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Da “metáfora da guerra” ao

projeto de “pacificação”: favelas e


Artigos

políticas de segurança pública no


Rio de Janeiro
Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”:
favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro
Márcia Pereira Leite

Márcia Pereira Leite


Márcia Pereira Leite é socióloga, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora associada do Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais e do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e
pesquisadora do CNPq. Tem desenvolvido pesquisas sobre os temas violência, sociabilidade e ação coletiva em favelas, segregação,

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro- Rio de Janeiro- RJ- Brasil


marciadasilvapereiraleite@gmail.com

Resumo
Este artigo examina a construção social das favelas como o território da violência na cidade do Rio de Janeiro em dois
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favelas com o objetivo de retomar o controle armado desses territórios e “civilizar” seus moradores como condição para
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territórios e de suas populações, bem como delimitando as possibilidades de acesso de seus moradores aos equipamentos
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Palavras-Chave
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E

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ste artigo examina a construção social o principal dispositivo de produção das favelas
das favelas como o território da vio- (e de seus moradores) como “margens do Esta-
lência na cidade do Rio de Janeiro em dois do” (DAS; POOLE, 2004).2 Como conclusão,
contextos, enfocando, sobretudo, as políticas argumenta-se que o que há de unidade entre os
de segurança pública praticadas nessas locali- dois contextos mencionados, guardadas suas

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dades. O primeiro contexto, que atravessa os especificidades, é a produção de modalidades
anos 1990 e década de 2000, caracteriza-se de identificação (NOIRIEL, 2007) – favela e
pela promoção, por parte do Estado, de uma favelado – que embasam e, simultaneamente,
“guerra” aos traficantes de drogas ali sediados. justificam uma forma específica de gestão es-
“Guerra” que termina por ser praticada tam- tatal desses territórios e populações por meio
bém contra os moradores (vistos como “quase de dispositivos que delimitam as possibilidades
bandidos” e, assim, inimigos a combater), de- de acesso de seus moradores aos equipamentos
marcando o limite das políticas públicas nessas urbanos e serviços públicos (inclusive à segu-
localidades. O segundo contexto, que se abre a rança) e reproduzem dinâmicas segregatórias
partir de 2008, caracteriza-se pelo projeto esta- em curso na cidade.
dual de “pacificação” das favelas, por meio da
implantação de Unidades de Polícia Pacifica- Dos dispositivos de produção das
dora (seguido pelo programa municipal UPP favelas como território da violência e
Social) em algumas dessas localidades, com o da marginalidade no Rio de Janeiro
objetivo de retomar o controle armado desses Uma das mais completas e importantes
territórios e, assim, “civilizar” seus moradores obras sobre as favelas cariocas é, sem dúvida,
como condição para a integração desses terri- A invenção da favela (VALLADARES, 2005).
tórios à cidade. Neste livro, a autora analisa o surgimento des-
ses territórios desde seu “mito de origem” até a
Nos itens que se seguem, com base em di- sua constituição atual também como “espaço
versas pesquisas sobre o tema,1 são analisadas virtual” (“favela.com”), propondo uma “socio-
as íntimas conexões entre a territorialização logia da favela” em que reconstrói de forma
da violência nas favelas, as formas de gestão densa os diversos contextos de produção do
estatal desses territórios e de suas populações “problema da favela” pelas Ciências Sociais e
(Foucault, 2002) e as possibilidades e limites pelo Estado. Neste percurso analítico, ela exa-
de seus moradores em termos de integração mina as imagens e representações pelas quais
social/urbana. Sustento que a territorializa- as favelas e seus moradores são referidos, no-
ção da violência nas favelas – ou, em outros meados e tratados, permitindo-nos compre-
termos, a construção social das favelas como ender como diferentes atores sociais, a partir
o território da violência na cidade – constitui das narrativas próprias a seus campos de atu-

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ação e formuladas em conjunturas específicas, produção da cidade e de seus lugares a partir
produzem representações da favela como um de agenciamentos diversos (BIRMAN; SOU-
outro, um território e uma forma de vida que, TY, 2011).
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enquanto tal, não podem ter lugar na cidade.


Utilizando essas referências analíticas, são
Este artigo acompanha essa argumentação, examinados, nas sessões seguintes, alguns dos
associando-a a duas referências analíticas cen- dispositivos a partir dos quais as favelas cario-
trais. Primeira, as representações de favela e de cas, mesmo as hoje consideradas “pacificadas”,
favelado são compreendidas como categorias são constituídas como espaços vinculados à
de nominação, no sentido apontado por Noi- violência e a uma alteridade radical em relação
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riel (2007). Para este autor, as “práticas e tec- à cidade e à sociedade, ou seja, como lugares
nologias de identificação” (como a produção outros, heterotopias, no sentido proposto por
de documentos e categorias de nominação) Foucault. Constituídas na percepção social
são produto das “relações de poder colocando como “margens” da cidade, enquanto territó-
em contato os indivíduos que têm os meios rio da violência e de uma sociabilidade aves-
de definir a identidade dos outros e aqueles sa às normas e valores dominantes, as favelas
que são objeto de seus empreendimentos” e são habitadas por uma população identificada
se articulam estreitamente ao controle social por esta designação que a encompassa e que
e à estigmatização desses grupos (NOIRIEL, essencializa uma diferença desta em relação ao
2007). Segunda, as categorias de nominação restante da população da cidade, bem como de
são aproximadas da noção de dispositivos de seu local de moradia em relação aos bairros,
Foucault (1979): a rede que se estabelece entre que encontra expressão nas políticas de segu-
“discursos, instituições, organizações arquite- rança pública ali praticadas.
tônicas, decisões regulamentares, leis, medi-
das administrativas, enunciados científicos, Favela (e favelado) como modalidades
proposições filosóficas, morais, filantrópicas”. de identificação de espaços
São esses dispositivos que constituem, a partir heterotópicos: breve revisão histórica
de relações de poder situadas, os espaços como Como se sabe, no Rio de Janeiro, as fave-
utopias – “lugares sem lugar real [...] que têm las surgiram no final do século XX, quando a
uma relação analógica direta ou invertida com população de baixa renda, sem condições de
o espaço real da Sociedade, [apresentando-a] pagar aluguéis nos subúrbios e transporte coti-
numa forma aperfeiçoada” – ou heterotopias – diano para o trabalho, ocupou os morros pró-
“lugares reais” em que “todos os outros lugares ximos às fábricas, ao comércio e/ou às habita-
reais dessa dada cultura podem ser encontra- ções das camadas médias e abastadas, em busca
dos, e nas quais são, simultaneamente, repre- de empregos. Desde então, como demonstra
sentados, contestados e invertidos” (FOU- Valladares (2005), foram percebidas e tratadas
CAULT, 1967)3. Dessa angulação, pensar “as como um problema para a cidade. Jornalistas,
construções e as representações de alteridade a funcionários de instituições estatais, médicos
partir desses espaços” permite-nos entender a sanitaristas, entre outros, foram os primeiros

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a produzir e difundir uma representação ne- elas não foram suficientes para atingir as re-
gativa da favela, então designada como morro, presentações que estruturavam o imaginário
como locus da pobreza e da marginalidade, a coletivo das elites e transformar as políticas

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degradação moral somando-se à sanitária. Tais públicas. Nos anos 1960 e 1970, a percep-
profissionais argumentavam que só adaptar- ção dos favelados como fruto de um processo
-se-iam àquele ambiente pessoas moralmen- marcado pela marginalidade social [já] era
te degradadas, isto é, malandros, prostitutas, amplamente dominante e serviu como justifi-
capoeiras, que recusavam o trabalho honesto, cativa ideológica para a operação anti-favelas
produziam uma cultura e uma sociabilidade empreendida pelo Governador Carlos Lacer-
próprias, não aceitavam as normas sociais e de- da (1062-1965), continuada por Negrão de

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safiavam as leis e as autoridades públicas. Seus Lima (1966-1971) e Chagas Freitas (1971-
moradores deteriam assim um potencial dis- 1974). Em um período de 12 anos, foram
ruptivo associado aos conflitos de classe. Não atingidas 80 favelas, demolidos 26.193 bar-
por acaso foram identificados como parte das racos e removidas 139.218 pessoas (VALLA-
“classes perigosas”4 e o tratamento que lhes foi DARES, 2005).
conferido pelo Estado consistiu basicamente,
a despeito de outros diagnósticos e planos, em Assim, com a chancela das Ciências Sociais,
sua remoção dos locais de moradia e confina- favela e favelado constituíram-se em categorias
mento em parques proletários que lhes propi- de nominação que identificavam uma forma
ciariam a “pedagogia civilizatória” de que ne- de alteridade e um espaço heterotópico que
cessitariam (BURGOS, 1998) para uma futura não poderiam ser integrados à cidade, justifi-
integração social e urbana. cando o que ficou conhecido como a “era das
remoções”. Dessa angulação, ressalta-se que
A partir dos anos 1950, voltando sua aten- tais modalidades de identificação desses terri-
ção para as favelas, os cientistas sociais propu- tórios e de sua população orientaram e legiti-
seram uma outra forma de interpretação da maram um tratamento estatal específico para
pobreza urbana, sob o influxo das teorias da as favelas e seus moradores. Vale destacar, a
marginalidade social e da cultura da pobreza e esse respeito, que políticas de urbanização das
da consideração dos efeitos de um crescimento favelas só foram implementadas, e de modo in-
urbano desequilibrado e da expansão do regime termitente, a partir dos anos 1980 (BURGOS,
populista. Em suas formulações, as massas ur- 1998) e ainda hoje os equipamentos e serviços
banas pobres, especialmente aquelas residentes públicos urbanos não foram universalizados
em favelas, se transformaram de “perigosas” em nas favelas, sendo que sua qualidade é conside-
“manipuláveis” (VALLADARES, 2005).5 A au- ravelmente inferior à proporcionada nas áreas
tora sustenta que, ainda que outras perspectivas formais (bairros) do Rio de Janeiro. Não que o
analíticas – Leeds e Leeds (1978) e Machado da Estado esteja ausente das favelas, mas sua pre-
Silva (1967), entre outros – afirmassem a inte- sença caracteriza-se pela prestação de serviços
gração (subalternizada) dos moradores de favela de baixa qualidade, clientelismo e ineficiência
à cidade e à sociedade capitalista, das instituições estatais, brutalidade policial e

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desrespeito aos direitos civis de seus habitantes figurando-se como um dos principais disposi-
que não têm reconhecido e garantido seu esta- tivos que promovem e sustentam a dimensão
tuto de cidadania (LEITE, 2008). Neste senti- segregatória desses espaços contida em diversas
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do, estas modalidades de identificação termi- políticas públicas e, especificamente, no cam-


nam por reforçar os dispositivos segregatórios po da segurança, como veremos a seguir.
que produzem e reproduzem as favelas como o
outro da cidade. Antes, entretanto, é interessante sublinhar
que, atualmente, no repertório simbólico do
Por certo há disputas de sentido em re- Rio de Janeiro, o termo favela engloba diversos
lação a este processo. Não cabe, nos limites outros territórios (conjuntos habitacionais, lo-
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deste artigo, discutir os contradiscursos dos teamentos irregulares, bairros periféricos, etc.),
moradores de favelas que acionam represen- não apenas aludindo à precariedade de equipa-
tações positivas dessas localidades e de seus mentos urbanos ou a estatutos de propriedade
moradores, nem os agenciamentos diversos da terra/moradia específicos (que são hoje mui-
que empreendem por meio de seus movi- to diversos nas diferentes localidades), mas so-
mentos, campanhas e organizações.6 Destaca- bretudo identificando-os pelo estigma da mar-
-se apenas que, até meados dos anos 1980, a ginalidade, desordem e violência que os recobre,
identificação da favela como lugar da pobreza transformando seus moradores, os favelados, no
e da marginalidade era contrabalançada por arquétipo das “classes perigosas”. Cabe notar,
sua valorização como berço do samba, do car- ainda, que a própria acepção de “classes peri-
naval, da cultura popular e por sua represen- gosas” transformou-se, perdendo sua dimensão
tação como comunidade. Birman (2008), dis- política anterior. Na correlação de forças ligadas
cutindo os sentidos que o termo comunidade à reestruturação produtiva, a classe trabalhado-
pode adquirir quando referido às favelas e/ou ra, enfraquecida, não é mais percebida como
enunciado por seus moradores, analisa sua as- perigosa. O medo, ligado aos riscos à integrida-
sociação a valores católicos (hierarquia, com- de física e patrimonial e sem dúvida bem fun-
plementariedade e harmonia estruturando as damentado, decorre do novo sentido de perigo
relações entre os diferentes) e aponta sua con- representado pela pobreza e marginalidade (do-
sistência com a proposta da Igreja Católica de ravante associada ao crime violento) que a favela
assim incorporar a seu projeto civilizacional tipifica no imaginário social.
“as raízes culturais e étnicas da nação”.
A metáfora da guerra e o confronto
Desde os anos 1990, porém, as favelas pas- como política de segurança pública
saram a ser tematizadas quase que exclusiva- Assim como outras grandes cidades bra-
mente pela violência e insegurança que trariam sileiras, o Rio de Janeiro sofreu, nas últimas
aos bairros, adensando-se, assim, os estigmas décadas, os efeitos do aumento dos crimes e
sobre seus moradores. Favela e favelado passa- da violência, decorrentes de uma mudança
ram a ser as modalidades de identificação do- expressiva de suas modalidades relacionada à
minantes desses territórios e populações, con- expansão do tráfico de drogas e às suas cone-

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xões com os cartéis internacionais. A reação pelo Estado por meio da atualização de dis-
aos novos cenários de violência, insegurança e positivos que continham (e implementavam)
medo frequentemente recorreu à metáfora da uma leitura particularista da cidadania e uma

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guerra de todos contra todos que estaria em dimensão de segregação socioespacial, que se
curso, pondo em risco, cotidianamente, o mais materializaram em uma solução violenta para
fundamental dos direitos dos indivíduos: o di- o problema da violência no campo das políti-
reito à vida (LEITE, 2001, 2000).7 cas de segurança pública.

A representação do Rio de Janeiro como Elementos centrais para a estruturação


“uma cidade em guerra” foi gestada a partir desse campo discursivo foram a percepção da

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de uma série de episódios violentos (arrastões, alteridade como ameaça e desta como imune
assaltos, sequestros, tiroteios, “balas perdidas”, a qualquer tipo de solução política ou institu-
chacinas, rebeliões em presídios e instituições cional, restando portanto o conflito aberto nas
de jovens infratores, paralisações do comér- ruas, ou, mais propriamente, uma situação de
cio, escolas e serviços públicos por ordens de guerra. Representar o conflito social nas gran-
bandidos, muitas vezes emitidas do interior de des cidades como uma guerra implica acionar
prisões de “alta segurança”), que produziram um repertório simbólico em que lados/grupos
um forte sentimento de insegurança diante das em confronto são inimigos e o extermínio, no
crescentes ameaças à integridade física e patri- limite, é uma das estratégias para a vitória, pois
monial de seus habitantes. com facilidade é admitido que situações excep-
cionais – de guerra – exigem medidas também
Formulada no interior de um discurso que excepcionais e estranhas à normalidade insti-
chamava a população a escolher um dos lados tucional e democrática. Nestes termos, o dis-
de uma cidade pensada como irremediavel- positivo discursivo que constituiu o principal
mente “partida” (VENTURA, 1994), a me- operador da demanda por ordem pública foi a
táfora da guerra foi reafirmada, ao longo das construção de duas imagens polares a partir da
décadas seguintes, toda vez que se ampliou a metáfora da guerra: de um lado, os cidadãos
percepção de agravamento da situação de vio- – identificados como trabalhadores, eleitores
lência no Rio de Janeiro, ou quando o tema era e contribuintes e, nesta qualidade, pessoas de
posto na agenda política pela disputa eleitoral bem, honradas, para quem a segurança é con-
para a prefeitura do município ou a governança dição primordial para viver, produzir, consu-
do Estado (MACHADO DA SILVA; LEITE; mir; e de outro, os inimigos representados na/
FRIDMAN, 2005; LEITE, 2000). Essa pers- pela favela – categoria que não distingue mo-
pectiva desdobrou-se em uma forte demanda radores e criminosos. De fato, o uso da me-
por ordem pública, simultaneamente exigindo tonímia corresponde a uma aproximação dos
garantias do direito à vida e à segurança para as dois segmentos, atribuindo aos primeiros ora
camadas médias e altas e tolerando a supressão a condição de reféns, ora a de cúmplices dos
de sua condição de prerrogativas fundamentais segundos, cujo “lado” teriam escolhido ao op-
para os favelados. Demanda que foi respondida tarem pelo campo da ilegalidade (moradias em

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terrenos invadidos, sem pagar impostos e ser- não apenas a reforma e o reaparelhamento da
viços públicos, inserção marginal no mercado polícia, mas também políticas de segurança
de trabalho etc.). pública que pressupõem a incompatibilidade
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entre resultados eficientes e respeito aos direi-


Dois pontos associados nesta formulação tos civis dos favelados. Além disso, sustentou
devem ser ressaltados. Primeiro, a favela é re- e legitimou o reforço às fronteiras territoriais,
presentada como território da não cidadania, sociais e morais entre esses dois espaços, seja
submetida a uma força concorrente à do Esta- por meio da renovação das propostas de remo-
do. Segundo, a responsabilidade do Estado na ção das favelas das áreas “nobres” da cidade,
proteção dos favelados quando em combate ao seja com a alocação de grandes efetivos poli-
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crime é diluída tanto pela “situação de guerra”, ciais nas entradas desses territórios e formas
quanto pelo fato de que, responsabilizados por diversas de vigilância e limitação do trânsito
suas escolhas pretéritas, não haveria inocentes de seus moradores pelos bairros, ou ainda de
entre eles. Assim, caberia aos mesmos arcarem evitação de contato pela privatização de espa-
com os custos de terem “optado” por um dos ços públicos8. Favoreceu também a articulação
“lados” da “cidade partida”. A metáfora da guer- de uma política de segurança pública que tem
ra fez, assim, transitar parte da discussão da vio- no confronto direto com os traficantes e na
lência do campo da segurança pública para um promoção de uma “guerra” contra as favelas
terreno moral, em que os favelados foram toma- e seus moradores seu principal foco (LEITE,
dos como cúmplices dos bandidos pela via das 2000; MACHADO DA SILVA; LEITE; FRI-
relações de vizinhança, parentesco, econômicas DMAN, 2005).
e da política local. Sua convivência com bandos
de traficantes de drogas nos mesmos territórios Sua operacionalização envolve uma mode-
de moradia foi percebida como expressão de sua lação do mandato policial nesses territórios,
“moralidade duvidosa”. A submissão dos mora- que libera os agentes do Estado para irem além
dores de favelas à chamada “lei do tráfico” foi da “força comedida” que é sua atribuição cons-
interpretada como uma escolha entre esta e a titucional, ou seja, para a utilização da “força
“lei do país”, como uma opção por um estilo desmedida” (BRODEUR, 2004). Este dispo-
de vida que rejeitaria as normas e os valores in- sitivo atribui ao agente policial “na ponta” a
trínsecos à ordem social. Para esta formulação, prerrogativa de decidir quando, como e contra
aqui residiria a raiz de uma forte ambiguidade quem agir de forma extralegal, em um movi-
que marcaria as relações dos favelados com as re- mento discricionário que não se submete à lei,
des criminosas sediadas nesses locais, levando-os ou melhor, que embaralha o legal e o ilegal,9 o
a buscar proteção e apoio destas, bem como a legítimo e o ilegítimo (TELLES, 2010), e que
protegê-las da polícia. é dependente das avaliações e julgamentos in-
dividuais do agente, fortemente influenciado
A demanda por ordem pública traduziu- pelo contexto da ação e, neste sentido, pelos
-se, neste campo discursivo, em uma exigência preconceitos associados à estigmatização das
de “mais segurança” que apoiou e justificou favelas e de seus moradores. Assim, o policial

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opera segundo as modalidades de identificação agente policial no registro das mortes por ele
favela e favelados que vimos examinando.10 São produzidas não apenas encobre e justifica exe-
estas, pela aproximação que fazem destes aos cuções, “embaralhando o legal e o ilegal” como

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criminosos/traficantes de drogas, que auto- sustenta Telles (2010), mas também impede sua
rizam o Estado, por meio de seus agentes, a apuração, ao inviabilizar, na prática, a proposi-
torná-los objeto da “guerra” e da “força des- tura de ação penal pelo Ministério Público. Por
medida” no campo da política de segurança esta razão, sustenta Verani (1996), os inquéritos
pública de confronto nas/das favelas. Trata- policiais têm sido quase sempre arquivados por
-se, aqui, de uma “gestão diferencial dos ile- demanda da Promotoria e, quando não o são,
galismos” (FOUCAULT, 1976), que expressa raramente são aceitos pelos juízes. O resultado,

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favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro
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e reproduz dinâmicas segregatórias no Rio de ou seja, a inimputabilidade do agente policial,
Janeiro, ao produzir a distinção dos espaços, sustenta a política de segurança pública baseada
entre lugares utópicos e heterotópicos. Como na metáfora da guerra.13
argumenta Telles (2010): “os ilegalismos (...),
não são imperfeições ou lacunas na aplicação Analisando a letalidade da ação policial no
das leis, contêm uma positividade que faz par- Rio de Janeiro, Cano (1997; 2003) demons-
te do funcionamento do social, eles compõem trou diferenças significativas entre bairros
os jogos de poder e se distribuem conforme se e favelas, em termos de letalidade policial e
diferenciam [os espaços]. vitimização policial, que o levaram a afirmar
“a existência de uma clara intenção de matar
Não por acaso, ao longo de quase duas déca- por parte dos policiais nas suas intervenções
das, como diversas pesquisas comprovam,11 esta nas áreas carentes da cidade” (CANO, 1997).
“guerra” encontrou sua mais forte expressão nas O uso da “força desmedida” como padrão
altas taxas de homicídios de jovens moradores da política de segurança pública praticada
de favelas envolvidos ou não nas redes de droga, no Rio de Janeiro – e não o mero “excesso”
parte significativa dos quais encoberta por “au- eventual de alguns de seus agentes – pode ser
tos de resistência”. Tal dispositivo, que constitui demonstrado também pelo índice de letali-
no registro de ocorrência policial – em atividade dade policial, isto é, “a razão entre mortos e
de policiamento ou mesmo em folga do agente feridos das vítimas das ações policiais” e pelo
policial – como resistência armada à prisão se- desequilíbrio entre o número de pessoas que
guida de morte, é peça-chave da política de se- a polícia mata e o número de policiais mor-
gurança pública baseada no confronto e no uso tos – o primeiro sendo dez vezes superior ao
da “força desmedida”. Trata-se de um dispositi- segundo (CANO, 2003).
vo de exceção baseado no artigo 23 do Código
de Processo Penal,12 que presume que o agente Para finalizar esta seção, é necessário lem-
policial, ao mesmo tempo executor e testemu- brar que, como se sabe, os anos 2000 assisti-
nha da ocorrência, narre com veracidade como ram a uma certa estabilização e, em seguida, a
teriam se processado os fatos (LEANDRO, uma diminuição da taxa de homicídios, o que
2012). A exclusão de ilicitude da conduta do vem sendo destacado em várias pesquisas.14

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Esses dados, entretanto, devem ser analisados prática uma nova ferramenta para acabar com
levando-se em conta cor e local de moradia. os confrontos. [...] Fim do fuzil e início das
Considere-se, por exemplo, que no Rio de Ja- pequenas revoluções que serão contadas nes-
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neiro, no período de 2002 a 2008, morreram sas páginas.15


96,9% mais jovens (de 15 a 24 anos) negros
do que brancos (INSTITUTO SANGARI, Deve-se ressaltar, desde logo, que a imple-
2011). O exemplo destaca a persistência da mentação deste programa está longe de se ge-
criminalização deste segmento da população neralizar para as mais de mil favelas existentes
carioca e de seus territórios de moradia, através no Rio de Janeiro. Iniciado em dezembro de
das modalidades de identificação que examina- 2008 com a inauguração da UPP na favela
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favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro
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mos, sugerindo que estas continuam a operar Santa Marta, Zona Sul da cidade do Rio de
como dispositivos da política de segurança pú- Janeiro, o Programa de Pacificação atinge,
blica baseada no confronto e no uso da “força hoje, poucas localidades: Rocinha, Cidade de
desmedida”, ainda em vigor para a maior parte Deus e Jardim Batam, na Zona Oeste; Babi-
das favelas cariocas. lônia, Chapéu Mangueira, Pavão-Pavãozinho,
Cantagalo, Tabajaras e Cabritos, na Zona Sul;
UPPs e projeto de “pacificação” das Providência, Coroa, Fallet, Fogueteiro, Escon-
favelas: dispositivos de exceção e didinho, Prazeres e São Carlos, no Centro;
disciplinarização dos moradores Borel, Andaraí, Formiga, Salgueiro, Turano,
A implantação das Unidades de Polícia Macacos, São João, Matriz, Quieto, Engenho
Pacificadora – UPPs, no âmbito do Programa Novo, Sampaio, Riachuelo, São Cristóvão,
de Pacificação de Favelas do governo estadual, Mangueira, Tuiuti, Fazendinha e Nova Brasí-
parece representar um ponto de inflexão nessa lia, na Zona Norte. Nas demais favelas, ainda
estratégia, uma mudança no modo de gestão é a metáfora da guerra que fundamenta a po-
estatal desses territórios, no que se refere à se- lítica de segurança pública, orientando a ativi-
gurança pública. Seu objetivo é recuperar, por dade policial segundo o padrão que analisamos
meio das bases de policiamento militar situ- na seção anterior.
adas nas favelas, o controle desses territórios
para o Estado, impedindo o domínio armado Mas retornemos às palavras do secretário e
dos mesmos por bandos de traficantes de dro- às “pequenas revoluções” de que fala. A primei-
gas, como explica o secretário de Segurança do ra, sem dúvida, é o “fim do fuzil”, a eliminação
Rio de Janeiro: do tráfico de drogas ostensivamente armado
A idéia é simples. Recuperar para o Estado nas favelas cariocas. Não que esta atividade
territórios empobrecidos e dominados por criminosa tenha sido suprimida pela presen-
grupos criminosos armados. Tais grupos, na ça e atuação das UPPs nesses territórios. Com
disputa de espaço com seus rivais, entraram efeito, o que foi suprimido foi o domínio mi-
numa corrida armamentista nas últimas dé- litar desses pelos bandos de traficantes e, com
cadas, uma disputa particular na qual o fuzil isto, os confrontos entre diferentes bandos de
reina absoluto. [...] Decidimos então pôr em criminosos disputando os pontos de venda de

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droga a varejo e entre esses e os policiais. Esta de favela, até porque está longe de produzir os
é uma realização que tem produzido certa una- efeitos anunciados e, mais do que isso, revela o
nimidade em relação às UPPs quanto à redu- projeto de “pacificação” implícito no progra-

Artigos
ção da violência. Não são apenas os moradores ma que leva este nome. Antes de passar a este
dos bairros que aplaudem a implantação de ponto, cabe notar que tal programa vem sendo
UPPs nas favelas, estimulados pela valorização apresentado pelo governo estadual como a pos-
de seus imóveis e pelo fim dos confrontos ar- sibilidade de integração das favelas à cidade, ao
mados em sua vizinhança, assim afastando o proporcionar segurança e cidadania a seus mo-
medo das “balas perdidas”. Esta é também, radores (e, desta forma, também ao conjunto
conforme os depoimentos de moradores de fa- dos moradores do Rio). A ocupação militar des-

Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”:


favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro
Márcia Pereira Leite
velas que temos recolhido em nossas pesquisas ses territórios pela polícia seria a condição para
de campo,16 a principal razão do apoio destes o acesso dos favelados às instituições e serviços
ao projeto. É com alívio e esperança que, de públicos por meio do programa municipal UPP
um lado, antecipam a possibilidade de suas Social, que começou a ser implantado, em agos-
rotinas não serem mais afetadas pela presença to de 2010, em localidades com UPPs.
e atividade dos traficantes de drogas em seus
locais de moradia (LEITE, 2011) e, de outro, A UPP Social tem por objetivo explícito
comemoram e valorizam a queda dos homicí- coordenar as intervenções dos vários órgãos da
dios praticados por policiais e encobertos por Prefeitura nas comunidades de UPPs e promo-
“autos de resistência” em suas localidades de ver parcerias com os governos estadual e fede-
moradia,17 ainda que, reiteradamente, insistam ral, o setor privado e a sociedade civil para a
nas denúncias das violações de seus direitos realização de projetos sociais. Assim, cumpriria
civis e das violências praticadas pelos agentes o desafio de promover:
policiais lotados nas UPPs (ABRAMOVAY; o desenvolvimento social, incentivar o exercí-
GARCIA CASTRO, 2011), que, assim, não cio da cidadania, derrubar fronteiras simbó-
teriam rompido efetivamente com a política licas e realizar a integração plena da cidade,
de segurança pública praticada no contexto [através de] ações que consolidem os avanços
anterior. Nestes termos, eles reconhecem e cri- trazidos pela pacificação e revertam os legados
ticam a manutenção do que designamos como da violência e da exclusão territorial: apoio a
modalidades de identificação e dispositivos de organizações e projetos locais; recuperação
exceção (no caso, o abuso de poder e as violên- de espaços públicos; regularização urbana,
cias praticadas pelos policiais), como limitado- de serviços e negócios; oportunidades para a
res de seu acesso à cidade e à cidadania. juventude e iniciativas cidadãs, culturais, es-
portivas e de lazer que apaguem de uma vez
Já a segunda “revolução” anunciada pelo se- por todas as fronteiras do passado. 18
cretário, no campo dos direitos sociais e da inte-
gração urbana, não alcança a mesma receptivi- Por que, então, a combinação UPP mili-
dade que a diminuição dos homicídios pratica- tar e UPP Social não vem conseguindo ob-
dos por criminosos e policiais ente os moradores ter a receptividade pretendida por parte dos

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moradores de favela, conforme indicam os por um comandante de UPP em pesquisa de
depoimentos recolhidos em nossas pesquisas? campo – e, assim, faça as escolhas certas em
São duas as suas principais críticas. A primeira termos de demandas a fazer ao Estado, sobre-
Artigos

diz respeito à pouca efetividade da atuação da tudo aquelas que viabilizem práticas sociais,
UPP Social, que não estaria conseguindo pro- condutas, formas de sociabilidade integradas
mover de fato a articulação entre as diversas à cultura e às normas dominantes, civilizadas
instituições estatais para proporcionar aos mo- enfim. Os dispositivos de disciplinarização são
radores, com a agilidade e qualidade esperadas, muitos: discursos, regulamentos, medidas ad-
os equipamentos e serviços públicos prometi- ministrativas e atividade policial que reprimem
dos. A segunda crítica reside nas tentativas do o que é considerado não civilizado (como bai-
Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”:
favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro
Márcia Pereira Leite

comando de determinadas UPPs de usurpar les funk, música alta, encontros e festas nas
a representação de suas organizações de base ruas, etc.); assim como atividades filantrópicas
(especialmente, mas não só, as associações de que valorizam e estimulam as formas de socia-
moradores) e assim se converter em mediação bilidade consideradas aceitáveis; e, por fim, a
política necessária entre moradores de favela e desconsideração de suas reivindicações e movi-
Estado. Questão, aliás, já levantada como hi- mentos e intervenções mais ou menos diretas
pótese ou tendência do processo de consolida- em organizações de base.
ção das UPPs por Machado da Silva (2010).
Nestes termos, reedita-se de certa maneira
Essa crítica pode ser mais bem compreendida a proposta dos parques proletários para civili-
à luz de outra declaração do secretário Beltrame: zar os moradores de favelas. Associadas, a UPP
Tenho recebido e visitado os moradores dessas militar e a UPP Social pretendem dar conta
comunidades com frequência. Há uma tre- deste recado no território das favelas cariocas.
menda dívida social que veio desde a coloni-
zação destas terras. A maioria negros, pardos, À guisa de conclusão: o que esperam os
mulatos, pobres e muito pobres. Carências tão moradores de favela?
grandes que é preciso ajudá-los a pedir, pois Se este projeto vingará, é difícil dizer. Tudo
lhes é difícil até priorizar as emergências.19 depende dos contornos que for adquirindo da-
qui para frente e dos ajustamentos que o Esta-
“Ajudá-los a pedir, pois lhes é difícil até do lhe imprimirá no futuro. Por isso mesmo,
priorizar”. Esta frase pode revelar o sentido é importante compreender o que dele esperam
implícito do projeto de “pacificação”, demons- os moradores de favelas que ouvimos em nossas
trando também que o significado da “pacifi- pesquisas. A recomposição de suas rotinas e a
cação” pretendida não se restringe aos “fuzis”, redução dos homicídios praticados por trafi-
mas se dirige igualmente aos favelados. Não se cantes de drogas e por policiais certamente não
trata apenas de carências e emergências, mas lhes bastam. Cobram a promessa de “integração
também de constituir o favelado em futuro das favelas à cidade”, não meramente por meio
cidadão, disciplinarizando-o para que “tire a dos equipamentos e serviços públicos anuncia-
favela de dentro de si” – como mencionado dos pela UPP Social (embora certamente não

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os dispensem, pois são vitais para a melhoria com a metáfora da guerra, garantindo-lhes de
da qualidade de vida nessas localidades que tão forma permanente o mesmo tratamento a que
pouco os receberam ao longo de sua história), têm direito como qualquer cidadão. Isto sig-

Artigos
mas a partir do reconhecimento efetivo de sua nifica, certamente, o acesso a um mínimo de
cidadania e com a execução de políticas públicas bem-estar social, mas significa também o res-
não verticalizadas nesses territórios. peito a seus direitos civis e à sua autonomia
como sujeitos. Só ouvindo-os, podemos ter a
Podemos compreender este anseio como esperança de uma integração efetiva em uma
uma demanda para o Estado romper de fato cidade segregada como o Rio de Janeiro.

Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”:


favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro
Márcia Pereira Leite
1. As pesquisas citadas encontram-se listadas no site do Coletivo de Estudos sobre Sociabilidade e Violência Urbana, podendo ser
KWV[]T\ILI[MUP\\X"___KM^Q[QM[X]MZRJZ

2. +WUIM`XZM[[¿WI[I]\WZI[ZMNMZMU[MI\MZZQ\ÏZQW[XWX]TIÃÑM[XZ½\QKI[XZWL]bQLW[XMTILQV¾UQKILW-[\ILWM¼[NWZUI[I\ZI^Å[
das quais a lei e autoridade deste são experimentadas, vivenciadas, por essas populações. Detalho esta perspectiva analítica em
4MQ\M 

3. Para o autor, os espaços se constituem “de uma forma que neutraliza, secunda, ou inverte a rede de relações por si designadas,
M[XMTPILI[MZMàM\QLI[u.7=+)=4<! 

4. )QLMV\QßKIÿWLW[[]JIT\MZVW[KWUWtKTI[[M[XMZQOW[I[u\MU[]I[WZQOMV[VI:MXÖJTQKI>MTPIKWUIKZQUQVITQbIÿWLWUW^QUMV\W
operário e sindical, mas se prolonga no governo Vargas com a disciplinarização da força de trabalho e o controle das organizações
[QVLQKIQ[MXWTÉ\QKI[4-1<- 

5. >MZ\IUJÅUWM`KMTMV\MKIXÉ\]TWt)[\MWZQI[[WKQIQ[MW[XWJZM["W[XWJZM[KWUWWJRM\WuMUBIT]IZ! 

6. :MUM\M[MWTMQ\WZIL]I[KWTM\¾VMI[KWULQ^MZ[W[IZ\QOW[Y]M\ZI\IULM[\I\MU½\QKI"5IKPILWLI;QT^I M*QZUIVM4MQ\M
MIWIZ\QOWLM.IZQI[!

7. -[\MIZO]UMV\WMVKWV\ZI[MUIQ[IUXTIUMV\MLM[MV^WT^QLWVI\M[MLMLW]\WZILW4-1<-

8. 8IZIWLM\ITPIUMV\WLM[[I[XZWXW[\I[M[]IIV½TQ[MKWUJI[MMULQ^MZ[I[NWV\M[JQJTQWOZ½ßKI[MLWK]UMV\IQ[^MZ4MQ\M

9. A referência, aqui, é quanto aos diversos abusos e violências praticados pelos agentes policiais e, sobretudo, as execuções de
moradores de favelas registradas como “autos de resistência” que examinaremos a seguir.

10. Ver também as análises de Misse sobre sujeição criminal que, de outra angulação, tratam da mesma questão. Cf. por exemplo,
5Q[[M 

11. +N;WIZM[M\IT!!+IVW!!!!:IUW[M4MUOZ]JMZMV\ZMW]\ZW[

12. )Z\6¿WP½KZQUMY]IVLWWIOMV\MXZI\QKIWNI\W"1MUM[\ILWLMVMKM[[QLILM#11MUTMOÉ\QUILMNM[I#111MUM[\ZQ\W
K]UXZQUMV\WLWLM^MZTMOITW]M`MZKÉKQWZMO]TIZLMLQZMQ\WKNZ4-)6,:7

13. >MZ\IUJÅU.IZQI[!

14. 8IZIW[LILW[I\]IQ[KWV[]T\IZ"$P\\X"___]KIUKM[MKKWUJZMP\\X"___Q[XZROW^JZ&

15. 2W[Å5IZQIVW*MT\ZIUMKWT]VIt8ITI^ZILW;MKZM\½ZQWu!!,Q[XWVÉ^MTMU"$P\\X"]XXZRKWU_X'X%&)KM[[WMU"
W]\

16. Cfr. a nota 1.

17. +WV[]T\IZ"$P\\X"___]KIUKM[MKKWUJZMP\\X"___Q[XZROW^JZ&

18. .WV\M"$P\\X"___]XX[WKQITKWUJZWXZWRM\W&)KM[[WMU"VW^

19. .WV\M"$P\\X"___]XX[WKQITKWUJZWXZWRM\W&)KM[[WMU"VW^

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Da “metáfora da guerra” ao projeto de
“pacificação”: favelas e políticas de segurança
pública no Rio de Janeiro
Artigos

Márcia Pereira Leite


Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”:
favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro
Márcia Pereira Leite

Resumen Abstract
De la “metáfora de la guerra” al proyecto de “pacificación”: From the “metaphor of war” to a “pacification” project:
favelas y políticas de seguridad pública en Río de Janeiro slums and public safety policies in Rio de Janeiro
Este artículo examina la construcción social de las favelas This paper examines the social construction of slums in
como el territorio de la violencia en la ciudad de Río de Janeiro \PM KQ\a WN :QW LM 2IVMQZW I[ \MZZQ\WZQM[ WN ^QWTMVKM _Q\P
en dos contextos, centrándose sobre todo en las políticas de a focus on the public safety policies in place in this area,
[MO]ZQLIL XÖJTQKI TTM^ILI[ I KIJW MV M[I[ TWKITQLILM[ -T IVL [XIVVQVO \_W XMZQWL[" \PM ßZ[\ NZWU \PM !![ \W
primero, de los años 90 hasta la primera década de los años \PM TI\M [ QV _PQKP \PM OW^MZVUMV\ t_IOML _IZu
[MKIZIK\MZQbIXWZTIXZWUWKQÏVXWZXIZ\MLMT-[\ILW IOIQV[\TWKITLZ]O\ZINßKSMZ[#\PM[MKWVL[\IZ\QVOQV 
LM]VItO]MZZIuITW[\ZIßKIV\M[LMLZWOI[I[MV\ILW[ITTÉ-T I[\PMßZ[\8IKQNaQVO8WTQKM=VQ\[\PM=88[_MZMQV[\ITTML
[MO]VLW[MIJZMMV KWVTIQUXTIV\IKQÏVLM=VQLILM[ QV\PM:QW[T]U[<PM[M]VQ\[_MZMKZMI\ML\WMV[]ZM\PI\
LM 8WTQKÉI 8IKQßKILWZI =88 MV NI^MTI[ KWV MT WJRM\Q^W LM \PM[M\MZZQ\WZQM[_MZM]VLMZXWTQKMKWV\ZWTIVLQVILLQ\QWV
retomar el control armado de esos territorios y “civilizar” a \PI\[T]UL_MTTMZ[_MZMtKQ^QTQbMLu[W\PI\\PMQZ\MZZQ\WZQM[
sus habitantes como condición para la integración de esos could be integrated into the city. This paper discusses the
territorios a la ciudad. El artículo discute los dispositivos que mechanisms that promoted and sustained violence and
promueven y sustentan, en cada contexto considerado, la KZQUMIUWVO[T]UL_MTTMZ[QVMIKPWN\PM[M\_WXMZQWL[
vinculación de las favelas a la violencia y a la marginalidad, 1\ IT[W LQ[K][[M[ PW_ \PM OW^MZVUMV\ UIVIOML \PM[M
R][\QßKIVLW NWZUI[ M[XMKÉßKI[ LM OM[\QÏV M[\I\IT LM M[W[ territories and their inhabitants, and restricted their access
territorios y de sus poblaciones y delimitando las posibilidades to urban equipment and public services, including safety.
de acceso de sus habitantes a los equipamientos urbanos y
[MZ^QKQW[XÖJTQKW[QVKT][Q^MITI[MO]ZQLIL Keywords: ;T]U[#8]JTQK;INM\a#?IZ#8WTQKM8IKQßKI\QWV
=VQ\[# 8IKQßKI\QWV# >QWTMVKM# 8]JTQK 8WTQKQM[# ;\I\M
Management.
Palabras clave: .I^MTI#;MO]ZQLILXÖJTQKI#/]MZZI#=88#
8IKQßKIKQÏV#>QWTMVKQI#8WTÉ\QKI[XÖJTQKI[#/M[\QÏVM[\I\IT

Data de recebimento: 17/04/2012


Data de aprovação: 30/07/2012

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