Outra peculiaridade dessas narrativas curtas é que é principalmente dos pobres,
pertencentes a diversos segmentos da vida na República, que Monteiro Lobato
fala. No universo de sua ficção, como no país dos anos 1920, não há dinheiro, há poucos empregos conseguidos sempre pela estrutura do favor, não há possibilidade de ascensão social. Ao escritor, também fazendeiro e editor, não interessam os personagens elegantes da sociedade emergente que se moviam entre as metrópoles europeias e nossas capitais, assim como também não vê o país com a lentes frequentes do ufanismo. Sua estética como sua ética, se ocupa do que falta ao país e a seus habitantes e não com as ilusões da modernidade, com suas baratinhas, melindrosas e almofadinhas, viagens a Paris e outros luxos partilhados por poucos. O país de Lobato é realmente pobre. No campo e nas cidades do interior, mas mesmo nas grandes cidades, morre-se de fome. A luta pela comida é uma batalha diária. A sobrevivência é conseguida com trocas ou vendas dos objetos mais fundamentais, sejam móveis ou livros de estudante. Aos ex-escravos resta o favor dos antigos donos em troca de trabalhos gratuitos. É isso ou morrer de fome. Os funcionários públicos dividem-se em duas categorias: os que assinam o ponto e os que trabalham. Os pequenos funcionários que exercem de fato suas funções encontram toda sorte de dificuldades para morar e alimentar os filhos. São pobres, muito pobres, os que fazem a riqueza dos homens na República Velha e ocupam as páginas dos livros de contos de Lobato Nisto, um pegão de nortada, varrendo a torre, trancou a porta do lanternim com estrondo. Envolveu-nos de novo a escuridão. E começa aqui o horror... Os rugidos que ouvi, os arrancos e sacões formidáveis da luta nas trevas, a minha ansiedade... Pavorosos minutos de vida que não desejo renovados. Perdi a noção do tempo. Durou muito aquilo? Não sei dizer. Só sei que a tantas ouvi escapar-se ao peito de Gerebita um urro de dor, e logo em seguida uma imprecação — “Desgraçado!” — cujas derradeiras sílabas morreram num trincar de dentes atassalhando carnes. Cabrea grugulejou uns roncos que se casaram com o arquejar do peito de Gerebita, e a luta esmoreceu. Sem palavras na boca, cegado pela escuridão, eu só ouvia, fora, os uivos da nortada, e ali, aquele arquejo do vencedor exausto caído à beira do vencido. Com os olhos da imaginação eu via esse quadro, que com os da cara enxergava tanto como se os tivera envoltos em veludo negro. Não te conto os pormenores do epílogo. Obtive luz e o que vi não te conto. Impossível pintar o hediondo aspecto de Cabrea com a carótida estraçalhada a dente, caído num lago de sangue. Ao seu lado Gerebita, com a cara e o peito vermelhos, a mão sangrenta, estatelava-se no chão, sem sentidos. Os meus transes diante daqueles corpos martirizados, àquela hora da noite — daquela terrível noite negra como esta e sacudida por um vento do inferno!... Na manhã seguinte Gerebita pousou-me a mão sobre o ombro e disse: — O mar não leva daqui os corpos à praia e o mundo não precisa saber de que morreu Cabrea. Caiu n’água — morte de marinheiro, e o moço é testemunha de que matei para não morrer. Foi defesa. Agora vai jurar-me que isto ficará para sempre entre nós. Jurei-o lealmente, tocando de leve a mão mutilada. E ele, num acesso de infinito desalento, quedou-se imóvel, a olhar para o chão, murmurando insistentemente: — Eu bem avisei. Não me acreditaram. Agora está aí, está aí, está aí... Nesse mesmo dia veio buscar-me Dunga. Mal a Gaivota largou, narrei-lhe a morte do faroleiro, romanceando-a: Cabrea, louco, a despenhar-se torre abaixo e a sumir-se para sempre no seio das ondas. Dunga, assombrado, susteve no ar os remos. — Pois morreu? E louco? — Está claro! — Claro que lhe parece, que a mim... — Conhecia-o? — Não conhecia outra coisa. Desde que furtou Maria Rita... — Que Maria Rita? — Pois Maria Rita, mulher do Gerebita, então não sabe? Que ele seduziu, homessa. Abri a minha maior boca e arregalei o que pude os olhos. — Como sabe disso? — É boa! Sei porque sei, como sei que aquela gaivota que ali vai é uma e que este mar é mar. Maria Rita era uma morena de truz, perigosa como o demo. O tolo do Gerebita derreou-se de amores pela bisca e lá casou. E vai ela, a songuinha, mal o homem saía no Purus, metia em casa Cabrea. E nesse jogo viveram até que um dia fugiram juntos para outras terras. O pobre Gerebita se não acabou de paixão é que era teso. Mas entrou para o farol, o que é também um modo de morrer pro mundo. Pois bem. A bola vira, o tempo corre, e vai, senão quando, quem mete o Governo no farol em lugar do defunto Gavriel? Cabrea! Cabrea que também andava descrente da vida porque Rita lhe fugira com terceiro. Coisas do mundo. Diz-me agora vossoria que o homem enlouqueceu, e rolou do penedo, e lá o rói o peixe. Está bem. Antes assim, que do contrário era em ponta de faca que aquilo acabaria... Calei-me. Há situações na vida que as ideias embaralham de tal forma que é de bom conselho deixarmo-las se assentarem por si. Eis como... — ... o meu grande amigo Eduardo foi empulhado por um assassino vulgar! — Perdão. O fato de se não manejarem floretes não tira àquele pugilato o caráter de duelo. — “Cavaleria rusticana”, então