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BIBLIOTHECA DA GAZETA DE NOTICIAS

MOTTA COQUEIRO
ou

A PENA DE MORTE
POR

JOSÉ DO PATROCÍNIO

RIO DE JANEIRO
TYPOGRAPHIA DA GAZETA DE NOTICIAS

72 RUA SETE DE SETEMBRO 72

1878
B I B L I O T E C A DA G A Z E T A DE NOTICIAS

MOTTA COQUEIRO
ou

A PENA DE MORTE
POR

JOSÉ DO PATROCÍNIO

RIO DE JANEIRO
TIPOGRAPHIA DA GAZETA DE NOTICIAS

72 RUA SETE DE SETEMBRO 72

1877
MOTTA COQUEIRO
OU

A P E N A DE MORTE

1 ficam silenciosos, oscilando ao tom das


A FORCA
ondas, de mansira que os seus extensos
mastros como que fingem pontes move-
Macahé, pequena cidade do litoral da
diças interpostas a ambos.
província do Rio de Janeiro, não conhece
a vida activa e estrepitosa das grandes No dia Ú de agosto de 1855 dir-se-hia
cidades populosas. que uaria inesperada mudança se havia
effeetuado, trocando-s6 í'Gp6niinaméiiíe
Olhando ao longe o oceano que vem, papeis entre si.
ás vezes acovardado e murmurando ape-
nas, ás vezes espumando e bramindo, es- Ao passo que as vagas erguiam os collos
teoder-se ou arremessar-se na praia d'ond9 azulados a roseiar-lhes a orla branqui-
ella eurge, o aspecto da cidade e o do centa no colorido de uma serena madru-
oceano contrastam singularmente gada, a cidade já acordada enchia-se dos
E' que enfrentam o movimento das sussurros proprios de uma reunião po-
vagas, quasi sempre brusco e violento, e pular.
a mais traaquilla quietação; o ruido que De toda a parte afliuiam cavalleiros e
pop horas de tempestade assoberba-se, carros de bois, conduzindo famílias, que
avoluma-se e prorompe em escarceus presto apeiavam e seguiam em direcção
medonhos, e o silencio que de continuo ao mesmo logar.
reina nas ruas e praças pouco transitadas. Irisavam as ruas as roupas variegadas
Para ligar a vida da cidade e a do e vivas dos moradores do interior, e os
oceano s<5 ha os navios ancorados, que transeuntes apenas cortejavara-se, sem
•4. MOTTA COQUEIRO

que nenhum (Telles reparasse que o outro, matar uma familia, isto, por ai ,
quebrando os esfylos da boa camarada- uma prova contra o senhor ?
gem e sociabilidade sertaneja, não fizesse — ValM-me Deus, isto não vem a p^AIo
uma longa parada para informar-se por O Motta Coqueiro não está n'esta ca ,o ,
m i u i o d i saúde e negocios do seu conhe- era um.homem tido e havido por n;áu eno
cido. todo o Macabú; malquisto com seu.- vla-
Essa actividade insólita denunciava que nhos sérios e só cercado de homer^ sgu^e.v
toda aquella gente reuni ^-se para assis- ao Faustino, um fugido das galé*, e o
tir a alguma scena extraordinaria, algum Florentino, o tal Fiôr, bem conhecido
d'esses acontecimentos memoráveis que pprperverso.
se gravam indelevelmente na memoria — Os senhores dizem s ó , mas não
dos povos, desinteressada archivista aos apontam os males que elle fez. O proprio
factos qus mais tarde terão de ser julga- Francisco" Benedicto foi por elle acolhido
dos pela imparcialidade da historia. em sua casa, quando, tendo sido corrido
Os pontos mais concorridos eram a pelo Di . Manhães, não tmíia onrie cahir
praça Municipal e a rua que, atravessan- morto.
do-a, vai terminar na praça do Rocio. ~ Agora é que o senhor disse tudo ;
No primeiro largo a população affiuia, para o desgraçado carnr morto era-pre-
estacionava, engrossava-se agora e para ciso me imo ir aggregar-se para a casá do
logo rareava, escoando-se para sul e faccinora, que não só lhe desmoral!sou
norte pela rua seccante. uma filha, mas ain Ia lhe queria roubar
Contrapondo-se á tamanha actividade, as bemfeitorias do sitio.
á serenidade expansiva das physiono- — E o que me diz o Sr. Martins a cer ca
mias, oadj havia o reflexo de um senti da mulher de Motta Coqueiro ? interrom-
mento honesto, o sino da Matriz come- peu um novo interlocutor.
çava a dobrar por morto. Eu sou da opinião do Sr. Luiz de
Esse facto, que destoa dos sentimentos Souza; para mim, Motta Coqueiro era
religiosos das populações do interior,fica- capaz da fazer ainda jnais, principalmente
ria, porém, cabalmente explicado para porque era açu lado pela mulher, a qual
aqaelles que se acercassem dos grupos,que dizia que, para despicar o seu marido,
estadiavam pelas praças citadas e ar.np-- venderia até o seu cordão de ouro.
pêiáT cadeia — Por Deus ou pelos diabos; os senhores
da cidade. faliam só e não me deixam f&llar. Com os
— Homem ! eu se vim aqui não foi para diabos, Motta Coqueiro já foi condem-
regosijar me com a morte do infeliz ; te- nado ; dentro de uma hora ha de ser pen-
nho certe/.a de que elle entrou n'isso durado pelo carrasco ; que eu diga que
como Pilatos no Credo. sim, que os Srs, digam que não, nada lhe
— O Sr. está fallando serio, Sr. Mar- approveita ; mas a verdade antes de tudo.
tins ? Eu não fallo por mim. O Conceição é
— Se estou, era até capaz de jurar que homem a toa ?
elle nãa mandou matar. — Eu vou com elle até o inferno.
— Ora isto é que é vontade de teimar. — Pelo menos nunca ouvi dizer que
Todas as testemunhas foram concordes elle não fosse um homem sério.
em dizer que foi elle. — Pois o Conceição diz que Motta Co-
— Então, Sr. Luiz de Souza, se eu fôr queiro é innocente oo assassinato da fa-
dizer aqui ao Sr. Cerqueira, e este a milia de Francisco Beneiicto,
outro, e a outro que o senhor mandou — Ora essa I..,
OU À PENA. DE MORTE 5

jL' E então porque não foi ser testemu- mente ao que prendesse o mandante uma
nha da defesa, se elle sabia do facto ? quantia — com que nunca sonharam os
/ — Não foi, e*fez muito bem; eram ca- pobres moradores das mattas, por onde
pazes de dizer que ©11© também ©ra um Coqueiro vagava refugiado;—dois contos
dos co-reus, porque o Conceição, como de réis.
sabem, estava na casa de Motta Coqueiro Entretanto do meio do odio geral qu©
na noite-em qué se deu o crime. cercava mais estreitamente o nome d©
— Ponhamos as cousas nos seuslogares, Motta Coqueiro alguns ânimos benévolos;
Sr. Martins, interrompeu Luiz de Souza. concordes em amaldiçoar os criminosos,
Niaguem diz que o Coqueiro foi o mata- affastavam todavia o seu vereiicto da
dor, o que se diz é que elle foi man- cabeça do principal accusado.
dante, e não havia da dar as ordens á Era d'esse numero o ar lente Sr. Mar-
vista de Conceição. Já vê que este nada tins, que sempre protestando não aceitar
pode saber com certeza. discussões a respeito do assumpto geral da
— Sr, Luiz da Souza, eu não quero conversação, não podia entretanto resistir
brigar com v-:cê, e por isso o melhor é a não chegar-se aos grupos para lhes ou-
cortar questões, O Sr, fica com a sua opi- vir as opiniões.
nião e eu fico com a minha, o tempo dirá Homem tão honrado e bondoso, quanto
qual de mói tinha razão. Eu digo que é gárrulo, o Sr. Martins n'aquella manhã
falso, é falso, é falso ; o Coqueiro não discutiu com quasi toda a população de
mandou fazer taes mortes ; esae desgra- Macahé, e o maior numero das vezes con-
çado morre innoeente. cluiu repetindo a phrase final da sua con-
Pela conversação a que acabamos de versação com Luiz de Souza: E' falso, é
assistir é f scii saber qua achamos-nos no falso; o desgraçado morre innoeente.
dia em que a jiistiça publica, para tíesaf- Desanimado e entristecido por não en-
frontar-se, ou meiiior, desaffrontar a in- contrar na compacta massa d© poyo uma
dignação publica, ia levar ao caiafalso pessoa só que concordasse comsigo, plena-
Manuel da MotU Coqueiro, que era geral- mente, na innceentação de Coqusiro, Mar-
mente accus&do como mandante do assas- tins atravessava rapidamente o becco do
sinato execrando, que exterminou toda Caneca, quando foi detido por uma vigo-
uma família á excepção de uma moça, rosa mão.
que não se achava no logar do crime. — Cam que o Sr. Martins veiu tam-
A noticia lactuosa correu veloz por todo bém assistir ap enforcamento da Fera de,
o Brazil, e todo o povo ergueu um brado Macàbút
de maldição contra os assassines. Estas ultimas palavras foram, pore'm,
Pedia-se. em altos brados, nas reuniões proferidas com accento tão repassado de
e na imprensa, uma punição famosa, que tristeza, que o Sr. Martins, sorrindo,
passasse da geração em geração, attes- abriu os braços © Telles estreitou o seu
tando que ao menos os contemporâneos, interlocutor, exclamando:
impotentes para reparar o crime, tinham — Até que,emíim, encontro um homem
sido inexoráveis n'um castigo tremendo. que pensa commigo 1
O nome de Motta Coqueiro ©ra profe- E os peitos (Taquelles dois homens dei-
rido com horror e bam assim os dos seus xaram que perto batessem poc longo es-
cúmplices, e as mães, ao verem os pa?sar, paço os c orações, que palpitavam por ura
ensinavam á« creanoinhas a maldizei-os. sentimento bem diverso do que animava
O governo provincial e as auctoridades á maioria da cidade.
looaes uniram-se em solicito exforço para Quanjo separaram-se ambos tinham os
a captura dos réus, cffereeendo especial- olhos rasos de lagrimas, e por um movi-
6 MOTTA COQUEIRO

mento accorde corréram o olhar em — B nem ao menos vêr na hora dí -1« / :


redor. rer a esposa, e os filhos, que não s ; vn ti-
Aquelle olhar na sua tímida expressão veram a estar aqui, temendo que
trahia o temor que ambos, mas principal- enforcassem também.^
mente o novo personagem, tinham de ser — B' um escandalol
vistos por alguém; tão grande era a — E1 uma requintada jnfamia. Obsta-
èxaltação dos espirites que atemorísava ram a defesa, difíiaultaram as prov.v,
até a livre manifestação de sentimentos andaram com elle de Herodes para Pila-
benévolos para com o sentenciado, sem tos, e afinal chamaram requintado cies
logo incorrer em censura. avergonhamènto aquelje grito de deses-
— Não é verdade, Sr. João Sèberg ? pero, com que elle acabou de responder
O Coqueiro morre innocente. ao ultimo interrogatorio.
— E' verdade, meu amigo, e ainda Não viram nas barbas e nos cabsilos
agora mesmo acabo de conversar alli que de todo embranquecerem, na maci-
com a D. Maria; respondeu Seberg, lenta côr de seu rosto, nas palpebras sem-
apontando para uma casa que tinha a pre entrecerradas, a expressão de um
porta e as janellas fechadas. generoso coração, que, talvez conhecendo
— E a D. Maria é também do numero o culpado, não condemnava ninguém.
das que se arrebicaram para vêr a Adeus, Sr. Martins, rezamos por elle,
execussão. e que Deus perdôe a quam o faz morrer.
— Não é, felizmente. Acaba de contar- Separaram-se, e o Sr. Seberg, com a
me que as suas duas filhas lhe vieram cabeça baixa e vagaroso passo, tomou
pedir para virem, em companhia das vi- para a banda da praça Municipal. A sua
sinhas, vêr este novo assassinato. Negou- longa barba grisalha c&hia-lhe na sobre-
lhes a licença e até reprehendeu-as forte- casaca preta toda abotoada, o seu porte, o
mente. Ainda agora quando o sino dobrou seu ar, como que se iluminavam com as
pela vez, que será penúltima, antes de scintillações da justiça.
separarmos-nos para sempre do des- N'aquella hora, esse homem severo,
graçado, ella que estava conversando completamente vestido de preto, e com o
commigo, empallideceu, mandou que ac- semblante embaciado pela mais sincera
cendessem as velas do oratorio, e chamou tristeza, parecia o latente remorso de uma
as filhas para que ao ultimo dobre peçam população inteira, que vinha assistir á
a Leus que perdôe-nos a cegueira da tragedia judiciaria para mais tarde lavar
nossa justiça. a nodoa que manchava as victimas da lei.
Faz pena a pobre senhora ; nem que Ba repente Seberg estacou, como que
fosse parenta d'elle. Só ouvindo-a; ella detido por um braço de ferro.
narra diíferentes obras caridosas feitas O sino da Matriz dobrava e, na outra
pelo infeliz Coqueiro, e só interrompe-se extremidade da praça, o povo que se api
para chorar. nhava, enoontroando-se, bradava:
— Isto revolta mesmo a gente, Sr. Se- [ Lá vem elle ; lá vem elle !
berg: vêr morrer um amigo innocente Os gritos que, avassallando o sussurrar
e não ter força para salval-o. perenne da multidão, como que chumba-
— E elle que resistia sempre que se lhe ram os pés de Seberg ao chão da praça, so-
queria dar meios para fugir o u . . . suici- bre-excitavam cada vez mais os espiritos.
dar-se, o que era muito melhor do que ir Os vários grupos dispersos puseram se
parar ás mãos do carrasco. em desordenado movimento. Cada qual
— Desgraçado, queria chegar primeiro ao ponto d'onde
OU Â PENA D E MORTE -7

os gritos partiram. Os mais nroços corriam A praça do Rocio, em que devia ter
rapidamente, e assenhoras idosas, camba- logar a execução, estava quasi literal-
leando aqui e acolá, e praguejando no mente cheia, e, soturnamente sonora,
puro estylo do beaterio, aproximavam-se transbordava esse zunido abafado {que
como um bando de ganços espantados. derrama o vento atravessando um tunnel.
Os pais e mais, no intuito de darem Reinava ahi a alegria e o dia esplen-
desde a infancia um exemplo â sua pro- dido, todo luz e céu azul, aqui e acolá sa- >
genie, levavam comsigo os filhos, e na rápintâdo de nuvens alvadias, como que
velocidade de que precisavam dispôr, santificava esse regòsijOj a não ser que na
quasi que os arrastavam, ao som de opulência de brilho um poder occulto ten-
ralhos impertinentes. tasse _ver se era possível que tim raio ao
Toda essa gente apr,essava-se, corria, menos peneirasse n^quellas consciências.
agglomerava-se, encontrava-se, e alguns Abertos òs guarda-soes e reunidos em
mais imprudentes, querendo a todo o grupos, os curiosos matavam o tempo
transe romper caminho no mais denso do commeutando as peripecias do crime e do
ajuntamento, provocavam, da parte dos processo, louvando a maioria o bom an-
desalojados, violentos empurrões e phra- damento da justiça.
ses duras, a ponto de ssr necessaria a Um d'esses grupos chamava a attenção
intervenção da auctoridade para evitar pelo ar de mysteriosa intimidade que o
eonflictos. envolvia.
Não foi um rebate falso o que se espa- Tinha a palavra um moço alto, de com-
Ihára. pleição fraca, elegantemente vestido, e em
Já a campainha, tangida por um dos tudo differenteyos habitantes do logar.
irmãos da Misericórdia, badalejava lugu — Se eu tivesse influencia, dizia elle,
bremente á porta da cadeia. obstaria por hoje a execução do Coqueiro.
Pedia-se silencio e repetiam-se insisten- — Era violar a lei, doutor; o codigo or-
tes psios por toda a multidão. dena que a execução se effectue no dia im-
— Ouçamos o pregoeiro ! ouçamos o mediato ao da intimação da sentença ao
pregoeiro! bradava se por toda a parte. reu.
Esse novo fermento lançado á soffrega — Sim, senhor; mas se o réu estiver tão
curiosidade de todos, fez com que alguns doente que nem se possa levantar, se o reu
se destacassem, porque temendo não po- estiver moribundo?
der vêr d'ahi o spectaculo, queriam bus-
— Mas eu vi o Coqueiro quando chegou
car em outro logar melhor ponto de ob-
servação. da côrte e não me consta ainda hoje que
O Sr. Luiz de Souza muito interessado elle esteja em tal estado.
em coadjuvar a justiça, quanto estivesse — Pois esteve bem mal esta noite. Ce-
em suas forças, elegeu se capitão dos re- dendo á vergonha ou ao desespero tentou
tirantes e suando em bica, bufando e suicidar-se, e para isso serviu-se de um
abanando-se com o chapéu, gritava a bons pedaço de vidro com o vqual faz um feri-
pulmões: mento no pulso.
— Vamos para o Rocio, lá o bicho não — E o que faziam os guardas f
nos escapará. — Não sei á uma fabula inventada pelos
Dentro em pouco o Rocio recebia mais amigos ?
um numeroso contingente de espectado- — Não, senhor, fomos vêl o, eu e o Dr.
res, anciosos por verem o epilogo d'esse Silva, e ambos ligamos-lhe as veias.
rosário de horrores, do qual durante tres — Embora, doutor ; elle p<5de ser con-
annos esteve pendente a attenção publica, duzido em uma padiola; e eu tenho cer-
8 MOTTA COQUEIRO

teza de que não sahirei hoje d'aqui sem Tamanha anciedade denunciava bera
vel-o pendurado acolá. que, em meio de toda essa gente, não
Na direcção indicada pelo interlocutor havia quem reflectisse no que ha de io"-
estava levantada a machida sombria da quidade n'essa desaffronta do crime peie
justiça social. crime.
A sua fealdade commovente, brutal A justiça, dynamisando a barbarida».•.•»,,
encarnação dos sentimentos da popula- folga e jacta-se de dar aos descendentes
ção, pavoneiava-se, entretanto, com o epi- dos cffendidos uma reparação, mas não
theto honroso de instrumento da dcsaf- vê que não será multiplicando a orphan •
fronta publica. dade e o desamparo que ella chegará
Todos fitavam-a com sympathia, cam um dia a trancar as pri&ões.
estremecimento mesmo, e caía um bus- A baba do sentenciado ca: como ináe-
cava tomar posição apropriada a têl-a de levelmancha negra sobre to^os os seus;
frente. e não pó le haver maior torpeza do que
Talvez pela imaginação exaltada do condemnar a quem não mereceu a con-
povo passassem as imagens das victimas demnação.
immoladas á sanha faccinorosa dos seus Os magistrados e os que mandam exe-
matadores. cutar essas barbaras sentenças dormem
„ tranquilamente na p^z de uma consciên-
Diante da horrorosa construcção, a me- cia honesta, porque entregam ás mãos do
moria popular avivava recordações de carrasco as pontas da corda ou o cabo do
outros tempos, ouvidas em serões de fa- alfange.
milia aos pais já finados. k sociedade por sua vez applaud*, na
— Ainda hoje isto é bom. Contava-me magistradura e em si mesma, a segu-
meu pai, que ouviu ao meu avô, que, no rança dos laies e o amor da justiça, no
tempo de D. João VI, primeiro o carrasco dia em que das alturas da Orca pende
desmonhecava com um golpe as mãos do mais um cadaver.
padecente e só depois é que elle era levado E todavia pareço que ha menos torpeza
à forca. em um h jmem matar outro, do que em
— Era o que esse precisava; eu sigo reunirem se miihsre* para t»atir, um £Ó.
a letra do evangelho; quem com ferro Não pensavam, porem, d'este modo os
fere com ferro seja ferido. grupos que estscionavam no Rocio no dia
O gracejo por sua vez vinha pagar tri- em que se devia executar osaccusados pelo
buto á reunião piedosa de tantos corações assassinato da família de Francisco Bsne-
jusfceiros, que n^quelle momento se ex- dicto.
pandiam folgadamente n'uma espontânea Ao contrario: havia quasi duas horas
conformidade de sentimentos. que do Rocio á cadeia andavam ancio?cs a
De vez em quando toda a massa popu- espera de ver coasammar se a execução.
lar ondulava, afíluia para um ponto e Todas as janellas estavam cheias, e as
refíluia depois. mulheres, coradas pelo sol e excitadas
Era uma voz que se levantava para pelo desejo de emoçõ:s, debruçavam-se
apregoar que estavam rufando os tam- cos peitoris espiando para o logar de on'e
bores e que, portanto, em breve se desdo- devia vir o préstito.
braria o painel anciosamente esperado. Um incidente inesperado veiu pôr bem
Serenava o susurro; as mãos arqueia- patente a approvação publica ao decreto
vam-se em torno dos pavilhões das ore- dos tribunaes.
lhas, e todos tomavam a attitude de quem Espalharam-se dois boatos ao mesmo
escuta. tempo.
OU A PENA DE MORTE 9

Propalou-se que a munificência do Coqueiro e os seus amigos impediriam a


poder moderador reservara-se para ir no que à execução se renovasse.
alto do caiafalso tirar do pescoço dos — E' um attentado sem nome, excla-
padecentes o baraço infamante, e assim mava colérico o Sr. Luiz de Souza. Mas
restituil-os á vida, ao remorso e ao arre- emquanto eu fôr vivo, veremos se faz-se
pendimento. ou não se faz justiça.
Ninguém quiz dar credito apparente- A ultima palavra de Luiz de Souza era
mente, mas, em consciência, cada um a que pairava em todos os lábios, e a
s e n t i u se profundamente despeitado e de- idèa que motivava a satisfação do. povo.
n u n c i a v a o despeito repetindo entre um Não se riam, não se alegravam por des-
s o r r i s o : não é possivel! humanidade; regorsijavam-se crendo que
D'ahi~a pouco, porém, ajuntava-se um se effectuava uma justa vingança.
complemento ao boato, e a população Luiz da Souza era a imagem da in-
alarmou se seriamente. dignação profunda e dos desejos da
Divulgou-se que pessoas fidedignas ti- muitidão, a que acabava de reunir-se
nham visto chegar á toda a brida um mais um espectador.
cavalleiro. Accrescentava-se que o recem- Era Seberg que, sem saber por que, di-
chegado era campista e desconhecido no rigira-se para o legar onde lhe estava
legar. reservado um golpe tremendo.
Podia bem ser mais um curioso, mas N'uma das continuas viravoltas que
também podia ser o portí dor do perdão, dava, Luir. de Souza embarrou com Se-
visto que o segundo defensor de Motta berg, e communicava-lhe o occoriido,
Coqueiro era residente em Campos e pro- quando uma circumstancia poz-lhe ponto
mettera salvar o seu cliente a todo o custo. á narração.
A noticia inspirou geral desagrado e ou- Os écos do clarim da força publica an-
via-se em todos os grupos unisonamente nunciavam o sahimento do préstito.
dizer-se : A tropa, que estava postada na frente
da cadêa, mano breu e dividiu-se em dois
— Se fizerem isto, fica estabelecido que
podemos de hoje em diante matar a qu^m pelotões, formando alas á porta da prisão;
nos aprouver, sem que possamos ser pu- e alguns soldados de cavallaria, andando
nidos. Quem perdôa Motta Coqueiro não a passo lento, começaram a abrir um claro
pôde condemnar a mais ninguém. por entre os espectadores.
Ainda os ânimos não tinham siquer A' porta do mal seguro e abarracado
contido o choque produzido pelo boato, e edifício,—que desempenhava as funeções
já um outro corria de ouvido em ouvido. de calabouço, com exhalaçoes insalubres
de enxovias sórdidas e compartimentos
Ebte era ain !a mais grave e mais pro-
prio para irritar os justos instinctos dos abafaios esem luz,—um irmão da Mise-
curiosos. ricórdia movia compassadamente uma
enorme campa, cujas badaladas tristes
Aífn mava-se o primeiro boato, e caso
como que acordavam a commiseração nas
elle se não realisasse, nem por isso o
principal sentenciado deixaria de burlar almas dos circunstantes.
a sentença. Semelhante a um bando de aves agourei-
O r»eio empregado era simples. A corda ras, tendo pendentes dos hombros os seus
fôra embebida em agua-raz e portanto balandraus negros, a irmandade da miseri-
não poderia resistir ao peso do padecente. córdia assomou na porta da cadea e distri-
buiu-so em paralleiàs ás alas dos soldados.
Logo que ella arrebentasse, a bandeira Alguns dos irmãos, segurando em uma
rta Misericórdia seria collocada sobre
das mãos uma vara de prata e na outra
10 MOTTA COQUEIRO

uma saccola negra, lá se foram pelo povo A poucos passos da cruz e latéraln, r ia
dentro a esmolar para os suffragios do a ella, vinha o porteiro tendo nas mà
que ia morrer. um papel, em que esteva exarad a a s n-
E aquelles mesmos homens que ainda ha tença lavrada pelo tribunal contra o vm.
pouco indignavam-se com a s<5 idéa da Quando esta parte do préstito pasmou ^
possibilidade de um perdão, concorriam limiar da prisão, o enorme derramam™
com o S6U obulo n ara "iie a religião se in- popular, que assemelhava-se a um latiu
cumbisse de redimir na eternidade a;alma est agnado, tamanho era o se a silencio e
d'aquelld a quem attribuiam um crime, quietação — agito u-se inopinadamôire,
que j osfcamente revoltava a todos os espi- brotando n'um surdo morosurio.
rito s bem formados. O murmurio fez-se sussurro e o sus-
Sublime contradicção entre o homem surro intenso rumor e ouviram se gritos
religioso e o cidadão: este consente que a e choros de crianças.
cabeça de uai irmão vá ter ás mãos do E' que na porta do calabouço, vestido
carrasco, aquelle dá sinceramente o seu com a alva foneraria e acompanhado por
obnlo para queda ignominia social passe um sacerdote, acabava de assomar o réu. i
o suppliciado ás felicidades sonhadas pela O seu nome era Manuel da Motta Co- 1
crença, queiro. Fôra, havia tr<rs annos um homem „
Tanto é verdade que, em consciência, o abastado, inflaencia politica de um mu-
povo nlp quer as penas irreparáveis ! nicípio, um dos convidados indispensáveis
Após a confraria app ireceu a bandeira nas melhores reuniões; agora não era mais
santa, outrora symbolo de esperança, a do que um padecente resignado mas tido
que se dirigiam os olhares do condam- por perigoso e por is:-;o espionado e guar-
nado, que ao vel-a, através da memoria dado solicitamente pela força publica, em-
afogueada pelas saudades da familia, dos quanto que, o'hado como um ente repul-
amigos, do trabalhoe da patria, contrapu- sivo, servia de p^ut ? á curiosidade vinga-
nha á imagem horrorosa do cadafalso o tiva de uma sociedade inteira.
sonho consolador do perdão. Com o andar vagaroso, porém firme,
Mas h lei inexorável eoademnou desapie- veio collocar-se no meio da clareira.
dadamente esta esperança, de maneira Acompanhou-o o saca-dota, que em uma
que é hoje um apparato v *o o painel em das mãos tinha um livro aberto enaoutra
que a pallida Maria, n'um abraço estrei- um pequeno crucifixo.
tado a o cajavoT de Jesus, consorcia-se Aos lados d'esses dois homens inermes
com o fliho adorado para a conquista da viam-se o carrasco e oito soldados, com
redenapí/ão humana, as baionetas caladas.
A religião no seu painel mostra que Pairava sobre este grupo a sclemnidade
possue prra as suprenias desgraças o da morte.
supremo pori&o; a socieiada com o seu Alto, magro, com as faces, escaveiraáas
carrasco, alimentado com a lama das en- e ictéricas, marcadas por uma grande
xovias, diz-nos que para as accusações mancha arroxeada, as pálpebras entre-
forrai *aveis ella f ó conhece o castigo ini- cerradas, completamente brancos os com-
quo> e i; i eparavel. pridos caballos, as sobrancelhas extrema-
S- gaú, se icnme iiatamenteso painel um. mente salientes e espontadas, e as barbas
sacardc-te tendo na^ mãos urna grande longas de sob as quaes pendia-lhe de
cruz, na qual abriam-se os braços e con- volta do pescoço até á cinta, entorno da
fraugia-seo corpo Si vido de um Christo qual se enroscava, o baraço infamante;
ensanguentado, cuja face voltava-se para Motta Coqueiro tinha mais a apparencia,
o lado do padecente. de um martyr do que a de um scelerado.
OU Â PENA DE MORTE 11

Crusados sobre o peito os braços al- em susurros e farfalhos prolongados, o


gemados, a cabeça inclinada, os olhos povo movenio-se para acompanhar os
fitos no chão., immovel no meio d^quella personagens da medonha tragedia, enchia
multidão agitada, que se collocava nas o espaço de um ruido confuso.
pontas dos pés para melhor âtal-o; o seu Era como ouvir-se ao longe o roncar de
porte solemne, a compostura evangelica uma cachoeira.
do seu semblante fazia pensar ou na Contidos por algum tempo pelacom-
mais requintada hypocrisià, ou no mais misòração, ãs exclamações, os comucen-
inexplicável dos infortúnios. tarios, as pi agas jorravam agora da todos
Ao lado d'esse rosto, cuja expressão os lados.
fôra amortecida pela desventura, con- Alguns mais exaltados negavam-se á
traste enorme, apparecia o carão negro, supplica que lhes era dirigida pelos cari-
estúpido e truculento do carrasco, sur- dosos irmãos da Misericórdia.
gindo de sob ò gorro vermelho como um B"esse numero era uma velha, que tendo
vomito fulig noso da gargaata de uma ii® dos bra.ç^s passado ao redor da cintura
fornalha. de uma rapariguinha morena, de olhos es-
Fu?,ilava-lhe nas feiçoas o garbo bestial bugalhados e boquiaberta, via pnssar o
do crime. préstito, parada a um dos cantos da Praça
Com a mio esquerda collocada á ilharga Municipal.
e arqueado o braço íemi-nú, esprai& va pela A darmos credito aos muchôchos que
mó de basbaques meio ater?orada 5 o olhar provocava aos vizinhos, a feia da valha,
sanhudo, coado atravez de umas pupill&s era uma dessas beatas impertinentes, que
n-egras, borradas n'uma córnea injectada não se importam de incoaunodar aes mais
de sangue. com tanto que eJlas não sejam ao de leve
Pelas narinas carnudas e achatadas a prejudica la i nos seus commodos.-
sua boçal ignorância aspirava com o ar o Quando Coqueiro passava-lhe defronte,
alento necessário aos seus instmclos de a velha enrugando aináa maia as enregi-
fera. lhadas pelancas, que outfrora tinham sido
Após elles vinham o juiz municipal, faces, taramelou para a companheira :
revestido com a toga de magistrado, e o — Olha aqaelle pedaço de malvado;
escrivão, trajado da preto. vai alii que parece um santinho. Credo 1
Uma linha de praças fechava o préstito
funerário. que mal encarado.
O silencio, in -tantes quebrado, foi para — Oh I nhaahan, coitado, vai tão triste.
logo restabelecido e dentre elle só partia — Cala a bocca, tola, resmungou a
o soar agoureiro da c^mpa, tangida em velha, ao passo que apertava um pouco
badaladas espaçadas, quando o porteiro mais o pollegar e o indicador na cinta
começou a apregoar em voz alta a sen- da pequena.—Ter dó d'e11e, te arrenego,
tença ps a quU Manuel da Motta Coqueiro tinhoso ; é pena que o malvado não tenha
era condenando á soffrer a pena capital, no pescoço tantas vidas quantas arran-
por ser mandante dos assassinatos de Fran- cou, para espirrarem-lhe todas nas unhas
cisco B nedicto, sua mulher e seis filhos. do carrasco. Deus lhe perdôe, mas está
Ao termo da leitura, soaram os tambo- se vendo mesmo que foi elle.
res e as cornetas unisonrs com o badalejar — Uih 1 exclamaram n'outro grupo,
logubre da campa, * o préstito d^flloo. que carrasco tão feio, meu Deus 1
Então á semelhança is uma floresta que — Oito mortes, oito, entre velhos e
á tomada de assalto por um tufão e ao crianças, a vida d'elle só não paga. Eu,
passo que se retorce e anceia, desfaz.se c i no meu pensar, entendo que se devia
- 12 MOTTA COQUEIRO

fazer o mesmo á família d"elle, para que Os pulsos vigorosos dos agentes pu-
elle soubesse se era bom 1 zeram-o fóra; mas elle, sem conter-se
— Deus te perdôe, Deus te perdôe ! proseguia, dizendo :
escapava mais adiante ao anonymo po- — Ddxem-me fallar ao Sr. juiz» Dei-
pular, xem-me 1 Eu sei. . .
E o préstito caminhava, parando, po- E1 fácil imaginar a confusão qua n'esse
rém, a todas ás esquinss para dar logar instants reinou no interior do templo.
á leitura da sentença. Os espectadores redemoinhavam, gesti-
De cada vez que o préstito parava ou- culavam, apertavam-se em estreito cir-
via-se um como cicio psrtido dos lábios culo em torno do desconhecido.
dos sacerdotes e do condemnado. Este, vencendo a onda popular poude
Uma d'essas vezes, poude-se distinguir de novo approxima^se da ala, e cami-
algumas das palavras segrejadas pelo nhava em direcção ao magistrado, quan^i
ministro de Deus : parou repentinamente.
— Confesse toda a verdade, irmão, pu-
O sentenciado com os cabellos erriça-
rifique a sua consciência ná hora de com-
dos, a pelle pergaminbada do rosto e os
parecer perante Deus.
lábios contrahidos, meio erguidos os bra-
— Repito, meu padre; não mandei
ços algemados, fitava no desconhecido ~
fazer taes assassinatos.
um olhar profundo, em que se misturava
E duas lagrimas tardas e volumosas,
a suppliea e a reprehensão.
d"essas que só os bypocritas confessos ou
Todos pasmavam, O desconhecido, como
os desgraçados sabem chorar, escorrega-
se fosse instantaneamente petrificado, não
ram pelas faces cadaverosas do padecente.
deu mais u^i passo; a cabeça pendeu lhe
Ora envolvido no rufo rouco dos tam-
como que humilhada, ao passo que_as
bores, ora atravessado pelo badalejar da
lagrimas corriam-lhe em fios.
campa e pelo clangor das cornetas, o
préstito seguiu vagarosamente pelas ruas O juiz ia talvez ouvir o desconhecido
mais concorridas da cidade, até parar em mas ao passar pelo sentenciado, este, di-
frente á igreja, onde o pregoeiro em alta rigiado-se ao sacerdote, murmurou:
voz leu ainda uma vez a sentença irrevo- — Peça que o deixem ir. E' um homem
gável, qua devia manchar na cabeça de de bem; esfcima-m«; queria talvez dizer-me
um homem o nome de toda a sua familia. na hora da desgraça algumas palavras de
Parte do préstito já estava dentro do consolo.
templo; algumas das seatinellas, que O préstito continuou a entrar no tem-
custodiavam mais de perto o réu, já plo. Ninguém buscou interrogar aquelle
transpunham o limiar, quando um in- homem que soluçava, encostado á porta
cidente inesperado veio pôr em alarma principal da igreja. Respeitou-se lhe a
a todos os circumstantes. dôr, porque elia mostrava ser bem pro-
Um homem desconhecido, com as faces funda e filha de um sentimento gentroso.
macilentas, o clhar e*gaseado, cs vestidos A tropa descançcu as espingardas en-
em desordem, e entretanto, revelando pelo chendo o recinto sagrado do barulho pro-
seu traje, pelo próprio desespero, ser um duzido pelo choque das coronhas no
cavalheiro; rompera á força uma das alas assoalho.
de praças e viera collocar-se em meio do O sentenciado ajoelhou-se, e os seus lá-
precito. bios começaram a ciciar uma prece, e o
Agarrado pelos soldados, debatia-se nas s-icerdote que desde o incidente empal-
suas mãos, exclamando : lidecera ainla mais, e tomara um ar
— Daixem-me fallar; deixem-me fallar! ainda mais contricto, ajoelhou-se também.
OU Â PENA DE MORTE 13

Ao mesmo tempo o povo que enchia o A isto objectavam outros,mas a maneira


recinto começou a separar-se abrindo fi- pela qual o faziam ; as palavras de que se
leiras. Era o desconhecido, que tropego serviam eram muito mais comedidas.
e banhado em lagrimas, deixára a porta Para o desventurado estava, porém,
e caminhava em direcção a c&pella mdr. marcado o destino e apezar das innocen-
Chegado junto do altar curvou os joe- tações de uns, das accusaçõas de outros,
lhos e deixou pender a cabeça sobre os dentro em pouco elle devia áesapparecsr
geus frios degráus. do numero dos vivos.
Commovido por esta scena, o sacerdote, Teriam decorrido dez minutos após a
inclinando sa para o padecente, disse lhe ; entrada do préstito, quando um prolon-
como se desejasse não ser ouvido por mais gado tilintar de campainhas, vinio do
ninguém : lado da sachristia, annunciou que o sacri-
fício da missa ia principiar.
— È.B, jsntre vós ambos um segredo sa-
grado ; eu não o quero perscrutar. Res- Logo depois o sacerdote, paramentado
ta-jme apenas absolver-võs3meu irmão, em com uma casula negra, orlada e listrada
nomô de Deus. de largos galões amarello?, approximou-se
do altar-mór, e, em seguida á genuflexão,
— O a ! obrigado, exclamou o senten- exordiou em alta voz o sacrifício pelo ín-
ciado, que não poude mais conter as la- troibo in altare Dei.
grimas, e fitou os olhos amortecidos na
Os sons enternecedores do orgão espa-
imagem silenciosa do Christo. lharam-se como um sopro de melancolia
As seis luzes da banqueta do altar-mór, pelo âmbito sagrado.
meio offascadas pela claridade do templo,
cobriam de tons sangrentos a Svidez do E o celebrante, acompanhado pelos altos
Homem do Câlvario. améns e et cura spiritu tuo do sachristão
e os soluços angustiosos do desconhe-
Dir se-hia que se trocava um mysterio- cido, proseguiu resmoninhando o latim
so olhar da intelligencia entre os dois sen- do missal.
tenciados, e que os seus corações conver-
savam na luctuosa intimidade de um A educação religiosa dos assistentes
inaudito sacrifício: tamanha era a ex- tinha n'este momento extinguido quaes-
pressão do semblante do réu e tão ani- quer outros pensamentos quê não fossem
madora a sttitude do divino martyr. os da respeito pelo acto, que se effectuava.
Entre elles estava baqueada a coragem Havia, porém, um homem em quem a
do desconhecido, completando a desolada solemnidade singella do officio divino não
trindade de um martyrio inenarravel. produzia a mencr impressão. Era o car-
rasco, o monstro negro, que brincava
Cousa singular, tfesseg sofrimentos distráhidamente com o seu barrete, revol-
o que parecia mais sereno era o do mori- vendo-© entre as mãos.
bundo, que de vez em quando levantava
os braços algemados para embeber o panno Estatua informe da escravidão, cujas
da alva nas lagrimas perennes. falhas foram cheias com o asphalto do
calabouço, argamassado com o sangue
A impressão produzida por este quadro que os açoutes lh.9 tiraram do corpo, o
sombrio parecia ter apiedado a multidão, desgraçado folgava talvez na sua brutali-
que se mantinha em sincero recolhimento:
dade de féra.
Algumas pessoas visivelmente commo-
vidas diziam já : Os brancos fizeram d^elle uma victima;
prohibiram-ihe que afinasse os senti-
- Ha uma voz que me diz que o Co-
mentos pela comprehensão exacta da fa-
queiro não foi o auctor dos assassinatos.
mília, d» religião e da patria; devia ser-
•14 MOTTA COQUEIRO

lhe grato poder vingar-se de um dos seus — Perdoa-lhes, irmão, elles não sabem
oppressores. o que fazem.
Revolvendo nas mãos o gorro vermelho Na embocadura do largo o pregoeiro
illudia porventura a impaciência que lhe cumpriu pela penúltima vez o seu dever,
causava a demora da execução. e as caixas expandiram-ss em rufos pro-
Negaças de tigre antes de dar o bote á longados.
presa. \ Pela cara angulosa do carrasco passou
O sacerdote acabava de resar o prefa- um vago estremecimento, semelhante aos
cio , e a campainha do ajudante acompa- frémitos electricos que percorrem os lom-
nhava a invocação dos santos, quando a bos dos tigres, e ao mesmo tempo tomou
campa funerário, do irmão da Misericórdia o aspecto metallico de uma camada de
apregoou a retirada do préstito. mercúrio.
O barulho dos que se levantavam para — Coragem, eoragem, meu irmão;
sahir perturbou o recolhimento devido ao chegado o transe derradeiro; exclamou o
acto da celebração, e grande parte do sacerdote para o sentenciado.
povo já estava de pé e de costas, quando — Peça a Deus por nós, meu padre.
a Ostia, levantada pelo celebrante, alvejou E caminhou, seguro no braço pela ca-
por cima do altar como uma estrella de losa e rude mão do carrasco.
amor, perdida na escuridão do odio. A poucos passos levantavam-se os dois
Lá fóra rufaram as caixas os runs- esteios negros que sustentavam a ma-
runs contestadores, com que a justiça china monstruosa da justiça humana.
enlucta ainda mais a perspectiva do tu- Se a machina tivesse alma devia estar
mulo; depois o pregoeiro declamou ainda bem desvanecida de ver a curiosidade
uma vez a sentença, e o préstito seguiu que despertava a sua brutalidade, e pro-
o seu caminho. curar attituies especiaes para relevar
A serenidade que, desde a sahida da ainla mais 03 seus toscos e hediondos
prisão não deixara de illuminar a phy- contornos.
sionomia do condemnado, persistia inal- A parte superior dos esteios era ligada
terada, porém, a fraqueza do corpo des- por uma grossa trave, e abaixo, mediando
dizia a fortaleza do animo. pouco mais da maior altura de um homem,
O desventurado quasi não andava, ar- corria um tablado, terminando, de um
rastava se; e algumas vezes o sacerdote lado, rente com a face dos esteios.
teve de ir-lhe em auxilio, para que não Do tablado até o chão corria uma es-
désse em terra. Outras vezes o c a r r p ^ cada de degraus estreitos e roliços. Tudo
impacientado pela morosidade do passo, tosco, brutal, como o fim a que era des-
impellia a victima, que nem siquer dava tinado.
mostras de censural-o por isso. Para ahi condusiu o carrasco o homem
Já os irmãos da Misericórdia, do des- aferretado pela condemnação publica.
empenho da sua caridosa missão, embara- Ia emfim desdobrar-se a ultima scena
f ustavam pelo meio dos curiosos que esta- do assassinato legal, esse que, mais digno
cionavam no Rocio, e os soldados abriam de reprovação do que os outros, é feito a
caminho para a entrada do préstito. sangue frio, premeditado nos commodos
Motta Coqueiro, desfigurado e tremulo, de uma cadeira de juiz de facto, de uma
ao ouvir os gritos que annunciava a sua poltrona de desembargador, e confirmado
chegada, com a voz entrecortada disse pela irresponsabilidade do poder mode-
ao sacerdote: rador.
— Aconselhe-lhes, meu padre, que não j Oè jaizes chegam ao tribunal com os es-
zombem de quem vai morrer. \tomagos cheios e os corações affagados
OU A PENA DE MORTE 15

pelos carinhos da familia; riram! ao Para abafar a voz do condemnado as


almoço satisfeitos com a graciosidade dos caixas marciaes rufaram prolongada-
brincos dos seus caçulas; riram á en- mente, e fez-se signal ao carrasco para
trada do tribunal, alegrados pela jocosi- começar a sua missão.
dade dos amigos ; applaudiram os tropos O monstro apertou então ainda mais o
ardentes da accusaçlo e da defeza e en- braço do livido padecente; puxou-o para
thusiasrn&ram-se com a arte revelada si em direcção á escada, e colloeando-se
pelos juristas na elaboração do libello e depois por detraz d'elle, fei o subir os de-
do contra-libello, e depois retirados para gráus da forca.
a sala secreta, submettem os quesitos, não Embaixo, os irmãos da Misericórdia e
ao c r i t é r i o formado pela sensata apre- os sacerdotes, reunidos em torno da cruz,
c i a ç ã o do entrecho do processo, mas aos puseram o seu estandarte em posição de
preconceitos que em em suas mentes de cobrir o sentenciado, caso arrebentasse a
burgu&zas honestos foram arraigados corda.
pelos commentetrios e legendas abortados Era uma vã esperança: a corda fôra
da igooraneia popular, tão officiosa em especialmente mandada por uma auctori-
cooperar para o mal do proximo, quanto dade elevada da provincia, e os abusos da
remissa para fazer-lhe bem. própria confraria inutilisavam a sua in-
O sentenciado chegara junto ao patibulo. tervenção a favor dos infelizes, votados á
Para juntar a ironia á inalvadeza, uma morte infamante.
bandeja com alguns pratos cheios de con- O carrasco e o reu tinham chegado ao
feituras, um cálice e uma garrafa de tablado . O pregoeiro leu pela ultima vez
vinho generoso foram apresentados ao a integra da sentença que condemnava á
preso, como symbolo da solicitude social, morte e as multas da lei o réu Motta Co-
e da maxima e indisivel piedale que vem queiro, mandante dos assassinatos de
cevar a victima antes deimmolal-a. Francisco Benedicto da Silva, sua mulher,
O réu voltou nobremente o rosto á in- um filho de desoito para dezenove annos,
juria asssucarada dos seus matadores, daas filhas maiores de quatorze, duas
e, ou fosse pela dor que esta affronta maiores de sete e uma de dois para tres
lhe causasse,ou fosse pelo terror inspirado annos, e finda a leitura, o magistrado or-
pela visinhaça do patibulo, os joelhos ver- denou ao carrasco o cumprimento de seu
garam-lhe, e teria baqueado se não fosse dever.
arrimado pelo sacerdote. O negro instrumento da morte, depois
Não longe d'este grupo uma face negra de conchegar á cabeça encarapinhada o
de mulher banh&va-se em pranto copioso. gorro vermelho, e experimentar com vio-
Era o protesto de uma raça contra o pro- lentos puxõ es a segurança das algemas do
cedimento de um de seus membros, por preso, tomou-lhe o capuz, que lhe pendia
que ao passo que a baa da preta chorava, nas costas e com elle cobriu-lhe o rosto.
o carra xo esvasiava um cálice do vinho Passou a desenroscar a corda da cin-
regeit !c pelo condemnado, e apreciava- tura do padeceate e ajustar-lhe o baraço
lhe o eabor dando estalinhos com a lingua. ao pescoço. Feito isto, conduziu o des-
Dispertado da prestação, revivido do venturado para uma psquena escada posta
desanimo pelos soluços da commiseração entre o tablado e a trave; assentou-o em
espontanea a'aquella mulher, o réu co- um dos degraus, e foi prender a corda
brou de novo forças, e voltou-se para em dois ganchos de ferro pregados no
a lacrimosa, dizendo lhe : alto do patibulo.
— Chora, minha filha, porque eu morro Escarranchando-se na trave, agil incli-
innocente.
nou-se e segurando-se n^lla com um
16 MOTTA COQUEIRO

braço, com o outro empurrou violenta- pletamente vasias e a cidade recahia no


mente o padecente, tirando de improviso sea silencio habitual.
a escada de sob elle. No tablado do patibulo viam-se, porém,
O sentenciado ficou suspenso pela cor- quatro homens vestidos de lucto, e com
da, esperneando, agitando os braços um sincero recolhimento collocavaai den-
amarrados e balouçando como enorme tro de um caixão mortuário o cadavef do
pêndula. justiçado.
Deixando então a primitiva posição, o Eram os amigos de Motta Coqueiro que
carrasco, voltado para a multidão, segu- tinham obtido da justiça, para dar á uma
rou-se com as mãos robustas na trave e cova, os restos que ella condemnaria á
pendurou-se no ar. valia commum.
Em um dos vai-vens dados pelo corpo do . O desconhecido, que era um dos quatro
sentenciado, os pés do carrasco alcança- que seguravam nas argolas do caixão, ao
ram cs hombros d'$quelle. pousal-o na beira da cova, disse para Se-
Collado um pé sobre cada hombro, o berg, que chorava: — foi um homem de
monstro carregava sobre o moribundo e bam á? direitas ; e se alguns erros com-
impellia-o em largos balanços. metteu, o ultimo acto de sua vida paga-os
Durante toda esta geena que atterro- de sobra.
rava os mais exaltados, o negro execu- II
tor ria a sua fereza através de uns lábios
O SITIO EM M A C A B U '
grossos e roixos.
Talvez sentisse tfesse momento a sa- Um tapete de grama, desdobrado so-
tisfação de Quasimodo quando bamba bre uma larga area de terreno, vireiecia
leava se no espaço, agarrado ás orelhas de um lado uma vasta planicie e de outro
do siao grande da Notre Dame. uma pequena colliaa, alegrando a appa-
Esta scena durou o tempo immenso rencia da localidade.
que duram sempre as scenas horrorosas ; Aqui e alli erguiam-sa do chão atapeta-
miautos que parecem horas. do grandes moitas de arbustos, ou isoladas
A um golpe dado na corda o cadaver do arvores corpulentas, copadas umas, .nuas
sentenciado bateu em cheio no tablado e e esgalhadas o u t r a s , projectando sombras
o carrasco veio de um salto, collccar-se extensas ou sacudindo á viração longos
sobre elle,carregando-lhe com a mão sobre flocos de musgo, postiças barbas brancas
a boea. postas á velhice d esses raros represen-
Estava desaffrontada a sociedada. Ru- tantes das mattas virgens.
faram os tambores, clangoraram as cor- Na orla horizontal do grammal, o rio
netas e o carrasco desceu para recolher-se Macabú, comprimido entre as margens co-
de novo á fermentação silenciosa dos seus bertas de v e g e esplendida, arrastava
t a ç ã o

ruins instinctos. a sua pobresa de aguas, ora juncado


A confraria desfilou precedida pela sua das mortas folhas amarellas das figueiras,
bandeira e fechada pela cruz, onde a ca- ora branqueado pela caduca floração dos
beça descorada do Christo parecia ter-se ingazeiros.
inclinado ainda msis. O cimo da colima servia de base a uma
E1 que, desfeiando-a, na historia da hu- casa avarandada, cujo caio era de distan-
manidade redimida negrejava mais uma cia em distancia colorido por uns quadra-
iniquidade. dos e rectângulos verdes, a que corres-
Uma hora depois, a praça do Rocio e as pondiam outras tantas portas e ja&9 llas
ruas principaes de Macahé estavam com- envidraçadas.
OU A PENA DE MORTE 17

Cerca de duzentos passos d'esta casa se erguia por entre as negras telhas do
chamada—a casa grande—estendia se um casarão central.
lanço estreito, coberto de sapé, de paredes Toda a vida e actividade estavam con-
apenas barreadas, atravessadas de espaço centradas em outros pontos, e fácil era ir
a espaço por umas partas baixas e janel- ter, a elles tomando um caminho, que pas-
las que teriam tres palmos de altura so- sava perto do curral, e seguindo por elle
bre dois de largo. em direcção ao occidente.
Era uma linha de senzalas, miserável A um quarto de hora de caminho
habitação dos escravos. estar-se-hia no meio de compridos acairos,
sombreados por enormes bananeiras que
Entra as senzalas e a casa grande —
dividiam umas de outras as terras culti-
duas casas — a do feitor e a do fabrico de
vadas.
faiinha, ou bulandeira, e além d'estas,
Ouvir-se-hiam então os cantos monó-
do outro lado da casa glande, uma es-
tonos e ver-se-hiam, com uma saia de ris-
pecie de barracão coberto de telha, com o
cado e alviís camisas de algodão, expostos
caio sujo e as paredes meio esburacadas,
ao sol os collos negros das escravas, e
c o m p l e t a v a m o numero das edificações,
vesti'os de calças de zuarte, os negros
se exceptarmos algumas palhoças collo-
serui-nús levanlo para diante o eito, esti-
cadas mais para traz e que serviam p&ra
mulados pelos gritos machinaes de arriba,
guardar os animaes domésticos.
arribai bradados pelo feitor, encostado
Como grande mancha negra no matiz ao cabo do seu rebenque.
da collina, via-se o curral, cercado por Se no meio dos cafesaes e manfliocaes
uma curva de baixos paus-a-piques, nos não fosse encontrada a gente do sitio, o
quaes preniia-se uma pesada cansella. tan-tan, tan-tan compassado dos macha-
A casa grande estava quasi sempre dos no cerne das arvores seculares annun-
fechada, porque o seu dono, Manuel da ciaria a sua estada nas mattas circ um vi-
Motta Coqueiro, residia em Campos e a zinhas.
maior parte do anno passava-a ahi, ou en- A's vezes o serviço era dirigido pelo
tão na sua chacara da barra de Macabú.
senhor em pessoa; mss o aspecto da casa
A alegria dos logares habitados não
não S9 alterava, porque vindo só para o
era, pois, encontrada senão raramente
sitio, Motta Coqueiro apenas era visto em
n'este local, onde a primavera desfazia-se
casa quando de manhã muito cedo dieta va
em florecencias esplendidas sem que
ordens ao seu feitor ou á noite ouvia d'elle
houvesse quem a contemplasse.
a narração do serviço feito. Em face
Quando o vento indifferente, enredan- d'elles quedavam então os escravos ali-
do-se na copa das arvores, transformadas nhados e taciturnos.
em ramalhetes monstros pela seiva vernal, Quatro annos antes da época em que nos
esfolhava-os desapiedadamente, a chuva achamos, primeiros mezes de 1852, outra
de flores e folhas cahia sobre o gado, que era a vida no sitio.
fugindo á canicula, deitava-se-lhes á som- O campo era quasi sempre percorrido
bra, ruminando silenciosamente. por cavalleiros e homens a pé, os quaes
Quando o calor abrasava, colhidas as dirigiam-se de preferencia para o velho
azas e occultas na frescura da folhagem, barracão que descrevemos.
as cigarras e as nuvens de passarinhos Por esse tempo, a pedido de um amigo,
chilravam e gazeiavam por alli como se Motta Coqueiro recebeu como seu aggre-
estivessem em logar completamente de- gado um d'esses pobres homens do sertão,
serto. Também de visinhança de homem que vivem da pequena lavoura e sem meios
só dava Mspaal uma espiral de fumaça que para ter um terreno proprio, cultivam o
18 MOTTA COQUEIRO

alheio para usufruir-lhe as bemfeitorias. xima, tocando viola e desfiando a vida


Francisco Benedicto,forte apesar da idade, alheia, o compadre assentava-se ás vezes,
que subia a mais de 40 annos, vira se, e para matar o tempo e cortar o calor
havia alguns mezes, sem um tecto sob o esvasiava tantos copinhos de aguardente,
qual abrigasse a numerosa familia, e re- que o resultado era voltar para casa des-
correndo a Coqueiro por um seu amigo, crevendo zig-zags.
obteve concessão para estabelecer-se ém Demais tinha relações com pessoas, que
terras do sitio de Macabú, onde levantaria eram inimigos confessos de Motta Co-
para si uma casa e cultivaria o terreno que queiro, e que, segundo era fama, só não
lhe aprouvesse, sem prejudicar o pro- lhe bebiam o sangue porque não podiam.
prietário. Era d'est9 numero o André inspector, e
Foi, porém, temporariamente hospedado osublelegado Oliveira, que se malquista-
no barracão cantiguo á casa granie até ram com o compadre de Francisco Bene-
que terminasse os trabalhos preliminares dicto desde umas eleito3s que elle venceu
do seu estabelecimento. em Carsp9bÚ3.
A belleza das tres filhas mais velhas de Salvo esta queixi, reinava a mais in-
Francisco Benedicto, a intimidade por teira cordialidade entra as familias. As
elle demasiadamente facilitada, fizeram filhas e mulher do aggregado frequenta-
logo da casa um ponto de reuoião, princi- vam a casa grande e nunca sabiam de Já
palmente dos ociosos da visinhança. sem que a senhora peiisse os lenços das
Coincidiram com a chegada de Fran- pequeninas para amarrar uma trouxi-
cisco Benedicto e os primeiros tempos da nha.
sua morada na casa de Coqueiro, as de- Por seu turno estas de vez em quando
moras d'este e sua familia no sitio. traziam uma cestinha cheia de ovos e
Era causad'essas demoras ter Coqueiro, acercando-se da dona da casa, depois de
que negociava em madeiras, resolvido lhe beijarem a mso, diziam-lhe :
explorar as mattas próprias para obter
— Eu trouxe isto para a senhora.
os preços elevados correspondentes á ca-
restia do genero no mercado. A resposta era sempre, á chegada das
Para accelerar o trabalho era necessá- canoas da cidade, um embrulho de cassa
rio que elle estivesse presente ao serviço ou chita, ou uas lenços novos, enviados
dos escravos e empregados. Isto obriga- pela esposa de Coqueiro á casa de Fran-
va-o a demorar-se no sitio e a sua esposa, cisco Benedicto.
para não constrangei-o a ir visital-a a Se a consorte de Coqueiro assim tratava
Campos, resolveu acompanhai-o. a familia do seu hospede, aquelle por sua
Entre a familia do aggregalo e a do vez teve diversas occasiões de carregar
proprietário travaram-se logo relações e as suas sobrancelhas salientes, e tomar
Motta Coqueiro foi na primeira oppor- um tom de voz energico para responder
tunidãde escolhido^para baptisar o caçula aos que fallavam do seu coaopidre :
de Francisco Benedicto. — O que eu sei é que tirado o defeito
Cumpre, entretanto, notar que a senhora da bebida, é muito trabalhador e a sua
de Coqueiro manteve sempre uma certa f imilia é boa gente.
reserva para com o compadre, que não Todas as tardes ao voltar da roça ou
obstante ser bom homem, muito respeita- da derrubada, Coqueiro parava juato da
dor e trabalhador, tinha o vicio da be- casa de Francisco Banedicto, e alli espe-
bida. rava muitas vezes até á noite, mandando
Entre os vadios que passavam as se- ao moleque, seu pagem, desensilhar O
manas assentados ao balcão da venda pró- çavallo, porque só iria mais tarde.
OU Â PENA DE MORTE 19

Havia t-fs iniiviiuos a quem tamanha ponteagudas, que faziam lembrar a fór-
familiaridade incommodava. Eram elles ma dos pecegos.
Manuel João,um mulatinho de viate e pou- Demais a mopa antes de entrar no rio,
cos annos, bem apessoaio efailante,—um colhera os vestidos até os joelhos, e
peino^tico, seguido o Vianna da venda; atara-o á cintura com um lenço, e para
o Sebastião Pereira, robuito rapaz que não molhal-os, apertou-os e itre pernas,
mcrava perto dcs terras de Coqueiro, e de maneira a formar com elles uma es-
muito conheci.lo peia pericia em tocar pecie de calçõe3 apertados.
viola e cantar o desafio ; e o Vianna da O remador que adjudava com remadas
venda já meio ma luro—como dizia o An- viris o deslisar espontâneo da canoa pela
dré iaspector, e creio mesmo que ligado correntesado rio. conteve a frágil embar-
por laços matrimoniaes. cação parou de remar, e deixou que ella
Ca la um desses tres indiviluos suspi- ficasse remanseando, emquanto elle en-
rava muito em segredo por uma das mo- volvia n'um olhar ardente as formas
reoas do Chico Benedicta—por pena das sculpturae 4 de Chiquinha.
pob es raparigas. Esta que disfarçadamente observava
O porte airoso de Chiquinha, a filha o canoeiro com um olhar contemplativo,
mais velha, o seu olhar meio escarninho, deixou-se ficar curvada, ostentando a cin-
meio melancólica, o confranger dos lábios tura fina, accentuada ainda mais pelos
para estalar um muchocho penalisaram amplos contornos dos qualris.
m u i t j a Sebastião. A canôa, entregue a si mesma, poz-se a
O compassivo rapaz levava a sua sen- boiar a mercê da correntesa, e como se
sibilidade a ponto de visitar sempre o mão noysteriosa a guiasse, veiu esbarrar
Chico Bsnedicto. n'um tosco branco de lavagem, que negre-
A principio, ao IUÍCO fusco, com a sua java junto a Chiquinha.
viola a tiracollo, e montado n'um ossudo — Que máu poupeiro que vosmecê é,
ca valia, a que todos chamavam—pangaré, oh seu Sebastião ; disse esta, eu não me
e só elle chamava-o—Suspiro, era visto embarcava com vosmecê, nem para o céu.
marchando para a casa, que lhe entris- — Pois é pena, sá Chiquinha, porque eu
tecia o coração. iria com vcsmecê até para o inferno.
— Era preciso que eu quizesse ir, res-
Mas, devido mesmo ao continuado tra- pondeu Chiquinha, soi rindo.
balho, aggrav. ram-se as mataduras do — Ejtá visto ; eu não queria nem esta
lombo do animal, e o Sebastião tomou o canoa cheia de ouro se fosse contra a sua
expediente de vir em uma cacôa. vontade.
Um dia, ao chegar ao porto, Chiquinha — Deveras?...
estava lavando. O sol re vestira lhe de um — Se duvida, sá Chiquinha, é só expe-
anacardino intenso as faces graciosamente rimentar.
túmidas. Os cabelk s negros como os fruc- Ao pronunciar a palavra Chiquinha ti-
tos da baraúna, reunidos em duas tranças, nha-se sentido perturbada e para não
que cingiam a cabeça pequena, afofavam- trahir-se levantou a alva peça que lavava
se em duas pa&tas, arqueadas por sobre para batel-a no banco, que tinha diante.
as têmporas.
O seu braço foi, porém, delicadamente
Entre as suas mãos delicadas alvejava s e g u r o pela mão de Sebastião, emquanto
uma peça branca de roupa, sobre a qual a com a outra o moço tentava tirar-lhe a
moça inclinava-se, mettida dentro do rio. peça da pequenina mão.
A posição curva,, que tomara, deixava — Não me segure, resmungou Chiqui-
vêr pela altura do collo umas saliências nha, fingindo se amuada; me deixe.
20 MOTTA COQUEIRO

— Não foi por mal, sá Chiquinha 1... A sala sem assoalho, com o chão ac-
murmurava Sebastião, ao passo que dei- cidentado por altos e baixos, ornada por
xava o braço da moça. E' que para bater uns bancos de pau, umas caixas e uma
a roupa é preciso força, e eu sou mais meza velha, em que assentava um orato-
forte. rio junto do qual espirravam dois can-
Chiquinha dando uma das francas risa- dieiros de folha de Flandres; semelhante
das características dòs filhos da roça , sala luzia na memoria do homem com ÉS
exclamou: scintillaçõss de um paraiso de amor.
— Uhê! seu Sebastião subiu a serra, E1 que ao entrar j fôra recebido por uma
gente! estrepitosa ovação, e ouviu á Antonica
O rapaz animado pelo,, dito e a risada chamar os seus quasi quarenta annos —
de Chiquinha desembarcou,segurando nas um mocetão bonito.
mãos a corda que amarrava o banco da Não ha alma de tendeiro da roça, por
prôa da canôa, e poz-se a perfurar o barro menos vaidosa que sêja, fortalecida para
do porto com o cabo do remo, dizendo: não penhorar-se com semelhantes sau-
— Eu pensei que você tinha-se zangado dações.
commigo. N^quella noits o Yianna, naturalmente
— Não me zanguei, n ã o ; foi só para folgazão, levou as lampas aos mais pago-
você não se metter no que não sabe. deiros ; tinha mettido no mesmo chinello
— Então eu não sei bater roupa ? o Sebastião e Manuel João, que improvi-
— Qual sabe o que; isto não é viola. savam estrophes com a fluência do jorro
— Pois fique sabendo que a gente de uma cascata, e com as mesmas quédas.
quando quer sabe tudo, até amar. Achava-se ahi por ter merecido um
— Ora, isto... tem muito que saber... convite de Francisco Benedicto para uma
— E tem mesmo; como eu você não brincadeira de Santo Antonio.
acha outro. O programma da festa era uma ladai-
— Agora, como se faz na caixinha dos nha, e em seguida um fado com muitas
tres desejos, diga, seu Sebastião — a quem raparigas, um leitão assado, dous garra-
ama ? fões de aguardente, ou melhor— de boa
— A você I . . . canna, e um garrafão de vinho, o qual
— Gentes I como você está adiantado I fôra dado de presente á Antonica, pelo
exclamou Chiquinha,depois de ter contra- compadre capitão, o Motta Coqueiro, que
hido os lábios corados n'um terno mu- fôra passar a fasta na cidade.
cfcôcho. Na casa não havia nicas, era casa de
Desde esse dia, Sebastião Pereira come- pobre ; e o Sr. Viaxma estava alli como
çou a sentir grande pena pela familia do se estivesse na sua venda. Podia também
Chico Bsnedicto, e a ter manifesta aver- levar quem lhe aprouvesse.
são pela familiaridade de Coqueiro junto Cantada a ladainha, começou calorosa-
d'esta familia. mente o fado. A viola retinia febril-
A partir de uma noite em que, sobra- mente ferida pelos dedos apaixonados de
çado o seu ponche de baeta negra, forrado Sebastião Pereira; rufavam entusiasti-
de fianella vermelha; posto no alto da ca- camente os adufes, e os pares rodavam,
beça o chapéu do Chile com largas fitas sapateavam, peneiravam, enchendo a sala
negras pendentes, oVianna da venda, en- de palmas e castanholas.
trou na casa de Chico Benedicto, a sua Uma das rodas era formada pelo Yian-
alma de tendeiro começou a pesar ouro fio na e Antonica, Manuel João e Mariqui-
os generos da vendola e a recordação de nhas, a mais nova das tres filhas moças
sá Antonica. de Francisco Benedicto.
OU A PENA DE MORTE 21

Era a roda em que se dançava melhor. E longo tempo persistiam os cantores


Maravilhava pela certeza dos meneios, rociando de ardentes galanteios os cora-
pela precisa cçadencia dos sapateados e ções agradecidos das suas preferidas.
pela assonancia das palmas, ás vezes ba- Descuidos contratadores deram, porém,
tidas junto da breca aberta, para reper- occasiões a separarem-se os paras predi-
cutirem um som cavo, delicia dos dan- lectos. Prompta era, entretanto, a juncção,
sarinos. porque á retirada áos cavalheiros seguia-
Excitava-a o enthusiasmo do amor. se uma frieza visivel nas damas; desappa-
Invejosos da maestria das damas, os reciam os ademanes graciosos, os reque-
cavalheiros de outrc s grupos, pela maior bros francos e as zumbaias lascivas e ele-
parte em mangas de camisa, tentavam gantes.
frequentes furtos, que eram habilmente Os intromettidos, despeitados pela sú-
repellidos pelos cautelosos pares. bita mudança, presto retirávam-se e se al-
Em vão, de um pulo, es invejosos reali- gum mais rusgusntolevava a imprudên-
savam os bt m planejados assaltos; era- cia até a fazer notar que percebera a má
lhes frustrado o intento, porque encon- vontade das moças, ellas acudindo á cen-
travam a dama cobiçada bem amparada sura com o seu melhor sorriso, respondiam
pela perna dopar, inteiriçada e meio su- com apparente ingenuidade:
mida entre as sai&s murmurosas da ri- — Credol que luxo; não quer que a gente
sonha defendida. fique cançada.
Os assaltos mallogrados eram novo in- Mas, em reapparecendo os dois, o can-
centivo a feri ilidade poética dos cantores. çaço extinguia-se milagrosamente; a frie-
Manuel João viotorioso frendia a corrente sa tran*furmava-se em fogo, e a roda
do desafio, c stropnes allusivas e dizia no gyrava com tanto garbo, com tanta ale-
seu ameno tenor : gria que algumas das visitas, cobrsndo
— E1 capricho ; hei de guarda-la pareas á maledicência, resmungavam de
Qual na moita o passarinho, mau humor :
Co as lindas azas abertas, — São muito faiscas estas moças.
Guarda os filhos no seu ninho. Francisco Benedicto havia-se approxi-
Respondendo rapidamente á volta, o maio do violeiro, e o alegre Sebastião,
violeiro apaixonado, tornava no seu ba- casando os ais da prima aos soluços do
rytono selvsgem : bordão, kvant*u as despedidas.
— Eu ta mb e tn morro de zelos Cessou o rufar do adufe, o soar das
Por ums joia querida; palmas, e os pares separaram-se.
— Os sorrisos de CniqUinha, Era a ceia que vinha sustar por algum
Cadeias da minha vida. tempo o folguedo, e dar aso a expansões
que, mal contidas, ameaçaram irromper
Continuavam a trccsr os promptos im-
provisos , alLudindo cada um a dama que inconvenientemente durante as alegres
o captivava. danças.
Todas as damas e cavalheiros retiraram-
—_Quem tem jóias preciosas
se, precedidos por Francisco Benedicto,
Não as neixa assim roubar;
que não muito em linha recta,alumiava-os
Meu thesouro é Mariquinhas,
c >m um dos candieiros que esclareciam a
Minha joia éseu olhar.
sala.
Mas eu conheço outros olhos
Sé a travessa Antonica ficara, talvez
• Que têm um brilho melhor; maliciosamente, assentada a uma das
São negros, a gente os yendo caixas, a pretexto de que não queria ceiar,
Fica perdido de amor.
e sim descançar.
22 MOTTA COQUEIRO

A solicitude de Yiaana não podia resig- deiro agachou-3e e cosau-se com a parede
na r-s 3 a mastigar o leitão da brincadeira, correndo, e só depois de alguns minutos,
quando Antonica, bonita como diabo, gritou de fora :
conforme elle dizia, ficara lá na sala so- — Eh, tá com o berreiro; já vou, já vou.
zinha e quem saba se amua ia comsigo. As pessoas que entravam na sala, en-
Assim pois, resolveu vir ter com ella contraram Antonica, seatada muito tran-
acompanhado de um prato com a iguarias quillament5», e ninguém su peitou, siquer,
da mesa e um copo, o único que havia, até a scena que antes se passara.
meio de vinho. Recomeçando o fado, o Vianaa mostrou-
Apresentou lhe o prato e o copo; a se por largo tempo menos expansivo;
moça não quiz servir-se, e pediu-lhe que esquivava-se de dançar, tíizendo-se fati-
a deixasse descançar. gado, e só se achava bem junto dos gar-
— Oh! sá Antonica, eu fiz-lhe algum rafões, em companhia de Caico Benedicto.
mal ? interrogou Vianna, ou sou algum - Antonica t&mbem não figurava nas
bicho que lhe metta medo ? rodas senão espaçadamente e tinha o ar
— Não é, nã~; mas ea não quero ouvir de quem queria chorar.
a bccca do povo.
O Sôbastiãí» Pereira, que ao lado de Chi-
— Qual historia, sá Antonica, elles de quinha parecia ter-se alheado de tudo
mim não faliam, porque todos elles têm a mais, não prestou a principio attenção ao
barriga lá em casa. mau eatar dos dois nam.r<*dos, mas sendo
— Já sei, já, seu Vianna; mas eu quero obrigado a chamar alguém para substituir
ficar sozinha aqui, ou então vou-me em- a sua viia, que precisava sahir, f ji ter
bora. Que aborreciment3, home f 1
com Antonica, e as lagrimas represas da
— Está bom, eu vou, sá Antonica.
moça revelaram-lhe o segredo do seu
Mesmo póle estar aqui alguém que vá
afastamento e tristeza.
contar a elle, e depois...
— Contar a quem, seu Vianna? não se Diriginio-se á Vianna, Sebastião ata-
dá esta ? te arrenego ! cou-o logo de frente, sem meias palavras:
— E olhe que não seria a primeira vida —Você pare3e criança; lá está a Antonica
que elle mandaria tirar. Eu sou pobre e a chorar, seu Vianna. O pai já está prom-
elle ó capitão, é rico, é magnata. pto e se vem a sabar d'isto, temol-a tra-
— Olhe, seu Vianna, eu chamo papai mada. Vá tirar a rapariga, e o mais corre
pira ouvir o que é que está ahi dizendo. por minha conta.
— Não precisa, não, sá dona\ depois No dia seguinte ao re'.irar-se da casa de
não se arrependa. Francisco Benedicto, o vendilhão levava
— E\ vocês todos são assim mesmo; eu a roupa e o coração igualmente machu-
dancei com você, e agora fica mal com- cados.
migo. Combinando, .porém, algumas palavras
— Qual zangado 1 não estou; é que de Antonica, poude abraçar-se a uma es-
penso; eu sei lá, o Manuel João é quem perança, ao passo que dava de mão a uma
diz que você gosta do capitão, e eu já teimosa somma debita ia ao pai da moça.
estimo você tanto... O sacrifício de seus interesses e o de
— E gosto, e agora? nunca me fez sua tranquillidade puseram muito natu-
mal. Quem manda aquella coisa espiar os ralmente o fcom do tendeiro na contin-
outros ? Nãoé o capitão quem nos dá casa? gência de condoer-sa da sorte da familia
Vozes partidas do interior gritavam: de Chico Banedicto.
— Oh 1 Vianna, onde está este diabo ? Mais apressado do que os seus dois
Galgando a janella de um salto, o ten- companheiros de compuncção, andou Ma-
OU A PENA DE MORTE

descobriria sem grande trabalho quão in-


nuel João na conquista da sua sensibili-
tensa lavrava a paixão per aquelle es*
dade pela familia de Mariquinhas.
pirlto.
A sua posição de feitor no sitio de Motta
Quando acompanhava o seu amo, e
Coqueiro aplainou-lhe facilmente o cami-
via o parar á porta do velho hospede, fi-
nho da familiaridade, de que elle serviu se
cava de máu humor, principalmente se
para conquistar o coração benevolo da
com a familia vinha Mariquinhas, em
moça.
cujas faces Motta Coqueiro batia branda-
Nunca tinha tentado siquar revelar aos
mente com as pontàs dos dedos, excla-
quinze annos de Mariquinhas o que lhe
mando :
ia de ansiedade pelo seu coração, quasi
sem esperanças. — Está já moça, e peior do que isso,
Acreditava mesmo que seria uma lou- bonita.
cura, elle, pobre feitor dô ro?a, e de- A jovialidade do amo, e o acolhimento
mais disso homem de.côr, ir afrontar os grato que lhe fizia Mariquinhas, inci-
escrupulos da familia, quanrlo Mariqui- neravam todos os sonhos de felicidade
nhas era tão bonita que fácil lhe era esco- do feitor : tinha então diante de si um
lher um marido entre os robustos moços supposto rival, tanto mais digno de odio
trabalhadores dos arredores. quanto era mais poderoso.
Limitava-se a obsequiar generosa» ente, Em troca d'essas injustiças sem eco, a
e facilitar a Francisco Benedicto os meios bella Mariquinhas esmerava-se em pa-
ao seu alcance para melhorar as condi- tentear a sua sympathia pelo ciumento.
ções de vila no sitio. Era ella quem lhe tivzia a chicara de
Encostado ao seu rebmque, elle nem café, nas noites em que elle vinha con-
dava attenção ao serviço; perdera mesmo veivar-lhe o pai, e dispensava o do tra-
as asperesas do seu ofíhio e deixava que balho de fuzilar fogo ao isqueiro, apre-
os escravos trabalhassem quanto lhes sentando lhe um cavaco esbrazeado.
aprazia. Nos dias de brincadeira, s<5 estava ver-
Estes, sorprehendenio as distracções e dadeiramente alegre quando o tinha por
a tristeza do feitor, segredavam se no p a r ; ao contrario mostrava se aborre-
eito :
cida.
— Seu Manuel está com mandinga; Mas a própria bondade de Mariquinhas
é cousa feita psla genta do sggregado. era um incentivo á prevenção do seu
Aos domingos, Manuel João, pondo a
amante. Aferia o p e r i g o , que julgava-a
tiracollo o polvarinho e chumbeiro, pe-
correndo, pela sua própria bondade, e nas
gava da espingarda e lá se ia mat o den-
horas em que, no silencio de sua morada,
tro, precedido pelo farejar de alguns cães
revolvia os seus anhelos e as suas duvi-
de caça.
das, exclamava com voz colérica:
Quanio voltava, trazendo grandes en
fiadas, nas quaes misturavam-se a escura — Ella ó um anjo e aquelle demonio
côr hydragyrada das azas das juritys, aos pôde perdei a.
tons escarlates dos peitos dos tucanos; Ha uma força mysteriosa e fatal, que
Manoel Juão parava sempre á p ^ r t a dos insensivelmente attrahe e combina os es-
fundos da casa de Mariquinhas e, depois forços humanos : 6 a affinilade dos sen-
de uma conversa, presenteava-a com a timentos e das opiniões.
sua ca?ada. Contra ella não são resistencia sé.ia
Os prementes continuos eram o único nem os isolamentos systematicos, nem os
palpavel indicio da affeição do moço temores profundos, nem as virtudes im-
feitor, mas uma observação mais detiia maculadas; u m h o r a soará em que,rum-
a
24 MOTTA COQUEIRO

insistência de Sebastião e Vianna, e disse


do em terra as barreiras, ella se imporá
aos que partiam:
invencivelmente.
— Vão, vão; estes demonios não me
Foi por essa força que as affeições ti-
deixam agora, e o melhor ê ficar um
moratas dos tres secretos amantes das
pouco por aqui.
filhas de Francisco Benedicto expan i-
Estavam só- . Sebastião Pereira, depois
ram-se um dia em plena luz, e formaram
de accender o cigarro, convidou os deis
um sombrio triumvirato entre o violeiro,
companheiros para debaixo de uma man-
o feitor e o tendeiro.
gueira, e começou a fallar.
Era domingo de tarde, e tres a quatro — Vocês me conhecem è eu lhes co-
mezes já eram decorridos depois da brin- nheço. Aqui o Vianna está pelo beiço com
cadeira de Santo Antonio. a Antonica e o mestre Manuel João ar-
Em cumprimento ao dever que se havia rasta a aza á Mariquinhas.
imposto, Sebastião Pereira dirigia-se á — Não senhor, respondeu de chofre o
casa de Chiquinha, mas quiz primeiro feitor, é menos verdade.
chegar á venda do Vianna. — Deixemos-nos de partes, seu Manuel
Esta visita tinha por fim premunir-se João, os outros não são cegos.
de contentamento e distracção para o Manuel João não replicou, e o violeiro
velho Francisco Benedicto, que não bus- continuou.
cava resistir ao sabor do vinho e da — Eu cá, se a Chiquinha não fôr mi-
aguardente. nha, não ha de ser de mais ninguém por
Pouco depois da chegada de Sebastião, mais pintado que seja.
parava no porto uma canôa, e d'ella des- Ao dizer estas palavras, a sua mão es-
embarcavam Manuel João, o irmão de tava posta sobre a cintura e logo uma
Chiquinha e um preto. granie faca polida luzia fóra da bainha,
— Olé, exclamou Sebastião ao ver Ma- e Sebastião exclamava, brandindo a faca.
nuel Juão, você agora aqai é ouro sobre — Varo seja Deus, seja o diabo.
azul. — Voeê3 não ignoram que o malvado do
— Então vá já dizendo quem morreu capitão tem maus fins com aquella gente;
por cá. vamos, pois, acabar com isso. Se vocês
O violeiro abaixando a voz, e aprovei- ajudarem-me, elle não leva o bcccado á
tando se da distancia em que estavam os bocca; ou eu não sou eu.
companheiros do feitor, segredou-lhe.
— E o que havemos de fazer ? pergun-
— E' cousa só entre nÓ3 tres.
— Está entendido. tou Vianna.
Manuel João interrompeu logo a con- — Escutem: o Chico já ha de ter perce-
versação de Vianna com o Juca Benedicto, bido que nós gostamos das filhas ; vamos
exclamando: lá hoje eu peço a Chiquinha e vocês, se
— Aviem-se, rapazes; faz-se tarde e é houver vasa, faliam logo a elle de estucha.
melhor ir de dia do que de noite. Vocês — Mas nós não nos podemos casar ji,
têm de remar rio acima. resmungaram Manuel João e Vianna.
Uma piscadella de olho poz de sobre- — E qu«m fei que disse que vocês casas-
aviso o Vianna, que tratou de despachar sem? DUer não ó fazer. Eu também agera
com presteza os freguezes. não tenho geito; mas é um modo de atra-
Um quarto de hora depois estes despe- palhar o capitão. Cada um pucha a brasa
diam-se levando uma encommenda do para sua sardinha.
violeiro, e o Manuel João, que simulara — Assim vá lá, disse Vianna.
querer ir com elles, fingiu que cedia á — Pois, eu assim não quero : não hei de
OU A PENA DE MORTE 25

enganar a moça; tudo menos isso, inter- — Homem, eu sei lá, isto é com vocês
vrfiu energicamente o feitor. creançss. A rapariga pode não se arramar
— Assim mesmo pedaço dê tolo, não e quem fica mal sou eu, e . . . no fim de
queiras; o Manuel Joãí temboabocca, seu contas, seu Sebastião, eu estou aqui de
Vianna ; os outros comem a carne e eile fresco, e sem fazer escândalo, perdoe que
lhe diga, eu não conheço bem você.
róa os ossos.
— Por Nossa Senhora das Dores, vocês — Pois tire indagações, seu Chico; olhe
estão zombando. Eu arranco a lingua não lhe hão de dizer que eu seu desor-
áquelle cachorro, se elle se atrever ; vá deiro, nem ladrão, nem que tenha feito
elle para as profundas do inferno. Eaco- mortes,
ro-o no caminho e manio-o d'e ta para — Eu lhe digo já, seu Sebastião, pelo
a melhor. E sabe o que msis, o que você q t e você me parece, está feito, mas sem-
quizer que eu faça & só dizer. pre quero ouvir o que me diz o . . . uma
— Está dito ; está fechado; a ofensa pessoa.
de um é a offensa de todos : juremos 1 Aquelle uma pessoa proferido pelo
— Juramos! velho causou um estremecimento nos tres;
Ao a n o i t e c e r estavam os tres na casa Manuel João principalmente quasi per-
de Francisco Benedicto, que já dava fre- deu os sentidos.
quentes risa ias, graças á chegada do seu O valho, porém, ora coçando a cabeça,
filho, e de umas garrafas que elle trou- ora esfregando as mãos desfez a meio a
xera á@ parte do Sebastião. impressão desagradavel, murmurando:
Os visitantes foram recebidos somente — Com que seu Sebastião quer que a
pelo velho e sua mulher, porque as me- gente coma doce breve ?
ninas, desde manhã estavam na ca«a do — Sim, senhor, seu Chico, se não tiver
compadre. contra mim alguma receita de gente do
Depois das primeiras ccnversae, Sebas- bocca amargosa.
tião Pereira disse ao velho que vinha a — Qual, não ha d« ser tanto assim.
uma cousa de interesse acerca da qual Um aceno de Sebastião levou o Vianna
queria fallar-lhe, sendo ouvido sómente da venda a tartamudear para o Chico Be-
pelos dous am ? gos. nedicta:
— Pois venha de lá e3te golle; disse o —E que diria vosmecê, seu Chico, se eu
velho que tinha nas mãos uma caneca; viesse nas aguas de Sebastião ?
molhe se a palavra primeiro. — Sem escandalo, respondeu o velho
Sebastião começou por fazer ver que com uma longa risada; dizia que a vista
tinha o seu pedacinho de terra, que era faz fé.
bom falquejador, remador e trabalhador — Muito obrigado, seu Chico, eu ó com
de enxada. Nunca tinha passado misérias sá An tónica, se vosmecê fizer gosto.
e ao contrario quando mettia a mão no — Olé, quer ver que vocês todos tres
bolso tinha sempre o seu vintém. Se não querem me depennar a casa ?
era rico, também não lhe faltdva a graça E poz-se a rir muito, sendo imitado
de Deus, e a moça que se cssasse com elle pelos tres, e em seguida levantou-se,
não ficaria de máu partido. encheu a caneca e apresentou-a aos
— Ora, eu teaho amisade á sâ Chiqui- triumviros rústicos.
nha, filha de vosmecê e fazia go&to em — Vá este coãorio á boa harmonia.
casar com ella, se vosmecê quizesse. Eu nada decido; mas vá á saúde.
O velho, depois de arregalar muito os Na sala immediata ouviram-se n'este
olhos, e coçar a cabeça, respondeu vaga- instanie risadas, cochichos, e o ruf-ruf
rosamente:
de saias engommadas.
26 MOTTA COQUEIRO

— Oh! meninas venham fallar aqui, de caballos e barbis grisalhas, esbatidas


exclamou o velho. em faces magras, porém coralas, uma
Ao mesmo tempo entraram na sala Ma- aVlas mareada por um signal roxeado e
riquinhas e Antonica, emqujnto o velho longo. Por debiixo das sobrdiicalhas sa-
murmurava com bonhomia: lientes as palpebras meio carradas eoavam-
— Aí?clem lá, suas matreiras, velha- Ihe um olhar penetrantemente bom e por
quetes de uma figa; aonde está a que entre os bigodes grisalhos riam-lhe os
falta, fugiu ? labics finos um sorriso despretenciosa-
— Não senhor, respon leram as moças mente austero.
ao mes mo tempo que lhe beijavam a mão ; Voltando-se depois para as irmãs, entre
vem ahi com seu capitão I risonha e seria, disse-lhes Chiquinha :
Um pigarro impertinente começou a — Vocês fizeram da bôa; vieram e
impacientar Sebastião Pereira, e este in- deixaram ncis srsiahos.
clinou se na janella para escarrar," porém — Moleque, chamou Motta Coqueiro,
logo voltando-se para dentro, disse: entrega as limas das moças e leva as ou-
— Mas eu não os vejo por aqui. tras para casa.
—• E1 que nós fomos á roça, respondeu E continuou logo sorrinJo :
Mariq rilhas; elles ficaram mais atra- — Está entregue; agora vou cantar
zados colhendo limas, e cós com a familia n'outra freguezia. Bôa noite, meus se-
de seu capitão viemos andando. Mas elles nhores.
já devem estar ahi pela baixada. Sahiu-riscnho e apparentemente satis-
— Q lai o que, quando vierem, vieram, feito, mas quan 'o estava um pouco dis-
respondeu o velho. Está em muito boas tante da casa; repetia em voz baixa :
mãos. aquelle ompadre Eã? tem um pingo de
. =*Lá isso é, accrescentou Sebastião in- juízo.
teiramente despeitado e olhando para os Logo que se acharam sós, exclamou
seus companheiros. Chico Benedicto para &s filhas :
— Aquôlle compadre é um folgazão, riu — Então o que andam • vosmecês f*
ove'lio, que f zia uma libação á caneca; zenio, qu3 me vem h' je dois pe sidos de
brinca com essas raparigas como se fos- casamento sqai; isto é modo, meninas ?
sem todos crianças. As moças naJa disseram, e o velhopro-
— E é bem de vêr, rosnou Sebastião. seguiu :
— E-<á v ndo, Mariquinhas, aquelle — A velhaca da Chi fuinha,quem diria
malvado tem dor de canellas; resmun? que gosta do Sebastião, e a sonsinha d*
goa ÁDtonica. Antoni:a do seu Vianna? 1 Sua alma, sua
— Deus esteja n'esta casa, exclamou palma Fico ainda com a Mariquinhas e as
fôra a vez grossa de Motta Coqueiro ; li- tres pequenas.
cença para d.is. — Mas falta ainda a receita, seu Chico,
Cniquinha entrou apre;sada e foi beijar resmoneou S bastião.
a mão pfctarnt eem seguidacomprimentar — Não f-ilta nada, gargalhou o velho
os hospedes. que tinha esvasiado mais uma canecà.
Estes de pé responleram á saudação da Sabem que mais? conversam p'ra ahi
moça e a da Motta Coquoiro que, parado com a mulher e átfxatn-mí ir a um ne-
ao limiar, todo vestido de branco, arrima- gocio.
do com a mão esquerda a um polido man- Oj tres acompanharam o valho até a
guá, e tend J na direita o chapéu do Chile, porta 0 ahi permaneceram por algum
deixava ver o seu alto porta e a cabeça ao tempo.
masnn tempo sympatica e severa, ornada Emquanto a boa da velha entrou para
OU Â PENA DE MORTE 27

trazer o Cífé aos hospeles, os tres aeer- — E \ . . quem ouve agora o capêta!
ciram-se das moças e cada um começou a Debruçadcs na janella,conversavam Se-
conversar com a sua predilecta. bastião e Chiquinha. O violeiro esforça va-
Manuel João, com a voz tremula, dizia te por convencer a moça de que devia
para Mariquinhas, que empallidecêra ceder a um pedi lo que lhe fazia.
desde que ouviu ao pai dizer o motivo da Tinha cousas que dizer-lhe mas não
visita de Sebastião, e Vianna: queria qus u ouvissem.
—_Só sá Mariquinhas é qua ainda não — O' Chiquiaha, dizia élle; que diabo de
tem noivo. me lo é este ? eu não s u bicho; e já
— Eu não posso obrigar ninguém a peiivociê.
querer cisar comigo, e eu mesma não — Não é por isso; é qu3 papai pôde
quero. ficar zanga lo; você bem sabe o génio
— Talvez, sá Mariquinhas, hsja quem dVlle, em scismando e&tá tudo perdido.
- queira e não possa. — Mas elle está lá com o compadre e
Boas; quam quer pode sempre. sóaca-o toda a noite. Você diz que vai
— E se fosse um pobre f íito sem eira dormir e sai pelos fundos da c;&a: eu
nem beira. estou no cajueiro da baixxda.
— Eu também não sou princeza, e, tra- — Veremos...
balhando nói dois, haviamos de viver. — Eu espero.
— E se seu pai não quizesse ; se ficasse A velha consorte de Francisco Bsne-
zangado com vosmecê ? dicto entrou trazendo duas chicaras de
— Paciência; mas eu queria sempre. café, ao passo que Mariquinhas sahia da
Esta ingénua revelação do amor puro sala e para logo voltava com uma outra
da Mariquinhas, quasi enlouqueceu o des chici.ra,que offereceu a Manuel João.
venturado feitor; sorria emquanto que as — Meu pai foi cavalleiro, disse Sebas-
lagrimas lhe escorregavam pelas f*ces. tião ; eu já me fazia na picada e assim
Por sua vez Mariquinhas tinha os olhos aproveito.
pregados no chão e com as pontas do in- — Tão cedo?...
dicador e pollegar beliscava o vestido so- — Nem todo o dia é dia santo, e ama-
bre os joelhos. nha tenho serviço.
Não havia duvida, o fdtor era amado, Sebastião despe iiu-se e após meia hora
e isto era para elle a maior de todas as de palestra os outros retiraram-se tambam.
venturas. Lisongeado com o pedido feito pelo
— Ficou zangada comigo, pelo que eu violeiro e pelo tendeiro, dupl<4 f^ce da
z, sá Antonica ? murmurava Vianna. independencia sonhada para as filhas no
— Eu o que não quero depois ê estra- rendimento de uma ven iola e na posse de
la la ; vocês voltam a cabeça da gente e um sitio, Francisco Banedicto quiz logo
depois... passe muito b m, porque os po- saber o acolhi mento que este facto me-
bres não regulam. recia do seu compadre Motta Coqueiro,
j - Não diga isto, sá Antonica ; o diabo que melhor conhecia os pretandentes.
não é tão feio como se pinta. Ojvèlho firmara-se no proposito de nada
— Não digo, não : está lembrado do resolver, senão de accordo com o seu bem-
que me disse na brincadeira de Santo feitor, fosse embora prejudica lo, fosse
Antonio ? Case e depois com ce com mau grado seu, obrigado a dar de mão á
historias. risonha perspectiva de felicidade, que lhe ^
— N'aquella noite eu estava meio tonto, dominava o cerebro aguardentado.
minha negra ; aguas passadas não moem — E' minha obrigação, dizia elle; am-
moinho. parou-me e tem sido meu amigo apezar
28
MOTTA COQUEIRO

das más línguas; não houve cão nem gato esses dois últimos lhe fizeram e concluiur
que não me mettesse o dente, e elle fez a — Eu e<tou velho, não tenho nada de
todos ouvidos di mercador. Hoje, nas meu, não disse que sim, nem que não;;
horas de Deus, tenho onde metter a ca- fiquei assim ; vosmecês o que acham?
beça, e com os diabos, se eu não ouvir o O embaraço interceptou por algum tem-
compadre não devo ouvir mais ninguém. po a resposta; mas afinal a senhora de Co-
Taes eram as disposições do velho ag- queiro rompeu o silencio para expender
gregado ao dar o clássico—oh! de ca?a— uma evasiva:
á portada sala d e j m U r da casa grande. — Eu não posso dizer nada, meu com-
O bom humor de Motta Coqueiro, e os padre, o senhor sabe que não moramos
modos prasenteiros de sua esposa, rece- aqui; eu estou sempre na cidade, e, quando
beram alegremente a visita em meio da venho para o sitio, nã > saio de casa; por-
familia reuni'a em torno da mesa de tanto nada posso dizer.
jantar. — Sá comadre tem razão de não que-
Vieram primeiro a narrativa do passeio rer fallar; respondeu o velho, mas seu
e os elogios á prosperidade das roças do compadre pôde me dar um parecer.
aggregado, tudo isso meio exagerado — O melhor ó você fazer o que enten-
pela amisade que a dona da casa deli- der, comp idre, respondeu o interpellado.
cava ás meninas do seu hospede, que lhe — Não senhor, eu preciso de saber do
respondia a gra lecido: parecer de seu compadre. Sou novato
— A gente vai fazendo o que póde L sá aqui; debaixo de Deus só devo a seu com-
comadre; somos só dois a trabalhar : eu paire a casa em que estou morando e as
que já não presto para nada e o Juca, terras em que trabalho. Quem dá o pão, -
que ainda não se póle dizer que é um dá o castigo; quem me avisa meu amigo é.
homem. Na plantação e na colheita é que — Ouça bem, compadre, o que eu lhe
as raparigas e a minha velha ajudam. vou dizer: nem o Vianna, nem o Sebas-
Mas vai-se vivendo, conforme Deus é tião querem casar com as meninas. Eu
servido. n&o pretendia dizer palavra, porque não ^
Uma creoula pousou na mesa, em gosto de envolver-me n'estas coisas ; mas
frente a Fraacisco Benedicto, uma chicara emfiaa, não quero que você tenha razoes
de café. 0 velho despejou o café no pires, de queixa, quando se arrepender. Eunoseu
e ao leval-o á bocca, demorou um pouco cato o que faria era dizer-lhesque não me
o braço no ar, dizendo para Coqueiro: viessem em casa, e se as meninas teimas-
— Eu queria que seu campadre e sá sem em querel-os para maridos, só lhes
comadre me dessem uma palavra á parte. abriria a porta no dia do casamento.
— As mulheres não podem ser padres, — Ora vejam só que biscas aquellas,
meu compadre, e não sabem também disse o velho sacudindo a cabeça ; e me
guardar segredo. prosaram com uma venda, com um
— Mas não todas, sá comadre ; a mi- sitio...
nha velha ó das taes, que o que se lhe — E' verdade que o Vianna tem uma
diz é ccmo j«gar n'um poço. venda, mas vive com uma mulher e pa-
— Vamos ao caso,compadre; disse Motta rece até que é casado com ella. O Sebas-
Coqueiro, que se havia levantado e tom iva tião tem umas terras, mas não as cultiva
o corredor que comn.unicava a sala de e não gosta de trabalhar. A vida d'elles
jantar com a de visitas. é fados e namoros. Eis o que tenho a
Chegados ahi e sentados, o velho referiu dizer; o compadre é livre, faça ú que
miu lamente a visita de Mam ei João, Vi- entender,
anna e Sebastião Pereira, o pedido que — O diabo é que eu vejo a cabeça das
OU A PENA DE MORTE 29

raparigas meio viradas para elles, . u r a Emquanto esta scena se passava na sala
inferno; não ha nada peior do que ser da casa grande, tfn lo por únicas teste-
munhas algumas cadeiras vasias, e uns
pobre.
apparadores de jacarandá, lá fóra, no
A ultima consideração do velho de-
campo do sitio outra se desdobrava ao
nunciava uma quebra do proposito com
luar, no silencio e no ermo.
q u e e n t r a r a na casa d e Coqueiro : a
imagem do sitio e da venda suffocava-lhe O triumvirato de amantes dissolvera se
a r e f l e x ã o . Além d"isso tinha esvasiado por aquòlla noite, mas um Vtlles apenas,
alguns canecos de aguardente, e o arras- o Vianna, reti -ara se immediatamente
tado da lingua e o cuspinhar conti auo para a sua morada.
d e n u n c i a v a m umà anormalidade nas fcuas Os cutros podiam ser encontrados nas
faculdades. circumvizinbanças da casa do velho ag-
Motta Coqueiro, como se se tivesse arre- gregado,
pendido, mostrava-se contrariado, e mais Sebastião Pereira, conforme tratara com
ainda do que elle a sua esposa, que apro- Chiquinha, foi esperai a na baixada. Era
veitou, para retirar-se, o ensejo que deu-lhe um logar apropriado para uma entrevistf;
a longa pausa succedida ás ultimas pala- os amantes alli ficavam pela jropria na-
vras de Francisco Beneiicto. turesa recatados aos olhares curiosos.
Logo qua a senhora retirou-se, Motta Uma grande entrada quasi circular, co-
Coqueiro reatou a conversa a respeito dos bsrta de grama, levantava se do sopé ao
espon?aes das filhas do seu compadre, cimo da collina. D \ h i um enorme cajuei-
porém, procurando desvial-a e flxai-a em ro vergava todos os seus galhos sobre a
outro ponto, e tanto msis decididamente entrada, cobrindo-a com uma especie de
quanto mais o valho mostrava-se propenso cupulã. Um banco de pau ornava o silen-
a não attenier o seu conselho. cioso e pouco frequentado recinto.
— E sem que se dê por isso, compadre, Daixando a casa do velho,Sebastião Pe-
vai quasi para dois annos que voceestá reira tomou cautelosamente o caminho
aqui comnosco. que conduzia á baixada e deitou-se no
— E' verdade, meu compadre, e em tão bmco, cobrindo o roíto com o chapéu. A
boa hora o diga, ainda não tenho uma sua immobilidade, o nenhum ruido da sua
queixa de nenhum dos donos da casa. respiração repreza faria crer a qualquer
Muito obrigado. O que você devia, sertanejo, que alli entrasse, não serem
compadre, era cuidar de fazer a sua casa. mentirosos os contos de alaaas penadas
A em que você mora, está velha, e muito e phantãsmas de que lhe fallavam desde
longe do seu trabalho. a infanda.
— E' verdade, meu compadre, mas as Aos segundos súocederam os minutes,
plantações, têm-me atrapalhado. Agora e a estes os quartos de hora, tardos como
se essss dois rapazes quizerem sgudar-me, afiguiMm-sea quem espsra. Nenhum gesto
eu, o Juca e elles sempre somos quatro e de sofregui ão foi, entretanto, feito pelo
a cousa vai depressa. violeiro; nem ao menos puchou pelo
Não havia duvida; Francisco Benclicto isqueiro e o cigarro, inseparáveis compa-
já fallava dos seus genros, os dois rapa- nheiros dos homens do sertão. Continha-o
zes, e contava com elles. a paciência do mal, inalteravel nos seus
— Pois faz muito bem: aproveite os planos.
para alguma coisa, disse MotU Ccqueiro, Passada maia hora, um leve ruido de
levantando-se. saias engommadas, produziu em Sebas-
O velho comprehendeu que eram horas tião o effeiío de um choque eléctrico;
de retira r-se. poz-se em pé de um salto e conchegando
30 MOTTA COQUEIRO

o chapéu á cabeça, guindou se como um as maiores familiáiidade3. Todavia es-


tranharam que Sábaitião tivesse deixado
gato, pela face do escondrijo.
de coGVfrsar em^asa, e lecommeadaram
Quando já as mãos do viol-iro tocavam
á irmã q-íe voltasse logo.
o cimo da collina, a voz de Chiquinha,
tremula e fraca disse de manso : As observações de Chiquinha não pro-
— Não está aqui, meu Dsu*, não está. duziram nenhum effeito sobre Sebastião:
— Psit : sibillou Sebastião ; e continuou elle continuava a segural-a e a puxal-a
com voz gutural : espera 1 para si. Forcejando contra elle, e tentando
A moça sem dizer palavra caminhou f e m o b aço, que tinha livre, abrir o cir-
para debaixo da copa do cajueiro. culo que lhe fizera a mão do amante em
Quem a visse ahi parada, ao passo que volta do pulso, choramig-.va tristemente.
ainda de dentro do escondrijo ló haviam — Não vou, não vou I
sahido os braços e a cabeça de Sebastião, Segurando-a pelos dois pulsos, Sebas-
que tinha o resto do corpo pendurado, jul- tião trouxe-a violentamente para junto
garia ver a presa magnetisáda e immovel de si, e depois impslliu-a de chofre. -
diante da serpente enorme, que lhe vai A moça cahiu sentada n a T d v a acom-
dar o bote. panhada na queda por uma injuria.
O violeiro conseguira sahir ; e cami- — Pode ir, pòie ir, minha sapeca ; eu
nhanio apressado para Chiquinha, pren- já sei de tudo. Ainda ha de estar cansads;
deu nos braços e beijou a face da moça que tem medo que eu lhe faça o mesmo que
o repellia, dizendo quasi a chorar. o santinho do capitão.
—- Me deixe, me deixe ; não foi para A moça levara a mão aos clhos, e so-
isso que eu vim cá. luçando deixara se ficar sentada.
—• Fallou certo, sá dona ; eu e que não — Pó le ir, continuou o desapiedado;
lhe devia tratar bem.
elle pôde sentir falta e vir proçural-a,
— Porque ; eu lhe fiz mal ?
eu sou quem já se vai.
— Escute só ! — disse o brutal amante
segurando e puchando pelo braço a ame- E foi se pendurando novamente na
drontada Chiquinha. borda do escondrijo, e deixando-se escor-
— Onde é que você quer que eu vá, seu regar pela grama.
Sebastião ? falle aqui mesmo. Como se fosse victimade uma allucina-
— Não quero ; podem ver-nos de lá ; ção inopinada, a atemorisada Chiquinha
vamos para a baixada. deitou a correr pela encosta em direcção
— Não quero ir ; manai pdde me pro- ao escondrijo, e ahi, soluçando, lançou-se-
curar ; papai pode chegar ; as outras pe- nos braços do violeiro. Affluiam-lhe as
dem dizer; não quero; não posso demo- desculpas. _
rar-me ; me deixe. — E' mentira; ê mentira; eu nao. O
De feit a, a leviana rapariga, psra acce- moleque Carlosbem viu, nem seu capitão
der ao convite de Sebastião, que desvai- disse nada. Que falsidade, meu Deus I
rou-a com os seus versos de desafiio e os — Pois então, porque você me fez ficar
repinicados da viola, tinha dito á sua mãi zangado ? Olha que eu sou capaz de esfa-
que se ia deitar por estar muito cançada, quear um diabo por sua causa; seja seu
e não podendo illudir ás suas irmãs, que pai, seja quem for. Qaequer? eu estimo
foram comsigo para o quarto, dissera-lhes tanto você; raios me partam se assim não
que ia fdra um instantinho fallar com ê; parece feitiço.
o noivo. Entontecida pela revelação calorosa da
Nada objectaram estas, cuja educação paixão do seu amante, e ao mesmo tempo
não se oppuaha a que os noivos tivessem traspassada de susto, Chiquinha não dós-
OU A PENA DE MORTE 31

viava a face dos lábios, cem tentava samente a, das nymphéas que se nutrem
f u g i r dos braços de Sebastião. ,
das aguas pútridas dos brejos.
A sua vez fraca, coma se tentasse não Contrastado pela suspeita, o feitor via
serouviia pela própria moça, murmu- no lhano entregar-se de Mariquinha:-, não
r a v a machinalmente desculpas para acom-
uma prova da bondade d'aqutlle coração
modar o amante, era quanto este, dando ingénuo, mas a cilada indecorosa da n u-
azas á seducção, inundava-a de phrases lher .decahida., que planeja, a rehàbilita-
namoradas. ção na profusão dos &ffagos.
A esta sobrexcítação, saguiu-se um pro- Os..-preconceitos haviam o por varias
fundo silencio"; depois sahiram silencio- vezés esmagado, porque p-rtencia á raça
sos e caminharam para o casarão, em mixta, á raça a que traçam raias ao co-
cuja porta trocaram-se adeuses em voz ração e aos aífectos..
sumida» Mariquinhas devia partilhar a opinião
geral e, portanto, a sua acquiescencia ao
«
III amor, que lhe votara, devia ter um movei
òu muito generoso ou miseravelmente
CADA UM E M S E U POSTO
baixo.
A primeira ponta do dilemma não feria
O suspeitoso Manuel Jcão concebeu a
a imaginação tresvairada de Manuel Jcão;
respeito da demora da Chiquinha e do ca-
•malferia-o, porém, a segurda.
pitão na colheita das limas a mesma idéa,
— E' bonita de mais para um hemem
que atravessou a lúbrica imaginação do
de côr, dizia elle; e fisava a scismar.
violeiro e occasionou a entrevista na
Um observador perspicaz, ao ouvir
baixada.
estas palavras, comprehénderiairnmedia-
Era seu dever tirar a limpo a verlade;
tamentô que na memoria de Manuel João
impunha lh'o o juramento que, havia
desenhava-se na suavidade do seu amo-
poucas horas, empenhara ^ u m pacto de
renado a pedir uma piixão selvagem,
solidariedade inquebrantável, s, tanto
indómita, a imagem de Mariquinhas.
como o juramento, o proprio conceito que
Parava como em extasis, deixanlo ade-
levedava-lhe a paixão no mais azedo
vinhar que no seu espirito coava-se o
ciúme.
olhar m a c i o da moça, filtrado atrávez de
A desconfiança, esse feio ouriço que se
uns cilios negros, seiosos; olhar de pouco
nos revolve interiormente, espetando-nos
brilho, despretencioso, animador — uma
nas suas myriadas de espinhos a alegria,
gotta de oleo contendo um raio de luz, a
a boa fé, a bsnevdencia e a tranquili-
derramar-se eminundação diaphana sebre
dade, sangrava-o no mais intimo, no mais
um rosto oval, de linhas harmon;ces,
sagrado do seu affecto.
transparecendo singeleza e sinceridade.
Na conspiração horripilante, mas sem
éco, celere nos movimentos devastadofèp, Mariquinhas era realmente bella; ar-
mas" silenciosos, o hediondo monstro mo- queavam se lhe sob as narinas finas os
ral, com as secreções purulentas como o lábios semelhantes as azas do tigé no san-
vomito do phtisico, manchava qua&to o guineo colorido, e orlavam-lhe a testa pe<
amor podia phantasiar mais estreme, e a quena bastos cabellos negros, descendo em
dedicação requintar mais esplendido. ondas lustrosas a envolver-lhe dois terços
Onde estava um brocado superpunha da estatura mediana. Seu collo igualava
um andrajo; onde clareava um phanal a curva de um arco toam talhado, da que
urdia uma emboscada, onde brilhava um partissem a pequena distancia as extre-
raio de luar estendia um bulcão ; e, em midades ponteagudas de duas settas.
vendo vicejar uma flôr, lembrava cavilo- Quanálo nas. horas de trabalho ella
32 MOTTA COQUEIRO

vantando a cabeça e dando uma fôrte pu-


com as mãos aristocratieas conchegava
nhada, exclamar :
ao corpo a saia de chita, esta compressão
— Não pôde ser; aqui anda coisa, por
e a justeza do corpinho faziam lembrar força.
os contornos de uma estatua.
E recahia no silencio e na primitiva po-
O moço feitor fascinara-se decde logo sição.
pela serta&eja encantadora; e agora que Com um taboleirinho, em cuja taboa
o ciúme assolava-lhe as faculdades, elle, viam-se um bule de lata, uma chicara, e
para concluir que havia uma torpeza no um prato com tapiocas; um molecote des-
desapego de Mariquinhas por si própria empenado, de semblante alegre e meneios
e pelos preconceitos sociaes, punha-se francos, assomou na porta do feitor,
em parallelo com ella. gritando:
RefUctia-se no seu despeito sem causa Oh I seu Manuel João, está aqui a ceia.
e via-se bem differente do harmonioso Quando acabou de fallar, já o taboleiri-
; conjuncto da sua amante. nho estava sobre a mesa.
Seu rosto modelado pelo typo indigena Manuel João levantou-se como quem
|tinha a côr do genipapo; seus olhos acorda sobresakado ; mas em vez de
grandes, á flor das palpebras orladas de assentar-se de novo á mesa, caminhou
èobrancelhas negras, lançavam olhares direito á porta, fechou-a á chave, e de-
/ásperos, amplos e incisivos. Por sob o pois veio ccllocar se ao pé do moleque.
/ cheio buço ondeiavam-lhe em horas de — Oh I Carlos, disse elle ; tu queres
ternura uns sorrisos atoleimados, em- ganhar uns cobres ?
bora através de duas linhas de dentes — Se vosmecê me der, eu gosto bem.
claros. As suas mãos eram calosas de mais — Eatão aqui, disse o feitor, que tirara
para ameigarem-se n'uma caricia, e o do bolso do paletot uma nota de dez
seu porte desenvolvido ostentava a mus- tostões.
culatura rija e abundante do homem de
Carlos arregalou os olhos, e, tartamu-
trabalho.
O que tinha, pois, em si que podesse deou sorrindo:
— Qual é a empreitada, seu Manuel
attrahir á mais linda das filhas d'aquelle João ?
sertão ? — Jura primeiro que não contas a nin-
Poiia b9m ser que ella só visse n^lle guém o que vou te perguntar ?
um nome de esposo, para encobrir al- — Por Deus, disse o moleque, cruzando
guma fraqueza dos quinze annos, e a dois dedos e beijando-os.
falta de piedade de um fazendeiro rico. — O amo, a ama, os meninos e as filhas
Seria, porém, baldado esse intento, do Chico Benedicto foram passear hoje
porque saberia sorprehender o ardil, e de t a r d e . . . . .
desmascaral-o. — Sim, senhor, e eu também fui, por
Ruminando sinistras conjecturas chegou signal que apanhei áquellas limas .que
o feitor á sua casa, depois de ter pedido vosmecê v i u . . .
na senzala vizinha um tição, com o qual — E' isto mesmo. O amo ficou com
accendeu o candeeiro. sá Chiquinha e os outros vieram anda»:
Chegou para junto da mesa um mocho do, não é?
e assentou-se, cruzando os braços sobre — E' sim, eu logo vi que havia de dar
os quaes deitou a cabeçi, na borda da na vista.
mesa, e absorveu-se nos seus pensa- — O que ? elles onde ficaram . . '
mentos. — Não houve nada, não senhor; mas
Só se lhe ouvia espaço a espaço, le« é que é feio»
33
OU Â PENA D E MORTE

còmo feitor no sltlõ de Motta Coqueiro,


— Escuta bem, Carlos, não me enga-
intimas relações foram travadas entre
nes ; falia a tua verdade. elles. Separados durante o dia em virtude
— Não houve nada, não ; senhor e sá de suas posições, ella—escrava do eito e
Chiquinha ficaram" sentados na pedra, e elle—feitor, reuniam-seánoite na igualda-
eu trepei na limeira. Se houvesse alguma de do amor, e ceiavam juntos entre risos
cousa eu via tudo, que éu bem que estava e caricias.
assumptando.
Ninguém suspeitava siquer esta al-
— Nem um beijo.
liança: a creoula morava na primeira
— Qaal o que, seu Manuel João; se-
senzala, e para entrar na casa do feitor
nhor já está velho ; e elle não gosta de
bastava dar alguns passos.
sá Chiquinha, não senhor, que ainda agora
eu ouvi lá na mesa elle estar fallan to O moleque que trazia a ceia para Ma-
com a senhora por causa dò Sebastião. nuel João, com o seu grito aporta do
feitor, advertia a creoula de que eram
— Butão elle gosta de alguma ?
horas de reunir-se ao seu amante. Fi-
— E1 de sá Mariquinhas, porque elle
cava então £ espreita e logo que este se
estava dizendo que é a mais socegadade retirava, fazia ella a sua entrada.
todas, e de mais juizo.
Q jando o senhor não estava no sitio
A' revelação do moleque correspondeu
ainda mais fácil tornava-se a reunião.
uma explosão colérica do feitor; estava
A parceira incumbida de apromptar a
fulo de raiva, espumava :
c o m i d a mandava pela amante o taboleiri-
— Pois olhe, elle que se divirta, aquelle
nho da ceia do feitor.
velho sem vergonha ; racho-o de meio a
Na noite em que nos aehamos a rapa-
meio, fȍo-o voar na bocca de um baca-
riga poz-se á espreita do moleque, se-
marte, o traste. Quem o vê ; se ella tem
gundo o habito, e sorprehendida da de-
juiso, ou não, que lhe importa f Não ê
mora, veio pá ante pó encostar o ouvido
filha d'elle...
á porta para ouvir, e de vez em quando
— Mas não é por mal, seu Manuel João,
espiava pela fechadura para vero que se
é porque as outras são faiscas.
passava. .
— E ella 6 a mais tola e por isso elle
vai-se chegando para ella, mas Deus o A principio foi-lhe impossível formar
um sentido com as pouca» palavras soltas,
livre, eu não sou de brincadeira....
que excediam o diapasão do dialogo á meia
— Pôde ser l . . . voz; mas persistindo na sentinella, poude
— Yocê me espie o sujeito, Carlos;
para o fim saber ao ceito do que se
qualquer cousa que você veja, venha ter
tratava.
commigo ; deixa estar que não perde
Contendo o primeiro impeto, a crioula
o tempo.
manteve-se no seu posto até que o mole-
— Deixe por minha conta!
que sahiu. De um pulo, collocou-se ro vão
O moleque diiigiu-se á poita, abriu-a e
sahiu; Manuel João sentou-se á mesa e entre a sua senzala e a casa do feitor,
começou a tomar café. para logo voltar á entrevista de todas as
Carlos havia de estar chegando á casa noites. a . .
grande, quando um outro interlocutor Ao entrar fechou a porta sobre si, e foi
veio substituil-o junto ao feitor. como de costume assentsr-se no mesmo
Era uma créoula de dezeseis para dez- banco ao lado do feitor. Este, porém, re-
esete annos, exhalando sensualidade dos cebeu a friamente, sem levar-lhe á bocca
olhares maliciosos e atravez do crivo da a ohicara para dividir com ella o café que
camisa branca. tomava.
_ Que é isso, o que é que lha f « * W*
Desde que Manuel João empregava-se
3
34 MOTTA COQUEIRO

Carolina! perguntou ternamente ã dissi- pé, de um salto, como se uma occulta força
mulada crioula. o houvesse repeliido.
— Estou doente hoje, respondeu sec- — Não estou zangado, não; exclamou
camente o feitor. contrariado, mas hoje quero estar sozinho
— Se é quebranto, eu sei rezar. Eu As lagrimas seccaram-se nos olhos do
curo-o hoje e de hoje em diante vosmecê Carolina ; e a dignidade da amante er-
traga no pescoço uma figuinha para livrar gueu-se de pé e solemne diante do feitor.
de máu olhado. —- Escute bem, seu Manuel João; eu não
— A doença que eu tenho você não lhe estimo nem por medo nem por ganân-
cura, sorria tristemente o feitor ; é mo- cia. Quero-lhe bem, está ahi tudo. Desde
léstia para outro doutor. que lhe estimei, ninguém se pode gabar de
— Então já não está aqui quem fallou. ter visto õs dentes d'esta negra. Não pense,
Calaram-se ambos; Carolina poz se a não, que eu deixando vosmecê voa andar
beber pela chicara de Manuel João, em por ahi. Pode perguntar ao Jaca Bene-
quanto este pecava sobre a mesa o fumo dicto como é que eu lhe respondo, e não
e ajustava uma palha de milho pai a fazer hei de mu lar, não, ainda que o senhor
o cigarro. passe a feitoria para o pai d'elle.
Emquanto bebia, a creoula fitava de — O que ? o que é que você acabou de
soslaio o seu amante, e o seu collo, negro foliar ?
como as penas do anum, arfava larga e — Digo que nã<> hei de mudar,ainda que
tumidamente. Rompeu por flm o silencio: seu Chico Benedicto fique sendo feitor.
— Sabe do que estou me lembra IGO, — Vccê está mentindo; o amo ainda não
seu Manuel ? se mostrou zangado commigo : não pode
— Sim... despedir--ne assim, sem mais nem menos.
— Da primeira vez que vosmecê fallou — Todo o mundo já sabe que o senhor
commigo no aceiro, quando eu passava vai chamar seu Chico; pergunte, para vêr
com o barril d*agua para a gente. se é mentira.
— E por que lembrou você isso? Dando este golpe certeiro no amante in-
— Vosmecê estava debaixo das bana- fiel, a creoula sahiu victoriosa, apezar das
neiras, tirando fogo do isqueiro; cha- rogativas de Manuel João.
mou me e deu-me de presente um lenço — Anda, dizia ella, lá fdra; vê quem
branco. Quando isto foi, ainda não era vale ma^s, se são as brancas ou as negras.
nascido o caçula de senhor ; e d'ahi para — Feitor! feitor! elle, o pai! excla-
cá vosmecê tratou-me sempre bem; mava de vez em quando Manuel João; não
ficava alegre quanio me via... ha duvida, uma das filhas ê o pago de
A creoula enxugou duas lagrimas que tanta amizade.
lhe desligavam pelas faces, e Manuel Chegando á sua senzala a creoula con-
João, prendendo-a com o braço pela cinta, servou-se algum tempo sentada na grossa
exclamou: esteira do seu leito miserável, sugando de
— Da que é que você está chorando, seu cachimbo negro densas fumaças opa-
Carolina ? ladas.
— Pois não é assim; eu não lhe sujei Um caco de barro vidrado, em cujo fundo
as suas barbas e vosmecê já não faz caso aspesaava-se uma camada de escuro azeite
de mim. de mamona, d'entre a qual partia, para A
Manuel João tinha-se inclinado para Ca- borda do caco, uma torcida de algodão
rolina e os seus lábios quasi roçavam os embebida do oleo e accesa na extremi-
grossos lábios da amante,quando se poz de dade, dava luz ao cubículo.
OU A PENA DE MORTE
35-

Por únicos ornatos via-se ahi uma velha Depois de deedobral-os entre as mãos e
caixa de madeira, uma corda estendida tornal-os a dobrar, a preta veiu coilocar se
n ^ m dos cantos do quarto, na qual diante do quadro da Virgem; e as lagri-
penduravam-se as saias brancas engom- mas até então contiias rolaram lhe em
madas e o vestido de cassa domingueiro. fios para logo estancarem-se.
Pouco aciaia da cabeceira do leito, pen- No rosto de Carolina a expressão pun-
dia da parade um quadro envernizado, gente foi então substituida pela da mais
em cujo fundo o ar-tista desenhou uma sombria raiva. As roupas foram feitas
bella mulher, de semblante sem tristeza, em tiras, calcadas e cuspidas, e a negra
mas tambem-sem sorrisos, na^alma ioef- amante do feitor, depois de assoprar o
fa*el da pureza. Rosto encantador, cuja candieiro, sahiu apressadamente do seu
testa debruavam crespos cabelios ne- domicilio ssm conforto.
gros que lhe desciam até os hombrcs ; o Cosida com a parede das senzalas se-
corpo de perfeição irreprehensivel, ves- guiu até a quinta janellin?»» e, pondo o
tia-o uma túnica amarrotada em pregas queixo sobre o peitoril, chamou com voz
caprichosas, e sotoposta a um manto azul abafada :
salpicado de estrellas. Os pés pequenos — Oh! tia Balbina, oh! tia Balbina;
pousavam sobre uma grande nuvem da faz favor de abrir *
alvura das camélias e amparada por hom- Lá dentro soaram uns estalidos de pa-
bros e cabeças de anjinhos alados. Todo o lhas seccas comprimidas ; .a janellinha
conjuncto emmoldurava-se n'uma ellipse abriu se.
de nuvens brancas, aífastadss por um — Queé que você quer com tia Balbina,
ciarão. quando o gallo não tarda a cantar ?
A religião tinha santificado este quadro, — E' porjnuita precisão, tia Balbina;
consentindo que se escrevesse sob elle: deixe-me entrar.
Nossa Senhora da Conceição. E Carolina, apoiando-se no peitoril da
D ante d^ssa mulher immaculada, Caro- janellinha, pulou por ella para dentro da
lina como que não se atrevia a dar som senzala.
aos seus pensamentos sombrios: eva-
— Que é quê foi; deixa accender o can-
porava-os silente nas baforaias de fumo.
A semelhança dos pantanos que dissi- dieiro. _ . • '
mulam a existencia da lama de suas A luz encheu o quarto, e deixou ver a
bacias, mostrando a superfície azulaia interlocutora de Carolina.
coberta de grandes ilhas íluctuantes, vi- Era uma preta, alta, corpulenta, de
rentes e tocadas de flores; a desditosa olhos máus, injectados de sangue, nariz
recalcava no coração os odios vingadores, grosso e beiços tumidi s.
emquanto que nos olhos merejavam lhe Atava-lhe a cabeça um lenço de chita
as lagrimas, essas tristonhas flôres em vermelha com frisos brancos, e vestia a
que desabrocha ò seffrimento das almas até a cintura uma camisa branca de al-
deliiadss. godão trançado, e d^hi até os tornozellos
De súbito, porém, arrancou d'entre salientes uma saia da mesma fazenda.
dentes o cachimbo, pousou o no chão Era cabinia e chamava-se Balbina.
junto da cama, levanteu sa e abriu a Havia, pouco tempo que se achava no
velha caixa que lhe estava em frente. sitio entre os escravcs de Motta Coqueiro,
De dentro de urá grande escaninho tirou entretanto a sua auctoridade sobrè elles
algumas peças de roupa. Eram umas tou- era maior do que a de seu senhor.
cas de lã, umas camisinhas para recem- Ouviam-a como a um or&caló e as suas
nascidos e alguns pannos de algodãosinho. ordens eram attendidas como se fossem
decretos.
36 MOTTA COQUEIRO

tem segredo, bicho não tem maldade


Affavel nas horas de bom humor, rindo
para Balbina. Filho da você ê de Manuel
umas risadas expansivas, t o d a v i a nenhum
João; mas o pai nãa se importa mais com
dos seus parceiros atrevia-se a reques"
a mãi de seu flllao.
tar-lhe a reluzente frescura da sua pelle
O espanto avassallou a creoula, que se
de trinta e tantos annos.
O a s c e n d e n t e sobre os crédulos e broncos
debulhou em lagrimas.
escravos do sitio foi c o n q u i s t a d o por Bal. — Não chora, não, criança; mundo é
bina pelo dom especial que ella tinha de assim mesmo, Balbina criou o filho dos
conheceras hervasefficazes no curativo de brancos, Balbina foi boa para o menino.
todas as moléstias e ainda mais aquellas Quando o filho dos brancos estava doente,
qué tinham certas virtudes especiaes, Balbina sentia como se fosse filho d'ella.
taes como amansar os senhores, apate- Menino já está grande; os brancos jogam
tar os brancos, e assentar o juiz) dos fô a Balbina; põ9m a escrava de outro
amantes volúveis. dono no meio dos escravos dos brancos.
Diziam que ella tinha nas suas mãos a Lingoa má corta em Balbina,brancos dão
vida e a morte de todos, e para dal-as ouvido ; Balbina é surrada, como negro
bastava apenas um olhar ou um assopro. ladrão. Balbina soffre calada, porque
No eito tinham-a por vezes visto che- maior é Dews. Tem amisade ao filho dos
gar-se junto ás cobras adormecidas, ou brancos, que não é filho de Balbina. Podia
enraivecidas, e enxotai as. Os reptis fita- soprar a, casa grande; mandar a cobra
vam-a, agitavam as linguas e as caudas, coral tirar nos brancos o sangue que cor-
tomavam mesmo a attitude de dar o bote, reu das costas de Balbina, mas não quer;
soffre calada.
mas de chofre acovardavam se e corriam
amedrontadas á voz da negra que lhes — Mas eu não quero seffrer assim, tia
ordenava a retirada immediata. Balbina; não quero dar meu peito ao filho
Alguns timidos denunciaram a tia Bal. de Manuel João, basta que eu veja elle
bina como feiticeira, e Motta Coqueiro, casado com aquella faisca.
depois de descobrir em poder da preta os — BLCO! disse a feiticeira, levantando
instrumentos proprios de tal arte, para um dedo aos lábios. Você está dizendo
prevenir os envenenamentos possiveis, fez peccado. Escuta primeiro a voz do cho-
castigar severamente a cscrava. calho de Balbina.
O castigo germinou no coração de Bal- A feiticeira abriu de novo a janella e es-
bina um odio encanecido, e ella desde preitou para fôra, depois tornou a fechal-a
então só fitava o senhor de travez. cautelosamente. Tirou de um gancho de
Accesa a vala, a feiticeira insistiu na páu pendente do tecto por uma corda,
pergunta: uma cesta de taquara; pegou do candi-
— O que é que você quer com a tia eiro e do braço de Carolina e dirigiu-se
Balbina, quanto o gallo não tarda a para a repartição interior da senzala.
cantar. Collccou o candieiro n'uma especie de
Carolina crmeçou a fallar: prateleira pregada á ombreira da porta
— Vosmecê sabe que eu estou pejada, do interior, e ordenou a Carolina que se
mas não sabe de quem é. conservasse de costas para ella.
Balbina, abaixando a golla da camisa, Voltou então ao logar em que estiveram
deixou ver o seu ctllo carnudo, onde e abriu uma caixa de onde tirou uma
se desenhava grosseiramente um olho trouxa coberta com uma baeta vermelha,
aberto: e tornou para junto da creoula.
— Balbina sabe tudo, exclamou a feiti- Desdobrou então sobre o chSo.abaeta,
ceira ; casa não tem parede, gente não e çspalhou sobre ellas umas figa»
OU A PENA DE MORTE 37

-na rollos de enxofre, uns maços de ca- como seu pai, com seus cabellos cachea-
bellos lanosos, um pequeno boneco de- dos e p»lle de capixaba.
forme de feiçòes gateadas e toscas, e uns Carolina pôz se a soluçar.
— A mãi chora porque tem bom cora-
ossos amarellados. ção, mas tem também máu senhor. Se é
De dentro da cesta tirou um embrulho
pelo feitor não tem que sentir. O Chico,
de arruda secca e um chocalho feito do
pai da que tirou o socego de Carolina, en-
e s p h e r c i i e de um cuité, tendo por cabo
trou na casa dos braaços em tempo de
uma lua nova. A semente que se planta n'esta
haste de taquara.
de ter queimado um galho lua, morre, a madeira que se corta, r&cha
e apodrece. A lua apparece um bocadinho
de arruda, e vendado ccm um lenço os
e entra logo, e tudo-fica escuro.
olhos de Carolina, a preta acocorou-se e
A camaradagem de Chico com a casa
poz-se a tanger o chocalho perto da ore-
grande dura pouco; veiu na lua nova.
lha, dizendo: ^ ,
— O chocalho falia que Caralma ha de As filhas do aggregado gcstam de gente
dar tres patê c as p % r a elle e uma vela para de que o macôta tem queixa, e quando
Nossa Senhora das Djres, cutra para elle souber, briga com o aggregado.
S. Benedicto e outra para S Miguel. — Já sabe, já, tia Balbina, exclamou
— Faço, sim senhori, tia Balbina. Carolina, que tinha ouvido a conversa do
A feiticeira tangeu de novo o chocalho. moleque com o feitor.
— O chocalho esta dizendo que o filho — Melhor para Carolina e para nós todos.
de Carolina tem de s ffrer captiveiro do O mau senhor disse a Fidélis que Manuel
máu senhor. Brancos podem surrar, João não puchava pela gente, e que o
podem vender o filho da sua e s c r a v a , melhor era dar a feitoria ao Chico, d J
e a escrava ha de chore r e tomar ogirisa quem a gente resmunga. Mas a gente nãa
dos brancos. Antes o filho não nasça, se terá tal' f-itor, porque tiles já estão rus-
ha de passar tantos trabalhos; antes vá gando. Fidélis ha de chamar seu senhor
para os anjos no taboleiro com rosas e gira- para mostrar o que o aggregado faz na
rdes. A cobra zangada ou morde a quem roça dos brancos, e o Chico não &erá mais
a zanga, ou morde o seu corpo cfella. A feitor, porque elle e soberbo.
mãi que tem de ficar sem o filho, que ê Balbina viveu na c sa grande de sen pri-
seu sangue, é como a cobra zangada. meiro senhor, e sabe como são os brancos.
— Sim, sim, tia Balbina. O moleque Carlos vai contar aosenhor que
— Escuta ainda, criança, continuou a vem toda a noite gente de fóra pousar na
africana, tangendo sempre o chccalho; casa do Chico, a mucama diz á senhora o
—a coral briga com o lagarto ; a cobra que fazem as filhas, e tudo e&tá acabado
faz rodilha e sacode a lingua de fogo ; o entre o aggregado e o máu senhor.
lagaito pára,estica a cabeça chatae es- Carolina vai primeiro do que os dois»
pera. A cobra dá o bote, o lagarto faz roda juato de seu senhor, dizer que tem um
e chicoteia, e quan io é mordido sabe no fiího do feitor, e Manu l João perde a
matto a herva contra adentada, que mata. feitoria e a filha de Chico volta logo as
Zambi, que está lá em cima, foi quem lhe costas para elle. Carolina conta tombem a
en iaou O remedio. Carolina foi mordida Manuel João que o Chico anda pedindo a
no co<ação, Zambi lhe ensina o remedio. feitoria-, ha briga entre os dojs e Ma-
De manhã, em jejum, o caldo do limão nuel João não volta mais a casa do pai da
corta, a cinza do burralho come. moça de que elle gosta. B atina faz omto-
— Sim, sim, tia Balbina. - Está direito, tia Bal binâ; eu faço tudo.
— Mas é pàlo máu senhor, que morre o Houve uma pausa, a feiticeira levantou-
filho de Carolina, que devia ser bonito
38 MOTTA COQUEIRO

porém, ella tirava o caximbo e pronun-


se e foi queimar outro galho de arruda.
ciava estas palavras agoureiras.
Depois revolveu a ce&ta e tirou de dentro
— Hum, hum, os brancos ? "A negra
ã'ella uns busios e uma bolsa de panno
crecu o menino ; era a mãi preta, e elles
toda cosida e pendente de um cordão preso
não deram nem um canto da casa grande
nas extremidades da bolsa, e collocou-a para ella morar. Tomaram o menino das
no pescoço de Carolina. mãos da negra e metteram n'ellas a en-
Acocorando-se de novo, sscudiu na mão xada. Depois o chicote fez feridas nas
por tres "vezes os busics, atirou os s o b ^ costas da feiticeira, e o menino nern olha
a baeta, e agitou o chocalho ainda uma mais para ella. A ririô machucada morde,
vez. Ergueu se então, e pegando de um a ascr&va desprezada mata,
dos rôlcs de enxofre chegou-o á chamma
do candieiro, enchendo d'esta fôrma 0 O csnto do gallo tão apregoado por
recinto de um cheiro nauseabundo. Balbina fez-se ouvir afinal, e a preta que
Depois lançou novamente os busios, e estremeceu ao ou vil o, deitando se presto,
enrolou abaeta com os instrumentos caba- apagou o candieiro.
lísticos, e desatou a venda dos olhos de Ao passo que nas senzalas das duas
Carolina, dizendo-lhe solemnemente : pretas e na casa do feitor o despeito, o
i ciúme, eoodiocolligavam-se em ameaças
— A cobra, quando vai lavar-se e beber medonhas e planos te^niveis ; na casa
agua no rio, lança o veneno na folha da glande desflzera-se já a passageira con-
herva que está mais psrto. Pôde morder trariedade motivada psla consulta do ve-
agora que não tem veneno para matar. lho aggregado.
Carolina ouviu o segredo do chocalho, Motta Coqueiro substituiu o máu humor
está nas mão* da criança perder tia Bal- pela piedade, e ao voltar á sala de jantar
bina. Como o carreiro bota a canga no para o meio da familia, conversando a
pescoço da junta de boi, o máu senhor respeito dos esponsaes, reflectir á sua
mandará pôr o tronco pesado nos pôs da senhora:
feiticeira. Da madrugada na revista, o — Quem sabe se eu não teria evitado
chicote tirará sangue das costas da má os casamentos se houvesse dado ao com-
escrava, e Carolina ficará querida. padre a feitoria do sitio ?
Mas a cobra, que perdeu o veneno, faz — Qual o que, Sr. Mofcfca, respondeu-
a rodilha junto do brejo; o sapo vem Ihe a senhora, o compadre está tão namo-
pulando e gritando e ella olhando o bicho rado como as filhas pelas cantigas de Se-
pucha-o, pucha-o para a bocca e d'elle bastião, e além disso é necessário não
tira novo veneno. Carolina não pôde dizer esquecer o vicio da bebida.
nada do que ouviu ao chocalho; será seu
— Foi o que impediu-me e hoje se eu
o mal da tia Balbina.
lhe désse tal logar, cs genros mudavam-
Depois de affirmar muitas vezes á feiti- me até o sitio com as casas e tudo.
ceira que guardaria o maior segredo, — Agora é que é aturar o compadre;
a creoula saltou de novo a janella e reti. se elle sem motivo nenhum andava sem-
rouse para a sua senzala, onde, refocilada
pre em grande gala, quanto mais agora
na perspectiva da vingança, adormeceu
que tem razão para estar alegre.
facilmente,
— E' verdade ; ha de ficar insupporta-
O candieiro continuou acceso na sen- vel; o que vale é que eu já lhe disse que
zala de Balbina, e quem espiasse pela tratasse de fazer a sua c&sa,
fresta da janella, e applicas se attenta- — E será bom fíJlar-lhe sempre; não
mente o ouvido vel-a-hia untada, com o deixai o dormir.
caximbo negro á bocc<*. De vez em quando A conversa desviou-se d^ste ponto
OU A PENA D E MORTE 39

sendo substtuida pelo das trivialidade Í À astuta africana prevenia assim quaes»
domesticas, e algumas medidas urgentes* quer suspeitas, que porventura podessem
no entender da senhora. gerar-se no pen amento do feitor,que todo
Uma delias sustentada com mais calor absorvido nos seus projectos de sorpre-
e af rro era a de apressar-se o corte hender os imaginados amores de Coquei-
da madeira. A razão occulta do enthu- ro e uma das filhas de Francisco Bene-
siasmo da senhora na sustentação d'esta dicto, talvez a Mariquinhas, nem siquer
urgência era a sua antipathia pela red- reparára, que a zelosa Carolina já não o
i dencia no sitio, obrigatoria agora peles visitava mais*
interesses píecuniarios da casa, muito res- Durante todosressesdias Manuel João
peitados pela senhora. não se tinha encontrado coxn os seus
— Descance, aíiirmou-lhe Motta Cquei- companheiros e nem podia atinar com a
ro, dentro em quinze dias hei de começar empreza a que tinha ido o violeiro.
a carreiar a madeira, e com certeza den- Também a sua preoccupação espacial
tro em um mez poderemos mudar-nos era vigiar estreitamente os passos do amo
para a ciia ie. e os das filhas de Francisco Benedicto.
— Deus 0 permitta; não pôde haver
Coimo o jacaré, no tempo do choco, vai
logar mais triste no mundo do que este
collocar-se a alguma distancia, e de lá,
sitio; parece um logar amaldiçoado. Por
olhos attentamente fixos, ouvidos solici-
minha vontade, Motta, você desfazia-se
tamente prestados, todos os sentidos, em-
d'estas terras,
fioa, aguçadamente applicadcs, vigia o
— E o resultado era não encontrar fa- ninho dá onde ha de nascer-lhe a prole,
cilmente outras com tão boas madeiras. e ao menor estremecimento, ao menor
— E* o que não falta por ahi. ruido acode prompto como um raio, feroz
Sempre que a conversa sobre tal as- como uma pantherá, decidido a atacar, e
sumpto chegava a este ponto, os esposos a morrer ou a matar; Manuel João, entre-
por uma inspiração do bom-senso passa- gue á conflagração dos zelos" e á guarda
vam a occuparse de outras matérias, da sua amante, seguia os menores e mais
quando não a interrompiam de todo. insignificantes movimentos do seu amo e
Na noite em que nos achamos a oonver- resolvido a punil-o desapiedadamente.
sação teve o seu ponto final no da ultima
phrase da senhora, e a familia, levantan- A's vezes, pelas estreitas picadas da
do-se da mesa, cada um de per si, foi matta virgem passava tranquillamente o
para os seus aposentos. fazenieiro, cortando com o facão de
D'ahi a pouoo o somno fez silenciar matto os galhos inclinados sobre o trilho.
toda a casa, excepto uma saleta onde o Dirigia-se áo logar onde os seus escravos
moleque Carlos, deitado da costas sobre e jornaleiros trabalhavam no falquejar
uma esteira, posto um dos braços sob a da madeira e na derrubada das arvores
cabeça, com a bocca escancarada roncava seculares.
forte e continuadamente. Os seus gestos machinaes, comnauns a
Cinco dins decorreram sem que ^ne- todo o h mem do sertão quando caminha,
nhum successo importante viesse artiou- provavam que elle estava bera longe de
lar-se aos que deixamos narrados. A fei- desconfiar de uma emboscada e prevenir-
ticeira e a creoula pareciam ter esquecido se contra ella.
o plano de oombate traçai o em palavras Entretanto, diversas vezes 6 beira da
cabalísticas. No eito e á noite ao voltar á estrada, ocoulto por d e t r a z dos trançado»
casa não se trocavam senão as saudações de cipós e d*s enrediças de unhas de gato,
usuaes, e isto mesmo friamente. alguém, esconiido, t#spreitav*-o, Era o
40 MOTTA COQUEIRO

feitor, que, de espingarda engatilhada, A narração dos symptomas, feita pela


vacillava em disparar-lhe a arma. geringonça do preto, encheu de espanto
O transeunte desapercebido era -defen- a familia de Coqueiro, e este ordenou ao
dido apenas por um resto de consciência, escravo que montasse a ca vallo pára que o
que ainda sobrevivia límpida na alma soccorro chegasse mais prompto á en-
rebolcada do feitor, e que lhe aconselhava ferma.
verificar primeiro a existencia de causa Passada cerca de uma hora de ancie-
josta para tamanha vingança. dade, entravam na casa grande tres pretos
A fria premeditação do feitor espojava-se e o feitor, dois dos quaes traziam aos
então na hediondez dos instinctos sangui- hombros a rede; os outrcs tinham vindo
nários, como o porco farto no lamaçal do revesando.
chiqueiro, e como nO focinho alongado e Tirou-se de dentro da rede Carolina des-
negro do animal ficam a branquejaras figurada, sôM sentidos, inerte, um quasi
duas longas presas curvas, no rosto do cadaver. O seu rosto tinha perdido o re-
assassino intencional ficavam sempre á luzente brunido da saúde e substituirã o
mostra o despeito e o odio. a feia côr dos pannos pretos mofados. O
Automaticamente o emboscado deixava suor borbulhava lhe inestancaVel por en-
cahir cautelosamente o cão sobre o ou- tre a pelle da testa e das grossas narinas.
vido da espingarda e afastava-se por en- A dona da casa principiou logo a mi-
tre o matto. nistrar os mais sérios cuidados, e os mais
Não era porém um arrependimento o eíficazes remedios caseiros que tinha á
que o decidia; a reincidência provava que mão.
esta resolução era um simples adiamento Andava para lá e para cá; aqui esten-
da sua fixa decisão. dia um synapismo, alli pisava no almofa-
No sabbado da semana a que nos repor- riz umas sementes. Gritava por uma es-
tamos, uma triste contrariedade veio pôr crava para que trouxesse a agua quente
em movimento toda a familia de Motta para o escalda-pés, e a outra que fechasse
Coqueiro. a janella para não entrar o ar. Era uma
Pelas nove horas da manhã appareceu dobadoura.
em casa, arquejando de cansaço e lavado No meio da inopinada tarafa, a boa da
em suor, o preto Fidélis, pedindo á toda senhora não perdera o tino administra-
pressa um lençol para improvisar com tivo de que era dotada ; harmonisou logo
elle uma rêde, e assim conduzir Carolina os cuidados á enferma com cs cuidados
que estava cahida no aceiro a estrebuxar diários da casa.
com um ataque. Dava gritos como o Disse a Manuel João que não voltasse
uivar dos cães â noite, eoseu desejo era para o serviço antes de almoçar, porque
principalmente esganar-se e despedaçar assim poupava-se o trabalho de arrumar
a roupa. Esforçava-se para levantar-se o seu almoço entre o dos pretos.
e em seguida cahiria em cheio no chão, A um dos escravos que vieram, o preto
se dificilmente não a contivessem os Domingos, ordenou que esperasse um
parceiros, que tinham deixado o serviço pouco para levar o cesto do almoço da
para soccorrel-a. Depois de uma serie de gente e despachou os outros para a roça.
movimentos bruscos, a doente ficou im- Graças & tanta habilidade e sangue frio,
movel, inteiriçada como um defunto, mas os trabalhos domésticos retomaram todos
logo crispando lhe o rosto ininterruptas a sua marcha habitual, e logo foi aviado
contracções, começou a prantear como o preto Domingos.
se fôra uma creança, e renovou os phe- Agil e expedito, e ainda mais acossado
nomenos assustadores. pelo appetite, o africano chegou prompta-
OU Â PENA DE MORTE 41

mente á roça, e chamcu os seus compa- Perigrino, o parceira que fez a pergun-
nheiros para ã refeição. ta acompanhou com os olhos a interroga-
Era um caracter nobre o do preto Do- ç ã e exclamou em seguimento a esta :
mingos. A resignação tornava-lhe sym- .— Uhê, o que ê que tia Balbina tem,
pathico o rosto chato e feio. Amadurece- gente?
ram-lhe os ânuos e atê certo ponto a Todos olharam para a feiticeira. Bal-
própria severidade do seu senhor o ias- bina, pousado o queixo na mão e apoiado
tincto da obeiiencia. Tinha a fidelidade o cotovello no joelho, olhava distrahida
do cão, e a passividade da besta de sella. para o céu. A sua ração estava intacta
I n v e s t i a contra os que atacavam a casa diante de si.
grande e os brancos, e resfolegava e re- Sabiam todos que semelhante pcsição
cuava diante do abysmo de perversidade correspondia sempre ás grandes dôres ou
dos seus parceiros, que muitas vezes ti- preoccupações da cabinda, e por isso per-
nha-se-lhe aberto diante, attrahindo ocom guntaram em côro :
suggestões iniquas. — O que ê que tem, tia Balbina ?
Depois de tirado o eito, os escravos com — Não é nada, creanças. Estou imagi-
as enxadas ao hombro dirigiram se para nando na minha vida.
o aceiro, onde sentaram-se, depôndo os — Qual; vosmecê tem alguma cousa.
instrumentos de trabalho. — Para não fallar mentira, estava ima-
Domingos distribuiu por elles as di- ginando outra cousa. Carolina está muito
versas cuias, onde uns pequenos quinhões doente...
de carne secca assada sob esahiam da al- — E' verdade, parece cousa posta;
vura do pirão de farinha de mandioca. que moléstia tão ruim 1 disse Fidélis.
Feito isto, o preto, honesto e discreto, — E' verdade, respondeu o côro.
affastou se do grupo e foi sentar se dis- — Carolina está para morrer porque
tante sobre um largo tõco á sombra de está com um filho de Manuel João, que
uma laranjeira. anda agora ás voltas com a filha do aggre-
O acaso fez com que no centro do gado. A creoula tem sangue de cobra,
grupo ficasse a tia Balbina, que modifi- ficou tinindo quando soube. Depois lem-
cara os trages em que vimol-a na , sua brou que o filho ha de ser escravo ; nasce
senzala apenas em trazer hoje uma saia para o chicote e para o eito. Náo quer
* de zuarte. mais que o filho abra os olhos, coitada!
Acompanhando com os olhos o preto Ella pó 'e ir se embora também, se Bal-
que se retirava, a feiticeira, provocou a bina não fôr salvar a creoula de sen
hilaridade dos parceiros, dizendo. senhor. .
— Bem faz Domingos, foge dos maus — Antes morra, se ha deficarboa para
escravos para não perder a carta de for- soffrer.
raria.
— Que tem que ella seffra ? Nós vamos
— O nome d^lle está sempre na bocca scffYer, e ella é nossa parceira. 0 aggre-
da senhora; exclamou Fidélis, chas- gado vai ser feitor; senhor disse, Fidélis
queando.
ouviu. Homem máu, seu Chico, homem
Todos começaram a comer com o sadio máu aquelle 1 Enche a bocca de negro
appetite de homens de trabalho. Alguns captivo; hoje elle não ê ai ma feitor, mas
juncavam á refeição da casa as iguarias diz:—vou fallar com o meu compadre para
que prepararam de vespera, e as offere- maadar metter o chicote no negro. A fei-
ciam fraternalmente aos outros. toria vai para seu Chica, ou Manuel João
— Quer um p9daço cfeste gambá enso- fica maia bravo para n<5a. De hoje em
pado, tia Balbina ? diante nenhum me passa d'aqiu (a preta
42 • MOTTA COQUEIRO

assignalava com o dedo o pescoço) ; tão 03 remedios, como se fossem uma in.
bom como tão bom. Fidélis polia bem jecção caustica, longe de acalmarem-lhe,
livrar a gente; senhor falia com elle. Era exacerbávam-lhe as dores.
dizer: Manuel João não está mais na roça Era o cadaver da vingança galvanisado
uma hora inteira; Chico Benedicto farta por paiecimentos horríveis, ou melhor,
as roças de senhor. O macóta bufava, e a pela electricidade da dôr. Ora quedava
gente e>tava livre. inerte, quasi algida, com a respiração
— Isto é que é fallar certo, exclamou imperceptível, inundai a em suor viscoso;
Peregrino, um dos pretos do grupo. ora levantava-se sobre os punhes, com a
— E' verdade. cabeça pendente, o corpo descrevendo so-
— Eu sei lá; vocês depois dizem a bre o leito um angulo obtuso, e, arque-
senhor que Fidélis é que não gosta dos jante, prorompia em gemidos agudos,
dois. compungentes.
— Nós ? . . . Era o prenuncio do ataque assustador,
— Quem é que vai dizer ahi ? interveiu medonho, com as contorsõas da serpente,
tia Balbina; ceu está vendo nós; onde e as unhadas do jaguar; com o ganido
vai quem disser ? O gálio quando canta é dos cães leprosos, e o ranger de dentes
vida para o que faz bem e morte para o dos condemnados eternos.
que faz mal; tia Balbina entende o canto
Qual fosse a moléstia ninguém estava
do gallo. Onde vai Fidélis ? Vai salvar os
escravos do macóta; é bem para todes. hab litado a diagnosticar; inclinavam se
Onde vai quem fallar contra Fidélis ? Vai todos a uma idéa—o feitiço.
perder seus parceiros; é mal para todos. — Carolina amanheceu boa, diziam;
Balbina adavinha; o ceu vê; Zambi cas- alegre, como sempre aniou, febres não
tiga. eram, porque não teve os calafrios das
— E está muito direito. sezões, andaço na localidade; não tinha
— Pois, diabos me levem ! no primeiro nenhuma chaga; não era pleuriz porque
geito eu aprumo a cama para os dois. não se queixava de dôr no peito; logo era
Teve toda a razão a dissimulada Balbina feitiço.
quando considerou gravíssima a enfermi- Todos involuntariamente lembraram-se
dade de Carolina. da tia Balbina, sem todavia attribuir lhe
Attentando contra a vida do filho, con- maus intentos para com a creoula, que
forme o expediente aconselhado pela fei- nunca foi por ella maltratada; mas ao
ticeira, poz em risco a própria vida. contrario sempre quer .da.
Dir-se-hia a revoltada natureza indig- — Talvez a Balbina conheça, dizia a
nada contra a degeneração doa sentimen- dona da casa; o melhor é mandai a vir,
tos da mulher, que deu de mão aos não ê, Motta ?
sonhos maternaes, mundos roseos e bri- Depois de reluctar,não sd quanto ás ge-
lhantes, onie branqueiam azas de ar- raes manifettaçõ s sobre a moléstia, mas
chanjos atravez de irradiações de amor, ainda quanto á vinda da Balbina, Motta
A innocencia condamnada parecia pedir Coqueiro cedeu afinal, e a feiticeira tran-
á riôr as mais aguçadas púas para com cou-se sosinha no quarto com a doente.
ellas broqueiar asaelvajadamente o orga- Sentada á borda do leito, esperou tran-
nismo enfraquecido da creoula. quillamente a occasião opportuna para
Não havia abonançar-lhe o soffrimento: fallar-lhe.
o dia inteiro passou o ella debatendo se Ninguém que a visse ahi poderia sus-
em ancias dolorosas bem semelhantes ás
peitar que a feiticeira contemplava a sua
da agonia^derradeira.
obra sombria de vingança; estava serena,
OU A PENA DE MORTE 43

nada denunciava siquer um traço de re- nuel João, nunca penetrava no interior
morso. do casarão. Assentava-ae á porta ou ct n-
Quando lhe pareceu chegado o momento serva va S9 a cavallo emquanto entieti-
de fallar, começou: nha-se a narrar cousas banaes e ao pala-
— Garolina vai sahir d'aqui e vai con- dar dos ouvintes.
tar a sua senhora porque é que a creoula Um dia, porém, o feitor teve occasião de
está doente. Mas não diz que tomou re- recordar-se-do que lhe dissera Carolina no
medio da tia Balbina ; conta outra cousa.. dia em que cortaram as relações.
A creoula fez com a cabeça um signal — Compadre, disse Motta Coqueiro; eu
afíirmativo. vou começar amanhã o cerrei amento da
— Carolina está sofFrendo, mas o pai do madeira e precisava que você e seu filho
seu filho ha de soffrer também. Tia Bal- ajuiassem-me.
bina ha de vingar a creoula. — Eu S9i, compadre; mas, eu já estou
A feiticeira sahiu e revelou á senhora velho e o Juca para que diabo serve t
a moléstia de Carolina : era um aborto. — Então vocês não prestam nem para
Infelizmente este conhecimento nada amarrar uma balsa f Saiba, comadre, a
aproveitou á tranquillidade da familia; qualidade dos homens que tem.
mallograram-se to ias as esperanças de A familia riu-se muito e Motta Coqueiro
melhoras, e alta noite creram todos que continuou:
a doente não amanheceria. — E eu que tive tenções de chamar e^íe
Resolveu-se então que se Carolina não mpu amigo para feitor; estava bem arran-
morresse n'essa noite, logo pela manhã a jado !
senhora acompanhai hia para a cidade — Mas isto era outra coisa e se o com-
afim de serem prestados os soccorros mé- padre quizer....
dicos á creoula. —Yeremos;por agora quero somente que
Esta inopinada mudança do sitio seria vocês se occupem de embalsar a madeira.
entretanto definit va. Ocdrte da madeira A larga faca de Manuel João iuziu fora
estava quasi concluido e brevemente Motta da bainha; o despeito esbrazeiava-lhe as
Coqueiro podia deixar de resiiir ahi. A faculdades revoltas; não pensava, não
senhora, portanto, não precisava mais de discernia; o cerebro exhalava-lhe espessas
voltar para contrariar-se era residir em labaredas de odio e de cólera.
um logar, com o qual antipathisava. Surgindo d'entre uma espessa moita de
No dia seguinte effectuou-se a mudança, pèxiriqueiras, collocadaperto da parede do
e uma canôa, vigorosamente remada por casarão e quê lhe servia de escondrijo, o
braços robustos, voava em direcção a feitor seguiu pé ante pé, e teria realisado
Campos. os seus fins se não se desse uma circums-
A cisa grande cahiu na mais sombria tancia feliz.
tristeza; dir-se-hiá que a torturavam sau- tylotta Coqueiro que se conservara a
dades amargas ao recordar-se dos dias em cavello, em quanto conversava com o
que repercutia sonora as alegrias da com paire, so dizer-lhe as ultimas pala-
familia. vras, tinha se feito ao largo.
Alguém no emtanto contrastava com K> feitor, para atacai o, devia investir
esta tristeza; era Manuel João, que ap- de frente; mas era bastante cobarde para
plauiia se por ter agora occatião de não tentar semelhante commettimento.
vigiar de perto os passos do seu amo. Indignado contra si proprio e contra a
Ficando só, Motta Coqueiro passava as fatalidade que sempre defendia o seu
poucas hora3 de laz*r n a casa do com- rival imagiuario, o feitor tomou o cami-
padre, mas, com grande espanto de Ma- nho da venda do Vianna.
44 MOTTA COQUEIRO

Ao chegar, o vendeiro que desco- como o chumbo oxidado dos peses da sua
brira nas feições descompostas o tumul- balança enferrujada.
tuar dos sentimentos do amigo, pergun Tomando um copo e enchendo-o de
tou-lhe sobres alta do o que tinha havido vinho, Vianna caminhou para Manuel
no sitio. João, e pondo-lhe um braço sobre o hom-
— O diabo, um inferno, mil raios me bro, emquanto com o outro apresentava-
partam; maldicta a hora em que eu entrei lhe o copo, resmungou :
para semelhante casa 1 — Então com que você quer nos deitar
— Mas o que foi, horcem, desembuche! a perder, seu homem ; isto não é por
— Qíier saber, seu Vianna, eu estou força que vai, ê preciso geito. Vá lá o
aqui e estou na cadeia; não aturo desafo- codorio e depois vamos á falia.
ros ; por onde anda o diabo do Sebastião? — Beba vçcê primeiro, seu Vianna.
— Espera um pouco; oh ! com os dia — Não senhor; venha de lá.
bos, você parece maluco; o Sebastião não Manuel João bebeu, e a convite do ven-
ha de tardar por ahi; accoinmode-se... deiro sentou-se com elle no balcão.
O vendeiro, hypocrita como todo um — Então com que o cabrinha es-tá com
mosteiro e astuto como cincoenta rapozas, o diabo na pelle? quer pôr o mundo
percebeu logo que a situação do triumvi- abaixo ? interrogou Vianna, que tirava de
rato era perigosa. sobre o pavilhão da orelha um cigarro e
Desde o domingo em que péla ultima levava a elle o isqueiro.
vez esteve na casa de Francisco B<na- — Você eitá com caçuada, seu Vianna,
dicto, reflectindo com madureza, resolveu e eu hoje não estou para graça. Filie-
impeliir com todas as forças o violeiro e mos serio, o Sebastião vem aqui, ou não
o feitor e conservar-se em uma distancia, vem? si elle iião vem, eu vou á casa
que o prôsertvasse de ser tido como ctim- d'elle.
plice em algum acto reprovado dos dois. — E' verdade que o demo está tardan-
Sabia elle já a que fôra o violeiro quan- do, respondeu Viaona já impressionado;
do os deixou no casarão ; sabia mais qce o melhor ê irmos á casa do bicho. Espera,
Sebastião ia todos os dias ao sitio e ahi eu vou bu&car os remos.
encontrava-se com Chiquinha, ora no po;- — Vamos mesmo, porque eu sou capaz
to, ora na baixada. de fázer uma asneira.
Conhecendo de perto o caracter de Motta Passados alguns minutos, Vianna fe-
Coqueiro nas suas asperezas e nas suas chava a porta da vendola e os dois com os
delicadezas, evitava o seu d*sagrado; era remos ao hombro caminhavam em direc-
a isto levado por uma questão moral mas ção ao porto.
principalmente por nma questão econo-
Era a hora serena do crepusculo, hora
mica.
em que as sombras invadem o céu e as
Supina imprudência seria irrital-o e in- consaiencias, em que surgem as estrellas
dispol-o contra si, qaando por outro lado
e os salteadores dos seus escontirijos; em
o Chico Benedicto nada valia, nem apre-
que o Armamento começa a inundar se de
sentava d ificuldades serias.
luar, e os viajantes a mergulharem-se no
O vendeiro pensando em Antonica via
temor das emboscadas; em que a poe-ia
simplesmente um breve afastamento ; as
desdobra-se em chimeras e o crime es-
circuinstancias aplainariam as difficulda-
praia-se em torpezas.
des, e o borradore as prateleiras da ven-
dola dariam a ultima de mão ao probl *ma. Manuel João entrara pela pequena
canôa que estava no porto, e Vianna
As palavras de Manuel João impressio-
já a havia desamarrado de uma estaca,
naram entretanto a alma do calculista, fria
quando ouviram o prolongado oh! com
QU A PENA DE MORTE
45

que os canoeiros snnunciam a sua appro- Foi promptamente satisfeito, porque o


ximação de alguma casa conhecida. feitor começou a narrar a conversa que
— Ouve; é elle, disseram cs dois ao ouvira aos dois compadres, e concluiu
dizendo:
mesmo tempo.
Passado algum tempo toda a confusão — Olhe, seu Sebastião, eu saio d^alli,
q u e porventura podesse haver, desapare
mas vou para a cadêa, porque eu tiro a
ceu. A voz sonora e agradavel do violeiro,vida ao patife do capitão.
repassada da suave melancolia das mu- Os dois guardaram silencio durante a
s i c a s
narração; quando o feitor concluiu, Se-
sertanejas, ergueu estas estrophes
predilectas : bastião tomou a palavra.
*•— Você não me faça tolice, seu Manuel
Quando chega a primavera João; que tem você com o Coqueiro ? se
Ahre-se a arvore em flores; elle faz roda á pequena; seja você fino.
Q aando chega a mocidade Eu cá não serei logrado; faça o que eu fiz.
Veste se o peito de amores. — Mas o que é que você fez ? deixe-se
de rodeios....
Pois que amar é sorte nossa O violeiro chegou-se para mais perto do
Quero pagar meu quinhão ; feitor e segredou lhe algumas palavras;
Não dou ouro á minha bella depois levantando a voz, disse sorrindo:
Mas lhe entrego um coração. — Olha, o Vianna não sa amcflaa tam-
bém ; mais dia, menos dia... Você anda
A prôa da canôa, lordada pelas ondas por ahi como um palerma. Veja que não
espumantes que abria e levantava no rio, vá morrer de fome se sahir da casa do
appareceu na curva da corrente, e ouviu- Coqueiro.
se o estallo forte da pá do remo batendo Manuel João tinha os olhos em fogo, e
em cheio na superfície das aguas. as narinas infladas ; parecia allucinado.
— Olé, bradou o violeiro; o frade sahiu — Seu Vianna, interrogou elle com ex-
hoje do seu convento, vem dar noticia do forço depois de uma grande pausa, é ver-
baptisado. dade o que disse Sebastião ? você é ca-
— Q jal, respondeu o vendeiro ; está paz f
bravo como um cão damnado. — Ora, tire ocavallo da chuva, respon-
Manuel João nada aisse. deu o vendeiro, você ou é um tolo ou é
O canoeii o desembarcou, assoviandor e um bregeiro de conta. Olhem que santi-
foi reunir-se aos dois. nho !
— Então que novidades ha no becco, O desgraçado feitor nada respondeu;
seu Manuel João; melhor cara tenha o talvez tivesse vergonha das palavras que
dia de amanhã. devia proferir.
— Sabe que mais, Sebastião; você veja Até então nada podia provar que elle
o que faz, respondeu o feitor ; eu já não adherisse ao segredo soprado aos seus
posso mais; eu estouro. ouvidos pelo violeiro, tinha até nos olhos
— Credo, isto agora é que não é do uma onda de lagrimas, as derradeiras
trato. Oh seu Vianna; e&te bicho está lagrimas puras que elle choraria em sua
certo ? vida, se após ellas não viessem as do ar-
— Não é graça, não ; aqui anda cousa; rependimento.
vamos ao caso, Manuel João. Mas, ao retirar-se comprehendia-se que
O vendeiro via talvez pelos ares a sua a sua cólera tinha asserenado e que se
vendola e queria o mais brevemente pos-
elle não levava uma resolução, affagava
sível saber o que devia fazer.
ao menos uma esperança.
46 MOTTA COQUEIRO

Quando Manuel João destanciou-se, o — Mais respeito, sêu vadio, nós não
vendeiro disse para o violeiro : somos da mesma igualha.
— Aquelle demónio é bem capaz de — Já estou na moita, meu branco, disse
perder-nos. o moleque e já se f*zia de volta, quando
o feitor agarrando o por um braço inque-
— Não pense n'isio, respondeu Sebas-
riu-lhe sobre novidades.
tião, squillo ê um covarde. — Tudo velho, respondeu Carlos, hoje
IV é que eu hei de v?r cousa nova.
1
— Boa ou ruim? _
A EXECUÇÃO DE UM PLANO —• Eu quero ver para acreditar; tia
Ao voltar ao sitio o feitor foi recebido B ilbina diz que viu lá na baixada,quando
por uma repreh«nsão aspera de Motta foi procurar uma herva para Caroliaa....
Coqueiro. Pelas palavras de Sebastião, ditas em
E1 que sahindo precipitadamente, es- segredo, e a ultima resposta do Vianna, o
quecera de que dispunha de heras de feitor suspeitou qual seria a visão da Bal-
trabalho, consagradas a uma séria obri- bina, e como não lhe conviesse que o se-
gação—fazer a revista. gredo fosse aos ouvidos do amo, tratou
A' noitinha os pretos vindos da ro?a de- de dissuadir o moleque.
puzeram na cczinha os feixes de lenha, — Balbina é uma tonta, disse elle, pode
e encostando os machados e as enxadas ser pêta e você perde o tempo.
da parte de fora, postaram-se em linha — Qual pêta, seu Manuel, ella diz que
no terreiro. viu uma das fiihas de seu Chico entrar.
Depois de «sperar por largo tempo, — E' que ella estava pssseiando.
a conselho de Fidélis, levantaram a sau- — De noite? sósinha? Ai! que seu Ma-
dação usual: —-louvado seja Nosso Senhor nuel João é o meço, s t i n e i ! . . .
Jesus Cbristo. — Máu, máu I faça ponto na graça, e
Só então Motta Coqueiro sppareceu na já lhe digo que estas cousas não são da
janella, e admirando-se de não vêr Manuel sua conta.
Joã!, responderam lhe que ainda não — Mas foi vosmecê quem me mandou
tinha chegado em casa. que espiasse...
— Elle não esteve assistindo ao ser- — Mas é então o senhor ? interrompeu
viço ? perguntou Coqueiro. o feitor sobre altado.
—• Já ha muito, respondeu Fidélis, que — Qual senhor, nem meio senhor; pobre
quando o senhor vem embora, s?u Ma- do velho.
nuel João acompanha o senhor. — Está bom, Carlos, você está se adian-
— Está bom; podem ir. tando de mais; fica o dito pór não dito.
A delação era grave e a censura foi-lhe Carlos nata respon 'eu, mas ao sahir
proporcional, mas nem assim altarou o passou a mão pela cara e depois agitou-a
bom humor em que ficou o feitor depois brandamente no ar, voltando-lhe a palma
da consulta ao astucioso violeiro. para a casa do feitor.
Sentado á soleira da porta, cousa que E' o signa! de que se servem os roc?i •
não fazia havia tempo, Manuel João poz- ros para dizer que vão tirar desforço da
se a tocar viola, cantarolando quadras offdnsa que lhe foi feita.
amorosas, até que veiu interrompel-o o Simples mimica da vingaoça, ella é
moleque Carlo?, que lhe trazia a ceia. muitas vezes o omeço de uma compli-
— Olé, exclamou o moleque, seu Ma- cada trança de ardis, cada qual o mais
nuel João está adevinhando passarinho t univel, até chegar muitas vezes a um
verdet desenlace fatal.
OU Â PENA DE MORTE 47

que por gracejo buscava esconder-se,


Manuel João ficou visivelmente preoc-
u p a d o com as palavras do moleque; rastilhou em direcção á moita.
tinha certeza de que á communicaçao D'entre a moita o vulto surgiu arras-
^este facto a Motta Coqueiro, que sabia tando-se imperceptível mente e quando
da sua amisade com a familia do aggre- Manuel João chegou ao logar em que elle
gado e podia dar-lhe a auctoria, seguiria se achava, não o enccntrou mais, nem
como consequência a perda da feitoria, pôde descob r il-o quer no escondrijo, quer
ào longe no campo.
iá imminente.
Depois da ceia, começou a medir a A natureza supersticiosa do feitor aceor-
passos lentos a sala, anianio de um para dou-se então em sobresalto, porquanto
outro lado, e afinal sahiu cautelosamente, entendia elle que era impossivel a quem
Rodeiou as senzalas applicando-lhes o estivesse ccculto na moita dei parecer ante
ouvido ás paredes, principalmente na em seus olhes.
qae residia Balbina. Demais o ar a pouco inodoro impregna-
Reinava completo silencio, ninguém va-se agora de um intenso cheiro de ar-
ocdia velo nem interrogal-o, a não serem ruda, a planta predilecta do demonio.
as myriadas de estrellas que tremei uziam Assoviando baixinho, para dissimular
no céu, e cs vivos e rápidos meteoros o susto, o feitor subiu a encosta da col-
que se despenhavam de vez em quando, lina e tomou o caminho que costeava os
mudas interjeições de luz, que talvez Deus fundos da casaria.
enviava dos céus aos arcanos d'aqueHe De espaço a e?paço olhava para traz,
espirito. impressionado com o som dós proprios
Certo de que estava só, o feitor diri- passos, e por fim trocou o trilho pelo
grammal, qi,e lhe abafava o ruido do
giu-se para a baixada.
caminhar.
Quando estava perto, deitou se na relva
Só cobrou animo quando chegou ao ca-
e, rastejando, chegou até o cajueiro, pelo
sarão em que morava o Caico Benedicto.
qual trepou ligeiro, tomando entre a ra-
Eacostando-se á parede, tirou do is-
magem uma pcsição onde não podia ser
Viitl. queiro e poz se a ferir fogo, e, uma vez
Aboletado no seu e s c o n d r i j n ã o tardou acceso o cigarro, foi apalpar a porta dos
muito que se visse obrigado a desalojar- fundos e d-pcis a de uma janella, que
Se. Um vulto appareceu da parte oppost* olhava paraa banda da baixada.
e para aproximar-* e da baixada serviu- Com grande espanto seu, sentiu que
se do mesmo expediente posto em execu- a janèlli cedia ao leve impulso que lhe
ção pelo feitor. Mas em vez de entrar no imprimira, e abria-se com o fino guin-
ponto da entrevista, o vulto arrastara-se cho das dobradiças sem oleo.
até uma pequena moita próxima e con- O feitor estremeceu como se o percor-
servara-se deitado. resse um calafrio. O que não se pôie dizer
— B' elle, pensou o feitor, e chamou & é se elle atem.risara se ou se reluctava
meia voz: o h ! Sebastião, oh! Sebastião. contra algum desejo de súbito incendido.
Longe de obter resposta, reparou que o A qualidade do oflicio que tinha no sitio
vulto tentava esconder-se caia vez mais impunha-lhe até como dever esse percurso
entre os arbustis. nocturno em volta da casaria, e o amo que
— Que patife, resmungou o feitor, até sahisse fôra e o encontrasse alli, não podia
a mim quer enganar, flaorio!...
censural-o, antes teria motivo para elogios,
A* proporção que fallava, o feitor dei-
A janella aberta explicava-se facilmen-
xava-se escorregar pelo cajueiro, e, na
firme convicção de que era o violeiro te para isto bastava dizer a verdade, e o
48 MOTTA COQUEIRO

remltado seria uma profusão de agradeci- rido, fios q ie nos guiariam ao crime, a
mentos. outros que nos levam até a abnegação.
Mas nem por isso a posição do feitor era E' que se imagina que o hálito extra-
menos embaraçosa. O que havia de f zerf is do vem impregnado dos anceios do co-
accordar a familia ? prender a janella ração amado,das imagens que lhe povoam
por fóra ? o cerebro, que desejamos se estreite para
A noticia, dada a Francesco Benedicto, tudo mais que não seja o pensamento do
seria motivo para uma explosão tremenda nosso amor; e esse imaginar sébreexci-,
contra as filhas; subir ao peitoril para ta-nos o egoísmo, que conta com o periao
d'ahi puchar a porta da janella e pren- e atreve se por elle, ao mesmo tempo que
del-a, era demasiado arriscado. a consciência levanta-se tentando ccmba-
Se passasse alguém e encontrass í-o em tel-o e vencel o.
tal posição,não attribuiria por certo a uma A pouco e pouco o feitor foi movendo-
idéa nobre o que visse, e a diffamaçâo se, a principio tomou a posição de quem
corresponderia á expulsão do sitio. escuta, mas logo desejou mais do que
ouvir. Collccou a cabeça sobre o peitoril
O feitor recuou involuntariamente, mas e poz-se a olhar.
como se obedecesse a uma força magica de
attração veiu novamente collocar-sejunto A tibia claridade da noite deixava
á janella. apenas perceber a alvura dos lençóes
alheridos ás curvas formadas pelos ccrpos
Ahi conservou se a principio em uma
das adormecidas, mas a phantasia, esse
immobilidade de montanha, contendo a
clarão indiscreto que inunda os mais re-
re piração, para depois exhala-a n'uma
onda. Era a estatua da voluptuosijiade cônditos arcanos, esta divisou talvez mais,
profanando com o seu htilito o sanctuario muito mais.
do pudor. Gradativamente erguendo-se, o feitor
O cicio do resfolegar das moças, que chegou a collocar até meio corpo dentro
dormiam no quarto,derramava se no am da janella, e a flrmar-se nos pulsos, para
biente n"uma cadencia magica, e, se pode realisar o salto dentro do quarto, mas o
dizer — ad&esiva. estallar das articulações obrigou-o a des-
A mão avelludada e macia que se es- cer sobresaltado, e a recuar de novo.
mera n'uma caricia,o olhar meigo que se Arrastou-o, porém, a vertigem do
enlanguece a'ama supplica, ou se aban- crime, e resoluto voltou ao logar de onde
dona n'um consentimento, o lábio que se sahira.
entrega morno de amor, são fontes de Apoiando-se então afoitamente sobre os
delírios indisiveis, de sonhos inenarrá- punhos e erguendo se vagarosamente,
veis. O re pirar da mulher amada, ou- sentou se no peitoril. Então levantou gei-
vido-peio amante, falia primeiro á imagi- to*amente as pernas para passal-as pela
nação, penetra-o suavemente de uma janella. Mas a extrema cautela não poude
sensação que tem alguma cousa de an prevenir um desastre; as pernas bateram
gelica e ao mesmo tempo de infernal na porta da janella e esta foi, guin-
Como um condensador elactrico attrahe chando, esbarrar na parede. O miserável
e repelle; é ao mesmo tempo um incen- escal&dor conteve-se em meio do salto e
tivo á affoiteza e um anteparo á reso- atirou se para fóra precipitadamente.
lução. Faz pensar ao mesmo tempo na Uma palavra, um grito podia perdel-o
profanação e no cavalheirismo, e envolve aos olhos de Motta Coqueiro e este,se sabia
o espirito em uma rede incommoda onde relevar com braniura, sabia também .
se misturam, matizados pelo mesmo colo*
punir com severidade,
OU A PENA DE MORTE
49

Levaatando-se de prompt-?, o. feitor dei- — Está bom, tia Balbina ; veja se vai
tou a correr como se fôra' perseguido.. dormir.
Entretanto Èó o perseguia a consciência /,

da infâmia que tentou levar a effsfto.. No timbre d a voz de Manuel Joio tra-
Meio acordadas pelo barulho?-as moças hia-se uma profunda angustia; era um
ansn*s revolveram-se nos leitos, voltà- soluço do remorso articulado no tom da
ram-ee e continuaram a" dormir. bonhamia.
Na carreira que levava,-o feitor cosi eisu Balbina, porém, não ; apiedou-se do
sem trop€ÇJ 0 casarão e a casa grande, sofMmento que percebeu e replicou-lhe .
mas. ao *ahir do vão entre e?.ta e a ca;,a pela ferocidade de uma ironia cruel: >
eáTque residia:, foi' obrigado a deter' se. — Vosmecê pôde dormir, porque nada.
tem com a creoula, nem com o filho
A laz que sabia de uma das senzalas
d'ella; Balbina, não; elía estima Carolina
cuja porta estava abè.ita, deixava ver
corso se fosse sua mãi,
um vultò de mulher. Manuel João calou-se e seguiu para a -
O'cansaço embargou por algum tempo sua morada. Quando a luz do candieiro
a voz do corredor ; demais, filiar era deixou verem se-lhe as feijões, havia
no mesmo inst&nte dar logar a uma n'ellas o cunho da extenuação e do scffri-
suspeita contra si, caro alguém da fami- ; mento.
lta ãe Chico Beiedicto houvesse accor- Os &UCC&FSGS da noite enohiam-« de um
dado ao barulho que fizera ua escalada, pânico supersticioso; vigiava-se como se
Por outro lado a auctori-la-le qua exer- julgasse seguido e não ousava apagar o
cia no sitio obrigava-o a fallar, sob pena candieiro.
de'ver psrdida a soa força moral. N'om continuo vai vem, o desgraçado
Depois de descançar um pouco, Manuel
ora apertava a cabeça entre as mãos, ora
João caminhou áin ia arquejante até á
segurava a larga faca polida, que lhe
porta da sanzala, e dissimulando o es-
pendia da cintura, e brandia-a.
panto coro um a admiração, fi agida® ente
Adevinhava-se que aquelle espirito nu-
benavola, perguntou :
tava entre o suicídio e o remorso.
— O que é que você faz ahi, tia Bal-
N'um accesso de fúria o feitor, com os
bina ?
olhos injectados de sangue, os lábios e as
— A negra perdeu o somno4"veiu sentar mãos tremulas, segurou, entretanto, re-
na soleira, da porta, para ver o céu de solutamente da faca, que parecia fas-
Deus. cinal-o. :

— M;*s porque é que você perdeu o Olhou para o tecto e em seguida le-
sornso ? não trábslhou hoje, não é ? vantou o braço tendo a ponta da faca vol-
amankã ha de sor dobrada a doze. tada contra o peito; mas o instrumento
~r A negra veiu cansada, sim, e foi assassino cahiu lhe da mãe* e o desgraçado
para a sua cama dormir. Mas o canta da cahiu sobre um mocho, collocado junto á
coruja ve-.u com teu agoi o tirar o somno mesa e escondeu a cabeça entre os braços.
de Balbina. A lembrança de Carolina, Entre o silencio gemeram os pios agou-
que foi que si morta parar nas mãos do reiros da coruja.
doutor, veiu apertar o coração 4a negra. Sobre tamanha angustia a noite passou
A pobre da creoula devia ter um filho deacuidosa, como a criança que brinca
bonito, e o filho vai morrer também. junto da um leito de moribundo. E' que
Balbina, que sabe, tem pena de mãi e de a natureza é surda e céga para a peque-
filho, e a negra chorou o não poude nhez humana: carregada de sombras ou
dormir. inundada de luz, a vida do soberano des
4
50 MOTTA COQUEIRO

seres creados não desvia uma linha a si immenafts zorra», que sulcavam o
prescripta ordem dacreaçao. campo aopeso de enormes toras fálque-
Para recompensai-nos ou punir nos jídas.
nos rei,ta a serenidade do bem ou as tor- Na casa de Francisco Benedicto o dia
turas do mal que praticamos. correu através de com dentários acerca
O céu ou o iufdrno edificamol os nós da janella aberta.
mesmos diariamente a jorros de honesto À maioria opinava por uma explicação
heroísmo ou agolpes de infame covardia: muito natural ao3 espirites educados na
para o primeiro a consciência, tranquilla. mais grosseira super-t^ão.
nebulosa, cria as constellações da paz e — Isto, diâa a velha, ha de ser aviso
da virtude ; para o secundo e^pessa-nos a de algum conhecido que ,morreu ôu não
memoria as trevas relam^eautes do re- tarda m u í t a morrer.
morso. Cniquinha , porém, conservou-se im-
Ao romper do dia ninguém poderia pressiona la desie o amanhecer, e sento
dizer quão amargurosas tinham sido as naturalmente risonha, não tivera uma
horas d* noite para o coatradictorio ca- «xpáDsão durante o dia.
racter do feitor. — E' muito medrosa esta Chiquinha,
Desperta io ÍO torpor, que o avassallara, diz am-lhe as irmãs, ficou com medo-do
pelo barulho dos escravos, Manuel João tútú.
acomp*nhou-o8 até o terreiro com appa Nem o gracejo, nem os carinhos das
rente bom humor, levando o seu recalcar irmãs conseguiram dissipar a tristeza da
de soffrimentos ao ponto de sorrir benevo- moça que, no isolamento, chegava até as
lamente á repetição da ceauira, que na lagrimas.
vespera lhe havia sido feita pelo amo.
N'uma das occasiões em qu* achava-se
Este ordenou-lhe que no mesmo instante
dé-se providencias p*ra começar o car- só, Chiquinha depois de absorver-sa em
reto das madeiras, afioode serem embal- prolongada meditação, ao enchugar as
sa as por Francisco Benedicto, seu filho lagrimas que lhe borbulha vão, exclamou
e outros empregados que mais tarde çon resolut&mante:
tract »ria. — Não quero mais enganar os meus;
Ao concluir a ordem, Motta Coqueiro, vou acabar com iato.
misturando a asperesa á longanimidade, No dia seguinte 'evia começar a execu-
disse para o feitor: tar sa o contracto feito entre Motta Co-
— M*s veja bem, Sr. Manuel João, é queiro e seu cornp dre, para o embasa-
preciso não perder tempo ; não f«ça ct mo mento da madeira, e o fazendeiro foi
h^ntem. portanto lembral-o ao apgregado.
— Um dia não são dias, respondeu-lhe — Amanhã não me falte, está ouvindo,
Manuel João, e meu amo o verá. compa ire ? eu tenho pressa do trabalho.
D sde esta hora a gente do sitio poz te — O compadre está desejoso de matar
em activida ie e quanio o sol a pino ele- saudades, mas olhe que não ha tanto
vava intensamente a temperatura do tempo assim que ficou s' m a comadre.
ambiente, os bois já não eram vistos, — E' isto, mas também outras razões,
ruminando tranquilJamente á son br* d&s e eu quando fôr agora paru Campos não
arvores annosas; to contrario, c m os t< rno cá tão cedo.
museulis distendidos, as grandes e r u a s A familia de Francisco Benedicto, que
lioguas pendentes, av grossas ventas des- assistia á conversa, intei veiu então para
mesuradamente abertas, caminhavtsm a mostrar-se penaliza ia com a nova. An-
passo lento e regulado, arrastando após tonica levou, porém, a demonstração de
OU Â PENA DE MORTE 51

pezar a tsl exagero, que não ptssou des- i na porta do corredor ; e disse com voz
apercebido a Motta Coqueiro. suavemente modulada:
Conhece ser dos seus aggregados e do — Iziâbei M buscar uma caaoisa para
commum dos roceiros nas mesmas con- servir de molde á q*m ella quer que eu
dições, Motta Coqueiro, reatando a con- faça.
v e r s a , ' d i r i g i u - a de mo 3o que puzêsse bem Motta Coqueiro, que estremecera ao
patente as suas intenções. ouvir âs paUvras de Antonica, voltcu-se
— Este trabalho que faz-me grande entretanto,disfarçando ã coeimoção, e ex-
conta, disse elle, e também um adjutorio clamou com intimidade:
que o 'compadre tem para fazer a sua casa. — Ah! você faz camisas para vender;
Eu vou-me embora, e o compadre bem eu hei ãê lhe mandar panno para você
s&be o que são negros; em eu voltando as fazer-me também «soa de peito bordado.
cosias pintam a manta por aqui. — Ora, seu capitão tem muito quesa
— Lembra muito bem, compadre, eu faça, não precisa de uma matuta feia.
tenho da ir hoje ao Vianna e lá Miarei — Não pregue mentiras qua é o que é
com e le sobre o regocio feio.
Depois do jantar Francisco Benedicto — Então eu não sou feia ? É como é que
disse á sua molhei* que ia á venda buscar nioguem gosta de mim?
provifeões. — Ai'! que você é uma grande menti-
— Vamos agora para o serviço do com- rosa, Sra. Antonica. O ssu pai já dile-
padre» e eiie é amo com quem não se ma as cavalarias altas que lá vão per
brinca ; começada a obra não ha arre- casa com o . . . o . . Para que está ficando
dar pé. vermelha; levante os oifcoâ, deixe o lenço
Pouco depois da sabida do pai, Anto- socegado... Ah! so asinha.
nica pediu a su& mãi que a deixasse ii' até Antonica experimentou, de feito, uma
a caáa grande falUr com a Izabal cosi- sensível mudança quando Motta Coqueiro
nheira, que lhe ficara de ciar uma camisa, revelou-lne que sabia de seus tsponsses
para fazer-lhe por ella uma gola de crivo. com o vendeiro.
— Eu quero vêr se mando vir pela Com os olhos baixos, as faces em bra-
canôa um vertido para © Aano Bom, e zas, e as mãos a enrolarem as pontas do
quero segurar estas cobres, mamai. lenço, que lhe cingia o pescoço, a moça
A valha mãi não oppoz obstáculo ao pe- ' estremecia como se fôra presa de reniten-
dido da filha. tes c&lafrios.
Motta Coqueiro estava sentado na sala Não querendo augmentar a perturbação
de jantar da essa grande, quando Anto- de Antonica, o fazendeiro calo o-se. Entre
nica passou tão apressada como se não elles estendeu-se o silencio eléctrico que
desejasse ser vista. precele ás grandes explotõss do corarão,
— Então v&e fugida, perguntou elle; como o relâmpago preeeie o fulminar do
parece um pé de vento. raio.
— Vim faliar com a Izabal.
Juntava-se a este silencio a solidão e
— Eutâo não perca tempo; faz-se noite
e por &hi andam lobis-homens. melancolia do cwp osculo a cercai em
— Que me importa, respondeu a moça; e*se encontro inesperado.
é cousa de que eu não tenho medo. Como se oopiróe o palpitar contido
Antonica passou pela fazendeiro e en- dfaquelles c o r a i s , urn velho relogio de
trou pela primeira porta. Dapois de al- parede movia a pêndula, batendo com-
gum tempo, quando talvez Motta Coqneiro passada menta.
já não pensasse n^ella, a moça appareseu Antonica foi a primeira a romper o
52 MOTTA COQUEIRO

s
ilencio, e, dando á voz a brandura da pel- Mas esta resolução inconsistente, e
lucia, ponderou: aéria deáapparecia logo, e a moça reca-
hia no tédio e na abstracção.
— Mas £© o seu capitão quizer eu não
Era tão zelosa do seu ideal, que perce-
me caso.
bia ao longe a mais imperceptível sombra
— Eu, filha ? Eu nada tenho com isto. que se dirigisse para e l l e ; e sd ella
— Nada f! perguntou ella admirada. interpretou quanto havia de tr&voroso
Mas a comprehensão de Motta Coqueiro na ironia do violeiro, apreciando a demora
não illuminou-se apezar de ouvir esta dolo- de Chiquinha e do capitão.
rosa interrogação, em que a moça parecia
haver encarnado a alma inteira. N'aquella alma tão trabalhada, e que
N'esta simplissima palavra encârráva-se de repente viu-se forçada a quebrar o
toda uma historia de padecimentos indes- sigillo que se impuzsra, o despeito chegou
criptiveis, eexpandia-se a confissão quei- até a allucinagão.
xosa de um segredo, que ninguém jámais A principio quedou immove! com a ca-
percebera, g jardado peia mais reflectida beça encostada á ombreira da porta, mas
precaução, calculado hora á hora para co- em seguida caminhou para Motta Co-
ro ar-se com a victoria. queiro.
Santificava-lhe o desalinho das feições
Entretanto uma desillusão amarga, fria
a solemnidade da tristeza e recatava lhe
e acerbamente reprehensiva vinha mal-
a desenvoltura da phrase a eloquencia
lograr todo o trabalho de loiago tempo, e
da dôr.
esvaecer a esperança que morosamente
fecundara-se, e, crescendo dia á dia, — Então, disse ella, não se importa que
olhava como cer^a a realidade. eu me case com outro; não vê què êu não
Durante todo esse padecer o coração de quero, que eu não serei feliz ? Não tem
Antonica, fugindo de exhibir se á luz, £ó nada para me dizer; nada ? nada ?
uma vez não poule conter-se e deu forma Motta Coqueiro levantou-se estupefacto;
aos seus sentimentos. eúa scena era tão inesperada que elie
temeu que estivesse diante de uma louca,
Foi na noite fest;va da Sa^to Antonio e só poude dizer á Antonica:
quando o violeiro prenunciou desatten- —• Pois se você tem tanta aversão a este
ciosamente o nome de Motta Coqueiro.
casamento, não ceda, minba filha ; deixe
N'esta mesma occasião.porem, mascarou estar que eu fallarei com seu pai e hei de
com a gratidão o eeu amor, eteve d'ahiem protege-la.
diante força para não permittir nunca a
Ao dizer as ultimas palavras um dos
mais leve franqueza a sua psixão, que
braços do fazendeiro tinha cingido a moça
para satisfazer-se não mediria consequên-
que soluçava.
cia, não obstante procurar esmagar-se
de encontro a um casamento de conve- Antonica deixou pender a cabeça sobre
niência. o peito de Motta Coqueiro, e levantando
para elle os grandes olhos negros, mur-
Para dissuadir-se e esquecer-se, apro- murou :
veitava a ausência da Motta Ciqueiro, — Sim, sim, não deixe; eu lhe juro, não
as quebras temporarias do magnetismo gosto d'âile.
do seu olhar, para dar ouvidos e provo- — Descance, filha, descance, seu pai
car os galanteios de outrem. não ha de obriga-la ; vôce ha de casar
Assim era que tinha animado os dese- com quem quizer.
jos de Vianna, sahindo-lhe ao encontro — Se seu capitão soubesse, continuou
com uma lisonja, e favoneando-lhe a Antonica, as dôres que eu tenho passado,
esperança com um medido abandono, como tenho escondido de todos o que eu
OU Â PENA DE MORTE 53

Soffro ! Ninguém póle desconfiar apenas. que separava esta ultima sala áo corredor,
Eu tinha medo de lhe dizer; vosmecê me e à'ahi espreitou quanto se passava.
estima só cotno a uma criança, e nâ/» v ê . . . A curiosidade guiara-lhe os passos e
— O que e que eu não vejo, Antonica... elle regozijou-se interiormente, certo de
Como uma fera, que, sendo desapie- que a narração do que vira lhe recon-
dadamente fustigada, avsnça contra o quistaria a familiaridade rendosa do
aggressor,_mss é C3nt'da no impeto p^los feitor.
ferros da jaula; assim enraivecida, Anto- — Moleque, gritou Coqueiro, depois de
nica levantando os punhos cerrados e ran- algum tempo de silencio.
gendo os dentes, fitou os olhos esgazeados O moleque com os braços crusados so-
na face pallida de Coqueiro, que recuara bre o peito veiu po3tar-se diante d'elle.
instincti v a l e n t e . — Ouve bem, continuou o senhor, s<5
A moça quiz fallar, mas não ponde; vosmecê entreu aqui a esta hora; se uma
tentou avançar, e eahiu arquejante e lí- palavra só, das que se disseram aqui, for
vida. sabida, eu mando-té surrar e atiro-te para
Entre o susto e a piedade, o circumspecto a enxada; não serás mais meu p3gem.
fazendeiro tomou-a nos braços, e os lábios Carlos sff* stou-se si-encioso.
pousaram na frvnte descorada de Anto- Antonica entrou em casa fingindo-se
nica. extremamente contrariada com a escrava,
Depois conduziu-a para um canapá que a quem sc^usava de teí-a f?ito esperar
estava proximo, e deitou-a, poussndo-lha por muito tempo e finalmente adiar para
a fronte sobra os seus joelhos. Era um o dia seguiote a soluça-) do negocio.
pai velando uma filhe doente. O ardil produzia o desejado effeito, por-
— Não tem culpa do que faz, murmu- que ninguém reparou na desfiguração
rou Coqueiro, depois de contemplal-a que lhe causara a violência das paixões
longamente; é a inexperiencia que a ernptas durante a malfadada entre-
impelle. vista.
— E1 a ingratidão que me mata, res- A fortuna, que ainda havia pouco lhe
pondeu Antonica, e levantando-se de for ?, tão adversa, protegia-a agora mila-
chofre, sahiu sem lançar sequer um olhar grosamente, proporcionando lha meios de
ao seu honrado guardador. esconder o seu soffrimento.
Apenas Antonica sahiu, uma voz vinda
Chiquinha, dizendo se indisposta, reti-
do corredor que desembocava na sala,
rou-se para o q mrto ; Mariquinhas fôra
perguntou huaoild emente :
para o interior da cisa preparar o trem
— Senhor quer que accend», o candieiro.
— Deixa-me com mil dsmonios, patife ; para fizer o cafó para o seu pai, quando
nisgaem te chamou cá, respondeu Co- voltasse; o irmão era o companheiro obri-
queiro. gado do velho; e a religiosa mãi de An-
A extemporânea pergunta, que dizia tonica, assentada a cochilar n'uma ban-
claramente que alguém tinha presenciado quinha de costura, quitava se com a Vir-
pelo menos o fiaalda geena, que procura- gem, de quem era devota, desfiando em
mos descrever, era feita pelo malicioso o seu louvor o rosário de grandes contas
Carlos. negras.
O diabrete negro tinha visto Antonica Para poder dar curso ás lagrimas, que
entrar na casa grande e veiu disfarçada- nSo se continham, a moça ssntou-se a
mente collocar-se, a principio, n^raa sa- coser junto á velha mesa da sala.
leta próxima á sala de jantar, e em segui- Seriam oito horasdanoite quando Fran-
da poude esccnder-se por detraz da porta, cisco Benedicto, empurrando estouvada-
54
MOTTA COQUEIRO

msníe a psrta, estrou em casa, gritando não poaho-te peia porta f<5ra, porque não
com voz arrastada: fstou para desaforos. Fica entendido;
— Oh coca seiscentos: já domem por ponho te os quartos na rua. Póíe i r , . .
squi, suas malandras? Estas ultimas palavras foram acompa-
Aatoaiea e Ma? i^uiah&s, deixando os nhadas por um safanão brutal e Aatoaica
seus trabalhos, vieram beijar a mão ao silenciosa voltou para a sua costura,
pai, e a velha resmungou íá no seu canto: — O que foi ? perguntou la dentro a boa
— Ave Mima, que modos estes, seu Mariquinhas ao seu irmão.
Chico. — Ora o que havia de s^r, historias do
— A agua ç que já estava lá dentro casamento- Papai faltou com o Sebastião
rísoma&ndo ie Unto fe ver; rimes coiso e o Vianna, para ajudarem a fazer a casa e
peão dormindo, accrescsntou Mariqui- Sebastião disse que sim, comU ato que pelo
nhas. Natal elle havia de estar com Chiquinha
— Bico, sua posta.; não seja respon- em seu poder, e o Vianna fez uma casaa
dona ; eu quando f^llo ê porque sei; onde de Antonioa.
está Chiquinha ? — Veja só este papai; estão Antonica
— Está doente, pipai. é que ha de ir vê? seu Viatma lá na venda.
— Díga-lae que o Sebastião esteve — Eu não sei, o que eu ouvi foi o
commigo na venda e quer es enxovaes Vianna dizer que papai já deva na venda
prooaptos para o Natal, senão vai tu fo vinte mil réis de • mantimentos e qae, se
raso. Antonica não tem de sar «Telíe, quer o
As moças a Afastaram se e Chico Bene- seu dinheiro, porque não está para tra-
dicto M atirv.r-se sobre ura mocho como balhar p&ra o bispo.
um corpo inerte. — Esse desavergonhado; e tem uma
• -Q%ibuso dds bebida? alcoolicss tinham-o carinha d« santo; eu se fossa" pspai nlo
posto no hrthwso ê§t%$o de não poder queria mais que elle caí asse com a mana.
perfilar se, e a Jingoa trôpega mal podia — Ainda você não sabe tudo; elle disse
prestasse á falia, que era justamente o que, se Antonica não quizer casar com
sestro do sggregado, quando SG embria- elle, hsja o que houver, elle ha de mandar
gava . citar papai e fazer penhor* nas bemfei-
— Oh t senhora, exclamou elle para sua torias; do céo venha o remedio.
lher, isto por aqui não me está cheirando Mariquinhas, depois de ter servido a seu
be&i. Aiada agora o Vianna pre?ou-me irmão, foi á sala levar o café a seu pai,
lá um sermão de quaresma por causa da que continuava a reprehesader severa-
Antonica, e ' isse-me que aminbS quer mente a misera Antonica.
fechar o negocio ; ou ca^a ou não casa ! Então poude c/onfirm&r a exactidão das
A voiha n*da respondeu; continuava, palavras de seu irmão, porque ouvia a
pachorrentamente a rolar entre os dedos Francisco Benedicto esta phrase expres-
as contes do seu rosário. siva :
— On ! rapariga? br*dou Francisco Be- — E sabe o que mais, minha malandra,
nedicto, deixa iá esta costura e vam para lá está uma conta de vinte «oií réis, qus
o pé de mim. vocês comeram; eu não tenho dinheiro
Antonica obedeceu e co^coou-se junto 3gora ; o que vou receber do compadre é
ao pai que, seguranlo-lhe das mã*s, con- para a cms ; senão quizer casar com o
tinuou :
Vianna, você tem um remedio, pague-lhe
•— 01 h% bem para teu pai; amanhã ha os vinte mil réis.
de vir cá o Vianna, você não se ponha — Vãi para dentro, meninas! gritou a
com piégas; trate-me bem ao rapaz, s e ' velha mãi, ao passo que tomava a chi-
OU Â PENA DE MORTE 55

ca* a das mãos de Mariquinhas. — Você Com um sorriso ella reprehendeu as


também lembre-sé que tem de trabalhar irmãs, lembrando lhes que bem podiam
a m a n h ã , seu Chico, ou eu mando chamar ter ido alasoçar em casa, para não a obri-
o compa >re. garem a trazer tanto peso.
Depois de rogar innumeras pragas, e A' proporção que fallava, Antonica
romper nas mais torpes obscenidades, assentava sobre a g? amma os pratos que
Francisco Benedicto caminhou camba- tirava do cestinho, e / final, segurando
leando para o seu quarto, e ena fiai a casa no caniço, poz-se a desenrolar-lhe a linha
cahiu em absoluto silencio, á excepção é a espsrioaentar-lhe a estrova e o anzol.
do quarto em qae dormiam as moças. — Ea como já almocei, dis^e Antonica,
Ahi ouviam-se soluços abafados, mas vou piscar um bocadinho.
perennes; era a desditosa Antonica, que — Eu logo vi que você fallava de bar-
encostada ao braço da marqueza, pran- riga cheia, interveiu o irmão.
teiava inconsolavelmente A m ça foi assentar se á margem do rio
De manhã, ao levantarem se, suas irmãs em frente a um logar onde as aguas
encontraram-a no mesmo logar; dor- negras e morosas reman eavam, abrindo'
mindo o somno da extenuação. em rodomoinho silenciosos sorvedoiros.
Apezar do cuidado das moças para não Estava a pouca distancia dos seus, que
accordarem-a, Antonica estava de pé em g r u p o riam e conversavam, ora menos-
dentro em pouco. cabando, ora elogiando a refeição e o
Cobria-lhe o rosto uma pallidez mortal, apparelho.
mas os seus olhos não tinha lagrimas, — Como estão bem lavados os pratos 1
nem uma queixa siquer escapava-lhe dos — E as facas como estão amolladas ;
lábios. parecem navalhas.
Pelas dez horas da manhã só Antonica — Este quitute foi temperado por An-
e sua mãi estavam em casa; o pai e rs tonica.
irmãos tinham sah do todos para o porto;
— Vocês assim espantam-me os peixes,
Chiquinha e Mariquinhas para lavar a
roupa, Francisco Benedicto e seu filho gritou Antonica.
para a empreitada do embalsamento da — E' gosto, observou Mariquinhas, não-
madeira. façam barulho que eu quero assar no dedo
a pescaria.
Antonica, que de vez em quando ia es-
piar á janella, viu no campo o sizudo fa- — Pois, sim senhores ; de criada vai o
zendeiro, que vinha a c wallo, em direc- Vianna bem arranjado ; é papa fina.
çlo á casa. Após elle corria o moleque Esta consideração, formulada por Fran-
Carlos. e caminhavam. a passo os escra- cisco Benedicto, foi recebida com uma
vos, tocando os bois ajoujados. longa risada dos filhos, que assim demons-
D pois de amarrar o cavallo, do qual o travam approvar o gracejo paterno.
senhor tinha apei^do no terreiro, Carlt s Quem estivesse ao pé de Antonica, ve-
correu até o casarão e cowmuoicou á An- ria, porém, que ella bem longe de acom-
tonica que seu pai pa^ia para que lhe panhar o acolhimento jovial ao gracejo,
mandassem o almoço no porto. impre sionara se dolorosamente com elie.
Sob o sol ardmte, a moça, com um ces- Não sorriu mais os seus tardos sorrisos
tinho á cibsça e um longo e fino caniço e a pallidez como que se lhe augmentou
deitado sobra elie, atravessou o campo n^s faces.
em direcção ao porto, onde asseotado á Os olhos amorteciios e avermelhados
soaibra de uma enorme figueira brava prenderam^e-lhe como que fasciaados
esparavam-a o pai e os irmãos. na superfície da corrente, e, apezar das
56 MOTTA COQUEIRO

amigáveis provocações que lhe eram di- Ao som do baque nas aguas ur-a grito
rigidas, nada respondia, de desespero respondeu no grupo :
— SGCCCTFO, Loccorro ! gritaram todos.
A linha, cujo anzol boiava a flôr das
Francisco Baaedicto e seu filho,rápidos
aguas, deixava evidente que Antonica não
como um tufão, atravessaram a pequena
prestava a minima attenção á pesca.
distância que mediava entre o rio e o
Outro cuidado a impressionava, e este
logar em que se achavam, e precipita-
brouton-lhe no soluçado de um canto:
ram-se ao mesmo tempo, ao passo que as
— Moco fidalgo da corte moças no auge da afflicção gritavam a
Se encantou de D. Branca; plenos pulmões :
A moça foge aos amores, — So acorro 1 Soccorro 1
O seu pranto naa se estanca. Ao mesmo tempo vieram á tona os dois
nadadores e a pallida Antonica, que se
Já tam véu, j l tem grinalia, debatia quasi suffocada.
F r a n c i s c o Binedicto, porém,j % não tinha
Tem sapatos de setim,
Da côr que tem a nebrins forças para r e s i s t i r a correnteza, e foi des-
E as azas do cherubim. viado pslo r e d o m o i n h o das aguas, e só o
seu filho pouie aproximar-sede Antonica.,
no momento em que ella submergia-se de
Chega o dia do noivado
novo.
Branca triste inclina a fronte,
Mas pede para mirar-se O corajoso rapaz mergulhou no mesmo
No claro espelho da fonte. ponto, e, quando subiu á flôr do rio, trazia
segura pelo corpinho do vestido a moça
já sem sentidos.
Ouve o canto da Mãi d'agu'i
A affl cção cresceu nos espectadores ; a
D'entre os lábios de caral,
pouca idade do mocinho não lhe fornecia
E na harpa de fios de ouro
a força neces aria para levar acabo a em-
Sobre concha de crystal:
presa ; era um joguete da correnteza-
prestss a ser esmagado por ella, que lucra,
— « Vem a mim, filha querida
ria sssim mais uma victima.
Vem findar as tuas dores;
Eu tenho ricos palscios O-velho pai, agarrado ao galho de um
Para guardar teus amores. ingazeiro via, entre as torturas da impo-
tência, esta dupla a m e a ç a feita pela morte
ao seu coração angu tiado.
Em casa todos procuram:
Mas de repente uma esperança conso-
D. Branca onde estará ?
ladora luzia em todos os espiritos ; a vio-
O noivo já no seu carro
lência das éguas ce.leram diante da ro-
Na porta de casa está
bustez de ura naiador decidido.
Era Motta Coqueiro.
Pobra pai, os teus rigores
Ouvindo os gritos de soccorro, e vendo
Vão muc3ar-se em fundssmsgaas;,
o grupo correr em direcção ao porto, o
Da tua filha s<5 resta
prestativo fazendeiro sentiu atravessar-
O véu branco Fiobre as águas.—
lhe o espirito a lembrança das palavras
de Antonica : — é a ingratidão que me
Ao flsa da ultima estrophe, Antonica, mata — , e alevinhou logo o que se pas-
toda inclinada para o rio, olhou triste- sava.
mente o ceu e deixou-se precipitar na Montando no possante aUzão em que
corrente. sempre andava, e cravando-lhe desapieda-
OU A PENA DE MORTE 57

damente os alicates, Motta Coqueiro pôde Durante mais de uma hora de ancie-
em. alguns minutos arriscar á sua vida dade a trabalho, ninguém, a excepção de
pára salvar-a moça, Motta Coqueira, alimentou amais fugitiva
Nãlou direito a ella e segurando-a com esperança de ver salva a moça.
um dos braços,com o outro remou á mercê Todos abanavam a cabeça, exprimindo
das aguas até podar sgarrar-se a um dos assim a certeza que tinham de que eram
galhos da vegetação da margem. baldados os esforços feitos pelo fazendeiro,
D e n t r o era alguns minutos Motta Co-
que sobre-excitado aconselhavae tomava
ao mesmo tempo múltiplos expedientes,
queiro d e i t a v a sobre a gramma o corpo
Antonica jazia desacordada na immo-
i m m o v e l de Antonica.
bilidade dss estatuas, e apenas com um
A viveza encantadora de seu rosto fôra
leve respirar correspondia á robustez da
s u b s t i t u í d a pelo morte côr de uma longa
esperança do seu incançavel salvador.
s y n c b p e ; a luz suave e seductora dos
À proporção que desanimavam de todo,
seus olhos fôra trocada no brilho estagna- as pessoas da familia retiravam-se para ir
do, proprio dos olhos dos cadaveres, e mais longe derramar as lagrimas, que
além de tudo isso os braços, quando eram Motta Coqueiro não queria ver correr.
levantados, cahiam com o abandono da Havia já largo espaço que, a sés, o fa-
inércia. zendeiro velava junto á cabeceira de An-
— Está morta! está morta! minha irmã! to aica, quando esta pela primeira vez,
minha filha! pobre moça ! exclamavam depois da frustada tentativa de suicidio,
todos chorando. abriu as p&lpebras roxeadas.
Só o fazendeiro não havia até então Tudo quanto ha d© mais infantil e mais
perdido o sangue frio entr-3 a m<5 de pa- amoroso, de mais santo e louco passou
rentes, escravos e aggregados que cerca- pelo espirito e encarnou-se no olhar e nos
vam Antonica. gestos de Motta Coqueiro.
Ajoelhando se junto á'ella, poz-lhe a — Veja se dorme, se descança, mur-
mão sobre o coração, e seistiu que elle murou elle; não deve fallar, não deve
ainda batia. fazer nenhum movimento. Oh! que susto
Então como se fosse presa de uma lou- que nos pregou!
cura instantan^a, tomou nos braços o O olhar de Antonica, mixto de espanto
corpo molhado da moça, apertou-o contra e de pudor, continuou fixo a eavolver o
si, e cobriu-lhe de beijos a face livida. seu solicito velador, emquanto que TJO
A visiáhança do tumulo santificava canto do lábio pairou-lhe na ironia de um
esta explosão]mdomita do coração e longe sorriso toda a amargura da sua situação.
de prcvccar e^tranhesa serviu apenas — Porque não me deixou morrer, por
para aviventar uma esperança. que não teve animo ao menos para p » r
— Ella vive" ainda, não é verdade, com- em paz sobre a minha cova.
padre ; minha filha não morreu.
— Mas, minha filha, repare que esta
—• Vive, sim, para n<5s, p?»ra o seu
exaltação lhe faz mal; descance, is o ha
amor, para a sua felicidade ; respondeu
de passar ; você verá, ha de passar.
Motta Coqueiro, que não tinha mudado
de posição. As palpebras de Antonica cerraram se
Depois, como se accordas?e de um de novo e pelos seus cantos as lagrimas
sonho, levantou-se e gritou para os es- começaram a dv>slísar.
cravos e os çircum st antes: Um incidente veiu impedir, tdvez, que
— Estamos aqui todos pasmados ; va- uma involuntária quebra de resolução
mos, levemol-a para casa; Deus a sal- maculasse o papel digno que Motta Co-
v ará. queiro desempenhava junto da moça.
58 MOTTA COQUEIRO

Francisco Benedicto, de pé na porta do chamado de Francisco Bene Jicto> que não


quarto em que esta scena se passava, podia eontsr-se de alegria.
disse á meia voz: Choveram cocomentários do perigo e
— Oíi! compadre, não será bom acor- manifestações de regozijo.
— Só você podia cural-a. s m Vianna;
dsi-a e dizer que está ahi o Vianna ; tal-
abaixo de Deus, o compadre valeu-nos
vez...
muito, mas não é o noivo.
Odendo á commoção que lhe causaram
A vaidade lisonjeada do vendeiro operou
estas palavras o fazendeiro, repetiu alto:
alguns requintes do estylo da modéstia
— Talvez... forçada,'a divindade universal que tem
— N'est,e caso eu vou chamar o rapaz. altares desde o sertão até os mais civili-
O compadre se o visse; está lá fóra a sados centros, e afinal cahiu inanida do
chorar e a praguejar. esforço no mais parvo mutim o.
Logo que Francisco Benedicto retirou-se Tendo dado franqueza ás expansões,
o sorriso ironico de Antonica reappare- Motta Coqueiro assomou á porta no mo-
ceu-lhe nos lábios e as pálpebras de? cer-
mento em que Antonica, para desafiar os
ravam se-lhe para lançar um olhar pene-
enconjuros de sua mãi, dizia:
trante ao ja sereno o Coqueiro.
— Quero mostrar que não sou ingrata, — Era bem bom que o banho fosse até
seu capitão, murmurou ella, hei de tratar o fim.
muito bem ao meu noivo. — Já não ha perigo, disse o fazendeiro;
— B para ter mais franqueza, eu retiro- agora parto para o meu trabalho.
me, respondeu Coqueiro, levantando-se e Um coro de agradecimentos rompeu de
dirigindo-se á porta. toda a familia; só Antonica fez excepção,
Depois que o fazendeiro sshiUjAntonica, e dirigindo-se ao fazendeiro, verteu todo
que se assentara no leito; envolveu n'um o seu despeito n'uma pergunta:
sorriso um grito do coração: — O que seria melhor para uma pessoa,
— Vai; não és tão indiferente como seu capitão, morrer ou querer morrer
finges. por alguém que não merece ?
— liTcá, v?nha por cá, dizia lá fóra Fran- — Conforme, respondeu elle; se a pes-
cisco Benedicto, não façamos barulho. soa fôr moça, o melhor é casar-se com
A estas exclamações accrescentou logo quem mereça.
uma pergunta e uma observação: A conversa continuou animada junto
— Acordou a sempre, compadre ? São do leito de Antonica, mas já não colla-
sempre assim, mesmo morrendo,.. Oh! borava nos ditos de alegria e espirito a
meu Deus foi um milagre. voz da doente.
A ultima exclamação foi feita á porta Concentrando se a pouco e pouco, e
do quarto, e era meti *ada peia posição responden te ao aca^o, Antonica termi-
de Antonica. nou por dizer que se s a ntia peior, e peiir
Capuchoso no desempenho do seu pa- que foliassem mais baixo.
pel o vendeira entrou precipitadamente Alguns minutos dept is deítoo-se quei-
emittindo plirases etn aliuvião : xando-se de dôres na cabeça e calafrios.
— O que foi isto, sá Antonica ? que ' — Parece que tenho febre, di.ise ella, e
diacho de o u s a ! quasi que foi para a pe iiu ôs pessoas que estavam no quarto
cova; vejam que brincadeira, para que se retirassem.
Ficou apenas no aposento a velha mai
— Ora o que fut ? um banho, respondeu
de Antonica, que para l^go teve de pedir
Antonica,
auxilio, porque a moça começou a convul-
Toda a familia veiu para o quarto A
sionar, como se fora morrer.
59
OU Â PENA DE MORTE

Esta recatada inopinada aggravou se gratidão e que é o melhor coroamento


a s s o m b r o s a m e n t e e d e novo a familia d» amor.
Para se deixar fitar mais a vontade, em
julgou perdida irremediavelmente a en- toda a franqueza e seducção dos seus en-
ferma. cantos, a moça collocou o braço no da
Ataques violentos obrigavam aos maio- marqueza e na concha da mão pequenina
rm cuidados © a quasi continuo exce do deitou a face morena.
de forçá para impedir que durante elles Contrastando com a immobilidade do
a doente são sa maguasse ainda mais, ou busto, Mariquinhas balançava disfcrahi-
' fosse victia.a de algum dos ssus bruscos damente uma das p®rnts, com um movi-
movimentos. mento compassado e languido, >
N ' e s t e honroso empenho, durante dous Talvez para mais encantar o contempla-
dias e duas.noites, velou a familia de Í tivo feitor, a moça de quando em quando
Francisco Benedicto á cabeceira da An- cerrava as palpebrás nacaradas, para sus-
tonica, mas o cançaço diminuiu por fim pendei as depois no raio húmido e amplo
a boa vontade e dedicação. do seu olhar avelludado.
Estavam todos extenuados» — Porque não vai dormir, sá Mariqui-
Dous o ff areei mentos espontâneos apres- nhas ; eu e a rapariga bastamos para
saram se em pedir á familia o encargo qualquer cousa.
dos quartos á enferma, Motta Coqueiro —• Eu estou bem aqui, respondeu Ma*
mandou uma de suas escravas, e Manuel riquinhas.
João offereceu sé para velar com ella. Fizeram ambos silencio em seguida,
Por hora adiantada da ,noite um aesesso porque a doente revolvara-se no leito.
violento obrigou os bons serviços de Ma- Foi este um pretexto para que Manuel
nuel João e da escrava, e além (Telles João se levantasse e logo-inclinado sobre a
appareceu no quarto a bondosa Mari- face da Mariquinhas, com os lábios quasi
quinhas, a roçarem-lhe o delicado pavilhão das
Apezar do barulho, que foi feito pelas orelhas; lhe segredasse:
vascas da doente, ninguém mais acordou, — Vá dormir, sim ? olha que me está
o que provava quão pegadio era o somno fazendo mal.
dormido pela família. Quanta felicidade não devia ter derra-
Passado o accesso, a escrava foi sentar- mada n'alma ingénua da amante de
se a um canto do quarto, Mariquinhas quinze annos esta solicitude respeitosa
sentou se para os pás do leito & Manuel e acariciante.
João a cabeceira. — Está bom, respondeu Mariquinhas ;
A escrava não velou por muito tempo ; eu vou aqui para a sala, se precisar de
em breve euviu-se o seu franco resonar. alguma cousa, chame.
Estavam, pois, sós Mariquinhas e o Mais de um longo quarto de hora
feitor. tinha-se já escoado apds a sahida da fas-
Os seus olhares e nbebiam-se recipro- cina iora amante do feitor, quando este
camente na mais expressiva ternura, depois de observar de perto o rosto de
trocando as phrsses que o respeito á en- Antonio», levantou-se com precaução.
ferma impediam de pronunebr-se. C >m menos ruido não dedisa a íagri*
Pelos lábios de M «riquinhasserpeiavam ma de resina polo córtex do pecegueiro.
esses sorrisos indefiníveis da mulher que A passos lentos'caminhou até junto da
se c> è amad», quando vô-se contemplada escrava adormecida e chamou-a por tres
pelo seu amante ; sorriso feito de um tom vezes; a preta não deu o minino dignai de
de vaidade sobre esplendido colorido de ter acordado.
60 MOTTA COQUEIRO

Manuel Jcão .caminhou então para a dia limpido como o ether, um céu sereno
e uma tranquilla floresta suspirando a
ssla com a mesma cautflla.
báfcgem farfalheira de um vento sem
Deitando um braço sobre a mesa e a ca-
rancores, e ecoando o gazeado mavioso
beça sobre elle, Mariquinhas resonav*
de milharei da passarinhos; e então ri
-brandamente através dos lábios virgíneos
acs planos sombrios de novas emprezas; o
o somno do csnçaço e da confiança.
feitor encontrando, ao retrahir-se da sua
01?-ncinho branco, que ella diariamente
baixeza o olhar velutino de Mariquinhas
trazia ao pescoço, havia-se desatado, e o
e a suavidade da sua palavra, riu inte-
corpinho, formando pala posição contra- riormente a uma esperança lasciva.
feita da meça uma abertura concava, dei-
— Não Mie alto, que podem ouvir.
xava vsr o collo moreno. Assim as pétalas Deixe que ao- meu os hoje eu esteja junto
da rosa superpoem-se de modo que não ró de você; é tão diffiz-il isto.
deixam entrever-se.. mutuamente , mas — Deveras ? pois você não vem sempre
frsnqueaxia ainda a vista a dourada re- aqui,
gião dos estames. — Mas nunca tive uma vasa de dizer-
Um tosco a mal limpo candieiro bruxo- lhe que lhe estimo muito, muito, como a
leava ao lado de Mariquinhas, como se ninguém n-este mundo.
tentasse apagar-se para não dar logar a — Pois sgora já disse; o que quer mais?
que um olnar profano se atreves e a de- — Quero que você diga que também
vassar tamanhas perfeições.
paga-me essa amisade com a mesma
Pé ante ré o feitor approximou-se e
força; que é capaz de fazer tudo por ella,
parou junto da adormecida. Contemplou-a
sem medo, nsm de Deus, nem do mundo.
com avidez; corrert-lhe de leve a mão
— Ai 1 ai! você está a dizer peccados,
de,sde o alto da cabeça até a meio de uma
vá fazer o quarto e deixe-se de parte?.
d>js tranças que ammounhava o arfar do
— Não brinque, sá Mariquinhas; eu não
collo immaouladO, e finalmente ajoeihan-
do-se, roçou nos lábios entreabertos da saio hoje õ'aqui sem saber se devo viver
iroça um b°ijo, que alava-se no terr-or. ou morrer. Eu »Sò vim cá por sá Anto-
O somoo de Mariquinhas era profundo nica; eu vim para c e r t i f i c a r me de que
como soem ser es da fadiga ; a profanação você me estima. Qaero que jure-me, que"
poude continuar. repita uma, cam vezes : eu só serei tua,
Ao piimei.ro beijo, seguiu outro e ainda só t u a . . .
outro, até qce menos pela grosseria do Estas palavras seguiu-as o feitor com os
sttentado do que pela susceptibilidade do movimentos precipitados da paixão, e
puior, a moça dispertou scbresaltsida. quando padia a moça que j urasse .já a
Ao ver de joelhos o seusmente, ella que tinha cingido e beijava-a apezar do es-
não podia adevinhar a torpeza de que forço que ella fazia para libertar-se do
elle era capaz, não teve uma queixa á assalto.
vibrar-lhe, mas antes uma caricia para — Deixe-me, deixe me, exclamou Mari-
pèrd*al-o. quinhas, você está abusando, eu chawio a
— Ea não sabia que era santa, está rapariga.
fazendo oração ? Olhe o oratorio está aqui, Dita ámeia voz, mas com o sccínto im-
eu abro-o. < ponente do pudor e da dignidade, a phrase
O crime espojou-se diante de tão gra- de Mariquinhas repelliu para longe o
ciosa impunidade; e "a semelhança de feitor, não amedrontado, mas allucinado.
um forçado que, evaiindo-se da prisão, O seu plano de sedocçSo mallogrou-se,
encontra diante dos seus instinctos máus, evn mister levar a cabo o segundo : 6 da
não a mão pesada do carcereiro, mes um I violência.
61
OU A PENA. DE MORTE

Levou a mão á cinta; estava desar- á cata de elementos psra com elles forta-
mado; voltou então para junto de Mari- lecer a teia em que buscava enredar os
quinhas e travando-lhe do punho, disse- seus senhores: for*m a tristeza de Chi-
lhe com um accento qua a fez tremer . quinha e um visível spaíetamento que
__ u m a palavra mais, e eu que ta es- obscurecia as fácaldaies de Mariquinhas.
t i m o como um ãoido,, arranco-te a lingua
Chiquinha chegou se um dia á Balbina
e queixou-sa-lhe de que passava cs dias
como um malvado. Olha que já ha noites
oppressa por uma tristeza inextinguível
que eu penso n'isto; en?orquem-me de-
ora p o v o a d a cia scbresaltos, ora de visões
pois, mas eu hei de çhamar-te minha
encantadoras- e carinhosas.
hoje, j á . . . Uma palavra mais e . . . esta
casa'tem armas e no meu pulso ha força. — Não sei o que tenho, tia B úbina,
— Para que ha de ser máu p'ra mim ; parece que estou sempre sonhando. „ . .
murmurou Mariquinhas,; que esperava — Além d'issa, continuou Chiquinha,
abrandai o pela humildade. tudo me aborrece e tudo me preocçupa;.não
Foi porém um novo incitamento. Da tenho vontade de comer e se alguma
força faço sobre mim caio n'am enjoo,
chofre Manuel João apertou sobre os
que só se acabappr vomites. Vouemmagre-
lábios de M a r i q u i n h a s a s u a mão vigo-
cendo a olhos vistos.
rosa, emquanto com o b r a ç o , que lhe
Os symptomas dados por Chiquinha
p&ssára a c i n t a e um esforço b r u t a l , f s z i a
vergar-lhe o corpo delicado. eram claros de mais para a arte dá feiti-
O candieiro, talvez psla agitação doar ceira e assim podia esta fallar com tola
durante a lucta, deixou de i Iluminar a segurança.
a sala. Mas o poder de Balbina era o myste-
Y. rio e ã dubiedade de sentido das suas pa-
LM CUMPRIMENTO DE PALAVRA
lavras, que lhe deixava s e m p r e aberta
naja sahiia. Preferia o labyrintho á
A moléstia de Antonica deu logar a linha recta. -
mais uma intimid&ds perigosa na sua Secundo
w
os seus hábitos Bilbinares-
familia. O
poadeu á queixosa:
Na qualidade de .meàinheira foi cha- — O coração da gente bate as vezes
mada a tia Balbina para debellar o com força; os oluos não vêoi, o corpo
mal que assombrosamente devastava o não foge. Á hora da lua o matta-p&sto
organismo da moça. de fiôr amarelia fecha, como os captivos
A feiticeira tinha para insinuar-se a SBUS olhos cançados, as folhas que são o
maciez da dissimulação e, apezar das relogio do escravo. Mas o coração não
asperesas do seu exterior, o trato, re- dtixa de bater, não quer se trancar dentro
fâlsadamente humilde, era agradavel do peito; que,' voar como o vagalume.
como o contacto do pello da lontra. Da manha, quando o sol nasce, a folha
Esperando pacientemente a opportuni- é que se abre então, e o coração é que
dade para arriscar uma palavra, pene- muitas vezes fica fechado. Balbina nao
trando até o funlo das consciências com pôde pi-ohibir qua o grilio verde rôa a
o seu olhar que poásuia a calma perspicá- folha que se abriu ao sol, nem que a tris-
cia da vingança, Balbina era dotada de teza more no coração que se abriu aos
uma espesie da talisman fatiáico que at- raios da lua.
trahiapara si todos os espirites, que se lhe — Mas quem é qua lhe disse que meu
acercavam. coração se abriu na hora da lua I pergun-
Dois factos chamaram promptamente a tou lhe a moça admirada.
attenção da cabinda, que andava sempre — Carolina gemia; a alma da Balbina
62 MOTTA COQUEIRO

ficou triste como o carneiro que vai Ainda uma extrema fraqitesa iMpedia-a
morrer, e a cabinría sahiu para pedir ás de levantar-se sdsinha, e todavia os ser-
hervâs de Deus o soeego da creoula. Na viços de Balbina foram dispensados pela
baixada cresce a herva de S. João com o familia do aggregado.
seu cheiro bom e com a saa penugem de Ponderando que as moças não deviam
pombo novo. A cabinda queria traser a afFa&tar se por muito tempo de *-ntomea
herva para remedio da doente. No meio
da colheita Balbina se assustou, porque para convêrssrem com ella e adjudai-a a
viu um vulto branco como a boneca da mover-se, Motta Coqueiro quiz que-Bal-
paina... bina continuasse no casarão, e a preta
foi incumbida da lavagem da roupa, e dos
— E quem era este vulto ? interrogou trabalhos da cozinha.
a voz tremula de Chiquinha. Francisco Banedieto e seu filho volta-
— A negra não ê quem pôde dizer á ram ao trabalho do embalsai ento, ao
filha des brancos, respondeu Balbina lan- qual reuniu se mais um novo empregado,
çando á moça um olhar, que a fez enver- Faustino Silva.
inelhtce . A negra viu o vulto branco,
mas não poude saber quem era o outro, Homem de i&á nota nos arredores, Faus-
que tomou pelo cammho da baixada. tino guardava entretanto o aprumo do
— Mas diga, tia Balbina, diga o qu* é respeito diante do capitão Motta Coqueiro,
que eu tenho; diga peio amor de Deus. a quem dava mostras da maior conside-
ração.
— Balbina só póie fallar dentro do
ouvido de sá Chiquinha; escute. Filho do logar esteve por longos annoã
A pret* começou então a segredar, e a fóra d'elle por ter sido condemnado a 20
proporção que ella fallava, Cniquinha annos de galés, por um assassinato.
empallidecia. Madrugava-lhe ainda a mocidade
Quando Balbina terminou, as lagrimas quando commétteu esse crime, e a convi-
corriam em borbotõss pela face da moça, vência de scelerados, combinada com a
que só teve forças para exslamar. própria indcle, conveitôu-1 Be o coração
— Oh I meu pai do céu5 salvai ine por n'uma pedra lascada e arestosa, cujo con-
que eu estou perdida. tacto feria, ou ao menos escore&va.
— O pai do céu é bom; se a filha dos Robusto e varonil, com quarenta annos
brancos disfarçar, se não ficar sempre de semi-òciosídade e de vida gargalhada
triste, póie esconder dos olhos da seu na ignominia da grilheta, e depois nos
pai, até que possa apparecer com seu requebros dos fados, Faustino era um
marido. Sa Chiquinha não ha de ser d'esses productos communs da ignorân-
infeliz como Carolina, qua foi quasi a cia, que tanto abundam paios sertões.
morrer parar nas mãos do doutor, porque Lia-se-lhe no rosto trigueiro, cercado
o pai desprezou o filho da creoula. por uma grossa barba negra, nos olhos
Cuiquinha começou desde esta hora a mal encarados, a torpeza de sua alma, e
esperar o dia em que devia ter uma fatal todos que o conheciam terminavam as
certeza, e Balbina continuou na sua suas apreciações ácerca do novo traba-
tarefa gratuita de tudo observar. lhador, dizendo : — aquiílo sempre é ho-
Antonica tinha entrado em convales- meai que mata os outros por dinheiro.
cença e já passava horas inteiras a con- Tal era Faustino, segundo dizia o povo,
versar com sua mãi e irmãs. que muitas vezes, que o maior numero
Atravez do aaúo inherente á enfer- das vezes, exagera os defeitos do indi-
midade já escapavam-lhe do coração para viduo.
os lábios uns fugitivos sorrisos. Um irmão de Faustino, o Bento Silva,
OU A PENA DE MORTE 63

contava a seu respeito uma passagem costura á sombra de uma arvore que fi-
romanesca. cava perto.
U aa noite, á hora da revista, urna Ahi estava guardada pelo movimento
das fort lezas do Rio de Janeiro, foucvu das pessoas de cas* e podia dar de mão ao
se a rebite peia fuga de um dos condem- temor que tinha de poder ssr outra vez
nados. assaltada pelo feitor.
Poz-se tudo em actividade psra effec- Um dia, porém, foi sorprehendida justa-
tuar-se a sua captura immedi&ta, mas mente pela pessoa a quem queria evitar
todo o esforço maliogroa-se. & to io o transe.
Os escaleres expedidos seguiram todos A voz do feitor plangente e submissa,
na direcção da terra, da pai te que ficava buscanao rodeios namorados, veiu aba-
mais próxima á fortaleza, mas o preso lar lhe a apathia intima em que vivia.
mais atii»do fceguiuem direcção cpposta. — Ainda não me perdi o», sa Mariqui-
Na iou ao largo da bahia. nhas.
Sd pela madrugada conseguiu pôr pé A moça não respondeu, mas abaixou
fór* das onlas„ mas estava, salvo. Nin- ainda mais a cabeça, e poz-sea cantaro-
guém o perseguiu, e eile poude embarcar lar entre dentes.
como marinheiro a bordo de uma escuna, As suas feições tinham, porém, tomado
que partia para Macabé. | um sccento soioame—a gravidada do pudor
Ahi de*p»diu-se do navio, e internou se offandido, e * ra bem fácil comprehender
para M&cabú, seu torrão natal, onde a causa d'esta mudança.
levava a vida de trabalhador. Mariquinhas amava sinceramente o
Eatre Faustino e Franci co Benedicto feitor. D sra-lhe as primícias immaeuladas
manteve-se a reserva que ha sempre entre dos seus sonhos dos quinze annnos, bando
individuos, que reciprocamente se co- louro de miragens a entrançar-se em
nhecem. choréas festivas para desfazer-se afinal
Nenhum d^lles gosava da boa fama, nos vapsras roseos de um anhello iudefl-#
porém cada um considerava-se m-dhor do nivel, que ihe dominava o coração enchen-
que o outro, e tinha escrupulos na fa- do-o de um sussurro longínquo de sauda-
miliaridade. des sem causa, de anceios sem objecto.
Francisco Bôneiicto nunca, por dife- Fizera das faces trigueiras de Munuel João
rencia ao menos, coavidou o seu compa- o ho ris anta do seu viver modesto, e ima-
nheiro para ir á sua casa, facto que ginára-se muitas vezes na sua casinha de
ofendendo profundamente o desalmado sapé, a estender no terreiro a roupa de
Faustino, fizia com que elie dissesse trabalho ou o seu fato domingueiro ao
quando faílava-se no aggregado : lado da camisa de morim, que se lhe aper-
„ — Aquilio é um cachaça; um dia eu tava contra os &eios, oppressa p^las bar-
parto-lhe c;s ossos e mais ao magarefe batanas do seu vestido.
do filho Vai tu lo ra&o; porque eu não A* tardinha iria esperal-o á porta, 9a a
gosto que me toi çam o f jcinho. meio caminho para acabar n'um be jo um
Mas apesar da reciproca antipathia, os sustosinho que se ihe ia alevantando com
homens harmonissivam durante o traba- a appiosimação da noite.
lho, e ifeto tastava. Custir-lhe-hia tanta felicidade, talvez,
Na casa do aggregado ficavam ep^nas o aesíiffícto" de seus pais, porque o seu
as mulheres. Para espairecer da funda amante era homem de côr, e pobre; mas
hypocon iria que lhe ia minando a < xis- tudo isso compensar-lhe ia o seu amt-r.
tencia, Mariquinhas costumava a sahir Um coração feminil vxve de tanta Chi-
á hora da sesta e ir sentar-se com a sua mera aos quinze annos!
MOTTA COQUEIRO
64

Esse feixe facetado e iriante de illusõss de uca larapio sorprehesáilo, em quanto


desatou-o brutalmente o feitor na noite Mariquinhas se a f f ^ U v a .
em que, acicatado pela lubricidade, tres Delib^rava-se talvez a se^uil-a, mas no
vezes covarde, atirou sa como fóra esfai- mesmo instante passcu por junto d'elie a
mada sobre a canlura, o amor, e a fra- tia B ilbina, sobraçando um feixe de gra-
queza de Mariquinhas. vetos.
Ao acordar do pesadelo atroz d'aquella Balbina tinha ouvido quanto era bas-
noite, em vez dos sonhos innocentes em tante para comprehender que um acto
que se balouçava, Mariquinhas EÓ poude de violência tinha &ido commettido pelo
desde então ver dentro em sua alma uta feitor contra a meça, o Manuel João por
pugilato medonho entre o amor e a digni- sua vez convenceu-se de que a feiticeira
dade. estava de pc-s^e do seu segredo.
Esta venceu por fim, deixando aquelle Era d@ seus áias no sítio a descoberta
a anelar prostrado na liça. dos instrumentos de feitiçaria ©m poder
Interpretando como um acolhimento da escrava ô portanto fácil lhe fci atinar
benevolo e digno o silencio de Mariqui- com um meio que, no seu estender, frus-
nhas, Manuel João continuou ainda mais traria toda a importancia das accusaç5es
submissa e humildemente: que ella, porventura, tencionasse fazer
— O amor é mim. mesmo, sa Mariqui- contra si.
nhas ; ás vezes fica-se doudo. Quem ama Confiado na solução rasoavel que enge-
deve perdoar. nhou para a sua melindrosa situação, o
Ditas estas palavras, o feitor achegou- feitor esperou a opportunidade para pol a
se vagarosamente de Mariquinhas e cur- em obra.
vou-se para prcfanar-lhe m&is uma vez as A convalescença de Antonica adian-
faces morenas. tava-.se com felicidade e rapidez, graças
Tudo quanto a dignidade tem de mais a em tratamento de prompta effisacia, a
solemne quando uma provocação iniqua mediesçao da esperança.
vem sobrelevai-», irrompeu da fraqueza Motta Coqueiro alliava, no fino quilate
de Mariquinhas. do seu caracter, duas qualidades de todo
Pondo se de pé; com gb punhos cerra- o ponto heterogéneas, mas por isso
dos, os lábios trémulos, e a vos repas- mesmo de fácil combinação, a bonhomia
sada de ameaçadora amargura, recuou e a austeridade.
para logo avançar corajosamente sté o Foi a segunda qualidade a que recebeu
feitor. a declaração de Antonica, mas quando o
•— Escute bem, seu covarde; exclamou fazendeiro viu as consequências da sua
Mariquinhas; eu já lhe estimei muito, recusa franca e digna, o seu animo essen-
mas hoja tenho até nojo de você, seu mal- cialmente benevolo increpou-o rapida-
vado. Dsixe me passar. mente, dando-lhe a responsabilidade da
E adiantou se para passar. Foi, porém, I tentativa de Antonica.
tolhida pelo feitor, que s-gurara-lhe o O resultado foi Motta Coqueiro resol-
braço, exclamando. ver-se a contemporisarcom aquella paixão
— Perdõe, sa Mariquinhas ; eu hei de arie^te e que resolvera fazer-se impôr
me casar com você. pela própria loucura, ou respeitar-se pelo
— Nunca! exclamou a moça, que se remorso.
poude livrar; preíiro morrer; péde fazer Em uma das remis- ões da febre delira-
o que me disse; mate me. da da filha do aggregado, esta ao abrir
Manuel João ficou de pé com o ar boçal os seus grandes olhos amortecidos encon-
OU A PENA DE MORTE 65

trou o olhar com a observação eommo- — E" mentira minha, é mentira, ex-
vida de Motta Coqueiro. clamou Antonica; eu estava sem tino, o
O quarto silenciava xfqma triste pe- que eu quero é v i v e r , seu capitão,
numbra, só, destuada por um listrão im- viver 1...
palpável de luz, coado pela fresta da porta — Sim, você ha de viver para seus
semi-aberta e no qual turbilhonavam sem pais, para mim, que tenho na sua ami-
ruido innumeras partículas de pó. sade o melhor premio do pouco*bam que
N'este ponto foi fixar-se o olhar da tenho feito.
moça. Este unicoaceno amistosc ao ideal de
__ Tive ainda fôgora um sonho, disse ella Antonica, roseo colorido dò alvorada em
depois de uma demorada contemplação; céu 'borrascoso, reanimou-a, ou melhor
como alli eu vi uma grande facha de luz, ainda, resuscitou-a.
onde em vez de poeira subiam e desciam As simples phrases da benevola conso-
anjinhos. Entra elles e sobre a luz boiava larão foram o esplendido flat no vácuo do
eu como uma folha no rio. Eu tinha os existir de Antonica; decompuzeram-se e
olhos abertos, via, mas nem podia mover- transformaram-se em outras tantasestrel-
me nem fallar. Ia á mercê de um empur- las, asterismcs tranquillos, convergindo
rão invisível, mas de repente parei, meu os raios em um único fóco — a possibili-
corpo havia-se encostado sobre o peito de dade do amor.
alguém. Se este sonho se re&lisasse eu Effectuou se a cura radical da loucura
preferia morrer. pela pelarisação da luz da esperança.
— Isto foi um delírio, minha filha ; não O restabelecimento caminhou desas-
pense mais na morte, e não terá d'estes sombrado e rápido e o amcr atulhou com
sonhos. Veja se pódé acalmar-se; eu estou pétalas de flôres a sepultura já hiante
aqui ao seu lado. aos pés da desventurada amante.
— E ha de estar sempre ? Os serviços de Balbina foram definiti-
— E por que não hei de estar ? Pensa vamente dispensados e a escrava tornou
que não lhe estimo muito, muito... para os ingratos labores do eito e para o
— Como estima a toda a gente, que meio da consideração supersticiosa dos
precisa que sa lhe faça bem. seus parceiros.
— Mais do que isso, Antonica ; é a O feitor era agora inexorável e exigen-
estima que se dá a um coração, que sa- te até a insensatez. Por maior que fosse,
bemos que bate por nós. Se você morresse, a agilidade dos escravos achava-os sem-
eu nem sei o que seria de mim. pre morosos, e não raras vezes vibrava o
— Eu tinha vontade de morrer, porque chicote sobre as, costas nuas dos miserá-
sei que seu capitão ficava descansado.' veis trabalhadores.
— Quem sabe do futuro, Antonica 1 A sua attenção voltava-se peculiar-
talvez eu não sobrevivesse multo. mente para a tia Balbina, a quem alcu-
O egoísmo incandescente do amor es- nhou—a m ar r alheira.
panejou-se triumphante no coração de — Arriba 1 arriba 1 gritou elle um dia,
Antonica; revelou-o eloquentemente a á medida que estalava o chicote sobre as
ternura de seu olhar. Uma alegria infan- espaiuas da preta; não dormes de noite
til dourou a pausa que houve no dialogo, ocsupada com a feitiçaria e de dia estás
alegria de um moribundo, que voluntaria- a cahir de preguiça. Vê se ficas asseiada
mente escondia na sombra de um tumulo
com este espanador.
as mais risonhas illusões, e que de súbito
Nem um ai escapou aos grossos beiços
affasta a sombra ominosa e secte inundar-
da feiticeira, amargou calada a vingança,
sedos esplendores da ventura.
a ruminar a desforra.
66 MOTTA COQUEIRO

A' noite a preta foi de novO sorprahen- Motta Coqueiro ouviu o resmungar do
dida pela cólera do feitor, que veíu pâs- feitor ô resolveu examinar com 03 pro-
sar-lhe revista á sensala. Achou só mente prios olhos a cansa qus motivava tanto
uns registros de santos, porque o mais a azedume contra Balbina.
prevenida Balbina tinha po&to em logar O sol era ardente, o calor abrasava.
seguro. Era a hora em que o canavial inclina as
folhas como as permass de um cocar enor-
Mas nem por isso o feitor julgou-se
me; em que a cigarra chilra tanto quanto
quite com a feiticeira; na hora da revista falia um energúmeno, sem pausa, sem
matutina, conscio de que Motta Coqueiro termo ; em que a araponga branca, á se-
acredital-o-hia, Manuel João lavrou car- melhança de uncLsedueo d á espuma sobre o
regando as côres um libello contra a verde-mar do CCÃSBO, tina entre a folha-
escrava. gem do ipê vestido de novo os seus cantos
— Não se pôde aturar, disse elle, nio aguios e tristonhos*
quer trabalhar, continua com as feiti- Võam as nuvens áe tiés ô gusxãs pian-
çarias, e já me contaram que ella quer do, tonto;? de calor, o as tiribas gárrulas
que o meu amo mande-a para a casa do coçam as azas de esmerai ia entre a som-
seu senhor; porque — diz ella —• vosmecê bra rarifeita das embaúbas.
está comendo o suor alheio com o traba- Sob a copa das grandes arvores do des-
lho d'ella. campado, o chão acolchoado da folhas
— Então ainda não te desenganaste, assemelha-se a uma praia cobsría de con-
negra? bradeu o fazendeiro; eu vou chas de ouro, mas conchas sonoras, como
d&r-te o senhor e o feitiço. Fidélis 1 Pere- pequenas m&rimbis eujàs cordas dedi-
grino ! agarrem-zse aquelle demomo. lhasse o teaue sopro da'aragem. E' a
Balbina não articulou uma queixa, multidão dos canarios que ahi se abriga
nem uma desculpa, deixou-^e ficsr cem os da crueldade da camouia.
braços cruzados e a cabeça baixa, Os dois No meio da floresta ouveaa-se todos cs
escravos obedeceram e fizeram-a chegar sons conhecidos; desde o uivo s&turno
até junto de Coqueiro. da turubiaa em actividade, imitada pela
Principiou então uma destas seenas cachoeira que ao longe sa despenha na
repugnantes e iníquas; os escravos ata- grota, até o tilintar do martelie na bi-
ram os paUos de Balbina e amarraram-a gorna imitado pela araponga; desde o
péla cintura a um âoi esteios do terreiro som do cornetim toca io ao de leve, fingida
© cada um empunhou um azorrague. pela alegria curiosa dos gallos da serra,
O castigo ia ter logar com a barbari- até o gemido profundo, soluçado pelas
dade de que são sempre alvo os feiticei-
juritys.
ros, entes mal dietas e execrados pelos
homens do sertão. E' a glorificação da sombra pelo mais
harmonioso dos córos, e a mais cadencia-
Pelo braço de Mariquinhas appareceu, da das orchestras, regidos pela natureza.
porém, no terreiro a agradecida Antonica. Os escravos de eito não se abrigavam,
Ao ver Balbina em semelhante posição; porém, senão sob a copa rendada das
lavando-se em lagrimas a maça pediu que sambab&ias, e as alas de cafazeiros.
peraoassam a escrava, que tão prestativa Manejando as enxadas polidas, consoo
lhe fôra na enfermidade. sachristã:» maneja a camp,;inha na hora
O fazendeiro attendeu. da elevação da estia, cff-reoiaat aos céus,
— E' assim que se botam a perder os entre os cantos monotonos, o maior de
negros, resmungou Manuel João; mas eu todos -os sacrifícios, o grande s&crificia
hei de mostrar, , do trabalho,
OU A PENA. DE MORTE 67

O eito subia rápido e já estava em mais mulando não ter ou fido ao confuso Ma-
de meio. Lavada em suor Balbina encos- nuel João*
tou a enxada a um cafezeiro e dirigiu-se — Oh 1 lá, vocês ficam por ora ás or-
ao feitor participanào-lhe que ia beber dens do Fidélis; é com elle que têm de
agua. se entender.
Dentro de alguns minutos a cabinda Olhando, porém, para o ex-feitor Motta
estava de volta, para não dar pretexto á Coqueiro fraqueou na resolução de fazel-o
explosão da raiva de Manuel João» sahir immediatamente do sitio»
— Oh! tia, bradou elle, a agua tinha O homem, que por vezes tinha-lhe feito
espinhas ? emboscadas, cujo rancor pelo fazendeiro
— Balbina não demorou, respondeu a era extraordinário, quedava covarde-
preta; o eito ainda não andou nem o cabo mente após tão grande desfeita na mais
de uma enxada. A carreira de café que humilde posição.
Balbina limpa^ ficou sem adjutsrio, por- Tinha o chapéu de lebre sobre o cabo
que ella pediu aos seus parceiros. Bal- do rebenque e os braços cruzados sobre
bina ha de chegar com elles ao fim do este.
eito. O rosto exprimia simplesmente o vexa-
— Vamos I continue oom o seu pala*- me que o acabrunhava, mas nem de leve
vriado ; êu estou ouvindo. um indicio de cólera; parecia resignado a
cumprir a pena, que a sua imprudência
— Vosmecê perguntou, eu respondi»
havia provocado.
Manuel João incumbiu ao seu rebenque
Completamente desarmado pela attitude
a contradicta á lógica da escrava, mas
inesperada do ex-feitor, Matta Coqueiro,
ainda não tinha descarregado a segunda
querendo dissimular a própria falta de
lambada, quando foi sustado por um
energia, dirigiu-se a elle, dizendo :
grito*
— Eu preciso de trabalhadores; se quer
Motta Coqueiro tinha acompanhado á ficar, faça o que entender; mas lembro-
distancia a gente e, escondido, seguia
lhe que o sitio está a cargo do Fidélis.
todos os movimentos do feitor e àa preta
Balbina. Era a melhor evasiva encontrada de
prompto pelo explosivo, e ao mésmo
Certo de que uma injustiça era a motora
do castigo, o homem que só se inspirava tempo bondoso coração do fazendeiro.
na rectidão e que só por ella era severo, Em rápido raciocínio convencera-se de
indignou-se e fulminou na mesma hora o que Manuel João não se decidiria a sub-
culpado. metter-se á auctoridade de um escravo
sobre o qual ainda havia pouco tinha po-
— Sr. Manuel João, está desobrigado da deres descricion&rios.
feitoria do meu sitio; eu quero castigos A proposta, pensou Motta Coqueiro,
mas não vinganças. irrital-o-ha e assim evitarei que elle con-
O miserável rapaz ficou por muito tinue. Mas a baixeza da caracter do ex-
tempo estatelado sem poder pronunciar feitor excedia todos os limites imagi-
uma única syllaba. náveis.
— Mas, meu amo, observou elle por fim», — Não importa, não, meu amo; o que
eu não posso sahir hoje d'aqui; não tenho eu quero é trabalhar, ao menos até ar-
para onde ir. Se meu amo não está sa- ranjar outra ca&a»
tisfeito commigo como feitor, deíxe-me Retiraram-setombos»o fazendeiro quasi
ficar por emquanto como trabalhador. arrependido da severidade com que punira
Motta Coqueiro tinha-se voltado para o empregado e este eom o desemb&raçt
os escravos e caminhava para elles, si do homem desbiicso.
68 MOTTA COQUEIRO

Os pretos ficaram sós, mas nem por isso Triste sorte a do captivo
a actividade diminuiu nem o trabalho des- Seja filho, ou seja pai,
acalorou-se. Ai!
Um desafogo intimo substituiu a pressão
moral que os opprimia, e agora podiam E1 triste como o ribeiro
livremente medir o esforço para o obrigado Que sempre rolando vai,
labutar, sem fim na vida, como a mon- E se espedaça na grota
tanha de Sisipho. Porém das bordas não sai,
As bagas mornas de suor como que se Ail
converteram em estrophes, aladas em sons
melancólicos de monotonia pungente, ins- A tia Balbina, mais do que nenhum
piração de poetas desconhecidos, talvez outro, deixava transluzir no semblante o
martyres de igual destino, e por isso jubilo que lhe ia n'alma. Duas vezes vic-
mesmo privando a intimidade de todas toriosa elevava-se ante o ex-feitor e isto
as tristezas, desillusões, desalentos, quei- firmava cada vez mais os seus créditos'
xas e suspiros da escravidão. de invencível.
Um desses cantos era assim : A's horas do jantar, contentes como
bons amigos que se banqueteam, os infe-
Nasce a fior, rebenta o fructo, lizes riam alegremente diante das cuias,
Secca o fructo, a folha cai, e adubavam a refeição com lisonjeiras
Ai! observações.
— A tia Balbina matou dois coelhos
Mas a agua do ribeiro
de uma só paulada.
Rolando, rolando vai,
— Tem mão certa.
E se espedaça na grota,
— Quando ella diz uma cousa acon-
Porém das bordas não sai.
tece por farça.
Ai! A feiticeira recebia prasenteira as ma-
nifestações amistosas dos parceiros, pre-
Corre a enxurrada roncando conissndo a protecção dos céus para os
Grita aos rios:—transbordai! innocentes, e a sua punição para os in-
Ail justos.
A refeição ia já no fim, quando chegou
Mas a agua do ribeiro ao logar o novo feitor, o destemido Fidé-
Rolando, rolando vai. lis, typo completo do negro de fazenda,
Suspira e chora na grota, com todas as suas virtudes e defeitos; "
Porém das bordas não sai. trabalhador e intrigante, supersticioso e
Ai! vingativo.
Não tiaha-lhe favoneado a vaidade a
Some-se a lua na aurora, inopinada distincção que mereceu ao se-
No sol a estrella se esvai, nhor, odiava os brancos e sabia que, des-
Ai! tinguindo ou castigando, o senhor só tem
em vista tirar o maior proveito possível
Mas a agua do ribeiro de seu escravo.
Rolando, rolando vai; Recebeu a investidura de feitor pela
Em vão soluça na grota, mesma ràsão porque levantava-se de ma-
Porque das bordas não sai. drugada para a revista, e em seguida tra-
Ai! balhava do sol nascente ao sol posto; re-
OU A PENA. DE MORTE 69

cebeu-a porque era escravo e para este só que lhe dava occasião de vêr a mulher,
ha uma lei — obedecer. que o apaixonava.
No mais era uma creatura da tia Bal- Foi justamente esse apego a causa da
bina, que o considerava a ponto de rir se sua prompta expulsão.
para elle. Balbina não podia soffrel-o nem mesmo
Por isso mesmo a siia nomeação foi re- depois de vel-o assim decahido; a sua
cebida com enthusiasmo pela gente de presença era uma ameaça ao seu bem
roça, convencida de qúe ia melhorar de estar e ao dos seus parceiros» e além d'isso
sorte. Assim é que foram cordialmente 'ella tinha dado palavra á Carolina de
recebidas as prirceiras palavras da nova punir o seu abandono. s
auctoridade, pondo em eiercicio as suas Resolveu, portanto, perdei o da uma
funcções. Mandando recomeçar o traba- vez aos olhos de Motta Coqueiro, cousa
lho, Fidélis disse com lhanura a seus facílima agora que Fidélis era o feitor
parceiros: da casa.
— Vamos rapazes 1 é preciso mostrar Uma noite a feiticeira convidou o feitor
que não é necessário chicote para se fazer para a sua senzala e dirigiu-lhe a pa-
o serviço; o negro não é boi, que precisa lavra.
de carreiro e ferrão. — Balbina, disse ella, queria fallar ao
E os escravos voltaram alegremente aos seu parceiro que é hoje feitor.
seus cantos^ e a manejo das suas enxadas — Eu quero escutar, tia Balbina, se
operando verdadeiros prodigios de bem que vosmecê deve estar zangada
trabalho. commigo pelo que se deu n'aquelle dia
Quando á tardinha o fazendeiro, mon- de manhã no terreiro.
tado no seu alazão, revistou o serviço do
— Balbina não se zanga com o galho
dia, ficou cheio de pasmo: tinha-se feito
de maricá, cheio de espinhos, que ati-
tres vezes mais do que ordinariamente.
raram no caminho, e espetou o pé da
Emquanto de modo tão expressivo os
escravos festejavam a sahida do ex fe'tor, negra. Fidélis ia ferir Balbina como o
este amargava em silencio bem tristes galho de maricá.
decepcções. Andava como que envolvido — Bem contra a minha vontade, eu
n'uma gargalhada geral, desdobrada pelo juro por DÔUS.
céu limpido, pela aragem tranquilla, — A cobra que largou a casca, pro-
pelas arvores virentes, e o que mais lhe seguiu a feiticeira, nem por isso perde o
doía, pela própria Mariquinhas. veneno. Outras escamas novas vem lhe
Era, prrétn, uma gratuita injustiça cobrir o corpo e ella continua a seguir
feita ao caracter da moça, a quem a no- a sua vida. O senhor não despediu o
ticia da demissão do feitor, se alguma feitor para sempre e pôde trocar Manuel
cousa causou, foi dó. João por outro. O mal fica do mesmo
Corrido diante dos seus proprios olhos, feitio.
Manuel João não tinha forças para au- — Qual 1 não é assim, não, tia Balbina;
sentar-se do sitio; ligava-o ahi o casarão, o senhor está contente com o serviço.
a imagem de Mariquinhas e a própria — Tôlol o branco mula de pensar
mfamia que contra ella praticou. como a mangueira muda de folhas. O de-
Acabrunhado pala infelicidade nem ao monio anda nos olhos das filhas do aggre-
menos lembrou-se dos seus companheiros gado como o canto da coruja que adevinha
e conselheiros; não arredou pé do sitio, morte. Quem sabe se é na casa grande,
temendo talvez q U 9 i s t o lhe custasse a quem sabe se é na senzala do captivo.
perda do proprio logar de trabalhador, Fidélis é preto e o branco terá sempre
MOTTA COQUEIRO
70

má fé com elle. E" preciso ganhar a ami- é que você cumpra o trato; no caso con-
zade e o respeito âo seu senhor. trario é outra cousa.
A cabinda começou então a dar o plano O modo brusco pelo qual Francisco
infallivel de que resultaria a total derrota Benedicto respondeu ao fszenieiro, e de-
e perda de Manuel Jcão. pois o amuo com que o tratava, contra-
Era o mais simples dos planos; atacal-o riaram-o extremamente. Motta Coqueiro
pelo coração, que suspirava ardentemente percebeu que as suas relações estavam
por uma palavra de esperança, por um estremecidas e desde logo retireu-se tam-
consolo no perdão. bém do familiaridades com a familia do
Carlos se incumbiria de dizer ao ex-feitor aggregado.,
que Mariquinhas o esperava para fallar- Antonica voltou de novo á exaltação
lhe, e Fidélis trataria de sorprehender da sua insensata paixão, e já agora não
com o maior comprometimento a entre- tratava de oecuital-a. Um dia em que o
vista. Vianna veiu á sua casa, rorapeu des-
Balbina reservou-se a parte mais diffi- abridamente com elle, pondo assim a des-
cil, a de fazer com que Mariquinhas se coberto m feernfaitorias do pai, « respon-
encontrasse com Manuel João. deu rudemente a este, dizendo-lho que
Antes, porém, o feitor faria saber ao não o temia, porque teria por si a pro-
seu senhor todo o movimento da familia tecção do fazendeiro.
de Chico Benedicto, conhecido pela feiti- Arrependida de ter assim procedido, a
ceira. moça tentou em seguida remediar o mal
O plano de Balbina mereceu inteira causado, reatando a amizade entre a sua,
approvação de Fidélis, que tratou logo de familia e o fazendeiro e foi procural-o á
pôr Motta Coqueiro de sobreaviso. O fa- essa grande.
zendeiro não viu, porém, nas communi- A allueinação impedia que Antonfaa
cações do feitor mais do que a realisação pensasse na impropriedade da hora esco-
das suas suspeitas acerca das intenções lhida, e Manuel João que, louco também,
dos noivos, tão caros ao seu compadre, farejava os arredores do casarão, viu-a
e mais um motivo para insistir com sahir e seguiu-a.
elle a apressar a construcção da casa Tanto bastou para que os ciúmes vehe-
longe da em que estava agora. m entes do ex-feitor se reaecendessem nTum
Estava quasi a fíndar-se o trabalho do incêndio devastador. Então . passeu-lhe
embalsamento e brevemente Motta Co- pela razão desvairada um argumento cri-
queiro devia retirar-se. Urgia, portanto, minoso, que lhe Explicava o affastâmento
tomar todas as providencias para que o e o odío de Mariquinhas.
sitio ficasse em paz durante a sua au- Antonica tinha tratado núpcias com o
sência. vendeiro ; tinha-a visto dar ao seu com-
— Compadre, disse um dia Motta Co- panheiro as mais claras provas de affecto
queiro a Francisco Benedicto; eu vou de- na sempre lembrada noite dá Santo An-
marcar as terras em que você ha de le- tonio, tão cheia de doçuras para elle ; e
vantar a casa. não obstante o ex-feitor via a noiva do
seu amigo acobertar-se com a noite para
— A fallar verdade, compadre, respon-
entrar sosinha na casa grande.
deu o aggregado; isto não me está chei-
Quem podeha desconvencel-o de que
rando bem. Parece qu© me quer pôr fóra
igual scena não era representada pela
de sua casa,e não tem franqueza de dizer.
preferida de sua alma, causa de todos os
— E' uma desconfiança para que não dissabores que lhe entiesticiam agora a
lhe dei causa, compadre; o que eu quero existencia?
OU A PENA. DE MORTE 71

Esporeado pelo desejo de viagar-se de cedo lhe foi transmittido pelo moleque
Motta Coqueiro, o ex-feitor correu até o Carlos, veiu tiral-o da anciedade em que
se achava.
casarão, mas em vez de bater á porta
Mariquinhas convidava-o a ir imme-
quedou estatelado.
diatamente encontral-a, em quanto não
N V t e homem tão malvado quanto ap-
havia quem os visse, Ella esperava-o por
prehensivo, a covardia exceda a todos detraz das casinholas dos fundos das sen-
os defeitos moraes, que o convertiam em zala.
um ente execrando. O ex-feitor correu promptamente e
Ponderou talvez quão tremenda era a
C3m effeito ahi encontrou Mariquinhas,
odiosidade que o seu passo ia provocar e
graças a tatica da tia Balbina ; o que,
recuou diante d'elle, sam lembrar que, porém» não poude gozar foi aeffasão de
att*nta a • idéa q m fazia da visita da affectos com que o desgraçado contava,
moça á casa grande, era um perjúrio o
A cólera irrompeu-lhe erriçada e bru-
seu. silencio.
tal, e Mariquinhas seria por elle estran-
Não foi só p i r a o ex-feitor que a gulada, se um soccorro inesperado não o
visita áe Antonica teve uma interpretação impedisse.
pouco lisongeira; o próprio Motta Co-
Fidélis a p a r e c e u de súbito no momento
queiro deu-lhe uma explicação injusta.
em que espumando, como um cão hydro-
Recorda a 1o-se das informações que
acerca da familia da Francisco Benedicto phobo, Manuel João puchando pelas tran-
lhe foram ministradas por Fidélis, o fa- ças de Mariquinhas, fel-a tombar em
zendeiro viu apenas n© acto de Antonica terra.
um ardil vergonhoso para que o aggre- O preto não disse uma palavra, mas,
gado podesse continuar a residir no ca- vibrando vigorosamente o cabo do reben-
sarão. que sobre os punhos do aggressor, conte- t
>

Naturalmente sítencieso para com todos, ve-o na sanha feroz.


Motta Coqueiro foi entretanto desabrido O cobarde daitou a fugir pelo campo
para com Antonica, e sem dar credito aos do sitio.
protestos da moça, que se desfazia em VI
prantos e desculpas,concluiu por dizer-lhe: A CONSPIRAÇÃO LATENTE
— O SEU pai faz muito mal em pol-a a
serviço de &eu pouco joizo ; eu não sou o Na verdade foi alumiado por uma boa
homem que elle pensa. Pôde dizer-lhe que estrella, quanio fugia miseravelmente,
se serviu de sráns recursos. Estes são sem reagiu sequer pela palavra contra o
para o Vianna,, o Sebastião e o Manuel castigo que recebeu.
João. Arrependido estcu eu de ter consen- Uns minutos msis de demora ser-lne-
tido que e:.le viesse para as minhas terras; hiam mais desastrosos, senão de todo
bsm razãís tave o Dr. Manhães. Isto já f&taes, porquanto fôra mister haver-se
passa de escandalo e eu vou acabar de com o amo possante e justiceiro e agora
unia vez. quasi allucinado ao saber do repugnante
A visita foi pouco demorada e só alguns attentado.
minutos haviam decorrido depois que Chegando ao logar em que Mariquinha»
Manuel João assistiu a entrada de tinha sido duplamente desacatada por Ma-
Antonica, quando viu a sshir soluçando. nuel João, Motta Coqueiro, ao ver a moça
O zeloso ama* ta retirou-se então para C3m o rosto sumido entre as mãos e a so-
casa, e, sem poder, explicar o que vira, luçar inconsolavelmente, accenieu-se em
perguntava a si mesmo se não Desvaira- uma cólera tarbilhonante, indómita, as-
va n'um pesadelo. Um recado, que muito sombrosa e querendo punir o aggressor,
72 MOTTA COQUEIRO

que fugira, ordenou,com gritos freneticos, procurando uma farda para estas cos-
que lhe trouxessem o alazão. tas .
A circumstancia da hora impediu o A alegria hospitaleira do prudente ven-
prompto cumprimento da ordem; ainda deiro foi logo obrigada a retrahir-se.
o valente animal de largo folego e car- Manuel João tomara a palavra e, depois
reira tempestuosa pastava namorando de narrar todos os seus soffrimentcs e
com relinchos galanteiadores o lote que o torpezas, acabou por interessar vivamente
cercava. o vendeiro :
Em vão d'ahi a pouco aos repetidos
— Agora escute bem, seu Vianna, eu ao
upas do cavalleiro, o alazão, quasi cosido
menos tenho uma gloria, é que hei de
com a gramma, mediu á brida solta o
vingar-me d'squell9 áemonio. Daixe-me
campo do sitio e depois em rapida an-
pensar e verá. Elle me fez uma ; ha dê
dadura o caminho que ia ter á venda do
pagar-me com juros,ou não estou fallando
Vianna.
com você.
O brutal aggressor tinha podido occul-
tar-se em logar seguro e d'ahi observar O vendeiro, vivamente impressionado
sem ser visto todo o movimento dos es- com o qne acabava de ouvir, ficou medi-
cravos e de Motta Coqueiro para captu- tando por largo espaço. Tinham-se-lhe
rarem o. extinguido os bocejos,e as palpebras como
^"Entretanto Manuel João não tinha cor- que se lhe paralysaram» Temia que fosse
rido até grande distancia; achava-se a descoberta a sua familiaridade com Ma-
meio caminho da venda e d'ahi podia nuel João de quem fôra até certo ponto o
illudir todas as pesquizas. instigador.
Quando estas afrouxaram, Manuel Diversas vezes o vendeiro levantou os
João, deixando o seu escondrijo, cami- olhos e cravou-os no rosto do ex feitor,
nhou cautelosamente até o logar onde o mas, encontrando as feições decompostas
presentimento conduzira também, havia do amigo, desviou o olhar. Vis ivelmente
poucas horas, o fazendeiro. o Vianna temia emittir a sua opinião.
Como uma aranha enorme no centro de — Quer dizer-me alguma couza, seu
immensa teia, Vianna estava no meio da Vianna; falle porque eu ainda tenho ou-
vendola sentado n'um caixão e com o vidos.
tronco recostado em um sacco de milho. — Você não se zanga ?
A ociosidade zumbia-lhe em torno a — Pdde dizer para ahi.
desaflar-lhe bocejos e pairava-lhe já nas — Bailando verdade, Manuel João,
palpebras, que pestanejavam morosa-
você foi um desastrado, e a cousa póile
mente.
custar caro.
Fóra chilravam as cigarras e estalava
— Pois sim; se não fosse por is-o era
ao calor, um panno de fructos de mamo-
na estendido ao sol. por aquillo ; o diabo andava-me com sede.
— Mas se você não provocasse.
Manuel João penetrou de um salto no — Deixe passar o tempo; você não ha de
interior da taberna e antes que o vendeiro fallar mais d'este modo, pó ie ir pondo as
tivesse tido tempo de espairecer o susto, barbas de molho. Lembra-se do dia em
já o hcspede tinha entrado para uma sa- que sa Antonica ia-se affegando ?
leta que se abria scbre a sala da venda. — Tenho de cdr.
— Veiu alguém procurar me aqui ? per- — N'esse dia foi que se descobriu qual
guntou o ex-feitor.
das ti es era a que elle estimava ; beijou
— Temos novas artes, bregeiro ? quem sa Antonica á vista de todos.
ê que havia de vir procural-o ? Tu andas A testa do vendeiro enrugou-se.
OU A PENA DE MORTE 73

—Dapois, continuou Manuel João, com merar contrariedades em torno de Motta


estes olhos que a terra ha de comer eu vi Coqueiro e esbarral-o de encontro a ellas.
muitas vezes sa Antonica entrar na casa A cànôa que levara a familia para a
grande, sosinhae de noite. cidade tinha voltado e uma carta escripta
— Ora elle é como pai d'ellas; inter- pela esposa de Coqueiro, veiu collocal-o
rompeu o vendeiro profundamente des- em posição embaraçosa.
peitado ; não extranko que ella o procure, Na carta, a Sra. D. Maria, depois das
— Mandou uma negra fazer quartos a expansões peculiares a uma ausência de
sa Antonica e, quando esta peiorou, man- consorte, occupava-se com a moléstia de
dou para lá a Balbina, o estupor da fei- Carolina, nestes termos :
ticeira. — A rapariga está salva, graças aos
— Tudo isso não prova nada. cuidados do medico, mas ainda está muito
— E' verdade; mas o que prova é que abatida. Vou, porem, communicar-lhe
ha muito tempo que você pediu sa Anto- uma cousa curiosa a respeito :
nica, e o pai não ata nem desata, e ella O medico,admirado do desvello com que
mesmo não faz caso de -você. tratava-se Carolina, disse-me que ella não
Manuel João tinha tocado a chaga que o merecia, porque a doença não era na-
sangrava o fingido vendeiro. Vianna sen- tural, mas sim provocada pela escrava.
tiu-se mordido peias presas afiladas do Como era de meu dever interrogu9Í-a e
despeito, quando Antonica maltratou-o depois de muito negar, confessou por fim
positivamente, e desde então ruminava no que era verdade o que o medico revelou*
isolamento a desforra ao dasabrimento da me, e contou-me o seguinte :
moça.
Fechava~se com esta idéa e não queria « No dia em quo adoeceu, accordou-se
vêl-a transpirar ainda a costa da própria mais cedo do que devia e, para não ser
vida, pensava que ninguém tinha ainda enganada pelo somno e assim faltar a
percebido a friesa de Antonica para com- revista,resolveu-se a não^tornar a deitar-se.
sigo e por isso contemporisava. Agora Como o luar era claro como o dia, diz
porém sabia de improviso que outros ella que, para matar o tempo, sahiu e
olhos, outra perspieacia devassaram a poz-se a passeiar por perto das casas da
causa das suas meditações de vingança. fazenda. Assim foi andando até a casa do
— E o que tam você com isso ? excla- compadre.
mou o vendeiro. Cuide de si e olhe que Ahi ^tornou um violento susto porque
não lhe sobra tempo. inesperadamente estacou diante de dois
— Eu já sabia que havia de ficar sosi- vultos.
nho, atalhou Manuel João ; mas não sou Estes, percebendo a sua chegada, cor-
eu quam é o noivo da sa Antonica e por- reram e ella pouáe reconhecer Manuel
tanto não sou tambam eu quem mais João e uma das filhas do compadre, que
raiva mette ao capitão. Não tome tento lhe pareceu ser a Mariquinhas, aquella
não e eu lhe mostro. Mariquinhas, que nds tinhamos por uma
Certojlo effeito das suas palavras, Ma- santa.
nuel João retirou se da tabsrna, deixando O choque soffrido por Carolina fez-lhe
Vianna entregue ás mais assustadoras mal e quando voltou para casa sentiu já
conjecturas acerca do seu destino. os primeiros symptomas da moléstia, que
No sitio de Motta Coqueiro duas pes- quasi matou-a.
soas padeciam horrivelmente; eram An- Não querendo dar parte de doente, por-
tonica e o fazendeiro. que se envergonhava de dizer o que ti-
O accaso parecia divertir-se em agglo- nha, decidiu-se a tratar-se por si mesma,
74 MOTTA COQUEIRO

tomando um chá que lhe disseram que de Lucio e Motta Coqueiro reinava a mais
era bom. irreconciliável desavença.
O remedio, porém, longe de fazel-a me- Lucio vivia da ser votante, uma profis-
lhorar, dea em resultado o trabalho que são muito rendosa e uma posição muito
temos tido para cural-a, e o susto que respeitável na roça. Sómente é preciso
tivemos de perdel-a. saber fazer o oflâcio de votante, que tem
Vim depois a saber por uma das mu- callos bem doloridos.
camas que Manuel João era amante de O votante é o guarda-costas da aueto-
Carolina e ella confirmou m'o. ridade e da influencia do logar; deve
Avalie quanto estes factos devem ter me expôr por elles a própria vida, como es
incommodado. Eu sempre tive escrupulos antigos germanos expunham a sua pelos
das relações com a familia do compadre, seus chefes.
e agora impressiona-me extraordinaria- Quande algum individuo iacommoda
mente a lembrança das suas familiari- de qualquer forma a influencia ou a auc-
dades com essa gente. toridada, estas esmeram-se em acobertar
Ha por força um fundo de verdade na o seu resentimenèo e impellem contra o
confissão da Carolina e péssima vista fará individuo votante. — especie de cão de
a sua convivência em uma casa, que dá fila que dorme 1/KS á porta.
guarida aos caprichos dos feitores.» A díffereaçs entre os dois animaes é que
Depois destas considerações e de re- — um ataca de frente, corajosamente, na-
commend&çõss familiares, havia na carta valhando e dilacerando com os dentes
e:.te post-scriptum : amolados; — o outro assalta traiçoeira-
— O embalsamento da madeira parece mente e maneja a espingarda ou a faca,
que não terá fim tão cedo. pelas costas da victima.
Ba primeira leitura Motta Coqueiro Lucio, bavia algum tempo, tinha ser-
comprehendeu apenas que havia esperdi- vido para significar a Coqueiro o desa-
çado os seus se a ti mentos generosos, grado em que tinha incorrido para com
quando encarregou-ss espontaneamente o subdelegado de Macabú, honrado con-
de punir o que elle chamava um miserá- servador que dominava o logar, e que,
vel abuso do ex-feitor. para avigorar-lhe a dedicação, ameaçava
Também da sua memoria varreu-se a constantemente, o fiel Lucio com um es-
lembrança de M muel João, por isso que o pectro horrendo— a praça.
seu acto appareceu lhe então ante a me- O resultado obtido paio rapaz foi gsnhar
moria revestido cem as rudes mas justifi- uma inimizado, e esta demonstrava a cla-
cáveis asperesas de uma geena violenta de ramente o fazendeiro negando a Lucio e
arrufos, a todos os seus parentes passagem pelo
- Nascau-lhe, porém, uma repugnância seu sitio.
invencível para com a familia do com- A prohibição tinha sido respeitada por
padre, a quem por piedade dias antes muito tetopo, mas agora acontecia o con-
recomeçara a tratar brandamente. trario ; Lucio, a pretexto de visitar Fran-
Um incidente veiu ainda eggravar esta cisco Benedicto, fazia do sitio o seu ca-
aversão. minho.
•Visinho» ás terras 'lo sitio morava Lucio ConhecUa por Motfa Coqueiro a quebra
Ribeiro, alcunhado o capaáocio. Era um da pena qao tinha importo a Lucio,
mulatinho de vinte e dois annos, fran- e infirmado de suas relaçõ s com
zino, de modos bruscos e palavras atre- Francisco Benedicto, o fazendeiro fez
vidas. Desde longa data entre a familia d'isso um motivo para renovar, mas já
OU A PENA DE MORTE 75

em tom de intimação, o pedido ao com- tava no terreiro da casa grande ora a ler,
padre para que fizesse a sua casa. ora a fumar distrahidamente, ella collo-
— Ouça, compadre, disse elle a Fran- cava-se junto da moita que ficava ao lado
cisco Benedicto; você pensa que é por do casarão e, pelas malhas do trançado de
lhe querer mal que eu insisto em querer arbustos, contemplava-o extatica. Só a
que você faça a sua casa; e no entanto noite tirava a do seu observatorio.
quero apenas evitar questões. Ainda Uma tarde esta contemplação foi per-
hoje disseram-me que o Lucio faz ca- cebida por Motta Coqueiro, que se apiedou
minho pelo sitio e desculpa-se com visitas do desditoso affecto a que elle, por sua
á sua familia. Eu não posso prohibir que honra, não podia bafejar.
você se dê com este ou aquelle, mas não Teve sinceramente piedade de Antonica
posso con j&entir que entre pela minha e dluas vezes agitou o lenço chamando-a
casa dentro um individuo que insultou-me para junto de si.
gratuitamente. Em todo caso, quando Uma recordação prohibitiva interpõz-
voltar ao sitio, desejo achal-o mudado. se-lhe, porém, aos sentimentos compas-
Francisco Benedicto nada objectou. sivos, lembrou-se da carta de sua esposa,
O silencio de Francisco Benedicto foi e uma força invencível impeliiu-o a re-
apreciado por Motta Coqueiro a boa parte, lêla.
e o fazendeiro e atendeu que estava resol- O só contacto do papel fêl-o estremecer;
vida a grande questão da mudança. parecia ter entre mãos uma sentença
Por esse lado creu estar descançado e cruel. O presentimento tornou-lhe maior
continuou a cuidar nos seus trabalhos a avidez da leitura, que ante mão assim
para termin&l-os o mais promptamente abalava-o.
possivel e deixar o sitio que tanto encom- O,? primeiros períodos desfizeram quasi
modava-o agora. totalmente o estado moral que o abatia,
Pensava em Antonica maldizendo a fa- e Motta poule sorrir ás veladas insinua-
talidade que arraigara tão intensa paixão ções âa sua esposa. Para o fim da carta
para a qu#l nem por um fugitivo pensa- a impressão foi bem diversa e o fazendeiro
mento elle quizera contribuir, e no em- chegou a repetir alto os dois períodos.
tanto eollaborara com a esperança. « Avalie quanto estes factos devem ter
A moça vingava-se do desabrimento me incommodado. Eu sempre tive es-
com que foi tratada na ultima vez que crúpulos das relações com a familia do
tinham Miado, deixando delir a sua for- compadre, e agora impressiona-me extra-
mosura por um» consumpção rspida e ordinariamente a lembrança das suas
fatal. familiaridades com essa gente.
Como a nuvem negra que, embora car- Ha por força um fundo de verdade na
regada de aguaceiro, deslisa sem ruido confissão de Carolina e péssima vista fará
pela face do ceu, Antonica, embora aver- a sua convivência em uma casa, que dá
gada ao soffrimento, vivia seaa um ai ao guarida aos caprichos dos feitores, »
lado do eleito dos seus sonhos. A odiosidaáte de que vivia cercado em
Procurava evital-o sem affsctação, mm Macabu, as provocaçõss de que era alvo
uma só esperes* de despeito, mas, ás para que desorientassem-o áos caminhos
vezes vencida pelas necessidades do cora- da prudência e perdessem-o n'uma pre-
çao e ao mesmo tempo contida pelo orgu- cipitação; as calumnias que arrebenta-
lho do amor despregado, guardava um vam do anonymo, á semelhança de uma
meio termo que aliciava-lhe os olhos e nuvem de mosquitos de um pantano, e
sopitava-lhe o tormento. assediavam-o entre zunidos importunos
Quando á tardinha o fazendeiro se sen- e mordidela» incommodas; as ciladas
76 MOTTA COQUEIRO

que a todo o momento enredavam-lhe os dações sagradas das alegrias e saudadas


passos; o seu viver de isolamento que, . de seus filhos e além d1 elias gravavam o
averbado de misantropia, abria largo e nome da esposa, o querido nome da com-
attrahente campo ás intrigas as mais panheira de infelicidades e de venturas.
abstrusas, tudo isso borbulhou da me- Entretanto, como uma cascavel occulta
moria do fazendeiro e, escoando-se pelos sob flôres, negrejava sob a assignatura
raciocínios exaltados, alagou lhe o cora- o maldoso post-scriptum: Oembalsamento
ção de uma inundação de fel. da madeira parece que não terá fim tão
A carta cahiu-lhe com as mãos sobre cedo»
os joelhos, ao passo que o olhar se fixava Apezar da apparente despretenção da
no céu. phrase, Motta Coqueiro sorprehendeu a
A pouco e pouco, porém, as rugas da suspeita que n^ella delicadamente se en-
testa e a saliência exagerada das sobran- volvia.
celhas, que lhe davam uma apparencia de De feito, a moléstia de Antonica tinha
intratabilidade antipathica, foram esvae- occasionado uma demora no trabalho, por
cendo-se e o semblante retomou a sym- isso que era impossível exigir de Fran-
pathica seriedade, habitual. cisco Benedicto que abandonasse a filha
E' que a paz da aons ciência asferenava- gravemente enferma e se consagrasse
lhe os temores, e a ingénua confiança da aos interesses do fazendeiro. Demais o
honestidade espancava com os seus cla- proprio Motta Coqueiro não zelou taes in-
rões os phantasmas evocados pelo receio. teresses, porque maior cuidado o absorvia.
Viá-se-lhe na physionomia, mysterioso A crise moral reappareceu no espirito
livro onde a consciência nos escreve dia já abonançado do homem que se infelici-
a dia, hora a hora, a historia de nossos tava pelo bem alheio.
actos; lia-se-lhe na physionomia uma Havia pouco descsnçára na confiança
serie de interrogações e respostas, no de que ninguém de boa fé poderia julgal-o
passar repentino da serenidade para a mal, e agora via diante cie si, represen-
perturbação. tando este juizo, a pessoa por quem devia
Ninguém, salvo má vontade extrema, ser mais conhecido, a sua consorte.
poderia encontramos seus actos para com Como explioar-ibe a demora pela mo-
a fautiilia do aggregado uma nodoasiquer, léstia de Antonica ? A explicação, que era
tinha sabido repellir.a principio com bran- bastante para justificar Francisco Bene-
dura e depois virtuosa rudeza, o coração dicto, era inteiramente deearrasoada para
que lhe offerecia, e se alguma culpa tinha si e serviria apenas para aggravar as
na pertinacia do sffecto de Antonica, de- suspeitas.
via ser lançada á conta da compaixão. Assoberbado pela difíiculdade da sua
—Não ha um s<5 coração bem formado posição, Motta Coqueiro perdeu-se n um
que possa por um momento fazer-me se- pélago de soluções, as quaes repeliia logo
melhante injustiça, disse convictamente o por improcedentes e compromettedoras.
fazendeiro. A noite veiu encontral-o no mesmo logar
Os olhos abaixaram-ge-lhe de novo so- e longo tempo correu sobre elle, profa-
bre o papel, que parecia magnetisal-o, e, nando com a indifferença da aragem e do
tomando-o machinalmente, Motta Coquei- luzir das estrellas aquelle padecer injusto.
ro continuou a leitura. Havia bem perto alguém que padecia
Agora encontrava ahi um balsamo para igualmente, alguém que, pela presciencia
a ferida que d'ahi mesmo tinha partido. do amor, advinhava que o fazendeiro
As lettras ameigavam se combinando-se soflria.
em palavras de amor e caricias ; recor- Era Antonica. Postada no seu ponto le
OU A PENA DE MORTE 77

observação, ella via sempre Motta Co- — SOFF REMUITOJ TEU ESFÂTSO 1 <PLSAA 3B»
faz mal!
queiro retirar-se do terreiro logo ao oahir
da noite. Hoje, porém, o f4^«dmro pa- A voz da moça repassam ss s^
recia nem siquer aporc«b«í'sm do que phyitro irresistível de p a i x ã o z m o Bor-
havia muito que a melanaolid do crepús- dão dan-ic-se espontâneo, sem m mmos,
culo tinha dado logar ao mortiço treme- uma supplica; era o consolo a iiLtíbs^r
que o recebe&sam as ma.gnas sobrancei-
luzir das estrellas.
ras que se fee&âvam no propilo v a r a r ,
Sem saber como nem porq ue, Ari tónica
como &e nisto sa receissseau
veiu insensivelmente approximando-se do
fazendeiro, e, quando já perto d^eile, teve Também o íãas&áeirô, como se já espe-
a dolorosa certeza de que uma dôr pro- rasse a inopinada e^Dsoíação, responieu-
funda o acabrunhava e absorvia. lhe sem scbresalto,
Com os braços cruzados sobre o peito e — Sim, padeço maiio.
as palpebras fechadas, a cabeça descahida A resposta foi recolhida na tepidez de
para traz, Motta Coqueiro jazia em im- um suspiro, ao passo que a anciedaáa
mobilidade de cadaver. apressava-se em ouvir uma confissão 11-
E' fácil descobrir qual o fio dos pensa- songeira.
mentos da amante diante do homem que — E sou eu a causa ! eu que não tenho
fascinou-a. O amor leva seu egoismo a juizo 1 Meu Deus, para que me fez tão má!
attribuir-se todas as felicidades e desven- As exclamações de Antonica, se é pos-
turas do ente amado; imagina que o riso sível dizel-o, eram feitas de lagrimas
ou a lagrima só el!e tem força para pro- volatilisadas'; cunhavam-as uma implora-
vocal-os, só elle tem o condão de meta- ção suave e uma piedade indisível. E
morphosear a existencia em bulcões ou como não ser de outro modo se ella, que
luares, em abysmos trevosos ou em fir- daria, para que o fazendeiro tivesse um
mamento constellado. sorriso bom, a sua mocidade brunida pela
Uma injustiça pungente sangrava ainda formosura, os seus sonhos que ainda não
o coração de Antonica; ella, que se aban- tinham voado ao limiar dcs vinte annos;
donava somente á correnteza de uma se ella, amante apaixonada, tinha-o ante
fascinação, ao deslumbramento de uma os seus olhos... soffrendo.
paixão, tinha sido accusada como instru- As palavras da moça não for»m res-
mento ignóbil manejado por seu pai. pondidas e Motta Coqueiro en^urdecia-se
Não seria o arrependimento de tão na lethargia da dôr.
amarga injuria a causa do abatimento E eu que, ha tanto tempo, estou a
do homem que involuntariamente havia vêl-o d'alli, continuou Antonica, e que
monopolisado a tranquiliidade do seu não descobri logo que scffria. Não estava
existir ?... como nos outros dias, e eu não vim.
Tal pensamento atravessou talvez o Pensei que estava zangado commigo. Só
cerebro da moça, e, como ainda mais do fiquei certa de que seu capitão estava
que as próprias, torturavam-lhe as dôres triste, porque já tão noite e ainda está
do fazendeiro, Antonica approximou-se aqui fóra.
para levar lhe o perdão. Como quem desperta por uma sacudidela
Faltaram-lhe, porém, por muito tempo brutal, o fazendeiro levantou-se e correu
as forças ; a voz sumia-se-lhe, emquanto os olhos em torno de si, e depois para as
que os lábios eram attrahidos pela palli- mãos, em uma das quaes tinha a carta
dez da fronte do pensativo. amarrotada.
Afinal, derramando uma ternura infi- Antonica, assustada por esses movi-
nita, Antonica murmurou timidamente. mentos, ficou immovel, como se os pés se
78 MOTTA COQUEIRO

lha tivesâsín grudado aO MG, ô já fcome- alguém âppareeesse agoia, este papfei
çava a reprehender-se da nova imprttdeh- que você vê teriá toda a razão, e minha
c i á , èspérfiiiiO hífta dâS éíplosSas de mulher poderia com justiça étecusár-mé»
geniOj tãd fáêeis em Mattâ Coqueiro» — 1 que tem sua mulher e seus filhos
Mas em ve« da cansara temida* ehcsh* com a M&ha amizade? Pois que me
trdu a bêíievòlôíi&iãj e se as ffiãosj sè 09 matetâ.
gastos hão se avelludaram em affag^ss* a — Louquinha, faz-me pena»
voz transudou uma dompaikã& grata 0 — {'aòienciai mas é assim j í ^ a t e m ^ e
amiga. Sáqui2érem,mas hei de estimai o sempm
— Yôòê fâsí-me pénâí diise Motta Co- O silèáfeiô permeiou a tristeza â'esse&
queiro | não eohhècà a Vidã$ é Yâi até 0 dois cêra|õôs.
precipicio, querendo ãi-i-afetai* cômsigtf Passado algum tempo5 Motta Coquèird}
aquelles a quem tístMa*. Déifca-ffiè em corâo se hoUvessê encontrado uma solu-
jtôzi Mtôíiisá. Mâgti§m melhor £ue ção decisiva para a Sua situação^ pegou
eu |dâe avaliar o seu séffrimeatoj mas da mão dè Antonica e pefgdiitou-lhe com
tealld dêceâsidâde dê sé? cMel. O Con- voz commovida.
trario era a minha deshonra, 0 déâaso- ^ Eátão efetima^me muito^ Antòhitía.
eegò dê tòda a íâihhâ Vidà ê A Sik des- A mú^a respondei! movendo afíitma-
g r a ^ j Ahtoâidâ; Haja vseê âgaria satis» tivamsfité a eabi^ât
feita cêta as tíiiáhas CaíMâs j — E é é&p&É tazer tudo qua&to m
aáâtíiiiã, qtiãnâò òs sétiã $mis líié lhê pegtk
sém as gôftaãí qhâhde m m apshta^èíi^a — BiM, rê§^biiaêti aiê^eméãté â&tô4
éhtrè mofas e èsêarfieô⧠teria de ãm&l- nica.
diçoar-rile; Neffi Vdêê iiáagiâa qti&hta »1-
— i ' o maior saerifieio da tiia vidâ,
gumâs palavras qda lhê télhò dito* éfcã*
màs àêrá tua tràhquillidàaê mMs tãMê*
tam-me em áríepéndiMêntos Jtdgd-mê
e o socego dos meus. £ramette faèer-me ?
cfimiúôSô áhtè Ôã ffietis filhos ê ffiiiiha ^ Digâi digá já-.
mtílhéf, es èntrétâxlta ã miôhâ m i m á pfer Eil jtiío que htíi de velar pôr fci*
si haO é sehão â dê ttiftf âi. TéfihÔ dd dê út éòihb ãô fbsfeô SèU gaij mas Vôcô ha dê
Mas, meu Deus. d e s g i ^ â ê a íni- fazêfr à vontade ã sttâ fáfnilia, ácôôitando
íiiia qtiê hãtí pòssô nem esstàr àd pê de O bâsâmêhtò cbffl O Viahha.
vôsmèõê um iúfetàtitêj sèfn quê tògd mê — Ah 1 mètt Dêtiô 4, iato é âô Mais»
mande embora; seu cá|)ltld pÓdê fícii? Emc[hafitÔ Múttâ Coqueiro àáãim dedi-
Horas. inteiras a Olhar pára um fcâpei e
davâ-Sê ab zelo |>elft vépúmçU dê Anta'
fite põdô tóê Véi* nêífl hm ínsímtiúM.
•Màú e p i a tíahquillidâdâ do Jâr» trè»
Busêafidé éóMmotef, a moça MO fi?'
hòtoéris t r a t à t a k da miáar sôm raidô 0
mais do que âvitar âindâ mais na meatê
edifício de paz que elle tentava côfiStruiP
de Goquéiftí a íespofisabilidadô que lhô
êm ròda de sii
cabia fia átiéáâ quê se páfesata.
tím jurafâénto de muttm defôía Viíieti-
o papéi píèfôriíiô era a earta êm que
lâva a reciproca dedicação colligâhd0-lhè8
estava gravada a suspeita da sonâMê dtS
m esfói^cs. Eãsês homêns mm. Mishuel
fazéadêírOi e íémbral-o importava justi-
João, Sebastião Baptista Ott melhor SB*
fidar a delicada fepféhéhsla qiiê ho p á p l
bfestião í3tííéira--app6ÍÍiao què 0 Violeiro
oocúltata.
hérdoú a hm SéU ahtigb amo; e 0 Viann»»
— Não devo cOtíSèfitir, èij&tiritiôu O fa-
o mais conhecido dos véhdèitos d& visi»
zendeiro, porque tenho familia* pôíqué
nhança.
téáhS digaidadéi Basta já âe tíOmpFóffle-
O e i fôitòr dó Sitio de Mâtfàbtt, o fcóvárde
timehtOS; é & sua d iflifíhft freídigSò. Bõ
Mahtièl ú mMé ôonspii^v&m
OU A PENA DE MORTE 79

uifla causa rasoavei; tihMâl lévâid &ití- Áê íágrifcal déatífíêiârâm-líiê © êoff f iíhM-
famia â caga do sgg^egâdõ ê téffiiéUl ã to que ptdr ihuitd têmptf áe íófeíliítfa ââ
punição d'ès.gé Atito, ptmiçl© qtíe élléá iMà» á éeffiéihâú^à dê iitfi beãótiío
gioavam tremenda, porque éspê£aVaifi-& fiôgrd no ôatlicô de tifriâ a#&sáà.
fttltfcinâdã ^ Motta COqtieiíO. A p ô í l M grôlSas ê tardââ ligriffiáê êrârfí
A sittíaçlo do f i&léifO ãggfíWatfâ-âe ás a èèriè dêsâoíâdá dá^ âídêfítêfe illusõôs dé
férffia qdé tfcta qtialquôr páítè <|tié èllê Ohf^OrM, tiòjé M6§ câdâferèá j êomãffi
olhasse não déáeèrtihâfã é. Síriadaè ^élô Sàtígtté de tiffi cõrâçáo úieè-
perigos. • - cerado; impunham respêito, ê tésteMtt-
Bui Uffiá dás éfitíefistâã êOttt CM^iiiina fiháfâffitâ êifiééHdadê áòf de quém as
O ânimo âestémidô âú viéMrO hí*VÍ& éii- chorava.
fráquscido e baquéiádo MâémOi Selbãístiâíí fôi õâím|fâ§sifõ Mõ èiitíôfítro
S&staâd@4$fò intãmpastitaáiénté as dâ tdfttifâ qtlé tâtittí âíquèfcfávã á ffiO^á.
pansões, cort&ndó-llé de• HáS gêlpè & fiS Conchegou amOrOsââSéiité aô sêu ô tídn-
dos galanteios" seductores, A í&éç& féí* cO dMittâgfèSiáõ dê Ôíiipiãhá, é áêitdu-
gunWti-líiQ Bm dia: im & éâbèffà sõftfê 6 âéd hétffiWd;
— Yoeê pensá qfie ê Mtíité feltó ? — "Vejâm êdistO, dilêé èílê têtflâiííêâté;
Sebastião riu se com a bóa tdhtádé dé éâíâ aíílicta âisiM é nió nieí diàse M á â .
quem tem p&r hdriáòiSté $ £ò&& dá§is- Diga ,quem é a causa de seu chorô | êtí Az-
sembraáo dé utíiá áffôiçãd qtíé ãédá,< géiSI IM álguMâ éotíâa t àlgúéM ihé óffèiSdêti t
pedir, coasb retri&uiçltf máM do que fim* ¥tôrmpãã9 éÊi SOÍufôi « f i g t í ê t t ô ^
hora de ts©mftttufofip,ê áíg&iiiaâ défldéS» qtiô eht íécOítáfárà-ihé m {raíàVrâá, Chi-
cefídenciâs ãMgãs. quinha arrancou do intimo de êíiâ álíríá
•r* Bia péfgúntft eg-tá* GMfitiáíiAy tíéte grito déèOladôj qtie íhé máltràtâVâ O
pondeu Sebastião; âetttí erti teíihd íaZãd cúfãÇiòj eôíâo se ffié titíiá Mlèt éntffc
para yiêttmt? de èxftra aBsÈneirâ. vaáâ.
O semblante -jEttetOfilo dé dfiiqfitóM ^ Mú ê isto ; ê tiiÉsi dmgMÇãdã ; h é
in«ffídtítt-sé dát tfifctezâ eotnndoVetíté à é já cfoiâ mesieá taívéz quê m êótf fhãi.
desesperação représâ. Era íiiátef eMrar A dôr dé ÕM^uiàíid í^pêiChtití intéiiSá
&m u&a revelação dkfte?éââr <pe gertaf- tíó tíôrd0Q do ttóleiío ' éía a e^fl^ão fòl-
baria nsíessártasacíeiSté' a fefóci-áâdé. alar* caõiôà qtíé, aO pàsssõ quê ésbfâséiâ a ói-à-
deadss âlácfétfíeâté plOifeU ãí&afité, téfáj tíõbfe o éspsíço dê fujEâO,- olátf ééá e
A delicadesa do áfi&tOr pe<!iÉ-Íhe qtie Sé vOMit^â Vê^âlélhésé fâz eàfò&áétíèf todd
calaÊse^OíjÈíelmdíe d® pu^Oí acOvardaVa-a, úêólú m ãmeâéfi,
mas o perigo da suâ poáiçio dé iHfiâ-fâ* rnpêisf dê ttmà l&ngá pâtisà, qtíe péáOti
tiailia exigia que elía fiasse o áacíiáeio e QÔIMÔ itmâ b a f t â dé férrô sôbré <x ôi&p
desvendasse aos olhos» de Sebastião o ftí- ção da moça, Sebastião &m úê olfio^bâi-
turo que a esperara. xos e á voz afinada na entoação da àh-
— Você vive feliz, hão é verdade ? ge- gtistiá.
meu a voz dá íhoçiíSpois eu vivo bem — Só há uni tmeâíOi m n f m i ó H ; íú*
triâté. gimôs.
— Ora mst agora, M Chiquiíihá; ê — Fíigif, maá túêa p i , méu irmão hão
quem foi que matott ás guâs pitem í de peréegtííMíôS; á â s VOeÔ ptôtíiêtm
Esta nova resposta éè gaftastiSõ ôOii- câsatr^e é&mmígò. Md queí-O fugií, nãd
vencia á Wtiç* ã&qteUmn devo.
longe estavá do pensamento ã® se&amâttté O violei fd estâva dé /eito? cotômovido,
aquilatar st extensão da desgraça que ea- & nlo érâ coítí 0 fim de fuítaí-sé á réã-
haumdhe a pouco e pouco ai esisttfnclafc ponsábilidade c(aé fírepuzeíA o álvitté X
80 MOTTA COQUEIRO

Chiquinha; era o meio mais expedito amigo, o Vianna gritava á porta o fami-
para sabtrahil a ás iras da familia. liar— olé âe casa 1 e entregava ao critério
— Você disse muito bem, sá Chiquinha, do protector e guia ccmmum as suas ma-
ó uma desgraça, soluçou o violeiro. O que guas e sustos.
não vai ser de nós ; esse maldito capitão, O violeiro ouviu cam o maior sangue
seu pai; é uma desgraça, e o único re- frio a exposição dos acontecimentos que
medio ó este, fugir, Mais tarde eu reme- se atropeliavam a favor áos tres con-
diarei o mal, juro. Prometta-me que sa- jurados, respondendo apenas á saciedade
hirá d'esta casa. do Vianna com um frequente—continue.
— E' o que quizer, respondeu Chiqui- Quando Vianna concluiu a narração a
nha; eu já não sai o qua faço. afflictissxmo começou a dar aos -diabos o
Desde então os amantes esperavam só- pensamento de possuir Antonica, o vio-
mente a opport unida de para levar a effeito leiro desatou n'uma gargalhada estri-
o expediente desesperado. dente e franca e exclamou com uma.
O violeiro, certo da gravidade do passo alegria feroz.
que ia dar, julgou-se desde logo irreme- — Então o Thebas está pelo beiço pela
diavelmente perdido aos olhos de Motta Antonica ! E' verdade mesmo, o diabo não
Coqueiro e ateve se resignado-se ao seu abandona os seus.
infortúnio. Não era isto o que os dois interessados
N'este estado de espirito foram encon- esperavam ouvir de Sebastião; a calma
tral-o no dia em que Manuel João tinha do violeiro percudiu-lhes a derradeira
sido forçado peias circumstancias a dei- esperança e ambos bradaram furiosos:
xar o sitio. — Com os diabos I você está sempre a
Sebastião era a cabeça que dirigia to- vêr motivo para risadas, mesmo quando
dos os planos astuciosos do triunvirato. o caso não é para isto.
De improviso elle achava os meios para — Pois o que é que vocês querem, con-
obviarem-se dificuldades consideradas tinuou Sebastião, que não parava de rir-se;
insuperáveis, e além d'jsso integrava com estou com o melro seguro. "Vocês vão ver.
a coragem temeraria a covàrdia dos seus Apó3 a expansão estrondosa, que sobre-
companheiros. Era o Tyrteu no meio maneira desnorteava os dois timoratos
d'aquelles dois lacedemonios ir resolutos. conjurados; Sebastião, assumindo um ar
Manuel João procurou o seu valioso grave,poz-se a pasaeiar de um para o outro
amigo sómente na qualidade de hospede, lado da sala desornada.
porquanto não tinha outra pessoa a quem Durou ptiuco a meditação. Acercando-se
recorresse. Também limitou-se a narrar de Vianna disse o violeiro seriamente :
- o que se passava com elle, deixando á — Isto de amisade do mais arranjado
margem as relações do fazendeiro com com o pobre ó sempre uma boa pulha.
Antonica. Diga portanto cá, seu Vianna ; você quer
Vingava-se d'esta sorte do vendeiro que, gastar alguma cousa ou não quer ?
em vez de consolal-o na sua desventura, — Assim como vão as cousas, respon-
achara azada cccasião para censural-ò. deu o vendeiro, ha de ir tudo pelos ares.
Certo de que o Vianna nada resolveria Estou prompto para a despeza.
por si só, encobrir a Sebastião o que — Pois dê-me de cinco a dez mil réis, e
dizia respeito ao vendeiro importava tor- deixe rolar o dado por minha conta. Vá
tural-o ao menos por alguns dias. ; para a sua bodega sem medo, porque sé o
Mas infelizmente para o ex-feitor o seu individuo não lhe mandar tirar a vida
calculo foi de relance burlado; duas horas pelos escravos, ha de pagar-nos com lín-
depois da sua chegada á choupana do gua de palmo.
OU A PENA DE MORTE 81

— Mas o que é que você vai fazer ? Branco, elle não desdenhava sentar-se á
homem. mesa com os genuinos da raça africana,
nem com os filhos do seu cruzamento;
— Isto é segredo, esaorrupiche o cobre,
fazia este sacrifício a bem de seu negocio.
que ê o que; serve. Também era elle quem apresentava no
Satisfeita, não sem escrupulos e pezar, mercado campista o melhor peixe sal-
a exigencia de Sebastião, o vendeiro tor- preso da Lagoa Feia, e a melhor gara-
nou para a sua vendola, cujas portas teve poca das mattas de Macabú. Trabalha-
a precaução de especar solida e cuidado- vam-lhe a rasto de barato.
samente. Activo, diligente, intrigante, tudo a bem
No dia seguinte pela manhã, o violeiro, do negocio, estava sempre trabalhando,
esgsnchado sobre a ossada do — Suspiro, porque dizia elle—a familia vai crescendo,
ao qual o micuim convertera o couro em é preciso aguentai-a. o
um archipelago, marchava para a casa de Devotado de alma ao subdelegado, a
Lucio Ribeiro. quem chamava— o meu homem—só havia
Depois doscumprimentosao capaãocio, uma âffeição que lhé era mais cara—
o recem-chegado, arranjando uma entoa-
qualquer transacção commercial por me-
ção de gracejo, perguntou-lhe de súbito:
nor que fosse; a esta consagrava se em
—Então como vai de amizade com o
alma e corpo.
tútú cá da terra, o grande capitão ?
Quem fosse a Lycerio e lhe acenasse
—Mudemos de conversa, respondeu Lu-
com uma ntta do thesouro ou do banco,
cio ; aquillo é bise asinha que nunes me
podia descançar, que, se ella chegasse
passou da garganta.
—Isto é fumaça, seu Lucio ; se o ho- para o preço, estava servido.
mem ficar com o governo, você ha de Tal modo de pensar congraçava em
mudar. torno do negociante rabula uma clientella
—Veremos ; mas alli fica a serra dos immensa e devotada.
Olhos d'Agua e a minha espingarda não A sua casa de negocio, sortida de todos
•nega fogo. os generos, desde o medicamento até a
— E se alguém mostrasse um meio de carne de xarque, desde a ferragem até
livral-o do bicho, você tinha coragem ? as finas cassas, adaptava-se ao verso e *
— Experimente , respondeu resoluta- reverso da vida humana : era para a
mente o capadocio. saúde e para a enfermidade.
—Se tens coragem, meu velho, põe os Alli reunia-se a guapa rapasia do
arreios ao teu panga e vamos ao Lycerio. logar, os galhardos dançadores do' fado,
Tu és também da autoridade e o Lycerio amantes do murro, das brigas de gallo e
é unha e cama do subdelegado. apostas de natação, e o emporio, graças
Dentro em alguns momentos os dois a este ajuntamento diário, assemelhava-
trigueiros pernosticos marchavam em di- se a uma officina de toques e cantilenas.
re
cção á casa do amigo do subdelegado. Lycerio animava a freguezia, e demo-
Joaquim Lycerio, conhecido pelo al- rava com aneedotas e intrigas aquelles
cunha cigano, tinha grande influencia na que se queriam afiastar; a causa era o
localidade, peia sua dupla posição de ne- borrador, o seu caro borrador.
gociante e chicaneiro. Taes eram homem e casa procurados
Os moradores do sertão confiavam-lhe pelo violeiro para desfechar o «golpe em'
todas as suas causas e embora as perdes- Motta Coqueiro. .
sem, diziam convictos a seu respeito : Recebido pela amabilidade de Lycerio,
— Aquilio ó que é um homem para pen- o violeiro cortou as 'expansões do nego-
dências. ciante, bradando;
0
82
MOTTA COQUEIRO

— Êta l i , meu branco; eu não vim para costura ou em qualquer outra cousa em
á prosa, mas para serviço ; aqui está uma que a senhora tenha de mexer.
de cinco e eatre ps,r, o eseriptorio. — Qu^l o que, seu Manuel J /ão, eu en-
— È' requerimento, seu diabo, já sei; trego mesmo na mão da senhora; é mais
alguma citação para conciliar ; eu tem- certo.
pero a cousà. — E* verdade, mas como o amo anda.
— Qual reiuerimattto, interrompeu Lu- zangado com migo pôde se aborrecer com
cio ; é uma carta de recomméndação pára você por levar uma carta minha á se-
o bom capitão, o nosso amigo Çtqueiro. nhora, e a final você vem a soffrer.
— Caspite ! exclamou Lycerio, que per- .0 moleque, lembrando-se da ameaça do
cebia o sentido dss palavras de Lucio, e seu senhor na noite da primeira entrevista
a quem é que se vai recommendar & joíâ í de Antonita, aceitou plenamente a obser-
—• A' pessoa que ha de gostar muito da vação, e concordou com o expediente
festa ; porque o bicho deu em .passari- mo»trado pelo'ex-feitor para que a carta
nhem) cU pois dos quarenta ; quero fe- chegasse so seu destino.
commendal-o a quem se interessa por Estava desfechado o primeiro golpe,
esta nova. cuja profun Jidide o tempo e os aconteci-
Rindo muito amistosamente, os tres in- mentos incumbirarn-te de mostrar.
terlocutores, depois de uma libação a um5 A opportuaidade para o segundo não
copo de vinho, entraram para o escripto- tardou a apresentar-se.
rio de Lycerio. Ofendido peia intimação de Motta Co-
VII queiro, o aggregado tratou de angariar
i elementos para a construcção da casa r e
AS INTRIGAS
alguns dias depois, graças a emprestimos
De volta <?a casa ds Lycerio, o violeiro" de dinheiro por p.rte do subdelegado e
congregou os seus companheiros parai dos serviços cfferecid^s por Lucio, o ins-
effectuar a distribuição dos papeis, qué pector André, Sebastião e Vianna, come-
não tardaram muito a ser desempenhai os; çaram-se a fincar os esteios.
As operações deviam começar com á Lisonjeado pelo acolhimento que rece-
partida de Motta C cqueiro ps ra Campes é beu dos seus visinhos, F r a n c i s c o Bene-
esta effectuou-se alguns dias depois, pelà dicto convenoeu-sa logo, o que era fácil
influencia dolorosa que teve no espirito ao seu caracter, eátar invulnerável diante
do fazendeiro a cai ta de sua esposa, do seu compadre, fossem quaesquer os
N» véspera da partida, protegido pelá abusos que para contrarial-o praticasse.
08rteza que todas as pessoas do sitio nu- Assim, contra a vontade do feitor, e
triam de que elle não ousaria approximar- zombando até das ameaças d'e«te, lançou
S3 do seu ex-amó, Manuel João conseguiu mão de bois do sitio para carregar a ma-
f iliar a Carles. deira que tinha necessidade e provia-se
Vinha pedir-lhe uma coisa muito sim> dos cereaes de que precisava nas roças
pies: ser poitador de uma carta para á do seu compadre.
Sra. D. Maria. Essas represalias continuadas punham
Um generoso porte espiou iramedial- patente a mudança de F r a n c i s c o Benedicto
tamente a boa vontade de Carlos que, no modo de pensar a lespaito do seu pro-
não obstante, tev& medo da empreza por tector, e pela sua gravidade mesma não
uma circumstancia que lhe foi addicio- podiam passar desapercebidas aos olhos
nada... do violeiro.
— V ocê leva a carta } disse Manuel João, O vendeiro foi logo posto em campo
e lá um dia deixa-a ficar na cestinha da para extremar de uma vez esta ^situação.
OU A PENA DE MORTE 83

Já a nova essa, como um grande es^ Á moça, que estava cosendo a um esnto
queleto, erguia-se completa no seu madei- da sala, interveiu dissimuladamente na
ramento. At» lad o à^ella aval t ova ca gran conversa.
des pilhas da sapâ, que era,m destinadas — MÍSS eu não tenho vontade de ca-
a c u b r i r e m a Cumieira; e junto das pi- zar-me, papai; estou muito creança ainda.
lhas, em- enormes buracos, revolviam-sô — Cra vá d'ahi, atalhou bruscamente
as enxadas amassando o barro para su- Francisco Benedicto ; quem sabe se você
pgpar ss paredes. deve ou não deve casar sou e u ; pôde
O vendeiro, que tinha contribuído assaz metter a viola no saçco.
para a rapida promptfficação da casa, O que passou no coração de Antonica.
travou conversa com Francisco Benedic-' é ifâdiscriptivel, mas, a julgar pelo Seu
to a respeito do casamento. semblante, o golpe foi tremendo. Ella nada
— Então, seu Chico, é d^sia ou áa outra respondeu, mas o seu olhar fulminou,
que ha de s ahir o casamento. com a indignação e o despreso, o pertur-
— A sahir, seu Vianna, ha de ser bado vendeiro.
d'aqui, com o favor de D^us. Aquellâ Convencido de que Antonica submetter-
amaldiçoada , casa não me vê mais dentro se-hia á vontade de seu pai, Vianna es-
de oito dias, merava se em multiplicar obséquios ao
— Está-lfee esm muita gana hoje, mas aggregado, todos os dias de manhã vinha
já gostou bem d'ella. en^ontrar-sa com elle no casarão e d'ahi
— O» passado, passado. Hoje até me acompanhava-o á casa nova, onde não se
parece que ;.se o casamento sahisse de lá poupava no trabalho do embarréamento.
vocês haviam de ser infelizes, tem-me Era chegado o dia em que se devia dar
acontecido alli o diabo; estou com os ca- a ultima de mão á obra ; faltava apenas
belios brancos. embarrear algumas paredes interiores e
assentar as portas e janellas, que não
— Na verdade deu-lhe agua pela barba. eram muitas.
— Aíoecêu-me a Antonica proseguitt Todos os amigos de Francisco Benedicto
Francisco Banèdicto, que desde a queda apresentaram se logo de manhãsinha
no rio nunca mais teve saúde ; Chiquinha para, em companhia da familia d'este,
está que parece opllada,e se ella já tivesse
festejar o final da construcvão.
ido á igreja bem se podia dizer ao marido
Em ra acho festivo partiram para a nova
que era tempo da tratar das toucas de lã;
casa, acompanhados pelo aggregado, sua
a minha Mariquinhas, que era d'antes
mulher, o Juca e Mariquinhas. No casa-
um gaturamo, que passava os dias can-
rão ficaram Antonica e Chiquinha, cujo
tando, an la-me agora com uma cara de
estado de saúde impedia-as de caminha-
poucos amigos, bisonha e aborrecida.
rem através do campo, das picadas dos
— Mas então posso contar com o sim
capoeii ões ainda orvalhados.
da sua parte, seu Chico ? perguntou
Pouco tempo depois da partida do ran-
Vianna.
cho, chegou ao casarão, silencioso, o ven-
— Palavra de hoara 1 e vai vêr corno deiro que trazia as mãos carregadas de
isto se decide hoje, respondeu o aggre- garrafas e o coração cheio de alegria.
gado.
Antonica véiu recebel-o á porta e noti-
A' noite voltaram para o casarão é ciou lhe seecamente a partida da familia.
Francisco Benedicto, chamando sua mu- Contrariado pala friesa da recepção,
lher, dúse-lhe que tratasse de vêr o que Vianna apressou-se em despedir-se. Quan-
se havia de fazer para os enxovaes de do já se havia affastado alguns passos do
Antonica. casarão, Antonica fèl-o parar e aproxi
84
MOTTA COQUEIRO

mou-se d'elle, dissimulando o Sflio que Pensa que eu não lhe estimo ? E máu
lho gerara a persistência do vendeiro no pensar; não lhe estimaria mais uma
desejo de recebei a comò esposa. irmã. Pois se vosmecê foi sempre bom
— Ohl seu Vianna, exclamou ella, para mim e a prova é gostar ainda
vosmecê está se enganando por seu gosto, de uma pessoa que já lhe maltratou. Mas
ouvindo o que papai lhe diz. Eu não escute, eu juro-lhe por Deus que nos está
quero esse casamento; e não se deve ouvindo, se eu pudesse... mas não está
obrigar ninguém para esse fim. em mim, ê um feitiço; tenha dó, vosmecê
— Isto é criançada que ha de acabar teve mãi e pai, pelo amor que lhes teve
com o tempo, sa Antonica; respondeu me perdôe. E' que eu nunca viveria con-
Vianna dando ás suas palavras uma pun tente.
gente entoação de mofa.—Quer saber, eu Estavam claramente provadas as affir-
apanhei outro dia uma jurity no ninho; mações de Manuel João; o vendeiro ouviu
íevei-a para casa, e prendia-a n'um vi- no soluçar da supp!ica de Antanica a reve-
veiro. Que bonito passaro ê a jurity, não lação de um amor profundo, arraigado,
é ? Pois esteve bravo e quasi morreu, mortífero.
tanto bateu com a cabeça nas taboas do Não era igual a esta a affeição que elle
viveiro. Hoje está mansinho como um votava á moça; era uma cousa que im-
cordeiro e macio como um velludo. As pressionava ás vezes, mas que nunca lhe „
mulheres todas fazem como as juritys; ensombrara a razão ssq jer um momento;
amansam-se. Bom dia, sá Antonica nunca lhe arrancara lagrimas e soluços;
A dôr de tamanho escarneo encheu de nunca lhe diminuíra ao menos o apetite.
desanimo a debilitada Antonica, A's conti- Molestou-o, ê verdade, o mau trato que
nuas vigilies pranteiadas, que eram o seu recebeu da sua noiva, mas do mesmo
viver desde que ouviu a seu pai a senten- modo que o melestava a firmeza de um
ça que tanto lhe torturava o coração, a freguez quando, para não chegar ao preço,
moça debatia-se em meio das mais atro- ia fazer negocio em outra ven<ta. Demais
zes angustias. elle não pensou nunca em triumphar
De um lado flagellava-lhe o seu amor senão em virtude da sua posição de nego-
prudentemente regeitado, de outro a im- ciante e credor do pai de Antonica. O seu
posição cruel feita á toda a sua vida. Do casamento foi sempre, no seu entender,
meio d'esse flagello elevava-se-lhe o espi- um problema que, mais do que o coração,
rito para logo desmaiar em acerbas in- a gaveta do seu balcão podia render.
consequencias Ao dar de face Com esse mundo de ago-
Já não sabia resolver-se, boiava á mer- nias plangentes, a sua innata grosseria, a
cê de esperanças, & feição de illusoes ca- sua alma semelhante ás prateleiras da sua
ducas. Imaginara muitas vezes que as vendola, pouso e attracção do mosqueiro,
suas lagrimas teriam forças para conven- a sua falta de sensibilidade emfim só en-
cer o vendeiro de que elle só conseguiria controu uma pergunta bestial, e uma
fazer a sua infelicidade, e então deleitava condicção miserável.
em sonhar a piedade d W e homem com- — E' a quem é então que sa Antonica
movendo-se diante da sua sinceridade, estima? Se me disser o nome talvez eu
e salvando a de um martyrio sem fim. ceda.
Assim, pois, em vez de romper como O pudor da moça cobriu com um veu
era de esperar do seu génio fogoso, Anto- roseo o nome pedido, e o seu olhar in-
nica apenas desculpou-se e supplicou. fiammado, convergindo para o collo, para
— Nem sempre as juritys se amansam, esse espesso involucro do coração, fazia
á3 vezes as coitadas morrem de desespero. pensar na espada de fogo do archanjo
OU A PENA DE MORTE 85

julga deshonrada a mulher com quem


velando ãs portas do Eden. M ® » P»- quer ca£ar, malvado.
S S e r a o c o r a d o de Antonica habitado
Apezar da provocação, em vez da la-
««la
P
imagem do fazendeiro, mina polida o violeiro desfechou sobre a
ò p X > silencio da infeliz dea aio a
moça uma gargalhada, tres vezes peior
UI!
— EntSífnsítèmõs nada feito; ria des- do que o golpe.
d e n h o s a m e n t e 0 vendeiro. Afinal nSo v a . e —• Dascance, Sra. d o n a . . . . não ha de
ap»a W mysterio d-a<,uUlo que todo perder a sua vez ; por ora é ceio; mas
não ficará para semente.
o mundo sabe.
„ Qaem? interrogou!Antonica, é um A crueldade dos desdens de Vianna
segredo só meu, e por isso mesmo deve- esntiveram a desgraça ia moça. Ao passo
se ter dó. . que o insaltador, despeitado, aff a stava-se"
Sim, eu tenho dó de seu .pai, que ella quedava perplexa, não adiantava.
vive enganado e deshonrado pélò mal- Havia de feito entre elles um grande
vado do capitão. _ \
charco de lôlo; — era o caracter do ven
— E' fklso; é uma calumaia. Eu 3a deiro.
não lhe paço nada. Faça o que quizer. A sua phothographia perfeita foi feita
Digo-lhe só isto : não hei de dobrar me n'uma phrase de Antonica relembrando o
á vontade de meu pai; não hei de ir atu- insulto que foi vibrado por Vianna, quando
rar as suas maldades, seu malvado; só lastimou a deshonra paterna pelo capitão.
se Quizer c?sar com uma defunta. Era o requinta da hypoerisia fundabu-
Vianna pez se a rir desaforadamente, lando com a mais negra das torpezas.
e a sácudir o corpo com um movimento Depois da longa quietação, semelhante-
convulso; depois parou de chofre e per- mente ao que sacode um pesadelo, e por-
guntou, entre uma gargalhada. que ainda ante os olhos vê as larvas tru-
— Fica 10e >mo aqui no casarão, ou o culentas que o affiigiam, foge ao logar
capitão manda fazer casa nova ? em que dormia e não se liberta da
A vehemen-ia do insulto occasionou impressão desagradável senão ao ouvir
um verdadeiro accesso de loucura na hu- uma voz humana; Antonica, ao recupe-
milhada Antonica. Com uoaa temeridade rar a calma após a lucta violenta com
inaudita, a sua mão pequena agitou-se o vendeiro, correu até o quarto em
no ar e, certeira, inesperadamente espal- que, suspirando á vergonha, e carpindo
mou-se na face do vendeiro, o seu erro, Chiquinha madornava a pros-
— A larga faca polida, a companheira tração moral que a extenuava.
inseparavel dos roceiros, luziu vibrada ° A h i , como a criança amedrontada,
pela mão possante do vendeiro; que vo- subiu apressada ao leito e conchegou a
mitou colérico uma pungente injuii*. cabeça afogueiada ao collo de Chiquinha.
Antonica immovei, braços erusadoa so- Às"lagrimas' deseíicadeiaram-se-lhe, e,
bre o collo offaganta, o olhar vivaz e com ellas, um soluçar nervoso.
percuciente, esperou impassivel o desfe- A enferma soffria assaz para saber com.
char do g*olpe sem pôr dique á sua cólera prehender as dôres alheias, porque des-
indomável. graçadamente é preciso a dôr para aferir
— Podes mat?r-me, seu miserável; a dôr.
antes o casarão do que a casa de um co- Com a voz húmida de ternura e com-
varde, E' até Iam beneficio; mate-me de paixão, escondendo nas palavras o es-
uma vez. Mate-me porque é a verdade : panto, Chiquinha, anediando os oabellos
eu amo, sim, ao capitão e só elle, qua não de Antonita, perguntou-lhe com a delica-
é miserável como tu, infame, homem que
86
MOTTA COQUEIRO

deza que os sentimentos fraternaes em- alvura da albumina, o banquete ccmme-


prestam á mulher: morativo do acontecimento.
— B' possível, minha irmã, que também A essa nova, immovel, apresentava ao
você seja tão desgraçada como eu ? 1 . . . norte á f r e n t e rasgada até meia altura
— Mais ainda, Chiquinha, soluçou An- por uma porta estreita e duas janellas a
tonica, eu amo, e nem devo dizer—amo. pouca distancia d'egt% ; parecia um eon-
Uma scena tocante de amor fraternal, viva irrosoluto no brodio sertanejo.
consorcio de sentimentos puros na des- Tres j&nellas lateraes &briam-se para o
graça, sem estudo, sem arte como a fusão oriente e outras tantas para o occidente.
das aguas de dois affluentcs em um vc- Ao fundo, como uma aza cahida, declivava
lume único, largo, magestoso, correntio e do tecto um-a. meia agua que era defetisa-
limpo, seguiu-se ás primeiras palavras da a desempenhar as .func^ões de Gozinha.
das duas moças. Tudo vestiâ-se de duas eôres apenas,— o
As lagrimas, o sagrado baptismo do avermelhe do do barro e o pardacento do
infortúnio,lustravam : lhes o passado, onde sapé e da madeira das portas e janellas
as douradas iliufcões do amor converte nào pintadas.
ram-se a pouco e pouco em phantasmas Em torno da casa adeusava-se a mata,
ominosos, cuja projecção assombrava-lhes só rareiada em uma largura de duas eu
o presente e agourent&va-lhes o futuro. tres braças, as quaes davam logar ao
A communicabilid&de das dôres since leito da estrada, que se alongava a per-
ras estabeleceu se promptamente eatre der de vLta, em plena franqueza de suas
as duas irmãs, e d'ahi a pouco nenhuma curvas caprichosas como as áo serpeiar
d'ellas tinha segredos para a outra. Chi- da cobra.
quinha não tinha pintado exactamente Sobre tuio isso reinava a eterna rotina
a sua situação; mas sobre o que occultou da natuieza; o? mesmos garganteios
impunha-lhes silencio o pudor. acontraltacios do nhambú, os pios e
Seriam duas ou tres horas da tarde chilros da passarinhada, os zumbidos dos
quando Sebastião, oue na qualidade de insectos, o murmur dos veies á'agua nas
homem entendido em carpintaria tinha grotas, o azul intenso das serras pró-
desempenhado o papel de mestre da obra, ximas e o desmaiaáo azui do firmamento
pegou de um martello e repicando com e da cordilheira distante.
elle sobre um banco de carpinteiro annun-
ciou o completo acabamento da casa. Alegres e lisongeiados pelas provas de
Francisco Benedicto, que desde a che- gratidão que recebiam, os hospedes e
gada ao logar da nova habitação, teste- protectores d-3 Francisco Benedicto senta-
munhava a sua alegria repetindo visitas vam-se á mesa com o desembaraçado ap-
ás garrafas, ergueu no ar um caneco petita de quem acaba de t r i l h a r braçal-
cheio de vinho e agradeceu os serviços mente. Demais erguiam se das terrinas
dos trabalhadores por um brinde laconico uns vapores trahiudo adubos esmerados e
e sincero : vivam os bons amigos 1 conscienciosos.
Todos acompanharam a expansão e, Cumpre notar que o contentamento ge-
rindo alegremente, foram sentar se á ral nãc privava todavia a solicitude hos-^
sombra de uma copada angelineira que pitaleira da familia e assim foi que não
bracejava a ramagem robusta perto do passou desapercebido o mau humor de
terreirinho do eaiflcio rústico. que dava mo^tr-ys o Vianna da venda,
Sobre o chão estufado pelafolhagsm um 'dos que mais tinham contribuído para
morta e caliida da arvore, a mulher do o feliz êxito da construoção e para a ap-
aggregado estendeu sobre uma toalha, da parencia lauta do banquete.
OU A PENA DE MORTE 8.7

Além d'isso, Antonica e Chiquinha, que m^s eu não sou o dono da festa, a culpa,
tinham chegado por ultimo áreunião, coh- é toda do Vianna que, sempre que a,
sérvavam-se visivelmente tristes, e man- gente falia no caso, fica extranhão como
tinham tão grande reserva csm os çirr uma creança de peito. 7 .
cumstantes que foi necessário explicar -r ppis isto não se faz aos amigos,
pela moléstia este factomespèrado. Sr. Viaana, continuou o subdelegado, á
No fim do jantar o subdelega© Oliveira, meáida que caminhava para o vendeiro.
a quem já o gárrulo aggregáíp havia an Pond^ lhe depois as duas mãos sobre,
nunciado o proximo enlace de Antp^ica os hombros e sacudindo© amigavelmente
com o vendeiro, admirado do affasta- proseguiu:
mento requintado entre os'-noivos, acer- — Já tem padrinhos, seu maganão ? O
cou-se do inspector André e disse-llie segredo nestes negocios é grande ta-
muito á paridade:" " leima. - *•„.
Oii! seu Á.Xíà.vê, não lhe ^àrecé que
aíida caça escondida à'este mátto ? Via#|ia, porém, nao deu em resposta
— V. S. que o diz é porque' é ; mss senão o riso alvar da acquiescencia con-
tombem se ha é tio arisca que ha de castar trafeita e Antonica denunciou claramente
a repugnância que lhe causava a audiçãç
a sahir da toca.
de palavras referentes ao consorcio.
— Pois bem, fique você'na espera, com
— E' novo isto, exclamou Oliveira, os
todos os cinco sentidos, emquanto eu vou
noivos parece que se zangam com a gente
pôr-lhe Q# cachorros.
porque lhes falia no casamento. O Viãn-
— Mais fácil é sp.r mordido por umar
na está macambusi© como um boi mor-
jararaca do que arredar pó um momento,
dido de cobra, e a Antonica arnarellou
respondeu o inspector, aproveitando o como uma fiôr de abóbora E M bom, esiá
encaixe para um riso apigarr^do de adu- bom, n|ose casam, não; quem é que disse
lação. qua vocês se casavam ? Ora é boa, nS©'
A' pouca distancia d'estes interlocuto- faltava mais nada ; calumnias 1 Ha muito.
res conversavam muito intimamente o mâ-lingua n'este mundo.
vendeiro e o violei o, Graves questões
debatiam a julgar pela gesticulação ani- Uma risada estrondosa acolheu o gra-
mada e um cerro ar d® irreâoluçlo que cejo dó subdelegado, que regosijou-se in-
envolvia o ven d airo. tíricrmente com a cèitiza de ter desco-
O subdelegado toco ou. nota do qi?e se berto c segredo dos noives, é, satisfeito
passava «ntr* os dois e bem assim dò olhar com esfía victoria da sua perspicácia, mul-
attento com que A « tónica os seguia, nãp tiplicou os epigrammas, com o fim de
obstante parecer cuicu&nfctameniô absor- ccn eguir pela irritação o que não podia
vida em uma eonver -açiío com Colqui;. tia. obter espontaneamente.
Batendo as palmas jovialmente, Oliveira — Já ha via-me passado pela cabeça uma
achou se logo cercado pqr todas as pes- idéa, disse elle ; era servir de padrinho ao
soas presentes, © começou n ) tom n^ais Vianna, se isto fosse do seu agrado, e nãa
«ordiai de meiuoria ue feoaens: houvesse pessoa msis considerada já convi-
— Para aqui junto de mim, Sr. Chico ! dada. Depois eu disse com os meus botões:
eu não metto prego sem e.-t» pa. D.ga-mí! não, não me bffareço ; o Cfiico é lá aggre-
cá, não síe faz.im os convites para o receio gaio do capitão e ha (te querei'que elle
a vós % Ande lá que parece querer 4ei- seja o padrinho; já lhe deu a baptizar
xar-me ficar no tinteiro ? uma filha...
— Bsm f&llado, meu senhor, muito — Mas hoje, interrompeu o 8ggreg[&(iOj
bem fallado, respondeu o aggrega,do; não lhe dou por meu gosto nem um c<5ço
88
MOTTA COQUEIRO

cfagiia. E' bichinho que entra cOm pés de Na porta do casarão, com o chapéu de
lã e depois arranha e morde. lebre na mão e rosto carrancudo, assomou
— Isto é o que você pensa agora, mas Faustino Silva, que apenas saudou o
antes elle era o sau deus; e o Vianna ainda aggregado e seus hospedes, e logo reti-
hoje não tem razão de queixa. Não é ver- rou-se depois de ter entregado a Fran-
dade, santinho ? cisco Benedicto uma carta que lhe era
— Queira perdoar vosmecê, seu subde- dirigida pelo capitão Motta Coqueiro.
legado, mas eu hcje estou , um pouco Um movimento de sorpreza descorou
doente e vou-me chegando á casa, respon- todos Os rostos e ainda os mais corajosos
deu o vendeiro. - estremeceram involuntariamente. Da feito,
— E dispensa uma companhia ? inter- ^ era singular que em tão pouco tempo de
rogou Oliveira. ausência já o fazendeiro tivesse motivos
urgentes para dirigir-se ao seu compadre.
— Está visto que não, até gostarei.

' • Pois n'este caso eu vou comsigo; a A pedido de Francisco Benedicto, o sub-
conversa abrevia muito as viagens. delegado collocou os seus oculos, quebrou
a obreia da carta e leu com voz pausada:
— O melhor é irmos todos, ponderou
Sebastião; não ha nada mais a fazer aqui a Compadre,
e para palestrar estamos muito melhor a Ao sahir do sitio tinha-lhe pedido que
lá no casarão. se apressasse a fazer a sua casa no logar
Quando o farrancho ia a entrar na casa que demarquei para servir-lhe dô situa-
do aggregado, o violeiro, apontando para ção. O tempo que o compadre gastou para
o porto, chamou a attenção geral para levar a effeito esta condição do trato que
essa parte do campo. de viva voz fizemos, quando entrou para
— Parece que chegou canôa da cidade nossa casa, faz me crer que o compadre
e se não me engano aquelles que lá estão ainda não ccmeçou o trabalho, ou que
no porto são o Faustino Silva e o Pe- não o terá muito adiantado. Aconselho-lhe
regrino. agora que ou não comece, ou pare a
Dentro em alguns minutos não houve construcção.
mais duvida ; as pessoas que estavam no A razão por que lhe aconselho isto é ter
porto, com os remos ás costas e cestos á deliberado montar melhor o meu sitio, e
cabeça, tomaram a direcção da casa tirar proveito d'elle de todos os modos.
grande. Sabe o compadre que o sitio não tem
— Agora não sai ninguém d'aqui, grande extensão e por isso não posso
exclamou o aggregado; o Faustino ha mais dispensar terras para estabeleci-
de candongar por força ao amo e eu mento de aggregados ; ao contrario pre-
quero metter-lhe ferro por saber que ciso de adquirir maior terreno.
vocês estiveram commigo. E' uma paga- Proponho-lhe um negocio que lhe será
sinha dos desaforos que me tem feito. vantajoso ; o compadre passar-me-ha por
E' direito, muito direito ; acrescentou o uma avaliação as suas bemfeitorias e fi-
violeiro ; mostre-se áquelle inchado ca- cará morando no casarão até que eu lhe
pitão que a gente não morre de caretas. possa arranjar um outro fazendeiro que
Todos concordaram com a resolução tenha terras devolutas.
do aggregado, patrocinada pela arrogân- Recommendo-me a todos e faço votos
cia do violeiro, ainda que não muito por para a inteira cura da Antonica. »
vontade do subdelegado e inspector, que — Não se pôde crêr em tanta infamia,
só ficaram para não mostrarem-se me- exclamou o subdelegado, ao terminar a
drosos. leitura.
OU A PENA DE MORTE 89

. Eu já esperava por'esta,'ajuntou Se- uma porta, sahiu por outra e manda el-
bastião ; elle é capaz de mais ainda. rei que conte, outra.
Franci&co Benedicto vociferava como A applic&ç&o da historia contada pelo
u m possesso contra o compadre, e lasti- violeiro era f&cil de mais para que todos
mava-se ao mesmo tempo, e concluiu por immediátamente não a fizessem. O sub-
uma interrogação e uma ameaça. , delegado que desde o principio do conto
B U S(5 queria saber quem foi o demó- percebeu onde elle ia bater, desejoso de
nio que me indispoz d'está sorte com o tornar mais explicita a censura, que
diabo do malvado ; havia de moei-o a tanto infamava Motta Coqueiro, reteve a
pauladas ; ôésse no que désse; erupção da cólera de Francisco Benedicto,
ponderando ao violeiro:
_ Nada- é mais simples do que descobrir
a causa, interveio Vianna ; procure bem — Ora, outro ofiB.cio, Sebastião, isto é
por aqui mesmo; indague bem dentro de uma historia da carocha.
sua casa e verá. — A's vezes são verdadeiras, respondeu
Todos olharam-se espantadosj e cada o violeiro, ,e esta ê, eu lh'o juro.
um sentiu-se vexado como os apostoles Vianna que, depois de atirar a suspeita,
quando o Christo annunciou a sua próxi- se havia calado, collocou-se então na
ma traição por ttm dos que com elle frente de Francisco Benedicto, cujas mãos
.se. reuniam no Cenáculo. segurou, e disse, voltando-se primeiro
Antonica foi quem soffreu o golpe mais para o subdelegado e depois para o ag-
rude ; tinha a certeza dolorosa de que as gregado:
palavras de Vianna eram o prologo de * — Infelizmente ha historias da carocha
ima vingança desapiedada e inexorável. que são verdadeiras, e aqui temos uma
Sentiu faltarem-lhe as forças e não pôde prova. Seu Chico, escusado é ir longe
retirar-se da sala, como erâ seu desejo, buscar o seu inimigo; Antonica pôde
i — Eu vou contar uma historia, excla- dizor o que ha ccm o capitão.
mou Sebastião no meio da perplexidade O effôito das palavras do vendeiro exce-
da todos ; é uma historia que me conta- deu á máis caloulada espectativa: aama-
ram ha muito tempo. Havia um< trabalha- rellidão cadaverosa que tingiu as faces
dor já idoso que tinha muitos filhos, de Antonica, o tremor convulsivo que a
entre os quaes algumas moças, que todos obrigava a tiritar, o stupor chispante que
diziam ser muito bonitas. 'Um dia o ve- estagnou-lhe o olhar faziam pensar a
lho achou-se meio do matto sem casa todos os circumstantes não em um pro-
onde morar, sem trabalho; uma des- testo doloroso a uma effensa pungente,
graça. Um fazendeiro da vizinhança mas em uma confissão estorquida de sú-
! mostrou ter dó d'elle e ehamou-o para a bito a um sigillo que se julgava invio-
' sua casa, mas infelizmente o velho tinha lável.
filhas que eram umas jóias, e o fazendeiro E tinha justificação eloquente a pertur-
gostou d*ellas. Queria d'este modo cobrar-
bação da desventurada moça; pobre pé-
se do favor que tinha feito. 0 que houve o
rola perdida em um etterqujlinio de ca-
que não houve entre as moças e elle não
racteres em decomposição, sentia se ali-
sei, não me contaram ; o carto é que
desde que as moças foram pedidas em nhavada nos farrapos sordidos de. uma
casamento o fazendeiro começou a mal- vingança baixa e v)llã,que, sem coragem
tratar e a perseguir o pai a quem tinha para um desforço não já em uma lucta
antes protegido. de honra, mas sequer em uma embos-
cada, lançava mão da intriga e por ella
Ora eis ahi como foi o caso; êntrou por espojava-se em uma alegria insensata.
90 MOTTA COQUEIRO

Umaintuiçãoperspicaz esoobrir-ibe-hia farando, forcejava por desembaraçar-se. e


nó espirito, de pé solemnes e egaaes na dirigir-se á filha, a quem cercavam soas
estatura, a revolta da mulher p i r a insul- irmãs e mãi, banhadas em pranto. .
tada, e a vargonna da amaate ao sentir — Homem, escute, arrazoou Sebastião
em nudez profanada o intimo da sua para o possesso pai; não é perdendo o.
alma povoada da perdoei e e^p "ranças, siso que você ha de desliodar a meiada.
de máguas e abnegação; dôr santa e ve- Não estejatamfoats fazendo futuros máus.
neranda porquanto, n*essa hora em que a Você é criança oii é um pai dè familia ?
iniquidade consumava tanta.torpeza, ella Attenda primeiro, com seiscentas'_mU
estava só,indefesa, entregue á ia dgnação raios. Está a 'descompôr á íôa a rapariga.
da boa íé paterna ilíaquead* e aos golpes Vencendo'a pertinaz reaistancia do ag-
rudes do despeito friu&iphante. gregado, o Sr. Oliveira e S-bastíão" con-
Via todos os olhos -cravados na sua seguirem. tii al-o para fóra da sala e acal-
perturbação inevitável, cheios de cruel mai-o um pouco.
dada e de interrogações aviltantes, agora Feito isto, o violeiro, que impressiona-'
que a sua consciência chorava as amar ra-sa vivaments com o estado de abati-
gas lagrymas do puior angUí.tiado, e, o mento de Antonica e ainda mais com os
que mais penoso era, via essas lagrymas olhares supplices de Chiquinha,'ou me-
serem grosseiramente confundidas com lhor pela evocação dos seus . actos, s e g u -
as rio. o rio feminil acordaio da chofi-e de j ou Vianna per um braço, e. faliando-lhe
uma lethargia moral por uma sacudi á parte, disse-lhe terminantemente :
de a de censura. —Fique sabendo qne o negocio é só;/
O* lábios negavam-lho uma unio* pala- com o capitão ; deixe-se, portanto, dei
vra, porque t s combinações do alpbb.beto accus&r a rapariga. Faça carga no bichfl
o doa sons faliecem irremediavelmente e poupe os mais, ou eatão eu parto parf
nas horas das granaes crises dos senti- cidade e vou na presença do capitã!»
mentos. Também de que lhe seryiria desarmar toda a igrejinha.
fallar, se todos es nrgv mentos estavam de — Mas já lhe contã o qu:r ella me fej,
antemão con:í era nados, se um grito . de respondeu colérico o vendeiro ; eu n^p
desespero seria julgado uma explosão de sou homem para aguentar desaforos.
vexame ou reíkumfsnto de hypocrisia ? —Está bom,'está b o * , seu Vianna;
Com a boa vontada de um sequioso que nenhum de r:ós engana um ao outro;
- farta-ee a. beber agua salobra, o vendeiro •vecê não qusr nem queria casar sa copa
saciava n'eí=te mar.yrio a sus desforra Antonica a podia fazer «orno nóa, não
ouiz por tolo. Venta à\*hi o veja se acom-
indigna ; eorvejavam-lU* jub'l sos, sobre
nioda o velho. Nós temos sido amigos
a hediondez do c^rsírt -r, osm t<netos-ca
até hoje è não devemos-brigar por cousas.
perversidade fri;» e calculista.
de p o u c a monta. A zanga da menina ha
• — Anda de lá, velhaca ; bradou- brus
de pass r ; a ^ i m s*ja vorê b«m para ella
camente Francisco Benedicto, conta-ma, 0,
antes que eu perca o tine, a» tuas sape- a ora.
"Os 'esorupulos de consciência, o sonho
carias, sons.* dus diabo que «eshonras
e ia. victona lo am^r ^elo amor, nascem da
as barbas do teu ®TlíJ-»"o rtSo
s i n c e r i d > a e do affreto a da limpeza das
ta esgano, que é quwot1» tu mereças.
iutu.çõ««i quau^., ^ é a . , * paixão li-
— Calma 1 tau^a c-lm- , -eu Chiou,
mita-se ao de^-jv da pcçse material da
disse ameigando a voz o subdelegado;
mulher, quaisquer que s e j a m es meios
ella JÍ> Ti o é a roais culpada.
são sempre attranentes e exequíveis.
O prudente »r. Oliveira já a esse tempo
braçára se com o aggregado, que, voei- Aooresse que as paixões doesta ordem
OU A PENA DE MORTE 91

vegetam sempre nos corações apodreci- quem visse Antonica ir por diversas vezes
á casa grande sosínha, e quasi sempre de
dos pelo vicio ou pela ignorancia, do
noit°.
mesmo modo que certas parasitas pre-.
ferem as a r v o r e s mortas para se .prove- E ainda não querem vocês que eu
rem de seiva. o; tire das costas d'&quell& sirigaiata os
O vendeiro não podia, s«3r classificado passeios sem licença dos seus pais ? I
senão na ultima das: du«s classes de — Bu por minha parte nada suspeitei
amantes, e por isso mesmo condescendeu nunca, mesmo depois que me contaram o
com a espei'811Çs dada por Sebastião..; caso, mas hoje sa Antonica me fez uma
Sepitando-se ao lado de Francisco Bene- partida que me fez pensar muito sério.
Depois de tudo tratado,disse me sem mais
dicto, começou a asserenal o, quando lhe
nem menos, que não me estima, já, e que
pareceu opportuno.
por vontade a'eÍl<*jáão se casa. Emfim eu
Ò velho, já vencido pela argumentação
não digo nada,mas uma cousa á'estas.tem
t e r s a do sub ielegado e pelas meias pala-
muito peso.
vras consoladoras de Sebastião, havia pon-
derado criteriosamente. Apezar de attenuaia de alguma fórma
— Quem pôde dizer se eu tenho ou não a culpabilidade de Antonica, todavia o
motivo para damnar é o Vianna, elle é aggregado não se mostrava propenso a
quem sabe do negocio, mas está ahi ca- forrar-se da supposição desairosa para
lado como um garrafas lacrado ; é q u j com sua filha. A tacíica do "Violeiro tor-
elle pensa commigó. nou;sé necsssaria, indispensável, para
Tem seus conformes, seu Chico, obser- multiplicar a queixa do seú inseparavel
vou o vendeiro; eu ainda não fillèi n&da. amigo.
— Pois safe se d*ahi logo com o qtli -r- Pela parte ãe sa Antonica pdíe des-
sabe, gritou o violeiro ; é prêciso a gente cançar, seu Chico; ellaó incapaz de virar
saber a quantas anda. Vamos por ora ás a cabaça. Ha testemunha de vista de um
apalpadelas. caso. O Manuel João foi despedido d'aqui
' —T O que eu Sei é isto : quando sá An- por causa d'isso e. disse-me tudo tim-tim
tonica por ura triz que não se afogou, o por tim-tim. E' d^ste geito.
capitão veiu de pressa em seu soccorro, Uma noite o capitão viu passar sa; An-
mas em vez de se portar como um homem tonica sosinha por defronte, da casa
sqrio beijou muito a ccítadfi. Foi pelo grande e f á divetir-se com a menina.
menos o que me contaram... Esta, porém, não ?<5 ficou muito amofi-
— A vsrdada é esta, entende, meu se-t nada, mas até ameaçou de vir dar parte
nhor ; interrompeu o aggregadò drigih- a você; está entendendo, seu Chico. Por-
do.-se ao Sr. Oliveira. tanto, o qua é que tem sa Aatoniea a ver
— Depois, coulinuoa o venáei; o, eu vi aqui.
com estes olhos o cuida io ào c«pitHO du- — A mim também parece que, se hou-
rante a doença de Antonica. Mandou es- vesse alguma cousa, ó capitão não que-
c a v a s servil-a e ella proprio passava reria que vc-cê fosse morar para mais
hor*s esquecidas'veiando a doente. longe; pmrWou o Sr Oliveira.
— Poitso jnrar r.os E^sng^lh^ coroo
— E&tá'visto. Se ha alguma cousa, é
tudo está s-^ndo dito o ire to, rbservou
raiva do capitão por não ter conseguido
Francisco Bentídicfcu.
os seus-fins ; isto e?tá saltando aos oihos;
— Ninguém desconfiava nada, prose-
O que a Jmlra é que o scismatico do seu
guiu o commentador, porque o capitão é
Vianna venha aqui contar historias ainda.
compadre da c«sa e um homem de idade.
Quanto mais se faz menos se merece. *
Depois de passada a doença houve,porém,
92 MOTTA COQUEIRO

A argumentação frouxa e descabida sempre o cacete é a melhor


mesiáo dos interlocutores abrandou a có- justiça, tíen&rmou todo risonho o inspec-
lera superflci&l do aggregàdo, cólera que tor André '; não ha melhor cadeia cTeste»
rompia mais directamente de um gráu já mundo do que uma camisa de grumarim„
bastante elevado de alcoolismo do que de — O mais que lhe posso oferecer, acres-
um sentimento nobre. centou o violeiro, é o adjutorio do meu
Porfim Francisco Benedicto fallava com braço, cago es do seu Chico e seu f&feo não
menos calor na mâculação das suas barbas cheguem.
braiicas e dom VGhemencia, com odio na Após estes effarecimentos feitos por.
força do seu compadre e M própria fra- todos, á excepção do Vianna, a reunião
queja. dissolveu-se a maldizer e desfeiara emusa
— Ser pobre é o mesmo que ser boi de da mudança áe humor de Motta Coqueiro
ajeito, repetia freneticamente o aggre- para com o seu compadre.
gado ; trabalha um iiômeâà e de íimá hóra A maio caminho de casa e quasi ex-
para outra não tem mais onde metter a tremo cansaço do magro suspiro, o vio-
cabeça, porque tudo quanto se tem é leiro fei detido por Lucio Ribeiro qua, a
pouco para a guela do rico. largo e continuo galope, vmha ao seu en-
Sollicito em desvanecer esta derradeira contro.
nuvem que pairava sobre o espirito de O capicocio narrou miudamente que
Francisco Benedicto, o subdelegado Oli- havia ssais de duas horas que estava sof-
veira resolveu dar»lhe por virtude da sua
frego» esperar o violeiro para communi-
auctoridade local uma prova inequívoca
car-lhe © a conversa que tinha ouvido a
de zelo e de poder, que teve força de re^
Faustino.-
nascer a confiança do aggregado.
— Quanto ás terraâ, Sr. Chico, ponde- — Outf, disse elle, ao demonio do ca-
rou csubclelegados[corre por minha conta; boclo, que fa* rendimento de tirar a vida
ba^ta você fazer-se duro por ellss e o seu dos outros, dizer que o capitão está lá na
compadre ha de ver se tonto» Elle não o cidade a r r a n j a n d e - m e írm covados de
pôde deitai o fóra assim como quem en- pana o para as costas. Dê nd que der eu
xota um cão ; são necessárias certas for- hei de ir para a pra§a.
malidades da lei; por exemplo, requerer — E você esqueceu, com o susto, o ca-
ao juiz de paz, etc., etc.. Ora, o juiz de minho da serra dos Olhos d'Agua a as
paz é um amigalhaço do Coqueiro, não bibocas dVstes morros, forte medroso.
iria nem para o céu em companhia d'elle. — Depois o Faustino contou tazfôbem
Tê, pois, você que está s9guro. que o 'homém* dá você aos diabos e pTo-
— E se elie lançar mão da força, o que mette-lhe ca tigo, O Faustino logo se offe-
hei de eu fazer senão ceder ? interrogou o recau alli á vista da tedos para ficar a
aggregado. cargo dVdle o ser viço contra você. A du-
—Amor com amor se pagi, e uma mão vida é o capitão dar lhe cem mil réis; se
lava a outra. Se elie tem muitos capan- elle chegar &o preço, o Faustino diz que
gas e escravos, você tenha geito para to- é bem capaz da tirar a vida nio só a
mar um despique. Pela minha parte dou- você mas ao Chico Beneiicto a á familia
ihe carta branca, e digo-lhe até mais: inteira. Eu quiz logo aviial-o porque o
será um beneficio para e*te pobre povo Faustino é hoLiem de dizer e fazer.
ver-se livre de tal monstro. Em resuoco, — Mas ainda não se lhe deu o dinheiro.
Sr. Chico, vou dizer-lhe a minha ultima — E1 o menos para o capitão, e, se não
palavra sobre isso : ha certas questões me engano, já ha um dinheiro para o
que EÓ se liquidam a pau. Faustino por um vale do capitão.
OU A PENA. DE MORTE 93

foram os que se seguiram logo á chegada


— Ora adeus, Lucio ; eu não estou dor-
á sua chácara em Campos,
mindo. • . . . Lançando um olhar retrospectivo á cons-
Depois de sepaiarem-se, o violeiro per- ciência descobriu ahi algumas sombras
deu a apparencia de calma que o revertia tristonhas, mas tão delgadas e diaphanas
sempre nas situações perigosas. Ia á merce que desde logo acreditou que para dasfa-
do Suspiro que, abanando as longas ore- ze-lãs bastava um sopro áe raciocínio e
lhas, r e t a r d a v a cada vez mais a sua mar- resignação.
cha lerda. ' , O isolamento em que vivia no sitio e que
Quando entrou em casa, respondeu a constrangia-o a diminuir até a attenção
a n c i e d a d e de Manuel João com um sub-
intellectual para que pudesse ser compre-
terfúgio e foi sentar-se calado e a fumar hendido pelas pessoas com quem estava
em utQ canto da casa. em immediato contacto; semelhante iso-
__ Que tem você para ficar assim em- lamento foi substituido pela convivência
barrado, homem, falie porque isto diz-me polida e delicada de uma sociedade intel-
também respeito; perguntou o ex-feitor. ligente e desdobrada em pensamentos para
— Cile-se d'ahi, seu maricas, isto é o a familia e para a p&tria.
fructo dss suas trapalhadas. Desrie a manhã era visitado por amigos
Os dois reoahiram em absoluta silencio, que intermeiavam as conversações fami-
e assim conservaram-se por largo tempo. liares com observações judiciosas acerca
Afinal surdiu atr&vez do incommodo dè do movimento social, e assim chamavam-
ambos a alegria expansiva do violeiro. lhe o espírito para a actidade sadia dos
— Estou ficando tãq roim como vocês; espíritos educados.
assusto-me por pouca coúsa. Contaram-me Vivia n"uma especie de aturdimento
uma fabula que é a minha felicidade, e intimo; tal era o atropello das questões
no entanto eu fiquei amedrontado. Mas que era obrigado a discutir e apresentar
passou ; vamos á prosa, seu Manuel João. solução, e força é dizer que semelhante
Os dois sentaram-se a fumar descança- estado agradava lhe, porquanto redunda-
damente, emquanto o violeiro narrava os va-lhe em um como soterramento das
successos do dia. magnas domesticas.
O plano magistralmente urdido pelo A chegada de Motta Coqueiro era espe-
violeiro produziu resultados tão exactos rada com anciedade porque uma vira-
e précisos quanto graves e terríveis. volta politica tinha abalado o partido
A calumnia, a intriga, e a dissimulação, conservador campista, do qual o fazen-
entrançadas em uma teia consistente, en- deiro era membro proeminente e influen-
laçaram-se como um baraço assassino ao cia decidida.
socego e dí scuidos Íntimos das duas fa- O abalo tinha sido produzido por uma
mílias, e e&tmngularam-os desapiedada- desastrada mudança na chefia do par-
mente tido, não por serviços prestados, mas por
A existência de Antonica, verticiliada um simples despacho do governo, que
em risos eillusõss juveni*, transíormou- dava a direcção da familia conservadora
se em uma serie de humilhações pun-
da localidade a um novo juiz de direito
gentes, e o fazendeiro viu também sucee-
nomeado.
der ás prasenterias do lar o retrahimento
Esse homem, que começava então a
da esposa, ferida pela de, confiança na
sua carreira politica, peiàsando em tirar
sinceridade do seu aííecto.
Para Motta Coqueiro só houve, depois da sua posição proveito, mais util á sua
do penoso conhecimento da afieição de pessoa do que aos interesses do partido,
Antonica, alguns dias de tranquillidade : inaugurou a sua direcção concentrando
94
MOTTA COQUEIRO

em si toda a actividade sobre os co-reli- meio de uma conversa relativa ao par-


gionarios. tido. Foi ao terminar a deseripção de um
Graças á sua intelligôucia superior é ataque decisivo ao rei da situação politica
illustração acatada e reconhecida por de Campos que a sua váidide fel-o notar
todos, o juiz de direito ponde em pouco a indiffarença da Sra. D. Ma? ia.
tempo dizer : o partido cénsérvador Longe de irritar-se com a resposta,
sou eu. Motta Coqueiro procurou acalmar á es-
Mas como sempre essa absorpção dá posa e prometteu-lha, rindo com o desem-
collectividade promoveu dissabores que baraço da confiança, livrar-se o mais de-
foram intumescendo, silenciosamente à pressa possivel dos enredos partidarios,
principio, e mais tarde proromperam ém s os quaes attribuia o máu humor que lhe
protestos enérgicosj reduziàos a factos è tinha sopitado o enthusiasn; o descriptivo.
e&tereoty pados em tuna dissidência irre- O ^fazendeiro, porém, enganava-se ra-
conciliável. dicalmente quanto ao verdadairo motivo
Motta Coqueiro, cordato por índole, de queixa dà sua consorte.
achou-se por isso mesmo a braços com A fonte da desharmonia conjugal era
grani es e insuperáveis difficuldadês, visto uma espertssad moleque Çarlos, em dar ,
como insistia no congraçá mento dos cam- conta de uma empreza a que se compro-
pos dissidentes, único meio de fortalecer mettera com Manuel João.
o partido. Eatrando sorrat eiramente no quarto de
Nada, porém* conseguiu a não ser tra- <$ofmir da sua senhora, o moleque depo-
balhos, sâcrificios e decepções. sitou sobre o lavatorio a carta que lhe
Emquanto absorvia-se todo no serviço tinha sido confiada. A curiosidade feminil
politico, á sua attenção não voltou-se es- incumbiu-se de tornar bem succedido o
pecialmente para os modos descominu ardil do triumvirato para a satisfação
naes da sua consorte, e no entanto elles doa seus Cálculos ulteriores.
erám por domais sensíveis. A Sira. D. Maria ao ver a carta repre-
A Sra. D. Máríá, desde três dias depois sentou a eterna scena de Eva diante do
da chegads. d® Coqueiro, não era a mes- pomo prohibido.
ma. O seu coração parecia andai? envol- Habituara se, désáe os primeiros tempos
vido n'uma &tmo»ptoa de gelo, e uma de casada, a abrir toda a carta que lhe
frieza quasi indelicada recebia por élla fosse dirigida, em presença do seu ma-
todas as communicações mais expansivas rido. Era uma obrigação que voluntaria-
do m arido. mente se impusera e que desempenhava
Úm dia em que, .10 de leve. o fazen- satisfeita^
deiro apercebeu se da indiffarençá da Sra. Ao vêr, porém, aquelia carta myste-
D. Maria, e lh'a observou com bénevo- riosamant© còllocada em logar reservado,
lencia, a m e n t i d a senhora, escondendo a Sra. D. Maria sentiu quebrar-se-lhe a
no avelludado da palavra uma censura cadeia do. passado e affogueal-a uma
amarga, respondeú-lhe com apparente nova resolução.
simplicidade. Rasgou soffregaménte a sobrecarta e
- - O senhor não tem rssão para enfa- leu avidamente as linhas tortuosas lan-
dar-se; é preciso que eu preste toda a çadas sobra um papel ordinário.
minha atten^ão aòs int>res?es da nossa Terminada a leitura, a senhora conser-
casa, agora què o senhor se Occupa exclu- vou se por muito tempo no quarto, de pá
sivamente com os estranhos. diante do movei, p a l i t a como se a ti-
Motta Coqueiro tinha, de feito, achado vesse accommettido uma instantanea ane-
óccasião para a aâvertencia amistosa no d i a . De vez em quando erguia a carta e
OU A PENA DE MORTE 95

repassava alguns dos períodos em voz — Se não é indiscricão, V. S. poderá


baixa e tremula. dizer me como arranjou as cousas para
Quando sahiu aceitou com triste boa aquietar o Chico Benedicto ?
- vontade as caricias iniíoceníes àoh seus — Da fórma alguma, porque até esta
- filhos, e a^ercanío ao cslio y cabula dis&e- data naó tem havido nada que valha a
lhe, como se pi^es^e ser por elle enten- pena entre nés*
dida. ; — Pois não é isto o que se diz por lá ;
—Deves querer muito bem a t u a maioãi, 0 que consta é que Y. S. ê seu compadre
filhinho, porque teu pai já náo* & estima. já andavam queimados um com outro.
O inysterio da tri^t^za da Sra. D. Maria — Sabem mais dò que eu ; sálvo se o
foi, porém, sarpnehendido. por Motta Co- compadre zangou-se porque lhe ordenei
queiro quando eila menos esperava. que fizesse prompíameáte a sua casa.
Joaquim Lycerio vinha, frequentemente — Não é este o caso, ráspendeu Lycerio;
a Campos p-&ra effectúar. transacçôis indis- com franqueza, Sr. capitão, V. S. não tém
pensáveis ao seu negocio, e por isso che- noticia de uma carta que foi esçripta á
gou também a Campos uma semana de- Sra. D, Maria- ?
pois de Coqueiro. — Ah S exclamou o fazendeiro admira-
, Sendo forçado a deinorar-se por mais do, então escreveu-se uma carta a minha
tempo do que desejava, resolveu despa- mulher ?
char os seus empregddoS por ser este < x- — Sina, senhor, eu conheço a pessoa que
penaíiíe fecoatelsiado pela boa economia, a escreveu, e seftambem que foi mandada
e ficar sd na cidade-. escrever por um dos genros do Chico,
se não me engano, o Sebastião, e sei
Partiria depoij em qualqwr canôa qué mais que n'esta carta faila se em V. S.
fôsbe para Macabú, o. que não era onfíi- o na m»niua Antonina.
cil purque havia sempre grande numerei — O senhor está bem informado, bra-
d^ilas em viagem para lá. dou sorprehendido o fazendeiro. ?
Infelizmente, na oppítitunidade da par- -r Por estar é que lhe aviso ; queira
tida, Lycerio não eocontrou a sahir se- indagar e certíflcar-se-ha.
não as canôas das balsas • de Motta Co-
Açulado pela responsabilidade que via
queiro, D2is nem por i»so julgou o obstá-
despenhar-se de chofra sobre si, Motta
culo custoso da remover-se.
Coqueiro dirigiu-se a Sra. D, Maria, re-
Lembrando-sa tf a carta que havia ès-
solvido a liquidar a intriga
cripto e que aevia ter chegado ás máos
—r A senhora vai fazer-me o obsequio
da destinatária, entendeu què O melhor
de mostrar-me uma carta que recebeu de
meie de captar a benevolência ao fazen-
deiro era informal-o das ciladas que lhé Macabú, disse elle secamente á sua es-
armavam. posa, aquém tinha convidado para um
gabinete affastado do maior movimento
Certo áà prccedencia ú W e meio, pre- da familia.
curcu encantrar se com Mjtca Coqueiro. — A carta diziá-me só respeito, res-
Pensando achai o i n t i s p o í t o contra si, pondeu finamente a esposa; lí-a e ras-'
L y c e i io a i m i r o u se de ser recebido affa- gueia.
velmentò e o seu pedido receber lison-
— Botão tenha a bondade de dizer-me
gêiro deferimento.
0 lhe mandaram dizer.
Para retribuir á bondade do fazendeiro* — Já não me lèmbro ; más o senhor se
o rabula de fíacabú entendeu que devia quizer saber bem pddé ir passar mais um
reduzir á obí a a resolução, e no correr da mez no sitio e confirmar com a sua pre-
conversa perguntou a Motta Coqueiro: sença o que me communicaram.
96
MOTTA COQUEIRO

Esta resposta denunciava claramente acertado : tratar de despedir do sitio o


qual ji gravidade da accusação, e por ella compadre, que tanto o incommodava.
Motta Coqueiro concluiu que não era pos- Escreveu então a carta cuja leitura foi
sivel que sua senhora tivesâe rasgado a feita pelo subielegado na casa de Fran-
carta, em que a accusação tinha sido feita. cisco Benedicto, carta que devia acom-
Intimou portanto a sua esposa á imme- mctdar também a sua esposa.
diata entrega do libello escripto contra De feito a Sra. D. Mana concordou com
a sua pes?oa e obteve o depois de um chu- o expediente tomado.
veiro finíssimo de ironias.
. Podia-se dizer que a maldita carta tinha VIII
o laconismo de um punhal brandido por
(SOMO SE PAGAM BENEFÍCIOS
um matador professional.
Tremulo de cólera o . fazendeiro leu o No domingo da semana em que a carta
seguinte: de Motta Coqueiro foi recebida por Fran-
« V. Ex. não tem necessidade de saber cisco Benedicto, effectuou este a mudança
quem lhe dirige esta,s linhas/" é um con- para a casa nova.
selho da prudência esconder o meu nome. A familia achava-se agora augmentada
Devo entretanto affirmar que falla-vos por mais um membro, verdadeiro mons^
um homem de bem, e um amigo agrade- tro encanecido desde o nascimento, feroz,
cido, que se julga obrigado a dar-vos sanguinário. O seu nome era o Odio, o
um desgosto para evitar mal maior. seu caracter a perfil dia, o seu culto a vin-
O aggregado, que o marido de V. Ex. gança. Cégo e surdo corria por toda a
admittiu no sitio, entenleu que devia parte, desgrenhado, brutal, insultuoso a
retribuil-o com a pessoa da menina An- provocar intermináveis quarellas com
tonica, hoje convertida em amante do uma sanha inquebrantável, com um des-
Sr. capitão. garra revoltante.
A ausência de V. Ex. incitou o a não Era agora este o fiel conselheiro do
guardar as conveniências e hoje todo o aggregado e o seu inseparável compa-
mundo em Macabú conhece essas relações nheiro. Pregava a destruição e incitava
criminosas de um pai de familia alta- para realisal-a a natural petulancia de
mente coliocado com a filha de Francisco Francisco Bsnedict >, presentemente èxa-
Benedicto. gerada pela protecção do subdelegado e
Sd V. Ex. poderá evitar as eonsequen- do inspector que lhe garantiam a impuni-
' cias que poderá ter esto facto ; as exigên- dade para todos os abusos que fossem
cias não satisfeitas do aggregado pode commettidos em prejuiso de Motta Co-
ter sérias consequências. queiro.
Um amigo de V, Ex. » A gmte do sitio era diariamente alar-
— E a senhora acreditou n'esta infa- mada pela pilhagem acintosa exercida
mia? perguntou Motta Coqueiro. nas roças e no campo do sitio. Nada es-
— E o senhor porque temeu- tanto a tava seguro, porque sempre o furto, o
vinda d'esta communicação que chegou a roubo, a depredação espiava o gado, os
cafesaes, as mattas e assaltava-os para
descobril-a?
destruil-os. Além d'esses meios de vin-
Para não faltar a consideração devida
gança outro mais temivel foi posto em
a sua esposa, o fazendeiro retirou-se sem
pratica; a seducção dos escravos.
responder-lhe a pergunta.
Depois de oscillar n1um oceano de alvi- Aconselhavam-os para que fugissem,
tres, achou um que pareceu-lhe o mais acenando-lhes com a perspectiva do des
OU A PENA DE MORTE 97

canço, acaordando-lhes a eterna aspiração arreliadora de que se servia fosse retri-


do espirito humano—a liberiade. buída por igual.
Em vão a tenacidade inesperada de Fi- Motta Coqueiro, preso em Campos pelas
délis tentava eppôr ,diques a esta desen- suas ©ocupações e pela suspeita, contida
freada t o r r e n t e de cólera, que iaundava mas não extinta, de sua mulher, apenas
de desordem s ruinas a propriedade do podia reprehender por meio de cartas os
seu senhor. A franca resístencia do es- desmandos do seu compadre, que sempre
cravo encontrava â astúcia precavida dos quê rscebia ordem de não continuar a
inimigos de Coqueiro, de maneira que era fazer bemfeitorias nos terrenos do sitio
impossível punil os. multiplicava-as por acinte, preferindo
vezes, aos cl&rõss suaves dos cre- sempre afastar-se da zona que lhe fôra
mareada.
puscalos de setembro e outubro, os gran-
des capoeiross começavam a fumegar ,Os avisos eram também um incitamento
desdobrando no espaço uma enorme e aos estragos.
negra cortina âe fumo; logo depois, ver- Verdade é que esta violação do con-
melhas como um ferro em braga, ameaça- tracto tinha sido posta em pratiea desde
doras labaredas principiavam a trepar o primeiro dia da desavença : a casa er-
pelo horizonte, a inteiriçar-se e a correr gueu-a o aggregado no logar em que lhe
um immènso reposteiro de fogo, que amea- approuve.
çava os eafésaas, os mandiocaes e milha-
raes contiguos. Uma circumstanoia veiu por algum
tempo diminuir a petulante intensidade
O eontinuo arrebentar dos taquarussús, da lucta aberta por Francisco Benedicto.
estron loso eomo uma descarga de arti- Foi uma tamporaria falta de combustível
lharia, dava rebate medonho, que obri- á machina da vingança, cuja pressão era
gava a gente do:-- eito, cansada pelo regulada pelo odio e pela impunidade.
trabalho de um dia inteiro, a accumular Sebastião, o amigo predilecto e obse-
fadigas penosissimas-ao seu cansaço. quioso do aggregado, tinha desaparecido
Outras vezes grande parte da madeira da sua intimidade, deixando após si um
que estava amontoada no porto amanhe- rasto ináelevel a deshonra do lar do
cia afundada nas aguas, e a gente era amigo.
fèrçada a ficar, logo de manhã, por largo
Um dia a familia de Francisco Bene-
tempo molhada para não deixar perdidas
dicto foi torturada por um acontecimento
as grandes toras de arvores preciosís-
cruel. Chiquinha, que sahira a espairecer
simas.
a sua enfermidade, passeiando pelos
Não havia, eoaflm, acto por mais aceiros das roças, não tinha voltado á
iniquo e detestável, que não fosse com- casa.
mettido para desafogo do cdio do ag-
gregado. B iteram se todas as circomvisinhanças,
mas debalde ; a moça não appareceu.
Fidélis, o resoluto feitor, só dispunha A primeira idés* que assaltou o espirito
de dois recursos: ameaçar os provoca- do aggregado foi a de ter sido victima
dores e participar essas desagradaveis de uma cila ia de seu compadre, que pelo
occorrencias a seu senhor. aprisionamento de Chiquinha tentava
Taes meios eram escrupulosamente uti- impossibilital-o de continuar a vingar-se.
lisi los, porém tornavam-se improfícuos Se tal hypothese procedesse era medida
porque o aggregado não temia ser cons- tão justa como a que antigamente toma-
trangido pela severidade da lei a cohi- vam as nações, exigindo refens, para
bir-se, nem também que a arbitrariedade conterás invasões das outras..
98
MOTTA COQUEIRO

As pesquizas do subdelegado e do ias dcu lhe com a maior ingenuidade pos-


sível:
peetor provaram, porém, que semelhante
supposição era mais um producto mons- — Os nomes que mais assentam em
truoso da imaginação encadeeida do ag- creanças bonitas são Francisca e Ma-
gregado, e flzeram-o ver claramente a nuel.
verdadeira . causa da ausência de Chi- Não havia, pois, nenhuma duvida para
quinha. Chiquinha. Olhos demasiado curiosos e
A moça tinha sido raptada pelo vio- ânimos pessimistas já penetravam o seu
leiro. segredo, e as palavras destacadas, e os
Em consciência, este desgosto tinha epigrammas apparentemente despreten-
sido dado á familia de Francisco Bene- cíosos acabariam por dispertar a attenção
dicto mais por vontade da raptada do geral e perdel-a no conceito de seus pais.
que pela do seductor. Apegou-se, pois, a uma derradeira
A tia Balbina advertiu á moça de que esperança : consultar a tia Babina; mas
ella não poderia ficar nem mais um mez da consulta resultou a certeza dolorosa
na casa paterna sem que o seu estado de que não era possível illudir por muito
fosse conhecido por todos. tempo. Então, impelliia pela vergonha,
De feito, o proprio Francisco Benedicto insistiu com Sebastião para abreviar o
repetia por vezes o gracejo acerca da mo- consorcio, e finalmente submetteu-se á
léstia de sua filha : única solução que o violeiro achava
— Era caso para perguntar-sa quando rasoavel — a fuga.
era o baptisado, se o Sebastião já tivesse Certo da deslealdade do amigo, Fran-
effectuado o recebo a vós. cisco Benedicto descortinou por alguns
E phrase ainda mais significativa disse dias a serie de males que o esperava,
o inspector André na noita da mudança compreiíendeu que não tinha junto de si
pára a casa nova. o apoio decidido e leal com que contava,
Para testemunhar o seu jubilo pela en- e nem ousou vingar-se de Sebastião, nem
trada de Francisco Benedicto no numero a continuar com as provocações ao fa-
dos pequenos proprietários da localidade, zendeiro.
o inspector não só compareceu á brinca- Sentia, tarde já, que a inimizade com o
deira, que foi preparada, mas também seu compadre punha-o inteiramente a
concorreu com uma leitôa. descoberto dos insultos de toda sorte, ao
Ao entregar o presente ao aggregado, passo que os seus amigos Oliveira e André
o dissimuladissimo André disse ttravez adiavam sempre a punição d'elles.
de sua galhofa maliciosa e perenne: Náo tinha em quem confiar. O Vianna
— A minha brinquinho deu-me nada tinha cortado completamente s« relações
menos de uma dúzia de leitões d'essa bar- consigo e sem que Francisco Benedicto,
rigada : dois d'elles são para esta casa; por uma insignificância qualquer, lhe ti-
um cá está, o outro virá no dia que sa vesse cffsndido, perseguia-o pela divida
Chiquinha sabe. contrahida na sua vendola.
Ainda a impressão (Testas palavras não Os seus amigos, auctoridades do logar,
se havia desfeito, ainda a insinuação im- longe de promoverem a conciliação dos
piedosa que tinha feito feria os brios de dois, tinham até concordado com o Vianna
Chiquinha, e novo golpe, e e3te maia cer- que o melhor meio de cobrar a conta era
teiro e profundo, foi desfeshado pelo ins- obter penhora dos bens do aggregado.
dector. Além d'esta queixa uma outra veiu es-
Acercando-se da moça, André segre- friar a confiança entre os amigos.
99
OU A PENA. DE MORTE

Uma tarde Mariquinhas desceu para um Em passando as eleições falle commigo.


ribeirão que serpeiava algumas braças O desengano era por demais expressivo
distantes da casa. e não havia contar ccm a punição do ex-
A n t o n i c a e sua mãi, sentadas no terreiro
feitor.
e occupadas em Costurar, ouviram o can- Todos esses acontecimentos que sobre
tarolar monotono da moça, que tinha ido maneira entristeciam o aggregado tinham
dobrar a roupa lavada. influencia bem diversa no espirito de An-
De repente, a inonodia ©svaeceu-se e tonica. .
a l g u n s minutos depois era substituida por
Firme na sua afeição pelo fazendeiro,
gritos de soccorro soluçados do lado do cujo caraeter nobre e generoso conhecia
perfeitamente, cada uma das decepções
ribeirão.
que seu pai recebia, cada offensa que fa-
Correndo apressadas para lá, Antonica
' ziam-lka os seus suppostos amigos, eram
e sua mãi receberam nos braços Mari-
quinhas, pallida de susto e offogante de motivo de alegria para a moça que d'esta
c a n s a ç o . O cor pinho, do seu vestido estava
sorte via vingado o eleito dos seus sonhos.
quasi todo dilacerado e pelo pescoço da As suas faces que tinham perdido a côr
m o ç a merejava o sangue, dentre arra- agradavel da saúde, iam agora readqui-
nhões extensos. rindo-a, e os lábios, que pareciam ter
Quando Mariquinhas recup^ou a calma desaprendido as crispaçõas leves dos sor-
e poude fallar, interrogada pêlos s e u s risos joviae?, já abriam se agora, rubros
insistentemente, respondeu, fundindo-se como pétalas de rosa, para darem pas-
em pranto. , sagem a francas risadas.
— F o i . . . . f o i . . . . um quilombola 1 Os olhos, amortecidos outr'ora, tinham
O irmão de Mariquinhas, assim como presentemente o brilho peculiar da tran-
seu pai' tinham corrido immediatamente quillidada e os olhares escarninhos e
attrahidos pelos gritos, mas ao passo que ousados que lhe eram congénitos.
Francisco Benedicto correu para a frente Dava-se em Antonica uma verdadeira
da casa, Juca Benedicto dnigira-se para resurieição: as cinzas tristes do coração
os fundos. da moça, as mortas chimeras da mocidade
Quando chegou á casa, o rapaz per" recompunham-se e afeiçoavam-se pelo
guntou se não tinha estado ahi o ex-feitor- divino galvanismo do amor.
— Nãol respondeu Antonica, admirada. Antonica era de novo feliz, porque
— Pois não se me dava jurar que eu não contava com a inconstância da
vi Manuel João correndo para dentro da fortuna.
matta, e até lhe fiquei obrigado pelo ser- A amisade do violeiro e do aggregado
viço. VccÔ não o via por lá, Mariquinhas ? não demorou a reatar-se por vínculos in-
A moça meneiou negativamente a ca- dissolúveis na vida. A necessidade reci-
beça, mas os seus soluços como que do- proca era o nd que os prendia e desdai-o
bravam de força. era um perigo cujas consequências fu-
Convencido de que era o ex-feitor o nesta» já a experiencia podia aquilatar.
auctor dos ferimentos de sua filha, o A inactividade, em que Francisco Be-
aggregado foi pedir providencias ao seu nedicto jazeu durante o tempo da indis-
amigo inspector, mas este respoadeu-lhe posição com o violeiío, provava exube-
serenamente: rantemente o aaerto da alliança, e por
— Descance, seu Chico; eu por ora não isso mesmo o pai de Chiquinha não duvi-
posso fazw nada ; as eleições estão pró- dou seeitar as desculpas que lhe foram
ximas e eu não hei de recrutar o rapaz oferecidas pelo amigo.
que já me jrometteu votar comnosco. Bem simples foram estas*
í
!
/

100 MOTTA COQUEIRO

Sebastião confessau-se culpado de le&a- a carta ; por força ha de tar dado ordem,
amisadé, mas attenuando a „ sua culpa ou ha-de mandar dar ordem aos escravos
pelo impossibilidade de resistir a torrente para me fazerem uma espera. Livra-te
das circumstancias que o arrastou na sua dos ares que eu te livrarei dos males;
onda vertiginosa. foi o que eu pensei. Indo todos os dias á
Chiquinha padecia a olhos vistos: não sua casa, seu Cliico, era fácil uma escora
tinha mais a frescura da mocidade, já no e depois .quem perdia a vida era eu, por
seu semblante não brilhava o plenilúnio que o diabo tem muito dinheiro para com-
d i paz intima que se esbatia em sorrisos prar a justiça.
deseuidosos, em galanteios delicados. — Não fallemos mais nisso, Sebastião,
Ao contrario: as lagrimas destruiam-lhe decidiu Francisco Benedicto; o que lá
a pouco e poueo a grasiosa carnação do foi lá foi, tratemos do dia de amanhã.
corpo, e, como os deposites sedimentares O armistício involuntário que tinha sido
a contextura primitiva do mundo, altera* concedido ao fazendeiro estava definiti-
vam-lhe a harmonia dos contornos, e a vamente findado pela volta de uma das
regularidade feerica das feições. potencias belligerantes ao pacto de guerra.
Semelhante ao passaro cujas azas foram Cumpre, entretanto, affirmar que as
molhadas pela tempestade, e sem tentar novas operações reduziram-se a simples
um vôo queâa tristemente pousado no escaramuças com o fim de arranjar pro-
galho secco de um pequeno arbusto; Chi- visões.
quinha, sentindo ss suas aspirações pre- Um serio confficto, que evitou-se por
sentemente cerceadas conservava-se re- uma felicidade quasi milagrosa, acirrou
signada no seu desconsolo. os odios e reaccendeu o fogo' dos commet-
Mas o passaro entristecido lamenta-se timentos.
em pios plangentes; assim também a moça O feitor Fidélis acompanhára alguns
desventurada carpia a sua desdita em dos seus parceiros ao mandiocal, para
fiebeis suspires. arrancar-lhe as raízes nutritivas. Ahi
Havia *só dois caminhos para mim, encontrou o Juca Benedicto provendo-se
accrescentou ainda o violeiro, ou aban- indevidamente; e este, longe de descul-
donar a infeliz Chiquinha, o que seria a par-se, continuou no seu furto sem dar a
sua morte; ou adoptar um meio qualquer menor importancia ao feitor.
para aviventar-lhe a esperança, até que — Glá, exclamou Fidélis, isto é então
seja possível effectuar o eonsorcio. roupa de francez, ou easa de viuva ?
Prevenindo a objecção muito procedente: O rapaz, sem responder palavra, e fin-
—ninguém na casa de Francisco Bene- gindo não ter visto os recem-chegados,
dicto impedia-lhe as visitas e familiarida- nem mudou de posição. Todavia como ti-
des, o violeiro defenáeu-se logo com a vesse arrancado um pé de mandioca, em
conversa que Lucio Ribeiro disse-lhe ter vez de quebrar simplesmente o caule frá-
ouvido a Faustino. gil, tirou da cintura uma larga faca de
O resultado das explicações do atilado matto e com ella decepou as raízes. Em
Sebastião foi hão s<5 o perião, mas tam- seguida tomou a rama do arbusto e a re-
bém o reconhecimento do aggregado pela petidos golpes partiu-a em pedacinhos.
coragem com que o seu amigo se expu- Feito isto passou a arrancar outro pé.
nha aos golpes do fazendeiro. — Formiga quando quer se perder cria
— Já vê, seu Chico, as cousas como azas, resmungou Fidélis; e levantando
se passaram: eu mandei dizer a D. Maria logo a voz, bradou : ohl seu Juca, você
o que fazia por cá a joia do marido; elle errou o seu mandiocal, este é de meu se-
já sabe que fui eu quem mandou escrever nhor.
104 MOTTA COQUEIRO ,

— E eu parque sempre accordo a esta — Aonde então hei de ficar á sua


hora. espera ?
— Deve ser assim mesmo, sa Antonica; Francisco Benedicto meditou um pouco
é para não desmentir o verso : e depois respondeu vivamente :
— Nos taqaarussús; ahi não pôde
Quem tem amores não dorme, falhar.
Q lem dorme não tem pensão. — B' como esperar um veado no rio.
O violeiro não demorou muito; despe-
— Seja o que vosmecê quizer; sabe diu-se da família e partiu.
mais da minha vida do que eu. Ao ver o seu gratuito apoquentador
— Eu s<5 lhe digo que se farte bsm de retirar-se, Antonica poude emfim res-
vel-o boje; faça matalotagem para a sua pirar.
saudade, porque amanhã... porque ama- Tal presença incommodava-a dupla-
nhã o sitio já ha de estar vendido. mente : nunca lhe perdoara o desgosto,
Uma risada prolongada acompanhou por elle causado á sua mãi pelo rapto de
as ultimas palavras do violeiro, emquanto Chiquinha, e além d'isso seria testemunha
que ás faces de Antonica véstiam de uma da sua perturbação, e um vigia a por-lhe
livdez cadaverosa, que exagerava ainda obstáculos.
mais a côr, os discos de amethista que Rápido contentamento ; maior contra-
serviam de palpebras aos olhos tristes. riedade do que a presença do violeiro veiu
Òvioleiro tinha comprehendido ajusta logo turvar lhe a alegria que sentira ao
causa da madrugada de Antonica; vinha despertar.
com éffeito beber com os olhares ternos O seu egoísmo de amante regosijava-se
o philtro da seducção que a assenhoreiara com a exigencia paterna, descommunal
e ao qual ella não ousava resistir. embora. E' que via ahi uma demora no
— Yeja se quer governar-me também, ajuste e portanto maior espaço para con-
respondeu despeitada; e lembra-se que templar o fazendeiro.
ainda vem a esta casa porque ha homens Mas estava marcado, talvez pelo desti-
que não merecem este nome. Não se sa- no, que para ella não haveria mais esta-
tifez com desgraçar uma das filhas do bilidade ; todo o sentimento grato devia
amigo, quer diffamar a outra. Pdde con- esvaecer-lhe como um sonho.
tinuar v Francisco Benedicto, segurando o seu
Ha uma força invencivel sobre a terra, forte manguá, sahiu depois de ter dito
ê a dignidade nas suas explosões sinceras. á mulher que ia dar a r e s p o s t a ao com-
Antonica, por intermedio d^lla, pôde re- padre e que depois seguiria in continenti
tirar-se, fazendo calar a mofa do violeiro. a conciliar-se com o Yianna.
Francisco Benedicto veiu d'ahi a pouco A resolução do aggregaio foi uma pu-
tomar mais agradavelmente junto de Se- nhalada cravada no coração de Antonica:
bastião o logar deixado pela moça. frustrava-lhe a occasião de vêr o fazen-
deiro, e, perdida esta, qaando se apresen-
— Então, já está prompto ? perguntou taria outra ?
o violeiro.
Era mais de meio dia quando Motta
— Estou, mas devemos sahir com horas Coqueiro, cançado de esperar peio ag-
differentes, para não haver suspeita. gregado, resolveu ir procural-o para
— E se elle vier primeiro ? obter a decisão do negocio que tanto
— Qual; ha de esperar que eu vá lá interessava ao seu bem estar.
fallar ; o aggregado é o mesmo que um A Sra. D. Maria, sempre prevenida
escravo. para com os sertanejos, queria que o seu
OU A PENA DE MORTE 105

esposo levasse em companhia dous escra- Parecia que as forças haviam-a aban-
vos p a r a defènderem-ó de qualquer assal- do o ado, tornando-sa-lhe impossível dar
to, por ventura planejado; mas o Corajoso um s<5 passo. E' que a dominava um des-
fazendeiro, .referindo o que se tinha pas- falecimento hypocondriaco, um d'esses
sado dous dias antes, os modos humildes, spasmos moraes que entorpecem os mús-
e a deliberação em que Francisco Bene- culos e concentram todas as faculdades
dicto fingiu estar acerca da venda do si- em um ponto único, semelhantemente a
tio, hegou-se a ouvir o conselho que sè lhe um abat-jour á luz de um foco enorme
d a v a e: partiu s<5, cavalgando o seu fogoso em superfície restricta.
e celérè alazão. De súbito, porém, electrisada por um
Não obstante a resistencia do marido, a presentimento, voltou-se para dentro e
cautelosa senhora não abandonou a sua perguntou á sua irmã :
prevenção, e pouco depois de Motta Co- — o capitão não d"isse se hoje falloú
queiro fez sahir Carlos no seu encalço. já com papai ?
O moleque? obedecendo a meio,a ordem — Não, respondeu Mariquinhas distra-
recebida, seguiu a principio a galope, hidamente, perguntou sómente por elle.
porém logo depois na vagarosa marcha — Meu Deus, meu Deus 1 eu sinto tanto
do animal, guiando-se pelas pegadas das medo, parece-me que vai scontecer al-
patas do alazão. guma desgraça, murmurou Antonica.
Para atalhar caminho, o fazendeiro — O que é que você está dizendo, mana?
entrou pelo interior das suas roças, con- — Ah! sim, gritou a infeliz ; eu dizia
duzido ora pelo gàíõpar largo, ora pela que ó mais certo que papai tenha ido pri-
andadura veloz e uniforme do seu corre- meiro visitar Chiquinha.
dor, distanciando-se assim cada vez mais — Ha de ser isto.
do seu pagem. Antonica terminou o dialogo sahindo
N | o tardou muito a achar se diante da apressada e cautelosamente, e quando j á
casa de Francisco Benedicto, onde foi in- não podia ser vista correu incansavel-
formado de que este sahira justamente mente até a margem do ribeirão atola-
para' áicidir a venda. diço que espreguiçava o seu dorso limoso
algumas braças distantes do fundo da
— Então não ha tempo a perder, obser-
vou Motta Coqueiro; vou encontrar-me casa.
com elle em caminho. Atravessou-o animosamente por sobre
uma tora estreita que se lhe superpunha
Bando de radeas ao valente alazão, to- e, trepando pela margem opposta, re-
mou pela estrada geral, que apresentava folegou, para de novo correr por urna
o seu lombo vermelho no meio do capoei- picada do câpoeirão até á beira da
rão, como disforme coral estendida a fio estrada.
comprido sobre um capinzal.
Pensava que, por maior velocidade que
Quando elle sumiu-se na grande volta pudesse obter do seu invejável alazão, o
do caminho, Antonica veiu encostar-se fazendeiro não podia ainda ter passado
ao umbral, embebidos os olhares lamen- por aUi.
tosos na direcção tomada peio cavalleiro. De feito a topographia do logar funda-
Transluzia-lhe no semblante a eloquen-
mentava esta supposição. O valle, ser-
ciá arrebatadora da saudade, e logo se
vindo de escoadouro a enormes brejaes,
lhe deslisou do coração aos lábios uma
obrigava a estrada a uma volta alcmga-
queixs, repassada de tristeza : -
dissima e extremamente caprichosa,acom-
— Nem perguntou por m i m : soluçou panhando mais ou menos a fralda dos
baixinho a sua voz commovida. I morros visinhos.
106 MOTTA COQUEIRO

Para bem figurar o traçado, imagine-se — Não, não ha, mas pdde haver coisa
uma secção feita pela altura de um cone, peior, muito peior; Carlos, uma embos-
cujo vertice era occupado pela casa nova, cada e teu senhor morrerá.
Quando chegou a estrada estava deserta, N'este momento atroou, reproduzindo-
Amendrontada por sua própria cora- se por longo tempo no écO, ã detonação
gem, Anto ica, offegando de cansaço, não de um tiro.
atreveu-se a ir adiante; ficou occulta Quem n'este momento estivesse cerca
entre os arbustos marginaes da estrada. de um quarto de leçua de distancia do
Pendiam-lhe sobre ella, carregados de logar em que se achavam Antonica e o
cachos vermelhos, os ramos de enorme psgem, sssistiria a uma scena da mais
arueira ; em torno e em cima estendia-se cruel deshumanidade.
o silencio do céu a transbordar de luz ; Sobre a estrada pouco espaçosa incli-
da natureza asphyxiada pela canicula. navam-se, formando uma abobada folhuda
Para distrahir-se e desfarçar o temor, e virente, as ramificações e as pontas dos
Antonica puchou um dos ramos pendentes estipítes de taquarussús gigantescos.
e. cortando com os dentes um dos cachos Uma continua escuridão entristecia o
de fructos, começou de arr-ãnca-Ios repe- logar, porque a estrada, estreitando e en-
tindo baixinho, bem me-quer, mal-me- curvando-se como um pescoço de cysne,
quer. fazia com que as arvores marginaes qnasi
O estrupido de um proximo galopar entrelaçassem os galhos, improvisando
veiu tiral-a promptamente da sua distrac- uma espessa cobertura.
ção, precisamente no momento em que se Os raios do sol apenas coavam-se, dese-
despegava o ultimo fructo,correspondendo nhando no solo um crivo de sombra e luz
a uma grata lisonja : bem-me-quer. que, oscillando á mercê da viração, orà
Impellida pelo coração, sentou-se á abria as grandes malhas lúcidas, ora
beira do caminho e, derribando os olhos, adensava as largas manchas de sombra.
esperou por aquelle a quem se sacrificaria Ahi, d'esde o amanhecer, estavam em-
sem escrapulos.
boscados á espera do fazendeiro o aggre-
De chofre o som io galopar extinguiu- gado e o violeiro, para executarem um
se, e uma voz alegre fez ouvir. assalto conforme o plano traçado por este.
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Era de feito o melhor logar; não s<5 a
Christo, sa Antonica.
estrada estreitava-se, mais ainda fazia
Ainda Antonica não tinha voltado a si uma depressão, erguendo de um lado um
da profunda decepção, quando Carlos, que alto barranco. O declive ia terminar n'um
era quem a saudava, continuou: brejo que estendia o seu atoleiro até meio
— Senhor já passou por aqui ? da estrada.
Esta pergunta chamou Antonica ao Qualquer transeunte era, portanto, obri-
triste presentimento que a trouxera até gado a aproximar-se muito dos taqua-
alli, e acudiu de afogadilho: russús para não atufar-se no lodo.
— Vai, vai já, Carlos; um momento Aquelle que se emboscasse entre a enor-
mais e talvez... vai, vai já. me toceir-a das grandes taquaras podia
O moleque, talvez recordando a scena a sem perigo accommettér sem temor de
que tinha assistido na sala de jantar, não represalia : defendia-o uma couraça tres-
se deixava comoaunic ir pela anaiedade da dobrada.
moça; ficou frio e perguntou em tom es-
Quando Motta Coqueiro, no largo e des-
carninho:
cuidado trote do seu alazão, ia costeando
— Ha onça peio caminho ou algum boi o meio da grande curva da, estrada,
bravo ? Francisco BeneSicto desfechou-lhe a pri-
OU A PENA DE MORTE 107

meira paulada, que foi bater no hombro cuidado era defender-se para impedir a
do fazendeiro. ; derrota inevitável.
O alazão estacou de súbito, e o seu dono Uma paulada, vibrada por Sebastião,
tomou a attitude da defesa. Engatilhou lançou-o por terra afinal, inundaio n'um
rapidamente a pistola, e esperou como lago de sangue.
sangue frio que lhe era peculiar. Upa, upa, ouviu se n'este momento,
O aggregado apparéceu então sobre a ao mesmo tempo que o estrepiâo de uma
ribanceira. galopada.
— Matame, seductor e ladrão da gente — São 03 escravos do malvado; não ha
pobre; acaba assim a tua infâmia, não minuto a perder ; fujamos, seu Chico.
será a primeira que tenhas feito. Os, dois miseráveis galgaram preste o
_ Ora, compadre, você nunca tomará barráncó © internaram-se na matta,
juizo, homem f Yá para casa dormir que a-ados pelo teoôor ^o castigo.
é do que você precisa. Eu perdôo-lhe por De feito, não se haviam enganado.
esta, mas a menor cousa que me conste Ouvi 3 o o tiro disparado por Motta Co-
eu lhe farei as contas. Passe bem. queiro, um grito desolador, arrancado
Confiado na arma que empunhava, e peia paixão ao coração de Antonica,
ainda mais no seu possante alazão, Motta sanctiflc&do pélp soflrimento, misturou-
Coqueiro tentou seguir. se á detonarão, que transudava do seu
— Babado, não e? estou b ,bado; esta é roufenho arruir um pensamento ãe morte
a resposta. no espirito da moça.
O manguá vibrado pelo aggregado le- A desventurada amante cahiu de joe-
vantou-se sobre a cabeça do fazendeiro, lhos, e com voz quasi sumida, murmurou:
que disparou a sua arma, ao mesmo tempo —f Meu pai matou seu capitão 1
que esporeou o animal. — Malvado, bradou o molequê, hei de
matal-o também.
O manguá foi arrebatado pela bala das
Curvando-se sobre o cavallo esporeou-o
mãos de Francisco Benedicto; mas ao
mesmo tempo o alazão esticou se em rá- e partiu á brida solta, gritando com o
pido arranco e Motta Coqueiro foi vare- duplo fim de annunciar o proximo soc-
jado em terra. corro e incitar o corredor na sua dis-
parada.
Um novo inimigo veiu collocar-se-lhe
em frente, e este, mais pujante e mais te- Era uma tosca imitação do despeia
mível, era Sebastião Pereira. mento indomável do tartaro de Mazeppa.
Os arbustos, como que amedrontados,
Fôra elle a causa da quéia * do fazen-
passavam semelha-ntes a relampagos por
deiro.
diante do cavalleiro, e o ar, vibrado vio-
Manejando um grosso cacete arrancou lentamente, assoviava o cântico ironico
as redeas da mão do cavalleiro, que foi da vertigem.
inopinadamente arremessado pelo alazão. Atoleiros, pequenas pontes, tudo era
Começou uma scena horrível; um passado de súbito. O chão e os cascos do
homem inerme era forçado-a defender se animal formavam uma engrenhagem in-
contra dois outros que tinham a favcr n&o visível, rodando com o movimento do tur-
só as armas, mas também a fria premedi- bilhão.
tação do crime. Não era uma corrida, mas um vôo ; as
— Eiswos agora em frente, descaio, azas emprestavam as o temor e a dedica-
exclamou o violeiro ; ou morres d'esta ou ção.
has de guardar sigaal para toda a vida. — Upa, upa, bradava continuamente o
O fazendeiro não respondeu; tcdo o seu cavalleiro ; upa, valente !
108 MOTTA COQUEIRO

Áo entrar na grande curva do caminho, —Não, não diga, o coração de meu se-
empinando-se bruscamente sobre as patas nhor está batendo» veja.
trazeiras, o corredor- obstinou~se a não Felizes aquelles que sabem amar : têm
seguir, e tomando o freio entre os dentes, na própria desventura, nas horas da maior
voltmi na mesma desfilada. angustia, alegrias indisiveis. Para ssrem
Era impossível resistir-lhe ; Carlos pu- venturosos basta-lhes somente a espe-
lou resolutamente e correu. rança.
A poucos passos do logar em que o Ca- Antonica certificou-se de que ainda ba-
vallo refugara, jazia Motta Coqueiro es- tia um coração sob o peito do eleito de
tendido sobre a estrala e banhado em sua alma, e depois fez os seus lábios tes-
sangue. temunhar de que ainda por entre os Ja-
— Soccorro! soccorro Imataram o meu » bios d'elle passava o sopro da vida. Nas-
senhor, bradou Carlos dando de face com ceram-lhe espontaneamente os desvellos
o corpo do fazendeiro* de mãi, e, solicita, tráteu de prestar os
primeiros soccorros. " Coroou-lhe a felici-
S<5 o éco incumbiu-se de repetir-lhe,
dade os exforços ; as palpebras do fazen-
como por'éscanieo, as palavras cunhadas
deiro venceram em fim o torpor que as
pela sua sífilcção, e quando o som da sua
parslysava.
voz extinguia-se em successivos susurros
— Está melhor, não é ; já está melhor?
gradativamente esvaecidos, sobrevinha o
sorriu a dedicada amante.
profundo silencio dá matta, que exage-
— Covardes 1 murmurou o fazendeiro,
rava a tristeza do quadro. .
e cerrou novamente as palpebras.
— Meu senhor, meu senhor! conti-
A soffreguidão avassallou o animo de
nuava o pagem; sou eu, Carlos, o seu es-
Antonica ; nao podia mais conter-se ;
cravo Carlos.
queria convencer-se de que Motta Co-
E o afílicto rapaz apalpava e sacudia o queiro não estava irremediavelmente
desmaiado com uma impaciência febril. ferido.
— Ah! meu Deus; podem pensar que — Esc ato ; sou eu. Antonica ; os mal-
fui eu. Soccorro! vados já se foram, estamos eu e Carlos.
A mão de Carlos collocou-se sobre o Tenha animo. Deus ê grande; ha de
coração do fazendeiro. ficar bom.
— Está vivo; meu senhor 1 diga que As palavras da moça chamaram era fim
não fui eu; <5iga a todos. o fazendeiro á realidade. Sentou-se cheio
O infeliz pagem delirava e estafava os de espanto, e olhou ao redor de si.
pulmões em gritos de soccorro, disfar- Devia iulgar-se no curso de um pesa-
çando <festa sor to principalmente o te- dello, porque na verdade era incrível tão
mor de ser considerado o assassino do nobre dedicação na filha do ingrato que
seu senhor. lhe pagava os bsneficios recebidos com
Alguém veiu dentro em pouco tempo ua£>a tentativa de assassinato.
segundar os seus exforços para chamar Não menos para sorprehender era a
o fazendeiro á vida. dor estampada no semblante de Carlos.
Offegante, com os olhos avermelhados O generoso escravo esquecia n'aquelle
e as mãos tremulas, Antonica desceu cor- momento que estava em face de um se-
rendo a pequena ladeira, e veiu sentar-se nhor, e chorava como um homem de bem
junto d'elle, collocando sobre o seu collo a morte de um amigo.
a fronte ensanguentada do fazendeiro. — Antonica 1 exclamou elle, depois do
— Morto 1 os covardes mataram-o por primeiro espanto; p m ê você, minha
minha causa, por mim que o amo. filha ?
OU A PENA DE MORTE 109

— Vim pedir o seu perdão para a mal- — Adeus l respondeu Antonica n'essa
dade de meu p a i ; vim. pedir lhe que não triste entoação da condescendência quei-
me tenha odio ; eu não pude evitar, res- xosa, e levantou-se.
pondeu Antonica. — Talvez não nos vejamos nunca mais,
As. lagrimas corriam-lhe em fios, e os minha filha; quero que também me con-
s o l u ç o s trancavam-lhe as palavras. Pai- cedas um perdão; cohceães ?
r&va-Iha sobre o semblante a solemnidade Antonica acenou afirmativamente a
de uma boa acção, ô amor conquistava cabeça.
n'osta hora um perdão que se podia crer — Perdoa-me o s-.ffrimento de que eu
imporsivel—ó perdão do aggregado, teaho sido causa; perdoa me, porque eu
Porque havia eu de o;iial-a, Antonica? não faço mais do que cumprir com os de-
Nem odeio a teu pai; são a embriaguez e veres de honra para comtigo e para com
a malv&deza d*s Sebastião os seus anjos os meus.
èíáus; perdôoo sim, porque tu és boa, és — Eu já não me queixo, respondeu An-
uma santa. • tonica. ê o meu destino. Adeus.
— Eu hei de estimai-© ainda m á s . Bom Apenas alguns passos tinham sido
e santo é voss-.e;:ô; Deus ha de pagar-lhe. dados pela moça, quando Carles avisou a
Uma eífoaSo de ternura immaculada seu senhor de que se aproximava a
correspondeu ás palavras de Antonica. gente do sitio.
O olhar do fazendeiro COÍBO quecreava em Tanto melhor, respondeu Motta Co-
torno de si um mundo para os seus co- queiro, não ficarei sdsinho.
rações afinados ambos pela bondade. Com effeito, ouvia se perto? o tropel de
Machinalmente cingiu contra o peito a uma cavalgada e antes que Antonica ti-
meiga filha do aggregado e pagou com vesse tido tempo de occultar-se, Carlos
um beijo, rcçsdo na sua fronte descorada, exclamou cheio de espanto :
tanta coragem e amor. — É' minha senhora, meu Deus, é mi-
Mas comô se uma força mysteriosa os nha senhora.
repellisse, este abandono do amor não Na extremidada da curva appareceu,
demourou-se ; os lábios do fazendeiro re- montada em um forte mursello, a Sra.
tiraram-sa e ao beijo succeieu um estre- D. Maria. Os pés de Antonica negaram-se
mecimento. a caminhar; a apparição produzia lhe o
— E' necessário que você parta, que effeito de um espeetso.
volte para a cara de seus pais. Apeiando-se apressadamente a corajosa
— Porque? esposa, que adivinhara o acontecimento
— Porque ninguém acreditará que eu pela" chegada do alazão, disparado e só,
lhe voto o respeito de que você é digna, apertou nos seus braços o fazendeiro.
Antonica; hão de jdgar-me seu smante. — Bem m'o dizia o coração, soluçava
— E que me importa a mirn ? não sa- ella; mas havemos de vingar-nos, seja
birei d'aqui antes de vel-o partir. embora necessário vender o meu ultimo
— E' um comproraettimento, minha cordão de ouro. Covardes 1
filha, Q bastaria que alguém aqui ncs Houve um momento de silencio/De re-
visse, p^ra que seu pai justificasse o seu pente a Sra. P. Maria, tendo olhado em
crime. Parte, parte já, minha filha. volta de si, exclamou com a v<5z travorada
O fazendeiro ordenou em seguida ao de cólera:
seu pagem que seguisse Antonica, e ellá, — o que veiu aqui fazer aquella mulher I
sem íerçss para resistir, apenas protes- Motta Coquiro respondeu severamente:
tou abaixando os olhos. — Ouviu os gritos de soccorro, e teve
—AdeusI disse commovido o fazendeiro.
a coragem de vir.
110
MOTTA COQUEIRO

— Então não foi ella a causa da embos- tonico, por mais alheio aos anhelos
cada ! . . . sensuaes, o affecto votado pelo fazendeiro
— Não ; é uma infeliz ; culpada, não. á Antonica era uma espoliação ao con-
sorcio.
IX Convinha, portanto, desarraigal-o, dés-
truil-o como se faz com as hervas e
UM COMPROMETTIMENTO FATAL
os animaes damninhos.
• respeito que, pela modéstia, sobrie- A resposta de Motta Coqueiro proferida
dade de palavras, e maduresa de animo, o com um accento simples, mas solemne dè
fazendeiro conseguiu sempre inspirar á decisão, impedia á Sra. D. Maria tomar
sua esposa, obviou milagrosamente as qualquer expediente, qua não fosse o da
sérias dificuldades da situação embara- indiffer<»nça ou o da gratidão.
çosa. Escolheu o primeiro caminho,e a amante
O coração da mulher é, como pensava o retirou-se acompanhada por Carlos, em-
poeta inglez, um bello defeito da natu- quanto que por sua vez o fazendeiro e a
reza. Divide o em duas partes distinctas sua esposa acompanhados peles escravos,
e contradictorias uma separação fragi- seguiram para o sitio.
lima, feita de apprehensões e susceptibili- O ferimento capital não apresentava
dades: em cima azula-se um firmamento, gravidade, e o sangue poude ser facil-
em baixo ennegrece-se um abysmo. mente estancado, a vista do que Motta
Um abalo é bastante para oecasionar Coqueiro manteve-se na resolução de
uma explosão de trevas ou um transbor- tomar por única desforra a retirada de
damento de luz; as temeridades do ciúme Francisco Benedicto de suas terras.
ou os s&criflcios do amor. Sua mulher, porém, não se resignava,
Ha uma só excepção; é a que encerra nem podia satisfazer-se com tão pouco;
os corações apathicos e indifferentes, incandeciam-se-lhe á proporção que pas-
verdadeiras monstruosidades. savam as horas os seus brios de fazen-
A Sra- D. Maria não era excepcional; deira respeitada, e senhora de alta socie-
amava com a boa vontade de um espirito dade.
que encontrou no mundo um outro para Só por uma lição estrondosa, entendia
còmpletal-o nas alegrias, assim como nas ella, o seu marido poderia de novo entrar
dores, e por isso mesmo deixava-se facil- nas salas de seus amigos com a cabeça
mente avassallar pelo pânico de perdel-o. erguida.
A presença de Antonica revivera-lhe as — O que tenciona o senhor fazer a
angustias que lhe tinha causado a carta esse ingrato e ao seu cúmplice ?
anonyma forgica la pelo violeiro, graças — Entregal-os ao desprezo, respondeu
ã pericia de Lycerio, o rabula venal. fieugmaticamente o fazendeiro; são tão
Demonstrava-se claramente o amor da miseráveis que nem vaie a pena perse-
filha do aggregado para Motta Coqueiro, guil-os.
e embora estivesse absolutamente con- —E o que havemos de dizer aos nossos
vencida da nobrasa de caracter d'este, amigos, quando se espalhar o boato de
todavia arreceiou-se de que de futuro não que o senhor foi espancado por um aggre-
se alevantassem mais alto do que a refle- gado, que assim vingou a seducção de
xão os vôos da sensibilidade e da com- uma filha ?
paixão. — Direi que ó uma calumnia tão mal
Nem sempre o amor é filho da exalta- engenhada que basta uma simples consi-
ção dos sentidos, muitas vezes nasce da deração para confundil-a': o. homem que
piedade, e em todo o caso por mais pla- foi companheiro do supposto paioffendido
OU A PENA DE MORTE 111

na desaffronta imaginam) de sua honra, — E vocês não tem mãos ? Se elles re-
raptou-lhe uma das filhas.' sistir em tragam-os á força, tragam os seja
— Aeaiumnia será de preferencia acre- quando fôr, estejam aonde estiverem.
ditada porque a aggressão realisou-se, e Fidélis sahiu satisfeito; a feitoria esta-
não tardará que todos venham a saber va-lhe definitivamente entregue; não
que é real o amor de uma das filhas do havia mais possibilidade de passar ás
aggregado peio senhor, mãos de Francisco Benedicto.
— P a c i ê n c i a ; eu não posso retribuir a Além disso facilitava- se-lhe uma oppor-
violência com a violência. tunidade para vingar-se dos insultos do
— Ha um méio, é punir o crime ; para aggregado, mas, apezar da boa^çoatade e
isso é que existe a lei. zeloso esforço para capturar os fugitivos,
o feitor nâo regosijou-ae com a realisa-
O dialogo terminou pelo sileneio de
ção dos seus desejos.
Motta Coqueiro. Os criminosos tinham-se prevenido con-
As considerações da esposa tinham uma tra esta consequência necessária do seu
base irrefutável e não podiam ser abando acto; a essa hora descançavam tranqui-
nadas ; por outro lado o pedido de Anto- lamente á grande distancia, d completa-
nica, no momento em que expunha a sua mente fóra do alcance de qualquer vin-
r e p u t a ç ã o de mulher honesta è a própria gança.
vida,— porque a brutalidade de seu pai Quasi ao anoitecer os escravos vieram
não poupal-a-hia caso sorprehendesse-a participar a senhora o mallcgro das suas
em meio do acto meritorio, — fazia-o va- pasquizas, mau grado a solicita diligencia
cillar. que tinham feito para o êxito da empreza.
Um expediente apreeentou-se; mover o — Está bom, respondau-lhes a Sra.
processo contra o aggregado ò deixal-o D. Maria; elles hão de apparecer em
mais tarde, quando a primeira impressão qualquer teSapo.
desapparecesse, correr á revelia. Fideli3 retirou-se duplamente contra-
Harmonisados d"esta sorte o coração e riado p*lo sangue frio de sua senhora e
o dever, resolveu notificar o aconteci- pela sua f&lta de pericia no ^desempenho
mento ao Sr. Oliveira, subdelegado do da commissão.
logar, e pediu a sua presença para ser Uma outra pessoa da casa mostrava-se
cumprida a lei. profundamente sentida pelo aconteci-
Estava, pois, satisfeita a vontade da mento ; era a tia Balbina.
esposa. Os seus soluços e imprecações conse-
Tranquiliisada por esta resolução de guiram captar novamente a sympathia
seu marido, a Sra. D. Maria teve um da Sra. D. Maria e desde aquella hora
verdadeiro desafogo ao saber de uma abriram-se lhe as portas da casa grande.
outra nova. Fatal imprevidência 1
Ao chegar em casa, a indignada con- A dôr de Balbina encontrou se com a
sorte despachara immediatamente os es- decepção de Fidélis, sinceramente empe-
cravos Fidélis, Peregrino e Alexandre, nhado em des«ffrontar Motta Coqueiro da
ordenando-lhes que percorressem as m&t- aggressão recebida I
tas visinhas afim de descobrir o escon- — Ah ! tia Balbina, disse Fidélis, eu
drijo dos criminosos.e piendêl-os antes queria ser surrado do que não achar
— A gente poáii fazer isto, minha se- o diabo do aggregado ; queria quebrar-
nhora, &e elles não se alevantassem contra jhe os ossos áquélle desalmado.
nós; como ha de acontecer, observou Fi- — O feitor deve estar sempre do lado
délis, dos brancos» respondeu a feiticeira, O
112 MOTTA COQUEIRO

grito vai sempre paia o lado que segue o nmguem que tivesse pena dV.Ha; todbs fu-
vento. Fidélis já não é como seus par giam da feiticeira, eomo se foge de cobra
eeiros, Os signaes do castigo estão nas — Hoje o senhor de Baibma apanhou
costas d'estes, não importa ; o sol qu i ^ a das mãos do aggregado, e mulher e filhos
ã sambabaia e mata as pucaçús, o eito e escravos, todos choram e F:d-l?s antes
s<5be sempre ; o escravo &úa a tirar fóra queria ser surrada, do que voltar para a
a camisa, não importa ; o feitor manda casa de seu senhor sem o ter vingado.
seguir sempre para diante pcrque é o — Para que ha de guardar este odio",
lucro do seu senhor. Fidélis já não é um tia Balbina ? Nós não encontraremos me-
parceiro, é um senhor-moeo; quem offen- lhor senhor.
de-lh© offanda ao senhor. — Balbina não tem od o, chor ou tam-
— Porque vosmecê diz isto, tia Balbi- bém a desgraça, mm lembra que ninguém
na ; eu tenho sido máu para os escravos chorou per ella, Hoje ninguém diz que é
do sitio ? ! . . . o castigo de Deus pela maldade com a
— Não sahiu isto da bocca de Baibma, innoeente; paciência.
nem da de seus parceiros: todos querem — Ah I sa o senhor soubesse d';sto tia
bem ao feitor, mas nem por isso esquece- Balbina; o que vosmecê não soffreria'
ram o rigor do c&ptiveiro. Fidélis sente O feitor affastou-se lentamente, mas
a áôr de seu senhor; Balbina lembrou se quando ia a ai-uma distância; foi detido #
de uma dôr sua. Um dia, ainda cahia ne- pela voz da feiticeira :
blina e o céu tinha a est^ella granie da — O parceiro de Balbina vai levar aos
madrugada, e Balbina foi amarrada no brancos o que ouviu; mas Deus está
cabeçalho do carro. O frio faria como es- vendo que Balbin % nãfl quer o mal d'elies.
pinhos de jurubeba o corpo da encrava, — Náo é meu costume, tia Balbina,
e o senhor de pé na porta* embrulhado no respondeu nobremente Fidélis ; eu tam-
seu capote, disse com má voz^surrem-me bém sou escravo.
esta negra. Os parceiros de Balbina foram — Jura pete morta de tua mãi, que
dizer que era e;H a que gerava a doença sempre foi escrava, que soffreu como
nos escravos e nos animaes do sitio. Na Ba bina, e não teve quem a chorasse
senzala da feiticeira estavam o Deua que quando soffria.
Balbina oonheceu na sua terra, e as her- — Para que me lembra minha mãi, tia
vas.com que a escrava tinha amisade Balbina ; o escravo não tem mãi. Juro,
quando era criança e livre. Bastou para juro sim.
se ver ahi a feitiçaria que mata. — Balbina quer que se faça o castigo
Os chicotes bateram SQJH dó nas costas do aggregado, inimigo dos escravos; mas
da feiticeira, como as varas fortes sobre não quer que Fidélis se esqueça de que é
as vagens madura? do feijoal. O sangue já escravo. Quem mandou ao feitor prender
corria, mas o castigo não parava. O filho o aggregado ?
dos brancos, creado por Balbina, o fiiho — A senhora mandou que o trouxés-
dos brancos querido por Balbina como seu, semos á forç%, e eu havia de trazel-o
estava amarello e magro; o doutor cançou ainda que fosse morto.
de tratar, não sabia a moléstia. E' feitiço — Sim, sim, meu parceiro; acudiu
da ercrava, diziam todos. O pai qusria promptamente a feiticeira. A senhora
vingar o seu filho e não teve dó de Bal- disse; cumpre, hoje, a manhã, sempre.
bina, que não chorava por que tinha odio Será menos um branco; acrescentou
só, e não sentia que a iam matando. n'um murmurio,e a perdição dos outros.
Quando o castigo acabou a nrgra ainda - O açodamento com que a tia Balbina
ferida foi para o eito, e lá não houve recebeu a revelação do feitor sob rosal-
OU A PENA DE MORTE 113

i o u A p r o t a t a Q B t ® ; © q u e h a v e r i a úéèr
Iatrodazido na sala de visitas, accsdeu
A b e r t o a escrava QvUm tão to-
sem resistencia ao convite para passar
aos aposentos do fazendeiro.
' pies e tão n a t u r a l ? 4 'Uma pallidez a proposito s.ttenuava o
• - D e p o i s d e separarem-se, a i n d a FidsÉp-- colori "sadio do rosto do subdelegado, e
pensava no t o a i - e s p e c i a l c o m q u e 4331 cerrar de mãos, assim como um me-
B o b i n a , l h e fállara p o r . ultimo, o, d e s - dido accento ioterjectivo mascar avam-ihe
c o n f i a d o , ím t e n ç ã o d e .rómmuniear a as intençõe?, á. semelhança de um rotulo
sua s e n h o r a P q u e sô p a s s a m e n t r â e l í e s . esmerado á mercadoria falsificada.
— Quebro o juramento, -gaas n m im- — Ninguém poderia pens&r ao menos
p o r t a ; d e s c u b r o a malvadeza q u e a s s a em que tal acontecimento fosse a paga de
feiticeira esconde.. tantos favores, exclamou elle. Esse mise-
U m a h á b i l manobra a a t i a B a l b i n a i n u - rável que em parte alguma obter ia siquer
t i l i s o u © p l a n © ée F i d é l i s . passagem pelos terrenos de um homem
- A o s-àMr d a r e v i s t a , a f e i t i c e i r a a c e r -
ssrio a com taflo conseguiu terras, casa,
j .
C0U-S9 UU leiWíi"
i J ««ffnm/kn/ifli
m cpoâ""^»» «S« nslâV?8S
- - -- e a amis?ide de V. S. Que alma, que torpe,
comas lagrimas,-'dissé-lhe "dolosamente: caracter a do tal Francisco Benedicto I
Faça-m.e o favor.
— B a l b i n a j á s a a r r e p e n d e u d© t e r f a l -
— Eu lastimo-o, não condemno-o abso-
l a d o do s e n h o r , p o r q u e elle é b o m . Carlos
lutamente, respondeu Motta Coqueiro ; é
contou que o braíieo v a i perdoar o antro
extremamente ignorante e além d'isso
q u e o esperou p a r a m a t a r . Balbina per-
embriaga-se. Não ó perdél-o que tenho
d e u o Odio, p o r q u e t e m c o r a ç ã o , e p e d e
esca vista mas' simplesmente intimidal-o.
perdão ao seu parceiro.
— Como ?l Perdoe-me V. S , ha de
— F o i D e u s q u e m l h e f a t i o u , t i a Bal- cumprir-se a lei. Yá lá que se tenha pie-
b i n a , foi D e u s ; r e s p o n d e u F i d é l i s ; era dade para com o velho desmiolado, mas
muita maldade. 'com o seu cúmplice, éimpossivel; Qual-
N o dia seguinte d u a s pessoas e n t r a r a m quer brandura com elle é nada mais, nada
na casa . g r a n d e e x t r a o r d i n a r i a m e n t e menos do que soltar uma fera em todò
commovidas. U m a era a tia Balbina a essa Macabú. Se elle sem protecção faz
q u e m foi p é l a S r a . D. M a r i a confiada, a d'estas, o que não fará se tiver a justiça
l a v a g e m d a r o u p a dos e s c r a v o s d o sitio, e por si.
dado um quarto na casa grande, honra — E' o que eu. penso, Sr. Oliveira, in-
q u e só r e c e b i a m a s b o a s e s c r a v a s » terveiu a Sra. D. Maria. Parece fabula o
A o u t r a e r a o s u b i é l j s g a d o Oliveira,, q u e que essses homens têm praticado com-
a todo o galopa a t r a v e s s o u o c a m p s do nosco. V. S., que é auctoridade, parecé-
s i t i o , e apeisnsio-sQ p r e c i p i t a d a m e n t e á me que deve fazer cumprir a lei, apezar
porta da casa grande, apertou com ambas da bondade do Sr. Motta.
. a s m ã o s a s d a S r a . D» M a r i a , e x c l a m a n d o — Co ate commigo, minha senhora;
todo commovi^o; apesar de reparado do Sr. seu marido em
— E' incrivel5 m i n h a s e n h o r a ; é incrí- politica, tributo respeito ao seu honrado
vel qua possa h a v e r sobra a t s r r a tant» caracter.
mgraturãfi. A conversa, desviada para assumpto,
A s melhores e «aaU t o c a n t e s e x c l a m a - diverso do que dava motivo a familiar e
a
çÕ3s guat dou-*s p r u d e n t e e a i t i s t i c a - expansiva visita d> subdelegado, voltou
mente o Sr. Oliveira p s r a o effaito scs- por direcção d W e ao ponto primitivo.
nicOjO d e s l u m b r a n t e q u a d r o final do p r i - —« V. S. fará o favor de convidar as
meiro acto d a tragedia da i n t r i g a . suas testemunhai para a audiência na
8
114 MOTTA COQUEIRO

minha casa. Logo que se pronunciem E quer V. S. um conselho ? entregue..a


os reus, eu fal-os-hei prender; nao me causa ao Lycerio. Não se ha de arre-
escaparão, eu lh'o juro. pender.
— Eis uma dificuldade que nao posso Eu concordo e aceito o conselho,
remover, ponderou fieugmaticameiita o disse a Sra. D. Maria.
fazendeiro; a emboscada foi feita em lo- Depois de reflectir por algum tempo, o
gar ermo; não houve testemunhas. fazendeiro decidiu-se também a consti-
— Ora, meu amigo, acudiu o Sr. Oli- tuir Lycerio seu advogado, mas a ver-
veira, V. S. não tem razão para desani- dade é que ao communicar a sua reso-
mar per tão pouco. A cousa mais simples lução pairavá-lhe nos lábios o vago sor-
d'este mundo é arranjar testemunhas. riso da desconfiança.
Deus defenda aquelle a quem se queira Retirando-se' o Sr. Oliveira, Motta-Co-
perder; com trabalho diminuto ccnse- queiro perguntou distrahidamente a sua
guem-se testemunhas de vista para accu- mulher :
sar um paralítico pela auctoria de um — Crê na sinceridade do subdelegado ?
assassinato a vinte cu trinta léguas de — E porque não ; eu não sou descon-
distancia. fiada como o senhor, e demais quer elle
—- Mas ha para mim um embaraço queira quer não eu saberei desafíron-
grandissimo ; ainda que o facto seja ver- tar-me.
dadeiro, as testemunhas serão falsas, e — Pôde ser que você tenha razão, mas
d'esse meio creio que nenhum homem de eu tenho até repugnancia do tal homem.
bem se serviria.
O meu parecer era buscar com todas as
— E' um modo de pensar que teria forças obter a mudança do compadre.-
como consequência a morte de todos os
— Isto, quer elle queira, quer não, ha
homens de bem ás mãas da canalha. V, S,
de fazer se, mas pagará também o in-
parece-me exagerar muito a noção da
sulto.
moralidade da justiça.
—Pôde ser, mas não creio que V. S. te- Alguns dias depois, a causa era con-
nha razão. Por este systema de distri- fiada a Lycerio com plenos poderes, e
bruir a justiça, po leremos chegar ao la- Mótta Coqueiro e sua familia ausenta-
do opposto: obter testemunhas venaes e vam-se do sitio com um protesto da Sra.
por meio d'ollas condemnar innocentes. D. Maria.
—Não contesto absolutamente; nada é — Èu não voltarei aqui antas que o
perfeito n'este mundo, mas declaro-lhe ággregaio e sua familia se mudem.
francamente que estou convencido de que Êm vão eapa? ou-se durante o primeiro
sobre cem individues accus&dos um, quan- mez, o segunrjo e os que se lhe seguiram,
do muito, é innoeente. uma solução legal para os graves fac-
—Será, mas não penso que a sociedade tos oocorridos no sitio ; nada se resolverá
tenha o direito de punir a quem não com- e para cumulo de maíes ss noticias que
raettsu delicto, pelo irraso&vel pretexto de lá écoavam na checara de Campos de-
em idênticas circunstancias. Assim ne- nunciavam novas e perigosíssimas pro-
nhum de nós estaria seguro em sua casa. v o c a i s do aggregsdj.
JPor minha parte afílinço-lhe desde já que Entre Fidélis a Juca Benedicto dera-se
se não houver testemunhas .contra o outra scena da violência, e tal foi a exal-
compadre, eu desistirei do processo. tação de animo e vehemencia de p?rte a
— Pois olhe ; eu cão sou suspeito, dou- parte que ó feitor correu ao encalço do
me com o Chico Benedicta e Sebastião, filho do aggregado até proximo da casa
mas nãD tômillaria jurar qiíe foram ellé?» nova.
OU A PENA DE MORTE 115

Taes factos eram meras consequências — Yocè parece que está tresleado; pro-
d a a n i m o s i d a d e áo Sr. Oliveira pára com
teger e fazer justiça a um adversario 11
o f a z e n d e i r o . Apadrmh&va-os o pensa- — Então V. S. entende que...
mento político de provar praticamente a — Que se lhe deve negar agua e fogo*
nullidade do chefe opposicionista, e assim eis ahi. E' o que se faz em politica.
a r r e d a r - l h e a popularidade.
— Está bem, está bem ; eu fico as or-
A trama para chegar a taes fias foi de dens de Y. S.
simplíssima urdidura ; uns pequenos — Adeus, eu vou mandar asserenar o
abusos de auctoridade. Depois de rèsal- coitado do Chico i se eu estivesse no seu
var a sua imparcialidade, pondo um si- logar fizia o mesmo. Os negocies de fa-
mulacro de sincero interesse ao baixo milia são muito sérios.
serviço de mesquinha vingança ás derro- Familia 1 Esta palavra por si só impel-
lia o ardiloso Lycerio aos maiores com-
t a politicas, b subdelegado, sahindo da
promettimentos, e por si só bastava para
casa de Motta Coqueiro, dirigiu-sé a Ly-
dissipar-lhe os escrúpulos
cerio e pol-o ao corrente dos aconteci-
O rábula era uma óptima, estofa para a
mentos.
famigerada communidade religiosa de
— A alma do rabula pensando no lucro
execranda memoria por um lado, de su-
liquido que lhe viria do pleito, esque-
blime e civilisadora recordação por outro,
ceu-se das conveniências politicas, bradou
e que elevou como dogma o celeberrimo
n'um excesso de enthusiasmo.
principio: o fim justifica os meios.
— E eu que antipathisava com^o Co-
Em falta de mais largos horisontes, de
queiro! Ohlelièpòde descançar, have-
uma côrte para intrigar, de uma herança
mos de esmagal-o; ha de pagar caro.
pisgue a reverter pelo bem da companhia
— Não ha melhor occasião para tédu-
em bem da humanidade, de uma cons-
zil-o a nada, observou o sabdelegádô; os
piração da magno alcance a dirigir, o
votantes verão que nós sabemos vencer.
bom e prasenteiro Lycerio atinha-se acs
— Está claro; perder dois votos não
enganos nas sommas das dividas dos fre-
coisa de grande monta. D0Í3 víddiviaos,
guezss e aos bandeiamentos largamente
dois biltres, o peseta do filho, grande
remunerados nas causas que lhe eram
coisa, mando recrutar o malandro, que
confiadas.
tem boas castas para a farda, e metto o
Resignado sabiamente ao seu destino
babado do pai e o tal Sebastião na cadeia.
eatfêgava-se com a melhor vontade e
— Escuso de estar com estas cousas,
humor á procreação do vinho e ao de-
porque estamos sós, é não precisamos de
longar dos pleitos. Tudo por amor da
enganar-nos.
familia.
— Sim, não precisamos.
— Arranja os cobres do Coqueiro, que Ora, justameúte este amor foi invocado
é o principal e dãixo-o dar os páus. pelo Sr. Oliveira em defesa de Francisco
— Mas... Benedicto, restava, portanto, ao amoroso
— Eu me responsabiliso pelo que so- rabula verificar atá onde era levado peio
brevier ; tenho certeza da que elle não aggregado o mais nobre,, o mais santo
atinará com a e s t m . dcs sentimentos humanos.
— Porém... eu fui incumbido de éasti Uma vez recebida a procuração ple-
gar os criminosos e tenho meios. naria do fazendeiro, Lycerio foi enten-
— E eu lhe digo que não tem, que não desse com Francisco Benedicto.
deve ter. Munira-se da suas mais francas é pro-
— Ahi isto é outro filiar, mas assim longadas risadas e igualmente da mais
& primeira vista. aturada atteatfSo, pfrr* b«m otofcrYar ao
116 MOTTA COQUEIRO

provas praticas da affeição paternal do — Diabos leve a hora em que entrei


velho, n'este logar; bradou furioso o aggregado;
Dôscubrm em breve uma prova. Um o que é que eu hei de fazer para conciliar.
bailo mandioca! estendia-se viçoso e at- — Por exemplo dar-me este mandio-
traheate por uma grande extensão. Fa- ca! ou uns cincoenta mil réis; como lhe
zendo a redacção dos alqueires de farinha for mais acommodâdo; eu não lhe quero
em unidades mor&es, viu claramente que fazer mal.
Francisco Benedicto possuia um optimo — Mas isto é roubar o meu suor; não
ooeflB.ciente para os seus deveres no lar quero.
domestico, tanto mais que o trabalho de
Lycerio para com essa expressão era — Então vai para cadeia; passa lá uns
simplesmente reduzir termos semelhantes cinco annos e come de lá a farinha. Passe
do mesmo Isignal. Mais amor de Motta muito bena ; talvez quando se arrepender
Coqueiro, mais amor do aggrêgado. seja tarde.
Consaio de que o subdelegado não o Lycerio dirigiu-se immediatamente para
havia illaáidoquanio converteu em ques- a porta, mas ao transpor o limiar, parou.
tão de honra o crime de Francisco Bene- Queria vibrar o derradeiro golpe.
dicto, o cauto e intelligente rabula abriu- — Ouça, disse elle, cesteiro que faz um
se desassombradamente. ,, cesto faz um c e n t o v e j a se vem dar-me
— Sabe a que venho aqui, seu Chico ? pauladas também.
— Para honrar ia casa do pobre, meu Dspois de coçar desesperadamente a
senhor; e dar-nos gosto. cabeça, o aggregado chamou Lyçerio.
— Sim e não. Um negocio muito serio para dentro e disse-lhe :
é principalmente a razão da minha visita.
— Emfim, com seiscentos diabos, vão-se
— Faz favor de dizer qual á, eu jé> ade-
os anneis e fiquem-se QS dedos. Eu quero
vinho que vem sfaliar das eleições.
mostrar áquella traste que não se ma-
— Não, venho fallar das cacetadas no
chuca os outros assim sem mais nem
seu compadre.
menos. Perco dinheiro mas dou uma lição.
— Mas não fui eu ; e já o subdelegado Está fechado o negocio com o mandiocal.
resolveu o negocio. Serve ?
-— Não senhor ; elle não pó de resolver,
ha processo e está prov&do com testemu- — Ora até que a f i n a l , exclamou Lycerio
nhas. COÍEO você e o Sebastião disseram esfregando as mãos; estava a parecer que
que iam fazer espera ao capitão. tinhajperdidoo juizo. Está feito, está feit<?,
— Ninguém pôde dizer isto. só para concilial-os eu não ganho nada
— Ouça o Manuel Joãô... com isso, o que faço é perder o msu tempo
emquanto cccupo-me com esse negocio.
Aquilio é Um mentiroso, que nem
Posso então mandar arrancar o mandio-
me p5a es pés aqui.
cal por minha conta?
—- O Lucio Ribeiro...
— Quando vosmecê quizer.
— Ora, estef jura por dinheiro. — Ora muito bem.
— O Faustino, toios ouviram.
Desde que o amor paternal de Fran-
~ E' uma mentira : s<5 quem podia
cisco Benedicto ficou tão eloquentementè
dizer era o Sebastião, mas por este juro.
assentado na convicção de Lycerio, o
—. Mas então o Sebastião sabe como
processo estagnou o seu curso natural.
você acaba de dizer e portanto eu sou maia
uma testemunha. Deixemos de partes: ou Sobre elle só pairavam, como lindas
você entra n'uma conciliação ou eu faço mãistfagua, as recordações dos lucros
andar o processo. Escolha. havidos pelo rabula á bôà fé dss paytea.
OU A PENA DE MORTE 117

Dir»se-hia que a justiça já proferira a Alvoroçada, a gente do sitio correu para


sua ultima palavra a respeito da enibos- apagar o incêndio, mas foi detida em
cada; tão grande era a quietação. meio camisho pelas ameaças dos folga-
Só uma pessoa impsçientava-se seria- zões, no numero dós quaes contavam-se
mente com esta indiffsrença; era a Sra. as auctoridades do logar.
D. Maria. — Daus incumbiu-se de evitar a des-
A boa esposa não podia conformar-se graça que parecia inevitável. O fogo ex-
com a desusada solução de uma quéstão tinguiu-se por si jnesmo.
que envolvia a reputação do seu esposo, Ouvindo esta narração, que foiconfir-
e por meiaâos do anno de 1852, sete mezes mada por Florentino Silva e Faustino, a
depois do acontecimento, entendeu ella Sra. D. Maria observou a seu marido
tomar a peito a punição do compadre. , que era urgente cortar pela raiz o mal.
Uma opportunidsde apresentou-se para — Felo que acabamos de ouvir, disse
v
nue a Sra. D- Maria nudesse interrogar ella, o subdelegado, longe de punir, pro-
—- — — —- — - r\ # •
tege Francisco Benedicto.
peremptoriamente o fazendeiro, e fel-o — Eu tinha certeza de que isto viria a
com a seriedade que lhe era própria. acontecer, o que quer a senhora t a auc-
Uma canôa chegada de Macabú a Cam- toridadé cai sempre em mãos de seme-
pos trouxe a seu bordo além dos empre- lhantes homens. ,
gados e escravos da casa, umliomém das — Assim pois o mal é sem remédio ?
circumvismhançis. — Parece que pela justiça é, mas res-
Florentino Silva, era o seu nome, vinha ta-nos um meio, obrigar o compadre a
pedir a Motta Coqueiro "para que o rece- muòlar-se.
besse como seu empregado, e ao mesmo
— 0 que eu noto é que o senhor não se
tempo comprasse-lhe a posse de um sitio
agasta muito com isto, e não ha explica-
na serra dos Olhos d'agua.
ção razoavel para o seu procedimento.
Quanto &o primeiro pedido foi de
prompto attendido pelo fazendeiro, que — Se eu perdesse a cabeça e fizesse
adiou a resposta ao segundo, visto que alguma asneira ser-lhe hia agradavel?
não conhecia o terreno que o seu empre- Pelo amor de Deus, sejamos prudentes.
gado offerecia-lhe. — Â maior prudência era vender o sitio.
— Se apparecesse comprador.
Os escravos afeiaram os desacatos e tro- — Nunca apparecerá, porque D senhor
pelias do aggregado e concluiram por ainda quer adquirir mais terras n'aquelle
declarar ao fazendeiro, em nome do feitor maldicto logar.
Fidélis, ser um perigo a vida no sitio.
— Mas em que nos prejudica termos ou
Ainda na noite de Santo Antonio ti- não termos terrenos em Macabú, não me
nham estado na casa de Francisco Bene- dirá?
dicto o inspector André, o subdelegado, Apesar do tom de azedume do seu ma-
Joaquim Lycerio, Lucio Ribeiro ;e vários rido, a Sra. D. Maria insistiu longamente
individues. Resolveram fazer uma grande sobre os negocios do sitio. O seu fim era
foguéi r a e m i o u v o r <j0 santo e, para obter uma resposta decisiva, que lhe pau-
servir de combustível, escolheram um
eafesal. taria de futuro o seu procedimento.
% . — Eu lhe repito: não posso admittir
Soprava espeto o vento e em breve que esse estado de cousas continue. O
as labaredas, enroscando se pelas aleias e senhor diga com franqueza : aquelle ag-
trepando crepitantes e fumivomas avas- gregado ó ou não castigada.
sallavam grande parte do plantio que — Já ih'o disse, senhora : o compadre
ficou completamente destruído. ha de sahir das minhas terras.
118 MOTTA COQUEIRO

J
— Não basta, é preciso que pague a dança de Francisco Benedicto, disse sem
emboeead . reserva :
— O meio de que poleria dispor era — Aquelle branquinho tem agora de
processai o, o subdelegado é meu inimigo tratar ccmmigo : ha de mudar-se ainda
e protege o criminoso, é impossível fa-zer que eu lhe faça cómo aos maribsndos;
seguir o processo. Não tenho outro. ainda que lhe queime a casa.
— Era o que eu queria saber. Qs expedientes tomados pelo feitor
A conversação foi cortada bruscamente conseguiram intimidar por algum tempo
por uma ultima phrase da Sra. D. Maria, o aggregado, que se acovardou princi-
phrase que felizmente não foi toda ouvida palmente desde o dia em que,perseguindo-
por Motta Coqueiro. Ihe o atrevido filho, Fidélis não duvidou
— Eu hei de mostrar quem pôde mais, chegar até ás portas da sua casa.
Sra. Antonica. Então Francisco Benedicto julgou mes-
Antonica foi a única palavra ouvida mo ser prudente ceder á proposta dó
por Motta Coqueiro, e bem fácil ê aquila- fazendeiro para à venda das bem feitorias»
tar qual seria o movimento intimo que e incumbiu d'esse negocio um amigo
lhe correspondeu. commum.
Seria saudade ou seria piedade ? O certo As hostilidades arrefeceram e entabu-
é que voltando a conversar com os seus lou-se a negociação procrastinada pelas
empregados, Motta Coqueiro ponde- exigências irrasoaveis do aggregado, que
rou lhes : entendia receber o dobro do justo valor
— B* muito faliz o tal meu compadre ; na vencia,
tem por si a protecção, a saúde própria — EU© ha de ceder por fim, observava
e a dos seus. o intermediário a Motta Coqueiro; deixe
— Quanto á saúde dos d'elle não é lá passar mais algum tempo, não é muito
muit*, pi incip almente de sa Antonica. para quem tem tido t&nta paciência.
— Ah 1 ella está doente. Irritááo, porém, peia resi-tencia que
— Anda com umas queixas rio peitô, e as suas pretenções encontrav&m no ani-
uma tosse que v&i mettendo medo. mo inabalável do fazendeiro, e além
A Sra. D. Mari», que se* conservava á disso instigado pelas auctoridades que vi-
distancia de poder ouvir o que se dizia, savam a retirada do competidor tfaquelles
amargou em silencio a decepção que logares, Francisco Benedicto recomeçou
causou- a simples exclamação do fazen- desabridamente os seas desmandos.
deiro. Um dia em que em uma das vendolas,
— Hei de acabar com isto, repetiu a si quasi totalmente ébrio, o aggregado vo-
mesma. ciferava diante de Faustino e Florentino
Quando a canôa fez-se de volta a Ma- contra. Motta Coqueiro, disse Florentino:
oabú, a esposa do fazendeiro ordenou a __ Você é um malvado, seu Chico; é
Peregrino que transmittisse a Fidélis al- um homem que devH morrer.
gumas ordens. — Se me pagassem bsm, eu arranjava
Queria que o feitor fizesse respeitar a isto, resmungou Faustino ; queira o ca-
propriedade do seu senhor pelo aggre- pitão e eu ponho um ponto á pendencia.
gado e sua familia. Caso não fosse atten Uma troca de insultos de parte a parte
dido, ficava-lhe o direito de valer-se da seguiu se desastradamente e terminou
por uma intimação formal de Faustino a
força.
Francisco Benedicto :
Fidalis esperava semelhante auctori-
— Cala a booca d'ahi, velho cachaça,
sação para operar, e para exprimir a
ou faço-te calar á força. Quanto ao teu
energia oom que trataria de obter a mu-
OU A PENA DE MORTE 119

genro torto, pódes dizer-lhe que se elle Carlos que tinha sido mandado para o
continuar com os desaforos, ejà visto-lhe sitio por eastigó de algumas peraltadas, e
uma camisa de pau. com vento» fresco. E' ordenou-lhes que o seguissem.
o que falta a vocês dois, bêbados! Alumiados por um facho, os tres se-
A altercação na vendola surgiu (^ahi guiram pelos aceiros da roça é dentro em
a alguns dias corporada em uma ca- pouco achavam-se diante da casa do ag-
lumnia assás comprometedora, gregado,
pizia-se por toda a parte que Motta As portas e Janellas estavam fechadas,
Coqueiro tiaba encsrregáclo Faustino e porém partiam vozes do interior.
Flpre»tino de assassinarem a Sebastião — Estão acordados, disse Fidélis; tanto
pereira I melhor porque demora menos.
o mais grave, o mais iucrivel era que Quando o feitor ia bater á porta, par-
Sento Silva, irmão de Faustino, era um gxmtott-lhe Carlos, a quem o acoento da
dos que se apcarrQgav^pcx de propalar se- voz do parceiro impressionara profunda-
melhante veris|Q. e dizeM© qug ouvira §o mente;
próprio Faustino. —• O que é que você vem fazer na casa
Para cumulp de infelicidade sobreveiu gessas feras ? Isto dá em desgraça, Fi-
uma desordem entre o aggregado e os délis.
ésçravo3. — Bê no que der; eu tenho ordem dos
Corriam os primeiros dias de setembro. brancos, respondeu o feitor, e bateu bru-
Uns madeireiros-de Macahé,entre o» quaes tal e prolonga lamente á porta.
vinha o Sr. Conceito, chegaram ao sitio — Más horas de visita é esta, disse de
íte Macabú para comprar o resto das ma- dentro Francisco Benedicto; emfim va lá.
deiras ao fazencieiro8 que so achava em Apenas a porta abriu-se, Francisco Be-
Campos. nedicto, atemoí isado pela qualidade dos
Uma canôa foi despachada paya avisar visitantes, recuou até o meio da sala, gri-
Motta Coqueiro, e'íidelis com os seus tando compungentemente;
parceiros começaram de§de logo a em- — Estamos perdidos, estamos perdidos.
balsar as madeiras, por isso que o Sr. Con- — Não tenha susto, não, seu Chico;
ceição declarava que era negocio decidido vosmecê é tão valentão que até a gente
e tinha pressa de conduzir as balsas. não acredita que âque logo tremendo.
No dia 9 da setembro pela manhã, che- I to é só um aviso.
gando Fidélis ao porto,encontrou cortadas A' proporção que fallavft, Fidélis, acom-
as amarra* das balsas e grande parte da panhado por Perigrino e Carlos, entrava
madeira no fundo do rio. Evideaciava-se pela sala da aggregado, e apoderava-se
que a maldade fôra a conselheira do facte, de uma espingarda que OBtava onoostada
e esta não podia ser attribuiia senão a em um canto.
Francisco Benedicto, que já outras vezes — Nós não somos assassinos; não fa-
tinha praticálo actos mais gravas» zemos emboscada, não, meu brama;
O feitor catou se & durante a dia não mas eu sou feitor, e quero dizer-lhe que
^ m m siquer t^usparecgii' a raiva que isto de andar vosmecê, sen filho a seus
mentia, amigos destroçando o sitio, não me vai
A
Penas commumcou c? occorrida aos cheirando bem. Canalhada, can^lbada e
hospedes de seu Eeahor, p^diodo-lhes que meia; hoje amanheceram as balsas corta-
oescuip^gem a flexora iovoiímtaria, das; todos os dias ê um desaforo: morte
».nQ!íe* ^ P 0 ^ revista, Fidélis em-, nos gados, fogo nos cafesaes, o diabo a
picando sapingíiyda cbamou os quatro. Eu venho sahev se vo*mac§ quer
seus parceirog ?m%v'm% õ ir parfem eç ppr w r ir por mal
120 MOTTA COQUEIRO

não me custa nada a pôr fogo n^ste ran- X /


cho, como se faz na casa dos maribondos, A SCENA D E SANGUE
que não são tão maus como vosmecê,
E \ decidir. N& manhã do dia seguinte o inspector
André recebia de Francisco Benedicto
Fóra zuniu o desfechar de uma paulada
uma denuncia gravíssima contra Motta
e em seguida euviu-se um brado colérico:
Coqueiro e seus escravos.
— To me pagas, desgraçado; tu me
Dizia o aggregacio que a sua casa tinha
pagas já.
sido alta noite atacada pelos escravos Fi-
Os tres saltaram precipitadamente fórg délis, Carlos, Alexandre, Peregrino e . . •
da sala, porque reconheceram a vez do Domingos, que por mando do seu senhor
parceiro, que tendo deixado o facho pro- tinham ido espancal-o e pôr fogo á sua
ximo á casa, corria pelo terreiro após um casa, crime que não* se efísctuou por ter
vulto, que elle depois disse ser Juca Be- elle, Francisco Bsnédieto. eaoeíeado um
nedicto. dos escravos, pondo assim os outros em
— Ahi vccês fazem-se pimpões; pois fuga.
esperem; M o de s&hir amanhã mesmo — É creio que não vinham, sós áccres-
cTâqui. Esperem. tou o denunciante, porque se não me en-
Suspendendo o facho, Fidélis chegou o gano ouvi quando os malvados se retira-
até á beira do tecto de sapê. Bastava uma vam as vozes de Faustino Silva e do Flôr.
pequena demora, para que a casa fosse O inspector André, qúa até então tinha
irremediavelmeEte perdida. ouvido sem protesto e danlo acs diabos
— Não faça, não faça, tio Fidélis! o fazsndeiro, reluctou ante a veracidade
gritou Carlos. da presença dos dois últimos indigitados.
E abaixando mais a voz : — Ainda o Faustino vá lá, porque é
— Foi sa Antonica que foi socccrrer se- capaz de mais, porém F l ô r , causa-me
nhor,e ella não tem culpa do que o pai faz. espanto ; é tão mettido comsigo e nunca
— Ah ! velho cachaceiro dos diabos, ê houve desordens com elle.
o que te vale ; se nãí> hcjê mesmo havias —J Nunca ?! ora, André, não acre-
de dormir no m&ttc. Mas se não mudas dite. Ainda ha poucos dias elle disse-me
de pensar eu não attendo a reais n a d a . . . que era bem bom que eu morresse ; por-
Deixa essa desgraçado ! braçtou em segui- que sou um malvado. Veja s<5 vosmecê.
da ; isso é úm fedelho. Em seguida F r a n c i s c o Banedicto narrou
Os escravos affâstaram-sa commentando a altercação travada entre elle, Floren-
o caso, mas quem attentasse para o grupo tino e Faustino, e, para garantir o effeito,
de'bananeiras que ficavam a pouca dis- carregando artisticamente o colorido e a
tancia da casa, poderia descobrir um disposição dos adjectivos.
vulto que seguia attentamente todos os O inspector André, sentindo no hálito
movimentos. do queixoso um cheiro pronunciado de
Quando a luz do facho extinguiu se álcool, teve siso bastante para descsntár-
completamente, e o terreiro silenck-so lhe os exageros descriptivos e çonsegtiiu
recabiu na obscuridade, o vulto sahiu asserenar-lhe os assanhados temores* cal-
d'entre as arvores, parou e estendeu úm mando em seu auxilio a galhofa, /
dos braços, que-agitou no espaço, — Mas diga-me cá, sm Chico; o Co-
Uma voz rouca e abafada articulou queiro a n l a pela terra? perguntou elle.
estas mysteriosas palavras: — Qae eu saiba, n â o ; mas deu ordem
— Bom 1 muito bem I Agora começo eu I para que me desancassem.
OU A PENA DE MORTE
121

— Mas os escravos depois da sova de corridos, tinha a acentuação medonha da


pau hão de custar muito a cumprir a misantropia. Riam-lhe a cólera e o escar-
ne© ao canto dos beiços, nos quaeâ ouriça-
ordem.
vam-íe raros alguns pellos de barba.
— Pôde ser que não; virão todos contra
Olhava sempre de travez o seu compa-
mim e o meu filho, e nós não poderemos nheiro e só fallava-lhe quando instigado.
resistir, Vestia se de uma calça de algodão mi-
— Leva sustos,seu Chico; você o que neiro, cuja Côr branca, havia muito,
precisa é ter mais confiança na gente. mudara-se em côr de cinza intenso/mos-
Ouça, depois de amanhã, que é domingo, queada^ por largas manchas de barro.
eu levarei um leitão para comermos e Uma camisa de chita escura, em cujo
depois conversarmos a respeito da cousa; campo arre iondavam-se uns olhos Ver-
v e r á como, tudo se arranja. melhos como sangue, abria-se lhe no col-
— Então eu espero por vosmecê.
— E mais o leitão. larinho deixando vêr o collo carnudo e
O inspector não dava inteiro credito á queima lo.
denuncia do aggregado eaté eonvencia-se Um chapéu de palha da Angola, de
de que o assalto, a se ter dado, devia ser abas desmesuradas e cahidas, atado por
por motivos que Francisco Benedicto não uma estreita fita negra por debaixo do
ousava commusicar lhe. ; queixo, escondia-lhe a testa o fazia-lhe
Assimf pòis5 nSo tomou nenhuma pro- sombra ao ro&to, tornando ainda mais
videncia e nem mais pensou no aconte- temerosos os olhares lançados por umas
cimento. pupilas distendidas e negrejantes sobre
Francisco Benedicto, porém, sahiu a córneas sanguineas.
espalhar pela vizinhança que o sen com- O olhar, interrompido apenas por mo-
padre mandara matal-o pelos seus escra- rosos pestanejares, tinha a fixidez espe-
vos e que o assassinato não realí&ou se cial de das aves noctivagas. ,
graças á sua coragem. O outro, comparativamente franzino,
A credulidade sertaneja, sempre incli- escondia quasi todo o rosto em um lenço
nada a se deixar penetrar fpor embustes que, de sob o m e n t o , subia-lhe até orneio
e falsidades, ouviu, murmurou, commen- da cabeça; maa, viam-se-lhe as pomas
tou e finalmente em altcs brados spre- salientes e as orbitas fundas, e a testa
goou por toda a parte, como verdade, a terminada pelas sobrancelhas negras e o
delação do aggregado. nariz avolumado, caracteristico da raça
Só á noitinha Francisco Benedicto vol- cruzada.
tou da. sua peregrinação. Trazia a alma Era um typo vulgar,-sem um traço
desafogada, porque o dia tinha lhe sido apeoas que o recommendasse a uma
uma apotheose. Lucio Ribeiro, Sebastião observação aturada.
e outros tinham*o acompanhado, glorifí- Ao ouvirem a conversação dos tres
candò-o por tanta valentia em annos tão
adiantados. companheiros de viagem, o mais franzino
Na entrada geral, nos mesmos taquaru- des emboscados, disse precipitadamente
çús em q\ie Sebastião e o aggregado rea- ao outro:
usaram o seu plano contra o fazendeiro, — Agora não nos escapará,; a escuri-
dois homens est&vám desde manhã cedo dão permittirá que não nos descubram e
emboscados. ninguém pensará que somos n<5* os aucto-
Um d'elles, troncudo e baixo, de f«i^o?s res. Vamos ; prepare-se.
grosseiras,côr da casca do genipapo, nariz O mi anthropo nada respondeu, apenas
chato e beiços grossos, cabellos duros e levantou os olhos desdenhosos, e dei-
122

MOTTA COQUEIRO

xou se ficar sentado, como até então de pé e sorria o habituai sorriso de es-
estava. - carne o •
Confuso ;qom sssa inliffarença, o que — Eu não posso mais; ha quasi um
fallQU, prpseguiu: anno queporveíi-s temos tido çcqasilo de
— Já não me engano facilmente, e sei acabar com isso, e 4eixa sempre
perfeitamente distinguir a voz d'ôlle, com vida o nosso inimigo. Se pão nos é
esteja em meio de inilhoas de ostros. posgivel vingar nos, p melhor é çuidar-
Escute; o malvado aproxima-se. lí ps de oútra cousa.
De feito, as vozes destinguiam-se clara- O corpulento emboscado sorriu e sacu-
mente e podia-se mesmo ouvir a conversa diu os hombros.
dos transeuntes -- Qu$m quer vingasse não faz cçmo
— Foi aqui que o bicho quasi esticou a vosmecê ; parece mais o anjo da guarda
lanella e foi dar contas ao dis.bo; que do que uma pessoa que eatá zangada e
pena não lhe acertar bamo cacete 1 dizia quer desforrar-se de outra. Eu vou seguir
Lucio Jfèibeiro. o meu caminho, como enteado, e o resto
fica entregue á minha go te,
— Qual, foi só uma arranhadéia que lhe
fizemòs.-^Com um tiro, disse em seguida -r Não, ifoto n | o pôde ser mais, arras^
Sebastião, levantando a voz, hei de varar tou-sa a voz rouca do emboscado: eu
a qualquer desalmado que ahi no3 esteja dei a você, e só a você, o meu segredo,
ouvindo. que morava conamigo lá vão muitos
annas, E' obrigarrme a ser mau, porque
— Só se for alguma cobra? porque os eu mato-o se desconfiar que quer fugir de
negros ficaram bem convidados e já não mia*, perder me e sacrificar o meu odio.
cahem n\>utra nestes mezes mais proxi-
E parque são se decide, porque
mos, advertiu Lucio.
a demorar isso ? Mate-me, é atá um bene-
— Cautôlla em todo caso; passemos ficio-
rente á barreira porque os-taquaruçús são — Não mato por oífioio, mato por vin-
boas to3as de onças. E nós que o diga- gtnça. Ainda Francisco Benedicto pão
mos; observtuo aggregado. tinha um filho, e eu já o seguia como um
Dentro da toceira das gigantescas ta- ema de qaça $ pista dos caitetúa. Tenho* o
quaras 03 dois emboscados representa- tido muitas vezes ao alcance da minha
vam uma, scena silenciosa, emqu^nto faca; bastava um salto para enterrada
blasonando cs tres atravessavam a es- até o cabo n'aquelle coração ieprosp, Não
treita curva da estrada. qqiz, n m o fls, Nos primeiros tempos eu
O homem possante, rastejando sem raido derramaria apenas o sangue d'elle e da
sobre folhas seccas, viera protegido pelas mulher, a não me bastava, Nao se apaga
arvores collocar-se á beira da estrada, e uppa forja Qum pingos d'agua.
com elle o scffrego companheiro. Depois veiu um Albo, depois outro,
Este, descobrindo o grupo, levou o dedo ' mais outra, e eu dizia cammigo: 4 tempo»
ao gatilho de uma espingarda que trazia ha sangue bastante n'esta raça para sa-
comsigò,mas $qou logo sem movimento, ciar, qqe pão para extinguir, Q meu odio.
porque a mão do outro tolheu-o CÍ m a U m pensava depois e lembrava-me que
força das dqas peças de um torno, aper- bavia no corpo do meu inimigo
tadas vigorosamente. forças para augmentar q pasto $ minha
Os pairar; ores pass&rnm impunemente. ira, e esperei. "
Quando já se haviam distanciado» P mais JSu sou filho de caboclo; do goytacaz
ifflp&cieiatf, dos embosca 1QS, que Qieia geín b&r^no, aus s o t o
m% disa9 aa outra, qaç tomtam s a p p ^ a q q ^ x a r ^ qçie juprre çejg ffêKW?
OU A PENA DE MORTE 123

pai acostumou-me' em criança a passar o Ó narrador não parecia ter attendido


dia á popa da umâ eanôa á espera que o ao s^u interlocutor, e continuou :
piau terto se levantasse do fundo do rio, — O mais cruel é que eu penso que ê
e viesse collocar-se ao alcance das nossas por um outro qua ella me despreza. Este
flechas. Estas atravessavam as aguss sem é rico e foi t e ; pode tudo e insuitou-me, e
ruido e a morte do peixe, que durante lon- córreu-me. Oh í se elle lia de pagar-me !
gas horas espiávamos, se annúnciavà ape- O pai d'ella tentou perseguir-me, ao
nas pela côr do sangue que vinha á flô r do passo que anda de mãos dadas com um mi-
rio.Espero, esparei para matar assim. Do serável que me perdeu, e lhe perdeu uma
que me serviria matar, para vingar me, se filha. Porque ? ha alguma differença entre
ao cabo iria parar a uma prisão, onde a nós ? ambos somos da mesma casta, ambos
minha existencia séria ainda mais cruel. "pobres. Porque, pois, repellirem-me. Hei
Eu não peço a você que me sjude, peço da vingar-me, e duplamente, porque elles
apenas" que não me faça perder tantas escarneceram da minha fraqueza !
annos dedicados ã minha vingança. Este
odio é a minha vida, tirem-m*o, é eu mor- Tenha pena de mim, abrevie o meu
rerei. Para satisfazeis, hei de fazer cahir sofrimento ; veja que eu não posso por
quantos encontre em meu caminho. E muitq tempo conservar-me na casa de um
qual é a causa que o move ? No dia em hciíiem a quem Qdei^; bem posso um dia
que nos encontramos, vosmecê disse-me perder a cabeça e então 14 se vai toda a
sdmente: c Não é assim que um homem minha esperança, E'uma crueldade fazer-
se desforra; segue-me. * Acompanhei o ; me seguir quasi sempre os passos do in-
nunca perguntou-me siquer por que razão fame aggregado ; é uma feita de piedade;
eu ia perpetrar um crime, e nunca tam- se vosi^ecê ngo quer já acabar com elle,
bém me disse o seu nome, nem perguntou p$ra que havemos de espreitai-o sempre ?
pelo meu. Pensa talvez que eu sou lavado — Supponha que é para descobrir o
por uma questão^èm valor, po- uma melhor ponto para cravar-lhe uma bala,
criançada, e zomba de mim. ou varal-o de lado a lado com a minha
— Se eu não lhe tivesse lido no coração, faca. Mss não ó isto o que nos im-
não chamal-o hia para junto de raim. porta. Qual é o outro homem que o in-
Quem se resolve ao que você resolveu-se, sultou, qual o seu nome ?
é porque tem uma dôr grande. — Motta Coqueiro, o dono d'este sitio.
—Pois saiba que ê mais do que uma dôr, — O Hlho do Goytacaz sabia; mas
é uma desgraça. A filha do nosso inimi- queria que você confirmasse, para lhe
go venceu-me, flz-me seu escravo. Vivia di?er o seu plano, Hontem, quando á
s<5 por ella sem importar-rae com o mun- noite eu estive no terreiro da casado
do : não tinha nada com elle. Houve um nosso inimigo? os escravos doesse homem
dia de loucura na minha vida, porém appareceram para tomar contas Is mal-
«Luiz pagai o com o gran ie amor que te feitorias de Francisco Benedicto, Depois
nho áquella mulher e no entanto ella fu- um a^Ues quis pôr fogo % caum» Hoje
e o m o a ur
» cão damnado. toda o Maçabií deve saber d'isto, porque
Foi então que você deeidiu-sa a ma- de jde pela m r t » Francisco Benedicto
tâl-a, expondo-sa á justiça. Creança I 0 anda de um para outro lado,
odio precisa de crescer, reforçar-se e orear — Mas o que temos oomisto ?
cabellos brancos para depois ter, acção; — O que temos I E é você que diz que
ao contrario tem a sorte das crenças, sabe odiar! O que temos : você uma
que brincsm com espingardas; ferem se dupla vingança; a araho» nós alibep-
ou suicidam-se. dade.
124 MOTTA COQUEIRO

— A h ! exclamou o interlocutor, le- Sobre o cobertor estendido deitou a es-


vando a mão á testa. pingarda, que trazia cemsigo, e em se-
—. Entendeu agora ? Pois "bem, trate de guida foi para junto do fogo onde come-
saber quando chega o fazendeiro; até lá çou a aquecer provisões para uma
esperemos. sóbria refeição.
Os dois personagens mysteriosos sepa- Visto ao clarão avermelhado da pequena
ram-se taciturnos e cabisbaixos, sem que fogueira, aquelle rosto onde a maldade
esteriotypara-se na sua mais precisa
ao menos houvessem trocado um aperto
accentuaç&o, lembrava os génios máus
de mão.
da floresta, creados pela imaginação su-
Viâ-se-lhes no aspecto que a sua allian-
persticiosa dos selvagens.
ça carecia de um sentimento puro, que os
Em ''quanto no isolamento e no myste-
fizesse desdobrarem o intimo nas expan-
rio o recem-chega-lo qaedava acocorado
sões, que se esbatem á luz, serenas e des-
junto da fogueira, o soffrego companheiro
cuidadas.
d'esí8 homem, que durante longos annos
Ao contrario faziam recordar as lendas
apascentava em silencio os mais ferozes
das feiticeiras e demonlos que se reúnem
pensamentos de horrorosa vingança con-
nès logares ermos, obumbraáa a clari-
tra Francisco Benedicto, caminhou em
dade do ceu por um reposteiro de tre-
busca da noticia da qual dependia o espa-
vas e só eatãocomeçam o tripudio som-
brio, em que as visagens e es esgares me- nej amento dos seus instinctos sanguiná-
r i o s em uma alegria satanica.
donhos substituem as palavras meigas e
os sorrisos affaVeis. O caminheiro, andando com uma pres-
O mais robusto dos dois intemou-se pslo teza incrível, chegou ao sitio antes da
capoeirão, caminhando sem hesitar, como hora em que a voz do Mtor ordenava o
recolher e por isso não esperou por muito
quem era assaz pratico em romper por
tempo para ouvir alguma cousa que o
entre a rede espessa de lianas, trançado interessasse.
de galhos, e cs accidentes do sala do A principio collocara-se par detraz das
logar. senzilas todo attenção e ouvidos, mas
Sob cs seus passos de longe em longe p a r a logo attrahido pelo echo de duas
estalitavam as folhas e* os pausinhos sec- vozes, arrastando-se cautelosamente veiu
cos, mss tão imp&rceptivelmente que postar se entre o vão da casa do feitor e
ninguém poderia crer que por alli passava o lanço em que moravam cs escravos.
um homem. Na porta da senzala, Carolina, que,
Após meia hora de caminho, parou sob já restabelecida tiaha voltado para a roça,
uma arvore frondosa, cuja ramagem conversava com a tia Balbina.
cahia como uma cup da. sobre as franças — Parece que vamos ter chuva, disse
de outras menores, reco; tandc um enoríne Carolina, vosmecê não vê que nuvem tão
disco virente.
negra está alli parada rfor cima da casa
Um vasto recinto circular, estofado
grande ?
por folhas mortas, fechava se ahi pelo
tecto e tapagem de arvores, e servia de — Pôde ser que seja o quarto da lua
habitação aos dois companheiros. com trovoada e a pedra do raio; é quasi
O lecem-cbagado, fazendo fusilar o seu gempre assim, mas a pedra do raio nao
isqueiro, accendeu uma pequena fogueira cahirá sobre a casa dos brancos.
— Deus ha da livrar-pos (fiato: lá está
e depcíis-tirou do ouço da arvore um co-
bertor escuro, e um sacco, e separando na porta a Estrella do céu.
_ Mas a agua da chuva pôde fazer
as folhas do chão trouxe para junto de si
cahir a oração, disse a feiticeira ele-
duas foices polidas.
125
OU A PENA DE MORTE

vando a voz; já tem se visto, e, qlaando a , — Quem ? elle f o i . . . .


Estrella cai, Dsus fecha os olhos para a — Com Fidélis, Peregrino e Alexandre.
banáa da c? sa que a perdeu. O filho de seu Chico arrumou uma cace-
— Ava Maria! tia Balbina, Deus não tada «Ên Alexandre e elles correram para
ha dô permitiu* que venha ainda mais defender o outro. No pulo que deu, Carlos
esta desgraça. destroncou o pé.
— Não ; a felicidade é para os brancos, — E o que foram elles fazer ? Balbina
a desgraça é para os capUvcs. Quando dormiu o somno do captiveiro antes que
das costas da Balbina as feridas do chicote 0 gálio cantasse ; estava cançada; não
lançavam fumaça, como a bocca aberta pòude ouvir ao seu anjo da guarda o que
em dia da frio, a senhora brincava com fiz&pm de noite os escravos do mau se
o caçula doente, batendo-lhe com a pon- nhor.
ta do dedo nos seus beicinhos vermelhos. — Eu lhe digo, tia Balbina. Fidélis
A mucama, para la junto «Telia, ria con- aturou até agora tudo que o aggregado
tente sem se lembrar que a sua parceira, tem querido fazer ; .mas os brancos disse-
cheia da dôrss, arribava o eito, gemendo ram á minha vista qu9 Fidélis tratasse
no coração. de botar para fóra aquelle homem, fosse
Quando, de noite, o caçula tossia a sua como fosse. Hontem as madeiras amanhe-
doença, todos logo de pé corriam para ceram fundeadas no rio e o feitor vendo
vêr e saber o que é que elle tinha, e que só o aggregado faria esta maldade,
quando de noite, a escrava quasi a 01 á casa d\slle para metter-lhe medo.
morrer de raiva e de caneaço veiu dei- Emquanto Fidélis arrasoava lá com
tar-se na esteira da sua c«ma, sé a pobre seu Chico, o filho veiu por fóra e deu uma
Carolina teve uma lágrima e um pouco cacetada em Alexandre, que estava da
d'agua com que lavasse as feridas da in- parte de fóra, Então o feitor muito zan-
feliz. Não; a felicidade é para os brancos, gado quiz pôr fogo á casa do aggregado,
a desgraça ó só para os captivosl e se ella não aráeu foi porque Carlos
— Foi assim mesmo, tia Balbina, mas- lembrou lhe que o senhor gosta de sa
vosmecêjá está vingada; basta só o nego- Antonica.
cio doaggregaio. —• E quem foi que disse á Carlos que o
Balbina sorriu, sacudiu os hombros, senhor gostava da filha do aggregado ?
raspou as mãos uma sobre a outra, e de- perguntou a feiticeira.
pois disse dissimuladamentô : — Eile viq e a senhora já sabe também
— Pôde ^sr. e tanto que é a causa da maior raiva.
— Está mesmo vingada, -porque se dis- Não sei porque, mas eu tenho uma cousa
seram que vosmecê era feiticeira e o se- que me diz que, amanhã,quando o senhor
nhor acreditou, hoje também o aggregado chegar, ha grande desgraça aqui.
foi espalhar que o senhor tinha mandado — Como se não ouvisse mais as pala
pôr fogo á casa d'elle e todo o mundo deu- vras de Carolina, a feiticeira, levantan-
lhe credito. do-se com os olhos fitos po ceu, ergueu o
— Engaç.0 CIE VQQ^ creança, ninguém braço e, apontando para a nuvem negra,
disse isto.
resmungou junto da face de Carolina.
— Antes não dissessem ; mas o Carlos — Olha a nuvem; cresce cada vez mais.
contou me q u e tinha ouvido na venda. Está como o lucto da morte; negra, negra.
Vosmecê bem sabe que elie boja não tra- O quarto da lua traz trovoada e a pedra
balhou; porque está com o pó destroncado do raio; a estrella do céu vai cahir da
por um geito que deu. hontem de ,noite, porta dos brancos. Balbina saberá do canto
quando foram á casa de seu Chico, .do gallo quem disser que a estrella cahiu
126
MOTTA COQUEIRO

da casa do mau senhor» Vai dormir, Depois de minuciosa exame, a feiti-


criança, ceira chegou á chat»ma o p^pel que tinha
Sem farças para resistir á intimação da nas mãos, e atirou-o ao chão. A combus-
feiticeira, a creoula entrou logo na sua tão foi rap ida; em alguns segundos estava
senzala e só depois de ter fechado a porta convertido em cinzss.
saudou com voz tremula a vingativa — Agora, disse ella fifcanio-o; raça de
escrava» brancos, sèm coração e sem piedade,
Balbina affastou-se lentamente é dentro zomba do raio de Deus que vem na nuvem
em pouco entrou em casa, fazendo arruir negra do quarto da lua, e foge também
a fecha lura. da vingança da escrava. O s signaes do
Tudo ficou silencioso e o vulto do espiãocastigo ainda estão vivos nas costas da
perfllou-se no oitão da casaria. feiticeira» e, emquantò ólles durarem,
Balbina não terá pardão. Viesse embora o
— Amanhã; bem ouvi, âmmhã, res-
caçula, alvo como a flôr da canema aper-
mungou elle; nao quero parder um mi-
tar nos braços, e beijar a sita.sina; a lem-
nuto írnis, tenho sede de sangue d^quella
brança do castigo, e a sede da vingança
raça. Oh! meu amigo, qual nao será a tua
não sahiriam da alma da negra. A "cobra
alegria.
offendiía espera para matar ou para
Alta noite, na hora em que a supersti- morrer.
ção prende sob os tectos os moradores do A escuridão estendeu-se nó interior do
sertão, duas pessoas affrontavam cora- quarto.
josss as appariçõss de almas penadas e o A esta hora ainda o espião aventura-
rasger de dentes dos lobis homens. va-se atravez da matta em demanda do
Como se uma das grandes nuvens pouso, em que o esperava o seu compa-
negras, que escureciam o ceu, tivesse des nheiro.
eido á terra e deslisasse, cuslda com as O homem, que durante annos assanhara
paredes, pela face da casaria do sitio; um gradualmente o sonho de seVa desforra
vulto, que pulara a janella de uma das contra Francisco Benedicto, depois da re-
senzalas, aproximou-sa a pouco e pouco feição começou a passseiar de um para
da casa grande. Na ultima porta que outro lado doesondrijo, trahindo, »pezar
abria sobre a sala de visitas, alvejava um da estagnação do semelhante, uma im-
papel, no qual desenhava-s9 uma larga paciência febril.
cruz, emmoldur&ndo algumas linhas de Por vezes avivou o fogo, engatilhou a
caracteres typdgraphicós. espingarda, e alimpou no sacco a folha
O vulto parou diante da porta, e depois das foices, recomeçando depois o seu auto-
de escutar attentamente, subiu á soleira matico passeio.
e correu a mão sobre o papel. Esperou Afinal, parou e tirou da bainha uma
algum tempo, e afinal levou de novo a larga faca e olhando a e correndo-lhe o
mão ao mesmo ponto da porta. Tinha dedo peio fio, rosnou entre um sorriso:
desspparecido d'afei o aignal que alvejava — Dsves estar envergonhada da minha
nas trèVas. fraqueza. Eu já não te mereço o gume que
\
corta no ar um fio de cabello da reça do
Com a mesma precaução o vulto tomou meu inimigo. Perdão minha companheira.
para a senzala de onde tíu^a sahido, e a E os lábios da fera pousaram, e demo-
luz de um candieiro illuminou o interior. raram-se nVm bsijo longo sobre a la-
Quem olhasss pela fresta da janella viria mina poliria e lanceada da arma. Era o
agora a tia Balbina, diantado candieiro, idylio do crime, alumiado por um br a*
sari iadp e remirando um papel que tinha tfáro, a faísr tóaabr&r as soenas que •
nas mães»
OU A PENA DE MORTE 127

imaginativa religiosa desenha nasgrutas — Gala te ahi já! Se eu não devo fartar-
inflâmmadas do inferno. me*no sangue do outro, quem me dia que
Interrompido brusçamente o beijo, o não posso beber o teu, a quem confiei o
faceinora disse resOlutamtiite i meu segredo e que me queres perder
— Não cedo, não quero ce ler nem uma Ouve bem ; não irás amanhã á noite a
gotta de sangue da g ração que ha lon- casa âo inimigo; .deixa que as mãos
g o s a n n o s condemnei. Que me importa a
escolhidas por Deus se incumbam da
mim que outros queiram vingar-se?Ne- vingança. Escuta e pensa; eu ando
nhum;tem soffrido toais do que éu. Te- sem ruido como o peixe nada no rio;
nho mulher e não panso n'elía ; tenho mudo de pouso como o vento muda de
filho e fujo de atfagabo ; e, coitadinho, rumo; se não] me attenderes, fugirás em
quando eu volto á càsa vem esperar-me vão. Para que me pudesses descobrir
no terreiro para pedir-ina a benção. Mu- era preciso pôr em terra todas as mattás
lher e filho agradecem-me o pouco que é arrazar todos os morros; desde os que
posso conseguir çpn$ heras de trabfifc se sobem er rrendo, até os que ser vestem
lho roubadas ã minha vingança ; choram de nuvens. Ainda assim era preciso «ecoar
de alegria, e eu nem demoro-ise para con- todos os rios ; eu corro como o veado,
solar-lhes as continuas saudades. mergulho como a anta e boio sobre as
aguas como a vagem do ingá a mercê da
, Qual é o outro que tem igual direito
correntesa, Escuta e pensa; o sangue do
ao sangue da raça amaldiçoada ? Ódio de
inimigo só currerá pelas mãos escolhida^
dois dias, sem rãizes e sem sacrifícios,
por Deus.
eis 0 que deseja partilhar commigo a vin-
gança! Não cedo, não quero cederá — Maldita a hora em que nos encon-
minha, minha s<5 a vida da familia indig- tramos; eu não recuaria com medo 1 não
na; só eu hei de saçiar-me no seu sangue. eeria fraco!
Juro I. De um salto o homem robusto tinha em-
Quasi ao romper d'alva o espião reu polgado e atirado por terra o companhei-
niu-se ao seu companheiro. ro, ao qual subjugava com um joelho
— Chegst amanhã á noite; amanhã, sobre o ventíe e uma dás mãos sobre a
amanhã,, exclamou elle, parando diante garganta, em quanto na outra brilhava a
do taciturna companheiro. faca luzidia.
O silencio d'este impressionando-o pro- Mas a explosão de oolera extinguiu se
fundamente, psrguntou-ltie o espião, mor- de chofre o o espião foi deixado em liber-
dido pelo despeito : dade, ferido apenas por um sarcasmo.
— Então vosmecê não se alegra. — Criança; vê se eu sou medroso e
— Não. fraco; alli estão as armas, mata-me!
— Pois não vai acabar os seus des- — Oh ! meu Dsus; eu sou bem desgra-
go tos. çado, soluçou o miserável.
— Sim, mas Dsus quer que não seja ©u A noite calada e escura e apds ella uma
quem me vingue; escolheu outro para aurora triste, parcamente gazeada e to-
ma ejar a arma. o ida apenas par uns ephemeros tons aver-
~ O&tro; eu, não é verdade j sou eu ? melhados em estreita barra de um céu côr
de manejai s, hei-de ? com a força do de chumbo, estenderam-se entre o silen-
meu odio.
cio dos dous companheiros*
— Não éa tu também, é outro. S e g u i u - s e da mesma sorte ó dia, suando
—_Ohl homem malvado, eJsolamòti o por entre nuvens carreged;;s baça e tris-
eipiio, pois você pensa que m consentirei? tonha claridade, que se humedecia pas-
antes morrer.
sando atrâVez de i m ^ ^ u ^ t ^ s chortabo*
128 MOTTA COQUEIRO

periódicos, que, batendp na folhagem, Seriam dez horas da noite quando cs


leques das bananeiras, qua se erguiam no
enchiam a nratta de abafados susurros^
terreiro da easa áe Francisco Be&eâicfco,
Ao anoitecer, o filho dos goyt&cszes
estremeceram ao da Uve5 como o capin-
acercou-se do seu companheiro e disse
zal por onde as preás correm amedron-
lhe buscando armar-lhe pelo carinho do
tadas. •
accento a boa vontade.
Um vulto sahiu d'éntre ellas e cami-
— Esta noite você vai descançar na, casa
do amigo. Pôde ir sem rancor cie mim; nhou vagarosamente em torno de toda a
a sua vingança nem por isso deixará de casa. Certificou-se de qu? ninguém o via.
ser levada a cabo. O rio que volteia pela Voltando á frente ria casa e agarr&n-
serra ha de chegar a cahir na varzea. do-se aos entulhos da parede, marinhou
Agora ou logo, que importa ? Vai em paz. até á cobertura de sapé, cuja superficie:
O ouvinte não respondeu; taciturno, molhada pela chuva não deixou ouvir o
menor estaliio.
pegou da sua espingar da e dè uma das
Separando cautelosamente as ramas do
foices e caminhou para á sahida do es- tecto, conseguiu em poucos minutos des-
condrijr. aparecer atravez d'eJÍe.
— Não mereço mais nem um adeus ? I Na sala de visitas, onde dormiam tres
Não faz mal; não tardai á que você com- creaneas alumiadas por uma lamparina
prehenda que eu soube pagar a confiança collocada sobre uma velha mes ar diante
com que scompanhou-me, sem saber ao de um tosco oratorio, appareceu o homem
.menos o meu nome. Breve voarão sobre à que tinha gravado a cruz na casca da
cabeça do amigo os senhos serenos; o arvore.
pesadello da offansa ha de mud&r-se no Depois de se ter inclinado sobre as
desafogo da vingança. Se esta não é to-, creanças, e fitado-as por algum tempo,
mada pélas suas m ã e s , Deus sabe a causa. abriu sem ruido a porta, sahiú, caminhou
Ambos temos soffrido muito, mas a sorte até as bananeiras e voltou logo trazendo
não quer que sejamos nós os que demos comsigo a foice e a espingarda.. Fechou
a satisfação ás nossas dôres. Paciência. de novo a porta e guardou a chave -sob
Entretanto ninguém mais do que eu tinha o oratorio,
o direito de dizer ante a vida da familia Como quem conhecesse perfeitamente a
condemnada : — é minha, minha só; disposição dos aposentos, seguiu pelo cor-
mas você vê bem que eu não desespero. redor que abria ao fundo da sala.
Algum áia vir-se-ha a saber a historia do Na sala dá jantar, sobre um estrado,
homem que vecê encontrou no caminho, re~omnava o bom somho da confiança o
da vingança; comprehenderá então como filho do aggregado. O visitante nocturno
era triste. Pôde partir. viu-o, graças á claridade que frouxamente
— Não será mais do que a minha, derramava-se na sala, e sorriu.
adeus 1 Depois abaixou-se sobre elle e-balan-
O cabaclo não se demorou muito no çou-o, dizendo baixinho ao moço que as-
escondrijo após a sahida do companheira.
sentára-se sobresaltado :
Antes porem cie retirar se . cavou com a
— Não me cíinheces, não é verdade ?
foice um buraco, enterrou o sacco das
Pois sabe qu® sou um amigo de infância
provisões, e abriu com a ponta da faca
de teu velho pai. Ouvi hontem a historia
na casca da arvore uma enorme cruz.
do assalto dado aqui pelos escravos do
— Por mais que tu cresças, disse elle
capitão. E>te chegou hoje e não tardará
ofhando para arvore, não se apagará este
que venha concluir a sua obra. Vem com-
gignal, e os meus poderão saber se eu
migo, e d'alli das bananeiras cora a»
tive ou não coragem de vingar-me.
OU A PENA DE MORTE 129

nossas duas espingardas defenderemos a emquanto» que sua fiebil voz, querendo
casa. Vem. bradar, murmurava apenas:
O moço, que não teve tempo de reflec- — Malvado, que mal te Azemos nós ?
tir, leyantoú-se de um pulo e, seguindo o Oá elhos do aggressor fuzilaram fran-
que elle julgava amigo familia, sahiu camente a cólera longos annos represa,
compile pela porta dos fundes, que foi fe- a ella respondeu apparentemente sereno:
chada por fóra. — Nenhum! Bem sabem que nenhum.
Logo porém qu© chegaram junto ás ba- — Silvai-nos, meu Deus; estamos todos
naneiras, com a J agilidade e cortesã de perdidos, exclamou angustiosamente a
um bote de tigre, Juca Benedicto foi co- senhora.
lhido peUs mão a vigorosas do homem — Nem Deus, nem o diabo 1
possante, e sem que tivesse podiío profe- Proferindo estas palavras, os punhos do
rir uma palavra, cshiu, em cheio por aggressor, calcando sobre os hombros da
terra. áesveaturada esposa, fizeram-a cahir de
O homem voltou- de sevo á casa, accen- joelhos. ..
deu com o maior sangue frio uai can- — Mite-nos, sa tanto deseja, mas poupe
dieiro e dirigiu-se á cozinha. nossos filhos, que não lhe fizeram mal
Tirou da,bainha a faca ensanguentada nsnhum. o
e, cortando cóm ella uma corda que se O monstro riu-se e á proporção que,
estendia de um canto a outro do vão, di- posto um joelho sobre o estomago e ar-
rigiu-ae em seguida ao quarto da sala, queada a mão sobre a garganta da in-
depois de ter trancado e guardado as M k , esfcrangulava-a cynicamente, dizia
chaves de todas as portas, e postó a foice entre dentes :
por detrás <lo e^tra lo. — Eu não esperaria tanto tempo para
Dormiam rfesse quarto Francisco Bene- vingar-rae se bastasse-me tão pouco san-
dicto e sua mulher. gue. Irão tedos, um oor um, desde o me-
O intruso, de uma reviravolta, amarrou nor até o maior. Bem sabe que já perco
os braços que o adormeci lo tinha cru- um d:s da tua raça ; é demais.
zados sobre ò peito. E o monstro continuava na sua pressão
O aggregado levantou-se de chofre; mas feroz, ainda que sob elle já não estivesse
não pôle clamar por soccorro porque foi mais que um cadaver, cujoè olhos des
no mesmo instante amordaçado. mes unidamente abertos e salientes pare-
Bispert&da pelo abalo que produziu no ciam querer feril-o como se fossem dois
leito o pulo do marido, e vendo diante de punhaes.
si aquelle homem com um sorriso mau
a contrahir-lhe os grossos beiços, ao — Amigo . Francisco, disse o monstro
passo que o marido forcejava para liber- que se levantára; vais vêr como seé leal
tar-se de suas mãos, a pobre senhora e bom pagador.
precipitou-se corajosamente sobre o mal- O aggregado apenas podia soltar gemi-
vado. dos abafados. O monstro arrastou-o até
F r a n c i s c o Benedicto já h a v i a cahido, á sala de visitas.
porque com u r a a ponta d a c o r d a f o r a m - Ouviam se dentro os gritos das duas fi-
lhe a m a r r a d o s os joelhos.- lhas mais velhas, que batendo á porta do
O faccinors esperou calmamente o as- quarto, a qual o faccinora tinha tido o
salto da fraqueza feminil, encorajada pela cuidado de fechar, exclamavam angus-
dedicação e o amor. tiadas :
As mãos da esposa seguraram-se como — Abram-nos a porta } perdão ! perdão
duas tenazes aos braços do homem; para nosso pai.
130
MOTTA COQUEIRO

Por sua vez as tres. creanças acordadas, — E' realmente bonita, e, peias'dores
vendo o velho pai estendido1 per terra, e que tenho soffrido, ju.ro-te, amigo Fran-
o homem de má catadura caminhar para cisco, o mau coracão está & peâir-me que
ellfts, choravam, peiindo-lhe que &ão as eu não mate-a,
matasse. Houve u a instante de silencio, durante
— Berra, corja miada, berrai ás em vão. o qual o pudor da menina, quasi desfal-
As portas estão fechadas, e a estas horas lecila, foi posto a tratos peio facciaora.
não passa viva &lma peia estrada. — Ah! seu capitão ! que mal lhe fize-
Pegou então na menor das tres crian- râBD as' creanças, tenha dò d*elías.~
ças, empurrando as ostras que, ae joe Este grito de desespero, proferido por
lhos e agarradas á irmãsiaha, pediam por Antonica, deteve em meio uma scena de
ella. As duas pobresiahas calmam abra- iniquidade indisivel.
çadas uma com â outra,. emquanto que o O malvado ergueu-se de súbito e arras-
monstro, sacudindo pelos c^bellcsa crian- tando apds si a preá», acocorou-se junto
cinha, esbofeteava-a sorrindo. de Francisco Benedicto. «
Depois cr&vcu-lhe aa garganta as u&hss — Ouviu o que disse a sua filha, amigo
de fera, balançou-a no ar e atixou-& ao Francisco? Ella pensa qoe é o capitão
lado do angustiado pai, que v&squejava a quem se desforra n1esce moxneato; e todos,
sua desgraça. quando encontrarem esta casa contendo
os pedaços -áa tua raça, liãii de p-ansar
— Por istosinho disse elle apontando o
também que foi o capitão o auetor d'esta
cadaver, nem valia a pena incommodar-se
vingança, fí eu vigerei tranquillamente;
um homem; porém era uma viborasiaha
nem ao menos podes levar a, esperança
que ficava. Vamos ás outras.
de que eu eoífra um pouco, uma hora
Durante o estrangulamento da irmasi- só mente l Quanto é bom ter-se como tu,
nha as duas meiímaa tinham se levanta- amigo Francisco, inimigos a cad» canto I
do e corrido para o interior, debalde, por- Oá que t ã j mais offendidos podem casti-
que não tardaram a ser descobei tas pelo gar sem temor. HA quem sofíra por elles.
a cassino, que as arrastou até á sala.
A faoa do assassino sumiu sa na região
Uma delias teria oito annos, <a a outra
thoraxica da indefesa menma, e duas
onze.
vezes mais cravou-se lhe no seio.
— Vamos primeiro acabar com a mais Quando a victií&a não dava mais sig-
moça, amigo Francisco, resmungou o mal- naes da vida, o monstro passou pelos
vado. L' preciso que eu ganhe força para beiços a lamina ensanguentada e disse
sahir perfeito o trabalho. demoradamente:
Com violento empurrão a menina foi — Oh I como é tão deca e cheiroso o
estirada no chão, e o d^monio do odio sangue dos teus. Devias amar muito a
levantando o pé, bateu-lhe em cheio nas tua mulher, amigo Francisco, para que
costas. Uma gjlphada de sangue espada- tivesses filhas ião banitas. Faltam-xte
nou e foi cahir sobre o aggregado, e aindii duas e é preciso que eu dê conta
mais uma victima foi immola&a a uma da tarefa antes que © dia clareie.
vingança de causa desconhecida. A poria do quarto, em que o assassino
A menina de onze annos foi então arras- tinha prendido as duas moças, abriu-se e
tada pelo monstro, que assentando-se elie, encostado á foice que antes escon-
n'un môcho obrigou-a a Bentsr-se nos dera, esperou que as desventuradas s&-
seus joelhos. hissem.
A lubricidade veiu então miaturar-se á As infelizes, abraçadas n'um canto da
ferocidade. casa, soluçavam de modo a commover ás
OU A PENA DE MORTE 131

feras P pavor tolhi*~lb.e£ o movimento. Uitfa foiçada, desfechada nas têmporas


Eram duas estatuas de desespero esnfan- do aggregsdo, pôz tern o ao seu inenarrá-
d i n 4o uns'lagrimas o seu desconsolo.
vel seffrimento.
—É preciso venham temar a benção Concluída a matsnça5 o monstro ateiou
a seu pai antes que se separem d'elle, fogo aos quatro-cantos da casa e sahiu
lentamente, deixando sobre a mesa a lam-
d i s s e o monstro; ea quero ser bom para
parina, cuja luz allumiava agora cinco
vocês. cadaveres! __ ' . .
— oh i isto é demais 1 bradou-Antomca» A escuridão do terreiro epancou-se pelo
p r e c i p i t a n d o se sobre o assassino ; mate-
clarão vermelho d^lgumás labaredas, e
nos mas não escarneça. o monstro, parando e voltando-se para a
A c o r a g e m da moça commumcou-s» á casa incendiada, exclamou com tremulo
s u a i r i n g e ambas atiraram-se valorosas e sombfio accento :
sobre o frio matador.
Mas a foice, vibrada vigorosamente, — Ninguém I Amanhã tudo isto será
fendeu pelo maio o craneo de Mariqui- um montão de cinzas e não haverá um
nhas, e a. desventurada vacillou, e para criminoso pela extineção da familia do
logo baqueiou inundada por uma onda de malvado.
sangue. . As ultimas palavras foram porem acom-
A n t o n i cã tentou em vão fugir ás mãos panhadas pelo ronco longínquo de um
do homem desapiedado. N'um lance trovão, e alguns segundos depois as
(folhos fôra por elle subjugada e arras- nuvens negras do céu despejavam sobre o
tada até junto do velho pai, a quem a incêndio uma chuva torrencial.
vida era ainda conservada a custo de
tanto tormento. XI
— Mate-oié; é um beneficio; mas diga
a quem lhè mandou aqui, diga a elle INDÍCIOS I8REFUTAVEIS.
que mesmo na hora em que mandou ma- Sob o temporal de feito, singrava rio
ta r-me eu disse que o ornava.
acispa uma canôa, cujo impulso repre-
O monstro buscou inutilmente profanar
sando e foz ando espumar ruidosamente a
aos olhos do pai subjugado a grinalda
corrente abria duasgrandes azas niveas
virgínea da inféliz amante, o heroismo
do pudor teve forçss para resistir-lhe e na escuridão das aguas e da noite.
o barbaro e deshumanb assastino viu«se Gradativamente os remadores foram
obrigado a santificar com a morte a vir- alli viando os remos, e afinal a canôa pa-
gindade de Antonica. rou.
— Confessa, amigo Francisco, disse o —Nas horas de EMus! exclamaram
escarne o da fára; confessa qua eu sei elles ; estamos em casa,
vingar me. Já não contavas coimmigo, e Estavam de feito no porto do sitio de
entretanto não esqueci a divida de ou- Macabu, propriedade do capitão Motta
t r o r a ; pago-a com juros. Morre , pois, Coqueiro, que, vindo a bordo, tratou de
oh ! cão I desembarcar logo que ouviu annuncio dos
A planta do selvagem co51ocou-se sobre canoeiros.
a garganta de Francisco Benedicto, que —Rapazes tratem de cobrir. as cargas,
estrebuchava violentamente. Dapois o disse elle, e os Srs. venham commigo.
monstro recuou um passo e disse como Qae viagem torrivei!
que arrependido do seu acto ; Pouco depois via-se luz na sala da vi-
— Não! envenenaste a minha vida, sitas da casa grande, e ouviam-se falias
morre como o sucuruiú. entrecortadas por francas risada»,
132 MOTTA COQUEIRO

Recostado n'um canapé, junto do qial meu compadre, attendendo a que tem
estavam assentados alguns hoioens de uma familia numerosa. Elle ha de achar
physionomias distinctas, Motta Coqueiro quem o insine, porque ninguém as fsz
presidia uma conversa de amigos. que não as pague. Ha cousas que dão ma
O mais jovial e que mostrava ma s pri- muito mais que pensar..*
vança com o fazendeiro era o Sr. Con- ^ Ah 1 tern também seus segredos;
ceição, negociante residante.em Macahé. deixe èstar que eu hei-de pôl-o em bons
O seu rosto cheio e vulgar era entre- l e n h e s còm a D, Maria. Vejam o sonsi-
tanto attrahente porque illuminava o um nho.
olhar cheio ds insinuante sinceridade.
— Qual, por este lado não ha que temer;
No mais era um homem de estatura
já tenho os meus cíncoenta sobre as
mediana, sem reservas aristocratiças,
costas. O que me impressiona mâis hoje é
sem posições estudadas; o antigo typo do
a eleição de deputados geraes, para cuja
homem do commercio, que se perdeu no
Victoria o governo mandou para Campos
diluvio fervido do aperaltamento moderno,
um juiz de direito, escolhido a dedo.
que olhando, para a fidalguia, fica
— Ora deixe-se àMsso ; você bem sabe
sempre no ridiculo.
que, trabalhando, taboqueia o bicho.
— Se você nao tivesse chegado hoje,
— Não é tão fácil; os diabos dos cau-
dizia o Sr. Conceição, amanhã só encon-
dilhos do governo têm-me intrigado á
traria aqui muitas lembranças nossas.
grande. Pois o que é a connivencia do
Batiamos azas sem mais demora.
Oliveira com o meu aggregado, se não
— O que custa é o mais desejado, res-
um meio de desmoralisar-me ? Agora a
pondia o capitão ; e a além d"isso as mi-
verdade é que o finorio perde de todo o
nhas madeiras são como o vinho, quanto
seu tempo.
mais velhas mais caras. Está ahi porque
. me demorei. A conversação estendeu-se por mais de
— E lá ficaria se ò vento não o fosse uma hora sempre salpicada pelos epi-
busear. Pelo que eu vejo você não chega gr&mmas e malignidades joviaes do Sr.
aqui sem tempestade. Conceição, que assim confirmava uma
— Nem'sempre ; aconteceu hoje para regra geral; os caracteres sadios e vi-
que vocês paguem-me não só as madeiras gorosos são intimamente alegres.
mas ainda o incotr modo da viagem. Eu Já pela madrugada os amigos separa-
levo só dez por cento. Antes isso do que ram-se e tomaram os seus aposentos.
ir para a estrada* O sol, apezar de alto, illuioinava furti-
— Homem ! por fallar em estrada, é vamente o céu, quando de novo o fazen-
verdade ; que se deu aqui um desagui- deiro avistou-se com os seus hospedes.
sado entre você e um aggregado ? Estes, que tinham pressa de voltar para
— E r verdade; mas eu nem penso mais Macahé, não deixaram esperdiçar um mi-
n'isso, porque o tal aggregado, que^é meu nuto e occuparam-se durante todo o dia
compadre, gosta de mais do copo. em discutir o preço das madeiras e as
— Mas n'e&te caso cozinhe as caraspa- condiçõQs do seu transporte.
nas em casa, e não se engane com os cacos A mais perfeita tr&nquillidade de espi-
alheios. Se fosse commigo o negocio não rito expandia cs modos e as palavras
ficaria ass<m. d'essa reunião de amigos, á excepção do
— Eu também quiz processal-o ; mss fazendeiro que parecia estar preoccupado.
não só tive de luctar com a animosidade Quem, á tardinha, affastande-se da casa
do Oliveira e trampolinice do Lycerio, grande, se dirigisse á casa nova, assistiria
mas também de compadecer-me do tal abi a uma geena de requintado cynismp.
OU A PENA DE MORTE
133

O assassino da indefesa familia andara não tornes nunca maia a este logar amal-
durante todo o dia rpdeiando as tuas diçoado. Eu também seguirei o meu
v i c t i m ^ s como um ccfcvo em torno da Jestino.
carniça. > O silencio e o abandono invadiram de
Qaasi ao pôr do stíl o companheiro, que todo o triste iogsr, onde o odio havia
na vespera fôra por elle despedido,,. veiu executado uma tremenda sentença.
também farejar as cercanias da casa do Talvez no mesmo in&tante em que o
inimigo coinmum. monstro imputava ao fazendeiro o seu ne-
O silencio profundo que reinava alli fando crime, os amigos á'este reunidos na
casa grande reparavam no seu mau estar.
f e l - o apprõxi^ar-se mais e mais,.até que
Já não era possível esoondel-o, porque
finalm;mta collocou-se entre as bana-
á proporção que a noite se avisinhava,
neiras.
Motta Coqueiro entristecia cada vez mais,
O aspecto da casa fêl-o pensar na pre- e chegou a tal estado de melancolia que,
visão do seu companheiro e para certifi- durante o jantar, foi amigavelmente in-
car-se chegou até mais perto. terpellado pslo Sr. Conceição.
O bafio do sangue apodrecido e o som
— Hcimm, você está com a cara da
do intenso eperenn^ zumbir do mosqueiro
noite de hontem. Quer até parecer-me
certificaram-o de que lá [dentro jaziam
que o nosso amigo deu agora em forreta
cadaveres. e áfctá arrependido, de não nos ter carre-
Olhou em torno de s i ; depois espreitou gado mais dez por cento no preço das
pela fcesta da porta, <e esmo se o et picas- madeiras. Mas não vale zangar por isso;
sasse o remorso, recuou espavorido, e, nós ainda estamos aqui, esfolle-nos a seu
arrancando violentamente o lenço que gosto.
lhe encobria parte do rosto, exclamou
dolorosamente. — E' mesmo verdade que eu estou
triste, respondeu o capitão e o mais sin-
— Míri^uinhgs, minha Mariquinhas 1
gular é ser por uma asneira.
ea havia de saber poupar-te.
Ao dizer a ultima palavra os cabellos — Perdão, interveiu o Sr. Conceição, é
erriçaram se-lhe, « agacho a-se transido o mais natural.
de terror. — Hontem, ou melhor esta madrugada,
E' que a pesada mão do companheiro quando deitei-me, continuou o fazen-
tinha se-lhe calíoc&do sobre o hombro, peiro, tive uma especie de pesadelo. Fi-
apertando-6 fortemente. gurou-se me estar em um um logar de-
— Trahiste a tua cobardia, ou mentes serto e como que ouvi gemidos dolorosís-
como um cão. O a assassinaste a esta raça simos. Procurei por toda a parte e não
damnada, ou querias enganar-me, vi viva alma. Porém, d'ahi a pouco des-
Mmuel João que era o companheiro cobri perto de mim grandes línguas de
do assassino, tremia miseravelmente e fogo, é depois um montão de cadáveres.
não ousava responder. O mais exquisito ê que durante todo o
— Ctimo tu és cobarde, bradou o selva- dia eu tenho pensado n'este sonho.
gem ; c^mo virias comprometter-me, se — Ha de ser lembrança d^quelle clarão
.eus confiasse a outras mãos a nossa que o Sr. disse-nos ter visto na viagem,
viogança. Felismente ainda ha homens pouco antes de çahir o temporal, inter-
de coragem. O capitão chegou hontem e rompeu ura dos amigos.
eis aqui os destroços. Bem t'o dizia eu ! — Ora sonhos! exclamou o Sr. Con-
Depois de uma breve pausa, continuou: ceição.
—E' preciso 'que nos affastemos d'aqui; — Ha de ser mesmo, proseguiu Motta
se nos vissem estariamos perdidos. Vai, Coqueiro, porque fiquei bastante imprea-
134 MOTTA COQUEIRO

sionado. Parecia o clarão de um incêndio da feiticeira resposta afíirfíiativa, prose-


mas de repente extinguiu-se. guiu:
— Pois víicê queria que houvesse um — EHe já sabe da sorte do aggregado ?
incêndio que resistisse á chuva de hontem. — Veiu vender madeira, respondeu Bal-
O Sr. Conceição, que foi quem proferiu bina ; nem pensou ainda no compadre.
essas palavras, poz-se a rir da melbor — Pois aconteceu uma cousa hurrivel,
vontade, baseando desfazer a impressão minha velha, e é preciso que tile saiba,
profunda cio fazendeiro. — A casa grande está aberta ; pode ir
Inútil esforço; depois do jantar Matta fallar com o senhor, ou se q r z t r faiie
Coqueiro, pedindo lieença ao seus hospe- com o Fidélis, que é o feitor,
des para ir saber ao feitor o que se tmha — Não, não quero fallar ao tm senho**,
passado durante a sua ausência,• confir- minha velha; sou pobre, mas sou homem
mou plenamente qus fôra bailada a ten- de bem; não poderia encarar com elie.
tativa de Conceição. Escuta e dá ao teu senhor este recado.
Apertando a mào doeste, disse-lhe per- Dize lhe que ha quatro noites uio homem
turbado : de bem estava por acaso janto da casa de
— De&culpe-me esta fraqueza, mas, ha Francisco Benedicto, quando via che-
cousa de um anno que este malGicto sitio garem quatro escravos úVste sitio, alu-
só serve para dar-me trabalhos. Em che- miados 1
por um facho. Bateram á porta e
gando aqui, fico logo desatinado. um à elles, qae parecia ní&nd^r sobre os
O Sr. Conceição não galhofau á'esta outros, a queoa chamavam Fidélis, en-
vez; e, ao contrario, depois da sahida do trou como um c - valia disparado dentro
fazendeiro, di&se aos outros que também da casa do aggregado do capitão.
ficara impressionado com a tristeza cío Fallou muito lá dentro, Da rt pente ap-
amigo» parece junto do encravo, que tinua ficado;.,
Na mesma hora ©m que na sala de jan- fora cóm o facho, o filho d© Francisco
tar entreahava-se a conversação, que dei- Benedicto e ariuma-llie uma pnuiada
xámos exarada, perto da casa grande a mortal. Mas errou o alvo. Todos os ooti\ s
tia Balbina dava toda a attençáo a um in- escravos s&hiram em soccorro do compa-
terlocutor. nheiro, mas não puderam agarrar o ra-
paz.
A feiticeira, que desde o dia daembos- Efltao FUelh qaiz pôr fogo á casa, e
, cada contra Motta Coqueiro, fôra passada
se conteve se foi devido a um segredo
para os serviços da casa grande, gozava
qae lhe dúse um moleoote, que estava no
de cartas regalias e d'elUg usava sem o
mínimo prejuizo. grupo.
Pesaram dois dias sem que nada mais
Durante a noite, quando acabava a la-
acontecesse ao aggregado, poique ainda
vagem da roupa, não> era mais cccupada
para nenhum trabalho, e ficava-lhe com- hontem eu o vi.
pletamente o tempo e o seu emprego, sem Hoje, porém, tive diante de meus olhos
uma vista horrível. D.osde & estrada eu
quebra da ordem esíabsleoida para todos
reparei que tolas as portas e janellas es-
os escravos.
tavam fechadas, & estremeci.
Balbina, que sahira a disfarçar o cap- Mais perto dobrou-ss me o temor ; a
tiveiro, segundo a sua phrase, encon- frente d& casa tiuha sign&es de fumaça»
trou-se, junto do casarão, com um homem e a coberta ú@ sapé estava qoasi toda
que lhe era totalmente desconhecido. queimada. Pensei logo que se tinha reali-
Esta começou por perguntar-lhe se, de sado a ameaça de Fidélis e corri. Não era
facto, havia chegado o capitão, è obtendo só isto o que eu devia vêr. Qaando em-
OU A PENA DE MQRTE 135

pairei s porta, não pude conter o choro; mas saiba que não pode de hoje em diante
a os.:?8 de Francisco Benedicto é hoje um fazer nada sem minha ordem.
cemiterio; mataram todos, todos. O fazendeiro, que durante algum tempo
— Jesus! exclamou Balbina, nem pou- conservara-se no mesmo logar com a ca-
param a moça qne o senhor estimava beça sumida entre as mãos, levantou-se
tanto, fAnt-s os brancos não tivessem por fim e entrou na sala de jantar com-
dado oràem ! pletamente disfigurado.
— "Vai, vai, minha velha ; conta a teu Balbina que observava todos os movi-
senhor e&ta desgraça. mentos, ao vel-o assim perturbado, res-
Balbina, temporariamente commoviáe,' mungou at i a vez do odio encanecido :
apressou o pi$so em direcção á casa — A Estrella do céu já não defende a
grande, e o desconhecido, sorrindo então porta dos branccs e Deus não olha mais
'desdenhosamente, . disse com uma infle- psra a banda em que ella está. A escra-
xão de voz que f«ri& estremecer ao va pode rir, vai ser vingada.
fleugrnauíico dos homens. A noite foi uma longa tortura para o
— Túvn pena a desgraçada, e eu lasti- fazendeiro, que estava ainda muito longe
mo que fique sobre a terra uma filha da realidade horrorosa <?a sua situação.
d'aqtiell4 raça. Os malditos tinham pouco Via no acto doá escravos, auctorisado
sangue,, pela senhora, o descredito da seu nome e,
Dspoi.; de umab^eve pausa, disse ainda: o que lhe doia igualmente, uma arma se-
— Tenho peaa do capitão; t?*lv©z venha gura com a qual os seus adversamos
a softrer pela morte a'aquellas viborss. combatessem lhe a popularidade.
Deus o defcnd». , Com qoe presliglo, elle que mandava
Ditas estas palavras o desconhecido incendiar a ca?a de um pobre e seu hos-
affastou se cora passo lesto e firme. pe íe. poderia pedir ao povo da localidade
Q ciando Bídb^n;. chegou ao terreiro er- apoio e dedicação, se depois, esquecendo
controu ahi o fazendeiro, diante do qv.al, hHo, viria talvez a perseguil-03 cruel-
com o chape a na mão, Fidélis faikva mente !
humilde utente. Tarde da noite Motta Coqueiro, cuja
O feitor depois de contar as diversas momnia afeiava cada vez mais o acon-
tropelias feitas pelo aggregado, junte il- tecia? ento, foi ter com o sen amigo Con-
ibes a narração do estrago feito nas bsisas ceição « coremunicou-lheo oacorrido.
e o expediente que tomara, como feitor. O honrado negcciante Biostrou-se tam-
— Eu fui fallar cora s<m Chico, disse bém profundamente abalado e só depois
elle, xr:a? não fai at tendi 1o, e ainda o de lons;í> silencio disse para o fazendeiro:
filho <?eu vw;* cacetada era Alexandre. — Ovunioo remédio é psgar pelo preço
ea que Francisco Benedicto pedir as bem-
põr fogo á ca^a, n:as
não cheguei feitorias do sitio.
— E vigera d,60 lhe ordem para faaer — I to é o menos, roeu amigo, o que
c o o , a ? interrogou o fazen-eu queria era que vocâ visse como se me
deiro. preparam desgraças.
— S&nhora mandou qne puzesse fdra o Antes do nascer do sol, Motta Coqueiro,
sgxregado de qualquer so>t«. que passara a noite em atroz vigília,
— E o qus u 7 , depois o cowpadre. sahiu para ojterreiro, e, depois de orde-
' — P-ívec ' que foi dar parta a« inspector. nar qne lhe trouxessem o «avalio, porque
— Po e ir, pede ir embora, excUmou desejava sahir logo dep»is do almoço;
Motta Coqueiro dirigindo se ao escravo, poz se a passeiar de um para outro lado.
136 MOTTA COQUEIRO

Os escravos vieram alinhar-se e com Manda matar os malungos e fica tão


elles appareceram taoabam no terreiro fresco como se mandasse surrar o escravo.
Faustino Silva e Fiorentino. O forro atinou logo com os urubús, e o
O primeiro vinha pedir ao fazendeiro outro tratou logo de se pôr na picada.'
que lhe cedesse algum assucar, e o se- Só os negros foram depressa para fazer
gundo tratar acerca da vénia da posse o enterro dos defuntos que o fogo não
na serra dos Olhos d'agua. queimou. Enterrem : Balbina irá mostrar
Despachado Faustino; Motta Coqueiro o logar. A etárella do céu fugiu da porta
dirigiu se a Florentino para desculpar-se dos brancos para que a escrava podesse
com elle por não poder cumprir já a sua vingar-se do senhor sem coração, que a
mandou surrar e dos parceiros que não
palavra.
tiveram dó d'ella. Balbina não terá pena.
— São terras, Sr. Flôr, e não é possi-
O caçula ficará sem o pai, e o pai sem os
vel comprai as sem ver. Ora eu estou
escravos, Balbina estima o caçula mas não
doente e além d'isso não posso demorar-
terá dó de seupsi.
me ; tenha paciência, trataremos do ne-
gocio mais tarde. O3 hospedes do fazendeiro vieram en-
Efíectuando o movimento habitual dcs contra-lo em agitação febril, dir-se-hia que
sertanejos, quando aighma cousa não sa era cruciado por invéscivsis remorsos»
effectua conforme os seus desejos, Floren- O máu humor trahia-se-lhe pelos mo-
tino levantou os olhos para o céu. nosyílabos que resumiam as suas respos-
Em seguida erguendo o braço e apon- tas, e a instabilidade das posições, que to-
tando para o ocidente, disse com extraor- mava, denunciava a suá impaciência, de
dinário espanto. tal forma que o Sr, Conceição viu-se for-
— Olhe, seu capitão, que grande nu- çado a dizer-lhe á puridade:
vem de urubus está a fazer verão acolá. — Oh ! meu amigo, não é preciso que
— E' verdade, confirmou o fazendeiro, todos saibam do que se passou.
e em seguida perguntou a Fidélis : por Estavam sentados á mesa, almoçando,
que diabo não manda você enterrar os os hespedes, que deviam seguir viagem.
animaes mortos ? n'este mesmo dia, quando Fidélis en-
— Não faltou nenhum cá no sitio, meu trando, arquejante de cançaço, disse para
senhor. o seu senhor que lhe precisava fallar em
— Isto p8lo que eu vejo, anda desgar- particular.
nellado, seu mestre; disse Motta Coqueiro O semblante do negro, onde estava gra-
para o feitor; havemos de ver se falta ou vado o espanto, fez com que o fezendeiro
não. Yá já, com alguns dos seus parceiros, se levantasse precipitadamente.
fazer enterrar o animal, que encontrar Foram ambos até o corredor que com-
morto. municava a sala de jantar com uma sa-
Fidélis, acompanhado èos seus parceiros leta interior, na qual achavan-se Balbina
Carlos, Alexandre, Sabino, Guilherme, e outras pretas.
Peregrino e Domingos, seguiu em direcção Chegados ahi, Fidélis com a voz quasi
á negra revoada. embargada pelos arquejas contínuos,disse
Todos os outros escravos e os dois ho- com uma inflexão dolorosa :
mens livres retiraram-se, ficando apenas — São elles, meu senhor ; estão toáos
no terreiro o desventurado fazendeiro e mortos.
Balbina que ao longe resmungava sarcas- — Quem ? mas quem é que está morto ?
ticamente: interrogou assustado o fazendeiro.
— Fingimento de branco, sé Deus poda — Já estão mortos, sim senhor, seu
vôr no coração d'elle ; o rosto não muda. Chico, a mulher e os filhos todos.
OU A PENA DE MORTE 137

— Ok 1 meu Deus, meu Deus, que des- atraiçoasse a sinceridade do sentimento,


graça, bradou em lancinante desespero externando-os em inflexão menos pró-
o malfadado Coqueiro; que mal fiz eu pria. Modas, apertara m-se as mãos, mu-
para que caia sobre mim tamanha pu des sahiram e por muito tempo cami-
nição. nharam.
— o que é, gritaram os hospedes, que O Sr. Conceição rompeado aflasl o silen-
vieram prestes cercar o fazendeiro, que cio, dissse ao embarcar-se na canôa que os
apertava com ambas as mãos a cabeça, e esperava :
desfézia-se e.n lagrimas. — Não sei porque, mas tremo pelo fu-
— Díixem-me, deixam-me, pelo amor turo de Ccqneiro.
— Grande desgraça o fariu, responde-
de Deus ! Ea sou um desgraçado. O que
ram os outros.
será de minha mulher, de meus fílftos.
Dapois de ficar sd5 o fazendeiro, mais
Malditos negros i feroz que uma panthera esfaimada, ati-
Cambaleiâiido COÍBO um ébrio, Motta ro u-ss contra Fidélis, esbofeteand-o e bra-
Coqueiro foi eahir sobre uma cadeira na di&do : •
Sida de jantar, emquanto os hospedes
— Dize-me, negro do diabo ; onde apren-
estupefactos olhavam sem coragem >J& .
deste a ser tão malvado. Crianças, velhos,
mteiTCgal-o,
todos, miserável.
Depois de iam silencio kngasaente so-
— Senhor, meu senhor, respondia hu-
luçado paio desventurado; erguendo-se
mildemente o feitor, não fomos nds-
com os punhos cerrados e a cabeça vol-
A negativa enfariceu ainda mais o fa-
tada para o ceu, exclamou eil© ccm uma
zendeiro», que deixou o encravo para ar-
entoação, que provocou as lagrimas dos
mar-s a de urra cadeira que, manejada,
hospedts.
espedaçou se de encontro a um portal, não
— Mas não é pessi vsl,, meu D .us, tu bsm
tendo apanhado Fidélis, que se defendeu
sabes que não é possível que se screiite
da aggressâo e csrreu.
que eu fosse capaz de semelhante barbari-
dade. Não, eu não creio que os meus ini- — Ta me pagarás, desalmado, tu me
migos sejam tã.> máets que atirem sobre psgarás, gritou o fazendeiro, depois de
mim esta mancha. desôiigan&r-se de que não podia agarrar o
Como qu-3 um momento lúcido foi então feitor, que fugia seguido dos outros encra-
concedido á razão do infeliz fazendeiro. vos com que sahira de manhã.
Ficaram, porém, no terreiro Carlos e
Attentou nos seus amigos que o cercavam
commovidos, e, redobrando de soluços, Domingos.
A cólera do fazendeiro descarregou-se
disse-lb.es resolutamente:
— Oá senhores precisam de pattir, não to ia sobre o molecote, que em vão pran-
se demorem por minha causa. Demais teiava, affirmando a &ua innocenoia,
seria talvez compromettel-os. Daixem-me C jmprehendeedo que a fúria de seu
só ; eu agradecerei sempre tanta bondade senhor chegaria ao maior excesso, Do-
e espero muito da vossa lealdade. A . eus, mingos interveiu submisso ponderande-
rez jm a D.us por mim. lha judiciosamente:
Perplexos, os hospedes reluctarnm em — Perdão, meu senhor, vcsoaecô vai se
obedecer a peremptório, intimação, mas a perder; este moleque morre.
insistência do fazendeiro, solemnisada Da feito Carlos já estava estendido por
pelo desespero e as lagrimas, re&olveu-js terra, com a cabeça quebrada e o corpo
por fim. todo ralado paios tombes repetidos.
Tocante despeiidaesta; como quefcodcs Ainda assim talvez fosse inútil a pon-
os cora oei temeram que .a palavra lhes deração do esuravo, se não chegassem na
138 MOTTA COQUEIRO

me?m& oecasião Faustino e Flôr, que ia para Campos j á ; os seus amigos lá hão
ambos assustadíssimos disseram ao fa- de defendei o.
zendeiro que tínha-seido chamar as aucto- — Sim, sim, exclamou o fazendeiro,
ridadfs para verem o que havia na casa hei de faze confundir os caltimniadores
de Francisco Benedicto, que estava fe- e a desforra será tremenda.
chada e sobre a qu-sipairavam os urubus. Dentro em pouco tempo uma canôa, re-
— E o que tenho eu com isso; res- mada com extraordinária boa vontade,
pondeu Motta Coqueiro. voava pelo rio Macabú. Lavava e a si o
— Antea nada tivesse, seu capitão; fazendeiro', que ia .buscar no saio da fami-
mas estão a dizer que s gente de Fran- lia consolo para a sua afflícçãt».
cisco Benelicto foi morta por ordem - - D-urante toda © dia n?nguem aíreveu-se
de vosmecê ; soluçou BUorenti&o Silva. a approximar-se da casa, em que apodre-
— Equal fai o miserável qu© lsmbroa-se ciam os cadaveres da familia da Fraccisco
de accusar-me, diga-me o ssu nome, quero Stneiicto. Só a nuvem de corvos, «ras-
fazei-» engulir a caiuiania I nando áa espaço a espaço attrahid» pela
— Todos os que estavam na v é n i a . . . carniça, fazia sôiatinelía á mortoalha, ora
— Todos 1 concentrand-j-se e a immensa e*ph$ra ne-
A suais" diladerante angustia fU resu- gra, ora desdobrando-se e sbatendo-se
mida n^sta u&ica palavra. Encarnava a repentinamente sobre o tecto meio quei-
revolta da dignidade de hom m de bem mado.
e a dôr 'agudíssima a sangra" um ca- A' noite, po"Mm, um vulto chegou cau-
racter serio. GonoretisaçSo do desespero telosamente até á frente da casa, empur-
de um coração, lapii&do'pela severidade rou a porta e entrou sem hesitar, fechan-
p*ra a^.alanar-se com as irradiações da do-a de novo sobre si.
bondade a da juitiça, n'essa uaica paiavra Lá dezit>'0 ouviu-so apenas o ruido das
gemia todo um pastado de honestidade e íiicsfías espantadas psia visita inespe-
nobreza dy sentimentos agora desapieda- rada.
damente trucidado p*la calu-mnia. 'Passado algum tempo, o vulto sahiu
O fazendeiro sestiu-se no vácuo, mas com a mesma precaução, e, entrando pe-
esse vácuo horiivel do pesadelo, onde ce- las roças, seguiu paios aceiros, depois
h ridos como fogos tatu os &uccedeo>se e pelo campo, e afinal dirigi a-£ a para as
aprofuavam-se infinitos circalos lumi- senzalas do sitio.
noso?, aos quaes nos quarexnos segurar Abriu uma delias e entrou, accendenlo
quando se nos tfl»ura que íolamos e jogo depois um ca/tdieiro. A' luz deixou
sentimol-os ao nosso contacto des,fazsrem- então conhecer a pessoa que, zombando
se em fumaça. de temores supersticiosos, não trepidou
1 aventurar S3 na escuridão e no isolamento
< Ó q«e bo pssacíe © ê uma succsssão de áquePe domínio da morte.
círculos luminosos era no espirito do an-
Era a tia Balbina, que trazia sobraça ia
gustiado um tumultuar de seatimeatoi-,
uma enorme trouxa da roupa ensanguen-
que não tinham ecnsisteaeia para obstar
a queda na con letnn&çSo soei-d.
A feiticeira começou então a estender
— Todos, repetiu o <?esventara4o ; mi s
demora lamenta no chão os vestuários
que e mal âz eu a t«d:i essa gente psra qi e
impregna los pelas exhalações dos cada-
assim ma julgue?!
ve.-fcs.
• — O que quer v-smeeô, seu capitão; Depois reunin-as de novo, e f<<i colo-
.acontece qua*i ampre assim, d.us© Flo- cai os em ama velfta caixa, ao cauto do
rentino. Ea no seu caso e na sitaporíçSo quarto.
139
OU A PENA DE MORTE

Feito isto, sentou-S9 per algum teeopo donzôllas e ao desrespeito do recato de


na beirada da cama e tomou a posição de esposa.
quem medita. O inspector An^ré revelou então "aò
Não se prolongou per muito tempo a subdelegado a denuncia que lhe fôra dada
sua inacção, porque para logo levantou-se pelo chefe da familia assassinada contra
os escravos õe Motta Coqueiro,, e alguns
e foi acocorar-se no meio do quarto em
dos cirçumstantes' juntaram a esta reve-
exercícios de nigromanoia.
lação a da malquerença de Faustino e
Por vezes os busios foram lançados, e o
Flôr com o finado Francisco Benedicto.
cheiro de enxofre renovado no aposento.
Depois, como se hoovese conseguido o que Aocrefcia que o fazendeiro tinha che-
desejava, Balbina-guardou os seus instru- gado nà-noite dos assassinatos e que um
mentos cabalísticos, e poz-se u canta- dos homens livres, Flôr, tinha vindo cohi
rolar, sentada scbre o leito. elle na -mesma CKnôa. Faustino-matava
Uma voz, repassada de tristeza, veiu por dinheiro e dissera qua se Matta Co-
destoar da alegria da feiticeira. queiro lhe pagasse bsm não trepidaria
—Oh I tia Balbina com'? e&t'á tu Io isso extinguir a raça de Francisco Benedicto.
em debando, que desgraça. Assim, pois, o inspector, redigiu aparte
—SeCarolina tem muita pena dos bran do crime, imputando-o a Motta Coqueiro,
cos é peior para ella. D us qute que elles na qualidade de mandante, aos seus es-
pagassem & maldade para ccm os escra- cravos, e Faustino Pereira da Silva e Flo-
vos, e por isso deixou que mandassem rentin© Silva como auctores.
mater por Fidélis e os outros a família do Presta&ss as honras fanerarlss á fa-
aggregado. milia do aggregado, a policia tratou
ioumediatamente de pôr csrco ao sitio.
—Mas, sempre f«z pena, tia Balbina.
Provou-* e até á evidencia o funâamento
—E' verdade., respondeu friamente a
da suspeita publica pobra a auctoria do
feiticeira, que repetiu á creoula os horro-
cri ate execrando.
res -ia matança, ts.es coco o 03 ouvira ao
Não foram encontrados no sitio nem
desconhecido.
Motta Coqueiro nem muit' s dos seus es-
•Por fim di&ie ella, bocejando : cravos, e pelo depoimento» a a prata Balbi-
—Víi.mcrS dormir, criança, hoje vou re- na, a quem conseguiram verifico^-se ain-
somnar como a:a branco rico um somno da que os escravos ausentes eram justa-
descansado. D.us te abençôe. mente' os dsEuncíados po;:* ella como
No dia seguinte^ 15 de setembro de 1852, instrumentos demandante, Fidélis, Ale-
as auctorida es de Macabú entravam em xandre, Círios, Sabino, Peregrina e Do-
nome da lei ir* casa em que, ircnicç, frio mingas.
e desapie-la o, o desconhecido tffeotaara O clamor public 3 entume&oea se como
o vandalico morlicimo. um vulcão sobra a cabeça do fazendeiro,
A justiça incombiu se então de arran- e como o volcao -se desfaz em raios e
car bo bico adunco dos corvos os cadave • aguaceiros, prorompau em calummas e
res já putrefactos, e o povo que asompa" maldições.
nhou as auctoridades sentia duplicar-se" — Foi elle; aquelle sanguiaari» capitão;
lhe a indignação porque presenciou um já não é a primeira; Um morto muitos
espectáculo verdadeira,merste repugnante, escravos em surras 1 Mss, pôde fazer, por-
O assassino não contf^ntarfe-se em im- que é rico, tem dinheiro.
molar oito victinus; pelo que «e via na A {.ffioiobidadepopular para a diffama-
posiç-ão e nadca: do* cada veres havia le- ção rio proximo dava-sa ai.as e voava
vado acanha até a violação do pudor das de&empádidautiente.
140 MOTTA COQUEIRO

Os escravos do fazendeiro ficaram d'esda Os senis affagos para [os filhos e entea"
logo á disposição das auctorid*des, mss, dos foram misturados de lagrimas, e os
o Sr. Oliveira, nãrs obstante desenvolver abraços eram tão eitreiíos, os beijes tão
maxima actividade para a captura dos soffregos que a esposa e o enteado ex-
indigitados, criminosos disse todavia ao clamaram ao mesmo tempo :
inspector: — Olhe qua d'esta maneira faz-nes
— Era capas de jurar a favor do ca- pensar que perdemos o nosso quinhão.
pitão", não me parece capaz de semelhante A jovialidade de ambos foi, porém,
crime. bruscamente mudada em recolhimento
—• Mas as provas, que são tolas contra tristonho, porque em vez de sorrisos o
elle, dizes justamente o coatrario, com fazendeiro só teve^lagrimas ao abraçal-os.
perdão de V. S. — Faça com que as creanças se reti-
— Não vou fôra disso, mas Em rem, porque é necessário que fiquemos
todo o caso as eleições se approximam e SÓ3.
em quanto o cap : tão deslinda o negocio Depois que a fâmiiia retirou se, os me-
podemos descançar. nores cantarolando e gargalhando , sem
Na mesma hora foi expedido uai prrprio ccn&trangioaento, o collector pergunto a ao
psra Campos sfií» de communiear á po- seu padrasto qaal era a nova desgraça
licia o acontecimento e p?dir o seu auxilio succedida no maldito sitio de Macabú.
para a captura t o principal criminoso que — A maior qua se podia imaginar, res-
lá devia estar. pondeu Motta Coqueiro; Francisco Be-
O Sr, Oliveira não se enganava quer nedicto foi assassina-lo com toda a sua
quando negava a sua consciência & sasc- família!
cionar o clamor do povo, quer quando — E quem foi o auctor de tão tremendo
previa que Mottá Coqueiro estava em crime, ioterrogoa o collector que se pu-
Cflm;oí?. zera de fé, tremulo e perturbado ?
No dia da diligencia no sitio, o fazen- — Não s i ainda ao certo, mas diz-se
deiro tinha chegado á sua chacara na ci- que feiram os nossos escravos.
da~e, acompanhado pelo preto Domingos, — Meu Deus. meu filho, meu marido,
sobre quem não piirava no espirito áe exclamou a Sra. D, Maria, eu sou a cau-
Coqueiro a menor duvida a respeito da sadora d W a desgraça, eu sou a assas...
sua isempção no assassinato da familia, Um violento atalo nervoso, convulsio-
de Francisco Benedicto. nado prolongadamente, cortou em meio a
Sentndos sob um csrarnfmchão estavam accussçã> £,erigosissiaaa que a Sra» D. Ma-
a Sra. D. Maria e seus filhos tanto os ria pronunciava c-;ntra si própria.
do primeiro consorcio, como os do segun- Soccwrrida a esposa, que foi desie então
do, com o fazendeiro. prtsa de uma febre d-..vastadora, o fazea-
Um dos filhos do primeiro consorcio deiro e o collector reataram a conversa-
era já uma influencia campkta ; desem- ção dolorosa.
penhava as funoçoes de collector, e gozava — E onde ficaram os escravos ?
de consideração geral. — Fagiram os priacipaes' auctores e
O fazendeiro que atravessava cabisbai ficou apenas o Carlos, que deixei ficar na
xo a alêa que do portão da ohacara dii i" barra de Macabú para tratar-se. Quasi
gia se em linha rccta a tê á entrada da mstei-o na primeira explosão.
casa, foi dispeitado da. abstracção com Passadio um breve sileacio, durante o
que andava, pelos psios do grupo e logo qud o collector, c m os olhos rasos de la-
conduzido para elle pelos meninos que grimas, foi pouco a pouco desenrugando
lhe sahiram ao encontro. a fronte; exclamou:
OU A PENA DE MORTE 141

— Não ha o que temer; não desani- — Ah ! miseráveis, bradou o collector'


havemos de ver quem vence.
memos.
— E1 o qae lhe parece5 meu amigo; ha — Saiba mais, meu amigo, o incoaa-
tuio a temer. modo já não é pnísivel evitar, porque ha
— Porqua, haverá alguém que acredite uma parte do subdelegado de M&cabú.
que minha mãi fosse capas de mandar as- — K hssta isto para aviltar-se cfoota
sassinar uma familia? Explicaremos tado sorte um homem de bem ?
e a verdade triumphará. — Infelizmente não é preciso mais. Ha
— E' engano sau. H* um my&teri© para entretanto tempo para que o nosso amigo
se ausente, porque o juiz de direito ac-
você n?:S acontecimentos do sitio, e este é
tualmente eoa exsreicio reiucta em expe-
o ponto mais sério. Escute-me.
dir o man Jado de prisão.
A voz do fazendeiro abaixon-se de modo
— Estamos, pois, salvos porque tere-
a <sar ouvida sómente pelo seu Interlocutor,
mos tempo de confundir a calumnia.
e a gravidade da confidencia pôde apenas
— Não se illuda com esta esperança;
ser suspeitada pela commoção do collec-
o proprietário da vara chamal-a-ha a si
tor, que pôr fim sem se pader conter disse
talvez amanhã.
bem alto :
— E...
— Estamos perdi ios 1
— Bam sabe quanto sou mal visto pelo
— Já vê que pronunciar o some de sua
juiz de direito e qaanto devo ao &eu pa-
mãi n*este negocio é deshonrar toda a
drasto. Demais a influencia d'este é te-
nossa familia.
mida pelo juiz, que se quer fazer depu-
— Ninguém acreditará na sua innocen-
cia; e condemnal-a-hão. Mmha desventu- tado e tem uma chapa a impôr. O melhor
rada mãi! caminho é aconselhar o Coqueiro que se
— Esperemos e confiemos em Deus 1 ausente até se aclarar a questão.
Concebe-se facilmente os horrorosos pa- Quando o collector seguia o caminho
decimentos do fazendeiro, seu enteado e das Covas d'Areia, onde era a habitação
sua mulher duraste esse dia; todavia não de Coqueiro, foi attrahido pela conversa-
eram senão • o prologo da historia do ção de um grupo.
infortúnio «'essa familia, Dizia um dos reunidos :
No dia seguinte, o collector, que tinha — Não se pé de dar maior escandalo ; o
sahido pari indagar se já cm Campes ha- delegado de policia sabe do facto e não
via noticia do fatal acontecimento, en- sa move ; o juiz de direito interino não
controu se com o Dr» B., que abraçou-o expede o maniado, e o criminoso está
chorando e disse-lh© tristemente: muito a seu gosto em sua casa. Não ha
— Falla-se já com insistência em uma como ser chefe de partido n'esta terra.
tristíssima historia, em que anda envol- — Ora que queres tu? interveiu outro;
vido o nome da sua familia; previnam sa o delegado tem no Coqueiro o seu braço
em quanto é possível. Temam, porque é direito ; seria muito engraçado partir
quasi inquebrantável a força da calum- d'elle o golpe. E' capaz de demittir-se.
nia. Verão.
— Mas, objectou o collector, exforçan- — Nada se perderá, o Coqueiro ha de
do-se por dissimular o pânico de que foi ser filado talvez hoje mesmo, porque o
logo assenhoreado, é cousa assim tão Sayão Lobato assume a vara. Istc afian-
grave ? çou-me pessoa muita séria.
— Si é.meu infeliz, amigo diz-se que seu — Santo Deus, santo Deus, murmurou
padrasto mandou assassinar uma familia o collector; estamos irremediavelmente
inteira,
perdidos.
142 MOTTA COQUEIRO

Caminhando como um allccioado, o P . S.—Leve com sigo esta carta e outra


enteado do fazendeiro chegou quasi louco em que tenha a minha assignstura;
ã chaeara das Covas d'Areia. mostrs-a © peça pouso aos fazendeiros do
—• Fuja immadi&tarjoente; um minuto município.»
mais aqai e será indignamente enxo- —• Então, perguntou o collector ; insis-
valhado. Fuja I exclamou ©lie abraçando- tirá ainda em querer ficar ?
se com ©ip&dastro. — ^Obedeço, eu saio já. Abraça por mim
— Fogem os criminosos; os que não os meus filhos e, quando sua mãi melho-
têm culpa esperam até justificar-se. rar, diga-lhe que tudo foi remediado e que
— Mas lembre-se de que tem inimigos, eu parti para Iiabapoana a negocias.
e estes não hesitarão em per-iel o. Evite Adeus, poses abraçar-m© sem escrupulo;
á nossa familia o golpe devêl-o sahir a'aqui eu não intervim de forma algum*, n'este
preso a com um mfammta l&béa. crime. Se eu não me puder justificar re-
— Não quero fugir ; seria talvez expor pete sempre estas palavras a meus filhos:
outrem, á calumnia. teu pai era innocente.
O collector não desanimou apezar da A resignação, que accsntuava estas pa-
resposta formal de Motta Coqueiro^; pro- lavras,fez estreosecer o ouvinte, que tentou
seguiu na sua insistência, ponderando q^e avivar a fortaleza ctc fazendeiro, visivei-
d'esta sorte ser-lhes-hiam mais façais os menta depauperada, afiançaado-lhe que
recursos, porem Motta Coqueiro resistia não havia muito que temer.
sempre, e só cedeu quando um pagem en- — Ah I Motta exclamou Coqueiro, que
tregou-lhe uma carta que trazia no sobre já havia dado alguns passos.
esaripto — urgentíssima; — aára-a logo Parou e pediu ao collector que lhe desse
qualquer pessoa da familia. papel. A lápis escreveu o fazendeiro estas
Embora anonyma a lettra dá carta em linhas:
assaz conhacida por ambçs os qu dis- « Uma palavra sua acerca do que orde-
cutiam. nou aos escravos é a minha sentença de
;
— Le: a o que o nosso amigo .ssianda-nos morte, lavrada por meu proprio punho.
dizer, disse Motta Coqueiro, passando o Se alguém da nossa f«milia deve appa-
papel ao enteada; farei o que elle ordenar. recer e soffrer, eu trnho forças. Peço a
A tremula vóz do collector fez ouvir o mãi de meus filhos que em nome Telles
seguinte: poupe se de ser mal julgada. Adeus. »
« São quasi seis horas, prepara se a — Entregue este bilhete a sua mãi,
força policial para cercar a sua casa. quando fôr opportuiao ; diga-lhe que o
Lego que chegue o delegado, que sahiu queime apenas lel-o. Agora um ultimo
para uma diligencia, usas que voltará até pedido: posso esperar que os meus filhos
á ; seis horssj porque doseja ir pessoal- não ficam ao desamparo ?
mente capturai será cumpriio o que
As lagrimas e um abraço estreitado pelo
manda a lei. Todas as sahidas foram
collector ao fazendeiro incumbiram-se da
tomadas e amanhã será publicada uma
resposta, e Motta Coqueiro sahiu sem ter
circular a todas as auctoridades da pro-
procurado è»contrar-se com a familia*
víncia para que o prendam onde o encon-
Infelizmente não lhe foi dado eximir-se
trarem. Ausente-se, se ainda está ahi, é o
doeste tremendo golpe. Uma das suas
único meio de evitar um grande desgosto
* filhas, para quem ainda não tinham desa-
aos seus amigos. Escuso-me de demorar-
me em dar lhe as razões por que assim brochado todas as flórea da meninica, sa-
procedo: não creio que por sua ordem hiu ao seu encontro, pedindo que lhetrou-
fosse commettido tão execrando crime, xesse uma lembrança do passeio*
OU A PENA DE MORTE 143

— Não posso, minha filha, soluçou elle, Diaía-se geralmente:


misturando os beijos e as lagrimas nas — Foi elle, e tanto assim qus tratou
faces da creaaça: os homens são tão ioga á® fugir. Qa-j monstro i deve ser
maus para o teu papai que nem qaerem enforcado.
qaeeile possa trazer na volta forinqaedos
XII
para vocês- D sus te abençôe, e pergunte
aos meus inimigos, se quem tem. filhos da A FERA DE MACABU1
tua idade, taxi a, coragem para mandar,
matar creanças! O malíogro d A diligencia, attribuidopela
•A meniua poz-se a chorar o pranto es-população a firme proposito da auctori-
pontâneo da cresnça, ao passo gué se a daie policial em deixar impune o crimi-
pai affastavs-s® quasi correndo. noso, entrou logo. em fatal contribuição
Uai quarto de hora depois a chacsra coiitra Motta Coqueiro.
erã estreitamente cercada, mas as portas O Cruzeiro e o Monitor Campista, fo-
lhas qaetlo minavam a opinião de Campos,
não foram abartas, porque já era.noite, e
o primeiro no intuito da triumphar na
além d'isso o delegado não tinha exigido,
O relogio da igreja da. Misericórdia opposição pessoal ao delegado, o segundo
batia onze beras da noite, quando um eaim-diíado na rede ôi, animosidade pu-
homem, ve .tido da preto, com a cabeça blica, acirraram ãmãe lojo o ssu estylo
coberta com um largo chapéu do Chile e em desabsno do réu.
um lenço negro atado ao rosto, chegou á No €ruzeiròf sob a ruferiea de sito
rua B-;sra Elo. effeito: Coso horroroso', no Monitor, sob
Campos, abella cidade fluminense, dor- a tres vezes mais compromettedora: A
mia silenciosa espelhando nas sguss sem fera de Macaòú, o submisso dií clcnario
raiio da Pàrahyba as su/ss casas caia las
foi explorado pelos publicistas, intpellidos
e a luz avermelhada doa seu* lampeD-ss». pela, sede vesana d® adjectivos, ora senti-
O homem, que Tinha acompanhado por mentais como um livro de Lama»tiae e
um preto, desceu a margem do rio, em- que eram consagrados em nenias aos as-
barcúu-se em uma canôa, que foi logo sassinados, ora infamantes como um ba-
impeUida pelas remadas do preto e em raço e estes effarecidos, dedicados e con-
breve tempo ganhou a margem opposta. sagrados a Motta Coqueiro.
Ahi disse o home® ao pr^to : Hurrahs congrátulatorios respondiam
— Não hei de esquecer-me de t i ; vai,
ás noticias recebi las pelo correio de Maca-
Domingos, e são digas a ninguém para hé,quando sabia-se da prisão de algum es-
que lado segui. Diz ao meu enteado que cravo, ou de algum cúmplice àa fêra, e em
alugue te em qualquer casa. altos brados exigia-se aexpe lição de tropas
Por essas palavras e o tom de vez vê-se
para todos os pontos, a fim de que fosse
que o homem qae atravessou o rio, era promptameate capturado o barbaro man-
Motta Coqueiro. ãante, cujo 'procedimento atroz merecia
No outro dia pe-a manhã, a casa das punição tremenda, para ser d e s c o n t a d a
Covas d1 Areia foi franqueiada á policia ;
a civilisaçSo da Campos, Macahé e Ma-
mas esta não encontroa ahi o criminoso cabú 1
procurado.
NSo demorou muito qua fossem p?epos
Quando esta nova divulgou-se, o povo, Florentino Silva, Faustino Silva, e Do-
que se agglomerara para assistir a dili- mingos, mas o princ pai criminoso pa-
gencia, prorompen em accusações contra
recia zombar de todas as pesquizas. A
Coqueiro.
policia, cuidadosa em segair-lhe ao en-
144 MOTTA COQUEIRO

calço, chegava sempre depois que elle Eisiqaaaío assim era julgado, extenua
estava distanciado. do pelas continuadas jornadas, Motta Co-
A' medida que se decorriam os dias queiro arrastava-se pelas maita&, p; : ra
form&va-se uma lenda tristíssima. Já não fugir á injusta pos?ção.
era só dizer-se que os cadáveres foram Sedento, meditava primeiro e esprei-
encontrados, segando o Cruzeiro, já la- tava minuncú sãmente para chegar-se a
cerados pelos cães e aves carnívoras; algum ribeiro, qne murmurando descia
accrescentava-se que, tendo podido es- pelas grotas, brotando em s^ns tristes
capar á matança, sppareceu uma infeliz como um soluço.
filha de Francisco Benedicto, rota e fa- , Um i&ez depois da sua sabida da cidâ-le
minta, ainda mais, digna de compaixão sentiu que as forças abandonavam-o é
pelos seus poucos annos. lembrando-se da família, dos filhos inno-
Pobre menina 1 dizia-se, estremece ao centes que ficariam ao desamparo e infa-
ouvir o nome do fazendeiro, e pergun- mados, caminhou para uma casa que al-
tada porque tinha tanto medo d'esse vejava ao longe, e ahi pediu agasalho.
nome, respondeu: Receberam-o com a de'icadeza hospi-
« — Estav? mos eu e minha iram escon- taleira innata no sertanejo brazileiro, mas
didas em uma arvore ; eu que era mais gradativamente foi diminuindo a prasen-
velha subi até as grimpas e minha irmã teria da família.
ficou occulta no ouço da arvore. Em E' que ha?ia chegado o dono da casa, e
casá choravam e gritavam meus pais e antes só ahi estavam mulheres.
meus irmãos, mas a pouco e pouco todos Francisco José Diniz, chefe da familia,
caiaram-se. que hospedara o for&giio, era inspe-
Appareceu enfão cá fóra o Motta Co- ctor âe quarteirão, e embora o seu tino
queiro, alumiado por um escravo seu que policial não tivesse finura especial, a sua
trazia um facho. Procurou em roda da psrspicacia estimo! a va-se com a lembran-
casa e depois chegou se á arvore, onde ça dos prémios no valor de dois contos
viu os cabellos de minha irmã, pelos quaes de réis, offerecilos pelo chefe de policia
tirou-a do escondrijo. da província e a delegacia de Campo3.
— Mata este d^moninho, disfe elle ao Ao vêr aquelle homem vestido de preto,
preto. com um lenço atado ao queixo, e uma
— Senhor, é muito pequena, tenha peaa physionomia em que a desventura sul-
d'ella. cara rugas indeléveis, o Sr. Diniz lem-
— Covarde, tu me pagarás; exclamou o brou se do criminoso, cuja captura era
fazendeiro, e segurando com a mão es- esperada com anciedsde geral.
querda a perna de minha irmã, com a Deixanlo só o hospede, foi procurar
direita armada de um facão, partiu.-a pelo um ofíicio que lhe tinha sido dirigido pela
meio e depois fel-a em postas. delegacia, e chamando a sua mulher
— Falta-me ainda uma, disse depois. leu-o para que ©11a ouvisse:
Eu tremia, continuava a criança, mas — cc Fsça prender Mano al da Motta
felizmente elle não lembrou-se de subir á Coqueiro, alto, magro, corado, de sobran-
arvore.» celhas salientes e espessas, com uma
E a crédula população bradava indig- grande mancha no roito, casado, maior
nada : de 50 annos, e assim os escravos, que o
— E' a um malvado d'estes que querem acompanharem. »
livrar. Miséria da nossa terra; muito — E que tem este pobre homem de com-
óde o dinheiro I Mas se o jury absolver, mum com o malvado, que querem pren-
o povo far-se-ha carrasco. dei ? Pois não se está vendo que um ho-
OU A PENA DE MORTE 145

m em como esto, era incapaz de matar gravado na memoria um signal pelo qual
uma mosca 1 exclamou a esposa. ó fácil conhecel-o.
— Biles disfarçam.muito, os scelerados! — Ba também sei: uma grande man-
cha no rosto.
— E mesmo que fosse, aqui dentro é
— Exactamente, e d'este lado.
nosso hospede.
O incauto fazendeiro affastou o lenço e
— E eu sou s?o>pre i&spector, aqui den- deixou ver o maldicto signal, que o dava
tro, ou fora d'aqui. Vou confrontar. conhecer.
O inspector postou-se diante de Motta — Está preso! gritou o inspector.
Coqueiro, q« e sentado á mesa da sala de — Porque ? perpretei algum crime ? per-
jantar ceiava tranquiliamente. guntou oJiospeâe-perturbado. —
— Não me parece; mas é elle mas mo, — Os tribunaes dirão. Está preso por-
está se vendo; vamos eonversal-o. que o senhor é o Motta Coqueiro; não
Depois da ceia, Motta Coqueiro ccnser- pode nega-lo, e foi o senhor mesmo quem
. vou-se. sentado, e segundo cs estylos per" acabou de mostrar a mancha que Deus
guntou pelo numero de membros da fa- poz-lhe no rosto para que seja conhecido
„ milia de seu agasalhador e pelos seus em toda a parte. Está preso.
negocios. — Senhor, disse humildemente o fazen-
E ata bolada a conversação, o inspector deiro ; não tento resistir, e entretanto, se
/ affectando a mais sincera familiaridade, eu fosse um malvado,bem sabe que á pri-
perguntou ao hospede: meira voz de prisão, te-lo-hia feito eahir
— O Sr. vem de Campos ? varado por uma bala. Deixe-me seguir ;
— Estive lá, mas venho do sertão de o senhor é pai, ê marido, pdde vir a ser
Santa Rita, perseguido sem culpa, como eu hoje sou ;
— E quando passou por Campas não compadeça-se de minha desgraça.
ouviu fallar do Motta Coqueiro. A mulher, e os filhos de Diniz tinham
O fazendeiro sern pestanejos sequer, todos corrido para a sala de jantar, e
respondeu com firmeza. olhavam espantados para o hospede,cujas
— Ouvi. barbas crvalhavam-se de lagrimas.
— Qae malvado, heirn ? Uma familia O fazendeiro precipítou-se sobre as
inteira, velhos e erianças, e até a própria crianças e ajoelhando-se, e cingindo-ás
casa, tudo destruiu. Nem enforcado oito em seus braços, continuou:
vezes paga o crime que commetteu. — Olhem bem para mim, meus filhos,
— Talvez se o senhor o conhecesse não olhem. Digam; eu tenho cara de um mal-
dissesse o mesmo. Eu não acredito que vado, digam, digam a seu pai? Peçam-lhe
Motta Coqueiro tivesse alma para seme- que não desgrace uma familia inteira,
lhante horror. E' um homam serio o perseguida injustamente.
Motta Coqueiro, que eu conheço. As crianças pallidas tremiam abra-
— Quanto á certeza do crime, já não ha | çadas pelo angustiado fazendeiro; a es-
duvida : os proprios escravos e cs dois I posa de Diniz chorava, mas este desapie-
homens que ella pagou para o mesmo fim dado e inexorável, vendo o hospede com
confessaram o crime. os seus filhos entre os braços, após ins-
— Os dois homens que elle pagou, tantes de hesitação, atirou-se furioso
acudiu Motta Coqueiro commovido ; mas sobre elle e agsrrou-o pelas costas, gri-
quem é que*espalha isto, santo Deus ? tando :
— Oh ! o senhor conhece bem o assas- — Rapazes tragam-me cordas.
sino ; mostra-se tão penalisado ! Dois pretos aproximaram-se immedia-
— Sim, fomos amigos. Tenho até bem tamente e o fazendeiro foi amarrado,
146 MOTTA COQUEIRO

apezar dos seus regos e protestos de que era introduzida pelo carcereiro até diante
mesmo sem esta medida não tentaria das grades da eel ula em que elle jazia,
fugir. destroço de um grande nome, solemne no
A's seis horas e meia da tarde, do dia seu infortúnio.
vinte e tres de outubro, desde a rua Beira A baça luz de um grande lampeão alu-
Rio até a Praça de S. Salvador, onde está miava o corredor e pi ojectava a clari-
situada a cadeia de Campos, a população dade crepuscular no interior da cellula.
curiosa agglomerav&-se para assistir um — Papai, papai, exclamou a menina,
triste espectáculo. pondo os braços por entre as grades ; ve*-
Descalço, com as mãos algemadas, os nha comctigo para ver se mamãi deixa
olhos baixos, as faces emmagreciáas e de chorar. Ella está muito doente.
lividas, Motta Coqueiro desembarcou da Um punhal vibrado, pela mão do ver-
Barca de Passagens acompanhado por dadeiro assassino de BVancisco Bene icto,
grande numero de soldados. não teria ferido mais fundo no coração
O delegado de policia, Dr. Almeida Bar- do desventurado réu.
bosa, que esperava o preso a sahida da Da um salto veio collocar-s© junto da
barca, era alvo das mais enthusiasticas grade e seus lábios procuraram sofíregos
manifestações, mas em vez da natural as faces da menina.
expansão do seu semblante conservava-se O carceiro, com os braços cruzados e
frio e até mesmo comoaOvido. encostado á parede em frente á grade,
Ao ver o modo porque o preso era con- assistia immoveí á triste acena de expan-
duzido, o nobre doutor estremeceu, mas são do &mor paterno e da innocencia fliial.
a sua commoção não poude ser percebida; A menina, aproveitando a occasião em
porque uma nuvem de assovios e alguns que seu pai deixára-a um instante para
projectis atirados contra Motta Coqueiro, enxugar as lagrimas, dirigiu-se ao car-
causando indignação em vários grupos, cereiro.
desviou a attenção geral. — Para que é que tem fechado & porta
Contida pela polícia a baixa manifes- do quarto de papai ? Elle precisa de ir
tação do odio popular, o desventurado vêr mamãi; abra-lhe a porta.
fazendeiro foi conduzido á prisão, cuja — Elle está preso, minha menina, disse
guarda foi dobrada. o carcereiro, que se abaixara e beijou a
Declarado incommunicavel pela cruel- menina; não se pôde abrir o quarto d'elle.
dade da lei, desfizera-se-lhe a única es- — D^ixe o senhor, minha filha ; elle
perança que o alentara durante a vergo- não pó ;e fazer o que você lhe pede. Ve-
nhosa e fatigante viagem: a esperança nha conversar com sea pai.
de haurir nos beijos de seus filhos e nas Um leve ruido, vindo do lado da porta
lagrimas de sua esposa e enteado a triste principal da cadêa, dispertou a atteoçlo
consolação da amisade. do carcereiro, que de xou a menina e, pó
A grade da prisão trancou-lhe, porém, ante pé, dirigiu se a escada.
não só a consideração social, mas tam- Tres homens embuçados chegavam
bém a entrada á affeição da familia. n'*ste instante ao patamar. Disfarçadas
Felizmente superior á lei está a no- as physionomi&s por meias-mascaras de
breza de alguns caracteres, e o gelo dos panno negro.que cabia?» lhes das sobran-
artigos legaes não basta para petrificar celhas até a altura dos lábios.
algumas almas eleitas Sob a togados ma- Antes que o carcereiro tivesse ti1©
gistrados bate muitas vezes coraçõ s de tempo de profer r uaaa &6 palavra, um
homens! dos embuçados, arrancando do rosto o
Alta noite uma das filhas do fazendeiro panno negro, deu-se-lhe a conhecer.
OU A PENA DE MORTE 147

— Ah 1 exclamou o carcereiro; perdoe- — Obrigado, obrigado, meu amigo, eu


me V. S., mas eu não podia desconfiar bem vi que me não havia abandonado.
siquer. —- Prudência, prudência ; é pretiso que
Quando o carcereiro concluiu .a descul- não nos ouçam, ponderaram os embu-
pa, já o embuçado tinha se de novo mas- çados.
carado e perguntou: — Vós ?! oh já não sou tão desgra-
— Não tiaha o senhor recebido ordem çado.
para não consentir que ninguém fallasse — Crê que eu seja um homem honrado,
a Motta Coqueiro ? perguntou o embuçado ao carcereiro.
— Sim, senhor, tartamudeou o carce- — Sr. doutor!...
reiro» m a s . . . — Agradecido. You pedir-lhe que me
— Mas entendeu que não devia cum- preste um grande serviço. 0 senhor irá
pril-a. Tenha a bondade de ir ouvir o que para a sua sala e consentirá que tran-
diz aquella menina ao seu protegido. que-o por fóra. Ainda mais ; guardará
Como se estivasse obedecendo a um su- silencio sobrô o que se passa agora aqui
perior, o carcereiro aff&stou se sem fazer segredo absoluto.
á mínima observação. — Estou prompto, respondeu o carce-
Ficando sós, disse aos outros o embu- reiro; tenho apenas a lembrar-lhe o com-
çado, que se deu a conhecer ao carcereiro: prometimento que d'ahi resultará para
— O signal está já demorando; quem V, S. e também para mim.
sabe se nao resolveram o contrario ? O embuçado, sem responder a objecção
— Nãoé possivel, respondeu um outro; dirígiu-se immediatamente ao fazendeiro.
dentro em meia hora, eu tenho certeza de — Não ha tempo a esperdiçar, meu
que elle poderá estar em minha casa. amigo; siga-nos,
— E dentro em duas completamente Motta Coqueiro, sahiu levando nos
fóra do alcance dos seus calumniadores, braços a filha e todos dirigiram-se para
respondeu o terceiro. a escada.
Passados alguns minutos, o a viu-se um Os embuçados desceram alguns de-
assovio prolongado e agudíssimo, e um graus, mas foram obrigados a parar in-
grito de alerta da saatinella. terrogados pelo fazendeiro acerca do que
Os tres embuçados disseram ao mesmo iam fazer.
tempo : — Fugir, e já; reponderam elles.
— Eil-os. — Não; não quero fugir, afflrmou elle
Caminharam então para a ceilula de nobremente; era compromettel-os talvez
Motta Coqueiro. e certamente deixar ainda mais ennegre-
— Eu não quero compromettel-o, se- cido o meu nome. Quero justificar-me.
nhor, dizia o preso para o carcereiro; — Mas lembre-se de que só tem em
deixe-me abraçal-a, somente; bem sabe torno de si odio e calumnias; lembre-se
que eu não tornarei a vel-a tão cedo. O de que pôde ser condemnado, porque todas
senhor foi generoso consentindo que elia as provas são contra si.
visse-me, complete a obra de caridade, — Não importa; Deus defender-me-ha.
deixando que a possa abraçar. Adens : entrego-lhes rainha filha.
— Abra, disse o embeiçado que influia E voltou resolutamente para a eellula,
no animo do carcereiro ; eu ma respon onde nâo era já encarcera lo pela vigi-
sabiliso. lancia\dos agentes policiaes mas pela sua
A grade rodou sobre os gonzos, e a própria dignidade.
menina foi colhida pelos braços do fa- As' cinco horas da manhã do dia vinte
zendeiro, que murmurou : e quatro de outubro de 1852 desceu al-
148 MOTTA COQUEIRO

Os depoimentos deviam ser tomados a


gemado a escada da cadeia de Campos
Balbina, Sebastião Corrêa Baptista, mais
a amaldiçoada victima da leviandade pu- conhecido por íâebasfciáo Pereira, o Vianna
blica. da venda, Lucio Francisco José Ribeiro,
A' porta agrupava-se a multidão e aii- Manuel João de Souza Moço, Joaquim
nhava-se uma companhia da força poli- José Lycerio, Amaro Antonio Baptista,
cial, que devia acompanhar o famoso réu José Pinto Netto, José Antonio do Rosa-
até a cadeia de Macahé, termo em que rio, Joaquim José da Costa, Carolina,
foi perpetrado © crime. Fernando, Thereza e José de Sousa Ma-
A attitude humilde do fazendeiro tinha rins, alcunhado o Botão, única que não se
o sainete da dignidade inalteravel das quiz prestar a depôr sobre o que não
consciências limpas,e o seu passo, embora1 sabia.
tardo, cobrava firmeza á esperança de Compareciam também ás audiências os
prompta justificação. Vã esperança que réos presos Faustino Pereira da Silva,
nem ao menos demorou seus enganos Florentino Silva, Domingos e Bento Pe-
lisonjeiros ! reira da Silva, que trocou depois o banco
Alguns dias depois' da sua chegada a de accusado pela cadeira de testemunha I
Macahé, cuja população recebeu-o com Commentando este facto diziam es ami-
as mais hostis e ruidosas manifestações, gos de Coqueiro, não sem razão :
augmentadas de odiosidade dia por dia, — Parece que a auctoridade policial
graças aos libellos dos homens de influen- ooiiosou os seus policiados n'esta posição
cia, e muito particularmente do Dr. Velho diante de Coqueiro: condenanai ou sereis •
da Silva, por esse tempo delegado de po- condemnados.
licia e juiz municipal; Motta Coqueiro foi Balbina jurou qua sabia que o seu se-
mandado para Macabú afim de ser inter- nhor tinha mandado matar a familia de
rogado. Francisco Bensdícto pelos seus parceiros
O seu eloquente advogado, o Dr. Fon- Fidélis, Alexandre, Carlos e Domingos, e
seca tomou-se de tanto receio peia sorte sabia porque tinha! ouvido ao fazendeiro
do fazendeiro que exigiu sérias provi- perguntar no corredor aos escravos se
dencias para que fosse respeitada a vida tinham morto a todos. A morte foi feita
do infeliz. em um domingo, e o senhor chegara f.o
E' que as trevas do futuro escondiam sitio na vespera. Com os esír&vos não
o lobrego aspecto do patibulo; ao contra- tinha ido pessoa fôrra, e a senhora achar
rio talvez aquelle honrado caracter cer- va-&e na cidade.
rasse os ouvidos e os olhos aos sinistros Chamada, porém,a s e g u n d o depoimento,
planes, que suspeitava tramados.
jurou que ouvira no corredor perguntar o
A desiliusão de Motta Coqueiro foi atroz
seu senhor:
ao chegar ao logar, onde outrora tinha
sido,senão respeitado, paio menos temido. — Então o qua eu mandei fazer já está
Os inquéritos tinham sido começados e prompta ?
a mais baixa gente, a eacor^a popular, — Tuáoíiáho, responderam Fidélis e
íõra chamada de preferencia. Alexandre, a familia toda.
Vinham depôr testemunhas dos logares — Pois quero a casa queimada; tornou-
aaais afiastadcs de Mácabú e homens que Ihes o senhor.
eram notoriamente conhecidos como ini-
Carolina disse que Motta Coqueiro na
migos dos réos.
sexta-feira tinha mandado quatro escra-
Os nomes das testemunhas sds basta-
ram para despersuadil-o cia possibilidade vos matar a familia e atacar fogo na casa,
;ÍG justificação. morte que elles só fizeram no domingo, e
N

OU A. PENA DE MORTE 149

na segunda feira atacaram fogo. Isto con- Soube do assassinato da familia e as


t a r a m - l h e as m u c a m a s Justina, Catharina particularidades d'elle porque, por uma
e Izabel. No dia da matança achava-se em noite chuvosa, indo ao sitio conversar
com uma das pretas, ouviu a narração aos
cása o Flôr.
No s e g u n d o depoimento declara que escravos.
ouviu, na segunda-feira, a pergunta do A causa do crime era ter querido Motta
senhor aos escravos sobre a execução Coqueiro seduzir uma das moças assassi-
do crime. nadas, e, não conseguindo, expulsar o pai
Thereza declarou que só sabia do facto das suas terras.
por tal o olvido aos parceiros, que tam- Joaquim José Lycerio soube por ver os
bém, quando ella observou que Carlos corpos assassinados e porque, no dia de-,
tinha um lenço á cabeça, disseram-lhe zeseis, ouviu Peregrino contar que Motta ^
que no fazer as mortes o homem lhe que- Coqueiro encarregara dos assassinatos os
brara a cabeça. seus parceiros, os dois homens livres, e
Fernando declarou que tinha ouvido um outro homem de bem, cujo nome não
dizia. Faustino snffocou o velho; Flôr a
Miar no crime ás escravas Balbina e
sua mulher e depois mataram as filhas,
Carolina,
e o filho que correra para o matto.
P a r t e das outras testemunhas juram
Também Faustino contou-lhs que foram
/ também por ouvir dizer; outra parte,
os escravos Alexandre, Carlos, Fidélis e
* porém, bsseiava-se em razões de grande
Domingos, em presença de Moita Coquei-
valia para as auctoridades de então.
ro, que assim vingava-ae de não ter conse-
Sebastião depoz que o fazendeiro man-
guido seduzir uma das filhas de Fran-
dou mater a Francisco Benedicto para
cisco Benedicto.
apoderar-se das bemfeitorias do sitio. An-
tes, querendo pôr fóra, o aggregado, man- Sabia mais que Faustino e Flôr faziam
dara lhe roçar ao redor da casa para im- mortes por dinheiro.
pedi!-o de trabalhar, e a senhora de Motta Lucio Ribeiro depoz que encontrou-se
Coqueiro promettera não voltar ao sitio com Faustino e que este lhe contara que
sem ver morta a familia de Francisco Be- andavam culpando-o pela morte da fami-
nedicto e principalmente uma das filhas. lia de Francisco Benedicto, mas em se-
Florentino tinha amiss.de com o Motta guida o proprio Faustino ihe dissera que
Coqueiro, havia seis mezes, e este man- os réus a causados eram os verdadeiros
dara por aquelle e Faustino, que já tinha auctores.
feito mortes, assassina 3-o por iatrigas nas- Entrando nas particularidades do crime,
cidas de espoasses tratados entre elle tes- disse-lhe Faustino que, antes do perpetra-
temunha. e uma filha de Francisco Be- rem o barbaro crime, as moças foram
nedicto . desacatadas e violadas pelos dois homens
Manuel João de Soisza Moço declarou livres, em seguida pelos escravos e só
que tinha também sido convidado por depois as m a t a r a m e com ellas as crianças.
Motta Coqueiro para matar, quer Se- Foi uma boa patuscada, tíisse-lhe Faus-
bast-So, quer a familia do aggregado tino, e sobretudo não havíamos de perder
pedido a que elle testemunha não acceden. assim duzentos mil réis que nos dava
Antes, mandou-o Motta Coqueiro cobrar Motta Coqueiro.
cem mil réis a Anacleto Vieira e entre- Tinha outras provas ; a elle proprio o
gal-os a Faustino, mas não se havendo fazendeiro ofifereoen uma egoa para ser
ffactoado a cobrança, este revelcu-lhe que do numero dos assassinos, offerecimento
devia receber e?sa quantia pelas mortes que elle recusou.
de Sebastião e dos outros.
150 MOTTA COQUEIRO

Dizia-se qae Faustino tinha espetado queiro buscou apenas, na simplicidade das
um pé, correndo após o filho de Francisco suas respostas, deixar clara a sua inno-
Benedicto, e com effeito elle testemunha cencia.
viu Faustino manco Os escravos confir- Os factos occorridos no sitio foram ex-
maram-lhe a narração de Faustino, que postos minuciosamente, e invocados sé-
era useiro e veseiro em taes crimes. rios testemunhos para explicar a coin-
Para provar que Faustino era crimi- cidência da sua ultima .chegada ao sitio
noso bastava dizer que elle tratou logo com o assassinato da familia
de esconder-se nas mattas. A temerosa accusação da cobrança do
Do que elle testemunha se admira é de valie foi desfeita com a singella narração
ver Florentino no numero dos assassinos ! de uma pequena transacção comraiercial.
Passando-se a inquirição dos cúmplices,
Confrontado este com os contradictorios
disse Banto Pereira da Silva que não
depoimentos das testemunhas, ficava por
sabia porque estava preso e quanto ás
demais provada a innocencia do réu,
mortes tinhão sido feitas pelos outros,
mas a exaltação dos espíritos, o clamor
porque o seu irmão Faustino lh'o disse,
popular impediam a boa marcha dos es-
convidando a elle réu para ir ressucitar
píritos.
Francisco Benedicto de quem. era amigo.
Não se admirara d'este procedimento O subdelegado Oliveira apressou-se em
de seu irmão que havia antes assassinado pronunciar os réus, como auctores do
a João de Carvalho, pelo que foi senten- cri Í e de homicídio previsto no srt. 192 do
ciado, e nao concluiu o cumprimento da codigo criminal, adduzindo as circums-
pena por se ter evadido da prisão. tancias aggravantes de paga ou esperança
Faustino Silva, respondendo ao inqué- de recompensa, entrada em casa do effen-
rito, confirma a segunda parte do depoi- dido com intento de commetter o crime;
mento, porém nega a primeira,affirmando resultar, além do crime, outro mal ao
que ouviu dizer que as mortes tinham offendido ou pessoa de sua familia, aug-
sido feitas por um preto desconhecido, o mento da tíôr physica por circuestancia
Botão e escravos de Coqueiro, mandados extraordinaria; augmento áo crime por
por este. circumstancia extraordinaria de igno-
Tratando de contrariar as testemunhas, minia, pala natureza irreparavel do dam-
apresenta-as como seus inimigos, e pon- no; e, finalmente, augmento da afflicção
dera que os que dizem que sabiam que ao afílicto.
elle réu queria matar Francisco Benedicto Conclusos os aaetos ao juiz municipal
são também criminosos, porque não avi- substituto de Macahé, foram enviados ao
saram a auctoridade. promotor que, depois da apreciação das
Florentino Silva, depois de expor a sim- provas, pediu que se fizesse a devida
plicidade de suas relações com o fazen- justiça.
deiro, concluiu por imputar o crime a Motta Coqueiro, declarado incopamuni-
Faustino, Manuel João e os escravos. cavei desde a sua prisão até a vespera de
Domingos limitou-se a narrar o que se seu julgamento, continuou a sua peregri-
tinha passado á sua vista; confessa não nação de infortúnio.
ter visto Carlos ferido, e clama pela sua Apregoavam por toda a parte cts seus
innocencia. detractoras qae sempre fôra um homem
Seguiu-se o interrogatorio do fazen- perdido no conceito publico, e entretanto
deiro. não o julgaram seguro na cadêa de Ma-
Sem accusar ninguém, porque não de- cahé, pelo que foi manda iio para a capital
sejava fazer juizos temerários, Motta Co- do império.
OU À PENA DE MORTE 151

Cousa extraordinaria! Desde que o para ella, sentiu revoltarem-se-lhe os.íns-


mandante do nefan o morticínio foi en- tinctos generosos.
carcerado, as auctoridades, que tão soli- Q<jizera poder fazer acreditar a todos a
cites se mostravam na captara de todos innocencia do seu senhor ; quizera pela
os réus, esqueceram os demais escravos verdade confundir a calumnia que já
ãe Motta Coqueiro, que tinham sido ac- ameaçava a vida, depois de haver tis-
casados e ninguém mais ouviu fallar em nado a reputação e a honra de um ho-
diligencias á casa do fazendeiro afim de mem de bem. Mas era impossível que lhe
prendel-os! dessem credito, a elle, um escravo e de-
E1 que a população pedia sangue para mais accusado também como auctor do
crime.
desaffronta^-see já havia quatro victimss
Ia pellido pelo impotente desespero, que
para satisfazer-lhe a seccura das fauces
o assenhoreara, o nobre escravo resolveu
justiceiras.
protestar de maneira solemne contra a
Fossem ellas justa ou injustamente
injustiça que se fazia, quer a si, quer ao
immoladas, pouco importava; o que era
seu senhor.
mister, o que não podia ser dispensado,
— Basta que matem aos que lhes cahi-
era o espectáculo da morte para reparar
ram as mãos ;—disse elle uma tarde em
a morte.
que sentado a margem parecia fascinado
( O verdadeiro criminoso devia alegrar-se pela correnteza do rio.
na sua barbaridade ao ver como a socieda- Ditas estas palavras, Carlos atou aos
de demonstrava comprehender a justiça. pés com cuidado extremo duas enormes
Em quanto na paz insensata da vin-
pedras e ajoeihando-se então ; bradou
gança elle passava de* embaraçado, tal vez
como se quizesse que a sua voz echoasse
por diante dos mesmos magistrados, que
bem longe :
se jactavam de ler na physionomia do
— Perdão, meu senhor ; c<5s fomos 09
fazendeiro os attestados do crime; uma
culpados da desgraça, mas somos também
familia esmagada pela execração publica
innocentes.
fraqueando diante de tão dolorosa sen-
As aguas do rio abriram-se espumando
tença, buscava retractar-se de um delicto
que não tinha commeítido, e riscava do e fecharam-se logo sobre o corpo de um
nome o appelliáo herdado a seus pais I suicida, que prestava com o seu sacrifício
E Motta Coqueiro, o cavalheiro que homenagem a innocencia do fazendeiro.
repeilia evadi.r-sô para justificasse ; o ho- Infelizmente para este, o nobre suicida
mem poderoso que contsmporisava com não fazia parte da sociedade, que o devia
o aggregado para não parecer que abu- julgar e que amaldiçoava-o antes de ou-
sava da força da que então podia dispor, vi!-o.
era apontado, injuriado paio anonymo Não obstante a coragem brônzea de
popular e pala imprensa como um typo Motta Coqueiro não se quebrava; e foi com
da maldade e de cysismo. a maior serenidade, senão com a mais
Longe, porém, da sociedade polida e santa esperança que em um dos dias de
amiga da justiça houve um coração a janeiro de mil oitocentos cincoenta e tres,
quem a sorte do fazendeiro compungiu entrou pela sala do jury, na cidade de
até a loucura. Macahé»
Pelas dez horas da manhã immenso
Sabendo m interior das mattas de Ma- concurso de p»>vo affloia para o?ediflcio,
cabú, por onde errava foragido, qual a que servia de templo á justiça humana,
aoeuaaç&o que pe.a™ sobre seu senhor, vendada desde o seu nascimento por um
Carlos,queinvoluntariamente contribuirá
sonho de imparcialidade doentia, e agora
152 MOTTA COQUEIRO

ainda mais oega pela sobreexcitação sen- prolongado susurro que se derramou no
timental que a solicitude da calumnia recinto.
tinha sabido dispertar. Appareceu ^ntão no topo da escada,
Os pais de familia honestos 0 de con- todo vestido de preto, Manuel da Motta
sciência transparente disputavam-se logar Coqueiro acompanhado por Domingos,
nas bancadas mcommodas do tribunal, Fiorentino Silva e Faustino Pereira Silva,
cheios de uroa anciedade indisivel. rodeiados pela força publica.
Todos queriam var o réu principal, de- Os desgostos tinham descorado as faces
cididos a apascentar as manadas de apos- do fazendeiro e branqueado de todo a*s
'trophes de promotoria e odio insaciavel, barbas, que cahiam-lha como um disco de
quebaliam-lhes esf aimadas, conchegando - arminho sobre a golla da sobrecasaca
se agora e.para logo estramalhando se do preta.
aprisco moral, construído por uma certa Entrecerravam-lhe as palpebras o cons-
boa fé de convenção, que levava os homens, trangimento e o vexame, mas o andar
ainda os mais sisudos, a trapilharem mal- era firme, e o corpo conservava o aprumo
dições nos esterquilinios formados pela da confiança.
intriga em roda dos caracteres limpos. Os outros rens careciam da serenidade
Uma balaustrada dividia a sala em dois apparente, que envolvia a figura princi-
planos. No mais elevado em que via-se pal do quadro.
uma comprida mesa coberta por um pan- Florentino Silva denunciava mais do
no verde orlado de galão amaréllo, e que todos o pânico pelo qual estava subju-
cujos lados e cabeceira do fundo estavam gado ; tremia como se fosse presa de um
cercados de altas cadeiras negras de en- violento calafrio.
costo de pau. A cabeceira, que ficava pró- Faustino, embora apparentando mais
xima á balaustrada, era ílanqueiada por sangue frio, trahia entretanto a sua per-
quatro bancos de assento de madeira. turbação.
Junto d'estes bancos uma pequena mesa E' que sabia ao certo que, fosse qnal
fazia as vezes de trbuna da defesa. fosse o resultado do processo, seria con-
Ao longo das paredes encostava-se duzido de novo á pri ão para n'ella
grande quantidade de cadeiras de assento viver sepultaio durante es annos que lhe
de palhinha. faltavam da pana, que se lhe tinha com-
Fóra da balaustrada a gala, que dava minada como assassino, além da que
entrada a uma estreita escada, era occu- devia soffrer pela evasão.
pada por muitas linhas de compridos O ignorante Domingos, ai ida que não
banoos. pudesse demonstrar paio rosto negro e
Este lado destinava-se aos espectado- sem mobilidade o que lhe ia no intimo,
res ; o outro aos juizes, que deviam ou deixava não obstante bem clsro que um
pautar-se pela opinião publica, ou arcarprssentimento sinistro fazia-o desanimar.
com a responsabilidade tremenda que — Qual jury, nem meio jury para esses
lhes sobreviria de qualquer decisão que malvados, fosse eu auctoridade e lhes
a desgostasse. diria onde paravam elle? a^ora, excla-
mou um espectador vendo entrar os reus.
Também emquanto os espectadores da-
vam largas ás suas expansões, um recolhi- — Não, senhor; curopra-se a lai, ella
mento religioso ssolemnisava a attitude quer assim, seja assim. Póie ser que elle
dos juizes, trará documentos que provem qae é in-
nocente. Quem sabe lá ?
O presidente do tribunal fez soaracam — Ora vá bugiar, meu amigo; maa-
painha presidencial, para acalmar um dou-se intimar a mulher e um amigo
OU A PENA DE MORTE 153

d'elle e nenhum drs dois appareoett. Se de Motta Coqueiro tinham-o abandonado?


elle f >sse innoeente câ estariam todos os Eu dizia-lbe que estava completamente
seus parentes e não me consta que esteja enganado, e, como não gosto de dizer as
aqui nenhum. cousas sem provas, queira ouvir a lei-
— Qaanto a isto n l o ; você lembra se tora d'esta carta, cuja copia foi tirada
do dia em que elle chegou aqui pela pri- pelo advogado. Escute:
meira vez; lembra-se também da hora do a Meu caro enteado,—Brevemente devo
desembarque da corte ? Se vissem algum ouvir do tribunal do jury ou a confirma-
parente enxcvalhavam-o por força, e ção da calumnia com que nos perseguem,
embora um homem seja muito criminoso ou a satisfação que a sociedade deve á
não quer qx?e se desattenda a sua familia. minha innocencia.
Eu dou-lhes razão, A principio quasi desanimei da minha
— Pobre homem, exclamou em outro sorte, lembrando o modo porque f ai tra-
banco um expectai!cr; Deus o proteja e tado pelo Oliveira e a iniquidade da pro-
o defendsu nuncia com que conseguiram prolongar a
— Ora essa, homém 1 responderam a minha diffamação, mas hoje escrevo-te
esta manifestação de piedade; pois o com á maior esperança, apezar de saber
senhor tem pena d*aquelle demonio? E' qual o juizo que em geral se f&z de mim.
preciss ou ser u i santo ou ser tão bom Consta-me que minha pobre mulher, e
( como elle. Matar uma familia inteira, tua infeliz mãi vai ser intimada como in-
velhos e creanças, e ainda haver quem formante. Eu entendo que é desnecessário
se condoa de semelhante assassino ? . . . o comparecimento d'ella, não s<5 porque
— O senhor g<5 póderá f a l k r assim de- em cousa alguma adianta, como também
pois da decisão do j u r y ; por ora não. porque, se a minha desgraça levar-me
— Pois tranque-me a bocca, se não qui- até a ser condemnado, ella não teria re-
zer que eu falle e além d'isso os incom- signação para lembrar-se da recommen-
modados são os que se mudam. dação que lhe fiz,quando começou a phase
— No vapor em que elle veiu, narrava negra da minha vida.
um homem que parecia merecer conside- Peço-te, pois, que a convenças de que
ração aos ouvintes, teve occasião de es- não deve comparecer. Seria aggravar
capar-se. Durante toda a noite, as praças os seus incommodos, e talvez aventurar-
que enjoaram desmesuradamente, ficaram se a um desrespeito da população.
desacordadas, e elle se quizesse podia ter- Bem sabes, meu caro enteado, que a
se atirado ao mar. Já bem perto de terra, fé é o melhor consolo dos infelizes; quero,
elle, que estava completamente livre, teve portanto, pe^ir-te que durante o mez de
quem o aconselhasse a fugir, e apenas sa- janeiro, todos os dias reúnas os meus in-
cudiu negativamente a cabeça. Portanto nocentes filhos e todos rezeis por mim.
é fdra de duvida que o infeliz espera justi- Deus ha de ouvir os s?eus rogos.
flcar-se. Adeus, beija os meus filhos, adeus; a
— A mim também parece que isto é um esperança faz-me escrever-te: até breve.
sonho; porque sempre ouvi dizer que
Manuel da Motta Coqueiro. »
Motta Coqueiro não tinha animo de fazer
mal a ninguém. — Então, insistirá ainda em dizer que
^ — Ora até que afinal o encontro; já fui as relaçSss da familia Coqueiro estão
á sua casa e a todos os pontos da cidade cortadas ?
em que o Sr. costuma parar. Reaorda-se — Mas quer estejam, quer não, esta
que hontem á noite o. senhor sustentava carta não serve para provar que elle não
que todos os parentes e inclusive a mulher um refinado malvado.
154
MOTTA COQUEIRO

— Não tratei (Tisto; quiz só mostrar- a assembléa, principiaram os commen-


Ihe que escava em erro. tarios :
Pela maneira por que o leitor da carta — E* notorio que se davam muito, e
mostrou-se tão empenhado na defesa do quanto a fera vinha aqui a negocies,
fazendeiro é fácil reconhecer o Sr. Martins, passavam horas e horas conversando é
o gratuito sustentador da mnocencia do muitas vezes ao sol.
principal dos réus, apezar de tudo e de — Isto não me íncommoda, se elle en-
todos. tender que o homem é criminoso,condem-
— Veremos ainda quem vence, excla- na-o. Tivesse elle de julgar o proprio pai
mou ella; só se não ha mais do que cegos e se acreditasse que era ci iminos-o, tenho
n'esta terra. certeza de qu© o condemnava. '
— Bem, acredito; mas o que é verdade
A sessão tinha sido aberta, e fazia-se o
é que um amigo olha sempre os actos dos
sorteio dos jurados, acompanhado pelos
outros cora o desejo de descobrir o melhor
commentarios dos espectadores.
lado.
Havia nomes que eram spplaudidos e
outros que provocavam susurro e repro- Organizado o conselho, a sessão come-
vação nas galerias. çou a marchar no meio do maior silencio.
— Ora é baa ; este ê conhecido como Foi lido o processo e em seguida feita
apaniguado do assassino; sa escolhem a inquirição das te&temunhsss e dos reus.
jurados iguaas, a fera está absolvi-la por Seguiu-se. a accusação cuidadosa de
força. causar HM vimenvos de indignação contra
os reus, graças sos serviços conseguidos
— Ainda hontem seccou a guela em á benevolencia da rhetorica enferma dos
vociferar contra o juiz municipal, por ter judstas.
pronunciado Coqueiro, e hoje entra no Quando já os adjectivos tropeçavam e
conselho. Esta terra vai pela agua abaixo. retardavam-fce de tão estafados, o promo-
Felizmente para esses zelosas amigos tor pintando o quadro de um pai afílicto,
da justiça, o desgosto que os afifectava uma velha mãi desesperada, duas pobres
era passageiro, porque a voz do promotor, moças ameaçadas duplamente na sua vir-
com um accento severo, bradava logo : gindade e vida, e finalmente tres crian-
—recuso 1 cinhas acordadas de súbito, « abraçadas
Houve um momento de verdadeira con- amas com as outras, tremulas de receio,
fusão na assembléa. Afifectos e desaffectos emquantc lá fóra, um moço, desarmado e
do réu não pronunciaram a principio uma atacado d v totíos os lad.cs, cahi» inundado
única palavra, mas de parte a parte des- em sangua, precedendo aos seus. na longa
cobria-se profundo e sincero receio. viagem da morte: desenhado assim com
A sorte ordenou q U 0 f o s s e Bm manifesto zelo e descriminação de planos
nome, em torno do qual agremiavam se e exuberancia de tons este quadro com-
justamente as sympathias germes:—João movente, o promotor em nome da huma-
Seberg. nidade, da civiissação e da lei, pediu para
Um homem vestido de preto, alto, de oâ reus a pena de morte.
compleição robusta, fronte descalvada e A assembléa teria prorompi lo em pal-
olhar intelligente, ergueu-se de uma mas e bravos sa a camp.&inha, tangida
das cadeiras lateraes, e fez ouvir com pelo magistrado, não tivesse a tempo sus-
voz firme:—presente. tado m & ni fefrta»; ão.
Caminhou direito á mesa e tomou o JMbtCa Coqueiro tinha enlividecido e
logar que lhe fui designado. duas grossas lagrimas o r v a l h a r a m - l h e
Finda a especie de stupc?r,que dominou preguiçosamente as faces.
OU A PENA DE MORTE
155

Coube então a palavra ao advogado da quando a opinião começava a abaiar-se e


defesa. a voltar-se a favor dVíles !
As suas primeiras palavras dominaram Digamos em uma única phrase: a jus-
absolutamente o murmurio das galerias, tiça prostituiu se por não ter a coragem
que foram a pouco e pouco abonançando de suicidar se»
até a commoção. O conselho retirou-se para a sala secreta
Era a força magica da verdade e da jus- afim de responder os quesitos formulados
tiça que vencia na lacta as tríplices for- pelo magistrado.
ças da animadvercão popular. A anciedade dos espectadores chegava
Entretanto o respeitável advogado não já até a irritação; questionavam, ag-
tinha atacado o assumpto se não pela gredia-se cora phrases injuriosas; apos-
face jurídica; limitava se apenas a analy- t&va-se pro e contra os réus,
sar o depoimento contra dictorio das tes- Q a ando abria-se a porta da sala para
temunhas e a cegueira aos magistrados onm se retirára o conselho, todos silen-
na instrrçcçSo do processo. ciaram repentinamente.
Ciciava pelos espectadores o pânico da Foram então lidos em alta voz os que-
derrota; como qua accorlavam de um sitos e as suas respostas.
longo pesadelo, cheios de despeito por- Por unanimidade de votos reconheciam-
que viam fogir-lhes tí'entre as mãos se o crime e as circumstancias aggravan-
as presas,que tinham deliberado inamolar tes e negavam-se todas as attenuantes.
em holocausto á justiça. O advogado da defeza, que sa fôra gra-
Mas ao mesmo tempo a malignidade dadivãmente alevantando á proporção que
descobriu meios para justificar as teste- ouvia as respostas do conselho, ficou
munhas, em serio perigo de serem decla- finalmente de pé, livido, com o braço in-
radas perjuras. teiriçado e tremulo, estatua da indignação,
Um anonymo achou e fez circular por impotente para obstar um crime.
toda a aséembléa uma evasiva, que M No semblante de Motta Coqueiro pairava
sancionada como sensata: a solemnidade das grandes desgraças.
— Ora, segredâvam-se os espectadores; Terminou-se enfim a longa leitura dos
nao ha nada a admirar na confusão das quesitos pelo magistrado, e logo depois foi
testemunhas; sâo pobres homens e mu- ouvida H sentença, que, pela decisão do
lheres que ignor&m o sentido das palavras jury, oondemnava á morte e ainda nas
e que Bão atinam com a finura e atila- custas os malsinados réus. O juiz, poiésn,
mento do advogado, que cs quer perder. appell&va em nome da lei.
Qirnsi certo da Victoria, pela esplendida A força publica tomou conta das victi.
derrota que tinha obtido das inimigos do mas que deviam expirar ás mãos do car-
.seu cliente, o advogado desistia da pala- rasco, e a sala foi prompt&mente esva-
retumal-a após a replica da siada pelos espectadores que foram abrir
promotoria. A resposta seria a coroação alas á porta do edifici© com o proposito
L0
triumpho que h eloquência a serviço da de indultar, atada uma vez, o infortúnio
uma nobre causa acabava de obter. dos seus semelhantes.
O promotor publico, porém, d«sistiu do Chegado á prisão, o fazendeiro que
direito de replicar ; ou melhor a justiça, fôra tão rudemente ferido por um desen-
q«e havia conservado os réus incommu- gano atroz, pediu que lhe deixassem es-
mcave s, que d m azo a que circuUssem crever á sua familia.
boatos de uma execução illegal, negava A magnanimidade da justiça attendeu-
amda aos réus o direito de ampla defeza lhe o pedido e o desventurado, molhando
156 MOTTA COQUEIRO

0
papel com as lagrimas, escreveu quasi ss palavras seccas do carcereiro e os
mintelligivelmenta: olhares repulsivos de todos que por acaso
rel&nceiavam-lfte o semblante.
« Meu caro enteado, — Acabo de sor
O is fartum o havia por fica afugentado
condemnado á morte. Sirva de pai a
os caris aradas que outrora o cercavam ;
meus desgraçados filhos, »
affíistaram-se todos, porque a convivência
XIII com os scelerados ó indicio de mau ca-
racter.
A DESAFFRONTA SOCIAL Como os lazares, nos passados tempos,
A noticia da eondemnsçao do fazen- eram postos fóra das portas das cidades,
deiro voou ruidosamente, levando comsigo o infeliz fôra expulso d© toda a sociedade.
a satisfação e a confiança ás consciên- Ficava-lhe do feliz e sorridente viver de
cias dos cradulos adoradores da justiça quadra melhor apenas — s saudade, pa-
luimans. lheta encantada que esbatia rica de colo-
Os nomes cios jurados eram. repetidos rido, frescos commoveutes, em que eram
por quasi todos entre applansos, congra- representadas as crianças descuiâosas e
tulações e exageros tendentes a afeiarem prasenteiras, a espesa desvellada e tran-
sinia mais a reputação de Motta Co- qoilla.
queiro. Mas repentinamente o quadro desappa-
Nenhuma esperança restava pois ao recia como a . brancura de um velino
infeliz, contra o qual a socieiaáe "obsti- debaixo de um borrão, e o vulto negro e
na va-seá fechar os olhos para não ver iram horripilante do cadafalso surgia d'entre
só atfceuuante, que ao menos ameigasse esses festivos sonhos como a careta de
a monstruosidade da pena. Quasímodo entre a alegria dos eleitores
O cadafalso negrejava tremendo nas cio Summo Doi-lo»
brumas do futuro, e era dia por dia Então o desgraçado, com os cabellos
arrastado pelos quatro esteios, e appro- arrepellados e o olhar fiammejante,media
ximado inexoravelmente dss vistas do gjlencioso o estreito recinto da pvisão, o
ciíodemnado. só parava quanác, extenuado,cahia fobre
Contrariedades e desgostos corriam ao o leito afogado era soluços e em lagrimas.
seu encontro, COÍBO temerosa roa til ha de — Vejam como o remorso tortura
cã8shydrophobos,e atassaíhav&m-lhe COEI aquelle malvado, dizia o carcereiro ao
as presas envenenadas a propriedade e vSi-o baqueiado nVwaa dôr profunda.
os brics. Afinal de contas não lhe valeu ter di-
Os credores e o fisco escancaravam ss nheiro; n*o se pôde livrar da forca,
guélas enormes e não as fechavam sem nana póie fazer calar a consciência,
terem engolido oarte do trabalho do fa E os que faziam na pnsão a aprendi-
c. a.
sagem da dureza do coração e do cynismo
zendeiro durante longo» annos. Além riam desafogadamente escarneos pun-
d'i!?so o repetiam sempre estribilho hp- gentes á santidade dVquelle ^ ff ri mento.
diopdo da sua imaginaria barbaridade * Fóra da prisão reinava a inexorabili-
contra a familia do aggregado. dade, e mais ainda a torpeza.
Tinha sido de novo transportado para
Uma das influencias de Macahé, muito
a côrte, e arsim ficavam-lhe sobre ma-
empenhada em ver perdido iiremediavel-
neira difficultadas as suss relações, quer
mente o desventurado reu, panejou uma
com sua espo?a e filhes, quer com seus
acena, cujo effeito demonstraria ainda aos
amigos.
Em troca dos carinhos e consolações mais afanados deffensorea a culpabili-
que estes lhe cfferaceriam, tinha apenas dade de Motta Coqueiro.
OU A PENA DE MORTE 157

Bestava da familia de Francisco Bene- levantaram-se apressadamente dirigindo-


dicto uma única filha, a qual diziam ser se á escada, e outros debruçaram-se ás
casada com uoaa das testemunhas do pro- janellas do edifício, prolongando assim o
cesso, Sebastião Corrêa Baptista, conhe- susurro.
cido em Macabú por Sebastião Pereira. — Ora, bem parecia-me que não era, ex-
A solicita influencia resolveu mandar clamou-se afinai; a filha do pobre assassi-
vir para Macahé a moça,, cuja presença nado não tem meios para vir aqui.
confundiria infallivelmente o malvado, — Por isso não, porque ©Dr«... man-
que persistia em mostrar-se apparente- dou-a buscar.
mente tão sereno, que muitos já o consi- Afinal o ruido dissipou-se e a voz de
deravam victima. Motta Coqueiro, tremula de commoção,
Approximando-se a segunda sessão do poude ser distinctamente ouvida.
jury a que da viam responder os reus Depois de expor as suas relações com
mais odiados que têm apparecído em tri- Francisco Benedicto áur&nte quatro an-
bunaes brazileiros, a zeloza influencia nos, desde a sua chagada no sitio e mora-
apressou-se em realisar os seus desejos. dia na casa próxima a em que residia a sua
Chego a emfim o dia da sessão, e os réus familia, até o espancamento que ihe foi
compareceram para ainda uma vez af- feito pelo aggregado; exposta amsreha do
frontar a odiosidade popular, a rhetorica processo, o procedimento de Lycerio e a
da promotiria, e a sensibilidade dos ju- indisposição de Lucio Ribeiro e Manuel
rados. João ; Motta Coqueiro declarou q^e tinha
Os espectadores, alegres por não grande parte de Macabú por sua inimiga,
verem na tribana da defesa o advogado mss que não sabe a quam attribuir o as-
que na primeira sessão tinb.£-os amea- sassinato da familia do seu aggregado;
çado com um profundíssimo despeito- seria fazer juizos temerários.
maaifestaram francamente os sentimen- A voz fort&leceu-se então e adquiriu
tos contra Motta Coqueiro em um passa, timbre que encarnava em si a maldição a
geiro incide ate. ao mesmo tempo a resignação.
Os julgamentos do fazendeiro © do es- — Quanto á imputação que me fazem de
cravo Domingos foram separados do julga- semelhante crime, eu, perante o Sr. juiz
mento dos outros dois réus. e os Srs. jurados, perante Deus e o povo,
— Faze lá o qua quizeres, matreiro, declaro que estou innoeente : 'tal não
sorriam os desalmados ; já não ha quem mandei fazer!
possa tirar-ta a corda do pescoço ; estás Prolongada hilaridade nas galerias re-
ahi e estás a dançar sob as unhas do cebeu este brado da co&sciencia flagei-
carrasco. lada do fazendeiro, que ouvindo a garga-
— O diabo é que ella assim deraora a lhada alvar dos insensatos, cahiu como
confirmação da sentença dos outros. Eu que fulminado sobra o escabeilo infa-
se fosse juiz não consentia que se rom- mante»
pesse a eambulhaãa; mataram juntos, O infeliz Domingos nem podia ao
deviam ser condemnados juntos. menos ligar cs factos para expol-os; li-
Quando começou o interrogatorio de mitou-se a responder ás perguntas da
Motta Coqueiro, houve um grande su- perspicácia doentia do magistrado, e con-
surro, que não cedeu nem ao toque da cluiu por affirmar com a maior sinceri-
campainha presidencial. dade : eu não fiz crime 1
— Está ahi e m b a i x o ; eu estou vendo O conselho retirou-se para a sala se-
d'«qui; deve ser ella. creta, mas d'esta vez a sua demora já não
Diversos espectadores mais soffregos abria horisont© aos alvores da esperança
158 MOTTA COQUEIRO

no coração de Motta Coqueiro, estorte- lencioso o veredicto tremendo que o perdia


gado pela cruel certesa de que seria no- para sempre.
vamente condemnado. De feito que palavras poderiam escar-
O sol dò diá vinte e oito de março de nar em si a amargura da um espírito que,
1853 descambava triste para o occidente, certo da sua innooenci», não trnha forças
e para elle como para um caracter nobre para impedir que a saciedade, em nome
e leal estava perto o occaso; a região das da justiça, lhe estorquísse tudo quanto
sombras e dos mysterios. mais presava,a honra, a família e & vida ? I
A espectativa dos assistentes, posta O que havia elle de dizer a uma socieda-
por muito tempo a mal sofMdos tratos, de que execra a memoria dos barbares
foi emfim satisfeita: os jurados apresen- porque destruíram ©s monumentos da arte
taram-se com a dezej&da resposta aos antiga, e no entanto julga-se coin o di-
quesitos. reito de destruir o seu semelhante, o mo-
Confirmaram por unanimidade que o numento sagrado da natureza ?
reu Manuel da Motta Coqueiro tinha man- Que palavras merecia uma sociedade
dado matar Francisco Benedicto, sua mu- qu© exara nos seus codiges como circum-
lher e seus filhos, alguns dos quaes me- st&ncia aggravante a superioridade de
nores de sete annos. forças do offensor &obre o of&n-iido, eque
Por oito votos reconheciam as circuns- no entanto aponta mil espingardas contra
tancias aggravantes de losrar ermo á noi- o peito do réu, slgema-o, ata-lhe ao pescoço
te, e tentativa de incêndio ; por unani- um baraço, e fal-o subir ao cadafalso f
midade as aggravantes : motivo frívolo Ha áõres para as qu&es não ha mani-
ou reprovado, premeditaçao, entrada na festação possível; o coração humano li-
casa do offendido, e ajasíe com os execu- mita-se apenas a sentil-is, quando não é
tores da matança. por ellas espedaçado.
Aos quesitos formulados a cerca do reu Efitre os agentes da força publica os
Domingos, respouáeu o mesmo conselho dois réus s&hiram do tribunal, e com
confirmando por sete votos que o reu ti- elles os espectadores, magistrado e ju-
nha morto a familia de Francisco Be- rados.
nedicto ; por nove reconhecendo as cir- A solidão ssntou-se então no meio da
cumstancias aggravantes de togar ermo grande sala ainda ha pouco povoada,-e
e de noite, tentativa de incêndio, motivo esírondante de maldicções. Havia ahi a
reprovado ou frívolo ; por dez, a aggra solemnidade das ruínas dos grandes tem-
vante de ter entrado na casa do offendido plos da antiguidade, e na verdade aca-
com o fim de matal-o; por sete a cir bava-se de esboroar um templo de senti-
cumstancia de premeditaçao-; por oito mentos tranquillos,erguido por um cara-
negando attenuantes a favor do reu, que cter de tempera*
não foi violentado por força irresistível
A' porta do edifício um homem, com os
nem medo. '
braços crusados sobre o peito, os olhos
O magistrado que presidia a sessão, fixos no solo, permaneceu immovel em
deu então a sentença marcada pelo codi' quanto a multidão desfilava.
go~a pena de morte ; e appellou d'esta Este homem tinha feito parfce do conse-
decisão.
lho q m acabava de condeamar á infamia
— Ail resmungou o desgraçado Do- e á morte um dos chefes políticos de Cam-
mingos, os brancos são c.égo&; não que- pos, conhecido outr'ora pela sua severi-
rem vêr a verdade I dade e vida immaculada.
Motta Coqueiro, com a cabeça pendida Dtr-se-hia que era uma estatua, ou uma
e sem poder conter as lagrimas, ouviu si- apparição sobrenatural, tal era a palli-
OU A PENA DE MORTE
159
dez de seu rosto, a expressão tristíssima prisão do fazendeiro, que, de pé com os
do seu olhar. braços apoiados na grade e a cabeça dei-
E a multidão, distendendo se, dividindo- tada sobre elles, amargava em silencio o
se, rareou e sumiu-se ao longe, nas ruas seu laraentavel destino.
e praças, e o homem sempre immovel •— Perdoe-me , perdoe-me; exclamou
con ervava-se como alheiaão do que se Seberg abraçando por entre a grade o
passava em torno de si. condemnado; reconh@ça-me para perdcar
Um transeunte aproximou-se-lhe e disse um dos seus algozes.
lhe jovialmente : Oâ soluços de ambos embargaram-lhes
— O a muito bem; temei um optimo por largo tempo a voz, mas finalmente
logro, sahi correndo de casa para ouvir Motta Coqueiro, fazendo um grande ex-
a decisão do jury e no emtanto acho todo forço, pouáe dirigir se ao seu inesperado
concluido. Felizmeote para mim encontro visitante...
aincia o Sr. Seberg, que póie dar-me a
— Os Srs. cumpriram o seu dever; não
noticia que desejo. O senhor não fez parte
lhes quero mal por isso. Perdoo mesmo
do conselho ?
aos que me perderam, mas o que eu não
Seberg não respondeu, nem mudou de posso explicar é a razão por q«e foi con-
attitude, peio que o recem-chegado ba- demnado o meu pobre escravo, o infeliz
I teu-lhe de leve no hombro, e per^uateu Domingos. Ea tinha inimigos, mas eile...
precipitadamente : o desgraçado!...
— Dar se-ha o caso qua absolvessem
aqusllà fera ? — Não perca a esperança, exclamou
— Não senhor; foi condemnado á morte, Seberg ; tudo ainda não está perdido. O
respondeu Seberg tristemente. que nossa exaltação impediu-nos de ver
— Ah! exclamou o reaem-ehegado; eu até hoje, talvez & tribunal superior possa
logo vi que não havia a temer de descobrir. Tenha fé em Deus, meu amigo,
um jury em que entrassem como juizes de resigne-se e espere.
facto homeos iguaes m Sr. Seberg. O fazeadeiro meneiou a cabaça. Era a
— Diga antes que não ha que fiar em muda confissão do desanimo, respondendo
tribcmaes onde entram para julgar ho- á consolação da amissde.
mens que nem ao menos conhecem os Seberg abraçou peia ultima vez o des-
processos. venturado e affastou-se dirigindo-se para
— Está me parecendo que houve algum a sahida da cadeia, onde parou de cho-
jurado que tentou fazer tramóia. Vejc-o fre. Uma mulher coberta com um véu,
tão inoommodado.... o acompanhada por dois homens, entra-
— Desculpe-me, acudiu Seberg brusca- va. n'este momento.
mente ; desculpe-me; tenho necessidade Quando estas tres pessoas passaram,
de fallar já o já a um amigo. Seberg exclamou tristemente :
E o nubre Sr. Seberg tomou, quasi a — Pobre familia; que desgosto e que
a direc ã0
? P e l a qaal seguiram a vergonha!
multidão e o s r á u s > emquanto que o As tres pessoas que entraram, atraves-
recem-chegado, perplexo acompanhava o saram uma pequena sala, e, guiadas
com os olhos.
pelo carcereiro? foram tomar o logar ha-
Alguns minutos depois o jurado entra- via pouco deixado pelo Sr. Seberg.
va pela ca U tíe M.cané, pedindo per- O con<íemn>ido, pertransido peia sua
missão par.* f»l>ar a M< tta Coqueiro. agonia, Hão pwcebeu que junto de si
A luz do candieiro fuliginoso que ardia olhos curiosos espiavam-o, e nem oviu o
no corredor da cadôa guiou Seberg até á que se dizia a seu respeito»
160 MOTTA COQUEIRO

Afinal um dos recemchegados tomou a <de dissimulação; quem. tem o coração tão
palavra -. frio podia assassinar o imundo inteiro.
- O Sr. Coqueiro dá licença que lhe A nobreza do fazendeiro terao u-o in-
apresentemos uma pessoa'que o veia vi- vulnerável ao insulto venenoso, que ihe
sitar ? era dirigido pelo brutal visitante ; a con-
— Gill meu senhor, respondeu o senten- sciência abroquvlou-s^-lha com a digni
ciado, heje uma visita é a prova mais d&d-, e o desgraçado rtospoaleu rc&igna-
sinsera de amizade, que me poda ser damente.
dada. Eu sou tio odiado I . . . — Era, pois. mais uma tos tara que me
O hoaiem que faliou, acercou-se então haviam preparado. Viram, psróm, que
da mulher e lev&ntou-lhe o véu. eu não tremi; tão grande é a frieza do
•— Minha senhora, exclamou Coqueiro; meu coração.
eu lhe agradeço muito a sua cempsixao. Cambaleando e soluçando o fazendeiro
Hei de ensinar a meus filhos a repetirem retirou-se para o fundo da prisão, dei-
o seu nome. xando por fcígum tempo immoveís os in-
— E não será muito difíicil que elles o dignos qaa conspiravam contra a sua
decorem ; é a Sra. D. Chiquinha, fillia paciência.
de Francisco Benedicto. Despeitado pelo mallogro do seu plano,
O efíeiío dramatico produzido por estas o cruel visitante convidou aos seus com-
palavras cenícndiu profundamente no panheiros para sahirem,e só quando fóra,
primeiro lance ao inclemente recem-che- ouvindo os soluços mal contidos de Chi-
gado. Esperava talvez vêr o fazendeiro quinha, teve coragem de fá 11 ar :
recuar espavorido diante da mulher, cujo — Malvado, mil vezes malvado; mil
nome e feições, reccráavsm-lhe as vicíi- vidas que lhe fossem tiradas não desaf-
mas que a maioria do povo julgava terem rontariam a sociedade. E' uma féra.
sido por elle barbara mente sacrificadas. — Não diga, não diga, seu doutor;
Os movimentes do sentenciado contras- ninguém viu as mortes, exclamou Chi-
taram, porém, com a espectativa do des- quinha, e eu não posso acreditar....
humano preparador d'esta scena, tanto
mais cruel quanto era. já irremediável a — Generoso coração, disse o doutor ;
perdição de um actores. como devia ser honrado o seu infeliz pai
Estendendo os braços por entre a grade para educar uma filha tão piedosa!
e buscando abraçar a moça que se esqui- Após o grupo sahiu o Sr. Seberg, que,
vava, disse Motta Coqueiro: kó na volta, ponde conhecer uma das pes-
'— Pobre Chiquinha, eu imagino o golpe soas que deile faziam parte.
que feriu-te o coração ; pai, mãi, irmãos, A afflicção do nobre espirito de Seberg
todos os qae eram mais caros a tua alma. crescia á medida que se passavam as
Podes bem avaliar o que são as grandes horas ; como que um remorso esmagador,
desgraças; e ter piedade da minha sorte. insupitavel, polvo invisivel que lhe ap-
Também t, mim, Chiquinha, roubam-me plic&va sobre o coração as suas insaciá-
os qae mais estimo; a diíferença é que veis ventosas, ia-lhe aog poucos haurindo
para voc§ ha a pie dada geral, e para a vida.
mim o odio ou o desprezo. - E' impossivel, dizia elle alta noite,
—- Sr. Coqueiro, exclamou o reoem-cfce-. passeando de um lado para outro da sala
gaio, que tinha conseguido já dissipar a, de jantar da casa em que morava; ó
primeira impressão; eu nunca pensei quei impossivel; se houvesse a isempção de
tivesse de assistir ã semelhante esforço> animo exigida pela lei não ter-se-hia dado
OU A PENA DE MORTE
161

semelhante escandalo. Meu Deus, meu mesa os cotovellos, movimento que foi
Deus, fazei com que se elucide a verdade. logo seguido pelo Sr. Appolinario, disse
Mais, tarde accrescentou ainda: com solemne gravidade.
— Oh como fui cruel, meu Deus! — Venho confiar á sua honra a solu-
aquelles infelizes são innocentes. ção de uma séria questão de consciência,
No dia seguinte, pela manhã, Seberg para a qual invoco também os seus ser-
sahiu para despedir-se de Motta Coqueiro viços de magistrado.
que devia partir para a côrte. — Oh! Sr. Seberg, pode contar desde
Com grande admiração de todos foi já com a minha dedicação, e ouso pro-
elle visto na praia, meditativo e com os mettel-a por que sei com quem fallo.
olhos rasos de lagrimas, acompanhando o — Hontem, como sabe, foi ojulgamento
bote em que Motta Coqueiro e seu escra- de Motta Coqueiro e do preto Domingos, e
vo se' dirigiam para bordo do vapor an- eu fiz parte do conselho que os con-
corado ao longe. demnou.
• — E1 um homem incomprehensivel este — Pobre homem! fui eu quem sustentou
Sr. Seberg, diziam, condemnou Motta a sua pronuncia e entretanto faço lioje a
Coqueiro, e no entanto cliora agora seu respeito juizo bem diverso do que
t a l v e z ter tido coragem de proceder assim. então fazia,
Quando o bote sumiu-se; quando já — Queira ouvir-me, e reflicta sobre o
não podia acompanhar com a vista o in- que vou contar-lhe. Hontem depois de re-
feliz condemnodo, Seberg seguindo va- colhido o conselho de jurados á sala se-
garosamente pela pittoresca rua de Ma- creta e effectuada a votação dos quesitos
cahé,1 que descerra as janellas da sua acerca deMotta Coqueiro, percebi que não
casaria olhando para a vastidão do mar, havia no conselho aqueila imparcialidade
entrou finalmente n'uma pharmacia e que era de esperar em assumpto de tão
perguntou pelo seu proprietário. grande alcance.
Passando-se a votar o primeiro quesito
Um homem de attralientes feições, agra-
relativo ao preto Domingos, certifiquei-nie
dável timbre, cie voz, sahiu de um gabi-
do meu juizo, e, ainda mais, fui obrigado
nete lateral e, estendendo a mão a Seberg
a assistir a um grande escandalo.
disse-lhe jovialmente.
Procedendo-se á contagem das cédulas
— Por Deus, Sr. Seberg; tanta cere-
o secretario do conselho contou treze, c
monia fez-me pensar que procurava-me como era natural reclamei, e pedi ve-
um desconhecido. rificação. Nova contagem do secretario
— Não me admiro que assim pensasse, chegou ao mesmo numero. Pedi então
respondeu Seberg, eu sou o primeiro a que se procedesse á nova votação e fui
desconhecer-me. Preciso fallar-lhe muito acompanhado por mais cinco jurados,
a sós. porém o presidente entendeu melhorpro-
O Sr. Appolinario Pacheco, substituto ceder por si mesmo a contagem e cousa
de juiz municipal de Macahé, e que era singular appareceramapenas doze cédulas.
a pessoa que fallava a Seberg, apontou Lidos os votos encontram-se sete
para o gabinete. cédulas reconhecendo o crime, c cinco
— Aqui podemos estar a vontade; o apenas negarxio-o.
meu caixeiro tem a particularidade de Com ggande pasmo certifiq uei-me dc
, não ouvir o que ,eu quero que elle não que os ^cinco jurados tinham negado o
ouça, ealém d1 isso ficamos retirados. crime, o eu C011J
Sentaram-sc um em frente do outro ~ Mas isto é. .um iniquidade; (< pre-
. tendo de permeio urna, pequena mesa ciso arrancar a mascara a esse homem
redonda* e Seberg, apoiando sobre a
162 MOTTA COQUEIRO

que tão baixamente abusou da sua po- que o poder moderador não attenderia á
sição. sua supplica.
— Eu não quero fazer juízos teme- Accresce que para aggravar ainda mais
rários, porém, entendo que este facto o supplicio moral dos condemnados o
deve ser já verificado, para descanço da processo seguia com dolorosa morosi-
consciência de todos. dade, e só após dois annos de espera veiu
— Mas não ha duvida, meu amigo; o golpe final.
havia com effeito treze cédulas e uma Domingos, intimado a fazer petição de
delias que dizia não foi escamoteada graça, não a "fez no prazo de oito dias
pelo presidente, que depositou na urna conforme a lei, e portanto estava irreme-
duas cédulas afirmando o crime. Oh! diavelmente condemnado.
havemos de sabel-o, eu liro juro; o Sr. Pobre escravo ! como poderia elle com-
invocou a minha honra de magistrado, prehender, ouvindo a intimação do escri-
eu comprometto-a, vão, que uma demora custar-lhe-hia a
O Sr. Seberg sahiu relevando no sem- vida?
blante o allivio intimo que experimen- No dia 23 de Junho de 1855, o cortejo
tava, e o Sr. Appolinario sentando-se logo fúnebre-da justiça recreiava a espectação
á escrevaninha ofíiciou ao juiz de direito, geral da cidade de Macahé.
narrando a communicação que acabava Um dos reus do barbaro assassinato da
de lhe ser feita. familia de Francisco Benedicto ia subir á
Infelizmente a questão que parecia forca.
fácil de ser derimida, morreu abalada A victima chorava e caminhava quasi
nas pastas do juizo municipal. arrastada pelo carrasco e a população
Uma grave enfermidade obrigou o dig- commentava desapiedadamente este hor-
no substiiuto a passar a vara a outro ror da morte.
magistrado, e este oíficiado pela aucto- — Olha o negro, dizia-se; pensava que
ridade superior para continuar nas pes- o dinheiro do senhor havia de livrai-o. e
quizas a respeito, discutiu o assumpto e por isso não chorou quando matou a po-
deu-o por esgotado, sem inquérito. bre familia. Agora é que lhe correm as
Na tarde do dia em que Seberg deu lagrimas.
o honroso passo a favor de Domingos, — Sabes? ouvi ainda ha polico e de
foram condemnados também á morte pessoa muito séria uma cousa que está
Faustino Pereira da Silva e Florentino, e impressionando-me.
todos os réus enviados para as prisões da — Então conta já essa novidade.
capital. — Dizem que o Domingos ao sahir da ,
Usando do recurso ordinário que lhes cadeia disse para o padre que, se elle não
restava, o tribunal da relação não se é innoeente, a corda não rebentará, mas
dignou attendel-os, negando-se a con- se elle é innoeente á corda ha de arre-
hecer das appellaçóes por não ser caso bentar.
delias. Este boato circulou, cresceu e dominou
Este despacho está também na appella- logo todos os espectadores e na praça do
ção do réu Domingos, em que foram re- Rocio, onde se erguia a forca, os logares
conhecidas circumstancias aggravantes eram. disputados com tanto interesse que
por numero de votos superior ao que muitas vezes houve emprego de violência.
confirmava o crime I Chegou a desejada hora da execução.
A desillusão do fazendeiro tinha chega- A anciedade popular era febril e todos
do ao auge; não lhe era mais permittido intimamente receiavam assistir ao mi-
uma única esperança, porque sabia bem lagre prophetisado pelo escravo.

j
OU A PÈNA DE MORTE
163

A irmandade da Misericórdia collocou- Atravez da versão da seva asphixiação


se sob a forca em posição de ir em de Domingos pela ferocidade do carrasco,
auxilio do condemnado, caso fosse prote- surgiu uma evasiva.
gido pela fortuna, e o carrasco ao som — Então o que queriam que fizessem
do credo, resado pela multidão, subiu ao com um scelerado como o assassino que
seu posto. morreu; que perdoassem e surtisse effeito
A escada foi logo retirada, o desven- a machmação do senhor?
turado ficou suspenso pelo baraço, mas — Quaes historias! Domingos prophe-
o seu corpo, impellido pelo carrasco, tisou o acontecimento.
pouco tempo oscillou e foi logo caliir no — Eu. também prophetisava se tivesse
solo. um senhor qúe tivesse dinheiro e amigos
A confusão foi immensa, todos corriam, na Misericórdia, que é d'onde vem as
impelliam-se, encontroavam-se phreneti- cordas para os enforcados. Com dinheiro
camente: e amigos tudo se arranja : até milagres.
— Está salvo, está salvo, este era inno- O povo julgou rasoavel esta explicação,
cente, e quando se retirou da praça levava mais
A agglomeração não permittia que satisfação do que pezar.
todos se pudessem approximar do senten-
O cadaver de Domingos foi entregue â
ciado, e dentro em pouco tempo a des-
policia para ser sepultado, e os autos pas-
consolação pintava-se em todos os sem-
sados no mesmo dia ao Dr. Velho da
blantes . Silva, juiz municipal, que os fez conclusos
Fallou-se a principio em segredo, e com no dia cinco de julho ao juiz de direito.
immensa precaução; em seguida as vozes
foram elevando-se, elevando-se e ouviam- A sociedade começava a indemnisar a
se em todos os grupos discussões calo- sua divida com a familia de Francisco
rosas. Benedicto.
— E' muito boa, dizia o Sr. Luiz de A cova aberta para o justiçado Domin-
\
gos tinha dimensões para quatro cada-
Souza, caliiu morto e muito bem morto.
veres, e conservava-se hiante á espera de
— Não está má a capa; todos nós vimos
ser atterrada com destroços humanos.
a. corda arrebentar. O pobre Domingos!
A justiça, um mez depois da execução
bemdizia elle que era innocente.
— Arrebentasse, ou não arrebentasse, do escravo, metteu mãos ao resto da obra
a verdade é que elle eahio já morto. da desaífronta publica e os tres outros
— Ora valha-o Deus, Sr. Luiz cie Souza, réus foram notificados da sua morte pró-
mais de cem pessoas estão promptas a xima.
jurar que Domingos caliiu vivo, e que o Para Florentino e Faustino esse golpe
carrasco poz-lhe terra á boeca para as- nada teve de descommunal; havia longos
phixial-o. mezes que, aífazendo-se á atrocidade do
— F: falso. seu destino, esperavam todos os dias
— Não é tal, exclamou um novo inter- ouvir o ranger das portas do calabouço e
locutor ; eu vi com esses dois olhos que logo depois'a intimação para seguirem
a terra ha de comer. Barbaridade sem até o logar em que deviam ser suppli-
nome! ciados.
Nada, porém, é mais fácil do que asse- Florentino, perdido no dédalo de con-
renar a indignação do povo, o eterno le- jecturas limitadas a que podia chegar o
viano que applaude ou insulta, victoría seu raciocínio pouco esclarecido, acabava
ou calumnia conforme os boatos e as in- por fundir em lagrimas o seu desespero
trigas, que o impressionam. e, sem consolar-se, calava-se e ficava si-
164 MOTTA COQUEIRO

Icncioso a contemplar a perspectiva do Como' fecunda nebulosa appareceu nas


seu fadario. trevas cio seu viver uma petição das
Faustino concretisava no corarão re- senhoras campistas a favor do senten-
voltado as exalações da sua indignação, e ciado, e era de esperar que o poder mode-
rompendo bruscamente o silencio, exte- rador attendesse a tão espontanea mani-
nuava-se em cobrir de baldões a terra e festação popular.
de blaspliernias o céu. De repente a miragem da salvação des-
Para o desventurado fazendeiro o fu- penhou-se e atufou-se no lodo da enxovia,
turo era mais ameaçador e o presente em que a justiça prendia para enlameiar
mais cheio de torturas. O presente repre- o infeliz sentenciado, e em vez da espe-
sentava-lhe o abandono em que vegetava, rança appareceu como um espectro a
sugando a existencia das angustias e do crua realidade.
desconsolo, como a planta infezada a O collector abriu tremulo de commoção
seiva de um terreno maninho ; no futuro a carta que lhe era dirigida por seu pa-
antolhava-se-lhe o abandono tres vezes drasto, cuja letra fôra trocada por uns
mais cruel em que ficaria a sua familia. signaes difíiceis de serem entendidos.
Quando, em uma tranquilla manhã de Leu-a a primeira vez e não convences-
agosto, foi-lhe dada a noticia de que em- se de que tinhã-a lido: releu-a, portanto,
barcaria brevemente para Macahé, afim mas (festa vez em presença de sua mãi.
de submetter-se à'pena que lhe fôra im- « Tudo está acabado; não ha mais pos-
posta pelo jury o desventurado sentiu sibilidade de fugir ás mãos do carrasco;
íraqueiar-lhe a coragem que até então as minhas supplicas como que atleiam
mantivera-lhe o sygillo sobre o nome do ainda mais a accusação que me fizeram, e
supposto culpado cio morticínio. tornam mais inexoráveis os meus juizes.
Sese'p<5detraçar paralíelo asemelhante Dize a tua mãi que se resigne á sorte
soífrimento, era corno o do Christo diante que me foi prescripta e con?ole-se; aos
do cálix de amargura na tremenda noite meus filhos repote-lhes que. na hora em
do Horto. que não havia mais uma esperança de
Ambos, porem, acabaram pela resigna- salvação para si, O seu pai dizia sempre
ção, e tiveram a'serenidade heróica de que matavam-o por um crime que não
encarar, caminhar e subir ao putibulo, commetteu. Paraimpetlir-lhes a suspeita,
dando de esmola á atroz perseguição o pondera-llies que não é fácil mentir-se
perdão sincero dos seus espíritos calmos. diante da morte.
Para desafogo do seu tormento Motta Nunca, nunca digas-lhes a parte invo-
Coqueiro escreveu á sua familia, noti- luntária que tua mãi teve na minha per-
ciando-lhe o horroroso desfecho da sua dição e no destroço d"aquella familia.
vida de probidade e de respeito aos seus A minha desgraça deve santificar este
semelhantes. Depois de escrever corre- pedido.
ram-lhe as tardas lagrimas que desligam Quero igualmente que me façam uma
das consciências immaculadas o deixou-se derradeira vontade: desde o dia quinze
avassallar pela horripilante catadura, do de agosto até o fim do mez mandem sem-
tumulo. pre celebrar missas por minha alma; que
Igual serenidade não foi. porem, parti- seja ao menos permittido ao sentenciado
lhada pelo dedicado enteado, parn quem pensar na paz além tumulo.
a iniquidade da sentença era um grito Adeus, meu bom amigo; abençoa por
de alarma aos justos sentimentos. mim os meus infelizes filhos e abraça, a,
Demais, vira nos escuros horizontes de tua mãi; adeus, até á eternidade! »
sua familia uma esperança consoladora. A Sra. D. Maria, a quem os desgostos
OU A PENA DE MQRTE 165

depauperado extraordinariamen-
t i n h a m ram-se em mandar communicar o acon-
te, ouviu immovel a leitura compungente tecimento ao D r . . . . um dos aimgos de
e fatal; a dôr resignada, que de continuo seu pai que lhe tinha guardado mais
a trucidava, como que lhe havia anesthe- l^ildade.
siado o coração e ella parecia já insen- Acordando-seporém, de chofre, adoente
sivel a novos golpes. encheu de espanto a quantos a cercavam.
Entendendo mal o estado de sua mãi, o — Meus filhos, soluçou ella, fiquem
o collector pergúntou-lhe, machucando aqui bem perto de sua mãi; não consin-
entre as mãos o papel. tam que me levem d'aqui, eu não quero
— E a senhora o que diz a isto?. morrer; sou mài, não quero morrer !
— O que hei de dizer, meu filho; se a Mal proferira estas palavras desgre-
minha voz não tem forças para desviar nhando violentamente os cabellos em-
o golpe que nos deve ferir? branquecidos pelo soffrimento, a desvai-
— Senhora, senhora, esta resposta é rada senhora levantou-se de um pulo,
uma infamia. rindo prolongadamente urçia gargalhada
— Meu Deus, soluçou a afílicta esposa, insana.
não quiz eu por tantas vezes correr até Acercou-se então da maior da suas
os tribunaes para accusar-me, e não fui filhas e disse no meio da gargalhada
contida por ti mesmo, meu filho? constristadora.
— Mas então havia a esperança de fazer — Vamos, vamos todos; é preciso que
reconhecer a innocencia de seu marido ; vamos todos.
hoje não, hoje é mister que evite a sua O pranto filial recebeu esse convite do
injusta execução. desvario com a profunda tristeza de co-
— Devo pois, entregar a minha ca- rações, que se julgavam já orphãos de
beça ao braço do carrasco... todo.
Um ai repassado de afflicção embargou A mãi allueinada pegou então dos bra-
a voz á pobre senhora, que, levando as ços das duas filhas e caminhou para a
mãos á fronte, baqueou sem sentidos. porta principal da casa, repetindo o con-
— Covarde, covarde mulher! gritou o vite medonho:
filho allucinad^; tenho vergonha de ser — Vamos, vamos de pressa!
teu filho. Queres evitar a morte á custa Ao transpor o limiar a Sra. D. Maria
da morte de um innocente; não, não, eu foi embargada pelo Dr. que entrava.
não o consentirei! Vendo a transfiguração do semblante
E o homem, que levava a honradez até da esposa do seu amigo, perguntou-lhe
a suffocacão dos mais santos affectos, sobre,saltado:
sahiu correndo, como se temesse que a — Qual é a nova desgraça, minha se-
sua permanencia junto de sua mãi inhi- nhora?— tenha confiança em Deus.
bisse-o. de proceder conforme lh'o aconse- — Vamos, vamos de pressa, repetiu
lhava o seu caracter. automaticamente a desvairada.
A familia sobresaltada pelo baque e — Para onde quer ir, minha senhora I
ainda mais pela carreira insperada, af- —„ Para onde? gargalhou a infeliz, para
fluiu toda para o gabinete em que o col- onde? Nãe sabe então que eu devo ir para
lactor conversara com sua mãi, e encon- a forca, não sabe que eu sou a assassina;
trou ahi a Sra. D. Maria estendida no
não ouviu meu filho dizer?
assoalho.
— Ohl santo Deus, tende piedade des-
Vendo que apezar dos seus esforços a tas crianças que não fizeram mal a nin-
senhora conservava-se livida e desacor- guém, exclamou o Dr.
dada, os desamparados filhos apressa- E1 fácil imaginar-se a tristeza d'esse
166 MOTTA COQUEIRO

quadro, e a dificuldade do Dr. em execução dos assassinos, ou haverá ainda


conter a allucinação da enferma. Afinal adiamento? perguntou o famoso inimigo.
triumphou a piedade do amigo e a Sra. — Creio que será amanhã mesmo, res-
pondeu Seberg tristemente. -
D. Maria foi recolhida ao seu quarto em
— O seu voto contra aquelle malvado,
que jazeu sobre o leito durante muitos
Sr. Seberg, é uma das maiores provas
mezes.
da fortaleza do seu caracter.
O collector presa de igual desvario, ti-
— Penso justamente ao contrario; creio
nha montado a cavallo e galopava pela
que é a maior prova de fraqueza e ce-
estrada que se dirigia a Macalié.
gueira que tenho dado em minha vida.
Já havia chegado para Motta Coqueiro
— Bondade sua, Sr. Seberg; era im-
o declinar repentino da vida, e talvez na possível cine semelhante scelerado não
mesma hora em que a sua familia era acabasse ás mãos do carrasco. Felizmente
victima de tanto martyrio, elle punha pé nem o diabo o poderá salvar agora.
na cidade que se regosijava com a sua Seberg não respondeu, caminhou di-
condemnação. reito á sua casa, e voltou logo á caclèa.
Foi esperado por um amigo, que, sem Não poude, porém, fallar ao amigo,
affrontar claramente a animosidade, que que recebia do sacerdote as consolações
lhe resultaria das manifestações amis- da religião.
tosas para com o sentenciado, todavia Esperou, passeiando machinalmente cie
não evitava-a a ponto de sacrificar os de- um para outro lado do corredor da
veres da amisade. cadeia.
Seberg tinha pago caro a facilidade
Quando o sacerdote retirou-se, Seberg
com que, homem de boa fé, dera ouvidos
aproximou-se da grade e disse para a
á infamante accusação feita ao fazendeiro.
victima que soluçava:
A leitura da carta, que o Sr. Martins
— Meu amigo, não se submetta á in-
mostrou na primeira sessão do jury ao
justiça dos homens e á malvacleza da lei,
seu impertinente contendor, a scena da
não se submetia.
prisão, cujo fim só mais tarde veiu a
— Mas o que hei de eu fazer para
saber, a resignação evangelica de Mçtta
evitar.
Coqueiro, tudo, emfim, provava-lhe que
tinha condemnado á morte um innocente, Houve um momento de silencio, que-
e o seu caracter profundamente ferido brado depois por Seberg, que fuzilando
exigia-lhe a mais inteira dedicação ao nos olhos as flammivomas agonias do re-
sentenciado. morso, segredou a Motta Coqueiro, cujas
mãos segurava fortemente :
Arguia-se diante de todos os seus ami- — Suicidar-se! Eu condemneio-o á mor-
gos ; e trucidava continuamente a própria
te; venho agora ensinar-lhe o meio de
consciência, conservando-se ao lado de
effectuar por si mesmo a sentença. Mate-
Motta Coqueiro, ouvindo-lhe os soluços,
se, mate-se; não consinta que os seus ini-
e vendo o crescimento gradativo do seu
migos, que chegaram a iIludir até os
desespero á medida que se aproximava
seus melhores amigos, triumphem rfesta
o dia da execução.
causa iniqua.
Na vespera do derradeiro dia da exis- Motta Coqueiro ficou só, perplexo, a
tência do fazendeiro, Seberg ao sahir da recordar o conselho de Seberg.
cadeia encontrou-se com uma das auto- Olhou em torno de si; não havia uma
ridades macahenses, notoriamente infen- arma, um meio de realisar o suicídio;
sas ao que ia morrer. nem ao menos podia enforcar-se porque
— Amanhã effectuar-se-ha a"demorada as sentinellas á vista passeiavam decon-
OU A PENA DE MORTE 167

tinuo diante da grade e vinham frequen- dade desaffrontava-a, assassinando juridi-


temente espiai-o. camente a Manuel da Motta Coqueira.
Da parede da enxovia como um pun- N'esta hora os sacerdotes campistas le-
gente escarneo ao luxo,pendia um pedaço vantavam as Os tias consagradas, offere-
de espelho. O fazendeiro caminhou até cendo ao seu Deus o incruento sacrifício
elle, e recuou espavorido gritando an- em favor da alma do condemnado.
gustiosamente : E as Ostias erguidas no espaço, em-
— Meu Deus, meu Deus; é horrível es- quanto pendia do baraço o cadaver do
perar assim pela morte! justiçado, traziam ao pensamento cVa~
Voltando depois ao mesmo lugar agar- quelles que tinham certeza da innocencia
rou do pedaço de espelho, cravou-o no da victima um quadro de consolação
pulso e rasgou, um profundo e amplo infinita.
golpe. E1 que se llies afigurava verem na região
Foi porém sorprehendido e impedido da paz infinita o Martyr Deus abrir os
de terminar o seu intento. braços, e santificar com o seu olhar a
A noite veiu em seguida adiar por al- execução do martyr das intrigas de uns
gumas horas o eterno descanço da vic- bandidos, da cólera de um selvagem, §
tima. Dir-sé-liia que o tempo colaborava d.i cegueira de uma população.
na obra atrocissima da sociedade. A sociedade estava desaffrontada!
Durante toda a noite Motta Coqueiro Para as consciências dos magistrados e
repetiu sempre ao sacerdote do Cruci- do povo era verdade incussa, ponto de
ficado : dogma a culpabilidade Motta Coqueiro e
— Vou morrer innoeente! dos seus companheiros de destino.
Mas o ministro da religião do Martyr Quem ousasse negar semelhante axio-
immolado ás iras pharisaicas, não cria ma correria o risco de vêr-se apedrejado
na pureza da victima, e insistia em pe- e apupado por uma chusma de rethoricos,
dir-lhe a verdade em nome d a condem- que zelavam com a mesma solicitude as
nação eterna.. Só no dia seguinte, quando victimas e os suppostos algozes porque
o préstito entrava no templo, quando a tiravam d'essa correlação muitos tropos
alva do condemnado infamava um nobre de effeito, e muitos lances de estylo admi-
caracter, abrirám-se os olhos do sacer- ráveis.
dote. O povo crédulo tratava de continuar
E1 que n'este momento um desconhe- por lendas supersticiosas o engano fatal
cido tentou revelar um segredo relativo e a cegueira pertinaz que o levara a
ao padecente; e no mesmo instante um commetter uma infamante injustiça con-
olhar d'este impediu a revelação. tra um homem que na medida de suas
Ninguém sabia quem era este homem; forças fôra sempre seu devotado servidor.
diziam apenas que era um cavalleiro que Pouco antes da complicação dos aconte-
tinha vindo das bandas de Campos. cimentos que tiveram por epilogo a tris-
^De feito, o desconhecido tinha chegado teza, o isolamento e a mancha do patíbulo,
doeste cidade, e, se tivesse podido foliar, Motta Coqueiro começara a edificar um
ouvir-se-liia um filho denunciar á sua grande prédio á margem do rio Ururahy.
mãi como involuntária mandante do bar- O edifício, abandonado em meio cia cons-
baro assassinato. trucção, semelhava a uma grande ossada
Mas a grandeza cfalma do esposo fez de pé no meio da matta.
mallograr o acto de heroísmo, e d W a O local era mysterioso e tristonho. Uma
pouco um negro; instrumento da socie- velha ponte,-quasi desmantelada, ficava-
168 MOTTA COQUEIRO

tiçados, que penavam mysteriosamente


lhe ao lado, e o rio de aguas verde-negras
espumava-llie sem ruido ás plantas. _ na terra o seu crime sem nome.
Por noites dé luar a sombra do prédio Emquanto a superstição arraigava ^es-
vinha osciliar silenciosamente na face da ta sorte a animadversão publica rião já
eorreiítesa, e quando o céu era sem lua, para Motta Coqueiro, mas para a sua
ou- quando soprava mais forte o vento, memoria, os seus inimigos e o verdadeiro
via-se um' vulto surgir immenso da escu- assassino da familia do. aggregado viviam
ridão, ou ouviam-se crebos sons que lem- tranquillariiente. •
bravam um côroi de gemidos. Balbina e Carolina, cujos depoimentos
Ninguém, portanto, aventurava-se a serviram de base á condemnação do fa-
passar por alli em horas de silencio e re- zendeiro. foram libertas pela generosi-
pouso; ninguém, porque era preciso animo dade popular, que não podia consentir
inquebrantável para assistir ao espectá- em que os dois instrumentos tão úteis ao
culo que todas as noites se representava serviço da justiça, fossem traçoeiramente
n'aquelle tlieatro escuro e não concor- quebrados pela vingança dos parentes do
rido. ex-senhor das duas pretas.
Ou via-se um gemido agudo, horripi- Balbina podia sorrir tranquillamente;
lante de produzir calafrios; em seguida queria apenas vingar-se e conseguiu tam-
um phantasma, cuja altura entestava com bém a liberdade.
a Cumieira do prédio, surgia como um Sebastião Pereira, o Vianna da venda,
jorro das trevas subterrâneas. Lycerio, Lucio Ribeiro e as demais teste-
Como a sombra dos telhados pela super- munhas e actores da dolorosa tragedia,
fície das paredes, subia sem apoiar-se, até desfiavam materialménte os annos na
ao tecto do edifício, e ahi abrindo os bra- apathia de consciência que é a maior feli-
ços descommunaes tomava a attitude de cidade da vida. . '
um blasphemo ou de um precito apos- Sd um homem dos que tinham entrado
trophando o céu. no entrecho e desenlace da tragedia ha-
N'este momento tres outros phantas- via desapparecido. Era Manuel João, a
mas appareciam inopinadamente ao seu testemunha que talvez mais accusou e
lado, e todos prorompiam em gemidos e calumniou o desgraçado fazendeiro.
soluços assombrarlores. Ninguém sabia novas d'elle e também
Quando as quatro larvas se congrega- ninguém as procurava.
vam, como se as folhas, se as gçttas de Onze annos tinham passado indifferen-
orvalho, se as espumas do rio se conver- temente sobre a cova dos justiçados e
tessem repentinamente em fogos-fatuos, sobre as dores da familia de Motta Co-
via-se uma alluvião d'estes ondular, reu- queiro, que herdara a pobresa de envolta
nir-se; desaggrega,r-se, afundir-se, e ale- com a difamação cio nome do seu chefe.
vantar-se enchendo a matta da claridade Onze annos chorados continuamente,
ominosa do seu luzir. por uma esposa que se condemnava como
Após a inundação dos fogos fátuos urn culpada cia perda de seu marido; onze
clarão vermelho, como um ferro ao sahir annos repassados de vergonha para os
da forja, flammejavana escuridade, e os filhos, que se viram obrigados até a repu-
quatro phantasmas, acompanhados pelos diação do appellido paterno,' serviam
fogaréus de baça claridade seguiam pelo apenas para aggravar dia por dia a si-
cimo da floresta até perderem-se no lio- tuação da misera consorte e ainda mais
rísonte. a dos lastimaveis descendentes do fazen-
Eram as almas condemnadas dos jus- deiro.
OU A PENA DE MORTE
169

Corria, portanto, o anno de 1866, un- proferidos, restiltàssem-lhe embora da


décimo primeiro da desaffronta de Ma- mudança grandes prejuízos pecuniários.
cahé e Campos. Essas mudanças rapidas e bruscas ex-
Um caboclo de raça, homem.de estatura plicavam-se por uma phrase:
heróica, de compleição robusta,appareceu — Todo o caboclo é scismatico, em
na villa de Itabapoana, pequeno centro dando para uma cousa é como o burro
povoado das fronteiras da provincia do quando empaca. O melhor é deixal-o.
Rio de Janeiro. Itabapoana, já bastante affastada da
Apezar das maneiras humildes e sub- localidade, de cujo nome soava mal aos
missas, o recem-cíiegado não attrahiu ouvidos de Herculano, agradou extraor-
nenhumas sympathias no logar- antes dinariamente ao inconstante trabalhador.
para a antipathía gèral concorriam pode- Ahi deviam correr os últimos dias de
rosamente as feições do caboclo. sua vida sem ambições e, por isso mesmo,
O seu rosto pentagonal, de pomas car- talvez sem maguas.
nudas e salientes, os beiços grossos, o Official de ferreiro, conciliava o traba-
nariz chato, e sobretudo os seus olhos lho com a liberdade de acção, ora ma-
que não se atreviam nunca a encarar, e só lhava aqui, ora limava acolá, e o pequeno
obliquavam uns olhares furtivos e maus, salario era por elle recebido com a ale-
e se
4 conjuncto physionomico induzia a gria cie quem satisfaz facilmente a sua
população a guardar certa reserva para o sobriedade.
espontâneo immigrante. O independente viver do velho, e por
Para, explicar a repulsão que instinti- seu lado, o amor do trabalho e bom ca-
vamente sentia, a população dizia dissi- racter do filho, acabaram por dissipar a
mulando os seus sentimentos. antipathía, e até mesmo transíbrmál-a de
— Nada de amizades com caboclos; são alguma fórma em boa vontade para com
muito desconfiados; nunca se sabe quan- ambos.
do estão pelos pés ou pelas mãos, e foi Dez annos decorreram assim, dez annos
um dia... Têm-se visto muita cousa. tranquillos, felizes "te poetisados pela- de-
Uma circumstancia attenuou em breve dicação filial e pelo reconhecimento pa-
tempo a indisposição geral contra o re- terno.
çem-chegado; é que em sua companhia Ao lusco fusco de um dia cios meiados
andava um rapaz, que além da submissão de 1876, um preto velho, magro e rôto,
natural da sua Índole, illuminava o sem- bateu á porta do casebre em que, fóra cia
blante com as irradiações de uma cons- vil ia residia Herculano.
ciência limpa. A hospedagem é uma lei inviolável para
Herculano, o velho caboclo, desde muito o indígena; a porta foi aberta immediata-
que tinha em seu filho Marcolino a apre- mente.
sentação, que o recommendava ás povoa- O preto e Herculano estremeceram in-
ções onde estadiava, por isso mesmo o voluntariamente ao fitarem-se, e entre-
velho caboclo estremecia o moço traba- tanto não se conheciam. Era a repulsão
lhador. innata da innocencia e do crime.
Itabapoana foi o logar escolhido por Trocadas as primeiras saudações, o
Herculano para dar estabilidade á .sua preto pediu simplesmente a Herculano
vida até então nómada. lhe obsequiasse com urna braza para ae-
Como ao caminheiro da legenda christã, cender o cigarro,
havia palavras, nomes, que faziam com — E' quasi noite, camarada, ponderou
que Herculano tratasse immediatamente o caboclo j pouse aqui e saia de manhã.
de retirar-se do logar em que elles fossem — Não posso, respondeu o preto; Fide-
170 MOTTA COQUEIRO

lis não. pôde ter descanço, resmungou o seu, não diga tal, interrompeu-lhe o filho
perturbado.
desventurado
— Pesadelo julgaram talvez os que eu
Quando o preto desapareceu, Herculano
matei ser a noite tremenda da minha vin-
que ficara á soleira da porta e acompa-
gança. Não poupei nem os velhos nem
nhava-o com os olhos, exclamou sincera-
as creanças ; depois lancei fogo á casa,
mente commovido:
mas a chuva do céu não quiz que a la-
— E' um d'eiles; adevinha-me o coração
bareda, que é pura, se manchasse no
que
r
e um íelles! Ainda soffrem, e soffre- sangue d'aquella raça.
ão sempre.
Longo tempo o caboclo permaneceu — Meu pai, tenha piedade dos que mor-
n'uma attitude desoladora ; em seguida, reram.
-porém sacucliíi os liombros, levantoitse.' & — Morreram pela mão de um homem,
e entrou para o casebre. " e mataram pela mão de um outro. Foi
Más a tranquilidade habitual' trocara- simplesmente uma paga. Ouve !
se-lhe em agitação ; e em breve, não po- A fraca e susurrante voz do moribundo
dendo acalmar-se, saliiu para distraliir-se. começou então a narrar a maneira, porque
Quando voltou ao casebre deitou-se tinha assaltado a casa das pessoas das
para não mais levantar-se. quaes se confessava assassino e a maneira
A variola fez-se instrumento da justifi- pela qual eífectuara a carnificina.
cação de um nobre caracter. Marcolino, perturbado e ao mesmq
Desde que sentiu que não poderia salvar- tempo reluctando dar credito ao que ou-
se, ao sacudir um dos penosos delyrios, via, perguntou ao narrador :
Herculano chamou para junto de seu leito — E onde fez meu pai estas mortes ?
o entristecido Marcolino. — Em Macabu, respondeu o mori-
— Tenho uma grande confissão a fa- bundo.
zer-te, meu filho ; disse o enfermo. — E qual era o nome do chefe da fa-
— Estou npto para ouvil-a e guar- milia que meu pai matou ?
dal-a até a ruinha morte. — Francisco Benedicto, sorriu o mori-
— Não; não é um segredo que eu bundo.
quero confiar ; é ao contrario um segredo — Mas então meu pai foi também do
da minha vida que desejo que tu espalhes numero dos que foram pagos pelo Motta
por toda a parte apenas eu morra. Ju- Coqueiro ? 1
ras-me que farás esta vontade a teu pai? Sentando-se violentamente no leito, o
— Bem sabe que não sei desobedecer- moribundo, como se quizesse fulminar
' lhe- com o olhar ao afflicto Marcolino, tentou
— Deixa-me um instante ligar as mi- bradar, e apenas disse baixinho :
nhas lembranças! — Teu pai nunca matou por ofíicio,
Estas palavras já foram pronunciadas matou a raça do seu inimigo por vin-
v
com accento que trahia a perturbação gança.
mental do moribundo. S<5 depois de meia — Mas isto não pode ser verdade.
hora de espera foi proferida a primeira, — E'; juro na hora em que vou morrer;
palavra do tremendo segredo : hora em que não se mente; Motta Coqueiro
— Meu filho, ha vinte e quatro annos nem me conhecia, nem suspeitava que
appareceram cortadas a foice, esfa- n'aquella noite devia sumir-se da terra
queiadas, e estranguladas todas as pes- a malvada raça de Francisco Benedicto.
soas de uma familia. O assassino de toda — E vosmecê consentiu que elle mor-
essa gente fui e u ! . . . resse; porque não confessou, e não defen-
— Meu pai, meu pai; isto é pesadelo deu o innocente?
OU A PENA DE MORTE 71

— Ninguém viria em mim senão um ordem que d'elle recebera, declarava


instrumento de Coqueiro, e morreríamos diante de testemunhas que seu pai fôra
os dois, e a verdade não seria sabida. o assassino de Francisco Benedicto e
— Oh! Deus de Misericórdia ! sua familia. Juntava quê Motta Coqueiro
— Escuta, escuta; já te disse, fui eu nem ao menos tinha conhecido Her-
quem matou o miserável. Devia-llie... culano !
— O que, qual era essa divida ? O povo de Itabapoana murmurou acerca
— A deshonra de minha família. da confissão de Herculano, tão baixo,
Em vão Marcolino tentou arrancar o quanto alto clamaram campistas e ma-
resto da confissão; o moribundo tinha cahenses contra Motta Coqueiro. E ainda
perdido a voz. mais, depois de vinte e cinco annos de
opprobrio sobre uma familia martyr, ha
O Alho desvairado perguntou ainda corações tão miseráveis que ousam con-
uma vez ao moribundo, se era elle de tinuar a infamar a memoria da victima
feito o barbaro assassino de tantos infe- da cegueira jurídica, mesmo depois da
lizes. O velho forcejando por abaixar as declaração terminante de um moribundo.
palpebras, levou dificultosamente uma Homens perdidos que são estes ! São
das mãos ao peito em signal de affir- mais torpes do que os assassinos, porque
mação. buscam justifical-os envilecendo innocen-
Passados alguns minutos, Herculano tes; mas nem semelhantes cabeças eu
era cadaver, e seu filho, obedecendo á quizera vêr na mão dos carrascos.

FIM.

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