontoura - Quando te conhecemos você tinha nossa lista. Puta e Cafetão também vão ser
20 anos e ainda usava fralda. fuzilados para a limpeza da sociedade.
Sr.ª Fontoura – Chupava chupeta e mijava na Eles – Vocês deviam se dar ao respeito, já são
cama. pessoas idosas e vociferam como aqueles animais
Edgar – Parem. das selvas que foram extintos.
Eles – Eles são sempre desagradáveis assim? Sr. Fontoura – O Sr. lembra que roubaram todas
Dama – Não. Só quando sentem cheiro de as árvores da Amazônia?
entreguista no ar. Você é entreguista? Eles – Aquilo foi um negócio, não roubo! Eram
Eles – Não estou gostando de ser interrogado na negócios como aquele que davam empregos para
minha sala por gente que invade o meu espaço. gente estúpida como vocês.
Dama – Ah! Coitadinho. É só por uns instantes, Sr. Fontoura – O senhor não me é estranho.
nós já voltaremos para o nosso subsolo. Eles – Devem ter me visto em noticiários, quando
Eles – Vocês sempre viveram debaixo da terra? existiam. Depois não foi mais necessário gastar
Dama – Desde que venderam o Brasil. Fugimos dinheiro com a imprensa. Eu fui deputado,
durante o último carnaval! Foi um horror, os senador, ministro e presidente.
estrangeiros com os oficiais de justiça, da ONU, Sr. Fontoura – É? E agora? O resta?
tomando posse do Brasil e expulsando todo Eles – O que resta, eu resto.
mundo. Nós conseguimos nos esconder no Sr. Fontoura – O senhor não sente falta de
subsolo. ninguém?
Edgar - Aquele carnaval foi o Ó, o Brasil Eles – Não! Não sinto, eu me basto. E tenho
acabando e a canalhada nem aí... Só nos restou o amigos, muitos amigos... americanos, alemães...
subsolo. Sr. Fontoura (sarcástico.) – Que amigos!
Eles – E deixam vocês ficarem aí?
Dama – Deixar não. É que depois do mapeamento (Todos cantam “Fé na Perua” de Alceu Valença)
do subsolo nós conseguimos nos esconder onde
não tem minérios, porque não dão atenção a estes Sr.ª Fontoura – Vamos, meu velhinho, temos que
lugares. ir. Voltaremos depois da revolução para fuzilar o
Eles – Você é bonita. senhor. Não se preocupe que não esqueceremos de
Dama – Quanto a isso fale com o Edgar. ninguém.
Eles – Ele é seu marido?! Eles – Vão para o diabo!
Dama (ri debochada.) – Claro que não. Edgar é Sr. Fontoura – O senhor quer dizer: inferno. (O
meu cafetão. É ele quem estipula o preço. Edgar, o casal Fontoura entra no buraco.)
moço me achou gostosa!
Edgar (Primeiro para o casal Fontoura) – Agora Cena 8.
comam em silêncio! Vou tratar de negócios. (para Eles – Não estamos seguros em lugar nenhum.
Dama) Sr. Eles, quer dizer que achou a dama Somos invadidos em todos os lugares. Preciso me
aproveitável... e quanto o boneco tem pra gastar?! proteger.
Eles – Quanto é?! (Berta Surge.)
Edgar (depois de pensar.) – Hum! 50 centavos Berta – Se proteger da verdade, você quer dizer?
está dentro de suas posses?! Eles – Você viu como todos vocês são burros!
Eles – Eu tenho bilhões de 50 centavos. Ninguém rouba nada aqui. Este foi o país mais
Sr. Fontoura – Eu logo vi que era um burguês honesto que conheci. Tudo que vendemos foi
entreguista, filho-de-uma-puta! pago! Ninguém nunca deixou de pagar. Até
Sr.ª Fontoura – Vamos colocá-lo na nossa lista de porque sempre fui eu quem recebia o dinheiro.
fuzilamento! Berta – Mas não era seu.
Sr. Fontoura (desenrolando uma longa lista de Eles – Você tem rancor porque morreu no parto.
papel velho.) – Quando a revolução estourar Berta – Parto não. Aborto.
vamos ter muito trabalho! Eles – Parto, aborto qual a diferença?
Edgar (para Eles.) – Então, está fechado? Berta – Você é um monstro.
Eles (bestial.) – Está! Eles – Sempre fui eleito.
Dama – Então venha por aqui. Berta – E quando foi senador biônico?
Eles – Eu não vou entrar neste buraco. Eles – Aquilo foi necessário. Um mal necessário.
Edgar – Então nada feito. (para dama.) Sua puta Berta – O mal é sempre mal.
sem vergonha, querendo dar para o primeiro que Eles – Você já morreu. Por que me atormenta com
aparece. estas histórias antigas? Volta para o teu além e
Dama – Você fez o negócio. Seu marginalzinho fique lá com aquela gentinha. Você deu para mim
de subsolo.
9

porque quis. Ficou grávida, tira a criança e a culpa Maluco Cívico emenda com ‘Ei, você aí, me dá
é minha?! um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí!’
Berta – Você esqueceu que me chantageava. Que Eles – E quanto você quer para eu me livrar de
ía dizer para a sua mãe que eu roubava para ela me você?
mandar embora se eu não desse para você? Maluco Cívico emenda com ‘só eu sei que
Esqueceu o que fazia comigo viadão? tentando a subiu desceu e agora daria hum milhão
Eles – Berta, o que você quer de mim? Por que para ser outra vez Conceição.’
você vem até aqui depois de morta, falar, me Eles – Imagina se eu daria hum milhão para um
ofender... doido como você!
Berta – Não sou eu, eu já morri... quem sabe não Maluco Cívico emenda com ‘não vai dar, não vai
é você mesmo que está me fazendo voltar? dar não você vai ver a grande confusão, eu vou
Eles – Não, não, não... não quero lembrar de nada. pedir vou pedir até cair, me dá, me dá, me dá ô,
Eu não quero. Se pudéssemos... se pudesse! (a me dá um dinheiro aí’
frase se perde numa convulsão.) Eles – Será que não pode falar como uma pessoa
Berta – Se pudesse o que, viado?! normal? Parece que estou dentro de uma ópera...
Eles – Nada! Só estava querendo ser dramático Maluco Cívico puxa a ária ‘recitar mentre preso a
para ver se me livrava de você. Mas, homessa, tal delirio, non se piu quel che dico e quel che
você é muito chata mesmo. faccio...’
Berta – O teu fim está próximo. Eles – Saia já daqui! Fora!
Eles – Homessa! Eu não acredito em puxão de pé Maluco Cívico ‘daqui não saio daqui ninguém me
de fantasma! Ponha-se daqui para fora, Berta! tira’
Gente pobre me cansa... Eles – Veremos. (Pega um comunicador.) Aqui é
(Entra o maluco cívico, um ser mutante que se o Dr.º Eles e estou precisando de um visor para me
defende das barreiras porque sabe cantar qualquer livrar de um sujeito que invadiu o meu espaço,
hino de qualquer país, além de canções de cunho quando vocês podem chegar? Eu aguardo. Vamos
nacionalista. É o sujeito mais perseguido pelos ver quem manda!
países do primeiro mundo, é tido como um Maluco Cívico ‘Eu desisto, não existe esta manhã
subversivo terrorista de alta periculosidade, que eu perseguia. Um lugar que me dê trégua e me
porque como sabe todos os hinos e sempre canta o sorria com uma gente que não viva só pra si’
hino dos escravos quando está perto deles, é Eles – Comunista, comunista! Eu sabia que o meu
considerado insurreto porque esta prática estimula último inimigo seria um comunista... Pragas!
uma memória coletiva e pode vir a causar uma Pragas!
insurreição étnica na falsidade primeiromundista.) Do alto da cena aparece um olho que indica com
Maluco Cívico surge do solo cantando o hino raios estar atento ao assunto.
americano e em pose de estátua da liberdade. Ao Maluco Cívico põe-se a cantar o hino americano.
ver Eles muda a canção para Aquarela do Brasil. Eles (falando para o visor) – Estão vendo o
Eles - Mas um a invadir minha sala. Eu pensei provocador?! É ele. Me salvem dele!
que pelo menos do MST eu tinha me livrado! E (O Olho pesa a cena e elimina com um raio Drº
você quem é agora? Eles.)
Maluco Cívico como resposta canta o primeiro
refrão de ‘Eu sou o samba’ de Zé Ketti. Voz metálica do Olho – Washington não protege
Eles – Como pode? Eu pensei que tinha me traidores!
livrado dessa gentalha. Eu vou falar com os
americanos, isso não pode ficar assim. Como eles (Todos cantam “Brasil, fruta saborosa” de
não prestam atenção no que está acontecendo no Eduardo Dusek e Luiz Carlos Goes)
subsolo? Ei, desgraçado, o que você quer? Fim.

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