Você está na página 1de 12

BORANDÁ

(auto do migrante)
De Luís Alberto de Abreu
(ENQUANTO O NARRADOR ABU DIRIGE-SE AO PÚBLICO, OS
OUTROS QUATRO NARRADORES CAMINHAM, EM BLOCO, DO
FUNDO PARA O PROSCÉNIO. NO MEIO DO PALCO CADA UM
TOMA DIREÇÃO DIFERENTE. TRAZEM OS OBJETOS QUE
UTILIZARÃO NA CENA.)

ABU: Boa noite. Algumas vezes nós, seres humanos, somos definidos
como exilados. Outras vezes somos definidos como um peregrino, alguém
que foi expulso dos céus e que peregrina sobre a terra até voltar a pátria
celeste. Hoje, aqui, não vamos dividir com vocês essas altas considerações,
talvez porque não sejamos capazes...
TIÃO CIRILO: Cada um é que fale por si! Capaz eu até que sou.
WÉLLINGTON: E somos cômicos! Estamos aqui para fazer graça!
BENECASTA: E quem diz que na comédia não tem filosofia?
ABU: (DEPOIS DE UM OLHAR IRADO E DE RESPIRAR FUNDO)
Vocês já perceberam como é que as coisas vão andar aqui em cima!
Retomo nossa conversa no ponto em que fui indevidamente interrompido:
queremos dividir com vocês os sentimentos de uma peregrinação mais
concreta, mais trivial e com razões bem mais claras. Neste auto celebramos
o migrante, o expulso, o que peregrina por uma cultura que é sua, por uma
nação que é sua e por um território que não é seu.
WÉLLINGTON: Vamos com isso que já cansamos de andar.
ABU: E, como sempre, não houve acordo entre nossos cinco narradores
sobre o que narrar. Optamos pela narrativa de três sagas. Tião Cirilo,
(APONTA. TIÃO FAZ UM ACENO) será protagonista da primeira saga,
uma saga mais genérica e que, por coincidência, também se chamará Tião.
Wéllington (APONTA. WÉLLINGTON FAZ UM ACENO AO PÚBLICO)
será protagonista da segunda saga chamada Galatéa. Uma saga mítica,
cómica, absurda como é do gosto da cultura popular.
BENECASTA: E que quer expor alguns narradores ao ridículo!
ABU: Posso continuar? (FAZ-SE SILÊNCIO) E, finalmente, para
contemplar a ala feminina do grupo, que é minoria, mas é barulhenta,
Benecasta será protagonista da última saga, chamada Maria Déia.
BENCASTA: (AO PÚBLICO) Vão ser três sagas, mas o espetáculo é
curto. Por isso não quero ver ninguém dormindo, principalmente na última
saga.
ABU: Por último, eu tenho a árdua incumbência de dirimir rusgas e
conflitos e levar a bom termo esta representação narrativa. Borandá, gente!
(OS NARRADORES DANÇAM VÁRIOS RITMOS COMO CATIRA,
CIRANDA, XAXADO E VÁRIOS OUTROS RITMOS POPULARES
NUM CLIMA ALEGRE DE FESTA. TIÃO CIRILO SE DESTACA SE
DESTACA DOS NARRADORES)

Primeira saga — Tião

ABU: Que tipo de gente somos nós, migrantes? Que tipo de gente é essa
que deixa o coração num pé de serra, num lajeado, numa beirada de
mundo? Que traz o corpo para o trabalho na metrópole e deixa a alma no
lugar de origem? E não reconhece o lugar, onde vive e trabalha, como seu.
Seu é o lugar que já não tem, é o lugar deixado, para o qual talvez nunca
mais volte, mas para o qual passa a vida sonhando voltar. Que gente é essa
que não se moveu por vontade própria, não é turista, nem peregrino. (FAZ
UM GESTO LARGO EM DIREÇÃO À CENA JÁ MONTADA. TIÃO
CIRILO ESTÁ SENTADO EM FRENTE A UMA PEQUENA MESA
ONDE ESTÃO UMA CARTA, UM PRUMO DE PEDREIRO, UM PAR
DE SAPATOS DE RECÉM NASCIDO, UM VELHO CADERNO, UMA
TORNEIRA VELHA E UMA PEDRA ROLIÇA, UM MAÇO DE
CARTAS AMARRADAS COM BARBANTE) Primeira saga: Tião! (TIÃO
VEM À BOCA DE CENA PARA COMEÇAR A REPRESENTAÇÃO)
TIÃO: (AO PÚBLICO) Tião Cirilo, seu criado...
BENECASTA: (INTERROMPENDO) Tião Cirilo dos Santos é um
caboclinho pequeno, sem graça, mirradinho mesmo, desses que chegam
com cara de tonto nos terminais de ônibus e de trem. (CIRILO REAGE)
AMOZ: O lugar de onde veio é uma titica no mundo. Caminho pra lá
ninguém quer aprender e quem sabe faz força pra esquecer. Uns dizem que
é perto de Minas, vizinho do Espírito Santo. Outros falam que é além de
Goiás, acima da Paraíba, no rumo de Mato Grosso, divisa com Pará, à
esquerda de Santa Catarina, não sei direito e não me interessa! Ó, quer ir lá,
mesmo? (APONTA) Segue essa rua toda vida, vira a esquerda, desdobra a
direita e depois do terceiro farol você pergunta. (CIRILO VAI INCHANDO
DE RAIVA. VAI FALAR MAS É NOVAMENTE INTERROMPIDO)
WÉLLINGTON: É um lugar esquisito: tem muito pobre e pouco rico.
Olha só a coincidência: tem pouca saúde e muita doença. E uma terra dura:
muita falta e pouca fartura.
BENECASTA: Tião Cirilo é desse jeito...
TIÃO: (IRRITADO) Pode deixar que eu mesmo falo, siá! Quem sabe de
mim sou eu! Ara!, que também não é assim!
BENECASTA: Estamos mentindo?
TIÃO: Não, propriamente...
AMOZ: Estamos inventando?
TIÃO: Eu não disse isso...
WÉLLINGTON: Discorda de alguma coisa?
TIÃO: Bem... não. (PARA O PÚBLICO) A coisa foi a seguinte, sem tirar
nem por: sem meio de vida, tirando da terra menos do que eu dava pra ela,
um dia arvorei, com segredo e com medo, um pensamento no fundo de
mim: vou 'bor'andá! (AMOZ COM ROUPAS NOVAS, TÉNIS DE CANO
ALTO, CHAPÉU E ÓCULOS ESCUROS, ENTRA NA ÁREA DE
REPRESENTAÇÃO. É BIÚ)
BIÚ: Cês são gente besta! Vão passar a vida no mesmo, dia nasce, dia
morre e a vidinha de vocês é tal e qual! Isto aqui não é mundo, não! Isto é o
que caiu do fiofó dele! Mundo é lá, cidade grande, mas é pra caboclo
mordido de cobra, gente que tem arranque! Não é pra quem fica bostando
esperando mosca pousar!
TIÃO: Eita, se aquele na venda não era o Biú que tinha voltado! Um
sujeito pamonho, piorzinho até que eu, quando saiu daqui, dois anos atrás.
Agora, volta desenleado, com pompa, palafrém e palavrório! Falou e
mostrou que, na bagagem, trazia três camisa e duas calças, um despropósito
para um homem só! (BIÚ, SENHOR DE SI, SENTA NUM BANQUINHO,
TIRA DO BOLSO UM ESPELHINHO REDONDO E PENTEIA O
CABELO. TIÃO CHEIRA O AR) Eita, fartum bom!
BIÚ: É glostora! Bom pra alisar cabelo! Desce cachaça e cerveja que eu
pago. Mas é só hoje!
TIÃO: Eita que o povo festou e vivou! Mas o que assombrou de vez o
povo foi quando o coronel entrou na venda. (WÉLLINGTON ENTRA NO
ESPAÇO DE REPRESENTAÇÃO)
CORONEL: Eita, que tem gente que só é ir pro sul que volta tresmudado!
Quando 'tava aqui já não era muito homem, quando volta vem fedendo
perfume de mulher da vida!
BIÚ: Me diz cá uma coisa, coronel: o senhor, por acaso, já comeu
macarrão espaguete? Lasanha de quatro queijo? Bife a milanesa? Chantili e
maionese? O senhor precisa conhecer o mundo, Coronel! (CORONEL SAI
DA ÁREA DE REPRESENTAÇÃO)
TIÃO: Eita, que babei vontade de um dia na vida comer aquilo!
ABU: É suficiente! (AMOZ SAI DA ÁREA DE REPRESENTAÇÃO)
TIÃO: Macarrão espaguete! Lasanha deve ser carne de bicho. Não, de ave!
(COM UM GESTO ABU ORDENA QUE, WÉLLINGTON VOLTE À
ÁREA DE REPRESENTAÇÃO COMO NORATO. TIRO RECEBE UMA
MALA.)
WÉLLINGTON: Sou Norato Fubúia, mais conhecido como Norato
Chibíu, o que não melhora nem um pouco o meu nome. Fica até
"piorzinho", 'hé" não? Um dia chega o Tião e fala: vou 'bor'andá, Nanato,
que era como Tião me chamava. Na horinha entristeci de saudade e de um
pouco de inveja.(BENECASTA É A MÃE)
TIÃO: Vou 'bor'andá disse e redisse pra mim mesmo pra criar coragem
antes de chegar em casa.
MÃE: Vou 'bor'andá, mãe, ele me disse. Falei nada, não, como se fosse
notícia que eu já soubesse. Deixei o aviso me cortar e soquei lá dentro o
choro, a raiva e a blasfêmia para que Deus não escutasse. E continuei a
passar o café no coador de pano como se não tivesse ouvido nada. Mas meu
silêncio doeu.
ABU: É o suficiente.
MÃE: E até hoje tenho vontade de soltar aquele grito que não dei.
ABU: (COM AUTORIDADE DE QUEM ORGANIZA A AÇÃO DOS
PERSONAGENS) É o suficiente, eu disse. (MÃE E NORATO SAEM DA
ÁREA DE REPRESENTAÇÃO. ABU COM UM GESTO SOLICITA O
PRONUNCIAMENTO DE TIÃO)
TIÃO: E Tião Cirilo dos Santos, que sou eu, vim embora...
(BENECASTA, AMOZ E WÉLLINGTON REAGEM, FORA DE CENA)
BENECASTA: Ei! (TIÃO, INCONFORMADO, RETOMA A
NARRATIVA AGORA COMPLETA)
TIÃO: E Tião Cirilo dos Santos, que sou eu... um caboclinho pequeno, sem
graça, mirradinho mesmo... vim embora nos idos dos anos 50...
(IRRITADO) e cheguei com cara de tonto ao terminal de trem! (ABRAÇA
COM FORÇA CONTRA O PEITO E CAMINHA DESCONFIADO)
WÉLLINGTON: (UM TANTO INCONFORMADO) Não, na metrópole
nada aconteceu de inusitado com Tião Cirilo. Não roubaram suas coisas,
ele não caiu em conto do vigário, não comprou lote no mar, nem terreno na
lua à vista, nem viaduto a prestação, essas coisas que, às vezes, acontecem
quando o migrante chega. Ou seja, nem pra fazer a gente rir um pouco esse
personagem tá prestando!
TIÃO: (IRRITADO SE REFERINDO A WÉLLINGTON) Oh, vontade
que "das veiz" dá de a mão da gente trombar com a cara de um sujeito à
toa!
BENECASTA: Nada de muito cômico ou muito trágico aconteceu com
Tião Cirilo. Isso porque ele é um migrante trivial, comum, sem lances
heroicos nem defeitos risíveis.
TIÃO: Nunca sei se é elogio!
BENECASTA: A vida de gente assim é feita um nada por dia, mas é feita
todo dia.
AMOZ: Quando se chega é só estranhamento. Tudo é novo e difícil: o frio,
o lugar, a comida, os costumes e, principalmente, a solidão.
TIÃO: E o que dói mais. Solidão enlouquece. Eu odiava domingo e até
hoje não gosto. Dia de semana tinha os companheiros, peão de obra, o
trabalho. Chegava sábado, sumiam todos dentro da cidade, iam pra junto
das famílias, dormir com as quengas. Eu amanhecia domingo sozinho na
obra. Domingo à tarde, lembrança da mãe, dos amigos, do lugar de origem,
cortava a coragem da gente. Vontade que sobrevinha era de se danar, de
morrer, de chorar. E o domingo é o mais lerdo dos dias, acaba bem devagar
e eu ali naquela cidade-monstro quieta, na obra quieta, só eu e meu radinho
de pilha, meu companheiro. (WÉLLINGTON PEGA A CARTA SOBRE A
MESINHA TIRA O PAPEL DE DENTRO E ESCREVE ENQUANTO
SOLETRA)
WÉLLINGTON: Estou com muita saudade, mãe. (A TIÃO) Que mais?
TIÃO: Bote aí: aqui tudo vai indo como Deus quer. Se tudo der certo viajo
pra aí no final do ano. Recomendação a todos e me dê sua benção. seu
filho, Tião. (WÉLLINGTON DOBRA A CARTA E ENTREGA A AMOZ)
AMOZ: Dona Nazaré! Ó, dona Nazaré! Mandaram entregar. É carta de São
Paulo.
MÃE: (RECEBE A CARTA) Ah!, meu Deus! É do Tião! Quanto tempo!
Está tudo bem com ele? Abre a carta e lê pra mim?
AMOZ: (APÓS PAUSA PERPLEXA) sei ler, não, dona Nazaré. Mas deve
de estar tudo bem, se foi ele que escreveu, não é? (AO PÚBLICO) Dona
Nazaré beijou a carta como quem beija relíquia de santo, escapulário da
virgem Maria. Depois colocou a carta fechadinha no oratório da casa. A
carta ficou lá até a morte dela. Ninguém me contou, eu vi.
MÃE: Estava tudo bem com Tião, eu sabia, coração adivinha. Como
também adivinhou que ele chegaria depois do dia de reis, dois anos depois
que ele tinha ido; como adivinhou antes de ele apontar no caminho, depois
do pé de jatobá, como adivinhou antes de ele gritar na entrada do quintal,
TIÃO: Mãe!
MÃE: Me assustei, mas foi pela minha certeza! (ENTRA NA ÁREA DE
REPRESENTAÇÃO E ABRAÇA TIÃO) E abracei aquele homem, meu
menino, como se fosse a última vez. (ENTRISTECE) Eu tive a triste
certeza de que era a última vez. Até nisso meu coração adivinhou. Mas não
quero falar, agora, desse desconsolo. (FELIZ) Me deixem com a alegria
que entra em minha casa como um sol. (EMOCIONADA) Entra, filho.
TIÃO: (COLOCA CHAPÉU, ÓCULOS ESCURO E RECEBE
UMA TORNEIRA QUE UM DOS NARRADORES TIROU DE CIMA
DA MESINHA.)
NORATO: Eu vi! Chegou cheio de ares, cheio de prosa, imperando como
se fosse rei. Ói, eu invejei! Ele me deu de presente um pente e um
espelhinho redondo que atrás tinha o retrato de uma moça. Nua em pelo!
Nunca tinha visto uma assim. Em retrato, não!
TIÃO: Levei presente: uma Santa Aparecida pra mãe, uma coisinha ou
outra pra parente. Levei também uma coisa de engenho pra mostrar.
(MOSTRA AO PÚBLICO UMA TORNEIRA E EXPLICA O
FUNCIONAMENTO) Isso é coisa de engenho, de funcionamento, de ideia
fina! Toda casa tem uma. As "veiz" até mais de uma. E só rodar essa peça
assim e pronto, sai água. Quanta água você quiser. (AMOZ É AGORA UM
RAPAZ INTERESSADO NO OBJETO)
AMOZ: Disso ai?
TIÃO: E, não tem de buscar água na bica. A bica vai até cada casa...
AMOZ: Como é?
TIÃO : Tem um cano que vem por baixo da terra, pelas ruas. Desse cano
sai outros caninho pra casa.
AMOZ: Sei. Mas a água dos canos de debaixo da terra vem de onde? De
poço?
TIÃO : Não, vem de umas caixas grandes, cheias de água, que ficam no
alto...
AMOZ: No alto de onde?
NORATO: Deixa de empáfia, Tião! O menino, aí, é bobo, mas a gente não
é tão atrasado, não. A gente sabe o que é uma torneira. Só nunca tinha visto
uma. E que é isso?
TIÃO: Um rádio, toca música, fala...
NORATO: Sei... Então é isso o rádio. Funciona?
TIÃO: Trouxe só pra vocês ver. Falta força elétrica.
AMOZ: Sei. (PAUSA) Que é força?
TIÃO: (PENSA, MAS NÃO CONSEGUE EXPLICAR) É umas cargas
que vem da láite... assim...que vem igual água na torneira, mas vem nos
fios de arame. Sei explicar, não, mas é por na tomada e isso canta, toca.
AMOZ: O, sujeito mentiroso! Pensa que a gente é tonto!
ABU: Chega.(AMOZ E WELLINGTON SAEM DA ÁREA DE
REPRESENTAÇÃO) Mãe! (BENECASTA ENTRA)
MÃE: Tenho muito mais a dizer, não. História minha é curta. Só digo que
fiquei encostada no portal da casa olhando meu filho que sumia na curva do
caminho, depois do pé de jatobá. Ele ainda deu um aceno de mão e eu não
quis acreditar que era a última vez. Por todos os anos que ainda tive
mastiguei o pão de cada dia com a saudade e o desejo da volta dele.
ABU: Está bem. (MÃE NÃO SE MOVE) Está bem, mãe, é o suficiente.
(AMOZ TENTA DELICADAMENTE RETIRAR A MÃE MAS ELA
NÃO SE MOVE. ELE OLHA PRA ABU SEM SABER O QUE FAZER.)
MÃE: Coração da gente é pasto onde boi berra. (INESPERADAMENTE
SAI)
ABU: Não sabemos definir muito bem o que é um migrante, esse ser que se
põe em movimento contra sua própria vontade. Dizem que o homem é mais
ligado à terra e que é a mulher, muitas vezes, que impulsiona a migração.
Sabemos também que o migrante não muda apenas de paisagem e de
território. Muda de mundo. Na terra de origem a natureza rege a alternância
entre o trabalho e o descanso. Na cidade o migrante vai enfrentar o trabalho
contínuo. A alternância possível é entre o trabalho e o desemprego, o que
não é desejável; e entre trabalho e aposentaria, o que também não
desejável. E o trabalho começa a perder seu valor enquanto dimensão da
vida.
WÉLLINGTON: Aqui é bom pra trabalhar, mas pra viver não presta, não!
AMOZ: Quando aposentar volto pra minha terra!
TIÃO: É o tempo de juntar um dinheirinho e volto pra titica de lugar onde
nasci.
BENECASTA: E enquanto não volta, o dia a dia come o tempo de Tião.
(ABU TIRA O PAR DE SAPATINHOS DE BEBÊ E DÁ A BENECASTA.
ESTA É AGORA LUZIA. TIÃO DANÇA)
TIÃO: Eita, que quando for pra eu me acabar queria que fosse numa festa
assim! Foi num brinquedo desse, aqui em São Paulo, que conheci Luzia.
(APONTA LUZIA) Formosa, né, não? Até hoje não sei o que ela viu em
mim.
LUZIA: Eu sei, mas não conto. Nem pra ele que é pra não virar soberbo,
nem pra vocês que é pra não crescer o olho pra riba dele. Mulher burra não
nasceu, não!
TIÃO: Namoro da gente tá que é só mel mais melúria.
LUZIA: (MOSTRA OS SAPATINHOS) Olha só, Tião!
TIÃO: Bonitinho, Luzia. O que é?
LUZIA: Sapato de criança.
TIÃO: Isso eu sei, estou vendo!
LUZIA: (APREENSIVA) Ganhei da Marcela.
TIÃO: E por causa de que a Marcela lhe deu isso? (OLHAM-SE. TIÃO
CONCLUI) Ichi! (LUZIA CONFIRMA COM A CABEÇA) seu pai já
sabe?
LUZIA: Sou doida? Ele é das Alagoas. Você é que vai contar!
TIÃO: (AO PÚBLICO) A Marcela deu mais três pares de sapatos. Da
Leninha, do Genivaldo e da Licinha, além do Tiãozinho que foi o primeiro,
o mais velho. Comecei a gostar daqui foi quando conheci Luzia. Bonita,
sestrosa, bem-querente. Tem coisas que a gente quer demorada. Gostar, por
exemplo, tem de ser coisa lerda, feita sem pressa, mas vida aqui tem
urgência. E num lugar onde se diz que tempo é dinheiro a gente não tem
nem um nem outro. (WÉLLINGTON PEGA A CARTA DO ORATÓRIO E
NA PASSAGEM PEGA O MAÇO DE CARTAS DA MESINHA E
ENTRA NA ÁREA DE REPRESENTAÇÃO. GRITA COMO
CARTEIRO.)
WÉLLINGTON: Carta pra você, Tião!
TIÃO: (TIÃO PEGA A CARTA) Fazia três anos que eu 'tava casado e
doze que eu estava aqui, quando recebi de volta a carta que tinha mandado
para minha mãe. (EMOCIONASE) Foi baque. Foi baque que homem rijo,
engrossado no asp'ro da vida não sustenta. O, meu Deus, essas distâncias de
quem a gente quer bem! (RECOMPÕE-SE) A carta ainda estava
fechadinha, como mandei. A Santa Aparecida ficou com uma tia minha.
Agora eu já não tinha mais porque voltar. De vez em quando ainda choro,
escondido. (WELLINGTON COM UM GESTO APRESENTA A TIRO O
MAÇO DE CARTAS. ENQUANTO VAI SENTAR-SE À MESA ONDE
DEPOSITA A CARTA DA MÃE E O MAÇO DE CARTAS) A vida correu
mais depressa do que eu pude entender. Os filhos cresceram, casaram,
netos, um pouco de artrite, dor nas costas da vida de pedreiro. (PEGA O
PRUMO) Ainda faço alguma coisinha, leio planta melhor que engenheiro e
parede minha é tudo no esquadro. (OLHA A MESA REPLETA DE SEUS
OBJETOS. PEGA O CADERNO E, SUBITAMENTE, SE EMOCIONA)
De vez em quando eu venho aqui e fico olhando essas coisas velhas.
Porque eu guardo tudo isso? Porque não jogo fora? Tudo passou mais
rápido do que eu pude perceber, do que eu pude entender, do que eu pude
apreciar. Qual o sentido de tudo isso? Tem de ter algum sentido! (COBRE
O ROSTO E CHORA)
ABU: Está bom, Cirilo. Acabou. (TIRO CIRILO ERGUE-SE JÁ
SORRIDENTE E ESPREGUIÇA-SE COMO SE
ACORDASSE QUEBRANDO O CLIMA DA CENA)
TIÃO CIRILO: Emocionante, a história do Tião. Eu achei!
WÉLLINGTON: Legalzinha. Faltou um pouco mais de comicidade, de
ficção.
BENECASTA: Lá vem! Lá vem!
WÉLLINGTON: Faltou alegoria, elementos grotescos, ação, lances
absurdos e inesperados...
TIÃO CIRILO: Pra que tudo isso?
WÉLLINGTON: Pro povo apreciar! (PARA O PÚBLICO) História tem
de ter colorido, rendado, bordadura. Tem de ter, sei lá, gigantes, anões,
coisas do avesso, como é do gosto popular, não é?
AMOZ: E gosto popular é só isso?
WÉLLINGTON: Não, mas isso é o agrado da história!
ABU: Vamos seguir, gente?
WÉLLINGTON: Já, já! (AO PÚBLICO) Espiem só: e se o Tião da
história tivesse um segredo guardado?
BENECASTA: Nenhum dos entrevistados tinham nenhum segredo. E, se
tinham, não contaram!
AMOZ: E claro, né, Benecasta, se contassem não seria mais segredo!
BENECASTA: (SARCÁSTICA A AMOZ) Sumidade!
WÉLLINGTON: Mas podiam ter. E se podiam ter, pra mim, é como se
tivessem. E, se pra história é bom que tenham, a gente inventa.
TIRO CIRILO: Estou satisfeito com a saga de Tião.
WÉLLINGTON: (PARA O PÚBLICO) Todo mundo tem um segredo que
não revela. Até o senhor. O senhor tem que eu sei! E não negue nem
desminta! Até eu tenho um segredo. Não é tão escabroso, tão cabeludo
quanto o seu, mas é um segredo. Se eu fosse fazer a história de Tião...
BENECASTA: Toma providência, Abu!
ABU: Chega, Wéllington!
WÉLLINGTON: (IRRITANDO-SE) Só pra concluir, só pra não perder o
fio da meada, do raciocínio, data vénia, pô! Se quiser vá se arrombar na sua
saga porque a do Tião vai continuar do jeitinho que foi feita!
WELLINGTON: Só quis melhorar!
ABU: Chega! (ANUNCIANDO) Segunda saga: João de Galatéa! (COMO
QUEM PERGUNTA) Benecasta?
BENECASTA: (IRRITADÍSSIMA) Eu? Mas nem peada, amordaçada e
debaixo de vara eu faço Maria Milinga!
WÉLLINGTON: (INCONFORMADO, AO PÚBLICO) A gente devia
experimentar, só uma vez, pra ver se ela não faz mesmo!
BENECASTA: (AO PÚBLICO, IRRITADA) E pra não ficar a impressão
que é só má vontade, porque má vontade é mesmo!, eu me explico: nessa
companhia ou faço megera, virago, dragão, mulher feia ou histérica.
Cansei!
AMOZ: Mas faz muito bem, dona Benecasta!
WÉLLINGTON: (PROVOCANDO) Mão e luva.
BENECASTA: Já fiz Bicaberta, a mulher que deu a luz a um gigante de
mais de três metros e cento e treze quilos e duzentos gramas! A senhora já
imaginou? E tudo isso junto com uma carroça cheio de alho poró, mantas
de bacalhau e carne seca. E com o carroceiro! Já fiz a Nelly, um virago que
espancava o marido, lepe. Esse personagem até que eu gostei! Homem tem
de levar três surras por dia pra ficar manso! E sabem o que querem que eu
faça agora? Uma velha caquética de noventa anos! E grávida!
WÉLLINGTON: Pronto! Já quebrou a surpresa.
BENECASTA: Tudo invenção dessa mente doentia!
WÉLLINGTON: É uma saga mítica, gente! Alegórica, inventada a partir
da mais fiel tradição popular.
ABU: Tudo bem, mas vamos logo que o público não pode esperar. (PARA
BENECASTA) Você não vai fazer mesmo? (BENECASTA BALANÇA A
CABEÇA NEGATIVA E DEFINITIVAMENTE) Então... (OS OLHARES
SE DIRIGEM PARA AMOZ E TIÃO CIRILO. OS DOIS SE
ENTREOLHAM ESPANTADOS E OLHAM OS OUTROS) Não tem jeito.
(OS DOIS CONFORMADOS TIRAM A SORTE NO PAR OU

Você também pode gostar