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COPYRIGHT © 2018 MIRANDA HONFLEUR


COPYRIGHT © 2022 EDITORA CABANA VERMELHA
TÍTULO ORIGINAL: NO MAN CAN TAME
Todos os direitos reservados.
 
 
Diretora Editorial
Elaine Cardoso
 
Editora
Mari Vieira
 
Tradução
Elaine Lima
 
Preparação
Lethicia Campopiano
 
Revisão
Sara Lima
 
Capa
Mirela Barbu
 
Adaptação Texto Capa
Elaine Cardoso
 
Diagramação Digital
Elaine Cardoso
 
 
 
 
Esta obra foi revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa. É proibida a reprodução total e parcial desta
obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico,
inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo o uso da
internet, sem permissão expressa do autor (Lei 9.610 de
19/02/1998).
 
Sumário
 
Sinopse
Outros livros da Série
Dedicatória
Agradecimentos da Autora
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 29
Epílogo
Nota da autora
LUAR RESPLANDECENTE
Prólogo
Capítulo Um
Sobre a autora
Sinopse
 

Uma princesa humana. Um príncipe elfo sombrio. Um beijo de fogo


e pólvora.
 
Depois de uma tentativa fracassada de cortejar o rei de um reino
aliado, a princesa Alessandra, de 21 anos, retorna para casa para
uma terra dilacerada pelo ódio mútuo entre os humanos e os elfos
sombrios. A "Princesa Bestial", como Aless é conhecida pelos
cortesãos, com toda sua confiança, começa a pensar em maneiras
de conseguir com que os dois povos façam as pazes, mas seu pai já
decidiu por ela: Aless deve se casar com um dos misteriosos e
monstruosos elfos sombrios para forjar um tratado e seguir em um
Cortejo Real por todo o reino para exibir sua união harmoniosa.
Mesmo que pretendendo preservar a paz, a Princesa Bestial tinha
seus próprios planos.
O príncipe Veron foi criado sabendo que sua vida não é sua, mas
para ser barganhada por sua mãe, a rainha de Nozva Rozkveta,
para fortalecer o reino dos elfos sombrios. Quando sua mãe lhe diz
que ele deve se casar com uma humana vil e egocêntrica, ele fica
determinado a cumprir seu dever, independente de seus
sentimentos pessoais. Após chegar à capital humana, ele encontra
a "Princesa Bestial", rebelde e indomável, e uma pessoa em quem
ele não devia confiar. Aless e Veron enfrentam adversários a cada
momento, com humanos e elfos sombrios se opondo à união
violentamente, bem como os sentimentos conflitantes que possuem
um pelo outro.
 
Podem duas pessoas de culturas que se desprezam se apaixonar?
Pode um casamento entre eles unir dois mundos opostos, ou esse
ódio irá separá-los para sempre?
 
Viaje para um mundo medieval de magia e imortais, bailes de
máscaras e jogos, amor e sangue, e uma história tão antiga quanto
o tempo...
 
 
 
 

Outros livros da Série


 
 
Série Elfos Sombrios do Bosque Noturno
 
A princesa e o elfo sombrio
Luar resplandecente
A brasa na escuridão
Coroa em cinzas
Dedicatória
 

Este livro é dedicado a:

Shelby Palmer, Mary Nguyen, Erin Montgomery Miller, Lela


Grayce, Emily Allen West, Katherine Bennet, Ryan Muree, Emerald
Dodge, Shannon Childress, Susanne Huxhorn, Jennifer An, Anthony
S. Holabird, Wanda Wozniczka, Nicole Page, Spring Runyon, Judith
Cohen, Eugenia Kollia, Judy Harding, Lisa Woo, Sarah Keffer, Dana
Jackson Lange, Jennifer Moriarity, Tricia Wright,  Scarolet Ellis, Alicia
Moten, Jackie Tansky, Tanya Wheeler, Roger Fauble, Shauna
Joesten, Maggie Borges, Donna Swenson, Seraphia Sparks, Marilyn
Smith, Pamela Kitson, Mary Maceluch, Fiona Andrew, Lindsay
McKenna, Chao Mwachofi, Belinda Hoy, Karen Borges, Kathy
Brown, e a todas as outras pessoas que me apoiaram e divulgaram
os meus livros desde o início. Eu não conseguiria fazer isso sem
vocês e sua colaboração significa tudo para mim.
Agradecimentos da Autora

Muito obrigada por ler A princesa e o elfo sombrio! Eu


realmente agradeço. Por causa do seu apoio, posso continuar
escrevendo, o que significa mais histórias para você e, para mim, a
possibilidade de continuar nesta carreira.
Você sabia que muitas vezes autores e editores decidem se
devem continuar ou cancelar uma série com base em quantas
unidades está vendendo? Isso pode significar terminar uma série de
cinco livros no livro três. A pirataria afeta tanto autores quanto
leitores. Também é um ato ilegal, mesmo quando é distribuída sem
ganho monetário, e pode resultar em pena de detenção, de 3 (três)
meses a 1 (um) ano, ou multa.
Se quiser que seus autores favoritos continuem escrevendo as
histórias que você ama, você pode ajudar adquirindo seus livros de
um revendedor autorizado, da própria editora ou do autor, e não de
um site de download ilegal. Para conferir onde você pode obter uma
cópia impressa ou e-book deste livro em inglês legalmente, visite
meu site: http://www.mirandahonfleur.com/book/no-man-can-tame/.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para minha mãe,
Por ser minha maior fã.
Capítulo 1

O corvo lançou um olhar lascivo para Aless por trás de seu longo
bico preto enquanto ela girava, os olhos dele tão intensos que
queimavam.
Um borrão de corpos cobertos em sedas e brocados em vários
tons de pedras preciosas rodopiava ao redor dela e de sua irmã,
Bianca, em um compasso ternário. Corvos, gatos, ursos, pavões,
lobos... O reino animal estava reunido sob tetos arqueados e
marquises para atender ao chamado de seu rei...
Ou talvez para ter um vislumbre de sua filha infame que havia
retornado de sua caçada pelo mundo.
Ela estava feliz por estar em casa de novo. Isso lhe daria outra
oportunidade de confrontar Papà sobre finalmente construir a
biblioteca pública que Mamma sempre quis. Ele mal falara com a
filha desde que ela chegara.
Naquela noite, ela usava uma máscara de leão com uma juba
cheia e volumosa, e uma pintura grotesca na frente. Se todos a
encarariam de qualquer maneira, o mínimo que ela podia fazer era
dar um bom motivo. Além disso, se ela conseguisse chamar a
atenção de Papà, seja de um jeito bom ou ruim, talvez ele a
arrastasse para vê-lo e ela finalmente conseguisse falar sobre a
biblioteca.
Signore Corvo se recostou em um pilar e ergueu o queixo,
olhando para ela através da máscara. Ah, ele a observara a noite
toda com aqueles olhos escuros e famintos. E não da mesma
maneira perplexa e boquiaberta que a maioria da nobiltà a
encarava. Ele queria algo... e considerando que sem dúvida não
pertencia à realeza, ele não era um homem que Papà aprovaria.
O que tornava ainda mais tentador dar ao signore Corvo o que
ele parecia querer tanto.
O signore Gato ao lado dele não era diferente, cobiçando
Bianca como se ela fosse um canário gordo e distraído. Bianca não
havia sido enviada como oferenda pelo mundo por Papà, então ela
sem dúvida saberia quem eram aqueles cortesãos.
— Não olhe agora — sussurrou Aless por trás de sua máscara
de leão. — Mas o gato e o corvo perderam a língua.
Bianca riu e se virou, os pés com sapatilhas soando no piso de
taco ao ritmo da música da harpa, da flauta, dos tambores e das
rabecas, em meio a um coro de risadas ensaiadas e tons efusivos
de conversas. Todos os salões de baile do palazzo estavam
deslumbrantes, mas este lugar, a Sala di Forza, era uma
homenagem a um dos maiores heróis da fé Terran, Forza, filho de
Nox e uma mulher mortal, um semideus de grande força. O salão
decorado com pinturas de suas façanhas, grandes caçadas e
batalhas celebrando força, guerra e virilidade, era o favorito de
Papà.
Era sufocante.
Com Papà, tudo sempre se tratava de força, guerra e
virilidade. Lorenzo era um mestre espadachim e podia acertar um
alvo a quase trinta metros de distância com suas facas de
arremesso, então Papà sempre o favorecia, não importava seus
defeitos. E já que Papà não permitia que ela aprendesse nenhuma
das artes marciais – e por ela amar os livros assim como Mamma –,
não havia como vencer essa disputa.
Sua única opção era perder. Só que perder de forma tão
ousada e notória que Papà não poderia ignorá-la. Mas
independentemente do espetáculo e da fofoca, ela sempre podia
contar que Bianca ficaria do seu lado. Uma irmã leal e uma amiga
de confiança.
Bianca ajustou sua elaborada máscara de gato malhado e
prendeu uma mecha de cabelo brilhante cor de ônix atrás da orelha.
— Os irmãos Belmonte.
Ah, então o corvo e o gato eram ninguém menos que Luciano
e Tarquin Belmonte. A reputação deles os precedia. Ainda mais a de
Luciano – Bianca não parava de falar dele há meses. Mas ela era
assim – não, a família era assim. Quando uma Ermacora colocava
algo na cabeça, não tinha como ser convencida do contrário, e
coitado daquele que fosse tolo o suficiente para ficar em seu
caminho.
E Bianca com certeza tinha se decidido quanto a Luciano.
O mais alto dos dois, signore Corvo, tinha que ser Tarquin, o
irmão mais novo e general da Companhia Belmonte de mercenários;
o mais velho dos dois, signore Gato, era Luciano e, após a morte do
pai, o atual visconde de Roccalano.
Homens de moral fluida, fisicamente aptos, que eram bons
dançarinos e, se os rumores fossem verdadeiros, amantes
habilidosos, mas não possuíam o sangue e a obrigação moral da
realeza.
Aless guiou Bianca para fora da pista de dança até a mesa de
cavalete mais próxima, amontoada com tortas de marzipã e de
creme e frutas coloridas. Ela estourou uma uva em sua boca e
manteve um cálice estendido até que o som de vinho sendo servido
cessou. Depois de um gole de espumante, ela entregou o cálice a
Bianca, o tempo todo mantendo o olhar fixo nos irmãos Belmonte.
— Talvez Luciano finalmente se torne seu mais novo
entretenimento? — perguntou a Bianca, que escondeu o rosto atrás
do cálice de vinho. — Não que eu esteja reclamando — sussurrou,
avaliando Tarquin bem devagar. — Mas o que eles estão fazendo
em Bellanzole?
Bianca se inclinou para perto dela.
— A Companhia Belmonte está lidando com os nossos...
problemas com os Immortali. O exército não tinha a habilidade para
se livrar do ninho de harpias nos penhascos, mas desde que
Arabella Belmonte, irmã deles, desapareceu há alguns meses,
Luciano as vem estudando e Tarquin, lidando com elas. Se tornaram
especialistas nos Immortali, então Papà contratou a empresa deles.
A Ruptura tinha rasgado o Véu há alguns meses e os Immortali
acabaram reentrando no mundo como se tivessem escapado das
páginas dos mitos e das lendas. Em Silen, alguns eram pacíficos,
como os elfos de luz, os elfos sombrios e os feéricos, já outros eram
monstros que matavam sem piedade, como as harpias, as serpes,
os basiliscos e muito mais. Papà tinha designado muitas de suas
tropas para combater os piratas que assolavam as costas e suas
rotas comerciais, e com isso as reservas ficaram escassas para
lutar contra inimigos que ninguém entendia – exceto os irmãos
Belmonte, pelo visto.
— Ore por mim, Aless. — Bianca agarrou o cálice com firmeza.
— Pois acho que o amo. Acho que quero... me casar com ele.
Casar-se com ele? Falando coisas assim, seria Bianca quem
conseguiria a atenção de Papà, querendo ou não. Para qualquer
mulher da linhagem real Ermacora, Luciano era fruto proibido
quando se tratava de casamento. Ainda assim, em todos os
devaneios desejosos que contava, Bianca parecia estar sempre em
meio a um pomar de frutos proibidos, com uma escada alta o
suficiente para alcançar qualquer coisa que quisesse.
— Eu sei que seu coração já decidiu por ele — respondeu ela
—, mas talvez você possa... ajustar um pouco suas expectativas.
Bianca tomou um gole de vinho, depois virou o cálice e o
drenou de vez. Coragem líquida? Ela olhou por cima do ombro para
os irmãos Belmonte.
— Já tenho 23 anos — insistiu Bianca. — E não tenho outros
pretendentes, então talvez Luciano possa ser uma boa opção? Papà
pode estar empenhado em te enviar para todos os solteiros da
realeza elegíveis na região, mas não a mim.
— Três. Três solteiros da realeza no ano passado...
— Só no último ano. — Bianca ergueu o queixo. — E esses
três são todos os solteiros da realeza elegíveis que existem. Todos
os outros já estão casados ou noivos. — Ela franziu a testa, seus
olhos revirando para cima e para o lado. — Ou ainda são crianças.
— Papà só tem interesse em me enviar nessas viagens porque
quer se livrar de mim. Ao contrário de sua filha favorita. — Desde
que Aless atingiu a idade para se casar, Papà a mandara para
talvez... uma ou duas dezenas de solteiros da realeza. Embora
naquele ano ele só a havia enviado para dois príncipes e um rei.
Talvez fosse um sinal de que estava desistindo e que enfim a
deixaria em paz com seus livros.
Bianca pousou o cálice.
— É só porque ele acha você muito intrometida. Quando você
decide que algo deve ser de um jeito, não desiste. Isso pode fazer
com que você seja... difícil de lidar. Essa sua ideia de biblioteca
pública tem sido uma pedra no sapato dele.
Ela se endireitou. Mamma passara a vida ensinando os
paesani a ler, e quando morreu, tudo isso parou. Por quase uma
década, Papà não tinha apenas interrompido os planos de Mamma
para construir uma biblioteca pública, um centro de aprendizado
para todos, mas evitava aquilo intencionalmente. Seria mesmo
intromissão querer dedicar sua vida a ver a biblioteca construída,
querer ensinar toda e qualquer pessoa que quisesse aprender,
como Mamma desejava? Ela bufou.
— Quero fazer mais do que ser forçada para pretendentes da
realeza — declarou. — É tão errado assim sonhar com algo mais?
Suspirando, Bianca balançou a cabeça antes de responder:
— Difícil. Sua coluna pode estar curada agora, mas você ainda
é a princesa Bestial. — Com um último dar de ombros, ela voltou
para a pista de dança.
O calor se espalhou pela pele de Aless, subindo por cada
centímetro até tudo queimar. Princesa Bestial? Fazia algum tempo
desde que alguém a chamava assim – pelo menos, não na sua
frente.
Tentando ignorar as batidas aceleradas do coração que
martelavam em seu ouvido, Aless jogou outra uva na boca e se
apressou em direção à porta. Murmúrios a seguiram, mas ela não
se importou. Esta era apenas uma festa idiota e seu tempo seria
melhor empregado estudando os Immortali em seus livros.
Seu peito colidiu com alguém – uma mulher com uma máscara
de coelho, que fez uma reverência breve.
— Perdão — deixou escapar Aless, inclinando a cabeça. Um
círculo havia se formado ao redor delas, sem dúvida esperando por
mais motivos para fofocas. Mas ela não tinha sido a princesa Bestial
por toda a sua vida sem aprender a domar seu temperamento pelo
menos um pouco. Mas talvez isso fosse o que ela precisava para
conseguir uma reunião com Papà.
A mulher vestida de coelho não respondeu, mas olhou para a
comida.
Estranho. No entanto, Aless pigarreou e gesticulou na direção
da mesa de cavalete.
— Por favor, fique à vontade. Prometo que não mordo —
brincou Aless com um sorriso, mostrando os dentes e tocando sua
máscara de leão. Bem, pelo menos não morderia ninguém que não
a mordesse primeiro.
A mulher fez outra reverência. Um homem com uma máscara
de raposa se aproximou, envolvendo um braço em volta da cintura
da mulher coelho.
— Ah, Vossa Alteza, perdoe minha querida noiva, Saverina.
Ela fez o Voto de Silêncio.
Um juramento de não falar até o casamento. Muitos pais em
Silen exigiam isso de suas filhas para casamentos arranjados entre
os nobiltà, sendo tanto uma demonstração de devoção quanto uma
maneira de garantir que as línguas soltas não gerassem deslizes
infelizes.
— Que tradição desastrosa da parte de vocês.
O homem raposa soltou um risinho.
— Só podemos esperar que a tradição continue após o
casamento!
Aless forçou uma risada.
— Que absolutamente draconiano da sua parte — disse ela
com a maior doçura possível, enquanto o homem assentia de forma
efusiva.
— Sem dúvida! Muito amável. Com a sua permissão, princesa
— disse ele, fazendo uma reverência antes de levar para longe sua
noiva silenciada pelo voto.
A maioria dos paesani não sabiam ler, mas a única desculpa
dos nobiltà era a ignorância intencional. Mas aqui o conhecimento
não era mais tão valorizado como fora antes. Papà, e tudo o que ele
defendia, era prova disso. Suspirando, ela olhou para seu domínio
opulento.
Os convidados mascarados vestidos no ápice da moda de alta-
costura de Bellanzole se misturavam e dançavam. Os nobiltà e os
nuovi ricchi idealizaram essa aventura, enfeitando-se uns para os
outros como de costume, sua moda eclética e diversificada – dentro
de uma variação permitida, é claro.
Exceto pelo signore Corvo, Tarquin Belmonte. Não, ele deixara
a tal variação permitida de lado e sua intenção era impressionar.
Chegar vestido de morte era se opor a tudo aquilo. Em sua máscara
de corvo, calças e gibão de brocado pretos, e uma capa de luto feita
de penas, ele preenchia bem os requisitos da alta-costura. Além
disso, precisava ter muita audácia para ir a um baile de máscaras no
Palazzo dell’Ermacora vestido com trajes fúnebres. Tanta audácia
quanto a de uma princesa com uma máscara de leão grotesca.
Ela sorriu. Um homem de fibra. Bom. Pelo menos um cortesão
que não corria em desespero para se curvar e se arrastar diante de
Papà.
Bianca tinha encontrado algo para fazer em vez de discutir.
Havia algo de sábio nisso. Ela faria qualquer coisa para conseguir
aquela reunião com Papà.
Com os olhos fixos nos dele através de sua máscara de leão,
ela se virou, ajeitando a ampla juba de sua fantasia atrás dela, e
deslizou pela multidão com facilidade, misturando-se, afastando
cortesãos ansiosos enquanto saía da Sala di Forza e seguia em
direção à varanda.
Ele a seguiria, é claro. Era o momento perfeito para vir até ela.
Ela trocou as brilhantes sedas coloridas e as pinturas das muitas
vitórias míticas de Forza pelos diamantes distantes que pontilhavam
o céu de veludo preto.
Agarrando a balaustrada de pedra, ela fechou os olhos e
respirou fundo três vezes. O aroma suave e fresco de rosas a
abraçou, a cercou, como tinha feito inúmeras vezes em seus sonhos
e fantasias. O mesmo pátio tomado de rosas em plena floração se
espalhava diante dela, misterioso e adorável, exalando o perfume
mais fascinante no ar mais límpido e puro. Ela estendeu um dedo e
quase podia sentir as pétalas aveludadas e macias...
— Então, a cova do leão é a varanda?
Ao lado dela estava uma bela visão vestida em penas negras,
com quase 1,80 m de altura e um corpo de um gladiador. Tarquin
Belmonte. Ela piscou e aquele perfume encantador desapareceu.
Ela deu uma olhada tímida nele.
— Você não tem uma carcaça em algum lugar para bicar?
Ele soltou um meio riso.
— Eu tenho uma caça melhor em vista.
Suprimindo um sorriso, ela balançou a cabeça.
— Ousado como um corvo.
Ele também apoiou a mão na balaustrada de pedra, sua pele
quente mal tocando a dela.
— Nada menos do que ousadia pode ser esperado para se
conquistar uma princesa.
— Foi por isso que veio aqui? — Ninguém lidava melhor com
ousadia que a princesa Bestial. Ela se virou para ele, cobrindo a
mão dele com a dela, e ergueu a outra para sua máscara de corvo.
— Para me “conquistar”?
Ele não se afastou, então ela tirou a máscara dele.
Olhos castanhos da cor de cornalina brilharam com a luz das
estrelas, sob pestanas e cabelos pretos com um corte rente; os
traços do áspero maxilar eram fortes, e os cantos de sua boca se
curvaram para cima maliciosamente, como se ele soubesse de algo
que ela não sabia.
Ela não esperava encontrar um rosto bonito para combinar
com o físico alto e musculoso. Entretanto, ela não via Tarquin
Belmonte há anos, desde antes de ele assumir a companhia
mercenária de seu pai e trilhar seu caminho na hierarquia. E nossa,
como ele cresceu.
— Princesa Alessandra — disse ele em sotto voce seu
sotaque Roccalano melodioso. — Eu vim para qualquer coisa que
você deseje de mim.
Ela deveria ter rido, mas o riso não veio. Não com ele. Não
com essas palavras audaciosas.
O olhar dele a percorreu várias vezes.
— Sei que é um baile de máscaras, mas por que um leão? E
um leão macho grotesco, ainda por cima?
Ela sorriu, procurando em sua mente por palavras
emprestadas.
— Se eu contasse, revelaria a resposta de uma maneira nada
excitante.
Ele arqueou uma sobrancelha. Aless deixou que ele
trabalhasse um pouco.
Notas animadas de harpa soaram de dentro do salão, tocando
uma quessanade corrente.
— Então devemos começar a revelação com uma dança? —
Ele ofereceu sua mão. Ela a pegou e recolocou a máscara na
cabeça dele, depois ele passou o braço dela em volta do seu e a
reconduziu ao esplendor da Sala di Forza.
Do outro lado do salão, Bianca dançava com Luciano, as
máscaras de gato dos dois combinando. Até que o mensageiro
esbelto de Papà, Álvaro, se aproximou. Ele fez uma reverência e
falou com Bianca, que sorriu, assentiu e prontamente se despediu
de Luciano, antes de deslizar para o corredor.
Apenas uma coisa poderia arrastar Bianca para longe de seu
fruto proibido.
E agora Álvaro, o seu rosto jovem carregado com traços
severos, dirigiu-se a ela. Fez uma reverência.
— Vossa Alteza, princesa Alessandra, Sua Majestade requer
vossa presença.
— É mesmo? — Ela conteve um sorriso. Sucesso...
finalmente. Ela deu a Tarquin um encolher de ombros,
decepcionado. A revelação deles teria que esperar.
— Devem ser os Immortali de novo — disse Tarquin, num tom
sombrio. — Uma corrupção que tem que ser erradicada deste reino.
Corrupção? Ele provavelmente queria dizer os monstros entre
os Immortali, certo? As harpias, os basiliscos, as serpes – não o
povo Immortali pacífico.
Ela franziu a testa, mas um fogo tão intenso ardeu nos olhos
de Tarquin que queimou a pergunta para longe dos lábios dela.
— Vossa Alteza — incitou Álvaro.
Como se ela fosse recusar o encontro tão esperado com Papà.
Bufou.
Com um movimento perfeito, Tarquin inclinou a cabeça para
ela, que retribuiu, antes de se virar para sair. O que Tarquin não
sabia era que Papà jamais requisitaria sua presença para pedir a
opinião dela sobre algum assunto importante, como os conflitos com
os Immortali. Não, quando se tratava do que realmente importava,
Papà preferia que fosse como uma cortesã mascarada de coelho
sob um Voto de Silêncio.
Aquilo se tratava apenas de um sermão, nada mais, mas
usaria o encontro a seu favor.
Enquanto seguia Álvaro pelo corredor mal iluminado, Bianca
ofereceu para ela um pequeno sorriso. Um sorriso piedoso.
Então ela presumiu... Bianca tinha assumido o mesmo que
todos pensariam.
Papà tinha somente um uso para sua princesa Bestial.
Aless balançou a cabeça e engoliu. Mal tinha pisado em
casa... Papà não a mandaria embora para ser cortejada de novo.
Não tão rápido.
Mandaria?
 
Aless olhou para Papà, sentado em seu trono sob o teto alto
abobadado. Ele tinha deixado o baile logo após ela chegar, porque
deve ter ficado muito satisfeito, sem dúvida. Porém, parecia o
epítome da realeza, com suas vestes de um brocado de seda violeta
caro e usando a coroa de joias em seu cabelo preto como carvão
com mechas cinzentas. Guardas reais em mantos roxos rodeavam o
aposento, em formação perfeita, imóveis e intimidantes.
Naquela sala do trono, poderia lembrá-los exatamente qual era
o lugar deles – muito, muito abaixo – e quem ele era: o rei.
No entanto, pela primeira vez, chegou de fato a detalhar a
terrível condição do reino para ela e Bianca.
Papà acariciou sua barba curta.
— Aquele canalha do Sincuore e os piratas desgraçados dele
devastaram nossa marinha. Nossos recursos devem ser
reposicionados para reabastecê-la, o que significa que precisamos
de proteção e paz aqui na região central do reino.
Enquanto a costa precisava ser defendida, a região central
estava repleta de bestas imortais atacando os paesani, bem como
havia desordem entre os humanos e os Immortali.
— Os irmãos Belmonte vieram aqui na expectativa de arranjar
pretendentes em troca dos seus serviços mercenários — continuou
Papà. — Mas só posso conceder uma filha para a família Belmonte,
e ela irá se casar com Luciano.
Bianca sorriu para ela. Conseguiria o seu Signore Gato, afinal.
O pomar de seus sonhos estava se tornando realidade, e nunca
havia sido tão maravilhoso ter se enganado. Aless conteve um
sorriso interior.
Mas por que Papà tinha convocado as duas?
— Também faremos um acordo de paz com o Bosque Noturno.
— Ele se reclinou em seu trono.
Os elfos sombrios? Papà pararia com aquele seu ódio, afinal...
No entanto, dissera que tinha apenas uma filha para conceder
à família Belmonte. Isso significava...
Acordo de paz através do casamento.
Com os elfos sombrios.
O sangue dela congelou.
Ele está me oferecendo ao Bosque Noturno?
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, queria que ela se casasse
com um deles? Eles tinham garras e presas, viviam em cavernas
subterrâneas onde nem uma única rosa florescia. Não haveria
sequer um indício dos lindos jardins de Mamma lá. Eles comiam
lagartos e líquens, tinham íris amarelas assustadoras, cabelos
brancos fantasmagóricos e pele azul como a de uma cobra. A pele
dela se arrepiou.
Ela desviou o olhar para o lado, para a enorme tapeçaria com
a imagem de Forza matando a hidra. Aquele monstro mítico era tão
atraente para ela quanto um elfo sombrio macho. Ela não os odiava,
mas com certeza não queria se casar com um deles, beijar um
deles, dividir um leito matrimonial...
Aless se conteve para não vomitar. Aquelas garras em seu
corpo, uma boca com presas beijando a dela...
Um tremor sacudiu seus ossos. A paz era um objetivo
louvável, mas Papà não podia esperar que ela... se casasse com
um deles.
Ela não queria fazer isso. Nunca faria algo assim. Tinha que
haver uma maneira de consertar isso.
— Bianca, você se casará com o príncipe Veron, do Bosque
Noturno — declarou Papà, o olhar de Bianca se voltando
rapidamente para ele. — E, Alessandra, você vai se casar com
Luciano. Estamos lutando contra serpes, harpias, basiliscos e todos
os tipos de bestas, não podemos nos dar ao luxo de também
enfrentar os elfos sombrios. As tropas deles podem nos ajudar a
acabar com as bestas Immortali na região central do reino, aliviar o
fardo do nosso exército. Teremos uma cerimônia de casamento
aqui, para Bianca e príncipe Veron, depois outra, no Bosque
Noturno, e a paz será selada. Enquanto isso, você vai se casar com
Luciano, Alessandra.
Aless piscou com os olhos ainda arregalados e engoliu o nó
em sua garganta.
O sorriso de Bianca desapareceu como sementes de um
dente-de-leão soprados ao vento. Sua pele morena ficou pálida e o
brilho de seus olhos verde-azulados, como ágatas, sumiu.
Não, estava tudo errado. Tudo.
— Papà. — Aless balançou a cabeça. Tinha que haver outra
maneira. Tinha que achar uma saída. — Será que não há outra
maneira de assegurar a aliança, sem que seja pelo matrimônio?
Qualquer outra possibilidade?
Os olhos de Papà se estreitaram e ele entrelaçou os dedos.
— O sangue é a única maneira de uma aliança como esta ser
mantida. Um vínculo de sangue compartilhado.
Sangue compartilhado? Só podia estar se referindo a filhos.
Ela franziu a testa.
— Como um casamento entre um mortal e um imortal pode dar
certo? As espécies conseguem se reproduzir? É possível gerar
filhos? — Ela nunca havia lido tal coisa.
— Muito possível, tenho certeza — respondeu Papà, com
naturalidade, seu rosto uma máscara severa. — E os anciãos são
tratados com respeito na sociedade deles. A diferença de idade
seria tratada de maneira adequada.
A diferença de idade. Que maneira estranha de frasear a
rapidez com que Bianca envelheceria, enquanto seu suposto marido
permaneceria jovem, observando-a murchar. Provavelmente
ansioso para se casar de novo, com um de sua própria espécie –
contando os dias para isso.
Aquela era a demonstração de amor de Papà por sua filha
favorita? Enviar Bianca para alguém que aguardaria ansioso por sua
morte, para um lugar onde definharia sem amor ou qualquer coisa
que lhe trouxesse alegria, apenas para servir como reprodutora para
a preciosa aliança dele?
Uma dor se formou atrás de seus olhos e ela esfregou suas
palmas suadas no vestido de tule.
— Como você pode fazer isso, Papà? Tenho certeza de que
sabe como Bianca se sente em relação a Luciano. — Ela passou
um braço pelos ombros trêmulos de Bianca.
— Isso é o melhor para você — respondeu, após respirar
fundo.
— Eu sei o que é melhor para mim. — Ela o encarou. — Me
recuso a casar com Luciano. Você deve liberar Bianca desse...
desse pesadelo de noivado.
Papà apoiou a testa na mão.
— Alessandra, este casamento vai acontecer com ou sem
você. Você pode se casar pessoalmente ou in absentia, mas vai se
casar, e Luciano vai levá-la para Roccalano, com ou sem o seu
consentimento. Você vai fazer isso ou será inútil para este reino.
Inútil. Ele já tinha a chamado assim antes, há muito tempo,
embora ela tivesse certeza de que não sabia que ela estava
ouvindo. Quando ela tinha 8 anos, Mamma estava lamentando
sobre os últimos dispositivos de tortura do médico.
Devemos fazê-la passar por tanto sofrimento? Esse tratamento
deve ser uma agonia, Mamma dissera. E, sim, aquele corretor
postural tinha sido insuportável, rígido demais, apertado demais, a
dor era tanta que a levava às lágrimas.
Devemos, Papà havia respondido, severo. A menos que a
coluna dela esteja curada, será inútil neste mundo.
No corredor do lado de fora do solar, ela cobrira a boca, tinha
escondido as lágrimas e havia sufocado seus soluços. Mesmo aos 8
anos, ela decidira aprender tudo o que podia sobre governar um
reino, mesmo que tivesse que fazer aquilo sozinha. E havia decidido
nunca ser inútil, não importava o que Papà pensasse dela.
Porém, aqui estava ela. Encurralada no único propósito que
ele tinha para a vida dela.
Ou assim ele pensava. Aless recusou-se a desviar o olhar
dele. Ele não arruinaria a vida de Bianca, não enquanto ela tivesse
uma irmã com talento para criar um mar de problemas.
Bianca chorou em seu ombro e Aless esfregou suas costas
suavemente.
— E Bianca? — perguntou. — Está claro que ela não quer se
casar com esse tal elfo sombrio. Você fará com que ela seja
arrastada para... a caverna deles?
— Se isso for o necessário. — Ele observou Bianca, a boca
dela curvada para baixo, e seu olhar se suavizou. — Mas Bianca
sempre entendeu o fardo da realeza. Tenho fé que ela não me
decepcionará.
Que homem de honra, este príncipe! Ele arrastaria Bianca,
chutando e gritando, para o seu buraco no chão?
— Que homem com tanta moral e bondade você escolheu
para ela.
— Ele é — respondeu Papà, impassível. — Ele está reparando
a ruptura entre o nosso povo. É um exemplo entre sua espécie.
— Talvez você devesse se casar com ele, então.
— Ele e seu povo foram impiedosamente atacados por
humanos por meses, e ele seguiu ordens para não se envolver, não
revidar. Ele tem uma força de vontade de ferro e uma disposição
para a diplomacia.
Os humanos atacaram ele e o seu povo por meses, e ele
seguiu ordens para não revidar?
— Então, antes mesmo de conhecer Bianca, já vai odiá-la
porque ela é humana.
Maravilha. Melhor ainda.
Bianca esfregou o antebraço em seus olhos e pousou uma
mão no braço dela.
— Aless... Está tudo bem. Eu... farei o que Papà quer. — Ela
fungou. — E você não está sempre dizendo o quanto queria fazer
algo importante para o nosso reino? Luciano é... um homem
influente, e eu... tenho certeza de que vocês encontrarão um jeito de
trabalhar juntos. Essa é a sua chance.
Bianca estava apaixonada por Luciano e Papà tinha acabado
de anunciar seu noivado com um elfo sombrio! Como podia ficar ali
parada, dizendo que tudo estava bem? Bianca esperara por um
casamento desde seu décimo sexto aniversário, ela tinha 23 anos
agora, e tinha finalmente se apaixonado por um homem, mas seria
forçada a casar com um... elfo sombrio? Como podia apenas aceitar
isso?
Se fosse eu, lutaria com unhas e dentes. Encontraria uma
maneira de fazer com que esse elfo sombrio me libertasse, mesmo
que ninguém me ajudasse. Faria isso sozinha.
Se fosse ela...
Se.
Bianca ofereceu a ela um sorriso triste e um aceno quando se
virou para Papà, mas Aless agarrou seu braço.
Com o coração martelando em seus ouvidos, encontrou o
olhar de Bianca. Ela não se casaria com o amor da irmã. Não
deixaria que Bianca vivesse uma vida miserável. Poderia acertar as
coisas. Ela...
Bianca respirou fundo e balançou a cabeça. Não importava.
Ela não precisava da permissão de Bianca.
— Papà — chamou Aless, erguendo suas saias de tule
enquanto os saltos faziam barulho, indo até o primeiro degrau do
palanque onde ficava o trono. — Me ofereça no lugar dela. Eu me
caso com o príncipe Veron.
Atrás dela, Bianca arfou.
— Aless, você não pode! Você não sabe o que está...
— Não, sei sim o que estou fazendo. — Ela observou o rosto
de Papà, procurando por qualquer sinal de que concordava, mas ele
não deixou transparecer nada. — Por favor, deixe Bianca se casar
com Luciano e prometo que me casarei com o príncipe Veron.
Papà soltou um suspiro longo e sofrido.
— Posso confiar em Bianca para cumprir seu dever. Já você,
não. Luciano já sabe disso a essa altura. — A reputação dela, é
claro, também a precedia. — Mas príncipe Veron não é um Sileni.
Ele não entenderá a sua... personalidade, e este reino precisa de
um tratado de paz com o povo do Bosque Noturno para ter êxito.
Papà estava certo, Bianca cumpriria o dever. Mas, ao fazer
isso, destruiria a própria vida por completo.
— Não faz sentido que Bianca e eu sejamos infelizes —
devolveu, balançando a cabeça com veemência. — Deixe-me tomar
o lugar dela. Vou me casar com o príncipe Veron.
Papà descansou o queixo no punho.
— Alessandra, você sabe que a amo. Mas, para sermos
honestos, você é teimosa, tem pavio curto e uma língua ferina e é
presunçosa. Você é tudo que um homem não quer em uma esposa.
Você tenta contratar moleques de rua para fazer serviço em sua
casa, doa suas moedas para rebeliões de plebeus, encontra todas
as oportunidades para mostrar aos nobiltà que “discorda” deles...
Ela estava com uma objeção na ponta da língua, mas ele tinha
citado a sua língua ferina.
Suspirou. Sim, tinha feito todas aquelas coisas. Não era como
se ele tivesse razões para esperar que obedecesse em silêncio.
Silêncio...
Talvez houvesse uma maneira de persuadi-lo, uma tradição
antiga entre os Terrans mais devotos, algo que os sacerdotes e
paladinos da Ordem da Terra ainda faziam, projetado para criar
circunstâncias para introspecção e autorreflexão. Mesmo que
apenas no nome...
— Não direi uma palavra a ele. Farei um Voto de Silêncio e
não vou dizer nada a ele até o casamento.
Seria um voto. E ela não diria nada para ele. Aquela não era
bem a velha tradição, mas esperava que Papà não fizesse muitas
perguntas.
Um sorriso repuxou os cantos dos lábios de Papà. O que o
divertia mais? Ela mantendo a paz agora, casando-se com um dos
Immortali, ou prometendo manter a boca fechada?
Talvez fosse tudo.
— Esta é uma escolha fácil. Faça Bianca feliz — pediu,
apertando a mão de Bianca — e ainda se livre de mim. Tudo de uma
só vez.
Papà suspirou mais uma vez, com ombros pesados, sem
dúvida sustentando o peso de duas décadas dela o decepcionando.
— Não estou tentando “me livrar” de você.
Ela deu de ombros. Ele podia usar os termos que quisesse
para aquilo. Tinha decidido que estava farto dela e que, por isso,
precisaria sacrificar Bianca. Todos sabiam que essa era a verdade,
por mais difícil que fosse, não importava o que mais ele dissesse.
Mas o silêncio dele persistiu e a mão de Bianca amoleceu na
dela.
— Com este casamento — disse Papà, ficando de pé. — Você
fará as pazes entre duas nações. Não há nada mais grandioso que
alguém possa fazer pelo nosso reino, Alessandra.
Ele tinha concordado!
Ela queria sorrir, mas... tinha acabado de ganhar um
casamento com um dos elfos sombrios. Talvez houvesse algo mais
que pudesse acrescentar ao acordo.
— E a biblioteca? Quero ensinar em Bellanzole, como
Mamma.
Ele desviou o olhar.
— Dei muita liberdade à sua mãe, e foi isso que a matou —
disse ele, baixinho. — Se ela ao menos tivesse ficado no palazzo
em vez de se aventurar entre a ralé, ainda estaria viva.
Então era isso? Porque Mamma fora assassinada, ninguém
nunca mais poderia fazer mais nada?
Depois de anos de pesquisa, ela trabalhara sem parar na
proposta, mas ele e Lorenzo não deram resposta. Ele poderia pelo
menos considerar o caso seriamente.
— Entreguei a você os planos para a biblioteca, listas de todos
os mestres para construi-la, e sugestões para bancar...
— Isso era o que sua mãe queria, e olha o que aconteceu com
ela! — gritou Papà.
Ela estremeceu. Mamma tinha morrido, mas dedicara sua vida
a compartilhar conhecimento com os outros, ensinando a todos que
estivessem dispostos aprender a ler, acumulando sabedoria sobre o
mundo natural e todas as coisas que cresciam nele. Ela sempre fora
conhecida como o coração selvagem que ninguém podia domar,
mas Papà amara o que ela amava e havia feito o impossível – ou,
pelo menos, ele fingira que fazia, para apoiá-la. Depois de sua
morte, todos se esqueceram do seu desejo. Assim como se
esqueceram dela.
Mas eu não esqueci.
— Papà, por favor...
— Bibliotecas significam ter paesani que podem ler, escrever e
pensar, que podem escrever panfletos e tratados, e protestar, em
vez de trabalhar. Que podem encontrar novas maneiras de nos
destruir. — Ele soltou um suspiro. — Estes são tempos
imprevisíveis. O reino não pode assumir tal risco.
— Papà, isso é...
— A verdade. E, Alessandra, você tem alguma noção do
quanto custa construir uma biblioteca e mantê-la funcionando?
— Sim. Estava tudo lá nos...
— Não estou falando do custo monetário. O que você traçou
foi um plano de impostos para a construção. Mas e os custos não
monetários de tributar nossos signori, ainda mais agora, quando
muitos estão com poucos recursos ou muito endividados por ter que
financiar defesas contra os Immortali? Temos outro ninho de harpia
logo nos arredores de Stroppiata! Temos preocupações maiores
agora. Ao aprovar seu plano, eu mesmo estaria plantando as
sementes de uma rebelião.
“Nossa sobrevivência não veio sem sacrifício. Sua irmã,
Giuliana, casou-se com o Príncipe Robert de Emaurria para se
tornar rainha, para ajudar a proteger nosso reino e forjar acordos
comerciais favoráveis quando chegasse sua hora. E foi morta.
Perdemos não só nossa querida Giuliana, mas os favores que teria
concedido ao nosso reino. E você falhou em cativar o novo rei.”
Cativar? O rei estava apaixonado por outra mulher; havia
pouco o que ela pudesse fazer, a não ser deixar o lugar com
graciosidade.
— Ele já estava...
— Quaisquer que sejam as razões, você falhou. Esta é uma
responsabilidade que agora você deve aceitar. Os termos estão
definidos, e cumprir seu dever agora significará que não teremos
mais vidas de paesani perdidas para batalhas com os elfos
sombrios, nem dinheiro gasto por signori para se defender deles, e
isso significará uma aliança militar contra os outros Immortali, maior
conhecimento deste novo mundo e trocas comerciais valiosas.
Bianca se aproximou e fez uma reverência.
— Papà, por favor. Aless está tomando meu lugar, e o mínimo
que...
Papà ergueu uma mão.
Não adiantava tentar convencê-lo. Já tinha tomado sua
decisão, ela e Bianca não passavam de peões.
Sua biblioteca, um lugar onde poderia ajudar qualquer um que
quisesse aprender e crescer, nobiltà ou paesani, humano ou
Immortali... Será que fora apenas um sonho, assim como o jardim
coberto de rosas e seu perfume encantador?
Mas ela faria o que fosse necessário para que houvesse a paz
entre o seu povo e os elfos sombrios. Não precisava
necessariamente ser com um casamento.
Não sou inútil. Mas não vou deixar que você defina o meu
propósito.
Ela concordaria com esse arranjo, mas, assim que Bianca e
Luciano se casassem, encontraria uma maneira de persuadir este
tal príncipe elfo sombrio a libertá-la e deixar que a amizade entre
eles estabelecesse a paz entre suas nações. Casamentos haviam
solidificado a paz por milênios, mas aqueles eram tempos
modernos. Certamente uma amizade consensual e honesta poderia
demonstrar uma parceria sem recorrer a um casamento que
nenhuma das partes desejava, não é?
Na verdade, chegara o momento de todo o reino ouvir a voz da
razão: era hora de uma mudança.
Ela cruzou os braços e baixou o olhar.
— Está bem.
— Bom. — Ele desceu os degraus e colocou a mão no ombro
de Bianca. — Seu casamento será três dias após o de Alessandra.
Parabéns, luce dei miei occhi. — Ele tomou o rosto dela em suas
mãos. — Você será uma linda noiva.
Bianca sorriu enquanto ele enxugava suas bochechas
molhadas de lágrimas. Seus grandes olhos de ágata se suavizaram.
— Obrigada, Papà.
Ele sorriu de volta para ela, em seguida, ergueu o queixo de
Aless com um dedo de forma brusca.
— Alessandra, tente não destruir a paz. Sei que é difícil. Mas
tente.
Ela franziu rosto e, com os olhos brilhando, ele se afastou,
seus guardas o seguindo.
Aquele podia ser o fim da vida dela, e tudo o que ele fez foi
zombar? Pela misericórdia da Sagrada Mãe.
Ela concordou em se casar com o príncipe elfo sombrio, e não
dizer nada até os votos de casamento deles, e assim o faria. Sem
dizer uma palavra para ele, de qualquer maneira. Ela iria até o fim
com o casamento em Bellanzole e não diria uma palavra até aquele
momento.
Nenhuma palavra. Ela sorriu. Mas havia outras maneiras de
transmitir uma mensagem.
Capítulo 2

Enquanto a árvore em que estava empoleirado balançava com a


tempestade furiosa, Veron segurava seu arco totalmente esticado,
rastreando a corça através da folhagem açoitada pelo vento. Estava
ali há horas e não iria para casa de mãos vazias. Hoje não.
Seu povo estava faminto há vários meses, sobrevivendo de
pequenas caças e qualquer sustento que conseguissem encontrar
no Profundo, antes que as colheitas se estabilizassem, dali a alguns
meses.
Ele não podia se dar ao luxo de errar, mas, se não
conseguisse um golpe certeiro, não deixaria o animal fugir e sofrer
até que morresse. O desperdício de uma vida.
Aquela seria uma boa flechada. Em nome do Profundo, da
Escuridão e do Sagrado Ulsinael, tinha que ser.
Enquanto a corça trilhava seu caminho através de árvores que
rangiam e arbustos esvoaçantes, fazia uma pausa de vez em
quando, balançava a cauda e mexia as orelhas, com irritação. Ainda
não. Agitada daquele jeito, saltaria ao ouvir o barulho do arco. Ainda
não.
Seus braços doíam pelo esforço excruciante de manter a força
da tração total do arco. Ele mudou de posição para manter a corça
na mira e ela emergiu logo depois do tronco enorme de um carvalho
antigo, parando com o vento uivante e, enquanto a árvore em que
ele estava balançava, cronometrou o disparo...
Então ele ouviu o rugido distante do chamado dos outros
volodari, seus companheiros de equipe de caça. Um chamado curto,
agudo... um aviso.
Ele disparou.
Ela fugiu.
Mais chamados de sua equipe surgiram em resposta, os
rugidos de reconhecimento, mais longos, soaram mais próximos,
vindos de Vlasta, Dhuro, Rút e Gavri.
Sua flecha jazia na vegetação rasteira golpeada pela
tempestade. A corça havia sumido. Ele disparou tarde demais. Só
um segundo tarde demais.
E, por causa disso, seu povo continuaria faminto.
Os rugidos de reconhecimento se repetiram, e ele devolveu,
ouvindo os chamados retornarem até Vlasta, que era quem estava
mais distante.
Ele guardou o arco, cravou as garras na casca da árvore e
desceu deslizando pelo tronco. Suas botas bateram na lama – ainda
não serviam direito, e agora teria que andar com elas molhadas por
todo o caminho até sua casa.
A não ser pela tempestade, tudo estava quieto, sem uma única
pessoa à vista, muito menos um inimigo. Ainda assim, ele sacou sua
lâmina vjernost. Feita de metal arcanir, que anulava magia, também
era capaz de matar a maioria dos imortais, caso algum basilisco ou
serpe atacasse.
Mas a ameaça mais iminente nos últimos tempos não eram os
basiliscos ou as serpes. Não, era a Irmandade humana o caçando e
o seu povo há meses. Grupos inteiros de volodari que pertenciam a
reinos de outras rainhas de elfos sombrios desapareceram,
enquanto caçavam ou coletavam recursos. Alguns de seu lar, Nozva
Rozkveta, conseguiram escapar apenas com ferimentos, mas, se
nada mudasse, logo resultaria em mortes, de um lado ou do outro.
Os rugidos que ecoavam o conduziam para o sul, então,
mantendo-se agachado e usando os arbustos como proteção,
dirigiu-se através da floresta tempestuosa. Ouviu um estalo à sua
frente, vindo da copa de uma árvore, depois um longo arranhão. Era
Gavri, sua guarda real kuvara.
Como uma sombra viva, ela pousou no chão fazendo a lama
espirrar, vestida em sua armadura de couro preto kuvari, sua longa
trança branca encharcada. Em seguida, sacudiu as mãos,
arremessando os pedaços de casca que estavam presos em suas
garras. Seus olhos de um âmbar profundo se fixaram nele, e ela
inclinou a cabeça em direção ao sul.
Ele assentiu. Pelo chamado de Vlasta, ela devia ter avistado
um inimigo. Caso estivesse em apuros, eles tinham que chegar até
ela.
Refizeram o caminho em direção ao portão do túnel do qual
haviam emergido, o Portão Baraza, onde Vlasta havia assumido a
primeira posição de caça. Passaram pela segunda posição, onde
seu irmão Dhuro deveria estar, mas já não havia ninguém.
Pelo Profundo e pela Escuridão...
Vozes soaram, vozes humanas gritando em Sileni, próximas a
Baraza. Gavri puxou a manga dele indicando para irem para
sudeste, em direção a outro portão.
Em silêncio, seguiu-a e, quando os gritos se aproximaram, ele
e Gavri começaram a correr, saltando sobre uma queda livre. Se
não conseguissem chegar a um portão antes que os humanos os
alcançassem, não teriam como entrar de novo em Nozva Rozkveta.
Eles ficariam encalhados ali... e provavelmente seriam mortos.
O calcanhar de Gavri escorregou numa pilha de folhas
encharcadas e ela caiu na lama; ele agarrou o braço dela e a puxou
para cima. Os gritos dos humanos aumentaram em urgência.
Estavam se aproximando.
À frente, um elfo sombrio carregava outro sobre o ombro – era
Dhuro carregando Vlasta, a haste de uma flecha quebrada
projetando-se de um dos lados dela, enterrada em sua barriga.
Não. Não um dos seus. Não.
Ela ainda estava respirando, gemendo. Ainda viva. Uma
flechada como esta não a teria matado, pelo menos não de forma
rápida. Quem disparou tinha a intenção de eliminá-la de forma lenta
e dolorosa.
A flecha era feita com penas de ganso. Uma flecha humana. A
Irmandade.
Ele e Gavri alcançaram Dhuro, que soltou um suspiro de alívio
enquanto continuavam correndo até o portão mais próximo: Heraza.
— Os outros? — sibilou ele para Dhuro, enquanto corriam.
— Já estão em casa — grunhiu Dhuro, com as sobrancelhas
baixas e franzidas, e mostrando as presas.
Dhuro não concordava com as ordens de Mati de não se
envolver com a Irmandade, mas obedecia ao comando dela,
primeiro porque era um bom súdito para sua rainha, segundo por
ser seu filho. Raiva, no entanto, fervilhava em Dhuro desde o
primeiro ataque – seus olhos estavam sempre semicerrados e sua
mandíbula, rígida. Mas agora, enquanto carregava uma caçadora
que sangrava em seus braços, essa raiva borbulhava muito perto da
superfície.
Era uma raiva que ele conhecia tão bem quanto Dhuro.
Só precisamos chegar em casa. Sagrado Ulsinael, permita-nos
chegar em casa. Porque, se encontrarmos com a Irmandade, com
ordens ou não, não posso prometer que não os matarei. Só nos
permita chegar em casa...
As vinhas do Bosque eram bem mais densas e emaranhadas
diante do Portão Heraza. Ele pegou Vlasta dos braços de Dhuro
com cuidado, sussurrando para a caçadora enquanto ela gemia e
franzia o cenho. A vegetação do Bosque se abriu, dando acesso ao
espaço onde ficava a porta de pedra trancada, depois voltou a se
fechar atrás deles.
Tirando o cabelo molhado do rosto, Gavri bateu freneticamente
na porta de pedra conforme o ritmo da batida Nozva Rozkvetana.
Nada aconteceu.
Após mais uma tentativa, Dhuro se aproximou e se juntou a
ela, ambos batendo na porta seguindo o ritmo.
Nenhuma resposta.
Os gritos humanos se aproximavam.
Em seu colo, Vlasta choramingou, o sangue dela escorria pela
roupa de couro dele, misturando-se com a lama enquanto Gavri e
Dhuro continuavam.
— Estamos quase em casa, volodara — murmurou para ela,
que assentiu de leve, as gotas de chuva rolando por seu rosto, ou
talvez fossem lágrimas.
A porta se abriu com um rangido.
Eles correram para dentro, e as duas kuvari, Danika e Kinga,
que vigiavam Heraza, trancaram a porta de pedra atrás deles.
— Onde vocês estavam? — gritou Dhuro, enquanto as
encurralava.
Danika e Kinga curvaram a cabeça no mesmo instante.
— Vossa Alteza.
— Dhuro — chamou Veron, cutucando-o com um cotovelo,
enquanto ainda carregava Vlasta. — Precisamos levá-la aos
místicos. Vamos. — Ele desceu o túnel em direção à Caverna
Central com Gavri, enquanto ela balançava a cabeça.
— Onde vocês estavam? — repetiu Dhuro, rosnando as
palavras para as kuvari. — A Irmandade quase nos pegou.
— Capitã Riza convocou os kuvari para reforçar Baraza, mas,
quando Vossa Alteza e o príncipe Veron não apareceram lá, os
Cantores de Pedra selaram a passagem com a canção e recebemos
ordens para voltar aos nossos postos — respondeu Danika, ainda
com a cabeça curvada.
— Dhuro! — gritou Veron, por cima do ombro, e Gavri respirou
fundo ao lado dele, enquanto se dirigiam para a fonte da vida dos
místicos com Vlasta.
Dhuro não podia nem descarregar as frustações que tinha com
a Irmandade em Mati – como sua rainha, a palavra dela era a lei.
Mas descontar em duas kuvari, ainda mais quando Riza tinha dado
a ordem, também não ajudaria em nada. Dhuro poderia discutir isso
com Riza mais tarde, que provavelmente esfregaria a cara dele no
chão, com a aprovação implícita de Mati, caso ele sequer rosnasse
para ela.
Enquanto caminhavam, o brilho lavanda dos cogumelos
bioluminescentes no alto das estalactites iluminava a grandeza da
Caverna Central, que se misturavam com as luzes brancas suaves
dos vaga-lumes e a floração que sempre crescia e se espalhava por
todo o lugar, mesmo com a ausência do sol do reino no céu.
Abaixo, as moradias construídas com pedras pretas se
espalhavam entre os caminhos que se cruzavam e os córregos
brilhantes bem acima do abraço da Escuridão. Os Cantores de
Pedra ocupavam pequenas passarelas, cantando em seus tons
graves mais profundos e soturnos para que as estalagmites
tomassem a forma de moradias, rogando de maneira que as pedras
se fundissem e moldassem de acordo com sua vontade coletiva.
Nozva Rozkveta estava serena, mesmo com a Irmandade,
sedenta por sangue de elfos sombrios, do lado de fora dos portões.
Ele e Gavri estavam quase alcançando a fonte da vida dos
místicos com Vlasta quando Rút os alcançou, respirando com
dificuldade, o rosto franzindo ao mesmo tempo em que seus olhos
arregalados se fixavam em Vlasta.
— Não — arfou, estendendo a mão para tocar a de Vlasta,
uma de suas garras quebrada. — Quando ouvi o chamado, eu...
tentei levá-los para longe, para que ela pudesse escapar. Só que,
mesmo assim, pude senti-la enfraquecendo e... — Ela cobriu a
boca, correndo ao lado deles.
— Suas garras — disse Gavri, arfando, e Rút encolheu os
dedos.
Garras danificadas significavam fraqueza, e os fracos eram
vistos como uma desgraça para suas famílias. Mas ela precisava
mencionar isso agora? Sério? Ele fez uma careta para ela.
Gavri pigarreou.
— Ela vai ficar bem — tentou consolar Rút. — E a rainha Zara
não vai deixar que isso fique assim. Você verá.
Rút e Vlasta haviam feito a Entrega entre si e estavam
vinculadas à vida uma da outra há oito anos, elas compartilhavam a
mesma anima. Se uma enfraquecesse, a outra a fortaleceria, e, se
uma morresse, a outra também morreria...
— Estamos quase chegando. — Ele atravessou a passagem
escura e entrou na caverna da fonte da vida dos místicos, onde Xira,
a elfa sombria mais velha entre eles, com quase 4 mil anos, correu
para encontrá-los, seu manto roxo escuro se arrastando no chão e
seus aprendizes se amontoando ao redor dela.
— Leve-a para as águas, Alteza. — Com os cabelos longos e
brancos brilhando sob a luz lavanda, Xira os conduziu para uma
piscina iluminada, e ele subiu as escadas rasas e pousou Vlasta
gentilmente na água, enquanto Xira a examinava e removia a flecha,
provocando um grito de dor de Vlasta.
— Ela ainda está respirando. Isso é bom. — Xira inclinou a
cabeça para Rút. — Você também. Entre com ela. Ambas
precisarão da força da fonte da vida para se recuperar.
Porque se a anima de Rút não fosse suficiente, Vlasta
pereceria. E, se Vlasta morresse, Rút também morreria. Esse era o
perigo do laço vitalício.
Mordendo o lábio, Rút assentiu várias vezes enquanto
abraçava Vlasta dentro da fonte, acariciando seu cabelo curto e
molhado, e sussurrando palavras de conforto. Naquele lugar,
localizado em cima de um largo veio de anima, a vida de Nozva
Rozkveta era mais forte do que em qualquer outro reino, e as fontes
da vida, ricas em anima, eram lugares que usavam para cura antes
mesmo da existência dos registros históricos.
Aquilo daria certo. Tinha que funcionar.
Ele se apoiou na pedra quente e lisa enquanto Gavri dava
tapinhas em suas costas. Vlasta e Rút sobreviveriam... as duas. Um
laço vitalício era um ato de amor absoluto, raro em sua completa e
total devoção, porque uma única morte poderia reivindicar duas
vidas, em vez de uma. As rainhas e suas kuvari mais valiosas entre
os guardas reais da elite do Conselho raramente faziam laços
vitalícios, pois sua perda deixaria um reino enfraquecido.
Era, de certa forma, uma sorte que seu próprio pai, Ata, não
tivesse vinculado sua vida com a de Mati quando traiu sua família e
escolheu a morte. Partindo com um sorriso gentil e apaziguador, que
ainda assombrava as memórias de Veron, quando Ata os deixou
secretamente pela última vez, dando sua vida.
Veron baixou o olhar para a pedra. Ele nunca enfraqueceria
Nozva Rozkveta dessa maneira. Nunca. Aos 27 anos, nem sequer
imaginava se ligar a alguém com a Entrega, muito menos assinar a
sentença de morte que era o laço vitalício.
Passos pesados ecoaram na caverna da fonte da vida
— Ela vai ficar bem? — perguntou Dhuro, sua voz entre um
rosnado e um gemido. — Juro pelo Profundo e pela Escuridão, se...
— Ela vai se recuperar, Vossa Alteza — disse Xira, encarando
Dhuro nos olhos enquanto ele pingava água da chuva e lama no
piso de pedra preta reluzente. — Mas... — continuou ela, voltando-
se para Veron e Gavri — ... elas precisarão de algo substancial para
comer para poder recuperar as forças.
Algo mais do que as rações individuais de caça pequena,
peixe da caverna, marisco e pedaços de flora selvagem comestível.
Os seres humanos tinham toda a fartura do reino do céu,
enquanto seu povo tinha que lutar e mendigar pela menor das
refeições para poder compartilhar entre si, e não podiam nem
mesmo caçar em paz.
— Elas podem ficar com a minha ração — disse ele.
— Vossa Alteza — ofegou Rút, sentando-se, mas ele ergueu a
mão.
— Está feito, Rút. — Ele apenas redobraria seus esforços para
caçar nos próximos dias.
— A minha também — adicionou Dhuro, batendo com o punho
no peito. — A Irmandade pagará por isso. Eles têm que pagar.
Xira apoiou uma mão gentil no ombro de Veron e lançou um
olhar fugaz na direção de Dhuro.
— Tenho certeza de que Vossa Majestade ficará aliviada em
saber que Vlasta e Rút estão seguras.
Em outras palavras: tirem este príncipe furioso da minha fonte
da vida.
— Venha, irmão. Mati vai querer saber o que aconteceu —
disse Veron, assentindo para Xira.
— Vou reportar à capitã Riza — disse Gavri, seus olhos
suavizando enquanto seguia por outro caminho. Após ter amado
seu irmão mais velho Zoran por oito anos antes de ele partir, sabia
exatamente como Dhuro podia reagir.
Suspirando, Dhuro deixou a caverna da fonte da vida com ele
e se dirigiram para as torres de cristal preto do palácio no coração
da Caverna Central.
— Os volodari de outros reinos estão caindo como moscas nas
mãos da Irmandade. — Dhuro expirou com força pelo nariz e
balançou a cabeça. — Não demorará muito para que eles
concentrem ainda mais a atenção em nós.
— Mati disse que está lidando com isso. Não cabe a nós
questionar. — Quando uma rainha fala, seus súditos obedecem.
Todos eles. Além disso, Mati havia dito que resolveria a crise, e que
deviam confiar nela.
— Eu sei, eu sei. — Dhuro passou a mão sobre a massa
úmida de cabelos que iam até os ombros. — Só queria que ela
confiasse em nós o suficiente para nos dizer o que está
acontecendo.
Eles passaram pelas kuvari na entrada e desceram pelo
corredor principal, com as botas fazendo um som molhado.
Só queria. Aquele era Dhuro. Sempre Dhuro. Pressionando por
mais, por privilégios, em vez de obediência. Ele tinha passado um
tempo entre os humanos antes da Ruptura e voltou com ideias na
cabeça, como: Só queria... e Por que ela não pode simplesmente...
e Acho que... em vez da obediência cega com a qual foi criado.
Mais parecido com Ata. O pai deles pensava que sabia mais
do que Mati, e a traíra, sacrificando a vida por aquela rebelião.
Ele balançou a cabeça. Algo impensável. Inaceitável.
Dhuro caminhou em direção às kuvari armadas com espadas
largas e que guardavam as portas dos aposentos de Mati, mas
barraram seu caminho.
— Apenas o príncipe Veron — disse uma delas, Lira, a Dhuro.
— Ordens de Vossa Majestade.
Cruzando os braços, Dhuro parou e olhou para ela por um
instante antes de grunhir e se afastar. — É claro. Compartilhe
comigo depois, sim, irmão?
Ele olhou para Dhuro. Das muitas coisas que poderiam
acontecer, compartilhar algo que uma rainha dissesse em particular
não era nada provável.
— Que tal uma sessão de treino mais tarde?
Um canto da boca de Dhuro se ergueu.
— Pode ser — respondeu, e depois partiu.
Lira e a parceira abriram as portas e se afastaram, saudando:
— Vossa Alteza.
Capitã Riza emergiu primeiro do aposento, lançando a ele um
olhar afiado, mas que logo se suavizou. Descansando a mão no
ombro dele, respirou fundo e deu a ele um aceno encorajador. Se
Riza, de todas as pessoas, estava tentando encorajá-lo, então o que
quer que Mati tivesse a dizer para ele não seria nada bom.
— Gavri está à sua procura — disse a ela, quebrando o
silêncio.
Ela deu um último tapinha em seu ombro antes de voltar ao
seu semblante sério de sempre e passar por ele.
Assim que entrou, Lira e sua parceira fecharam as portas atrás
dele.
No interior, as videiras bioluminescentes de roza se
entrelaçavam em torno dos pilares, subindo e se espalhando pelo
teto, lançando um brilho branco suave no interior. Roza sempre fora
abundante em Nozva Rozkveta, e algumas delas já haviam
começado a florescer.
Mati caminhava de um lado para o outro pelo tapete formado
por videiras de roza, balançando a bebê Dita nos braços, enquanto
a irmã dele, Vadiha, dormia em sua cama. Quando todos acordaram
após a Ruptura, Vadiha ainda estava grávida, graças à Escuridão, e
deu à luz a Dita a menos de cinco semanas. Depois de Mati, Vadiha
era a guerreira mais forte de Nozva Rozkveta, e mal tinha energia
para ficar acordada para alimentar Dita, muito menos para treinar. A
escassez de comida estava sendo bem mais difícil para ela e,
mesmo com o aumento das rações, e os volodari – seu marido e as
irmãs entre eles – caçando o tempo todo, ela ainda não recebia
nutrição suficiente.
Com as mãos cruzadas atrás das costas, ele esperou
enquanto Mati embalava Dita em um sono leve, depois olhava para
ele e em direção a um banco, onde ele se sentou.
— Alguma coisa hoje? — perguntou ela, seu tom de voz baixo
e calmo, enquanto mantinha o olhar no rosto pequeno e adormecido
de Dita.
Ele balançou a cabeça. Voltar para casa de mãos vazias era
sempre difícil, ainda mais quando olhava para Vadiha e Dita, que
dependiam desesperadamente do sucesso das equipes volodari.
— Vocês não enfrentaram a Irmandade.
— Sob suas ordens, não enfrentamos — respondeu ele. —
Vlasta levou uma flechada no abdômen, mas Xira disse que ela e
Rút se recuperariam.
Mati deu um aceno breve, tirando uma mecha de cabelo fino
da testa de Dita.
— O conflito com os humanos e toda essa fome logo
terminará.
Se ela disse que terminaria. Então, terminaria. Disso ele não
tinha dúvida.
— Estive em negociações com o rei de Silen por
correspondência — começou, embalando Dita suavemente.
Negociações? Então fora por isso que havia ordenado para
que não atacassem a Irmandade. Por todo este tempo, estivera
negociando com os humanos. E as outras rainhas também deviam
saber disso, não havia nenhum relato de elfos sombrios revidando.
Tudo por causa disso.
Se houvesse uma maneira de acabar com o conflito com a
Irmandade sem derramamento de sangue, valeria a pena.
— Até que as nossas colheitas se estabilizem, os Sileni
fornecerão comida, tanto para a rainha Nendra quanto para nós, que
distribuiremos entre os reinos aliados por meio dos túneis. Isso
iniciará assim que o acordo for finalizado em Bellanzole. E criamos
um meio diplomático para lidar com a Irmandade.
Bom. Por mais interessado que estivesse em acabar com a
perseguição, e por mais prazeroso que pudesse ser derramar o
sangue da Irmandade... violência só geraria mais violência. Durante
toda a história dos elfos sombrios foi assim: derramar sangue só
para derramar ainda mais. Aquilo tinha que acabar em algum
momento. Se pudessem fazer as pazes com os humanos, e
sobreviver, então ele faria tudo ao seu alcance para que isso
acontecesse.
Porém, se não conseguissem fazer as pazes com os
humanos... então ele se certificaria de que o seu povo fosse o único
a sobreviver. Os humanos eram numerosos, mas seu povo treinava
para a batalha desde que cada um deles começaram a andar sobre
as pernas pequeninas... se chegasse a uma guerra, os humanos
cairiam.
— Em troca, eles querem nossa ajuda para manter as bestas
imortais longe.
Isso era bastante simples. Todos os volodari foram treinados
em combate contra todas as bestas, imortais ou não.
— É só isso?
Ela encontrou seu olhar e o sustentou.
— Concordei em dar a eles mais uma coisa.
Se aquilo significasse comida para Vadiha e o fim do conflito
com a Irmandade, então quase qualquer coisa era válida.
— Você.
Capítulo 3

Veron estendeu um braço e pegou a pedra antes que pudesse


atingir seu cavalo feérico, Noc.
Boa pegada, não foi? Ele pensou para Noc, que só bufou. Ah,
qual é. Foi boa.
Boa, pensou Noc, em resposta. Sim.
— Saia do nosso reino! — gritou uma mulher humana idosa
para ele do meio da pequena multidão, cuspe voando de sua boca.
— Que o Divino te leve! — berrou outro humano. — E todos os
outros monstros!
Monstros.
— Silêncio! — cuspiu Riza ao lado dele. — Seus humanos
imundos, como ousam atacar o príncipe Veron? Danika, Gavri. —
Ela inclinou a cabeça encapuzada em direção a duas das kuvari que
o protegiam. — Cortem as línguas deles. Agora.
Danika e Gavri desmontaram, as botas batendo contra a
grama de verão, e desembainharam suas lâminas vjernost. A
pequena multidão se afastou.
— Capitã — advertiu Veron, com a voz abafada pela máscara
em seu rosto. Danika e Gavri pararam, embora estivessem prontas
para atacar.
Riza se virou para ele e inclinou a cabeça com o menor dos
movimentos.
— Vossa Alteza — respondeu.
Uma das crianças humanas olhou para eles com olhos
arregalados. Veron riu baixinho e jogou a pedra para ela. A
Irmandade merecia toda a raiva de Riza, mas esses humanos?
Eram apenas camponeses... agitados, mas não assassinos. Mesmo
agora, afastavam-se, alguns olhando para ele com os olhos
arregalados.
Ele afastou o couro do peito para expor aos humanos a
tatuagem real do sol negro sobre o coração.
— Nenhum dano foi causado, capitã. Eles não sabiam quem
eu era.
— Alteza... — Os olhos dela se estreitaram.
— Nenhum dano foi causado — disse ele, de maneira mais
firme desta vez.
As ordens de Mati para todos foram claras: mantenham a paz,
mas não permitam que nenhum mal aconteça ao príncipe. Não
machuquem ninguém, a menos que ele seja ferido. Nem mesmo
Riza se atreveria a desobedecer a rainha de Nozva Rozkveta.
— Alteza. — Riza assentiu, friamente. — Montem! — gritou
para Danika e Gavri, depois se virou para os humanos, franzindo a
testa. — Lembrem-se deste dia, humanos. Vocês só mantiveram
suas línguas pela misericórdia do príncipe Veron u Zara u Avrora u
Roza, Valaz u Nozva Rozkveta, Zpevan Kamena, Volodar T’my.
Mas, desrespeitem Vossa Alteza outra vez, e não poderei ouvir a
clemência dele acima do som do sangue de vocês esguichando.
Sutil, Riza. Muito sutil.
A multidão se espalhou, alguns humanos se apressando para
longe, outros correndo enquanto lançavam olhares sobre os ombros
de vez em quando. A criança humana estava paralisada, os olhos
verdes como grama arregalados como duas luas cheias, segurando
a pedra contra o peito. O garoto só podia ser alguns anos mais
velho que Dita. Ele sempre gostara de crianças, e as humanas não
eram diferentes, mesmo que não reconhecessem a realeza.
— Iá! — Riza incentivou o cavalo a prosseguir.
Ele sorriu por trás da máscara para a criança humana
enquanto a cavalgada se movia mais uma vez, continuando pela
estrada ladeadas por árvores ciprestes até Bellanzole e o imponente
Palazzo dell’Ermacora.
A maioria dos humanos provavelmente não tinha visto um da
espécie dele em milênios, sua ignorância era compreensível, ainda
que inconveniente. A realeza dos elfos sombrios não se adornava
com coroas e tiaras douradas com as quais o campesinato humano
estava acostumado a ver na sua; os elfos sombrios reconheciam
sua realeza por seu porte, seu comportamento, seus rostos e, como
último recurso, pelo sol preto sobre seus corações, tatuados com
tinta real czerni ao nascer.
Os escribas de Nozva Rozkveta trabalhavam incansavelmente
para preencher a lacuna entre o Velho Sileni e a língua moderna, e
embora ele, seu grupo e muitos dos outros elfos sombrios falassem
a língua moderna deles, isso não sanava a ignorância.
Mati o havia enviado, e toda uma comitiva de elfos sombrios,
em uma missão diplomática, deixando acampamentos de tropas de
elfos sombrios em seu rastro para ajudar a manter a paz para si e
para os humanos contra as bestas, tudo parte do acordo feito entre
Nozva Rozkveta e o reino de Silen.
Ele cavalgou até Gavri, que o olhou pelo canto do olho e
sibilou.
— Eu não questiono os desejos da minha rainha — disse ela,
balançando a cabeça com veemência, fazendo sua trança ir de um
lado para o outro. — Mas você, um dos nossos príncipes mais
valiosos, está condenado a fazer a Entrega a um dos deles? É um
destino triste.
— Não questione a rainha Zara — rosnou Riza para ela, e
Gavri inalou bruscamente, mas assentiu.
Ele conhecia as duas a sua vida inteira, eram tão suas amigas
quanto eram kuvari. Podia sempre confiar nelas para que dissessem
a verdade a ele.
Ele olhou para a frente, para o mundo dos humanos de um
verde exuberante, tão diferente de casa. Magos humanos moldavam
este reino do céu com magia assim como os Cantores de Pedra
moldavam o Profundo com música, conjurando edifícios e estradas
ao mesmo tempo em que os Cantores de Pedra compunham
estalagmites, estalactites, colunas e pilares. Ele ainda tinha
memórias de fazer desenhos da flora e fauna do reino do céu com
Ata quando menino, enquanto treinava para se tornar um dos
volodari. Mas, após a morte de Ata, não tinha desenhado muita
coisa.
Os humanos e seu reino do céu estavam diferentes, mas
diferente não queria dizer ruim. Ele trouxera uma infinidade de flores
de roza cultivadas a partir do poder do Veio de Nozva Rozkveta, um
gesto que esperava que demonstrasse a ponte que poderia existir
entre seus reinos.
— É o que nasci para fazer, Gavri — respondeu ele. Ela
ergueu a cabeça. — Fui criado sabendo que minha vida não é
minha, mas um bem para ser barganhado por minha mãe, para
fortalecer Nozva Rozkveta e nosso povo.
— E você cumpre o seu dever com honra e valor — concordou
Riza, assentindo.
— Mas eles... são tão feios — contestou Gavri, mordendo o
lábio.
Ele riu baixinho enquanto Riza rosnava para ela mais uma vez.
Ah, sim, os humanos eram feios. Suas mulheres não eram
altas e torneadas como as elfas sombrias. As mulheres humanas
eram macias como o gado que criavam para o abate. Elas não
tinham presas ou garras, que até mesmo as crianças de elfos
sombrios tinham. E a pele delas... fina, delicada, tão fácil de rasgar.
Pelo Profundo e pela Escuridão, o que ele não daria para estar
em uma posição de caça agora, em meio a uma tempestade furiosa,
em vez de estar a caminho de fazer a Entrega a um deles. Aquilo
fora desculpa suficiente para fazê-lo usar suas botas novas, que
calçavam ainda pior que as antigas. Ata tinha mãos habilidosas para
trabalhar com o couro, e nenhum par de botas serviam bem desde a
sua... morte.
Exigente demais, Noc interrompeu.
Você não usa botas. Se usasse, seria exigente também.
Confie em mim.
Falo da humana, Noc esclareceu. Vocês dois vivem e andam
sobre duas pernas. Homem. Mulher.
Como se isso fosse tudo que bastasse.
Mas ele não tinha que desejar a humana. Só tinha que fazer a
Entrega com ela. Com esse acordo, Vadiha, Dita e todo o seu povo
não passariam mais fome, isso por si só fazia tudo valer a pena. E a
Entrega envolvia muito mais do que o mero desejo. Envolvia
confiança, parceria, encorajamento e companheirismo. E qualquer
mulher humana que concordasse em fazer a Entrega com ele devia
ter a mente aberta, o que já lhe garantia potencial como parceira. De
qualquer forma, não havia nada mais importante do que fazer a
vontade de Mati, pela paz de Nozva Rozkveta.
Ele respirou fundo. Tinha apenas 27 anos – a menos que
contasse os 2.372 anos ou mais que todos os imortais passaram
petrificados desde a Ruptura... que ele não contava – e, no final da
semana, faria a Entrega. Para uma humana.
Ao concordar com isso, ela o acolheria em sua vida, isso
estava garantido. E significava que essa paz entre eles teria
sucesso e, uma vez que isso acontecesse, a paz entre seus povos
também teria.
Desde que ela fosse honesta, poderia confiar nela – e,
enquanto pudessem confiar um no outro, teriam uma chance.
— Faremos o que é certo. Esta Entrega será tranquila —
assegurou ele às duas. Além disso, Riza o ajudara a escolher um
presente de Entrega impecável para a princesa. — E, assim que
acontecer, toda essa agitação se dissipará.
Riza engoliu em seco, depois deu de ombros.
— Rezo ao Profundo por isso, Vossa Alteza. —Hesitando, ela
baixou o olhar por um momento, a testa franzida. — Mas... as
objeções de Gavri não são inteiramente sem mérito. Se tem uma
coisa que aprendi sobre os humanos, é que nunca se pode confiar
neles, ainda mais quando se trata de fazer o que é certo.

*
Sob o sol do final da tarde, Aless permaneceu parada no pátio,
a coluna reta, os ombros para trás e o queixo erguido. A brisa de
verão balançava o brocado de seda rosa de seu vestido e os cachos
cuidadosamente modelados, caindo em cascata por suas costas. A
tiara de joias estava quente contra sua testa, mas Papà tinha
deixado instruções específicas para suas damas de companhia e
criadas. Eles a decoraram como um cavalo indo para uma
competição.
— Você não vai mesmo falar com ele, minha senhora? —
sussurrou Gabriella, sua amiga e dama de companhia, prendendo
uma mecha de cabelo atrás da orelha de Aless.
Ela já tinha prometido a Papà que não falaria. E isso não
importava de verdade, não é? A vontade dela não contava, então
por que as palavras dela importariam? Este príncipe provavelmente
chegaria sob ordens de sua mãe apenas para olhar seus dentes e
verificar sua postura. Um bem não precisava dizer uma palavra para
ser útil.
Ele apenas a colocaria em sua carroça, a levaria para a
caverna dos elfos sombrios e a guardaria como um troféu para
apresentar sempre que a necessidade de provar seu tratado de paz
com os humanos surgisse. Eles diriam: não temos nenhum conflito
com os humanos! Olha, um de nossos príncipes tem uma esposa
humana.
Considerando que eram as elfas sombrias que governavam o
Bosque Noturno, ela nunca poderia dar sua opinião para nada, não
precisaria se fazer útil lá, apenas permanecer um peão, como
sempre fora. A única diferença é que estaria em uma cultura
alienígena, que falava uma língua alienígena, e cercada por
estranhos que não tinham razão nenhuma para ser amigável com
alguém de sua espécie.
A biblioteca de Mamma nunca seria construída, ela jamais
ajudaria ninguém a aprender a ler, nem os Immortali ou os humanos
aprenderiam um sobre o outro em um lugar de paz e conhecimento.
Sem dúvida, este príncipe elfo sombrio também não desejava
esse destino, tanto quanto ela, ainda assim, ambos teriam que fazer
esta dança a mando de seus pais e governantes.
O que não tornava nada daquilo melhor.
Uma abelha voou preguiçosamente por perto. Me pique. Por
favor, por favor, por favor, me pique. Qualquer coisa para evitar esse
encontro.
O som de cascos soara do outro lado dos portões de ferro, e
um grupo de cavaleiros trotou para o pátio, escoltados pela Guarda
Real Sileni. Os estranhos usavam capas e capuzes pretos,
parecendo sombras, exceto por suas írises amarelas perturbadoras
e os cabelos brancos fantasmagóricos. O vislumbre ocasional da
pele azul-ardósia aparecia por trás das máscaras que cobriam suas
bocas e narizes.
Os elfos sombrios.
Quando começaram a desmontar, revelaram músculos
revestidos de armadura de couro em corpos magros e atléticos.
Cada um devia ter no mínimo um metro e oitenta de altura. O mais
alto deles, que veio montado em um corcel enorme e hipnotizante,
seus pelos de ébano brilhando ao sol, era mais volumoso, com
ombros largos, bíceps robustos, coxas grossas e um peito
musculoso. Um macho.
Ele prendeu a lâmina ao seu lado e desmontou com agilidade,
esfregou sua mão e pulso, e entrou no pátio com olhos estreitos, em
busca de algo. Seu olhar pousou nela. Intenso. Misterioso.
Ele era diferente dos outros, o único homem entre eles. Tinha
que ser ele.
No entanto, nem ele, nem nenhum do seu grupo estavam
vestidos de uma maneira condizente com a realeza. Todos usavam
meras botas pretas e roupas simples, como qualquer soldado
comum. Talvez um sinal de como considerava aquele encontro
especial.
Ele já teria se reunido com Papà no cerco de Bellanzole para
que fossem escoltados até a cidade. Papà havia se encontrado com
este macho Immortali e, apesar de seu insulto óbvio, permitiu que
entrasse naquele pátio.
Mas alguma coisa seria capaz de dissuadir Papà desta
barganha? Ele vendera a mão de Bianca em casamento, às cegas,
para este homem Immortali. Ele poderia ser feio, desfigurado,
bestial, totalmente nojento, mesmo excluindo o fato de ser um elfo
sombrio, mas será que algo assim teria mudado a decisão de Papà?
Claro que não. Ele já comprara a paz. E muito barato. E nem
havia tentado mais nada.
Ela enrijeceu quando o macho se aproximou dela, escoltado
por uma de seu povo e um guarda real Sileni. Talvez seu Voto de
Silêncio fosse a melhor escolha, já que suas palavras tinham sido
congeladas, assim como o resto dela.
— É uma honra conhecê-la, princesa Alessandra — disse ele,
inclinando a cabeça, sua voz suave como veludo sobre aço afiado,
abafada pela máscara de pano preto. — Meu nome é Veron.
Aquela voz – profunda e fluida como os rios escuros e
espelhados do Solitário.
Prendendo a respiração, ela olhou para a mão dele, enluvada,
seus dedos pontudos, mas não se ofereceu para tomar a mão dela.
— É costume de vocês beijar a mão — disse ele, com
naturalidade. Removeu as luvas e as entregou à sua companheira,
uma fêmea com um olhar afiado, em posição de atenção, pela
aparência dela era uma soldada. Ele estendeu a mão, azul-ardósia,
com dedos longos terminando em pontas.
Garras.
Ela quase deixou passar o momento, quando, tremendo,
ofereceu a mão.
Uma pele calejada se fechou em torno de seus dedos
enquanto ele erguia a mão dela gentilmente, puxando a máscara
para baixo e pressionando de leve seus lábios nos nós dos dedos
dela.
O mais sutil dos toques e um arrepio passou por seu corpo
antes que ela pudesse impedir. Ele podia matá-la. Com pouco mais
do que um movimento de sua mão.
Enquanto ele se erguia, ela disfarçou sua reação com um
sorriso, ao qual ele correspondeu.
Presas. Presas afiadas e pontudas, como as de um leão. Ela
congelou o sorriso, mantendo-o estampado em seu rosto. Com
sorte, isso impediria qualquer outra reação de transparecer.
— É a primeira vez que você vê um da minha espécie
pessoalmente. — Seus olhos inquietantes permaneceram fixos nos
dela, inabaláveis, sua mão calejada ainda segurando a dela.
Nada se movia no pátio. Pela misericórdia da Sagrada Mãe,
nem mesmo a brisa se atrevia a soprar.
Ela assentiu. Aquele sorriso ainda estava estampado em seu
rosto. Ela retornou sua expressão para algo próximo do normal.
Como o resto dele, seu rosto era severo, todos os traços,
brutais, com um olhar ainda mais implacável. Como uma estátua,
poderia ter sido terrivelmente belo, mas vivo, respirando, era nada
menos que aterrorizante. Como um pesadelo de um conto de fadas
infantil.
A qualquer momento, ele poderia atacá-la, prendê-la ao chão,
afundar as presas na carne dela e abri-la ali mesmo. Atravessar seu
corpo com aquelas mãos com garras. Deixá-la em pedaços. Ele
podia fazer tudo aquilo e parecer completamente natural.
— Espero que, com o tempo, você se acostume com nosso
povo, apesar das nossas diferenças.
Se acostumar com eles? Talvez. Achá-los menos
aterrorizantes? Provável que não. No entanto, ela assentiu mais
uma vez.
— Gostaria de dar uma volta pelo pátio? Responderei a todas
as suas perguntas da melhor maneira possível. Talvez possamos
nos familiarizar melhor antes da cerimônia de amanhã.
Ela se virou para Gabriella e apontou para a própria boca.
Os olhos castanhos de Gabriella foram dela para o príncipe.
— A princesa Alessandra deseja que eu lhe diga que fez o
Voto de Silêncio e não pode falar com Vossa Alteza antes do
casamento.
Aless olhou para o seu rosto mais uma vez. Ou melhor, para
sua carranca.
— Um voto de silêncio? — Com o rosto tenso, ele cruzou as
mãos atrás das costas e sua companheira estreitou os intensos
olhos amarelos, como brasas incandescentes. — Seu povo espera
que as mulheres façam isso?
Será que Papà deixou de mencionar para ele que não tinha
concordado com o casamento até que ela propôs o Voto?
Ela assentiu.
Ele soltou um chiado, que pontuou o silêncio, e sua
companheira sibilou também. O olhar deles se tornou tenso, feroz,
como de leões prestes a atacar. Ele tinha escondido as mãos, as
garras, e quem podia saber o que fariam?
Tremendo, ela deu um passo para trás. Mas, se ele não
concordava com o Voto de Silêncio, então não era tão ruim quanto
Papà. Talvez até fosse sensato.
Ele olhou para ela e relaxou a postura, tirando as mãos de trás
das costas e as deixando cair ao lado do corpo.
O olhar dela se fixou nelas, em suas garras afiadas, até que
ele inclinou a cabeça.
— Temos alguns preparativos para acertar antes da cerimônia
de amanhã — disse ele, sua voz inexpressiva. — Então, eu me
despeço, Vossa Alteza. Desejo que tenha um bom dia.
Ela repetiu o gesto dele e, com isso, a Guarda Real escoltou o
príncipe e sua companhia em direção ao palazzo.
Como se fosse uma pedra, ela ficou parada lá, observando,
até que desaparecessem e as portas se fechassem.
— Minha senhora? — chamou Gabriella, apoiando os dedos
com gentileza no antebraço dela.
Outro tremor a atravessou. Seu coração batia forte, tão forte e
tão rápido que ela tinha certeza de que Gabriella conseguia ouvir.
— Venha, minha senhora. Vamos entrar. — Gabriella pegou o
braço dela e a levou para o caminho oposto, em direção a outra
entrada do palazzo.
Ela caminhou ao lado da dama de companhia, mas tudo ao
seu redor era como um borrão. Aqueles olhos sinistros. As garras
afiadas. Presas pontiagudas. Pele de ardósia. A voz tão gélida e
aveludada. Cabelo fantasmagórico. O jeito como ele sibilou, a
maneira ágil como se movia...
Tremendo, ela balançou a cabeça e as mãos. Não havia outra
saída. A menos que se casasse com ele no dia seguinte, Papà
também não cumpriria com sua parte do acordo. Ela tinha que fazer
isso, ou então Bianca faria.
Para seu alívio, Gabriella a ajudou a se sentar em uma
poltrona de camurça ao lado de uma caixa grande e misteriosa e,
em instantes, Bianca se afastou de onde estivera olhando pela
janela, arrastando camadas de saias de brocado de cor safira,
enquanto corria e deitava a cabeça no colo de Aless.
— Eu sinto muito! — exclamou Bianca, pegando a mão dela.
Aless acariciou o cabelo da irmã suavemente e dispensou
Gabriella com um aceno de mão.
— Você vai mesmo seguir em frente com isso? — A voz de
Bianca falhou.
Ela tinha que fazer isso. Bianca, com seus sonhos e coração
gentil, não aguentaria ser casada com um elfo sombrio, mas ela
conseguiria, pelo bem da irmã.
— Vamos, Aless — insistiu Bianca, cutucando-a. — Deixe o
Voto de lado e fale comigo. Por favor.
Após o casamento de Bianca, elas se separariam; Bianca iria
para Roccalano e ela, para o Bosque Noturno. A ideia de passar a
maior parte do tempo que ainda tinham juntas em silêncio era...
dolorosa.
Ela suspirou. Bem, ela só havia prometido a Papà que não
falaria com o seu... noivo.
— Eu... seguirei com o casamento.
Bianca ergueu a cabeça, franziu a testa e se sentou sobre os
calcanhares. — Como assim? Existe outro caminho?
Devia haver. Ela seguiria com o casamento em Bellanzole,
como prometido, porque era necessário para o bem de Bianca. Por
sua irmã, ela se casaria com ele. Aguentaria, por três dias, o que
quer que fosse, e então testemunharia o casamento de Bianca com
seu amado Luciano. Bianca e Luciano eram ambos humanos e, uma
vez consumado o casamento humano, o vínculo entre os dois seria
inquebrável. Mas e após a cerimônia?
Ela faria um bem maior para a paz se pudesse construir pontes
entre as diferentes culturas e ensinar do que se ficasse mantida
como um troféu em uma caverna. Mesmo que Veron não aprovasse
o Voto de Silêncio, ela nunca poderia ser como uma das elfas
sombrias, aquelas que detinham o verdadeiro poder no Bosque
Noturno. Ela seria apenas... um símbolo.
— Depois deste casamento, ainda há a segunda cerimônia no
Bosque Noturno antes de o acordo ser selado. Vou usar esse tempo
para tentar convencê-lo de que não precisamos nos casar para que
haja paz entre as nossas nações. Tenho certeza de que ele também
não quer se casar com uma humana tanto quanto eu não quero me
casar com um elfo sombrio.
Após conhecer o príncipe hoje... Sim, ele tinha sido
intimidador, mas também fora eloquente, educado... até mesmo
gentil.
— Talvez ele me escute.
Na verdade, ela tinha o presente de casamento perfeito para
ele: sua nova cópia de Uma História Moderna de Silen. Ela ainda
tinha a cópia de Mamma, e o presente paralelo teria um significado
especial. O livro mostraria sua vontade de compartilhar este novo
mundo com ele e seu povo, e de acolhê-los como parte dele,
enquanto ele preencheria as páginas restantes com a paz que ela
esperava que os dois povos forjassem juntos.
Com ele do lado dela, talvez pudessem convencer Papà e a
rainha do Bosque Noturno a reconsiderar. Ela e Veron ainda podiam
agir como embaixadores da paz, como amigos, demonstrando que
as relações entre os reinos podiam ser boas. Talvez ela pudesse
sugerir a biblioteca como um empreendimento conjunto, melhorando
a reputação dos elfos sombrios com os paesani.
Bianca fungou, piscando para afastar as lágrimas. Esfregou o
rosto com a manga do vestido cor de safira.
— E se ele não te ouvir?
Depois de seu casamento, Papà disse que programaram para
que fizessem um Cortejo Real desde Silen até o Bosque Noturno
para apresentar a união harmoniosa entre eles e inspirar paz entre
os paesani, os nobiltà e os elfos sombrios. Haveria muito tempo
para pensar num plano de contingência.
— Vou dar um jeito — concluiu ela, dando de ombros.
Bianca desviou o olhar, franzindo as sobrancelhas e mordendo
o lábio.
— Luciano me disse que Tarquin se tornou um membro
influente da Irmandade, na esperança de fazer justiça por Arabella.
Com a ajuda deles e da Companhia Belmonte, sua liberdade pode
ser assegurada.
A Irmandade? Tarquin estava envolvido com aquele grupo
odioso? O que ele havia dito sobre os Immortali? Uma corrupção
que tem que ser erradicada deste reino.
Não, ele não era mesmo como ela. Era um deles, da
Irmandade.
Pouco depois da Ruptura, a Irmandade se formou para
“promover os interesses humanos”. De alguma forma, “promover os
interesses humanos” sempre parecia envolver violência contra os
Immortali. Por cada dano aparente causado aos humanos, a
Irmandade retaliava com o dobro de intensidade. Por sorte, os
Immortali pareciam menos propensos a tal violência, já que
nenhuma facção desse tipo havia surgido do lado deles – não que
ela soubesse.
— Mas Luciano não é um membro?
Bianca balançou a cabeça.
— Ótimo. Qualquer pessoa envolvida com a Irmandade é
alguém que já se perdeu para o ódio. — Por mais que não quisesse
seguir em frente com este casamento, ela não desejava nenhum
mal ao príncipe ou aos outros elfos sombrios. De forma alguma
trabalharia com a Irmandade. Nunca.
— Mas eles te libertariam num piscar de olhos...
— Não. — Ela pegou a mão de Bianca. — Agradeço a sua
preocupação, mas vou pensar em algo. — Ela sorriu. — Não se
preocupe comigo. Quero que você só se preocupe com o seu
casamento, a sua lua de mel e a sua felicidade.
— Como posso pensar nessas coisas? — Bianca franziu a
testa lisa.
— Pois essa é a razão de eu fazer tudo isso. Então você tem
que ser feliz. Quero que me prometa isso. — Com um pouco de
sorte, ela e o príncipe alcançariam a paz por meios alternativos,
ambos livres um do outro e deste acordo, e Bianca ficaria com o
homem que amava.
Os lindos olhos cor de ágata de Bianca ficaram sérios e ela
assentiu, determinada.
— Eu prometo. — Ela baixou o olhar. — Mas e a sua
biblioteca? Talvez Papà ainda ajude?
Não havia esperanças de que isso acontecesse tão cedo, ela
sabia disso agora.
Mas ela não desistiria. Nunca. Os livros foram a razão da vida
de Mamma e tinham mudado a dela também, sendo seus
companheiros e escape quando a corte Sileni e até mesmo o
próprio Papà tinham sido cruéis com ela, tratando-a como um peão
inútil. Os livros tinham poder, o poder para derrotar a desesperança
ao fornecer refúgio, destruir a ignorância com sabedoria, o medo
com conhecimento. Por isso ela queria que todas as pessoas
tivessem acesso a esse poder, para fazer uso dele, para trazer paz,
compreensão e vidas melhores.
E eles teriam tudo isso, assim como Mamma desejara antes de
morrer.
Talvez um santuário Terran a acolheria. Um sumo sacerdote ou
o próprio grand cordon dos Paladinos de Silen, o senhor Massimo
de’Nunzio, poderia escutar sobre os planos dela de querer construir
uma biblioteca, cuidar de seus paesani. A Ordem da Terra era
conhecida em Silen por sua dedicação à caridade e à paz; Nunzio a
ouviria. Ela tinha certeza. E a Ordem, tão essencial para trazer a
paz, sem dúvida estaria aberta à ideia de deixar os elfos sombrios
participarem do empreendimento.
Veron parecia um homem sensato. Talvez defendesse a ideia
junto a sua mãe.
— Vou encontrar outra maneira — disse ela a Bianca. — Já
tracei todos os planos. Agora é apenas uma questão de encontrar o
investidor certo. — E a Ordem teria os fundos. Talvez ela já pudesse
enviar os planos da biblioteca para Nunzio e encontrá-lo em
Stroppiata durante o Cortejo Real para discutir sobre isso. Mas Papà
devia ter ordenado que alguém ficasse de olho nas
correspondências dela.
— Luciano e eu poderíamos ajudar — ofereceu Bianca,
animada. — Podemos mandar cartas para potenciais investidores
ricos, encontrar alguém que tenha interesse.
Sua correspondência era vigiada..., mas e quanto a de
Bianca? Ou a de Luciano?
— Eu adoraria a sua ajuda. Gostaria que enviasse algo para
mim, se puder.
— Claro — disse Bianca, assentindo.
Mais tarde, ela pediria para Gabriella entregar os planos para
Bianca, com instruções.
— Ah! Seu vestido chegou. — Bianca correu em direção à
caixa grande e misteriosa e abriu uma aba. — É uma ocasião
agridoce, Aless, mas pelo menos o vestido é lindo.
Papà vinha planejando casá-la com alguém há anos e, sem
dúvida, o vestido demorou quase o mesmo tempo para ser
confeccionado.
— Não vou precisar dele.
A boca de Bianca se abriu.
— Mas... Então, o que você vai vestir?
Ah, ela pensara muito sobre aquilo nos últimos dias. Quando
Mamma dera a ela Uma História Moderna de Silen, havia escrito
nele: Seja corajosa, minha rosa, e preencha as páginas restantes
com seus feitos.
Farei isso, Mamma.
Felizmente, algumas costureiras ainda aceitavam o seu bellani
d’oro. Aquelas que não temiam Papà.
— Vou usar os meus pensamentos, Bianca.
Mesmo nos tempos atuais, Papà os barganhara como se
fossem bens. Farei com que o signori saiba exatamente o que eu
penso sobre isso.

Depois de tirar as botas – as novas ainda não serviam direito


–, Veron andou descalço de um lado para o outro no quarto escuro.
Silenciada. Eles a silenciaram. Ele coçou o queixo.
— Por quê? Por que ela teve que fazer tal voto?
Gavri deu de ombros da sua posição na porta, ao lado de Riza.
— Talvez a voz dela seja como garras arranhando calcário. Ou
talvez ela seja uma idiota e o pai não quer que você descubra.
— É a minha futura noiva que você está insultando — rosnou
ele. Seu olhar encontrou o dela enquanto o silêncio se estendia
entre eles, até que ela desviou os olhos.
Ele afastou as cortinas grossas da janela e olhou para o pátio.
Uma tempestade. Nuvens escuras envolviam os céus, escurecendo
o mundo abaixo. Gotas pesadas atingiam as folhas verdes
exuberantes, a grama, os caminhos de pedra e os bancos. Os
pinheiros-mansos balançavam com o vento implacável. O reino do
céu mudava a cada hora.
Era difícil tentar ter uma noção da personalidade da princesa
Alessandra. O que importava para ela? O que gostava de fazer? O
que pensava? Seus olhos arregalados não responderam a nenhuma
dessas perguntas. O encontro deles só revelara seu medo e a
descoberta preocupante de seu silêncio.
— Você suspeita que ela esteja sendo forçada a fazer isso —
disse Riza, em voz baixa.
Ele mais que suspeitava disso.
— O quê? — disparou Gavri. — O príncipe Veron é um
exemplar...
— Ela é humana, Gavri — revidou Riza, ganhando um
grunhido de Gavri em resposta. — Eles enxergam as coisas de
maneira diferente.
A princesa Alessandra estava relutante em se casar. O que
mais poderia ser tão prejudicial que exigiria um voto de silêncio?
— Vim aqui acreditando que minha noiva havia concordado
com isso.
Gavri grunhiu.
— Este rei humano substituiu uma filha pela outra. Talvez haja
algum defeito que ela confessaria a você, se não fosse pelo voto.
O rei Macário havia explicado que, para seu constrangimento,
a princesa Bianca estava apaixonada por outro homem e que faria a
Entrega – se casaria – com ele, mas que a princesa Alessandra era
igualmente bonita, disposta e mais jovem. Os humanos valorizavam
a juventude de suas noivas, por significar mais anos férteis.
— Não, o rei jurou que a princesa Alessandra era saudável,
fértil, não estava grávida e que estava disposta. Antes da reunião,
realmente não importava para ele qual noiva humana ele tinha que...
como eles dizem... se “casar”, desde que ela concordasse e fosse
honesta. Não havia razão para ele interferir com uma união de duas
pessoas apaixonadas.
Riza ajeitou a postura, erguendo um pouco o queixo.
— Com todo o respeito, Vossa Alteza, mesmo que ela não
queira, isso importa? A rainha Zara te deu as ordens.
Um trovão soou, então o relâmpago iluminou a sala.
— Será que realmente importa o que a humana quer? —
acrescentou Gavri.
Ele enrijeceu e olhou para elas. Pelo Profundo e pela
Escuridão, é claro que importava. Ele era obrigado a obedecer às
ordens de Mati, mas não sem se importar.
Mesmo assim, tanto Riza quanto Gavri pareciam estar de
acordo. Ele se forçou a relaxar.
— O dever deve prevalecer a honra, Vossa Alteza. — Riza
apertou o punho da sua espada de vjernost. — Às vezes, um
precisa ser sacrificado para que milhares sejam salvos.
Gavri assentiu, com as sobrancelhas franzidas.
A paz. Quantos elfos sombrios e humanos já haviam morrido
neste conflito? E quantos mais pereceriam?
Os pais deles já haviam sacrificado ele e Alessandra por causa
daquelas vidas. Ele poderia fazer o mesmo? Os ataques da
Irmandade precisavam acabar. A fome tinha que cessar. Se ele
vacilasse agora, como poderia voltar e olhar nos olhos de Vadiha e
Dita?
Seu dever era com Nozva Rozkveta, sua rainha, e seu povo.
Tudo o resto vinha depois. Riza e Gavri estavam certas. Mesmo que
a princesa Alessandra não quisesse, as mãos dele estavam atadas.
Assim como as dela.
Porém, haveria duas cerimônias. Se ele tivesse certeza sobre
tudo aquilo, então teria todo o trajeto do Cortejo Real de volta para
Nozva Rozkveta para obter o consentimento dela. Eles tinham que
se casar, mas, quaisquer que fossem os medos dela, ele poderia
aplacá-los. Se ela nunca conseguisse vê-lo como um amante, a
princesa Alessandra poderia viver sua vida como desejasse, com o
melhor que ele fosse capaz de oferecer, e ele poderia viver a dele.
Um acordo prático.
Como ele nunca desafiaria as ordens de Mati, encontraria uma
maneira de persuadir a princesa Alessandra durante a viagem até
Nozva Rozkveta.
Soltou um suspiro. Ficar em posição de caça em meio a uma
tempestade parecia cada vez mais atraente à medida que os dias
passavam.
— Vou dormir.
— Bons sonhos, Vossa Alteza. — O canto da boca de Riza se
contraiu em um sorriso. Ao menos, ela conseguia ver graça nisso.
Gavri olhou para ela com um sorriso malicioso e bufou, tirando
uma mecha de cabelo do rosto.
Ambas sabiam que ele mal fecharia os olhos. Não com aquela
situação pesando em sua consciência.
Mas ele deu a volta na cama de dossel, saindo da linha de
visão delas, e se despiu; em seguida, abriu as cortinas da cama e
se acomodou. O colchão macio cedeu sob seu peso, e ele se
esticou, dobrando um braço atrás da cabeça. Fazia muito tempo que
não dormia numa cama humana. Elas eram muito mais luxuosas e
elaboradas do que as camas práticas dos elfos sombrios, mas
Veron sentiu falta da sensação agradável do enchimento de musgo
e do frescor que a fibra vegetal conferia a elas. Sem dúvida, a
princesa Alessandra preferiria algo desse tipo. Ele teria que arranjar
uma dessas camas para ela.
Tudo em Nozva Rozkveta era apreciado pelo seu valor prático.
Ele teria que explicar isso para ela. Uma Entrega – um casamento –
celebrava não apenas uma união, mas o que cada parceiro poderia
oferecer ao outro. E ele fora criado e educado por toda a vida para
se tornar uma pessoa de valor: um bom caçador, espadachim,
arqueiro e cavaleiro, culto, forte, honrado e valente. Um príncipe que
Mati pudesse negociar com confiança quando chegasse a hora.
E o momento havia chegado.
No dia seguinte, ele faria sua Entrega à princesa Alessandra
de Silen. Ele nunca tinha ido a um casamento humano, mas sabia
que eles usavam armadura, carregavam armas e cavalgavam para
todos os lugares, então os casamentos não deveriam ser exceção,
não é?
Capítulo 4

Aless dispensou todos os criados das câmaras privadas do lado de


fora da nave da L’Abbazia Reale. Alisou as dobras do vestido de
noiva, feito de vários metros de renda branca Pryndoniana e
bordados de pérola intrincados. Era um vestido maravilhoso, um que
qualquer noiva feliz adoraria usar no altar.
Qualquer noiva feliz.
Ela andou de um lado para o outro pelo tapete cinza,
sacudindo a cauda do vestido enquanto fazia isso. Não importava o
que acontecesse depois, hoje ela estaria oficialmente casada.
Mesmo que conseguisse persuadir Veron a não concluir a segunda
cerimônia no Bosque Noturno, estariam casados para sempre pela
lei Sileni.
Entretanto, se não vivessem como marido e mulher, isso não
importaria, não é? E não era como se ela precisasse se casar
novamente por amor. Portanto, desde que o grand cordon dos
Paladinos pudesse ajudá-la a construir a biblioteca e que ela
pudesse ensinar lá, não precisava de mais nada.
Tudo daria certo. Com a benção de Terra, tudo sairia como
planejado.
A tradição já tinha ditado a vida de muitas pessoas, incluindo a
dela, por tempo demais, e outras vozes haviam feito escolhas por
ela. Talvez desafiá-la naquela cerimônia, nem que fosse apenas um
pouco, faria a diferença.
Sim, ela se casaria com o príncipe Veron e não destruiria a
paz, mas deixaria claro o que pensava, da única maneira que podia.
Papà pode não ter dado a ela outra escolha importante, mas ela
ainda tinha essa.
Uma batida suave soou na porta, depois mais uma. Ela abriu.
— Bianca.
Bianca a olhou de cima a baixo com os olhos arregalados, sua
boca se abrindo, então pigarreou e fez um sinal rápido para que dois
criados, que carregavam um baú, entrassem.
— Você foi vista? — Depois que entraram, Aless olhou de um
lado para o outro do corredor, mas não havia ninguém lá além da
Guarda Real. Ótimo. Ninguém para contar ao Papà.
— Não. — Bianca assentiu para os criados, que baixaram o
baú e saíram. — Tem certeza de que quer fazer isso?
— É claro. O vestido já está pronto e tudo mais. — Aless
afastou o cabelo e desfez o laço em suas costas. Os dedos rápidos
de Bianca começaram a desfazer todo o trabalho árduo de
Gabriella.
— Eu não quis dizer a troca do vestido. — Bianca desfez o
último laço e Aless deslizou o vestido de seus ombros, saindo dele,
e abriu o baú.
Vermelho-sangue.
Sorrindo, ela pegou o vestido e o entregou para Bianca, que a
ajudou a puxá-lo sobre sua cabeça sem desmanchar o penteado.
— Já disse que estou fazendo isso por você. — Aless passou
os braços sobre a linha do busto e Bianca começou a amarrar as
costas, em seguida, rearranjou o tule com cuidado. O corpete coube
como uma luva e as saias se alargavam de forma dramática, com
uma cauda de três metros digna de uma princesa.
— Mas esse seu protesto — disse Bianca, com cuidado. —
Isso não sabotará seu casamento?
Só o fato de terem juntado os dois como se estivessem
jogando dois cavalos em um cercado já seria o suficiente para
sabotar este casamento. Ela suspirou.
— Ontem, quando Gabriella contou a ele sobre o Voto do
Silêncio, ele pareceu... furioso.
As mãos de Bianca fizeram uma pausa em seu trabalho e ela
deu um passo atrás.
— Furioso? Como se fosse ficar violento?
— Não exatamente. — Ela ergueu o cabelo outra vez. A
reação dele tinha parecido quase... protetora em relação a ela. —
Ao menos não era uma fúria direcionada a mim.
Bianca colocou o manto fúnebre preto, feito de penas de corvo,
sobre os ombros de Aless e ajeitou a cauda de três metros e meio
sobre o vestido, enquanto Aless deixava o cabelo cair livre e
amarrava a frente do manto.
— Ele tinha essa expressão de fúria e sibilou... Era como se a
própria noção de eu ter sido silenciada por um juramento o
ofendesse. — Um bom sinal. Ela se virou para Bianca, que guardou
o vestido de casamento de renda branca no baú.
— A linhagem real dos elfos sombrios é matriarcal, não é? —
perguntou Bianca, fechando o baú. — São as mulheres que detêm o
poder. Talvez ele concorde que outros não deveriam ditar o curso de
sua vida, nem silenciar sua voz quando se trata do seu futuro.
Sim, as elfas sombrias não “se metiam” com política, elas
governavam.
— Talvez.
— Bom, toda a nobiltà ouvirá sua voz hoje.
Seja corajosa, Mamma tinha dito. Ela seria. E garantiria que
sua voz fosse ouvida.
As notas familiares e imperiosas do órgão de tubos invadiram
o espaço, atravessando as paredes e a porta. Ela calçou suas
sapatilhas decoradas com joias pretas, verificou seus brincos de
diamante, em seguida, pegou seu manto de casamento branco
perolado.
— Está na hora. — Bianca segurou seu vestido de tafetá de
seda lilás azulado e abriu a porta.
Veron estaria esperando logo após o corredor, na entrada da
nave da L’Abbazia Reale.
O órgão de tubos a convocava para lá, e ela o seguiu,
obediente. O caminho da câmara lateral até a entrada estava quieto,
apenas os sons de seus saltos e os de Bianca lutavam contra o
silêncio, enquanto passavam pela Guarda Real, parada em seu
posto com seus mantos roxos.
Ninguém a esperava do lado de fora das portas de entrada.
Ele estava vindo? Com certeza ele estava tão ansioso para
este casamento quanto ela.
Mesmo assim, ela assumiu sua posição, e Bianca ajeitou a
cauda do seu vestido atrás dela.
Um som rítmico de cascos batendo no mármore ecoou, vindo
do corredor oposto.
Sua cabeça se virou em direção ao som.
O enorme corcel cor de ébano surgiu no corredor, músculos
ondulando, sua crina e cauda fartas esvoaçando enquanto trotava
cada vez mais perto.
Do lado de dentro da abbazia.
Guardas reais rodeavam o enorme cavalo, sibilando palavras
curtas um para o outro, enquanto um Veron estoico montava a
besta, todos seus quase dois metros vestidos com uma bela
armadura de couro preta.
Um arco pendurado em seu peito.
Uma aljava cheia de flechas.
Uma espada longa e um pergaminho amarrado ao seu lado.
Um escudo redondo em suas costas cobertas com um manto
preto.
Facas embainhadas em suas botas de equitação que iam até
os joelhos, em sua bandoleira, e em suas manoplas.
O queixo dela caiu. Ele parecia armado para uma guerra.
— Vossa Alteza — gaguejou um guarda real. — Cavalos... não
são permitidos dentro da L’Abbazia Reale.
Com o olhar fixo no dela, Veron desmontou com agilidade e
entregou as rédeas ao guarda, então deu um tapinha na besta antes
de se aproximar de Aless.
Nenhuma parte dela conseguia se mover. Nem a boca ainda
aberta, nem os pés, nem as mãos. Olhar era sua única habilidade.
Ele não usava máscara nem capuz hoje, sua pele azulada
estava exposta para todos verem. Seu cabelo branco
fantasmagórico fora adornado com tranças que se sobrepunham,
entrelaçadas, e chegava no meio das costas. Com a Ruptura tão
recente, a maioria das pessoas presentes hoje nunca teria visto um
elfo sombrio, muito menos um sem máscara.
Ele... Ele também estava fazendo uma declaração? Fazendo o
que devia fazer, mas não em silêncio, assim como ela?
Com uma marcha confiante e majestosa, caminhou até ela,
depois pousou um joelho no chão, ergueu a cabeça, e olhou em
seus olhos.
— Alessandra Ermacora, princesa de Silen, eu, Veron de
Nozva Rozkveta, lhe ofereço poder — começou ele, pousando a
mão no punho de sua espada —, sobrevivência, habilidade, defesa,
sabedoria e parceria. — Ele pousou a mão em seu arco, suas facas,
seu escudo, no pergaminho amarrado ao cinto, então pegou a mão
dela. — Para serem usados para seus objetivos ou os nossos,
enquanto trilhamos nossas vidas juntos a partir deste dia e até
quando o Profundo permitir.
As írises amarelas dele continuaram presas às dela, fazendo
seu coração se acelerar, e um suspiro escapou de sua boca aberta
enquanto ela tentava se lembrar de respirar.
— Esta é a tradição do meu povo — disse ele, em voz baixa, e
ficou de pé. — Chamamos o ato do casamento de “fazer a Entrega”.
Nós nos entregamos um ao outro, oferecendo tudo o que podemos
fazer e tudo o que somos.
Ele... ele esperava que ela fizesse o mesmo em resposta?
Ela engoliu em seco, seu olhar vagando pelas muitas
oferendas que ele havia trazido.
— Veron, príncipe do Bosque Noturno, eu...
Ela piscou. O que podia oferecer a ele? Ela poderia realmente
oferecer algo, quando na verdade nem queria aquilo? Quando o que
queria mais do que tudo era seguir os passos da sua Mamma?
— Eu...
Alguém bufou atrás dele, sua acompanhante do dia anterior. A
guarda de olhos ferinos. Ela também usava uma vestimenta de
couro elegante e sem máscara, nem sequer um capuz para cobrir
sua pele, de um tom azul como a meia-noite, ou seu cabelo branco
curto e espetado.
Os lacaios abriram as portas, e o volume do órgão de tubos foi
quase ensurdecedor quando começou a tocar.
Veron ofereceu seu braço e, lembrando-se de fechar a boca,
ela o segurou. Eles entraram no corredor longo e vermelho da nave
que levava à frente da L’Abbazia Reale, comprimidos em seu longo
e estreito caminho. Vários sussurros soaram quando entraram,
convidados de olhos arregalados que olhavam para Veron como se
ele fosse o próprio Nox vindo reivindicar suas almas e arrastá-las
para o Solitário.
A luz derramava das janelas inalcançáveis de tão altas,
iluminando a enorme estátua de Terra em seu altar na frente deles,
avassaladora e de tirar o fôlego. Imponente. Exigindo obediência
cega.
Hoje não. De nenhum dos dois. Com Aless em um vestido
vermelho-sangue e um manto fúnebre e Veron em armaduras de
couro preto e armas, todos em Silen acreditariam que, embora
jurassem votos, nenhum deles fazia isso sem objeção.
No entanto, Veron, por suas palavras, tinha feito isso de uma
perspectiva cultural. Será que Papà não mencionara os costumes
do casamento dos humanos para ele? Ou presumira que os elfos
sombrios agissem da mesma forma?
Apesar de sua sinceridade, Silen veria um simbolismo
diferente em seu traje. Sem dúvida fora algo não intencional, mas as
pessoas não saberiam disso.
Enquanto eles caminhavam no tempo da música do órgão de
tubo, ela puxou o fecho em seu manto de casamento e o deixou cair
de seus ombros, revelando seu manifesto em formato de uma capa
de penas de corvo.
Suspiros de surpresa soaram dos nobiltà amontoados nos
bancos. O braço de Veron se contraiu ligeiramente, apenas um
rangido do couro que blindava o seu bíceps. Porém, nada mais.
Eles não pararam.
Nenhuma reação veio do camarote real no balcão à direita, um
lugar à parte da abbazia. Nenhum grito de ordem. Nenhum Guarda
Real se aproximando.
Era uma vitória.
A música continuou, e eles também.
Padre Graziano, o antigo sumo sacerdote de Monas Bellan,
aguardava à frente, elevado sobre um palanque logo abaixo da
enorme estátua de Terra, que observava a todos de cima do seu
altar. Seus olhos se arregalaram ao ver o vestido vermelho-sangue,
o choque franzindo seu rosto enrugado ainda mais do que a velhice
já havia feito.
Ótimo. Aquele era um casamento da realeza. As notícias se
espalhariam por toda parte, os nobiltà e os paesani falariam,
contestariam, e aquela tradição teria que chegar ao fim. Pelo menos
para a próxima geração.
Ela se ajoelhou quando chegou à frente, assim como Veron.
Enquanto padre Graziano sacudia a cabeça para retomar o foco, o
olhar de Veron se desviou para ela.
— De livre vontade? — sussurrou ele, tão baixo que ela se
perguntou se ele tinha mesmo dito algo.
Era uma pergunta simples, mas a resposta nem tanto. Para
poupar sua irmã de uma provação de fogo, ela decidira queimar em
seu lugar. Mas aquilo fazia com que isto fosse de livre vontade?
Veron parecia gentil, sensato e, se ela tivesse que se casar com um
elfo sombrio desconhecido, podia ter acabado com um homem
muito pior. Mas, se tinha que fazer isto, era mesmo “de livre
vontade”?
Padre Graziano pigarreou.
— Por favor, deem as mãos.
Veron estendeu a mão, e ela colocou a dela na dele.
Padre Graziano atou uma fita dourada sobre as mãos dos dois.
— Assim como suas mãos foram unidas, suas vidas também
serão, enquanto se apoiam, protegem um ao outro e fortalecem um
ao outro.
Ele então recitou os votos a Veron e pediu para que repetisse.
Veron se virou para ela, suas sobrancelhas pálidas franzidas
enquanto a avaliava.
— Eu, Veron do Bosque Noturno — começou ele, hesitante —,
prometo a você, Alessandra de Silen, que, de hoje em diante, serei
seu marido, seu aliado e seu amigo. — Seu olhar incerto
permaneceu nela, enquanto Padre Graziano recitava os votos de
Aless.
— Eu, Alessandra de Silen, prometo a você, Veron do Bosque
Noturno, que, de hoje em diante, serei sua esposa, sua aliada e sua
amiga.
Ela encontrou o olhar dele. Não, ela não havia desejado este
casamento, mas participava desta cerimônia voluntariamente. Pelo
bem de Bianca e pelo bem das futuras mulheres Ermacora. Com
sorte, Veron teria uma mente aberta em relação a encontrarem outra
maneira de forjar a paz entre seus povos, em vez da segunda
cerimônia no Bosque Noturno. Ela assentiu para ele.
A tensão no semblante dele diminuiu visivelmente e sua
expressão se suavizou.
— Veron do Bosque Noturno e Alessandra de Silen estão
agora ligados um ao outro. Que o que a Sagrada Terra uniu,
nenhum homem possa romper — anunciou padre Graziano ao
retirar a fita.
Veron a ajudou a se levantar e, de mãos dadas, eles
encararam a nobiltà, que batiam palmas levemente e olhavam –
para Veron, para o vestido dela, alguns esticando os pescoços para
olhar para o camarote real.
Ela seguiu aqueles olhares até o lugar onde Papà estava. O
branco de seus dentes não estava à mostra, nem mesmo um sorriso
que pudesse discernir. Só uma máscara severa e sem expressão.
Ele não estava feliz. Ótimo. Então, ele estava começando a
entender como ela se sentia, como Bianca teria se sentido,
provavelmente como Veron se sentia também. Mesmo que Papà
não quisesse vê-la como mais do que um bem, agora fora obrigado.
Saindo do altar, eles passaram por Luciano e Tarquin
Belmonte, e Tarquin, rígido como a própria estátua de Terra, olhava
fixamente para ela, seus olhos de cornalina pregados sobre ela com
tanta intensidade que pareciam que olhavam através dela. O que
ele estava vendo?
Ela tremeu ao passar por ele.
Veron a conduziu para fora da abbazia e eles seguiram para o
caminho de pedras, onde uma carruagem puxada por seis cavalos
os aguardava.
Ele parou na frente dela, barrando seu caminho com o braço.
O céu escureceu, enormes sombras lançadas sobre as ruas de
pedras, e uma onda de arquejos e gritos abafados emergiram da
multidão do lado de fora.
Veron levou a mão ao escudo em suas costas enquanto duas
criaturas aladas passavam voando bem acima das suas cabeças, a
luz do sol brilhando nas escamas violetas e castanhas iridescentes.
— Não se mexa — ordenou ele, e, pela misericórdia da
Sagrada Mãe, ela não poderia nem se tentasse. Cada parte dele
estava tensa, focada, tão afiada quanto uma lâmina, enquanto
mantinha os olhos fixos nas criaturas.
— Aqui... aquilo são...
— Dragões inferiores — respondeu ele, com a voz baixa. — A
caminho do mar. Não estão interessados em nós, pelo que parece
— sussurrou ele. — Talvez só seguindo alguma ordem do Dragão
Mestre.
Dragões inferiores... Dragão Mestre...
O corpo todo dela tremeu, como um rato sob a mira de uma
vassoura, e nada podia impedi-lo.
As sombras passaram e a postura de Veron relaxou, seus
braços lentamente caindo para os lados enquanto ele se afastava
dela.
— Ta-talvez tenha sido bo-bom que você veio com uma
armadura — gaguejou ela, tentando engolir por cima do nó que se
formara em sua garganta.
— Eu adoraria pensar que sim. — Sua boca se curvou
enquanto os lacaios abriam as portas da carruagem. — Mas, se eles
nos quisessem mortos, com ou sem armadura, estaríamos mortos.
Uma risada nervosa escapou dela, enquanto Veron a ajudava
a entrar na carruagem e, em seguida, sentava-se em frente a ela.
Bianca e a guardiã de olhos afiados entraram depois deles, uma
olhando para a outra em silêncio.
Dragões. Eles tinham acabado de ver dragões. Seres que ela
só conhecia dos livros.
Mas a porta se fechou, o condutor deu o sinal de partida e,
com isso, estavam a caminho do banquete e da noite de núpcias.
 
Enquanto a carruagem sacudia ao passar sobre a rua de
pedras, Aless lançou um olhar furtivo para Veron, sentado à sua
frente. Seus olhos atentos checavam os arredores através da janela
e, com as muitas armas, ele era tão intimidante quanto qualquer
guarda. Até mesmo mais.
Enquanto toda a multidão abafara os gritos e tremera, ele se
mantivera firme diante dos dragões. Da próxima vez que aqueles
dragões aparecessem, poderiam não ignorar a cidade e, se o povo
dela tivesse sorte, os elfos sombrios os ajudariam.
Veron não precisava de armas para intimidar... Aquele físico
imponente o tornava forte, tão forte quanto qualquer guarda – não,
mais forte que eles. Ele descansava uma mão com garras sobre
uma faca embainhada em seu pulso. Aquelas garras – e aquelas
presas, embora ela não se atrevesse a olhar para elas –
significavam que ele nem sequer precisava de uma arma.
Ele viera à cerimônia de casamento armado como um
guerreiro. Dissera que era uma tradição dos elfos sombrios, mas...
ele tinha noção de como os humanos julgariam aquilo? Os elfos
sombrios pareciam saber muito mais sobre a sociedade humana do
que os humanos sabiam sobre a deles.
No entanto, ela não tinha considerado como os elfos sombrios
interpretariam a sua própria declaração. Isso nem passara por sua
cabeça.
Ela deixara claro sua mensagem para Papà e para todos,
sobre escolhas. Mas... Ela apertou o tecido de tule do vestido
vermelho-sangue em seus punhos. Não tinha sido a intenção dela
se opor a Veron, mas era assim que poderia ter parecido.
Sem dúvida, toda a nobiltà já fofocava sobre seu noivo
relutante blindado da cabeça aos pés. Rumores se espalhariam por
toda parte sobre como até mesmo um elfo sombrio tinha se casado
relutantemente com a princesa Bestial.
Caso também fosse considerar os rumores sobre ela, bem que
merecia isso. Mordeu o lábio.
A guardiã de olhos afiados ao lado de Veron a encarava, e
tentar reunir a coragem necessária para dizer qualquer coisa a ele
sob aquele olhar era uma batalha perdida. Talvez sua declaração
tivesse sido ainda pior para os elfos sombrios do que ela pensava.
Mais tarde, quando ela e Veron estivessem sozinhos, teria que se
desculpar com ele.
Talvez ele ficasse aliviado quando ela dissesse que não tinham
que se casar. Ela mentira em sua promessa, mas talvez ele
ignorasse a mentira em favor da liberdade para ambos.
Ela sentiu um aperto em sua mão – Bianca entrelaçou os
dedos nos dela e não soltou até que a carruagem parou no portão
principal do palazzo. Uma multidão já havia se reunido, aplaudindo e
gritando para a animada fanfarra de cornetas e a chuva de confetes
coloridos. Os criados abriram a porta da carruagem e a guardiã de
olhos afiados saiu primeiro, depois Bianca, e então Veron, que lhe
estendeu a mão.
Aqueles olhos exóticos encontraram os dela, amarelos como
os de um leão, e ela estremeceu, mas ele não vacilou. Com o
coração acelerado, ela estendeu a mão para a dele, que a ajudou a
sair, uma garra afiada arranhando bem de leve seu pulso. Ela lutou
para não se encolher e manteve o rosto impassível, disposta a não
demonstrar nenhuma reação.
A multidão se aglomerava, empurrando uns aos outros mesmo
com o cerco da Guarda Real, aplaudindo, gritando e olhando de
olhos arregalados, mas Veron manteve a postura régia, segurando a
mão dela enquanto caminhavam pelo tapete vermelho até o
palazzo.
Na parte de dentro, rosas vermelhas e brilhantes alegravam o
saguão cavernoso, as flores belas demais para serem reais; ela só
vira algo assim em seus sonhos e, mesmo assim, não tinham uma
cor tão vívida que ela podia praticamente tocar, um perfume tão
envolvente que a abraçava, em uma sensação familiar e
reconfortante. De onde tinham sido trazidas?
Ao lado dela, Veron parecia não ter sido afetado, olhando
apenas para a frente em direção às figuras distantes de Bianca e
sua guardiã de olhos ferinos, mas seu aperto sobre a mão dela não
era frio – era quente e gentil.
Mesmo que os dois não quisessem isso, em nenhum momento
ele tinha feito algo para merecer os rumores que ela causara.
— Eu queria que você soubesse — sussurrou ela, e ele olhou
em sua direção pelo canto do olho —, que eu estava tentando fazer
uma declaração para o meu pai sobre escolhas. Com o vestido
vermelho e as penas de corvo. Não era a minha intenção ofendê-lo,
embora me dei conta que talvez possa ter feito exatamente isso.
Sinto muito.
— Qual declaração? — perguntou ele, no mesmo tom baixo,
enquanto olhava para a frente.
Ela soltou um suspiro longo.
— Que devemos poder opinar sobre o nosso próprio futuro.
Ele se enrijeceu.
— Você não concordou com isso? — Sua voz aveludada
assumiu um tom grave, gélido.
Ele chegara à conclusão que ela temia?
De livre vontade? ele havia perguntado durante a cerimônia.
Ele se importava. Talvez mais do que ela tinha pensado.
Ela virou o rosto rapidamente para ele, então olhou para o lado
outra vez, secando uma palma úmida em seu vestido.
— Eu... concordei. Embora não do jeito que você deva
imaginar. Meu pai me prometeu para o homem que a minha irmã
ama. Eu me ofereci para trocar de lugar com ela.
Aqueles olhos amarelos vívidos se arregalaram, de forma
quase imperceptível, apenas por um instante.
Ela conseguia imaginar Veron sendo convocado a uma sala do
trono muito parecida com a de Papà, sua figura imponente com a
cabeça baixa, ajoelhado diante de um palanque onde sua mãe
mantinha o trono, cercada por súditos silenciosos, testemunhando
das sombras. Ele mantivera a cabeça curvada enquanto ela
decretava as ordens para que ele se casasse com uma mulher tão
diferente dele, tão indesejável. Ordens que ele se recusava a
desobedecer, não importando seus sentimentos sobre o assunto.
— Sua mãe perguntou se você queria isso? — pensou ela, em
voz alta.
— Não. — Sua voz estava carregada de certeza, como se só
pudesse haver uma resposta. — A rainha não pergunta. Ela espera.
E nós atendemos a essas expectativas. Essa é a vida de um
príncipe, e de qualquer elfo sombrio. Pronto para se sacrificar pelo
bem do Profundo, para o bem de todos os elfos sombrios.
— Sacrificar — sussurrou ela, repetindo a palavra, e sua voz
tremeu um pouco.
Ele nunca quis este casamento e isso se adequava aos planos
dela – de convencê-lo de que não precisavam completar a segunda
cerimônia, no Bosque Noturno –, mas havia algo muito triste a
respeito de ele não poder dar opinião sobre a própria felicidade, e
aquilo apertou o coração dela. Ele estava atado, preso ao seu dever
como se fosse uma maldição, uma que não podia quebrar.
Nisso, eram iguais.
Sua mão apertou em torno da dela, apenas um pouco.
— Peço perdão — disse ele, com uma voz profunda e baixa.
Ele se inclinou, em direção a ela, sua proximidade a fazendo
estremecer, enquanto aqueles olhos vívidos encontravam os dela e
se suavizavam. — Eu falei sem pensar.
Ele estava tão, mas tão próximo que aquela beleza
aterrorizante, para não dizer de outro mundo, era difícil de ignorar. O
azul-ardósia de sua pele era da cor das montanhas distantes, um
azul-cinzento por trás de um véu de névoa. A cor da rocha antiga
que se formara na terra muito antes de ela nascer, antes dos
humanos existirem.
Antes que ela pudesse responder, as portas do grande salão
se abriram, e tanto Bianca quanto a guardiã de olhos afiados se
posicionaram na lateral enquanto ela e Veron entravam. Os
convidados ainda não haviam chegado, mas o salão nem de longe
estava vazio. Criados se apressavam, agitados, por todos os lados,
carregando todos os tipos de pratos, garrafas, taças e iguarias. Os
músicos já estavam se instalando no canto e enormes arranjos de
flores adornavam os arredores do salão, combinando com os
arranjos ostensivos no centro das mesas.
Veron observou tudo com os olhos semicerrados, como se tais
preparações fossem estranhas para ele. Talvez fossem. Como
exatamente seria um banquete de casamento dos elfos sombrios?
Ela se virou para ele, mas a mão de Bianca segurou seu braço com
delicadeza.
— Venha — disse Bianca, com um sorriso sutil. — Vamos nos
preparar para o banquete.
A guardiã de olhos ferinos murmurou algo para Veron,
inclinando a cabeça.
— Vejo você no jantar, Alessandra — anunciou Veron.
Ela deu um sorriso a ele. Com uma troca de olhares rápida, ela
e Veron seguiram por caminhos diferentes. Não demoraria muito
para que os convidados começassem a chegar e ela tivesse que
voltar ao grande salão muito antes de Papà comparecer – isso caso
quisesse evitar que ele ficasse ainda mais bravo.
E então... viria a consumação.
Capítulo 5

Em seus aposentos, Aless acariciou com um dedo a faixa de chiffon


vermelho aberta em sua espreguiçadeira acolchoada, etérea e
romântica. Uma camisola para mais tarde. Bianca havia escolhido,
assim como um deslumbrante conjunto de joias de rubi e ouro.
— Você faz parecer que estou tentando seduzi-lo — murmurou
Aless.
Atrás dela, Bianca prendia a cauda do vestido vermelho com
alfinetes.
— Talvez isso facilite as coisas esta noite?
Esta noite.
Ela estremeceu.
Após o banquete, ela e Veron, acompanhados de um bando de
lordes e conselheiros, partiriam para seu quarto. Para a
consumação. As cortinas da cama seriam fechadas e, na presença
desses oficiais, ela e seu novo marido, o elfo sombrio, teriam que...
que...
— Você está com medo? — perguntou Bianca, baixinho.
Com medo. Ah, sim, ela estava com medo.
Quer dizer, ela já esteve com muitos amantes, só que muitos
amantes humanos. Todos eram homens que ela escolhera, fortes e
bonitos, bem-educados, sedutores. Com aqueles homens, tinha sido
ousada, feroz, confiante. Fora atrás deles, os seduzira e havia
brincado com eles como quis. Naquelas vezes não houvera uma
única preocupação em sua mente, não mais do que o mistério
pulsante de saber se cada um deles se mostraria capaz e digno de
seu tempo.
Mas Veron...
Veron. Ela passou a ponta do dedo pelo arranhão no pulso.
Ela nem sequer havia se acostumado a apenas olhar para ele
sem prender a respiração ou tremer. Até a voz dele a fazia
estremecer. Eles tinham acabado de se conhecer, e eram tão
diferentes um do outro – diferentes demais. Talvez entre dois elfos
sombrios não houvesse uma preocupação com garras e presas, já
que a pele deles parecia ser mais resistente também.
Mas uma das garras dele havia apenas roçado o pulso dela,
quando saíram da carruagem, e conseguiu deixar um arranhão.
Passando um dedo por cima do local, ela franziu as sobrancelhas.
Algo tão banal, como ajudar uma dama a sair de uma carruagem, e
ele deixara uma ferida.
Mesmo que eles... superassem suas diferenças, o quanto ele
poderia ser cuidadoso? Quanto controle poderia ter? Sendo criado
como elfo sombrio, quanto poderia saber sobre os limites de uma
humana? No meio do prazer, até mesmo os humanos perdiam a
noção, entregando-se de corpo e alma à sensação. O que
aconteceria com ela se ele fizesse o mesmo?
O arranhão fora de leve, era quase imperceptível, mas e se ele
se esquecesse só por um momento...
— Aless? — Bianca ficou diante dela e pegou sua mão, o rosto
pálido e com rugas de preocupação. — Estou comovida por você
querer fazer isso por mim. Eu estou... agradeço por intervir. Mas não
precisa fazer isso. O casamento ainda não foi consumado e ainda
podemos...
— Eu... só estou nervosa. — Forçando um sorriso, ela abraçou
Bianca. Não havia como nem sequer considerar sabotar a felicidade
da irmã. Não quando Bianca amava Luciano com todo o coração. —
Não se preocupe comigo. Ficarei bem.
— Você só diz isso para me acalmar e... — disse Bianca,
tentando se soltar do aperto.
— Não — rebateu, abraçando a irmã com mais força. Seu
coração se acelerou no peito, mas ela tinha que convencer Bianca
de que tudo ficaria bem. — Lembre-se de que as testemunhas
estarão lá hoje. E, depois disso, tenho o meu plano, certo? — Sua
voz falhou e, com ela, sua compostura. Não importava todo o
esforço que fazia para se manter firme, ainda assim, algumas
lágrimas solitárias escaparam.
Fechou os olhos e inspirou fundo três vezes.
Ela nunca quis desaparecer naquele pátio tomado por rosas
tanto quanto naquele instante, cercada pelas rosas crescidas e seu
ar tangível de magia, naquele lugar de sonhos ao qual sabia que
pertencia. Uma floresta de videiras emaranhadas, selvagens e
sinuosas, que reinavam no local e que, mesmo assim, abriam
espaço para ela, formando um corredor através do verde e a
deixando entrar.
— Não quero que você faça isso — sussurrou Bianca. — Eu
sei que eu disse que...
— Já está feito. — Colocando os ombros para trás, ela se
afastou e sorriu para Bianca, que fungou, baixinho. — Vai ficar tudo
bem. Você vai ver. Você vai se casar com Luciano, e eu e Veron
chegaremos a um acordo. Nenhum de nós dois quer isso, então
acho que ele ficará motivado a trabalhar comigo. E então...
Ela ainda estaria tecnicamente casada no reino humano e
Papà nunca a deixaria voltar se quebrasse a promessa. Na melhor
das hipóteses, daria um jeito de se tornar uma protegida da Ordem,
e cansaria o ouvido de todos eles até que a biblioteca pública fosse
construída. Um lugar onde pudesse fazer a diferença.
Com os olhos brilhando, Bianca deu um pequeno aceno de
cabeça. E lá estava... um entendimento entre elas. Ela estava
decidida a fazer isso, e Bianca não discutiria mais.
Ótimo. Pelo menos uma delas podia ser feliz.
No espelho, seu manto de penas de corvo havia desaparecido
e o vestido de casamento dramático estava com a cauda presa com
os alfinetes, tornando-o perfeito para dançar. Será que elfos
sombrios dançavam? Será que Veron dançava?
— Você viu o rosto de Papà na abbazia? — indagou Bianca,
com um leve riso. — Nunca vi os olhos dele tão arregalados. E
Lorenzo, com as sobrancelhas tão altas, mas os olhos estavam
apertados, como se estivesse sorrindo. — Bianca tentou disfarçar
um sorriso, mas falhou.
Lorenzo era o primogênito e herdeiro de Papà, mas durante
anos vinha driblando o papel opressor de seu título, lutando em vão
por uma vida simples que nunca poderia ter. Ah, se ao menos
pudessem trocar de lugar – ela aceitaria de bom grado as
responsabilidades que ele queria evitar, e ele poderia ter uma vida
tão simples quanto quisesse sendo negociado como um peão.
— Talvez ele possa falar ao seu favor com Papà —
acrescentou Bianca. — Ajudar que você volte às boas graças dele.
— Acredito que ele não deve ter boas graças sobrando para
mim. — Ela estreitou os olhos para o próprio reflexo antes de se
virar para a porta. Não havia mais nada para ela naquele lugar. À
sua frente, tinha apenas suas negociações com Veron, e uma vida
longe do palazzo, o que quer que aquilo significasse. — Vamos.
Creio que o meu banquete de casamento está prestes a começar.
Bianca se juntou a ela enquanto Aless saía do aposento e se
dirigia para o grande salão. Naquela noite, ela e Veron encontrariam
uma maneira de sobreviver à consumação, mas, antes disso, havia
um salão inteiro cheio de cortesãos, alguns dos quais pertenciam à
Irmandade, que vieram para participar de um banquete de
casamento entre uma humana e um elfo sombrio. Sem dúvida, Papà
já havia preparado a Guarda Real, assim como ela também teria
que se preparar. Por mais que quisesse encontrar um jeito de
escapar deste casamento, nenhuma de suas estratégias de escape
poderia arruinar a paz. Ela não permitiria isso.
O arauto anunciou a chegada dela e de Bianca e, ao entrarem,
todos os convidados sentados nas muitas mesas espalhadas pelo
salão ficaram de pé, incluindo Veron, que estava na mesa principal,
vestindo um paletó preto elegante com botões em formato de rosas
prateadas – pertencia a Lorenzo –, uma calça bem ajustada e suas
próprias botas. Lorenzo deve ter conversado com ele, o auxiliado.
Um gesto de gentileza. Muito nobre da sua parte, irmão.
O olhar de Veron repousou sobre ela, resoluto, enquanto ele
cruzava as mãos atrás das costas, evidenciando sua aparência
forte. Não olhava para ela com a intensidade dos homens que já a
desejaram – não era preciso pensar muito para saber o porquê –,
porém, mesmo um olhar sereno como aquele era inquietante ao
notar como ele parecia perfeitamente controlado. Quando criança,
ele deveria morrer de medo de ter sequer um fio de cabelo fora do
lugar e, com isso, arriscar desapontar a mãe. Mesmo agora, a
sombra desse risco o seguia até aqui.
Ela e Bianca se dirigiram para a mesa principal, ladeada com
grandes arranjos de flores, onde um Luciano, que sorria com
doçura, puxou uma cadeira para Bianca, assim como Veron fez para
ela. Aqueles dois. Eles provavelmente já tinham apelidos adoráveis
um para o outro, como gatinha e gatinho.
Enquanto cumprimentava Veron com um aceno de cabeça e
se sentava, um arrepio percorreu sua coluna e seus olhos vagaram
em direção ao olhar de Papà.
Ele estava sorrindo.
Ergueu uma taça para ela, olhou além dela em direção a
Bianca e Luciano, e depois se recostou.
Com o coração batendo forte, ela olhou para o local sobre o
qual ele se recostara antes, que agora estava vazio. O zumbido
baixo do salão desapareceu, sobreposto pelo pulsar soando em
seus ouvidos, cada vez mais alto.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, ele... ele tinha armado para
ela.
A maneira como tinha convocado ela e Bianca para a sala do
trono e anunciado os arranjos de casamento...
Ele a tinha... a tinha manipulado.
Ela nunca tinha sido capaz de ignorar uma injustiça, não
enquanto pudesse fazer algo para ajudar. E Bianca...
Bianca ansiava por Luciano há meses, e Papà era muitas
coisas, mas não ignorante, ainda mais no que dizia respeito à sua
filha favorita. Ele poderia ter previsto a reação exata dela e
planejado tudo, esperando que se oferecesse no lugar de Bianca.
E ela tinha se oferecido.
Mas não completamente, não enquanto ainda tivesse jogadas
para fazer que não colocariam em risco a felicidade de Bianca. Papà
não se safaria depois dessa. De jeito nenhum.
Ela sentiu as mãos ficarem dormentes e lá estavam elas em
seu colo, cerradas com tanta força que o sangue não fluía.
Seu olhar buscou Papà mais uma vez. Se ele achasse que
poderia manipulá-la assim, enganá-la, e acreditasse que era tão
estúpida a esse ponto, então deveria ter pensado nas
consequências.
Nestas consequências.
De que pudesse vir à público o tipo de tratamento que ele
dispensava a ela, que era o que ela faria naquele instante.
Ela arrastou a cadeira para trás, mas uma mão se fechou em
torno de um dos seus punhos. Uma mão azul-ardósia, com garras.
Olhando para Veron, ela estava prestes a exigir que ele a
soltasse, quando seu olhar se encontrou com aqueles olhos
inabaláveis. Aquele olhar firme e controlado, que se desviou em
direção à pista de dança e de volta para ela.
Ele ergueu as sobrancelhas brancas uma vez, como se para
encorajar uma resposta.
Uma resposta para quê? Ele tinha dito algo?
Ela engoliu em seco e a música a atingiu, um prelúdio, uma
versão estendida. Suas mãos em punho relaxaram devagar.
— Alessandra? — perguntou aquela voz aveludada e firme,
mas havia uma suavidade nela, uma gentileza.
— Hum?
— A dança. — Ele piscou. — Você aceita...
— Ah, sim — respondeu, rapidamente. A primeira dança.
Ao redor da pista de dança, miríades de rostos seguiam cada
movimento seu, toda a nobiltà a observando com cuidado,
assistindo a paz diante deles de forma atenta. Ela pareceu se opor a
Veron durante o casamento, e ele a ela. Então, Aless ainda
precisava demonstrar a sua aceitação, pelo menos por um pouco
mais de tempo. E depois torcer para que fizessem a transição para
uma amizade genuína e clara.
Se não desempenhasse bem seu papel, a paz simbólica entre
ela e Veron falharia e, com ela... a paz entre seus povos.
Não deixarei isso acontecer.
Não importava o que Papà tivesse feito.
Forçando um sorriso, ela se levantou com Veron, permitindo
que a guiasse enquanto os músicos mais uma vez estendiam o
prelúdio, atenta àquelas garras afiadas. A dança começaria com
uma quessanade.
A quessanade... uma dança humana. Ela respirou fundo, e os
olhos de Veron se voltaram brevemente para ela.
— Você sabe dançar a quessanade? — sussurrou ela.
Suas sobrancelhas pálidas se uniram, os lábios apertados em
uma linha fina. — Conheço bem as danças humanas...
Graças a Mãe.
— Mas não danço há mais de dois mil anos — respondeu,
nenhum músculo se movendo mais do que o necessário.
Dois mil...
— Você confia em mim? — sussurrou ele, enquanto se
aproximavam do centro e assumiam a posição.
Ele só sabia danças humanas de dois mil anos atrás?
— Você não...
— Você confia em mim, Alessandra? — A voz dele era suave,
mas firme, enquanto sua mão apertava a cintura dela, suas garras
apenas arranhando levemente o tule.
Ou ela teria que conduzir ou... teria que confiar nele.
Não, aquilo poderia terminar muito...
No entanto, quando o primeiro movimento da música começou,
ele a puxou para perto, apenas a uma pequena distância de seu
peito, e a conduziu em um passo deslizante, com uma rotação que
fluía de uma volta para outra e se repetia. Uma variedade
deslumbrante de cores girava ao redor deles, mas aqueles olhos
dourados e cintilantes permaneceram fixos aos dela, em um foco
inabalável, intenso e determinado, e ele manteve uma postura
perfeita, segurando-a de forma firme enquanto a conduzia.
Devia ser assim que seus ancestrais dançavam há milhares de
anos, cara a cara, olho no olho, perto o suficiente para respirar
aquele aroma de terra fresca misturado ao da água mais pura, como
um riacho em uma floresta tão cristalino que as pedras lisas no
fundo eram perfeitamente visíveis, suas superfícies sendo polidas
pela água por centenas de anos ou mais, até assumirem a
suavidade do vidro. Os dedos dela roçaram a dureza daquelas
pedras – só que não eram pedras, era o ombro dele através do
brocado preto. Pela misericórdia da Sagrada Mãe, que
embaraçoso...
As sobrancelhas dele se franziram e aqueles cílios pálidos
piscaram, seu foco inquebrável vacilando por um momento
enquanto ele olhava para os lábios dela e de volta para seus olhos.
— Boa dança — sussurrou ela.
Um canto dos lábios dele se ergueu.
— Era chamada de rotante. Os jovens adoravam, e os mais
velhos...
— Ficavam chocados? — sugeriu ela, enquanto ele a conduzia
em um giro.
Ele assentiu de maneira divertida, enquanto outros casais
ocupavam a pista, seguindo os passos de Veron na tentativa de
dançar o rotante também. Vozes animadas e risadas os cercaram.
A proximidade desta dança sem dúvida fora algo escandaloso,
mas, para os padrões atuais, era até um tanto comedida em
comparação com a sarabande ou a volta.
— Não tem medo de escândalos, Vossa Alteza?
— Veron — corrigiu ele, buscando os olhos dela. — Eu...
escolhi a dança mais moderna que conhecia.
Uma dança de dois mil anos? Ela conteve uma risada, mas,
quando um sorriso brincou nos lábios apertados dele, permitiu-se
sorrir. Se ela tivesse decidido conduzir, aquilo teria sido um
desastre.
— Como o seu povo dança em casamentos?
Um brilho passou pelos olhos dele.
— Não dançamos. Dançamos apenas em algumas ocasiões,
mas, na maioria, temos jogos.
Jogos?
Lorenzo interrompeu, sorrindo como uma debutante que tinha
acabado de ser apresentada à sociedade, e Veron apertou a mão
dele com um sorriso, a ponta de uma das suas presas aparecendo.
Presas.
— Não se preocupe, irmã — comentou Lorenzo com um
sorriso largo. — Eu não vou ocupar muito do seu tempo esta noite.
Esta noite. Ela respirou fundo enquanto Lorenzo a conduzia e
Veron tomava a mão de Bianca. A dança foi tranquila, mas quanto à
noite... aquele era um assunto totalmente diferente.
— Esta será a mais nova tendência na corte. — Lorenzo
sorriu. — Como se chama essa dança?
— Rotante — respondeu ela.
Naquela noite, ela e Veron estariam num quarto, cercados por
oficiais. Ela estaria usando aquela... camisola – não, aquele pedaço
de chiffon que mal poderia ser chamada de vestimenta. Será que
nessa hora ele também pediria que ela confiasse nele?
— Depois que você conseguir deixar de lado todas as... —
começou Lorenzo, franzindo a testa – ... diferenças, você pode até
passar a gostar dele, Aless.
Gostar dele não era o problema. Ela até gostava de muitas
pessoas, ou pelo menos não as odiava, mas isso não significava
que escolheria compartilhar uma cama com elas. E quanto a Veron?
Sem dúvida ele também não estava interessado nela. Alguém se
importara com o que ele queria? Com o que qualquer um dos dois
queria? Ou a tradição passava na frente da escolha pessoal quando
Papà ou a rainha do Bosque Noturno assim quisessem?
Bianca riu em algum lugar próximo, enquanto Veron a girava,
seu movimento controlado, fluido. Quanto tempo ele passara
aprendendo esta dança e todas as outras? Ele passara mais tempo
se esforçando para aprender sobre a cultura humana do que
qualquer pessoa desse salão deve ter passado tentando conhecer a
cultura dele.
E aquele paletó escuro, aquelas calças bem ajustadas,
vestiam bem nele, talvez até um pouco apertadas. Sua constituição
era um pouco maior do que a de Lorenzo, que por si só tinha um
corpo forte, mas passava menos tempo treinando. Ele treinava o
suficiente para aprimorar suas habilidades com o duelo de espadas
e o arremesso de facas, mas sempre preferia a cama aos pátios de
treinamento.
— Obrigada — disse a ele. — Pela mudança de vestuário.
Com um sorriso torto, Lorenzo inclinou a cabeça.
— Cuidado, Aless. Mais uma ou duas palavras gentis como
essa e podem surgir rumores de que você está amolecendo.
— Que a Sagrada Mãe nos livre disso — brincou ela, enquanto
Lorenzo desviava o olhar.
Tarquin substituiu Lorenzo antes que ela pudesse se opor,
olhos castanho-escuros brilhando naquele rosto bonito até demais.
Depois do que ele dissera na noite do baile de máscaras e do que
contaram sobre seu envolvimento com a Irmandade, ela não estava
interessada em saber mais nada sobre ele e seu ódio. Ela deixou
que conduzisse, mas todo seu corpo estava tenso.
— Até mesmo um leão pode ter medo às vezes — disse ele,
com cuidado, enquanto deslizava conforme o ritmo.
— É quando eles são mais perigosos. — Ela não o olhou nos
olhos. Não olharia. Ele não merecia seu respeito.
— Um leão solitário pode ser derrotado com facilidade —
respondeu ele, sem se abalar —, mas apenas se esquecer sua
verdadeira força: o orgulho.
A Irmandade?
— Esta leoa não precisa de orgulho — retrucou ela.
— Você não precisa se esconder por trás de sua máscara,
princesa — sussurrou Tarquin. — Não comigo. O orgulho está
observando. Apenas diga uma palavra, a qualquer hora, em
qualquer lugar, e a nossa força... aliviará sua solidão.
Ela estremeceu. A qualquer hora? Em qualquer lugar? Como
poderiam...
Mas ele já tinha partido e Luciano estava em seu lugar,
sorrindo.
— Bom, Vossa Alteza, o que acha desta dança? — perguntou
ele, conduzindo.
Aquela dança estava se tornando perigosa. E agora, mais do
que nunca, com os olhos do orgulho a vigiando, teria que ter
cuidado com cada passo.
Capítulo 6

Veron caminhou de um lado para o outro da câmara de banho,


ficando apenas de camisa e calções. Pausando, arrancou as botas
– que eram bem-feitas, mas muito apertadas – e voltou a caminhar.
Eles estavam esperando do outro lado – os conselheiros e
lordes, os homens sagrados dos humanos – para se certificarem
que este casamento fosse concluído.
Aquilo era um problema.
Para os humanos, um casamento era incompleto sem o que
eles chamavam de consumação. O primeiro ato amoroso entre uma
noiva e o noivo. Para a realeza, em especial, muitas vezes grandes
consequências dependiam dos casamentos, e era imperativo que a
consumação fosse acompanhada por testemunhas confiáveis e sua
execução, documentada. Ele sabia bem de tudo isso, pois era da
mesma forma até mesmo dois mil anos atrás.
Alessandra tinha dito que seu vestido fora uma declaração, e
aquilo teve um efeito, com base nos sons de surpresa dos humanos
no santuário. Ou, talvez, chegar trajando uma armadura, com todas
aquelas as armas e montando um cavalo não fosse um costume de
casamentos humanos.
Mas ela não o havia parado. O braço dela permanecera
repousado no seu, e seguira pelo corredor ao seu lado. Qualquer
declaração que ela tenha feito, não fora uma recusa. Não fora algo
bom, mas... não fora uma recusa.
Eles não haviam trocado uma palavra durante o trajeto até o
palácio e não falaram quase nada durante a festa. Em vez disso,
apenas dançaram, depois comeram a comida dos humanos em
silêncio, enquanto os convidados se embebedavam até perder os
sentidos.
E depois... isto.
Riza tinha razão, mesmo que ele e Alessandra não
concordassem, essa cerimônia precisava acontecer. Por mais que
ela estivesse certa, no momento, todas as partes do corpo dele não
se importavam.
Haveria uma mulher no quarto ao lado, sua nova noiva, com
quem teria que consumar este casamento. Sua noiva provavelmente
fora forçada.
Fazer aquilo seria...
Desonroso. Inadmissível. Desprezível.
Uma resposta. Ele precisava de uma resposta.
Uma porta se fechou no outro ambiente. Alessandra.
Ele olhou para a própria porta. Há quanto tempo estava lá? Ele
não devia tê-la deixado ser a primeira a sair. Ele deveria estar lá,
esperado por ela.
Primeiro, eles trocariam presentes, e depois...
Ele olhou para a caixa de madeira longa e plana sobre uma
mesa próxima. Não havia como saber se ela era uma arqueira
habilidosa ou não. Se fosse, apreciaria o arco Nozva Rozkvetano
feito de madeira de jacarandá e, se não fosse, ele ensinaria a ela
tudo o que precisava saber. Mas será que ela teria interesse?
Com uma respiração profunda, ele arregaçou as mangas da
camisa, colocou a caixa debaixo de um braço e abriu a porta.
À escassa luz de velas, ela estava do outro lado do quarto,
vestindo uma camisola longa e vermelha, que se arrastava no chão,
segurando em suas mãos delicadas um pacote embrulhado. Ela
usava joias nos dedos, pulsos e orelhas e, ao redor do seu pescoço,
havia um colar de ouro incrustado de rubi. Seu cabelo estava solto e
volumoso, um castanho quente como casca de cipreste encharcada
pela chuva, um tom mais claro do que seus olhos escuros. A
camisola estava pendurada por alças finas e delicadas, deixando
seus braços longos e elegantes nus.
Ele reprimiu um arrepio. Cada parte dela parecia tão macia.
Não havia nada de robusto nela, só de... Só de olhar para ela dava
para saber que nunca sobreviveria às condições difíceis em Nozva
Rozkveta, nem em qualquer reino do Profundo, se estivesse por
conta própria.
Mas agora ela tinha a ele. Juntos, sobreviveriam a qualquer
coisa.
Ela se moveu para a janela, o mais longe possível do grupo de
humanos que pairava pelo ambiente, e ele se juntou a ela. Quase
ombro a ombro, eles olharam para a cidade escura, brilhando com
luzes até onde os olhos podiam ver, sob um céu estrelado.
O que podia dizer a ela?
Mati tinha ordenado isso. Ele confiava nela completamente,
havia prometido sua lealdade a ela. O que quer que pedisse, ele
faria.
Além disso, Alessandra também recebera ordens do pai, não
foi? Nenhum deles queria isso, mas, para o bem da paz, tinham que
demonstrar uma frente única.
Pouco antes da dança hoje, a maneira como ficara rígida em
sua cadeira, ele sabia que algo a havia irritado. Tinha deixado a
princesa furiosa. O olhar dela ficara selvagem, como um volodara
prestes a iniciar um ataque de fúria, e ele ficara em dúvida se o
toque dele acalmaria aquela selvageria ou a libertaria.
Um dos humanos do grupo deu um pigarro impaciente.
— Alessandra — sussurrou ele, colocando a caixa no peitoril
largo da janela. Ela olhou para o objeto, as sobrancelhas arqueadas,
e depois para ele. — Aceite este presente como um símbolo do meu
compromisso.
Com um sorriso gentil, ela passou a ponta do dedo pelo
comprimento da caixa, antes de abrir suavemente o fecho de
bronze. Ergueu a tampa, revelando o arco curto de um marrom-
avermelhado profundo feito de madeira de jacarandá no estilo
Nozva Rozkvetano. Seus olhos brilharam enquanto as pontas dos
dedos alisavam a madeira do arco de forma reverente.
— É lindo — suspirou ela.
— Apenas a realeza e as kuvari de Nozva Rozkveta têm
permissão de usar os arcos feitos com o nosso jacarandá. O
equilíbrio perfeito entre densidade e força a torna a madeira de arco
mais procurada na terra. — Ou pelo menos tinha sido, há dois mil
anos. — Você sabe usar um arco?
Ela corou de leve.
— Papà me proibiu. Só tentei uma vez, e não posso dizer que
fui muito bem.
— Se você desejar aprender, posso lhe ensinar — ofereceu
ele, acariciando a madeira. — Sempre darei tudo de mim por você,
e isso inclui ajudá-la a aprimorar suas habilidades para caçar e se
defender, caso algum dia precise delas.
Por um instante, ela não se moveu, não falou, apenas
observou o arco com uma intensidade onírica e, por fim, assentiu,
inspirando fundo como se estivesse despertando.
— Obrigada. Adoraria aprender, Veron.
Seria algo que poderiam fazer juntos enquanto se conheciam.
Talvez, com o tempo, eles se tornariam amigos.
Animada, ela estendeu o próprio embrulho para ele.
— Isto é para você.
Pela sua forma, era claramente um livro. Mas sobre o quê? Ele
aceitou e cortou o barbante com uma garra, provocando um arquejo
dela. Ela cobriu o pulso com a mão, mas não rápido o suficiente, e
ele vislumbrou um arranhão fino. Fresco, recente...
Não, será que ele tinha...?
Ele não tinha intenção, mas fora durante o banquete, ou...
Quando a ajudei a sair da carruagem.
— Alessandra, eu...
— Está tudo bem. — Ela sorriu, um sorriso largo, forçado.
Pelo Profundo e pela Escuridão, ele a machucara. Ele nem
percebeu e, mesmo assim, a feriu.
— Peço perdão, eu...
Ela moveu apenas os olhos em direção aos oficiais humanos e
balançou a cabeça de maneira quase imperceptível.
Então não queria que eles soubessem disso. Se os humanos
descobrissem, poderiam dizer que ele – e todos os elfos sombrios –
era perigoso, violento e incompatível com a sociedade humana.
Todos os elfos sombrios tinham garras, sua aparência e poder
de corte tidos como sinal de força. Um elfo sombrio sem garras era
como um leão sem dentes, enfraquecido, desvalorizado, visto como
algo inferior – algo que qualquer filho de Mati não poderia ser, de
modo a não passar uma imagem ruim sobre ela ou Nozva Rozkveta.
Mas Alessandra...
Sorrindo, ela acenou com a cabeça em direção ao pacote.
— Espero que goste, mas se...
Ele abriu o embrulho de papel com um farfalhar, revelando um
tomo grosso. Uma História Moderna de Silen. Bom, ele certamente
gostaria de aprender o que aconteceu em seus dois mil anos
dormindo como uma pedra.
Na folha de rosto, em uma caligrafia elegante, dizia: Para
Veron: Silen ficaria honrada em criar História com o Bosque
Noturno, pois as páginas finais serão preenchidas com a paz que
forjaremos juntos. Aless
As páginas finais? Uma emoção passou por ele quando
encontrou para os olhos brilhantes dela e voltou o olhar para o final
do tomo. Das suas mil páginas, talvez duzentas ou trezentas
estavam em branco.
Ele soltou um leve suspiro, encantado. Um presente atencioso.
Ela tinha a intenção de que ele escrevesse a história compartilhada
de seus povos naquele tomo Sileni, um gesto simbólico. A última
vez que ele escrevera em um livro foram esboços que fizera com
Ata, enquanto ele o ensinava sobre o reino do céu, sua flora e fauna
exóticas, antes de Ata...
— Foi transcrito recentemente — disse ela, folheando
ansiosamente as páginas douradas —, e a pessoa que fez o livro
deixou um espaço para continuar a documentar, assim como na
cópia que minha mãe me deu. — Os olhos dela se iluminaram. —
Na verdade, os Testes do Magistrado mais recentes, de algumas
semanas atrás, acabaram de ser adicionados e apenas esta edição,
talvez só esta primeira nova transcrição, tem isso. A candidata
Emaurriana no segundo teste olhou o Grande Divino nos olhos, e,
bom, você verá, mas...
Ele sorriu para ela por cima do tomo e ela mordeu o lábio.
Então, ela se empolgava com livros, e muito. Algo que podiam
partilhar.
— Obrigado. Estou ansioso para preencher as páginas
restantes.
Enquanto ela corava, outro pigarro soou de um dos
conselheiros. Aquelas pessoas estavam começando a irritá-lo.
Alessandra olhou por cima do ombro, depois de volta para ele.
— Está na hora — anunciou, baixinho. Eles deixaram o arco e
o livro juntos no peitoril da janela.
Preparando-se, ele ofereceu a mão a ela e, depois de engolir
em seco, ela a pegou. Veron ignorou a multidão enquanto a
conduzia para a cama cercada por cortinas, puxando o tecido etéreo
para o lado e ajudando-a a subir. Ela se sentou, rígida, sua pele
morena se arrepiando e enrijecendo sob o tecido vermelho
translúcido da camisola. Ele não olhou muito de perto, não se
atreveu, ainda mais quando ela parecia tão nervosa.
Mas não era disso que se tratava esta noite, para nenhum dos
dois. Era uma questão de confiança. Ambos tinham recebido ordens
para desempenhar um papel que nunca desejaram e, para o bem da
paz, para o bem de seus povos, não contestariam, mesmo que não
se sentissem atraídos um pelo outro nem estivessem apaixonados.
Então, teriam que construir confiança, uma amizade, uma parceria.
Para aquilo ter sucesso, esses laços seriam cruciais entre eles. Ou,
pelo menos, uma fundação.
Ela teria todas as honras, e muito mais. Teria tudo de que
precisasse, tudo o que quisesse, qualquer coisa neste mundo que
ele pudesse fornecer.
Havia uma bacia para lavar as mãos por perto e ele a pegou,
assim como uma toalha, e levou até a beira da cama, colocando-a
no chão, aos pés dela. Ela olhou para a bacia com curiosidade, e
outro humano no grupo pigarreou mais uma vez.
Alessandra baixou o olhar.
Pelo Profundo e pela Escuridão, esses humanos, além de
estarem testemunhando essa “consumação”, como exigia sua
tradição, também pretendiam apressá-la? E interferir? Aquilo era um
desrespeito petulante por ele e, pior ainda, por ela. A noite da
Entrega, a aceitação, era particular. Um momento em que o casal se
acalmava depois dos banquetes e jogos, em que reconfortavam um
ao outro, afirmavam seus votos em particular e, se assim
quisessem, faziam amor. Era um momento sagrado para dois, e
apenas os dois.
— Vossa Alteza, se pudermos... — disse um deles,
pigarreando outra vez.
— Não. — Ele lançou um olhar para o humano pequenino e
idoso e caminhou até as portas de saída do aposento. Chega, aquilo
já era demais.
Abriu as portas e depois gesticulou para os humanos.
— Saiam. Agora.
Todos o encararam, depois trocaram olhares entre si.
— Vossa Alteza — objetou o mesmo humano de antes. — É o
costume deste reino que...
— Não é o meu costume, nem do meu povo, nem fazia parte
do acordo matrimonial que essa “consumação” fosse testemunhada.
Saiam. Agora. — Ele permaneceu firme, seu olhar, inabalável,
lutando para não vacilar diante da sua incerteza.
Mati sabia todos os detalhes do acordo, ele, não. Ela havia dito
a ele o que ele precisava saber, e não havia mencionado isso
especificamente. Era possível que ele estivesse errado.
Mas ele tinha que tentar.
Um por um, o grupo de humanos saiu para o corredor, até que
apenas aquele que havia falado permaneceu. O homenzinho olhou
para ele, desafiadoramente.
Sussurros vieram do corredor.
— O que ele fará com ela? — perguntou um deles.
— Talvez devêssemos chamar um curandeiro — sugeriu outro.
Veron não quebrou o contato visual com o homem pequenino.
Este era o tipo de ignorância idiota que eles pretendiam erradicar. E,
por mais que ele quisesse erradicar aquilo bem no meio daquele
nariz grande, e erradicar aquele preconceito até que ele gritasse de
medo e depois fugisse, em vez disso, respirou fundo.
Por fim, ele diminuiu a distância entre eles e mostrou os
dentes, fazendo o homem se encolher. Veron o empurrou para o
corredor, onde Riza e Gavri tinham assumido os postos. Ele fechou
as portas diante dos murmúrios e dos olhos arregalados, e trancou a
porta.
Uma tosse veio da cama.
Ele se virou e Alessandra o observava sobre a borda de um
cálice de vinho, enquanto bebia.
— O que você fará comigo, príncipe elfo sombrio? — zombou
ela, com uma risada nervosa, depois tomou outro gole antes de
pousar a taça. — Você vai me cortar em pedacinhos e me comer?
Vai me esfolar viva e vestir a minha pele?
Ele balançou a cabeça e um sorriso escapou.
— Não sei. Talvez devêssemos chamar um curandeiro.
Outra risada nervosa. Com sorte, ele seria capaz de acalmá-la.
Ele caminhou de volta em direção à cama, de volta para a
bacia. O olhar curioso dela o seguiu, a diversão ainda cintilando em
seus olhos quando ele se ajoelhou e enrolou a outra manga da
camisa. Apontou para o pé dela.
— Posso?
Ela franziu a testa, um pouco confusa, mas assentiu.
O tecido sedoso roçou as pontas dos dedos dele enquanto
erguia a bainha da camisola para expor os pés dela. Eles eram
estreitos, pequenos, imaculados, como se ela nunca tivesse andado
descalça sobre pedra. Talvez nunca tivesse mesmo.
Ele gentilmente banhou um pé na água morna, alisando as
mãos contra sua pele macia demais.
Ela estremeceu, depois sorriu.
— Esse é um costume dos elfos sombrios?
— É. — Ele deu um tapinha no primeiro pé dela, depois pegou
o outro delicadamente e repetiu o processo. — Na noite da Entrega,
isso diz a uma noiva: “Meu orgulho não me impedirá de te servir.
Meu orgulho nunca me impedirá de te servir. Pois isso é uma honra
e um prazer para mim”.
Ela prendeu a respiração enquanto ele despejava água na pele
dela com a mão em concha. Ela piscou, de forma lenta e
preguiçosa.
— As coisas são bem diferentes de onde você vem.
Ele riu. Poderia dizer o mesmo para ela. Só as coisas
estranhas que aconteceram naquele dia poderiam encher um tomo
inteiro.
— Diferente... de uma maneira ruim?
— Só... diferente — respondeu, balançando a cabeça.
Depois de secar o outro pé dela, ele colocou a bacia e a toalha
de lado. Ela se moveu mais para cima na cama e ele foi para a
lareira, colocando outro pedaço de lenha no fogo.
O coração dele batia forte como nunca havia batido antes. Não
era de medo, exatamente, já que tivera amantes antes disso e sabia
o que acontecia entre um homem e uma mulher. Aquilo era
necessário para que o seu reino humano reconhecesse o
casamento.
No entanto, nenhuma parte dela era como de uma elfa
sombria, nem feroz, nem intimidante, nem perigosa. Nada de garras,
presas, músculos ou proezas de combate. Seria o ato amoroso
humano algo parecido com a loucura feroz, furiosa e desenfreada
que era uma noite com uma elfa sombria?
Quando ela tirara o manto branco na abbazia, havia um brilho
em seu olhar que poderia ter rivalizado com o de qualquer rainha do
Profundo. Um calor preencheu o peito dele. Aquele olhar tinha sido
feroz, sim, mas fugaz. Então, no banquete, por um momento a
selvageria ardeu nela... enquanto seus punhos se cerraram com
força suficiente para quebrar.
Mas, para ela, ele praticamente não passava de uma besta,
não era? Nada como um homem humano. Não tinha a aparência de
alguém que ela pudesse desejar ou se imaginar junto.
Mas não havia testemunhas ali. Não mais. Importaria mesmo
se essa consumação acontecesse?
Com um suspiro silencioso, ele se virou para a cama, ofereceu
a ela o que esperava ser um sorriso consolador e se juntou a ela,
tomando cuidado para a manter a distância.
Ele se sentou ao lado dela enquanto ela ficava imóvel, quase
não se movendo se não fosse por sua respiração. Olhando para o
dossel da cama com um foco intenso, ela parecia estar se
preparando mentalmente para uma amputação.
Ele reprimiu uma risada. Não, ele não deveria mesmo rir dela
quando estava fazendo tanto esforço para suportar essa
indignidade.
— Alessandra, eu não compartilho das expectativas deles —
disse ele, acenando com a cabeça para a porta —, para esta noite.
Não precisa ter medo de mim.
Apenas os olhos dela se moveram na direção dele, largos,
castanhos e brilhantes como os olhos de um tigre.
— Mas a consumação...
— Não é uma tradição exigida pelo meu povo. — Ele manteve
a postura relaxada, aberta, não ameaçadora.
Ela piscou, a respiração ficando mais rápida, mais forte,
fazendo dobras naquele tecido vermelho translúcido de sua
camisola.
— Então você não deseja... — disse ela, fechando os olhos. —
Não deseja...
— Não. — Ele observou a tensão sumindo do corpo dela. —
Este arranjo é novo para nós dois.
Ela se sentou, encostou as costas nos travesseiros e assentiu,
trazendo as cobertas ao peito.
— Nenhum de nós quer isso hoje, mas também não quero
dizer que não é uma possibilidade no futuro. Quero que saiba que
estou aberto aos seus desejos e que não deve temer a rejeição
caso os expresse para mim. — Agora que eles fizeram a Entrega
um ao outro, ele nunca faria algo para deixá-la triste, nunca, não se
pudesse evitar.
— Mas você não me acha atraente? — perguntou ela,
corando.
Arqueando as sobrancelhas, ele desviou o olhar. Ela perguntou
mesmo aquilo diretamente? Admirável e... complicado.
— Você é inteligente e audaciosa, mas nos conhecemos
apenas ontem. Eu sou seu e apenas seu, mas isso... levará algum
tempo.
— Então, você não acha. — Ela riu.
— Eu nem preciso perguntar o mesmo. — Ele disfarçou um
sorriso.
— Você é o primeiro elfo sombrio que já vi pessoalmente! —
disse ela, dando um tapa na colcha.
— Então... você não acha. — Foi a vez dele de rir.
Ela o dispensou com um gesto da mão e suspirou.
— Bom, estou feliz por termos esclarecido as coisas.
— Eu também. Honestidade é a única expectativa que tenho
— respondeu ele.
Um longo silêncio se seguiu.
— Veron, eu... Há muitas coisas que quero discutir com você,
mas não quero ofendê-lo. Bom, quer dizer, ofender mais do que já
ofendi.
Ele bufou. Seria preciso mais do que um estilo de roupa para
ofendê-lo.
— Você não me ofendeu. E pode conversar sobre qualquer
coisa comigo.
— Talvez depois do casamento de Bianca? — propôs ela,
mordendo o lábio e acariciando a colcha.
A cerimônia seria em três dias, e parecia que ela planejava
participar.
Havia apenas um problema: ele recebera ordens estritas de
Mati para partir com ela no dia seguinte.
— Alessandra, nós... não podemos ficar.
Suas sobrancelhas se franziram e ela o fitou.
— O quê?
— Estamos programados para partir amanhã. — Por acaso o
pai dela não contara sobre o cronograma para o Cortejo Real?
Sobre a fome que assolava os reinos?
Ela jogou a colcha de lado e se ajoelhou na cama, inclinando-
se para encará-lo.
— Veron, minha irmã vai se casar em três dias. A minha irmã.
— Eu sei — disse ele, gentilmente, mesmo assim, os olhos
dela continuaram arregalados, brilhando. — Sinto muito, mas...
— É o casamento da minha irmã. Não posso... não vou deixar
de ir — declarou, balançando a cabeça com veemência.
— Não posso desobedecer a uma ordem direta, Alessandra.
— Não importava o quanto desejasse que ela pudesse ficar. — Nem
mesmo por isso. E temos um cronograma rigoroso...
— Por favor — pediu ela, sua voz falhando. — Eu estou
implorando. Não posso perder o casamento dela. Não posso. Ela e
eu, sempre fomos as mais próximas de todos os meus irmãos e
irmãs, e ela está apaixonada por ele, Veron. Este será o dia mais
feliz da vida dela, e você e eu vamos nos mudar. Eu tenho que estar
lá, por favor, apenas para o casamento dela. Podemos atrasar a
nossa partida, só um pouco, mudar os arranjos do Cortejo Real,
apenas para até depois do casamento de Bianca, e...
Lágrimas rolaram por suas bochechas enquanto ele balançava
a cabeça.
O pai dela não dissera nada a ela. Deixara que ela tivesse
esperanças.
Sagrado Ulsinael, ele queria abraçá-la, confortá-la, mas o que
poderia dizer? Ele tinha recebido ordens de Mati. Vadiha e Dita
estavam passando fome, assim como o resto do seu povo, que
aguardava por eles e a comida em dias específicos. Nada poderia
impedir que eles tivessem que partir no dia seguinte.
— As pessoas estão à nossa espera, à espera que levemos...
Com um soluço, ela cobriu a boca e saiu da cama.
— Alessandra, só me deixe...
Ela correu, furiosa, para sua câmara de vestuário, depois
bateu a porta.
Capítulo 7

No pátio do palazzo, Aless estava diante de Papà sob a luz fraca do


sol da manhã. Mesmo depois de manipulá-la para que se casasse,
ele ainda não havia terminado de tentar destrui-la. Ele e a rainha do
Bosque Noturno estabeleceram o cronograma do Cortejo Real e
todos os envolvidos sabiam disso, menos ela.
Papà sabia que ela perderia o casamento de Bianca e não
dissera nada. Ele chegou ao ponto de deixar que Veron lhe desse
aquela notícia amarga.
Desde a morte de Mamma, Papà a olhava de maneira
diferente, e uma distância crescera entre eles, e não parara de
crescer. Tudo com o que ela se importava estava errado, tudo o que
fazia era punido, e parecia que suas punições nunca tinham fim. Ela
não se encaixava naquele lugar, há muito tempo que não pertencia,
e agora estava partindo, talvez pela última vez.
Bianca finalmente conseguiu o que desejava tanto alcançar
com aquela escada que carregava no pomar de seus sonhos.
E Papà não poderia sequer ter dado a ela a doce despedida de
testemunhar o casamento de Bianca. Nem mesmo isso.
— Você é tão parecida com ela — disse Papà, olhando para
ela com seus olhos castanho-escuros e sem brilho. — Isso vai ser o
melhor para você.
Tão parecida com Mamma. Mamma, cuja biblioteca inteira do
palazzo e todos os livros ele havia destruído.
Não, aquilo era o melhor para ele. Ele se livraria dela, como
tinha se livrado da memória de Mamma.
— Lembre-se da sua promessa — sussurrou ele.
— Adeus, Papà — respondeu ela, antes de se virar para
Lorenzo, que a envolveu nos braços.
— Enviei algumas coisas com você para Veron — disse ele. —
Para que vocês dois possam combinar as roupas de... alta-costura.
Apesar da religiosidade de Stroppiata, a duquesa Claudia é uma
esnobe da moda.
— Obrigada. — Com uma risada breve e baixa, ela se afastou
de Lorenzo enquanto ele lhe dava um sorriso carinhoso.
— Você está conseguindo escapar deste palazzo — sussurrou
ele, com um brilho nos olhos. — Aproveite a oportunidade ao
máximo.
Ao contrário dele, ela nunca quisera escapar do palácio, mas
sim se tornar uma parte mais útil dele. Talvez fosse essa a razão de
carregar sua escada, só que, para ela, aquilo não se tornaria real,
continuando para sempre em seus pomar dos sonhos.
— Aproveite ao máximo aqui também, irmão — sussurrou de
volta, dando um beijo de despedida na bochecha dele com barba
por fazer, enfim se virando para Bianca.
Veron cumprimentou Lorenzo com um aperto de braço,
enquanto ela pegava a mão de Bianca e olhava em seus olhos
vermelhos e inchados, carregados de lágrimas brilhantes.
Segurando um lenço branco decorado com renda, Bianca passou a
mão no rosto, o lábio inferior tremendo, depois balançou a cabeça,
com tristeza.
Aless puxou Bianca para seus braços, segurando-a com força.
Ao lado dela, Veron ainda se despedia de Lorenzo.
Em seu casamento, Veron havia dito: Eu, Veron de Nozva
Rozkveta, lhe ofereço poder, sobrevivência, apoio, defesa,
sabedoria e parceria, para serem usados para seus objetivos ou os
nossos, enquanto trilhamos nossas vidas juntos a partir deste dia e
até quando o Profundo permitir.
Papà tinha escondido isso dela, sim, e suportara o peso da
culpa. Mas ela implorara a Veron, implorara para que ele atrasasse
a partida, mudasse os arranjos do Cortejo Real, apenas até depois
do casamento de Bianca.
Mas a mãe dele tinha dado uma ordem direta, e nada mais
poderia ser feito.
O que era importante para ela deveria ser importante para ele
também, não é? Como seria a vida deles se nem isso merecesse
uma concessão da parte dele?
— Enviamos a correspondência para Nunzio — disse Bianca,
chorando baixinho no ombro dela.
Ótimo. Então ela poderia discutir os planos com ele quando
chegassem a Stroppiata, onde a Ordem da Terra estava sediada.
Mais uma razão para persuadir Veron para que desistisse da
segunda cerimônia, se fosse dar ouvidos a ela. Caso ele ao menos
estivesse aberto para pontos de vista diferentes dos de sua mãe e
rainha, é claro.
Honestidade é a única expectativa que tenho, foi o que ele
disse. Palavras nobres. Mas no que a honestidade de Aless ajudou
em relação ao casamento de Bianca? Ela contaria a ele seu plano
assim que estivessem em condições melhores, assim que provasse
que poderia garantir a paz antes da segunda cerimônia.
— Eu só queria... — Bianca fungou.
— Eu sei. Eu lamento tanto, Bianca — sussurrou ela,
acariciando o cabelo de Bianca suavemente. — Eu queria poder
ficar.
— Eu vou te visitar — exclamou a irmã. — Prometo.
Um pensamento adorável. Ela se afastou e abriu um sorriso
gentil.
— É bom mesmo. Vou querer ouvir todos os detalhes.
Bianca sorriu através das lágrimas e assentiu, passando um
braço envolto em musselina pelo rosto, um rosto sorridente, choroso
e amoroso contra o pano de fundo verde exuberante e as pedras
brancas do palazzo.
Era isso. Aquele era um adeus definitivo, pois, não importa o
que acontecesse dali em diante, ela nunca mais viveria sob o teto
de Papà.
Papà, parado em primeiro lugar na fila, ergueu o queixo e
encontrou os olhos dela. Ele fora o primeiro a se despedir,
lembrando-a de sua promessa. Ah, mas ela se lembrava muito bem.
Ela prometera se casar com o elfo sombrio, o que havia feito, agora
o resto dependia dela e de Veron.
Papà inclinou a cabeça em direção à cavalgada que a
esperava, enquanto Gabriella pegava o braço dela e a conduzia na
direção da carruagem. Com comida, moedas, seus pertences e
livros ilustrados para as crianças que encontrariam ao longo do
Cortejo Real, o número de carroças havia crescido.
— Vamos, Vossa Alteza — disse Gabriella. — Temos um longo
caminho pela frente.
Sem dúvida, um longo caminho.
Ela ergueu as saias cinza com os punhos cerrados. Quando
estava prestes a se virar, Veron se aproximou de Bianca e fez uma
reverência. Profunda.
No silêncio que se seguiu, ele permaneceu totalmente imóvel,
sua forma poderosa como se fosse esculpida em pedra, pronta para
durar por séculos, milênios.
Ele tinha feito uma reverência. Como pedidos de desculpas a
Bianca.
As sobrancelhas perfeitamente esculpidas de Bianca se
ergueram.
E as dela também.
 
Aless afastou a cortina da carruagem. A paisagem era bela e
verdejante do lado de fora – as árvores de cipreste alinhadas com a
estrada, os campos de grama, os pinheiros-mansos a distância e os
ocasionais campos de alcachofras ou pomares de limoeiros. Tão
brilhantes e alegres. Talvez Bianca estivesse arejando o vestido de
noiva naquele instante, feliz e dando risada com as damas de
companhia, preparando-se para o grande dia.
Mesmo que Veron tivesse pedido desculpas a Bianca, ainda
conseguira o que queria, não? Seria ele alguém confiável, ou a sua
sinceridade não passava de um manto, sob o qual apenas a
vontade de sua mãe existia? Implorar para ele tinha sido estranho,
mas ter seu pedido rejeitado tinha sido muito pior.
Ele cavalgava logo à frente, sua figura encapuzada, mas
identificável por seus ombros largos e porte, no topo daquela besta
maciça que ele chamava de cavalo. Ela estreitou os olhos.
Ele olhou por cima do ombro na direção dela.
Bufando, ela fechou as cortinas e cruzou os braços.
— Eu esperava que ele encontrasse uma maneira de vocês
dois ficarem para o casamento de Vossa Alteza — sussurrou
Gabriella do assento ao lado dela.
Pelo menos Papà tinha enviado um rosto familiar com ela.
— A mãe dele sempre terá a palavra final? — perguntou
Gabriella, baixinho.
— É cedo demais para saber. — Aless expirou lentamente,
acariciando a cambraia da saia do vestido cinza. Mas parecia que
Veron não tinha uma gota de desobediência no corpo. Ele tinha sido
razoável e gentil e, por causa disso, ela tinha esperanças de que
pudesse dar ouvidos a ela sobre terem somente uma amizade, em
vez de um casamento.
Porém, agora não tinha tanta certeza.
Se a mãe tivesse ordenado esta união, então, para alterar isso
seria preciso mais do que um simples pedido para convencê-lo. Ela
precisaria encontrar um jeito de falar sobre os planos da biblioteca
com Nunzio e apresentá-los a Veron como uma ideia de um
empreendimento conjunto, algo para simbolizar a nova paz e a
amizade contínua de seus povos. Um lugar onde humanos e elfos
sombrios pudessem se unir.
Tudo começaria ali, na biblioteca, e depois se expandiria.
Talvez, algum dia, Silen se tonasse uma terra onde humanos, elfos
sombrios, elfos de luz e outros Immortali pacíficos vivessem juntos
em harmonia.
Assim que ela e Nunzio conversassem e fizessem planos
concretos, ela poderia levar as ideias para Veron e torcer pelo
melhor.
Gabriella deu um tapinha em sua mão, conferindo gentileza
através dos seus olhos castanhos.
— Eu gostaria que eles não fossem tão frios com você, Vossa
Alteza — disse ela. — Talvez fosse melhor se a Irmandade a
ajudasse a escapar? Eles fariam isso, ou precisariam usar a força?
A Irmandade... não. Ela não queria se envolver com eles. Por
mais que almejasse se libertar desse casamento, não desejava que
o plano de devastação da Irmandade fosse bem-sucedido.
— Antes de partirmos — continuou Gabriella —, ouvi rumores
que eles saquearam um assentamento de elfos de luz perto da
costa. As pessoas estavam dizendo que a Irmandade colocou todos
eles num navio para Sonbahar na calada da noite.
Sonbahar? Para quê? Para os mercados de escravos? Aquilo
era impensável.
— Você tem certeza?
— É o que estão dizendo, e que agora as aldeias vizinhas
estarão “seguras”. Mas elas pareciam tranquilas antes.
Seguras? Seguras de quê?
Havia rumores de que crianças doentes ou malcomportadas na
verdade foram trocadas por elfos de luz, e que qualquer donzela ou
criança que desaparecesse tinha sido abduzidas pelos elfos de luz
ou por outros Immortali. Que elfos de luz amaldiçoavam as
colheitas, roubavam bugigangas aleatórias das casas das pessoas,
envenenavam o gado...
Porém, certamente ninguém acreditava nesses contos
absurdos, não é? Os elfos de luz não tinham magia e raramente –
nunca, na verdade – se aventuravam fora de suas florestas. Eles
não viam valor em joias ou metais preciosos, muito menos em
bugigangas inúteis.
Mulheres humanas fugiam dos maridos, crianças se perdiam,
colheitas davam errado e gado morria. Era mais fácil culpar os
Immortali do que aceitar a crueldade da vida cotidiana. E a
Irmandade encorajava tudo isso.
— Onde foi isso? — sussurrou ela de volta para Gabriella.
— Perto de Portopersico, acho.
Uma aldeia pequena na costa a leste de Bellanzole. Havia um
assentamento de elfos de luz nas proximidades?
Tarquin e a Companhia Belmonte estavam limpando os ninhos
de harpia perto de Bellanzole. Será que ele liderara este ataque?
Ele e o seu “orgulho” vigilante? Onde atacariam a seguir?
Levaria dias até que ela e Veron chegassem a Stroppiata, sua
primeira parada, onde seriam apresentados à duchessa para
receberem uma promessa de sua amizade. Era tempo demais para
ficar sem notícias. Ela teria que contar a Veron sobre a Irmandade
e...
— Afinal, quantos baús de seda e bugigangas os humanos
precisam carregar? — perguntou do lado de fora da carruagem a
guardiã elfa sombria com tranças, falando em Sileni, ainda por cima.
Estava claro que queria ser ouvida.
A guardiã de olhos afiados a calou, mas Veron grunhiu em
resposta. Aquilo foi o máximo que ele tinha dito o dia todo, desde a
discussão na noite anterior.
Os elfos sombrios ficaram boquiabertos com a bagagem dela –
na verdade, eram apenas cerca de dez baús grandes. Ela havia
levado pouca coisa se fosse considerar que era uma mudança para
a vida inteira. O que esperavam, que ela levasse apenas uma muda
de roupa e nada mais?
Além disso, eles haviam deixado Bellanzole com dezenas de
carroças carregando comida e moedas, para que distribuíssem
entre os humanos e elfos sombrios ao longo do Cortejo Real.
Nenhuma reclamação sobre aquela carga, pelo visto.
— Eles não têm respeito — murmurou Gabriella. — Você é
uma princesa de Silen. Você viaja e se veste com o estilo adequado
à sua posição.
Nada que ela era ou o que tinha era aceitável para os elfos
sombrios. Tudo o que possuía era extravagante, desnecessário,
indulgente. Eles não ficariam satisfeitos até que ela usasse um saco
de estopa e amarrasse o cabelo com uma tiara de margaridas.
— Felizmente, não me importo com o que eles pensam.
Gabriella sorriu e lhe deu um aceno com a cabeça, de
encorajamento.
— Além disso, todo aquele couro não deve ser nada
confortável. A moda deles não tem que ser a nossa, não é?
Ela sorriu de volta. Sem dúvida, seus vestidos eram bem
melhores do que aquelas roupas de couro, especialmente nos dias
de verão em Silen.
— E que insulto — acrescentou Gabriella, apertando os lábios.
— Não providenciar uma casa para você ficar.
Aquela era a menor das preocupações dela. Mesmo que Veron
concordasse com seu plano, ela nunca mais teria nenhuma riqueza
só dela. Toda a sua riqueza viera de Papà, de acordo com a vontade
dele. Ele nunca a receberia de volta depois disso, então... ela teria
que aprender a fazer as coisas por si mesma.
Ela tinha o que precisava para que acampassem. Os criados
de Papà haviam separado para ela uma tenda elaborada de seda e,
naturalmente, ele não havia enviado ninguém para montá-la.
Ninguém além dela.
— Nós daremos um jeito — respondeu ela. Comparado a ter
que lidar com Papà, aquilo não seria nada difícil. Nem tão difícil
como contar a Veron sobre a Irmandade... e Tarquin.
Capítulo 8

Veron cravou a primeira estaca de sua tenda no chão enquanto


Alessandra e Gabriella vasculhavam as inúmeras bolsas e baús que
trouxeram de Bellanzole.
— A princesa recebeu uma das nossas barracas?
— Sim, recebeu. Eu mesma entreguei. Sem dúvida, ela deve
estar torcendo o nariz para a coisa. Típica humana — respondeu
Gavri, bufando baixinho.
Princesa humana teimosa e mimada. Elfos sombrios e
humanos estavam morrendo todos os dias, lutando por razões sem
sentido, e Vadiha e Dita estavam passando fome esperando por
essa comida de Bellanzole. Ele e Alessandra estavam encarregados
de semear a paz, acabar com a fome, e ela queria deixá-los sofrer
por mais tempo por causa de um casamento? Claro que ela queria
estar lá em um dia tão importante na vida de sua irmã, mas atrasar
o Cortejo Real por isso teria gerado consequências negativas para
tantas outras pessoas – pessoas famintas –, só que Alessandra não
parecia ter noção ou se preocupar com isso. Ele posicionou outra
estaca e a martelou.
— Como ela se atreve a tratá-lo com tanto desrespeito —
acrescentou Gavri, mas Riza lhe lançou um olhar de advertência. —
Você não precisa apaziguá-la, Vossa Alteza. — Quando Riza rosnou
para ela, Gavri ergueu as mãos e recuou antes de partir.
Não importava. Falta de respeito? Ele não ligava para isso.
Havia muito mais em jogo. A união deles e esse Cortejo Real
através do reino eram sua única chance de parar o derramamento
de sangue antes que uma guerra estourasse de vez, e Alessandra
não era capaz de se preocupar com ninguém além dos seus
parentes próximos. Mesmo deixando de lado que eram ordens de
Mati, havia um motivo maior para aquilo tudo, que ela ignorava só
porque lhe convinha.
Ela falava sobre paz, mas ao menos sabia o que era uma
guerra de verdade? O fedor de sangue e entranhas após o combate,
as viúvas gritando e os órfãos chorando? As doenças que vinham
depois e a fome resultante da perda de pessoas saudáveis, a
falência dos poderes que financiavam tudo isso?
Ela já havia olhado nos olhos de algum deles, ou só ouvira
notícias através de suas damas de companhia e observara pinturas
de batalhas nos grandes salões de baile dos humanos, enquanto
criados sem rosto enchiam seu cálice e traziam travessas de bolos e
frutas?
Ele se moveu ao longo da borda redonda da barraca e Riza lhe
entregou outra estaca.
— Dê tempo a ela, Vossa Alteza — disse ela, indiferente,
enquanto ele martelava.
Ele lançou um olhar pelo canto do olho em direção a Riza
enquanto se movia. Será que o tempo poderia consertar isso?
— Ela é jovem. Muito jovem. E foi protegida do mundo a vida
toda — acrescentou Riza, entregando as estacas conforme ele
precisava. — Agora que tem a oportunidade de visitar a própria
terra, seus olhos se abrirão para muitas coisas. Seja paciente. —
Riza recuou e admirou o trabalho dele, depois murmurou algo. Ela
deu um aceno de cabeça em direção às carroças, onde Alessandra
e Gabriella estavam removendo uma grande tenda empacotada.
Um iurte, ou pelo menos algo semelhante ao que seu povo
usava para acampamentos mais permanentes. E a tenda menor que
Gavri entregara a ela?
— Talvez você precise ser um pouco mais paciente.
O iurte de Alessandra tinha cerca de seis vezes o tamanho da
tenda dele, o dobro da altura, e era feita de lona de listras roxas e
brancas. Aquela monstruosidade precisaria de pelo menos três
pessoas e duas horas para ser montada.
— Os seres humanos são atraídos pela ostentação como as
harpias se atraem por qualquer coisa que brilhe. — Riza estalou a
língua e passou a mão pelo cabelo curto. — Aquela coisa, para uma
noite de acampamento? Nesse ritmo, ela vai dormir do lado de fora.
Ele esfregou o queixo e suspirou.
— Não importa o quanto discordemos, minha noiva sempre
terá um lugar para dormir. — Ele sugeriria a tenda que Gavri dera a
ela e, com sorte, Alessandra mudaria de ideia.
Riza assentiu, com um leve sorriso.
— Você a trata como uma noiva de elfo sombrio, Vossa Alteza,
mesmo sendo uma bem inadequada.
— Ela é uma noiva de elfo sombrio, Riza.
Ela arqueou uma sobrancelha, seus lábios se curvando ainda
mais.
— Vossa Majestade ficaria orgulhosa de você.
Pela graça do Profundo, da Escuridão e do Sagrado Ulsinael.
Mas aquilo não era apenas para agradar Mati; ele e Alessandra
agora passariam a vida juntos. Ele precisava fazer as pazes, e ela...
bem, ela precisava de uma tenda armada.
Esfregando o rosto, ele se dirigiu para o monte no qual
Alessandra agora estava cavando. Com a saia na terra, ela
escavava sob as listras roxas e brancas, murmurando enquanto
Gabriella segurava a lona. Assim que ele segurou o material,
Gabriella o soltou, inclinou a cabeça e, pedindo licença, retirou-se.
— Erga mais alto, Gabriella. Está sufocante aqui — disse
Alessandra. Exceto que Gabriella já estava atravessando o
acampamento.
Lutando contra um sorriso, fez o que ela pediu.
Madeira bateu contra a madeira e as cordas rangeram
enquanto ela se mexia na parte de dentro.
— A sua parecia tão simples, mas esta... não. Mas eu
definitivamente não vou pedir ajuda a ele. Tem certeza de que não
há instruções?
Ele lutou para manter o rosto sério.
— Nenhuma que eu tenha visto — respondeu ele, incapaz de
disfarçar a diversão na voz.
Nenhuma resposta veio quando ela congelou sob a lona e
depois deslizou completamente para debaixo dela.
— Alessandra...
Um suspiro pesado.
— Suponho que esteja aqui para me dizer que você tem
ordens de que devemos compartilhar a barraca.
Ele inspirou de forma lenta e profunda. Muito lenta e profunda.
— Vim aqui para perguntar se posso montar a tenda que Gavri
lhe deu.
— Quem? — retrucou ela. — Ninguém me deu nada.
— Uma das nossas tendas. Ela lhe entregou uma — disse ele,
apoiando uma mão no quadril.
— Não, ela não entregou, quem quer que ela seja. Acho que
me lembraria disso.
Então, o quê? Gavri tinha mentido? Por quê? Ela não o trairia.
Nunca. Como uma de suas melhores amigas, Gavri sabia que seu
pai havia mentido para ele uma vez, apenas uma vez, e nunca
retornara a Nozva Rozkveta. Gavri nunca...
— Além disso, tenho a minha barraca, obrigada.
Ele deixou um riso zombeteiro escapar.
— Mesmo com três pessoas experientes, levaria pelo menos
duas horas para montá-la.
Ela bufou.
— Ah, então agora você quer me ajudar?
Lá vamos nós de novo...
— Eu já lhe disse antes, há preocupações maiores que...
— Não, não há. Não foi nisso que você me fez acreditar? Que,
quando se tratava de fazer uma Entrega, significava que não havia
nada mais importante. — Um tremor abalou suas palavras. — Mas
suponho que meu entendimento não importa, apenas as ordens da
sua mãe.
Ele balançou a cabeça.
— Nossa primeira parada é a cidade de Stroppiata, daqui a
dois dias — disse ele, com gentileza. — Você sabia que eles
planejam a nossa recepção há semanas?
— Uma recepção pode ser adiada — retrucou.
— Que tal uma rota de desfile, um banquete e a festa que a
duquesa prometeu ao seu povo? Essas pessoas estão esperando a
nossa chegada em exatamente dois dias. — Quando ela não
respondeu, ele acrescentou: — E três dias depois disso, vamos para
Dun Mozg, que você deve conhecer pelo nome de Fortaleza
Central, um pequeno reino dos elfos sombrios que fica numa região
mais distante. O povo da rainha Nendra está morrendo de fome e
eles estão nos esperando no dia combinado, estarão nos
celebrando neste dia. Minha própria irmã mal tem energia para
alimentar sua filha recém-nascida e nós estamos transportando a
comida para Nozva Rozkveta. Quanto tempo ela deve esperar,
enquanto adiamos a chegada de alimentos por um casamento?
Um pigarro quase inaudível soou da tenda.
— Por que você não me disse isso antes? Que as pessoas
estavam nos esperando em dias específicos?
— Eu lhe disse que tínhamos um cronograma rigoroso, que as
pessoas estavam nos esperando. — No entanto, mesmo que ele
tivesse dito essas palavras na noite anterior, ela saíra do quarto em
lágrimas e havia se negado a ouvir qualquer outra palavra.
Porém, ele não deveria culpá-la por isso. Pelo menos, ela
parecia estar disposta a ouvir agora.
— Eu não sabia sobre sua irmã. Não imaginei que as pessoas
estivessem aguardando ansiosamente por um dia específico. Eu
pensei... — disse ela, respirando fundo. — Não sei o que eu pensei.
Para as pessoas que mal conseguiam sobreviver com as
rações que recebiam, a distribuição abundante de alimentos era
tudo. Ela tinha que saber disso. Não havia notado o sofrimento das
pessoas que viviam agora, em seu próprio território?
A lona se mexeu enquanto ela se contorcia devagar para fora,
seus olhos castanhos arregalados ao olhar para ele, limpando as
mãos sujas de terra. Quando não havia criados para montar sua
tenda, ela sujara as próprias mãos. Ela tentou fazer isso sozinha.
Talvez não fosse tão mimada como ele pensava, apenas... não
permitiram que explorasse além dos muros do mundo que ela
conhecia.
— Você estava pensando em sua irmã — disse ele, baixinho,
agachando-se para que seus olhos estivessem no mesmo nível. —
Quando minha mãe me contou sobre a agenda, eu não sabia que o
casamento da irmã da minha noiva seria alguns dias depois. Se
soubesse... — Ele iria querer falar algo, perguntar a Mati se ele e
sua noiva poderiam ficar, talvez enviar alguma comida antes. — Eu
lamento.
Ajoelhada na grama, ela descansava as mãos sujas no colo,
pousadas no tecido cinza. Cachos escuros errantes tinham
escapado de seu penteado elaborado, emoldurando seu rosto,
caindo sobre ombros esbeltos. Ela mordeu o lábio.
— Eu deveria ter ouvido o que você tinha a dizer. Também
peço desculpas.
Havia muito mais para discutir. Na noite do casamento, ela
também mencionara querer falar com ele sobre algo. Mas essa...
situação infeliz com Bianca tinha frustrado tudo.
— Venha comigo. Vou encontrar outra tenda para você —
disse ele, descansando uma mão sobre a dela.
Quando ele começou a se levantar, ela pegou sua mão.
— Espere. Posso dormir com você hoje?
A pergunta o paralisou, por completo, mas ele engoliu em seco
e a ajudou a se erguer.
— Quero dizer... — sussurrou ela. — Não vai passar uma
impressão errada se dormirmos separados? Como se tivéssemos
discutido, como se houvesse desarmonia entre nós.
Ela estava certa, mas houvera desarmonia entre eles.
Ele assumiu que ficariam em barracas separadas, mas...
— Contanto que não a deixe desconfortável.
— Não. — Um breve sorriso iluminou o rosto dela, apenas por
um momento, refletindo em seus olhos, a bela escuridão deles
brilhando, como luar sobre águas ondulando à noite.
Ele ergueu a bolsa e o saco de dormir dela, em seguida,
conduziu-a em direção à sua barraca, acenando para os rostos que
se viraram para eles. O que ele queria era continuar olhando para
aqueles olhos, tão diferentes dos que ele estava acostumado,
sempre em tons de âmbar e ouro. Mas a superfície daquelas águas
noturnas tinha ondulado, e havia algo à espreita lá que ela não tinha
revelado. Até que fizesse isso, o risco de se afogar, não importa
como fosse pequeno, não valia a pena as consequências.
Ele já havia confiado em um mentiroso uma vez. Ficou parado,
observando enquanto Ata deixava sua família. Só para mais tarde
ser destroçado ao saber a verdade.
Nunca mais.
E Gavri, se ela tivesse mentido...
Não, não havia desculpa.
Ele acomodou Alessandra em sua barraca e depois voltou
para buscar o material do iurte que tinham deixado no morro e o
embalou. Ao contrário da realeza humana, ele não viajava com uma
legião de criados. Esperava-se que os elfos sombrios fizessem tudo
por si mesmos. Claro que ela não saberia disso.
Os humanos tinham valores tão diferentes, mas Alessandra...
Ela passaria a vida em Nozva Rozkveta. Não era fácil ser um
recém-chegado num lugar estranho. Se ele tivesse sido ordenado a
viver em Bellanzole, sem dúvida Alessandra o teria ajudado a
navegar por entre os humanos. E ele não poderia fazer nada menos
– não iria fazer menos – por ela.
Depois que ele enfim colocou o iurte empacotado de volta na
carroça, mexeu em sua bolsa para procurar seu cachimbo e olhou
para trás, para verificar Alessandra.
Fora da barraca, Gavri estava de pé, com os braços cruzados
e a testa franzida. Seus olhos brilhantes como fogo queimavam,
cada centímetro do corpo rígido como se antecipasse uma batalha.
O que ela tinha a ver com aquilo tudo?
Pois estava claro que ela se importava.
Ela tinha feito aquilo. Ela mentira.
Quando ela finalmente desviou o olhar, seus olhos pousaram
nele. A postura de guerra se suavizou, seu olhar se acalmou e a
boca se abriu um momento antes de ser fechada outra vez.
Ele fez um sinal com a cabeça para que ela se aproximasse, e
ela veio, mordendo o lábio.
— Vossa Alteza, eu só queria...
Com o semblante sério, ele ergueu a mão.
— Você mentiu.
Ela o olhou nos olhos e não desviou o olhar, os vincos de sua
testa retornando enquanto cruzava os braços.
— Ela deu aquele espetáculo em sua cidade humana
ignorante, fazendo você parecer um bárbaro, sequestrando-a do
seu...
— Não. Me. Importa. — disse ele, aproximando-se.
Gavri o conhecia há muito tempo, por sua vida inteira. Sabia
que não deveria fazer aquilo. Ela sabia disso.
Além do mais, tudo aquilo fora só por um pequeno
contratempo no casamento arranjado dele? Fazia alguns anos, mas
talvez ela ainda estivesse magoada por Zoran ter feito a Entrega à
rainha Nendra.
— Todos em casa estão sofrendo tanto e ela faz essas birras
por puro capricho. Ela é rebelde e desobediente. — Ela passou a
mão pelos cabelos, pelo comprimento da trança, e exalou um
suspiro pelo nariz. — Você merece...
— Eu não sou Zoran — sibilou ele. — E Alessandra não é
Nendra. Ela não fez nada para você.
Os olhos de Gavri se arregalaram por um momento, antes que
uma carranca enrugasse seu rosto.
— Isso não tem nada a ver com Zoran! Isso se trata de uma
humana qualquer desrespeitando...
— Você está dispensada.
Ela riu com raiva e balançou a cabeça, depois se virou.
— Da minha guarda.
Ela girou de volta, os olhos arregalados.
— O quê? Eu estava te defendendo!
— Mentindo para mim? — cuspiu ele, com raiva, aproximando-
se dela. — Você fez um juramento de sempre dizer a verdade. Mas,
acima disso, confiei em você. E você tenta sabotar a paz que a sua
rainha lutou tanto para conseguir? Sabotar meu casamento antes
mesmo de Alessandra e eu nos conhecermos?
Seu lábio inferior tremia enquanto ela ofegava.
— Eu sei, eu sei, mas eu estava apenas...
— Não quero mais ver o seu rosto pelo resto desta viagem. E,
assim que voltarmos a Nozva Rozkveta, você será transferida da
minha guarda.
Com um suspiro curto, ela agarrou o pulso dele.
— Veron...
Ele desviou da mão dela e caminhou para a tenda, com os
punhos cerrados. Gavri era como uma irmã para ele, mas, se fosse
trair sua amizade, colocar em perigo o que eles estavam fazendo
aqui, desobedecer às ordens de Mati, então ela não tinha lugar em
seu círculo íntimo. O custo de sua imprudência podia ser
catastrófico.
Fora da barraca, ele respirou fundo várias vezes. Relaxou as
mãos. Por fim, puxou a aba da tenda para o lado.
Alessandra já estava esfregando as mãos numa pequena
bacia de água que tinha tirado... ele não fazia ideia de onde. E dois
pratos com pão, queijo e figos de Bellanzole estavam entre dois
sacos de dormir arrumados perfeitamente no chão.
— Você não perde tempo. — Quando os olhos escuros dela
encontraram os dele, acrescentou: — Você vai...
Ela moveu a bacia para o lado e, sentando-se rigidamente,
acenou com a cabeça para que ele entrasse.
— Por favor, isso pode esperar. Precisamos conversar.
Conversar? Aquilo era enigmático. Franzindo as sobrancelhas,
ele se abaixou para entrar na tenda, tirou as botas muito apertadas
e se sentou no saco de dormir em frente a ela, tentando relaxar a
tensão dos ombros.
Na noite de núpcias, ela havia mencionado que queria falar
com ele sobre algo, talvez o mesmo assunto à espreita sob aquelas
águas noturnas em seu olhar. Será que sobre isso?
Esfregando as palmas das mãos nas saias, ela o encarou.
— Veron, existe um grupo chamado Irmandade e eles são...
— Um exército humano desonesto dedicado a acabar com
todos os imortais. Eu... já me deparei com eles antes.
Alessandra assentiu, séria.
— Não acho que Luciano esteja envolvido...
Ele respirou fundo. Graças ao Profundo, à Escuridão e ao
Sagrado Ulsinael. Chamar um desses fanáticos de família não era
um dos seus objetivos de vida. Além disso, o rei Macário jurara a
Mati que acabaria com a Irmandade como parte do acordo.
— Mas o irmão dele, Tarquin, me deu razões para acreditar
que ele é um deles — disse ela, aproximando-se mais. — Veron,
acho que ele pode estar... nos observando.
— Tarquin — experimentou ele, testando o nome enquanto
suas garras perfuravam as palmas de suas mãos. Havia um homem
na abbazia que o olhara como se quisesse abrir um buraco nele
com os olhos, o mesmo homem que interrompera a dança de
Alessandra com o irmão Lorenzo.
— A irmã deles, Arabella, desapareceu, e ele culpa os
Immortali por isso. Antes de sairmos, houve um ataque a um
assentamento de elfos de luz durante a noite, não muito longe de
Bellanzole — continuou ela, torcendo o tecido cinza nas mãos. —
Eu não sei se isso foi algo isolado ou parte de um plano maior, mas
eu precisava que você soubesse, no caso deles...
Caso a Irmandade viesse atrás dos monstros. No caso de eles
virem resgatar sua princesa humana. Caso escolhessem fazer dele
e de sua comitiva um exemplo, atacando-os à vista de todos e enfim
dando início à guerra que a Irmandade parecia querer tanto.
Ela o observou com os punhos cerrados, aqueles dedos
pequenos e sem garras inquietos. Ela piscou os cílios sobre os
olhos escuros, debaixo de uma sobrancelha franzida.
— No caso de...
— No caso deles virem atrás do meu sangue e de cada um
dos elfos sombrios aqui.
Capítulo 9

Os raios matinais atingiram as telhas distantes dos telhados de


argila vermelha de Stroppiata enquanto Aless cavalgava ao lado de
Veron. Ela ajustou a perna direita na sela lateral, espalhando as
saias de brocado cor-de-rosa. O rosa suavizava seu olhar, um
contraponto sutil ao seu temperamento infame... ou assim sua irmã
Giuliana havia dito uma vez.
Em menos de uma hora, eles estariam na parte de dentro das
muralhas da cidade. Normalmente, ela estava acostumada a andar
dentro de uma carruagem, mas naquele dia o importante não era o
conforto, mas ser vista. Se tudo saísse bem, aquilo ditaria o tom
positivo para o restante do Cortejo Real.
Se desse errado... na melhor das hipóteses faria com que
todos aqueles esforços fossem um fracasso, e, na pior, acabaria
com ela, Veron e inúmeros outros mortos.
Ela expirou. Pena que aqueles pensamentos não puderam sair
com a respiração.
Sem pressão. Nenhuma, mesmo.
Ela já estivera em um Cortejo Real uma vez, quando Lorenzo
atingira a maioridade. Do lado de fora dos portões de cada cidade,
Papà, Mamma e Lorenzo prosseguiram, montados em cavalos,
enquanto ela, Giuliana e Bianca permaneceram na carruagem.
Rostos sorridentes ocupavam as margens das ruas, olhos
arregalados e brilhantes, enquanto os aplausos abafavam tudo,
exceto o tilintar das moedas e o soar dos cascos.
As pessoas precisam ver Lorenzo, que será o próximo rei,
Giuliana sussurrara, inclinando-se na direção dela. Eles precisam
nos ver, seus monarcas, de perto. Isso nos torna reais, cria uma
conexão, nos dá a chance de mostrar a eles quem realmente
somos... ou quem queremos ser.
Giuliana tinha participado de um Cortejo Real em Emaurria
com seu marido, o príncipe herdeiro Robert, há vários anos, logo
após seu casamento. Sem dúvida, ela tinha sido a princesa perfeita,
reivindicando espaço no coração de todos os Emaurrianos, assim
como mostrara a todos quem realmente era: talentosa e forte, bonita
e charmosa, uma pessoa singular capaz de domar conflitos com um
elogio bem colocado ou apenas a risada certa. Se ao menos
Giuliana estivesse aqui. Se ao menos tivesse sobrevivido. Se ao
menos...
Não. Nada de útil viria de pensar naquelas coisas. Não hoje.
Ela suspirou.
Com os olhos dourados semicerrados, Veron olhava para a
cidade ao longe, o rosto com uma máscara preta, apenas os olhos à
mostra. Sua cabeça estava encapuzada, escondendo a maior parte
dos seus cabelos brancos fantasmagóricos.
A primeira vez que ela o vira, quando ele chegara no pátio do
palazzo, ele estava mascarado, encapuzado, camuflado – um
cavaleiro negro em um cavalo preto, misterioso e intimidador, como
um caçador fantasma que tinha se desgarrado da Caçada
Selvagem.
As pessoas precisam nos ver.
— Veron? — chamou Aless, e aqueles olhos dourados a
encontraram antes que ele se virasse para ela.
— Hum? — Um som áspero, mas gentil.
Atrás deles, a cavalgada se estendia tão para trás que ela não
conseguia ver onde terminava, mas ela e Veron precisavam
conversar. Mesmo que ele escolhesse ignorá-la, como Papà sempre
fazia, precisava tentar.
Esta primeira visita era crucial, daria o tom para o resto do
Cortejo Real, e, se eles se saíssem bem, talvez Veron concordasse
que pudessem manter a paz como amigos... e ela enfim teria a sua
biblioteca pública construída.
— Podemos parar por um momento?
Ele assentiu e ergueu uma mão.
A guardiã de olhos afiados gritou, o primeiro de uma série de
gritos ao longo da linha, enquanto os outros paravam.
Veron desmontou aquela enorme besta em forma de cavalo,
seu movimento ágil e fluido, e três guardiãs seguiram o exemplo
dele, enquanto ele estendia a mão enluvada para ela. Ela tirou o pé
do estribo, depois levantou a perna direita enquanto virava para a
esquerda na sela.
Não era a primeira vez que desmontava de uma sela lateral,
mas ela pegou a mão dele de qualquer maneira e pulou. Desde o
seu... protesto com aquele vestido no casamento, era mais
importante do que nunca que ela e Veron demonstrassem que
estavam em paz. Especialmente com o orgulho de Tarquin a
vigiando de algum lugar por perto.
Veron lhe ofereceu um braço e, quando ela o tomou, ele a
acompanhou até a floresta de pinheiros-bravos verde azulados.
Após entrar alguns metros entre as árvores, ele fez uma pausa,
próximo a alguns arbustos de murta, suas guardiãs a vários metros
de distância e examinando a área.
Quando ela contara a Veron sobre a Irmandade e Tarquin, ele
ouvira a notícia de maneira calma e dissera que a Irmandade não
iniciaria um ataque em uma cidade humana, que ela estaria segura
em Stroppiata.
Isso fazia sentido, já que todos os ataques anteriores haviam
ocorrido nos assentamentos Immortali, ainda assim toda a
cavalgada de elfos sombrios parecia no limite, todos os guardiões
mais responsivos, mais atentos.
— Eu vou esperar por você aqui — disse ele, sua voz profunda
abafada através da máscara enquanto assentia em direção a um
conjunto mais distante de arbustos.
Esperar por...?
— Não — disse ela, sorrindo, e sacudiu uma joaninha das
saias do vestido cor-de-rosa. — Não é isso.
Com um olhar para as guardiãs próximas, ela pegou a mão
dele e o levou para trás de um tronco vermelho-alaranjado mais
grosso, onde ele a encarou ela com olhos de meia-lua cintilantes.
Ela estendeu a mão e roçou um dedo ao longo da borda do
capuz preto dele.
— O seu povo sempre usa máscaras e capuzes?
Ele desviou o olhar.
— No reino do céu, sim — respondeu, categórico.
— Por quê?
— As pessoas nos temem — respondeu, uma sobrancelha
pálida se erguendo.
As pessoas tinham mesmo medo deles, da altura imponente,
daqueles olhos dourados, como os dos predadores da noite, com
dentes caninos afiados para combinar. Os cabelos pálidos como os
de um fantasma, que vinham para arrastá-los para o Solitário. A
pele azul-acinzentada, tão diferente da dela, com sua tonalidade fria
e pedregosa. E as garras... que ela conhecia bem.
Mordendo o lábio, ela ergueu lentamente a mão em direção ao
rosto dele e, quando ele não se moveu, apenas mantendo aqueles
olhos dourados fixos nela, puxou a máscara, revelando sua
mandíbula esculpida, a pele de tom ardósia de seu rosto.
Ele estava tão perto que seu cheiro de terra e água fresca
atingiu o nariz dela, talvez como uma pradaria depois de uma
tempestade de verão, e ela respirou fundo, levantando-se na ponta
dos pés para puxar o capuz dele. O dedo dela roçou o cabelo liso e
pálido e, por um breve momento, ele fechou os olhos, suspirando
através de lábios entreabertos.
Por um segundo, tudo parou. A brisa que sussurrava através
das agulhas do pinheiro e as folhas de murta, os murmúrios
próximos de uma guardiã, os chamados distantes entre os que
estavam na cavalgada e tudo mais pausou enquanto aquela
expiração lenta e trêmula escapava dele.
As sobrancelhas de Veron se uniram quando seus olhos
encontraram os dela mais uma vez, procurando, questionando, mas
apenas um músculo se contraiu em sua mandíbula.
Nenhuma parte dela conseguiria se mover enquanto aqueles
olhos a prendessem no lugar, nem as mãos, nem os lábios, nem
mesmo a língua.
Seu pulso e sua respiração se aceleraram –, mas ela não
saberia dizer qual dos dois estava mais rápido.
Os elfos sombrios se beijavam, não beijavam? Era o que
aquilo parecia, quase um beijo...
Mas... ele baixou o olhar entre eles e tanto o pulso quanto a
respiração dela, graças à Mãe, desaceleraram.
Ele, também, tinha ficado paralisado, mas seria por
repugnância ou desconforto? Será que ficou incomodado, pensando
que ela tentou beijá-lo? Só tinham se passado alguns dias desde a
noite de núpcias, quando ele deixara bem claro que não a achava
nem um pouco atraente.
A opinião dele mudara, mesmo que um pouco? Ou suas
reações foram uma gentileza, para que sua esposa humana não se
sentisse tola? Ou talvez fingimento.
Ou dever.
Ele nunca recusaria uma ordem da mãe. Mesmo se sentindo
totalmente repelido por sua noiva humana na noite de núpcias, ele
teria cumprido seu dever, se ela assim tivesse exigido. Ele recebera
uma ordem para se casar com ela, e qualquer gesto de carinho, se
é que aquilo foi algo parecido com isso, estaria a serviço dessa
ordem.
Quando ele olhava para ela, tudo o que via era uma humana.
Alguém nada atraente com quem tinha sido forçado a se casar. Isso
era tudo o que ela seria, para sempre.
Obediente como era, ele tinha sido gentil com ela. Empático.
Compreensivo. Paciente.
E lá estava ela, agora, pensando – em beijá-lo...
Respirou fundo.
Aquela ideia não a enchia de repugnância ou desconforto.
Não a incomodava.
Aquilo...
Ela balançou a cabeça. Não foi por aquele motivo que o
trouxera até ali.
— As pessoas temem o desconhecido.
Ele piscou, as sobrancelhas ainda franzidas.
— As pessoas precisam nos ver de perto — disse ela,
repetindo a sabedoria de Giuliana. — Isso nos torna reais, cria uma
conexão, nos dá a chance de mostrar a eles quem realmente
somos... ou quem queremos ser.
Uma brisa soprou, desprendendo uma mecha do cabelo dela,
que balançou em sua frente, mas ela sentiu couro macio tocando
seu rosto enquanto ele prendia a mecha atrás de sua orelha com
uma mão enluvada.
— Alessandra — disse ele, baixinho, com um semblante
preocupado. — Não é a mesma coisa. As pessoas não querem que
sejamos reais. É por isso que nos cobrimos.
Ela pegou a mão dele.
— Mas você é real. E os pesadelos que imaginamos por trás
das máscaras e dos capuzes são mais aterrorizantes do que a
realidade.
Ele sorriu, mas logo em seguida disfarçou.
— Mais aterrorizantes?
— Quer dizer...
A sobrancelha pálida se arqueou mais uma vez, e ela riu.
— Você sabe o que estou tentando dizer! — Ela desviou o
olhar, enquanto sentia suas bochechas aquecerem. — Nossos
povos têm mais semelhanças do que diferenças e, quando
passarem a ver isso, não precisarão temer tanto. Ou não passarão a
temer mais, como espero que aconteça.
Ele inclinou a cabeça, mexendo o maxilar.
— O que você sugere?
— Nada de máscaras ou capuzes. Você vai distribuir comida e
dinheiro, então deixe as pessoas associarem isso com a sua
aparência. Sorria...
Ele sorriu, expondo aquelas presas longas e afiadas.
— Bom, talvez não um sorriso tão largo — completou, fazendo
uma careta e recebendo uma resposta bufada. — E, se as pessoas
nos derem flores, buquês, carregue eles. É difícil temer qualquer
coisa coberta de flores.
— Faz sentido — disse ele, um sorriso ainda em seus lábios
enquanto apertava a mão dela. — Mas as luvas ficam.
Ela não tinha percebido que ainda estava segurando a mão
dele.
— Por quê...?
Ele a soltou e o sorriso desapareceu.
— Porque eu te machuquei — sussurrou ele, engolindo em
seco. — Eu... Nós... É provável que ainda não tenhamos a noção
necessária para não machucar outros... qualquer humano, e evitar
qualquer...
— Acidente — ofereceu ela.
— É melhor assim.
— Veron — disse ela, com uma voz gentil. — Você não teve a
intenção.
— Nem todo mundo será tão compreensivo.
Por mais que ela quisesse, não havia como discutir com isso.
Não quando pessoas como Tarquin procuravam desculpas para
desumanizar os Immortali como os elfos sombrios.
— Vamos precisar mostrar uma frente unida. Dar as mãos,
sorrir um para o outro, ficar perto... esse tipo de coisa.
— Desse jeito? — Ele soltou um murmúrio baixo e grave,
depois olhou de si mesmo para ela, e de volta. — Fingir que temos
uma intimidade mais profunda?
Com suas bochechas quentes, ela assentiu. Fingir. Afinal, tudo
se tratava disso.
O mundo sabia tão pouco da cultura dos elfos sombrios que
talvez o fingimento deles não fosse escrutinado aos padrões Sileni.
Ou assim ela esperava. Mas por alguns momentos, aos olhos do
público, eles poderiam ser como atores em um palco e fingir afeto
um pelo outro, não poderiam?
— Muito bem. — Pedindo licença, ele saiu para falar com a
guardiã de olhos afiados, que assentiu para ele e, em seguida,
dirigiu-se para os outros do grupo. As outras duas ficaram para trás
enquanto Veron oferecia o braço a ela.
Ela aceitou, inteiramente consciente de seu antebraço e bíceps
musculosos, de seus ombros largos e corpo imponente, de seu
cheiro de tempestade de verão e do arrepio que serpenteou por
suas costas.
Aquilo a excitava.
Ele a excitava. Um elfo sombrio. Como raios aquilo...?
Não, a última coisa que ela precisava era se apaixonar por seu
marido elfo sombrio – e acabar como um troféu que a mãe dele
trancaria no fundo de uma caverna em algum lugar. Aquela seria a
vida que Papà sempre quisera para ela, a vida que nunca suportaria
viver. Ela nunca veria a biblioteca de Mamma ser construída, nem
viveria seu sonho.
E o pior era que Veron não a achava atraente. Aquilo não
passava de fingimento para ele, não era? Acabar gostando de
verdade dele seria...
Ela mordeu o lábio.
Não, ambos tinham papéis para desempenhar naquele dia, e
isso era tudo. Eles teriam que receber uma resposta positiva dos
paesani durante a entrada, bem como a promessa de amizade da
duchessa e o apoio da nobiltà à noite, no banquete. Ela também se
encontraria com Nunzio, o grand cordon dos Paladinos, e discutiria
seus planos para a biblioteca.
Tudo sairia perfeitamente.
Tinha que funcionar.
Veron paralisou ao lado dela.
Ela congelou também. Pela misericórdia da Sagrada Mãe, que
não sejam os dragões de novo. Desta vez, eles...
— Alessandra — sussurrou ele, aproximando-se dela e
inclinando a cabeça devagar em direção ao coração da floresta.
Ela seguiu seu olhar, onde algo tão impossivelmente
imaculado se escondia entre os pinheiros. Era uma criatura grande
e de quatro patas com uma camada de pelos de um branco puro,
não muito diferente do enorme cavalo que Veron montava, mas com
crina e cauda longas e fluidas, brancas como a neve, com um chifre
pontiagudo e espiralado projetando-se do alto de sua testa. A
criatura acenou com a cabeça, olhando-os com olhos suaves e
escuros.
Mamma costumava ler um livro de mitos para Aless quando
ela era pequena e, pelo que lembrava, aquilo era... era... um
unicórnio. Criaturas gentis, dedicadas à paz e à serenidade.
— Nossa presença não o assustou — sussurrou ela.
— Ele quer ser visto — respondeu Veron, baixinho. — Nós
entramos em seu domínio e ele está nos cumprimentando. Eles
normalmente ficam escondidos, são reservados, mas algo o trouxe
até aqui.
Ele queria cumprimentá-los?
— Como você sabe disso?
— Noc — respondeu, continuando de olho no unicórnio. — Ele
é um cavalo feérico, um ser não muito diferente dele. — Veron
indicou o unicórnio. — E Noc me contou muito mais coisas.
— Contou? — perguntou ela, e o unicórnio sacudiu a cabeça e
a cauda.
O cavalo de Veron contava coisas a ele?
Ele a observou pelo canto do olho, um brilho em seu olhar.
— Acho que vocês não foram devidamente apresentados.
Teremos que remediar isso — disse ele, um canto de sua boca se
curvando num sorriso. — Mas, como cavalos feéricos, os unicórnios
são descendentes dos dragões metamorfos. Eles já foram dragões.
Os Dragões Mestres já comandaram outros seres, muitas vezes sob
uma mão pesada, forçando sua obediência, controlando-os para
que não se desviassem do caminho.
“Mas havia um grupo de pacifistas entre os dragões que
sonhava com um mundo onde todos os seres seriam tratados como
iguais, e quando finalmente expressaram seus protestos ao Rei
Dragão, ele os expulsou de seu reino. Ele tirou deles toda a
memória que tinham de viver na sociedade dos dragões, e de como
se transformar em um dragão, e lhes deu a forma que você vê. Eles
queriam viver de modo pacífico e não fazer guerra, não controlar os
outros, e ele os fez assim.”
O rei Dragão expulsara seu povo, os punira, apenas por
discordar dele?
— E quanto ao sonho deles? — sussurrou ela.
Veron franziu as sobrancelhas, o olhar fixo no unicórnio.
— Um dia, você pode perguntar a eles. Os unicórnios jovens
devem passar pela Transformação durante a lua cheia e tomar a
forma de outros seres inferiores, mas, os mais velhos e mais fortes,
se assim escolherem, podem usar a Transformação como quiserem,
até mesmo mudar a forma de outros seres inferiores, mas apenas
os mais puros de coração. Assim como qualquer metamorfo, se
sobreviverem à febre, eles se tornam um imortal. — Quando ela
arfou, ele sorriu para ela. — Então, o que você acha?
Ela observou enquanto o unicórnio piscava os longos cílios
para ela, antes de bufar baixinho, dar a volta e desaparecer na
floresta. Ele confiara neles, o suficiente para lhes dar as costas, e
isso significava muito.
Obrigada. Rezo para nos encontrarmos de novo.
— Eu acho... Acho que quando coisas terríveis acontecem,
não fazer nada é a decisão mais fácil. Tenho certeza de que sabiam
o que aquilo poderia custar, mas fizeram algo difícil, corajoso.
Uma brisa suave soprou o cabelo pálido de Veron enquanto
ele olhava para ela, os olhos semicerrados e um sorriso sutil
brincando em seus lábios.
Se aquilo era fingimento, então ele era o melhor ator do
mundo.

Nos portões da cidade, Veron ajeitou a postura em cima de


seu cavalo enquanto Riza apresentava aos guardas os documentos
fornecidos pelo próprio rei Macário. Para além do portão, multidões
distantes já estavam se reunindo e grandes tapeçarias foram
penduradas nos edifícios ladeando a via principal.
Ele já havia informado Riza sobre a ideia de Alessandra; ele só
precisaria dar um sinal e todos na comitiva removeriam seus
capuzes e máscaras. No casamento, ele entrara sem máscara...,
mas apenas na presença de alguns humanos da nobreza. Nunca
diante do público humano em geral. O que não era nada normal
para um elfo sombrio.
Ele mexeu os pés nos estribos, as botas muito apertadas
sobre o dorso do pé.
Calma, brincou Noc.
Estou muito tranquilo, zombou ele em resposta.
A cauda de Noc bateu nas costas de Veron. Espantando as
moscas.
Claro, pensou ele, fazendo uma careta.
No entanto, para que essa paz desse certo, os humanos não
poderiam temê-los. A ideia de Alessandra era inteligente e ele
nunca teria pensado nisso sozinho. Se ela fosse uma elfa sombria,
qualquer rainha teria muita sorte de tê-la como membro do seu
Conselho. Ele confiaria nela.
Ao lado dele, ela estava com os ombros para trás, o queixo
erguido e um sorriso agradável nos lábios. Confiança, compostura,
alegria. Era o que projetava para todos.
E ele... tudo o que precisava fazer era não ser ameaçador.
Paz, sinceridade, altruísmo. Ele tinha que manter uma postura
aberta e relaxada. Fazer contato visual breve, mas genuíno.
Sorrisos sutis, sem presas. Ele e o resto de sua comitiva
distribuiriam comida e moedas.
Por mais inofensivo que aquilo fosse, todos os elfos sombrios
estariam atentos a Tarquin Belmonte e à Irmandade. Eles não
planejariam um ataque em uma cidade humana, disso ele tinha
certeza. A cidade estava cercada por planícies abertas, exceto pelas
falésias ao oeste. Nenhum comandante em sã consciência levaria
suas tropas por aqueles penhascos íngremes para serem pegos
pelos arqueiros da cidade.
Mas havia outras opções além de violência em grande escala.
Os guardas da cidade abriram os portões. O olhar de Riza
encontrou o dele e, com um aceno de cabeça, ele lentamente
removeu a máscara e depois o capuz. Estava na hora.
Riza sinalizou para Danika e depois fez o mesmo, em seguida,
ouviu-se um farfalhar de couro e lã atrás deles.
Nenhum dos guardas da cidade se assustaram – apenas um
ficou boquiaberto, mas só por um momento –, então pela graça do
Profundo, da Escuridão e do Sagrado Ulsinael, aquilo daria certo.
Danika e sua equipe foram à frente dele e de Alessandra,
distribuindo pães e doces para as primeiras famílias que lotavam o
trajeto. Eles olhavam para ele e seu povo com os olhos arregalados
e boquiabertos, mas apenas por um momento antes de Alessandra
acenar.
— Que as bençãos de Terra caiam sobre vocês! — gritou ela,
a voz doce, mas alta o suficiente para ser ouvida ao longe. Ela
mencionara a santidade de Stroppiata; o santuário Terrano daquela
região era bem famoso.
— Que abençoe vocês também! — Vieram os gritos de
resposta.
Uma mulher ergueu um menino com um buquê de flores
brancas e, após um aceno de cabeça de Gavri, Alessandra as
aceitou, com um sorriso, distribuindo moedas de ouro para as
pessoas maravilhadas.
Enquanto ela trazia as flores brancas para o rosto e as
cheirava, gritos e aplausos emergiram da multidão, que se
aglomerava cada vez mais enquanto seguiam cavalgando. Por trás
do cordão de segurança feito pelos guardas, cabeças se esticavam
sobre os ombros, os olhares fixos no rosto de Alessandra, seu
vestido, em Veron, seus companheiros elfos sombrios. O choque em
suas expressões era efêmero, rapidamente afugentado por sorrisos,
risos e aplausos enquanto ele distribuía as moedas de ouro.
Danika e sua unidade permaneceram em formação, guiando
com gentileza a multidão para trás. Flores arremessadas enfeitavam
o caminho diante deles, um tapete acolhedor os levando em direção
ao castelo no distrito norte da cidade.
— Veron — chamou ela, sua voz como a sensação do mais
macio dos musgos acariciando a sua nuca, como um hálito quente
em sua pele. Ele olhou para ela.
Seus olhos eram o abraço escuro do lar dele, o florescer da
noite e a beleza da sombra, e, quando ela sorriu, a respiração dele
falhou.
Ela estendeu o buquê e, quando ele o pegou, o toque dela se
prolongou na mão dele.
— Nada a temer — sussurrou ela, apenas para ele.
Assentindo, ele sorriu de volta, mas se conteve antes que seus
dentes aparecessem. Nada de dentes. Nada de ameaçador.
Uma menininha com cachos escuros como os de Alessandra
soltou um gritinho de alegria, e Alessandra abriu a pulseira de
pérolas e a entregou a Kinga, outra de suas kuvari, para doar a ela.
Com um risadinha feliz.
Não, ela não era mimada. Seu pai a adornara com luxo, mas
ela não parecia desejar acumular essas coisas.
Ela chamou Gabriella, que tirou vários livros do alforje do
cavalo e os distribuiu para as crianças mais velhas.
O amor de Alessandra pelos livros... ele teria que anotá-lo em
Uma História Moderna de Silen.
Ela não era como as elfas sombrias mais ferozes, com quem
os jovens elfos sombrios sonhavam, suas iguais em batalha, súditas
ambiciosas, as mais fortes entre seu povo e amantes ardentes.
Mas...
Honesta, generosa, sábia, corajosa, gentil... Era uma bênção
alguém conseguir encontrar uma parceira com tais traços. Uma
bênção que ele nunca tinha esperado. Tudo o que ele fora permitido
esperar era que aquele fosse um casamento que Mati considerasse
benéfico para Nozva Rozkveta. Como era apropriado.
Na floresta, Alessandra estava tão perto, seu perfume de
alguma flor do reino do céu tão forte que ele quase conseguia sentir
o gosto. Os dedos dela acariciaram seu cabelo, a sombra de um
toque, e ele teve que lutar contra o desejo de se entregar àquele
toque. Enquanto o coração dele batia forte, percebeu que havia algo
no abraço escuro de seu olhar. Uma curiosidade. Uma pergunta. Um
convite...
Um que ele estava tentado a aceitar. Muito tentado.
Mas será que ela sentia o mesmo? Depois do terror absoluto
que ela demonstrara na noite de núpcias, ele não queria pressionar.
Se ele a interpretasse mal, isso só iria assustá-la e incomodá-la
mais. No entanto, se aquela distância entre eles estivesse
diminuindo, alguém teria que abordar o assunto, admitir a mudança
na percepção. E seria ele. Ele teria que confessar a atração por ela
primeiro, e assim o faria. Não esconderia nada, nem seria
desonesto.
A última vez que Veron viu Ata, ele era apenas um menino,
nem tinha idade suficiente para ir caçar sozinho com o pai. Não
posso ir com você, Ata?, ele perguntara.
Ata se agachara ao nível dos olhos, sorrira e dera um tapinha
no ombro dele. Desta vez não, filho. Mas voltarei antes que perceba.
Com um sorriso radiante e um aceno de cabeça, ele observara
Ata caminhar até a morte. Para acabar com a guerra entre Nozva
Rozkveta e Lumia, Ata voluntariamente se entregara, e salvara
muitas vidas de elfos sombrio com seu sacrifício, mas traíra o amor
de seus próprios filhos, o amor de Mati. Depois disso, Mati passara
por um período que nem sequer se movia, era como uma morta-
viva... tudo porque Ata traíra o amor deles quando poderia ter...
PerigoPerigoPerigo. A mente feérica de Noc invadiu a dele.
Sombras os cobriram enquanto se aproximavam de um arco e
ele ainda podia ouvir as batidas de mortalhas funerárias, vastas e
pesadas, a batida de cada tremor...
Os arquejos e gritos horrorizados...
Ele piscou e o som de asas batendo veio de cima, grandes
asas negras que bloqueavam o sol.
Capítulo 10

Com asas enormes que se estendiam por quase cinco metros de


largura acima deles, duas dúzias de harpias com bocas muito largas
e garras extremamente afiadas sobrevoavam.
Algumas se juntaram no topo do arco, enquanto o resto
mergulhou para as multidões. Os humanos seriam massacrados.
Alessandra seria...
— Meu arco! — Veron saltou das costas de Noc e puxou
Alessandra da sela, envolvendo sua capa sobre ela enquanto a
multidão se dispersava, em gritos.
— Veron, por que eles...
Uma harpia voou baixo, suas garras à mostra, e Alessandra
gritou. Mas ele a protegeu. Nada a machucaria. Nada.
Gavri correu, puxou seu arco e a primeira harpia gemeu
quando caiu nas pedras diante deles.
— Esconda qualquer coisa que brilhe! — gritou Riza em Sileni.
Alguém entregou para ela o arco de Veron e uma aljava cheia de
flechas, que ela jogou para ele.
— Que brilha? — gritou Alessandra, abaixando-se junto de
Gabriella.
A unidade de Gavri cercou as harpias, enquanto Danika dava
cobertura à multidão à frente deles e Veron conduzia Alessandra e
Gabriella atrás de si até o ponto mais estreito do beco, enquanto
mirava.
Uma flecha no pescoço. Uma harpia despencou nas pedras.
Outra no olho, e flechas perfuraram suas asas enquanto ela
caía.
As kuvari de Riza cortavam as cabeças com lâminas vjernost –
a única maneira de garantir a morte definitiva – e o arcanir das
espadas refletia a luz do sol. Gritos agudos e estridentes perfuravam
o ar.
Ele mirou, enterrando flechas em asas e corpos, mas...
Noc se se afastou e depois deu um coice numa harpia, as
moedas dos seus alforges tilintando.
Não.
— As moedas! — gritou Alessandra. — Se a gente
conseguisse...
Atraia elas para a estrada.
— Gavri — chamou ele, pegando a luva entre os dentes e
arrancando-a. — Me dê cobertura!
Assim que ele avançou, flechas sibilaram no ar acima dele.
— Vossa Alteza! — rosnou Riza, sua lâmina vjernost batendo
contra garras.
Fique parado. Ele pegou as rédeas de Noc e depois cortou a
faixa de couro de sua sela. que caiu na rua junto com as malas,
enquanto ele batia na garupa de Noc, mandando-o em direção a
Gavri e Alessandra.
Sangue choveu sobre sua cabeça e pescoço – uma harpia
despencou na rua de pedras, com uma flecha cravada em sua boca
aberta.
Ele pegou o saco de moedas, abriu e depois espalhou o
conteúdo na rua vazia à frente das harpias. O ouro explodiu na
pedra com um barulho caótico de tilintar, a luz do sol forte refletindo
em centenas de facetas brilhantes.
Uma dúzia de harpias desceu sobre o mar metálico e
cintilante.
Mais de cinquenta arcos miraram ao mesmo tempo, uma
miríade de flechas cravando nos alvos estridentes. Riza deu a
ordem de extermínio e lâminas vjernost degolaram os corpos.
Passos de botas soaram. Dois esquadrões de guardas da
cidade, para os quais a comandante Riza olhou com uma carranca
manchada de sangue e relatou o ataque.
Veron limpou o sangue do próprio rosto... com uma manga
encharcada de sangue.
Cascos ecoaram atrás dele, e Noc relinchou, indicando sua
localização, enquanto Alessandra o conduzia.
Ela estava bem. Graças ao Profundo, à Escuridão e ao
Sagrado Ulsinael, ela estava bem. Ao primeiro sinal das harpias, ele
pensou que ela...
Um suspiro o deixou e, com ele, a rigidez que reivindicara o
seu corpo. Ele deu um passo à frente antes que ela estendesse um
lenço para ele.
Ele parou. O que ele estava pensando? Em jogar seus braços
em volta dela, senti-la segura contra ele, beijá-la? Não, primeiro ele
tinha que dizer a ela como se sentia.
Com um murmúrio de agradecimento, ele o pegou e esfregou
seu rosto, em seguida, deu um tapinha no pescoço de Noc.
Obrigado pelo aviso, velho amigo.
Noc só relinchou em resposta. Ele sempre foi um cavalo
feérico de poucas palavras.
Guardas municipais vasculhavam as ruas, embora pelo que
parecia não houvera vítimas humanas. Algumas kuvari faziam
curativos em suas feridas, mas Riza já tinha sua mística, Xira,
cuidando delas.
O comandante dos guardas da cidade, usando o emblema de
uma sereia, aproximou-se deles. Um homem de meia-idade com
cabelo preto grisalho, que fez uma reverência profunda para
Alessandra.
— Vossas Altezas, vocês estão feridos?
Ainda vestindo a capa dele, Alessandra parecia ilesa.
— Eu estou bem. Veron?
— As únicas feridas foram duas das minhas kuvari, mas você
terá que checar com a capitã Riza.
A garganta do comandante subiu e desceu.
— Por favor, aceite minhas mais profundas desculpas pelo
infortúnio. Sua Graça nos fez tomar todas as precauções.
Todas as precauções teriam incluído limpar o ninho de harpias
mais próximo antes da chegada do Cortejo Real, ou pelo menos
emitir um aviso sobre os reflexos. No entanto, ao contrário dos
humanos de que ele se lembrava, estes tinham muito a aprender
sobre os imortais.
E infortúnio teria um significado que repercutiria por todo o
reino humano. Que seus deuses humanos desfavoreciam a paz, o
casamento, eles.
Alessandra segurou a mão dele e, com uma respiração
profunda, virou-se para o comandante.
— Não foi má sorte, capitão...?
— Scianna — completou o comandante. — Mas eu não
entendo, Vossa Alteza...
Alessandra entregou as rédeas de Noc para Gabriella, então
caminhou com Veron de volta para o beco ao qual ele a levara, com
o capitão Scianna os seguindo. Gavri esperava atentamente no
local, mas, quando ele passou por ela, ela baixou o olhar.
Ela lutara com bravura, habilidade...
Mas não era confiável. A primeira traição tinha sido pequena,
quase inofensiva, mas a próxima poderia significar uma vida, ou
mais. Ela não era digna de confiança. Ele se virou.
— Harpias são atraídas por objetos brilhantes — começou
Aless, olhando para ele por um momento —, como moedas. Joias.
Lâminas. Qualquer coisa que possa ser refletido pela luz do sol, e
atraia os olhos delas.
Aquilo era verdade, e ficou claro que estava prestando atenção
no que fora dito. A ideia dela de espalhar as moedas foi brilhante. O
que estaria planejando agora?
Ela chegou ao local onde ele a deixou durante o ataque, o
ponto mais estreito do beco, e depois se virou para o arco. Seu
dedo apontou para cima e, enquanto as nuvens se dissipavam, um
brilho refletiu, lançando um feixe de luz largo e branco em direção
aos penhascos. Ao se aproximarem pelo lado sul, não teriam sido
capazes de vê-lo. Mas do ponto de vista dela, no beco, ela tinha
visto.
— Creio que aquilo é um espelho, capitão — concluiu
Alessandra. — O que parece um infortúnio foi, na verdade,
sabotagem.

⁎⁎⁎
Aless lançou olhares discretos para Veron enquanto um
esquadrão de guardas da cidade escoltava os dois, Gabriella e suas
guardiãs até o castelo da duchessa Claudia La Via. A duchessa
esperava por eles no salão nobre, onde ela e Veron teriam que
conquistar seu apoio e de sua nobiltà. Se quando chegasse o
momento de partirem, a nobiltà fosse só sorrisos e a duchessa
estendesse uma promessa de amizade a eles, sua missão naquele
lugar teria tido sucesso.
Mas a duchessa tinha instruído o capitão Scianna e seus
criados a levá-los para dentro discretamente para se trocaram
primeiro.
O que foi uma boa decisão... porque, ao lado dela, os cabelos
brancos fantasmagóricos de Veron estavam tingidos de um
vermelho profundo e escuro, as manchas de sangue espalhadas por
seu rosto, pescoço e por toda sua pele azul-ardósia, o couro de sua
roupa, encharcado também. Era uma visão bem arrepiante. Aquilo
tudo, somado à sua rigidez tensa e à seriedade perceptível em sua
mandíbula travada, o fazia parecer um guerreiro demônio, composto
de ira e rancor, com uma sede de sangue brilhando em seus olhos
dourados semicerrados e sem um pingo de misericórdia em suas
veias.
Parecia um caçador fantasma da Caçada Selvagem.
Os conspiradores responsáveis pelo ataque não eram dignos
de sua misericórdia e, para ela, mereciam cada grama de ira,
malícia e rancor que ele tivesse. Mesmo deixando de lado a
repugnância por eles tentarem desencadear uma guerra – aquele
espelho havia sido colocado no arco –, tinham crianças naquela
multidão. Ela até tinha dado uma joia a uma garotinha, o que
poderia ter atraído as harpias. Graças à Mãe nenhuma das crianças
foi ferida.
O ataque precisava de uma resposta.
Pela janela, o jardim estava sereno, seu desenho como um nó
geométrico colorido, mas os vidros refletiam as imagens dela e de
Veron sobre a vegetação.
Alguém colocara o espelho naquele arco, deve ter sido a
Irmandade. Eles não tinham atacado abertamente uma cidade
humana em sua guerra contra os Immortali, mas estavam dispostos
a deixar uma raça de Immortali matar a outra, mesmo se os
humanos ficassem presos no meio disso. Mesmo que ela ficasse
presa no meio. Pelo visto, as promessas de Tarquin não valiam
nada.
Aquela união era sobre garantir a paz, porém não tinham mais
segurança. Ela não era mais a Princesa Bestial do palazzo,
desafiando egos enormes e arqueando sobrancelhas na corte. Ela e
Veron agora eram um símbolo – um símbolo que alguns tentariam
usar, e outros tentariam destruir.
Não sem lutar.
— Veron — sussurrou ela, enquanto seguiam um mordomo
pelas escadarias forradas de tapete, e a mão dele apertou a sua de
forma quase imperceptível, enquanto seus olhos semicerrados se
suavizavam e se fixavam nela. O calor, o conforto e a rugosidade
calejada de uma mão que tinha empunhado arcos e lâminas. Que
poderia protegê-la.
De alguma forma, durante todo o trajeto desde as ruas de
Stroppiata até as escadas do castelo, ela continuou segurando a
mão dele.
E ele permitiu que ela segurasse.
— Você está bem? — murmurou ele, a voz baixa e a testa
franzida enquanto a analisava.
— Estou. Quer dizer, eu... gostaria de começar a aprender a
usar o arco. — Para começar a se proteger, e a ele, e a qualquer um
que precisasse. Já era tempo. Papà sempre a proibira, mas Papà
não estava aqui agora.
Os lábios de Veron se curvaram por apenas um momento,
então ele inclinou a cabeça.
— Começaremos amanhã de manhã.
Aquelas palavras em um tom baixo e oferecidas livremente
com a sombra de um sorriso a aqueceram, mas aquela testa
franzida retornou ao rosto dele. Embora caminhasse ao lado dela e
segurasse sua mão, a mente dele ainda estava nas ruas
encharcadas de sangue, ainda encarando aquelas harpias em meio
aos gritos e às lutas.
Está tudo bem, ela queria dizer, mas... não. Não estava tudo
bem. Nem um pouco bem. Mas ela acharia um jeito de consertar as
coisas.
Graças à Sagrada Mãe que os elfos sombrios tinham suas
lâminas, feitas de arcanir, que pareciam anular certas habilidades
dos Immortali, e com isso conseguiram exterminar as harpias.
O mordomo os levou até os aposentos, e a guardiã de olhos
afiados e outras duas checaram o ambiente antes de liberar para
que entrassem. Enquanto ela e Veron entravam, Gabriella pediu
licença para supervisionar a entrega das bagagens.
Os espaços eram opulentos – os aposentos do duque, sem
dúvida –, com estofamento refinado de seda branca, móveis de
madeira preta e pé direito alto. Veron se aproximou das janelas,
olhando para fora com um olhar aguçado, preocupado.
Depois do que acontecera, o que ela poderia dizer a ele?
A Irmandade arriscara muito, e não pararia por ali.
Revelar a sabotagem poderia trazer o público contra a
Irmandade, mas também desviaria o foco do reino, da paz para a
rebelião. E, com os Immortali lutando abertamente em cidades
humanas, havia um risco muito grande de que a Irmandade gozasse
do apoio da divulgação popular, mesmo que negassem ter plantado
a isca.
Difundir a agitação podia ser exatamente o que a Irmandade
queria. Todo o propósito do Cortejo Real – espalhar a mensagem de
paz – seria frustrado. Sufocado. O foco voltaria mais uma vez à
ameaça dos Immortali.
Mas será que tinha mesmo que ser assim?
— Não sem lutar — murmurou ela.
Veron, com os braços cruzados, virou-se para ela, com uma
sobrancelha erguida. Daquele momento em diante, ela começaria a
proteger a ele, ela mesma e todos os outros – por enquanto, com os
únicos métodos que conhecia.
— Você acha que nós falhamos. — Ela se moveu em direção a
ele enquanto os criados entravam com baldes de água fumegante
para o banho, derramando-a em uma banheira atrás dela.
Ele grunhiu.
— Nós falhamos, quer eu pense assim ou não.
— Tudo estava indo bem até...
— O ataque. E isso é tudo de que todos eles vão se lembrar.
— Sua voz baixa se tornou praticamente inaudível. Ele baixou o
queixo e seu olhar se fixou no chão. Ele fechou os olhos e seu corpo
foi banhado pelos raios de sol que entravam pela janela, coberto de
sangue e brilhando, aterrorizante e resplandecente.
Quando as sombras aladas surgiram no alto, ela tinha
congelado em sua sela, incapaz de se mover, incapaz de pensar,
olhando para aquelas bocas escancaradas com dentes afiados,
olhos frenéticos e garras como lâminas. Tendo uma visão de carne
sendo rasgada e chuva de sangue, uma festa profana no céu acima
de uma cidade angustiada. Então, fora puxada da sela, coberta por
um manto preto e levada para um beco apertado.
Veron. O som baixo de sua voz, seu cheiro de água da chuva e
terra fresca. Seus braços protetores, seu corpo destemido, sua
coragem implacável. Ele não hesitara. Não tinha congelado. Não
tinha entrado em pânico.
Ele salvara a vida dela.
Ela estendeu a mão até ele, para onde seu cabelo longo
estava jogado sobre o ombro, e puxou a fita que amarrava sua
trança, de forma lenta, gentil. Os olhos de Veron se entreabriram, os
cílios pálidos refletindo os raios de sol, e a respiração dele ficou
mais lenta.
O odor metálico de sangue era avassalador e, com os braços
cruzados, aquelas garras afiadas repousavam sobre seus bíceps.
Mas ela puxou a fita para baixo e a soltou. Deslizando os
dedos através das mechas da trança, ela a desfez, desprendendo e
libertando os cabelos dele.
Ele não se moveu, simplesmente a observou através daqueles
olhos semicerrados, deixando-a fazer o que queria.
Estou aberto aos seus desejos, dissera a ela na noite do
casamento deles. Não deve temer a rejeição caso os expresse para
mim.
Ele salvara a vida dela – e ela poderia beijá-lo só por isso.
Mas, quando fizesse isso, ela iria querer que ele a beijasse de volta.
E não só por causa das ordens da mãe, nem pelo dever, mas
porque ele queria. O que, na pior das hipóteses, era uma
impossibilidade, e, na melhor, um desafio.
Porém, desafios são feitos para ser superados.
— Alessandra — sussurrou ele, e ela queria ouvi-lo dizer seu
nome mais uma vez, cem vezes, mil vezes. Que a chamasse pelo
nome que só permitia que seus entes queridos usassem.
— Aless. — Ela deslizou a mão do cabelo dele até o seu peito
blindado com a armadura de couro. — Me chame de Aless.
— Aless.
O som suave foi como a mais sutil das carícias, íntimo, mas
ela não fechou os olhos, não se deixou levar pelo momento, ela não
alimentaria suas esperanças com aquelas palavras, esperanças de
que ele poderia vê-la como algo mais...
Ela não era nada.
Ela era – como seu Papà dissera? Teimosa, de pavio curto,
tinha uma língua ferina e era presunçosa. Desobediente.
Tudo o que um homem não queria em uma esposa...
Na noite de núpcias, Veron a levara a entender que, se ela
quisesse mais, ele daria a ela. Era isso que estava fazendo? Dando
o que ela queria, não importando como ele se sentia?
Seus dedos se pressionaram contra o couro.
Ele pegou sua mão com cuidado, suas garras bem longe da
pele dela. Esfregando o polegar sobre a ponta do dedo dela, ele
limpou a mancha de sangue que acabou sujando sua mão quando
tocou a armadura.
— O sangue.
Algo foi colocado no chão atrás dela e ela olhou por cima do
ombro. O restante de sua bagagem, incluindo o baú que Lorenzo
tinha dado a ela.
Ela se voltou para Veron.
Havia a questão do sangue, sim, mas havia algo ainda mais
urgente, a duchessa os aguardava.
— A banheira está pronta — sussurrou ela.
Com uma respiração profunda e um aceno, ele olhou em
direção à banheira e de volta para ela.
— Eu a ofenderia se eu...?
— Não, de jeito nenhum — respondeu ela, rápido demais. —
Mas, se você quiser que eu vá embora, eu...
— Não. — Ele se ajeitou. — Fique.
Antes que ela pudesse responder, ele a libertou e caminhou
até a banheira.
— Lorenzo me fez trazer algumas coisas para você, já que nos
misturaríamos entre a nobiltà — começou ela, entre o farfalhar de
couro e tecido.
— Isso foi generoso da parte dele. Ele foi de grande ajuda na
capital.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, ele estava se despindo,
bem atrás dela, e seu coração estava na garganta, como se ela
nunca houvesse estado perto de um homem nu antes.
Então, em vez disso, ela abriu o baú com as roupas de
Lorenzo e removeu uma variedade de peças de alta-costura
masculina.
— Acho que as roupas ajudarão a diminuir as diferenças dos
nossos povos. Assim como as flores.
Ela ouviu o suave barulho da água e começou a torcer uma
camisa na mão. Pigarreou.
— Falando em flores, acho que não falhamos hoje.
— Aless...
— Ninguém morreu. Nenhum dos participantes nem ficou
ferido. No mínimo, provamos que seu povo pode cumprir
exatamente o que prometeu, ajudar a combater os outros Immortali.
— Ela escolheu um conjunto de veludo preto para ele, um paletó
com um belo corte e calças ajustadas, sem excessos de cor e
ornamentos que fizesse parecer que estavam se esforçando
demais.
Ele suspirou.
— Foi um mau agouro.
— Se deixarmos as coisas como estão, essa será a história. —
Ela espalhou as peças em cima da cama enquanto ouvia o barulho
suave da água atrás de si. A Princesa Bestial teria ido em direção a
ele, despido-se e entrado na banheira antes que ele se lembrasse
de fechar a boca. A Princesa Bestial seria corajosa, ousada...
A Princesa Bestial tinha sumido.
Em vez disso, só restava aquela bagunça trêmula e confusa,
mal capaz de funcionar na mera presença daquele homem. Talvez
cheirar alguns sais faria bem a ela.
Essa atração – não a levaria a lugar nenhum. Tudo o que ele
sentia por ela era obrigação, e ela não seria a patética infeliz que
ansiava por um homem que nunca a desejaria.
Ela se encontraria com Nunzio hoje, discutiria seu plano para a
biblioteca, e, não importa como, precisava viver seu sonho, de
ajudar de qualquer maneira que pudesse. Ela explicaria tudo a
Veron. Ele não merecia essa bagunça – ele merecia a verdade,
saber dos planos dela, mesmo que isso o perturbasse ou irritasse.
Era preciso tomar uma decisão, e logo.
Logo... Isto é, não naquele instante. Naquela noite teriam que
convencer a nobiltà de Stroppiata a apoiar a paz – com vidas tanto
humanas quanto de elfos sombrios em jogo, aquela tinha que ser a
prioridade deles. Mas quando isso passasse...
Ela soltou um suspiro. Depois disso, contaria tudo a Veron e
ele... entenderia seu desejo de curar a ignorância que alimentava
aquela rebelião, e se ela ajudasse a solidificar a paz durante este
Cortejo Real, não haveria necessidade da segunda cerimônia, do
casamento. Com o objetivo de sua mãe cumprido, ele não iria
querer se casar com uma humana de qualquer maneira, então
estaria livre. Ele entenderia. Ele...
— Essa era a nossa única chance — disse ele, calmo. — De
acordo com o cronograma, passaremos o resto da nossa visita aqui
com a nobiltà.
— Então, a Irmandade ganha. Eles escolhem a impressão que
deixaremos nos paesani e nós não fazemos nenhum esforço para
mudar a situação. No final, pareceremos resignados, ou pior, com
medo.
Um movimento na água soou alto, em seguida, o farfalhar de
tecido.
— O que você propõe?
— Que sejamos nós a estabelecermos a narrativa. Vamos
manter Silen focada no positivo. Focada em nós. — Quando os
passos se aproximaram da cama, ela se virou. — Pediremos à
duchessa que o povo dela espalhe a notícia do seu heroísmo e do
seu povo, durante o salvamento de hoje. E amanhã, vamos planejar
uma visita improvisada ao santuário Terrano. Farei uma oferta
perante a Mãe de Stroppiata por uma união abençoada, e faremos o
possível para parecermos afetuosos e unidos. — O que não seria
um esforço muito grande, pelo menos não da parte dela.
— Será que isso daria certo? — O barulho do veludo soou
atrás dela, Veron estava se vestindo, sua silhueta lançando uma
mistura de sombra e luz à frente dela.
— Stroppiata é a cidade mais devota de Silen. Será visto como
um ato respeitoso. — Eles tinham a vantagem de serem figuras
públicas; enquanto a Irmandade se escondia e fazia tudo nas
sombras, ela e Veron podiam usar a visibilidade para obter as boas
graças do público, caso agissem com sabedoria. Se conseguissem,
a causa da Irmandade falharia.
Houve um breve silêncio.
Ela espiou por cima do ombro enquanto ele abotoava a camisa
sob o paletó preto aberto, por cima de um corpo esculpido e
musculoso, cinza-azulado como o mármore Carrara do Norte.
Artistas sonhadores de Silen tinham esculpido deuses e heróis
poderosos, ideais de mito e lenda, com tal forma. E lá ele estava
diante dela agora, real e respirando, lindo e forte, o divino e o
heroico nele guiando-o em seus atos terrenos. Camadas de
rumores, presunção e mistério que haviam escondido dela quem ele
realmente era foram varridas como poeira ao vento, mas ele estava
por baixo daquilo tudo por todo esse tempo.
— Estou feliz por ter sido você, Aless.
O coração dela deu um salto. Piscando, fixou o olhar no chão
de parquet.
— Feliz por ter sido eu? — sussurrou ela, ousando encontrar
os olhos de Veron, enquanto ele abotoava os botões dourados do
casaco. Pela misericórdia da Sagrada Mãe. Olhar para ele só
confirmava a atração não correspondida.
Mas ele dissera que estava feliz. Talvez não fosse não
correspondida?
Mantendo o olhar nela, ele abandonou os botões no meio do
caminho e deu um passo na direção dela.
O coração dela se acelerou. Ele notara a estranheza dela?
Estava provocando-a? Ela engoliu em seco.
Ele pegou cuidadosamente a mão dela, uma mão trêmula, e a
trouxe contra seu peito, pressionando-a ali, sobre o coração.
— Quando cheguei a Bellanzole, fiquei feliz por ter sido você.
Os olhos dela se arregalaram, mas ele não vacilou, apenas
segurou a mão dela contra o pulso batendo em seu peito. Seus
olhos dourados, suaves e calorosos, mantinham-na sem palavras,
sem fôlego, e seus cabelos, limpos e úmidos, imploravam por seu
toque. Os botões do paletó, abotoados só até o meio – ela não
conseguia decidir se queria terminar de abotoar ou...
— Será que só eu fiquei feliz, Aless?
Ele piscou e, por um instante, ela não conseguia respirar. Ela
balançou a cabeça devagar. Não, ele não a interpretara errado. Não
era só ele que...
— Acho que pode haver algo aqui que...
Uma batida suave na madeira soou do outro lado da porta.
A boca de Veron se curvou enquanto ele estudava os olhos
dela.
— É hora de conhecer a duquesa.
Tinha chegado o momento, e a conversa deles fora
interrompida, mas não importava – ele sabia.
Ele sabia, e sentia o mesmo.
Capítulo 11

Um canto da boca de Veron se curvou para cima enquanto ele


escoltava Aless para o salão nobre, seguindo um criado. Pelo
Profundo e pela Escuridão, ele mal conseguia parar de sorrir.
Aless não falava uma palavra de élfico. Não adorava o
Sagrado Ulsinael. Não possuía a menor destreza de combate. Não
sabia caçar, nem mesmo armar uma tenda direito.
Mas ela era devotada à paz, generosa com suas coisas e
amava a irmã ferozmente. Era determinada, uma pensadora
estratégica, apaixonada pelo conhecimento e ansiosa para aprender
coisas novas. Carismática e inspiradora. Acima de tudo, honesta.
Quanto mais ele aprendia sobre ela, mais gostava dela – algo que
não esperava que fosse acontecer com este casamento arranjado.
Ao lado dele, ela praticamente brilhava, com os cachos
escuros cascateando sobre os ombros, atraindo o olhar dele para o
decote de seu vestido roxo e prateado nas barras, que se ajustava
logo abaixo da curva de seus seios.
Ele não devia olhar, mas...
A moda humana certamente mudara em dois mil anos. De
forma drástica, e gloriosa. Assim como a coisinha vermelha e
translúcida que ela usara na noite de núpcias deles. Uma coisinha
vermelha e translúcida que agora não saía de seus pensamentos.
Respirando fundo, ele desviou o olhar.
O mais suave dos risos veio dela, que ela abafou rápido.
— Algum problema?
Não, bem pelo contrário.
— Apenas uma visão incomum.
— Seios? — provocou.
Ele pigarreou.
— O vestido.
Seus olhos escuros brilharam quando ela piscou, os longos
cílios pretos trêmulos. Como ele não notara a estranha beleza dela?
Ela tinha cabelos escuros, olhos escuros e uma pele morena – o
que era considerado estranho entre o povo dele. Sem presas, sem
garras, um corpo macio – macio até demais. Ela era humana. Tão
diferente das elfas sombrias, das mais bonitas delas, mas...
Isso não a tornava feia. Não... Entre um mar de estrelas, ela
era a lua. Era como se ele não tivesse olhado para cima até agora.
Aqueles olhos escuros não eram como o âmbar dos de seu
povo, mas brilhavam quando sua mente trabalhava em algo,
queimavam quando ela tinha uma ideia, suavizavam quando ela
olhava para ele, guardavam um mistério como a Escuridão sagrada.
E seus cabelos não eram brancos, eram da cor do Profundo,
místicos e hipnotizantes, e contrastavam com o tom moreno de sua
pele.
Sua pele... às vezes, quando olhava para ela, sua pele corava,
ficava com o mais delicado dos tons de rosa em suas bochechas, e
ela não precisava dizer os pensamentos em voz alta quando
estavam tão claros em seu rosto. Sem tons de azul, roxo e cinza,
mas rosa. Como as flores do Bosque que protegia Nozva Rozkveta.
Quanto mais ele olhava para ela, mais ela o lembrava de casa.
O braço dela, em volta do dele, aproximou-se um pouco mais
enquanto ela acariciava suavemente o bíceps dele. Ele cobriu com
cuidado a mão dela com a sua quando dois homens abriram as
portas duplas altas e um terceiro os anunciou:
— Sua Alteza, príncipe Veron do Bosque Noturno, e Sua
Alteza, princesa Alessandra do Bosque Noturno.
O barulho baixo da conversa no salão nobre se acalmou
enquanto ele conduzia Aless, a multidão se separando e todos os
rostos se virando para eles. Olhos arregalados piscando,
sobrancelhas bem cuidadas se arqueando, lábios pintados se
separando. Um espectro de cores envolvia o salão, onde, do outro
lado, uma mulher se sentava em uma cadeira como um trono atrás
de uma enorme mesa. Usando um vestido dourado, ela tinha uma
pequena esmeralda presa no alto da bochecha e cabelos loiros
presos num penteado elaborado, adornado com uma pena de
pavão.
Esta mulher teria se vestido de toda a riqueza das minas de
Nozva Rozkveta e, ainda assim, seu sorriso parecia inteiramente
genuíno. A duquesa. Era a promessa de amizade dela que eles
teriam que conquistar hoje.
Com um largo sorriso, ela se levantou e começou a bater
palmas de forma lenta, mas confiante, e o resto dos convidados do
salão se juntou.
— Príncipe Veron e princesa Alessandra — disse a duquesa,
com um tom agradável. — Sejam muito bem-vindos. Agradeço a
ambos por sua bravura em defender o meu povo. — Ela fez uma
reverência graciosa e uma onda de mensuras e reverências se
seguiu.
— Estamos honrados, Vossa Graça — respondeu Veron,
inclinando a cabeça com Aless, seguindo o cumprimento de acordo
com a posição deles.
— Ao casal feliz! — A duquesa ergueu um cálice de vinho,
assim como todos os outros, exceto por um homem alto e
musculoso perto da duquesa, que levantou um copo d’água e
acenou com a cabeça para Aless, partes de suas tatuagens
aparecendo por debaixo da manga.
Aless sorriu calorosamente, inclinou a cabeça e então apertou
mais o braço de Veron. Então, era alguém que ela conhecia.
A duquesa acenou para os músicos, que iniciaram uma
melodia sinuosa, e as conversas do salão retomaram enquanto ela
se aproximava deles.
Aquela já era uma recepção muito mais acolhedora do que ele
esperava.
Uma trupe de dançarinos vestidos com trajes chamativos
entrou, reivindicando o centro do salão em uma rotina elaborada de
quadris balançantes e sedas estonteantes.
Em qualquer reino de elfos sombrios, aquele seria o momento
em que os jogos tradicionais começariam, pequenas lutas para
testar as proezas um do outro. Havia honra em desafiar adversários
formidáveis, em aceitar, vencer e até mesmo perder, mas, acima de
tudo, era divertido, e às vezes – como no caso das danças dos
humanos – uma oportunidade para cortejar.
— Um pouco de entretenimento para celebrar a visita e a união
de vocês. — Os olhos verdes da duquesa brilharam. — Haverá
jantar, danças, fogos de artifício no jardim e depois uma festa
privada no meu salão até o sol nascer.
— A promessa das famosas festas da duchessa Stroppiata
não decepciona — disse Aless, enquanto um jovem servia dois
cálices de vinho para eles. Ela deve ter passado muito tempo se
divertindo na corte real. Vibrante, enérgica, curiosa, espirituosa...
ela, sem dúvida, brilhava intensamente nesse ambiente.
— Sou uma admiradora de todas as coisas bonitas — disse a
duquesa, olhando para Veron com um sorriso preguiçoso. — Não é
todo dia que tenho o privilégio único de hospedar a realeza dos elfos
sombrios. Espero que não seja a última vez.
Ele poderia ter rido. Tal atenção não era incomum entre as
mulheres de seu povo, mas ele não esperava isso das humanas.
— O privilégio é todo nosso.
A duquesa sustentou o olhar dele, um sorriso em seus lábios.
O que seria preciso fazer para ganhar a promessa de amizade dela?
Chamas disparavam acima deles... um par de respiradores de
fogo andando através da multidão.
Aless levou um susto, seus olhos se arregalando. Talvez ainda
não tivesse se recuperado do ataque das harpias.
A duquesa soltou uma gargalhada.
— Gostou deles? Eu os convidei de Zehar. São muito
talentosos.
— Eles são — disse ele à duquesa enquanto acariciava a mão
de Aless gentilmente. — Seus jardins, também, eram lindos da
janela.
A duquesa acenou com uma mão incrustada de joias em
direção às portas do pátio.
— Permita que eu lhes mostre o jardim como se deve.
Ele a seguiu e Aless engoliu em seco ao lado dele, mostrando
um sorriso fugaz, segurando seu braço mais perto. O ataque de
harpia ainda a afetava? Talvez um pouco de ar pudesse fazer bem a
ela.
O silêncio não era nem um pouco do feitio dela. Ele estava
acostumado com a batalha, mas tinha levado uma vida inteira de
treinamento com as kuvari e lutando ao lado delas, muitas das quais
conseguiram chegar ao Conselho de Mati. Aless, no entanto, tinha
sido mantida longe de todos os treinamentos e lutas, e o que
aconteceu deve tê-la deixado abalada.
Os lacaios abriram as portas de vidro que davam para uma
colunata. Para além de seus arcos, um padrão circular de cercas e
flores se estendia ao longe, ladeado por árvores, suas folhagens
verde-escuras tingidas de prata pelo brilho das estrelas. No final,
ficava uma piscina cintilante, com degraus cascateando para dentro
de suas águas plácidas.
— Minha mãe amava todas as plantas — disse a duquesa,
guiando-os pelos caminhos entre as cercas perfeitas, e apontou
para as abundantes flores roxas. — Lavanda era sua favorita.
Quando me casei com o duque, ele tinha 26 anos a mais do que eu,
e não tínhamos nada em comum. Eu passava meu tempo aqui, com
os jardineiros, planejando este lugar... o meu santuário. Mesmo
agora que ele se foi, este jardim ainda é onde eu encontro conforto.
Pelo seu rosto, ela ainda era jovem, em seus 30 anos, talvez.
A forma como suas sobrancelhas se franzia falava muito sobre o
falecido marido, só que nada de bom.
— É lindo — sussurrou Aless, soltando o braço dele enquanto
se dobrava sobre os ramos de lavanda e inalava, fechando os olhos.
Ela ficou parada por um momento... e ele desejou poder gravar
aquela cena em sua memória.
A duquesa a observou, seu rosto relaxando, e então se juntou
a ela. Com as mãos entrelaçadas, pigarreou.
— Serei direta. Alguém teve a audácia de planejar um ataque
na minha cidade. Só isso teria me estimulado a ficar do lado do
inimigo do meu inimigo. Mas o heroísmo de vocês hoje, quando
poderiam ter fugido, me deixa orgulhosa de oferecer aos dois a
minha amizade.
Ela colocou a mão direita sobre o coração e se inclinou para
ambos graciosamente.
— Caso necessitem de ajuda, tudo o que precisam fazer é
pedir.
— Obrigada, Vossa Graça — sussurrou Aless, enquanto ele
inclinava a cabeça.
A duquesa estudou os olhos de Aless, em seguida, olhou para
ele.
— Aproveitem o jardim. E, quando quiserem, venham se juntar
a mim para o banquete.
Com isso, ela assentiu para eles e se afastou, a cauda do
vestido dourado passando por eles enquanto caminhava de volta
para o corredor.
Assim que a porta se fechou, o silêncio se instaurou mais uma
vez, os únicos sons de fundo na noite eram a melodia abafada e as
vozes do salão, além do barulho dos insetos e do chamado
ocasional de um pássaro.
— Minha mãe tinha uma biblioteca. Era onde ela encontrava
conforto — começou Aless, baixinho, com os olhos ainda fechados.
— Passei boa parte da minha infância lá, junto ao cheiro de couro,
papel e cera de vela. Às vezes, só de abrir um livro consigo me
transportar de volta para lá.
Era um lugar especial para ela.
— Eu gostaria de vê-la algum dia — disse ele.
Aless abriu os olhos e deu para ele um sorriso triste, seu olhar
marejado de lágrimas enquanto se erguia.
— Papà mandou destrui-la.
— Destruir? — Ele balançou a cabeça.
Aless passou os dedos de forma suave pela cerca do caminho,
enquanto dava alguns passos.
— Me conte — pediu, e ela olhou por cima do ombro com um
meio sorriso, seu olhar caindo; em seguida, deu de ombros, triste.
Uma brisa noturna perfumada varreu a copa das árvores, curvando
as flores em sua direção, e ela tremeu enquanto seus cachos
escuros balançavam.
Desabotoando o paletó, ele se aproximou dela, então o tirou e
colocou sobre seus ombros. Ela cobriu sua mão com a dela,
segurando-a lá um longo momento, e ele a puxou para si,
caminhando lentamente.
— Minha mãe adorava livros — recomeçou ela, com um
sorriso efêmero. — Eles fizeram tudo conforme ela queria, sabe.
Meu pai construiu uma biblioteca para ela e a pediu em casamento
lá. Ela a encheu de histórias e ideias do mundo todo, de todos os
períodos e culturas. Ela queria compartilhar essa alegria e o
conhecimento com o mundo — continuou, com a voz falhando
enquanto lágrimas surgiam em seus olhos, brilhando na luz fraca
das estrelas. — Toda semana, ela e suas damas de companhia liam
para as crianças locais em Bellanzole, e depois ensinavam qualquer
um que quisesse aprender. Muitas mulheres aprenderam, e
conseguiram novos empregos e viajaram, melhoraram suas vidas.
Alguns anos atrás, um homem veio, dizendo que queria aprender,
mas enquanto ela o ensinava, ele a culpou por sua esposa deixá-
lo... Ele tinha uma faca... Ela morreu antes que alguém pudesse
fazer qualquer coisa.
Ele a segurou mais perto, e ela parou, descansando a cabeça
no peito dele. A humanidade tinha mudado, em todos os sentidos,
menos no que importava.
— Papà proibiu as damas dela de voltar a ler ou ensinar —
sussurrou, sua voz abafada contra a camisa dele. — Ele destruiu
todos os livros da biblioteca dela e o próprio lugar, culpando-o por
sua morte. Chorei e implorei para que não fizesse aquilo, mas ele
ordenou que a Guarda Real me contivesse enquanto tudo
acontecia. Minha cópia de Uma História Moderna de Silen foi o
último livro que ela me deu.
Abrigada em seu abraço, ela ficou completamente quieta,
inclinando-se para ele, roçando o peito dele com a bochecha, tão
pequena e suave. Naquele momento, não era a mulher que
cavalgara ao lado dele com a cabeça erguida, majestosa e
formidável, indomável.
Aquelas eram armaduras que ela acabara de despir, por ele,
permitindo que visse a criança lá dentro, cujo pai havia destruído
não apenas uma biblioteca, mas a preciosa memória de sua mãe.
Essa perda ainda tinha que doer, assim como a frieza do próprio pai
para com ela ao fazer o que havia feito.
Ele a protegeu da brisa, os ombros erguidos. Queria confrontar
aquela frieza com calor, a perda com conforto, destruição com
criação. Nada a machucaria assim de novo, não enquanto ele
continuasse respirando.
Perante um campo de lavanda, ela ergueu o olhar para ele,
com o rosto encharcado de lágrimas, e ele secou sua bochecha
molhada com o polegar e se inclinou. Ela ergueu o queixo e os
lábios dele encontraram os dela, tão macios, a pele com o cheiro de
sal e flores de verão enquanto ela relaxava em seus braços. As
palmas de Aless deslizaram pelas costas dele, os dedos
pressionando, nenhuma alfinetada de garras, apenas o toque dela,
seu desejo.
Ela se inclinou para ele, abrindo a boca para a dele, o gosto
doce de um vinho tinto na língua exploradora, lenta e sensual de
Aless. As respirações dela aqueceram a boca de Veron, enquanto
se entregavam a um ritmo de desejo, impulso e, pelo Profundo e
pela Escuridão, tudo o que ele conseguia fazer era segurar o rosto
dela e aprofundar o beijo enquanto correspondia à reivindicação
sensual da língua dela com a própria.
A música abafada do salão parou e ele se afastou apenas o
suficiente para vê-la abrir os olhos e lamber os lábios, depois sorrir
enquanto as bochechas coravam. Ele pegou a mão dela.
— Você sabe de outros casamentos entre humanos e elfos
sombrios, Veron? — sussurrou ela, olhando no fundo dos olhos
dele. — Eu... eu me pergunto como eles seriam. E o que seria
esperado de mim como sua esposa.
— Eu sei que já houve casamentos entre humanos e imortais,
mas pessoalmente não conheço nenhum — respondeu, acariciando
de leve os dedos dela. — Nossa sociedade espera que as nossas
mulheres sejam lutadoras ferozes e protejam suas famílias, acima
de tudo. Mas eu não me casei com uma humana esperando que
fosse como uma elfa sombria — adicionou ele, com uma meia
risada. — Só seja você mesma, Aless. Tudo o que espero de você é
que seja honesta comigo.
Ela sorriu, o sorriso alcançando seus olhos, mas logo em
seguida começou a desaparecer.
— Veron, eu...
Ele balançou a cabeça.
— De verdade, não mude nada.
Os olhos dela se iluminaram e ela assentiu.
— Não vou mudar. Mas Veron...
Pequenas luzes piscaram e começaram a surgir ao redor
deles, brilhando por todos os lados. Fadas.
Ela arquejou.
— Tem... tem...
— Fadas — completou ele, baixinho, saboreando a expressão
de surpresa que iluminava o rosto dela. — Pequenas pessoas
aladas, não maiores do que um polegar. Elas adoram jardins e
vivem nos mais saudáveis deles, prosperando com néctar e pólen.
Seus lábios se separaram, ela lentamente estendeu a mão em
direção a um pequeno brilho e a fada voou para mais perto, apenas
um pouco fora de alcance, lançando uma luz suave sobre sua pele.
— Elas sentem uma ligação com aqueles que amam jardins
assim como eles, até mesmo lutariam para salvar a vida dessas
pessoas.
— Tão pequenas — sussurrou ela, os olhos arregalados.
— Ninguém é pequeno demais para lutar pelo que acredita.
Ela se virou para ele e, em seguida, o abraçou, abrindo um
grande sorriso, os olhos brilhando, refletindo a luz etérea da noite
estrelada.
Ele perdeu o fôlego. Alessandra Ermacora era sua esposa, e
ele faria qualquer coisa por ela. E a certeza de que tinha disso era
tão forte quanto o brilho das estrelas acima deles.
Ela baixou o olhar, o sorriso desaparecendo.
— Veron, sobre a cerimônia no Bosque Noturno...
Ele levou a mão dela até os lábios e lhe deu um beijo suave.
— Discutiremos isso depois da festa. — Qualquer que fosse o
medo dela em relação à cerimônia, ele acalmaria. Era diferente das
celebrações humanas, mas ele a deixaria preparada. — Tudo bem
esperar? Acredito que está na hora de irmos para o banquete.
— Se você mantiver a duchessa entretida, acho que vai correr
muito bem. — Um brilho breve passou por seus olhos divertidos e
ela acenou com a cabeça, virando-se para o corredor com ele.
Então ela tinha notado o olhar da duquesa. Claro que tinha. E
ela queria usar aquele interesse em favor deles. Ele não esperaria
menos.
E seria perfeito.
A noiva dele era humana e ela sentia o mesmo por ele que ele
por ela. Nada poderia arruinar esta noite.
Capítulo 12

Aless tentou acalmar seus batimentos cardíacos sem sucesso


enquanto entravam no salão nobre, cada passo ecoando na
vastidão. Era como se pudesse sentir cada fio de cabelo em sua
cabeça e cada movimento do tecido contra sua pele, cada fio de sua
roupa. O local onde a mão de Veron segurava a dela, com o mais
sutil dos toques, o mais leve contato na sua pele formigava,
aquecia-se.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, ela queria se casar com
ele. Ela queria se casar com ele e estava prestes a se encontrar
com Nunzio, o grand cordon dos Paladinos.
Ela queria se esconder, voltar para aquele momento no jardim
e aconchegar o rosto no peito de Veron, se isolar do mundo, se
isolar de tudo, menos dele, e viver lá, naquele momento, para
sempre.
Nunzio provavelmente nem concordaria com a proposta dela
sobre a biblioteca e que Aless ensinasse nela. De qualquer maneira,
a Ordem da Terra não queria que as mulheres se envolvessem
tanto, não é? Aquilo era tudo o que ela sempre quis e estivera
disposta a tentar convencer Veron de que não precisavam daquela
segunda cerimônia no Bosque Noturno, que seriam melhores como
amigos, mas...
Mas ela o queria. Veron e o sonho dela.
Reze por mim desta vez, Bianca.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, se seu sonho já era mais
alto do que ela provavelmente poderia alcançar, tentar conseguir as
duas coisas significaria que precisaria de uma escada mais alta.
Uma escada muito mais alta.
Ela apenas teria que construir uma.
Talvez pudesse falar com Veron e eles pudessem ficar juntos,
e encontrar uma maneira de fazer com que a biblioteca fosse
construída perto do Bosque Noturno? Talvez ele também se
empolgasse com os planos.
E Veron... quando ela contasse a ele esta noite qual era o
plano, ele a perdoaria, não é? Ela planejara tudo isso antes de
conhecê-lo de verdade.
Tinha que haver uma maneira do casamento deles e o sonho
dela coexistirem. Ela só teria que descobrir como.
Contra um pano de fundo de inúmeros espelhos, a duchessa
estava sentada à cabeceira de uma mesa longa com conjuntos de
talheres elaborados e dois assentos vazios ao seu lado. Para eles.
Ela olhou para o próprio reflexo em um espelho – uma traidora,
uma mentirosa – e sua imagem continuou se refletindo no espelho
posicionado do lado oposto a ele, e no próximo, e no próximo, e no
próximo, uma multidão de traidoras, de...
— Você está bem? — sussurrou Veron para ela, enquanto se
aproximavam da mesa.
Será que podemos ir embora? Só desaparecer nos nossos
aposentos, um no outro, e nunca mais sair de lá?
Mas, mesmo quando o pensamento veio à tona, era
impossível. Eles tinham conquistado a amizade da duchessa, mas
não podiam abandonar a festa e sua nobiltà sem consequências.
Era uma comemoração de vitória, mas necessária. Ela encarou seu
reflexo.
Desde que Nunzio não a abordasse sobre a biblioteca
enquanto estivesse aqui com Veron, ela poderia evitar que a
situação saísse de controle.
Ela pigarreou e forçou uma expressão plácida.
— Ficarei bem.
Com um sorriso caloroso, ele a conduziu até a mesa, puxou
uma cadeira para ela e depois se sentou entre ela e a duchessa,
que deixara claro mais cedo que estava interessada por ele. Aquilo
seria vantajoso para eles. Ele poderia descrever o Bosque Noturno
para ela, sua cultura, seu povo e, enquanto continuasse curiosa, a
nobiltà a imitaria e também os apoiaria.
Um criado se aproximou deles e serviu um pouco de vinho
branco espumante, que ela provou.
— Princesa Alessandra — saudou a voz profunda e grave de
um homem do outro lado dela. — Recebi os planos que enviou para
a sua biblioteca.
Ela congelou. Pela misericórdia da Sagrada Mãe.
Não, ele não. Por favor, ele não. Não agora.
Quando ela lançou ao homem um olhar periférico, seus olhos
azuis afiados como os de uma águia encontraram os dela. Aquele
nariz aquilino, a cabeça cheia de cabelos grisalhos, o queixo fendido
e um corpo como o de Forza, envolto em tatuagens de runas.
Nunzio.
Ela engoliu o vinho que tinha na boca.
— Grand cordon dos Paladinos — cumprimentou com um tom
cordial, mas baixo.
Estreitando aqueles olhos de águia, ele se recostou na
cadeira, o olhar sobre ela como se ela fosse um criminoso que ele
havia levado para um interrogatório.
— Sua proposta foi bastante... apaixonada.
Por um momento, ela fez uma pausa, ouvindo Veron contar à
duchessa sobre o irmão em Bosque Noturno. Enquanto Nunzio
mantivesse a voz baixa, esta noite não se tornaria um desastre.
— Talvez possamos discutir isso outra hora — disse ela, em
voz baixa. Eles poderiam encontrar uma forma de avançar no
projeto. De alguma maneira. Talvez a Ordem concordasse em
ajudar a construir a biblioteca em outro lugar, mais próximo do
Bosque Noturno?
— Você não está mais apaixonada por alfabetização e
intercâmbio cultural? — Nunzio inclinou a cabeça. — Em construir a
paz através do conhecimento e da educação compartilhados? Essas
foram as suas palavras.
Mantenha a voz baixa.
— Claro que estou — sussurrou ela, depois tomou um gole de
vinho. O resto dos nobiltà estavam entretidos em suas próprias
conversas. Ela agradeceu à Mãe pelos pequenos favores.
Nunzio se inclinou em direção a ela.
— Então me dê um nome, qualquer nome, de uma pessoa que
possa administrar a implementação do seu plano — continuou ele.
— Porque não posso, de boa-fé, interferir nos acordos políticos
deste país. Como você pretendia supervisionar a construção e o
gerenciamento de uma biblioteca enquanto está casada e residindo
no Bosque Noturno?
Cada palavra a fez estremecer, mesmo enquanto lutava para
ficar parada. Houve uma calmaria na conversa ao lado dela e ela
ousou olhar para Veron.
Os olhos dele estavam arregalados sob as sobrancelhas
franzidas. Ele balançou a cabeça de maneira lenta e incrédula.
Ele tinha ouvido.
Ele tinha ouvido tudo.
Não, não, não, não... Ela abriu a boca, mas ele ergueu o
queixo e ficou imóvel... de um jeito nada natural, a amplitude dos
olhos se estreitando e se tornando um ouro metálico, gelado.
Veron emanava frieza.
Ele respirou fundo e voltou a sorrir quando se virou para a
duchessa e disse algo sobre a canção de pedra.
O que...? Ele...
O peito dela se apertou enquanto Veron conversava com a
duchessa, sua voz aveludada, gentil e cheia de charme, sua risada
baixa e imponente.
Ela o havia decepcionado, completa e absolutamente, mas ele
havia engolido as emoções e continuara tentando manter a
duchessa e sua nobiltà entretidas. Por dentro, ele tinha que se
sentir...
— Princesa? — perguntou Nunzio e continuou a falar, mas o
som de sua voz desapareceu quando um zumbido alto se instaurou
no ouvido dela, ficando cada vez mais alto até que ela não
conseguia ouvir mais nada.
Seu olhar baixou para o colo, para as mãos no tule violeta do
vestido, mãos que tinham segurado as de Veron não fazia nem
sequer uma hora.
 
Aless se levantou quando Veron o fez e, embora ele a guiasse
pelo salão com uma mão gentil nas costas dela, não havia nenhuma
gentileza em sua expressão.
Ele deu boa noite à duchessa com um sorriso elegante e
inclinando a cabeça, e se despediu de forma bem-humorada de
certos membros da nobiltà com quem conversara. Mas por trás de
todo o charme estava aquele olhar frio, o ouro gelado de seus olhos
e o olhar que ele lhe dera à mesa.
A noite tinha sido um borrão. E ainda era. Ela tinha comido e
bebido durante o banquete, ela supôs, e talvez até dançado.
Provavelmente com ele. Só que tudo não passou de uma confusão
de cores, murmúrios e risadas, e depois uma caminhada até um
corredor vazio.
Ela o traiu. Antes mesmo que eles se conhecessem, ela já
estava decidida a voltar atrás em sua palavra.
Não importa o quanto quisesse ver os sonhos de Mamma
realizados, ela tinha sacrificado a confiança de Veron ao ir atrás
deles. Agora ele sabia. E a odiava.
— Sinto muito — começou ela, enquanto ele a conduzia pelas
escadas, passando pelas janelas com vista para os jardins onde sua
vida havia mudado. — Eu queria contar tudo para você hoje, mas o
grand cordon dos Paladinos chegou antes e ele tinha perguntas, e...
E Veron nem sequer olhou para ela. Não hesitou ao subir os
degraus. Nem parecia que a estava ouvindo.
— Veron, por favor — implorou ela, agarrando o braço dele
com força, mas ele não reagiu.
Ela fechou os olhos, apertados, quando chegaram aos
aposentos, onde a guardiã de olhos afiados estava de sentinela, ao
lado de outra. Veron as cumprimentou, e mesmo aquelas breves
palavras eram como bálsamo para suas feridas.
Dentro do cômodo, ele fechou a porta e a soltou, depois tirou o
paletó enquanto se dirigia para a janela iluminada por estrelas, onde
mais cedo naquele dia ela tinha visto a beleza dele, aterrorizante e
encantadora. No seu lado bom, ele podia ser gentil, cintilante ao sol
nos momentos de silêncio. Já no cruel, podia ser terrível,
encharcado no sangue de seus inimigos. E ela o queria. Todos os
lados dele.
Ele a trouxera para um novo mundo, o mundo dele, cheio de
beleza e magia, e o compartilhara com ela. Ela queria viver naquele
mundo de beleza e magia com ele. Como sua esposa, parceira.
Ela tinha que tentar resolver isto. Ela precisava.
— Veron...
— Eu só esperava uma coisa de você. — Sua voz era baixa,
fria, sem vida.
Ela deu um passo em direção a ele.
— Por favor eu...
— Você se lembra, Alessandra?
Honestidade é a única expectativa que tenho, ele havia dito a
ela, na noite de núpcias deles.
Ela envolveu os braços em volta de si mesma.
— Honestidade.
— E todo esse tempo, você tinha esse... plano. — Ele cruzou
as mãos atrás das costas. — Toda essa... proximidade. Esse afeto.
Foi tudo apenas para que eu não suspeitasse?
— Claro que não — respondeu ela, rapidamente, correndo até
ele. Ela estendeu a mão para tocar seu braço, mas ele não se
mexeu, nem sequer um centímetro.
Engolindo o nó da garganta, ela olhou para a escuridão do
outro lado da janela, deixando o silêncio se instalar.
Logo abaixo, estava um pátio coberto com roseiras
emaranhadas, banhadas pela luz das estrelas, cintilantes...
Arrancadas.
Ela balançou a cabeça.
Não, era um sonho.
Abaixo estava o perímetro de cercas vivas na luz da noite,
fileiras de pés de lavanda, a piscina retangular. Ela respirou fundo.
— Eu não esperava que gostássemos tanto um do outro,
Veron. Pensei que sempre teríamos aversão um ao outro, mas que
poderíamos nos tornar amigos. Que inspirássemos a paz através da
amizade. Que você pudesse ser livre para fazer o que quisesse e eu
pudesse cuidar da biblioteca, ensinar ao nosso povo, continuar
promovendo essa paz...
— Essa paz é construída em cima do conceito de que uma
humana e um elfo sombrio podem se ligar um ao outro, até mesmo
em casamento — respondeu ele. — Mesmo que apenas nas
aparências.
— Eu sei disso.
Ele se virou para ela.
— E você pensou que nos separarmos contribuiria com isso?
Eu esperava mais de você, Alessandra.
— Não, isso só significaria que ainda queremos ser amigos,
mas que estávamos em caminhos diferentes...
— Que o símbolo sobre o qual a paz é construída, o nosso
casamento, não funciona. Estaríamos dando um exemplo que se
enraizaria nos corações de todos do reino. Estaríamos fazendo o
trabalho da Irmandade para eles.
Ela estendeu a mão para ele, mas ele se desviou.
— Mas nossos pais forçaram...
— Nós dois fomos sacrificados pela paz de todo um reino —
disse ele, com a voz baixa. Com a mão na testa, suspirou. — A pior
parte disso tudo é que eu teria entendido. Se você tivesse me dito
em Bellanzole que queria se ver livre disso, eu teria entendido.
— Eu não quero me ver livre disso.
Ele a encarou, com frieza.
— Eu recebi ordens. Mesmo que você quisesse, eu não
poderia. Mesmo que eu entendesse.
Ele é o único que gostaria de me libertar deste acordo. Ela
expirou, com força.
— Então é isso? Um passo em falso e você vai me odiar para
sempre?
— Eu não odeio você, Alessandra, mas não posso confiar em
alguém que tem intenções ocultas.
— Tomei essa decisão antes mesmo de conhecer você, Veron.
Quer dizer que você não merecia ser traído, mas eu merecia ser
casada contra a minha vontade? Trocada, como um peão? Esse
seria o meu único valor?
Ele fechou os olhos com força, depois passou a mão do rosto
até o cabelo.
— Não posso te culpar por isso. Mas a mentira? Confiança
significa tudo para mim. Podíamos ter chegado a um acordo. Mas se
isso tivesse sido descoberto de alguma outra maneira, se tivesse...
— Ele balançou a cabeça e caminhou para o quarto, e ela seguiu.
— Você nem sequer percebe, não é?
Do que ele estava falando?
— Percebo o quê?
Ele tirou um travesseiro da cama e pegou um cobertor dobrado
de dentro de um baú aos pés dela.
— Alessandra, me diga, de onde Gabriella é?
Onde é que ele queria chegar com aquilo?
— Ela é minha dama de companhia. Ela é... da corte real.
Ele marchou de volta para a antessala, jogou o travesseiro e o
cobertor no sofá, depois começou a tirar as botas com uma careta.
— Onde é o lar dela. — O estofado do sofá se afundou sob o
peso dele. — De onde ela é. Gabriella cuida de todos os detalhes da
sua vida. Me diga, de onde ela veio? Ela tem irmãos? O que ela
considera importante na vida dela?
Ela balançou a cabeça.
— Eu... eu não sei.
Ele apoiou os cotovelos nos joelhos e se inclinou para frente, o
olhar frio penetrando nela.
— Você nunca perguntou, não é?
Não... ela nunca perguntara. Deveria, mas... mas...
Ela baixou o queixo, examinando o tapete carmesim e preto,
sua franja com falhas em alguns lugares.
— Você nem sequer a conhece de verdade. E ela vive por
você, Alessandra. Mas isso, seu plano de recusar a segunda
cerimônia, teria repercutido e causado destruição para muitos, para
aqueles que vivem fora desse círculo limitado que você escolheu
ver. Seu pai podia ter visto isso como renegação, poderia ter
ordenado que devolvêssemos a ajuda que nos deu, e você tem
alguma ideia de como é o choro de um bebê passando fome?
Um arrepio a atravessou. Ela... Ela não tinha considerado isso.
Sem o casamento, Papà teria confiado o suficiente nos elfos
sombrios para continuar a enviar ajuda para eles? Ou teria
procurado um aliado em outro lugar?
E mesmo que Veron tivesse mencionado o quanto as pessoas
estavam ansiosas pela ajuda de Bellanzole, ela não tinha percebido
que as pessoas estavam... realmente morrendo de fome. Que os
bebês estavam...
Aqueles olhos dourados perfuraram os dela por mais alguns
instantes.
— Eu não a culpo por temer o que este casamento seria. Nem
mesmo por não querer essa união. Mas sequer passou por sua
cabeça que, para o bem de nossos povos, poderíamos ter discutido
combinados alternativos? Que talvez eu não me sentisse muito
diferente de você? Parou para pensar se planejar me trair e fugir
sem se importar com o tratado era realmente a melhor maneira de
agir? Ou apenas a mais fácil?
Ele desviou o olhar com um suspiro e se esticou no sofá, o
braço atrás da cabeça.
Torcendo as saias de tule, ela esperou, mas ele não quis olhar
para ela. Ele disse que não a culpava, mas não era o que parecia. O
povo deles esperava tão pouco um do outro, e talvez ele também
esperasse pouco dela. Além disso, apesar de alguns momentos
breves e brilhantes, ela tinha dado razão a essas baixas
expectativas... em vez de desafiá-las.
Eles passaram todas as noites desde Bellanzole juntos.
Hoje não.
Ela saiu para o quarto, onde se livrou de todas as roupas e os
grampos de cabelo e lavou o rosto, vestiu a camisola, encontrou sua
antiga cópia de Uma história moderna de Silen e se aninhou na
cama, ficando em posição fetal em meio aos lençóis. Uma noite tão
maravilhosa tinha sido destruída, e fora tudo culpa dela.
Veron estava zangado com a mentira, mas ainda mais com a
traição.
Embalando o livro, ela abriu para a primeira página, traçando o
dedo por cima da escrita de Mamma. Seja corajosa, minha rosa, e
preencha as páginas restantes com seus feitos.
Quando criança, ela escrevia coisas simples. Coisas que a
maioria das pessoas consideraria trivial. Salvar um gato de crianças
cruéis. Fazer um protesto. Ganhar numa discussão.
Ao longo dos anos, ela almejou metas mais altas. Tão altas
que não enxergava as pessoas como indivíduos, as que queria
salvar, e até mesmo as que estavam ao seu redor. Ela se
concentrou tão intensamente em curar sua coluna vertebral e
ganhar o amor de Papà fazendo isso que ignorou quase tudo até
que tivesse conseguido – ao menos se recuperar de sua curvatura,
caso nunca conseguisse impressionar seu Papà.
Então ela trabalhara tanto pela paz, para realizar os sonhos de
Mamma, que ela perdera o instinto de ver aqueles ao seu redor.
Mas ela via Veron agora, ou estava começando a enxergá-lo.
Veria Gabriella também. As guardiãs elfas sombrias que viajavam
com eles. E as pessoas que pretendia salvar. Ela não seria o peão
de ninguém, mas, em sua busca pelos sonhos de Mamma, não
sacrificaria a vida dos outros ao destruir a paz. Nem dos Sileni, nem
dos elfos sombrios, nem mesmo da Irmandade, se pudesse evitar.
Vidas suficientes já foram perdidas.
E Veron pode ter desistido dela, mas ela... ela não desistiria
dele. Ele estava certo sobre ela não pensar nas consequências para
o povo dele, e até mesmo para o dela. Estava certo em dizer que
ela não deveria ter mentido.
Mas não ser capaz de confiar nela depois disso? Quanto a
isso, ele estava completamente errado. E ela provaria a ele.
No dia seguinte, ele começaria a ver como ela poderia ser
teimosa.
Capítulo 13

Antes mesmo que Veron pudesse abrir os olhos, já havia sons


vindos do quarto. Passos rápidos, o barulho de água, o farfalhar de
tecido e dobradiças rangendo.
O sol ainda nem tinha surgido e ela já estava acordada. Ele
balançou a cabeça. O sol tinha que estar enganado.
Ele estava de pé e se espreguiçando quando Aless entrou,
usando um vestido roxo ajustado à sua silhueta, porém prático, e
segurando o arco da oferenda. Com as sobrancelhas arqueadas, ela
encontrou seu olhar.
— Estou pronta para uma aula de arco e flecha, se você
estiver indo para o campo de treinamento. — Ela se sentou numa
poltrona enquanto ele começava sua rotina matinal.
Ele acenou com a cabeça em reconhecimento e em seguida
foi se lavar. Por todo esse tempo, desde o momento em que a
conheceu em Bellanzole até a noite anterior, ela estivera mentindo
para ele. Houvera momentos em que ela quisera confessar, como
na noite de núpcias e no jardim, pelo visto. Mas não dissera nada,
durante todo esse tempo.
Ele queria confiar nela, mas se era propensa a esconder
coisas, poderia mudar agora, pelo resto de sua vida?
Eles ainda eram casados. Ele ainda se importava com ela.
Mas, no jardim, houvera mentira em seu beijo, em seu abraço? Será
que o toque da mão dela carregava falsidade em seu calor? As
lágrimas em seus olhos estiveram carregadas de traição?
Ela teria contado a verdade a ele em algum momento?
Mesmo assim, aquilo não era confiança. Qual seria a situação
deles, então?
Ele se vestiu, olhando para seu arco no canto. Mesmo que ele
e Aless não estivessem bem um com o outro agora, ele tinha
prometido treiná-la, e não voltaria atrás em sua palavra. Mas
também não esqueceria a noite anterior.
Ele agarrou seu arco e atravessou o aposento até o corredor.
Os passos leves dela o acompanhavam atrás dele, assim como os
de Riza e Danika.
Algumas das kuvari já estavam no pátio de treinamento,
praticando com suas espadas vjernost, e os homens da duquesa
estavam meio que treinando entre si e meio que olhando de boca
aberta para elas. Ver as kuvari em combate, seus movimentos
aperfeiçoados por décadas, séculos, era algo impressionante,
hipnotizante e mortal. Uma delas, que fizesse parte do Conselho de
Mati, incluindo sua irmã Vadiha, um dia tomaria o lugar de Mati.
Suas habilidades tinham que ser impecáveis.
No campo de arco e flecha, Gavri já estava treinando e se
moveu para recuperar suas flechas – agrupadas no centro do alvo,
como sempre – quando seu olhar se desviou na direção dele. Ela
fez uma reverência, tirou as flechas e saiu do campo.
Ficando longe de sua vista, como ele havia ordenado.
Ele engoliu a dor que sentiu na parte de trás da garganta.
Com a cabeça inclinada, Aless olhava para ele, mas ele só
pegou o arco dela e ajeitou a corda para ela. Ele não precisava falar
com ela, não sobre isso.
No ringue de espadas, uma das kuvari desarmou a outra e
gritos soaram dos guardas Sileni, agrupados ao redor delas. Ele
acenou com a cabeça para a vitoriosa, Lira, que sorriu para ele em
agradecimento. Apenas Mati e Riza conseguiam ganhar dela
quando se tratava de espadas, e ela sabia disso.
Depois que recolheu alguns suprimentos, ele encontrou Aless
a uns quinze metros de um alvo, onde ela estava agachada,
arrancando trevos. Ele apontou o queixo para o final do campo.
— Você disse que já atirou antes.
— Muito mal — respondeu ela, fazendo uma careta.
— Me mostre. — Ele deu um passo para trás e cruzou os
braços.
Ela estendeu uma corrente de trevo parcialmente trançado em
sua direção até que ele o pegou, com relutância. Então, com um
suspiro pesado, encarou o alvo, colocou uma flecha na posição com
os ombros erguidos, apontou, então fechou os olhos enquanto
soltava. A flecha caiu no chão a um metro e meio de distância.
Ela estremeceu na frente dele.
Muito mal mesmo
— Tente mais uma vez.
Ela bufou.
— Veron, eu...
Ele só lançou um olhar fixo para ela. Ninguém se aperfeiçoava
sem prática.
Com um suspiro ainda mais pesado, ela se virou de novo para
o alvo, mas, desta vez, ele agarrou seus ombros – provocando um
arquejo nela, mas sem objeção – e a virou para ficar em um ângulo
reto em relação ao alvo. Usando o pé, ele bateu nos pés dela até
que ficassem separados na largura dos ombros.
Os ombros dela estavam tão tensos quanto a corda do arco.
— Relaxe — instruiu ele, dando tapinhas suaves nos ombros
dela, e ela tinha o cheiro de... de... ele franziu a testa; ela cheirava
como as lavandas da noite passada e aquilo o acalmava, fez com
que ele quisesse fechar os olhos, inspirar devagar e profundamente.
Com um aceno para si mesma, ela posicionou outra flecha e
ele a reajustou sob a empunhadura do arco. Enquanto ela estendia
o braço que puxava a corda, ele pressionou os ombros dela para
baixo.
— Você está em uma posição totalmente esticada. Transfira o
peso do arco de seus braços para as costas. Agora mire. — Quando
ela fez como ele instruiu, acrescentou: — Observe a linha da corda
no membro superior do arco um pouco à direita do anel de visão.
Agora, junte suas omoplatas enquanto relaxa os dedos da mão
direita e continue mirando. Sua mão esquerda relaxada vai deixar
seu arco cair um pouco. Deixe que faça isso. E não se mova até que
a flecha atinja o alvo.
Ela soltou, de olhos abertos, e a flecha errou o alvo por uma
distância pequena.
Suas sobrancelhas se uniram, então ela olhou para ele, com
os lábios entreabertos, o vestido roxo balançando no vento. Como
as lavandas da noite passada, quando eles...
Com apenas um piscar de olhos, uma vibração de cílios
escuros, ele estava no jardim mais uma vez, seus ombros tensos
com a vontade de envolvê-la em seus braços, protegê-la do vento,
sentir aqueles lábios macios contra os seus mais uma vez...
Ele pigarreou.
— Nada mal. Continue praticando.
Antes que ela pudesse responder, ele se dirigiu para um alvo
próprio, longe do dela.

Diante de um espelho, Aless esfregou o ombro enquanto


Gabriella fazia os retoques finais em seu penteado. Ela se mexeu na
cadeira, esfregando-se contra os apoios de braço de mogno liso, e
se encolheu. Seus dois ombros doíam, e os braços e os dedos...
mas ela e Veron ainda tinham que fazer uma oferenda no santuário
de Stroppiata antes de deixarem a cidade. Embora ela se sentisse
uma mistura de dor e fadiga, teria que estar perfeita. Ideal.
Ou pelo menos parecer.
Veron mantivera sua palavra e lhe dera uma lição de arco e
flecha naquela manhã. Se fosse uma pessoa melhor, ela o teria
libertado da promessa. Deixado ele manter distância. Deixado que
se esquecesse dela. Não teria colocado aquele vestido roxo, nem
usado o perfume de lavanda. Ou aproveitado qualquer oportunidade
para se aproximar, como já tinha visto outra cortesã fazer.
No entanto, ela não era uma pessoa melhor. O toque dele,
mesmo que sob aquela sua máscara de frieza, tinha sido como um
sussurro reconfortante, dizendo-lhe que nem toda a esperança
estava perdida. Talvez não estivesse. Mas quaisquer que fossem os
sentimentos que ele tinha por ela, Aless o ouvira claramente na
noite anterior: ela não prestara a devida atenção às coisas e
pessoas que ela não queria ver.
Ela faria isso hoje.
E, para o bem deles, ela não perturbaria a paz de forma
alguma, mesmo que Veron a odiasse durante todo o casamento
deles. Tinha que haver outra maneira de realizar seu sonho, um que
não envolvesse abandonar o casamento... e ela a encontraria.
— Então, o que você acha? — perguntou Gabriella, sorrindo
no espelho enquanto avaliava o penteado elaborado, com olhos
castanhos calorosos.
A princesa no espelho não parecia uma mentirosa ou traidora
de coração frio. Ela tinha cabelos brilhantes, metade com mechas
macias presas com pinos de pérola, e o resto fluindo
volumosamente em ondas marrons suaves. Um rosa delicado
coloria seus lábios e o blush mais suave dava vida às suas
bochechas.
Gabriella havia sugerido um vestido de tafetá amarelo com fios
de ouro bordados, e o modelo era brilhante e feliz, com mangas
longas e esvoaçantes que suavizavam ainda mais o visual. Da cor
do sol, da recompensa da Deusa a cada colheita. Apropriado.
— Você se superou hoje — sussurrou Aless, enquanto
Gabriella ria e prendia um colar de pérolas.
— Hoje é um dia importante, então você tem de estar à altura.
— Gabriella ajustou as pérolas, mantendo o fecho na nuca de Aless.
Ela se esforçara tanto.
— Eu achei que você não gostava dos elfos sombrios.
A mão de Gabriella pousou no peito.
— Eu não tenho opinião sobre eles... eu...
— É só que com a conversa sobre Irmandade, parecia...
— Eu só pensei que você queria achar uma saída para esse
casamento. Naquele dia que deixamos o palazzo, você parecia
tão... tão... — O rosto redondo de Gabriella murchou no espelho. —
Só quero que você seja feliz.
Durante todos aqueles anos em que conhecia Gabriella,
sempre pareceu que ela não tinha uma gota de ódio no corpo.
Talvez ainda não houvesse.
— Bom, hoje eu pareço feliz, graças a você.
Com um sorriso hesitante, Gabriella deu um passo para trás,
apertou as mãos e deu um aceno de satisfação para o espelho. O
vestido de Gabriella era um vestido simples de cetim cor de malva,
mas bem-feito, com um forro de cambraia branca por baixo; o
modelo era feminino e com um corte elegante. Ela sempre foi muito
cuidadosa com a aparência.
— Eu já a perguntei de onde você é? — sussurrou Aless,
encontrando os olhos de Gabriella no espelho.
As lindas sobrancelhas dela se arquearam.
— Vistadelfino. Os nossos pais cresceram juntos e Sua
Majestade fez dele o conde de lá. Minha mãe era uma das damas
de Sua Majestade antes... — Gabriella baixou o olhar e respirou
fundo.
Uma das damas de Mamma... antes dela ser assassinada.
— Eu me tornei sua dama de companhia logo depois... —
Gabriella engoliu em seco. — E você nunca me perguntou, mas...
você mal falava naquela época.
Depois da morte de Mamma, tudo o que Aless fez foi ler. Sobre
guerras antigas, mitos e romances de todas as partes do mundo.
Sobre mulheres que lutaram, mulheres que governaram, mulheres
que se casaram por amor. Sobre mães e filhas sendo fortes juntas,
e heróis idealistas melhorando a vida das pessoas. Sobre qualquer
coisa que pudesse tirá-la da miséria de sua própria vida na época.
Gabriella tinha estado lá com ela, ao seu lado, e nunca se
intrometera ou a pressionara. Apenas fazendo companhia quando
ela mais precisara de alguém.
— Obrigada — sussurrou ela, e Gabriella ergueu a mão,
balançando a cabeça. — Não, sério. Mamma se foi há muito tempo
e eu deveria ter te conhecido melhor...
Braços se fecharam ao redor dela e ela ofegou, piscando,
envolvendo os próprios braços em volta de Gabriella.
— Vossa Alteza, é meu dever cuidar de você, não o contrário.
— Gostaria que tomássemos conta uma da outra. Você tem
sido minha amiga desde que me lembro e eu... também quero ser
sua amiga. — Ela respirou o suave aroma de lilás dos longos
cabelos escuros de Gabriella. — Quero saber o que é importante
para você.
Gabriella recuou, radiante.
— Somos mais parecidas nisso do que pensa, Vossa Alteza.
— Ela meio que riu, baixinho. — Minha mãe adorava livros e ensinar
com Sua Majestade, ajudando os pobres em Bellanzole. E quando
Sua Majestade, o rei, proibiu o ensino... aquilo partiu o coração dela.
Ela quer que um dia a gente volte a fazer isso. E eu também.
Por todo aquele tempo, Gabriella a apoiara em silêncio.
Quando ela a ajudara a distribuir livros e discutir os planos, não foi
apenas como uma dama de companhia, mas também como uma
sonhadora.
— Prometo que vou realizar esse sonho. Mesmo que seja com
meu último suspiro.
— Eu sei que você vai. E eu estarei lá para ajudar —
sussurrou Gabriella, assim que a porta do corredor se abriu.
— Sua Alteza espera por você lá embaixo — anunciou uma
voz baixa e feminina.
— Já vamos sair — respondeu ela. Quando a porta se fechou,
levantou-se e calçou seus sapatos de tafetá amarelos que
combinavam com o vestido. Mordeu o lábio. — Gabriella, sabe
quem era aquela?
— O nome dela é Gavri, eu acho. Ela teve uma briga com Sua
Alteza há alguns dias.
 
Depois de se despedir da duchessa, Aless deixou Veron ajudá-
la a entrar na carruagem, onde ele se sentou em frente a ela e
Gabriella, que segurava as oferendas de lírios, penas de pavão, mel
e romãs em uma cesta feita de madeira de murta.
Ele vestia outro dos presentes de Lorenzo, um sobretudo de
brocado preto bordado com ouro, com um corte justo dos ombros à
cintura, que se abria e fluía dos quadris até os tornozelos. A peça
tinha uma elegância e um drama que Lorenzo sem dúvida amara, o
corte adequado para ombros fortes e um físico em forma.
Veron e os outros elfos sombrios permaneceram sem máscara,
sem capuz. Nenhum dos criados da duchessa parecia incomodado
e, com sorte, seria o mesmo com os paesani.
A carruagem partiu, e os terrenos verdejantes e bem cuidados
do castelo passaram pela janela, o padrão da nobiltà Sileni. Tudo
planejado e uniforme, nada como as rosas selvagens e espalhadas
de seus devaneios. Não o caos multicolorido, bagunçado e belo de
videiras, flores e ruínas.
Inclinando-se contra o assento, Veron apoiou o tornozelo no
joelho oposto. Ele olhou para ela e, quando seus olhos encontraram
os dela, assentiu em direção às oferendas.
— O que simbolizam?
Ela pigarreou, tentando não parecer muito animada por ele ter
ao menos falado com ela. Mas era um progresso.
— Elas são as oferendas de Terra. Os lírios são para lealdade,
as penas de pavão para a longevidade, o mel é para abundância e
as romãs para fertilidade.
Ele ergueu uma sobrancelha pálida e inclinou a cabeça.
Engolindo em seco, ela baixou o olhar para as saias amarelas
de tafetá e apertou as mãos. Esta era a única chance de deixarem
uma impressão pacífica e positiva em Stroppiata, em vez do banho
de sangue de harpia que aconteceu em sua chegada. Mas também
era sua oração sincera, por bênçãos que desejava muito que a
Sagrada Mãe algum dia lhe concedesse.
Quando pararam no santuário, uma multidão de paesani já
havia se reunido, observando Veron ajudar Gabriella e ela a sair da
carruagem com uma escolta de guardiãs reais dos elfos sombrios,
as kuvari, e aplaudindo enquanto as elfas sombrias distribuíam
comida. Mais e mais pessoas se aproximaram e a multidão
continuou crescendo, vozes gritando, mãos estendidas, corpos
pressionando cada vez mais perto.
— Temos que nos mover. Agora. — Gavri, a guardiã com os
cabelos trançados, sibilou para ela. — A pé, não podemos controlar
essa multidão. A situação pode piorar rápido.
Ela confiaria na experiência de Gavri – eles só ficariam o
tempo suficiente para cumprir seu propósito. Assentindo, ela se
dirigiu para o santuário com Veron e suas kuvari.
Ao longo do caminho para as monumentais portas de bronze,
Gabriella lhe entregou a cesta de oferendas e, segurando-a com um
braço, Aless cumprimentou com um aperto de mão uma senhora
idosa, depois duas jovens e algumas meninas. Todas vieram
agradecer no santuário de Terra e, nisso, elas eram iguais.
— Que as bençãos de Terra caiam sobre vocês! — saudou
uma mulher idosa.
— E sobre você — respondeu ela, a mesma resposta que
todos os Terranos sempre davam à bênção.
Por sua vez, Veron sorriu gentilmente ao lado dela, oferecendo
saudações cordiais e agradecendo ao povo por suas bênçãos. A
proximidade dele era calorosa, reconfortante, e, sem nem sequer
olhar, ela podia sentir sua grande forma ao lado dela, seus olhos
atentos olhando para ela de vez em quando.
Quando um par de guardas abriu as portas de bronze, a mão
enluvada de Veron pegou a dela e eles entraram.
Alguns da multidão se infiltraram no salão – como era
esperado, para ver este momento e poder contar aos outros. Gavri e
as outras guardiãs mantiveram a multidão a distância, enquanto ela
e Veron ficavam de frente para o altar de mármore e a enorme
estátua dourada de Terra sob a cúpula da nave. Ela já havia visitado
o lugar antes, de mãos dadas com Mamma, esticando o pescoço
para ver até o topo e acompanhando Mamma durante a oração e o
ritual.
Donzela, Mãe e Anciã; Ela das Alturas; Protetora de Todos. A
Deusa se erguia diante deles em ouro brilhante, uma coroa sobre a
cabeça, envolta por uma túnica longa, carregando uma lança em
uma mão e uma pátera, um tipo de prato raso, na outra.
Com uma mão ela oferecia, com a outra, lutava.
Com a mão na de Veron, Aless se aproximou do altar,
ajoelhou-se e colocou as oferendas sobre ele.
— Ó bendita Mãe, venerada e adorada, clamada por mulheres
chorosas em necessidade e em ritos em antigos santuários, por
favor aceite essas humildes oferendas. Reverenciada entre o
panteão eterno pelos reinos que protege, pela generosidade que
oferece, pela vida que floresce, pedimos que nos proteja enquanto
caminhamos juntos em direção à Vossa luz guia.
Um silêncio se estabeleceu sobre o santuário.
Sagrada Mãe, por favor, nos conceda a graça de ter sucesso
em semear esta paz, em parar uma guerra que ninguém precisa
lutar. Ela manteve a cabeça baixa, assim como Veron, ao seu lado.
Por favor, guie-me e me permita ser mais forte, mais corajosa, mais
compassiva. Conceda-me a força para seguir seus ensinamentos.
Por fim, ela começou a se erguer e Veron a ajudou. Ele estava
ao lado dela, apoiando-a enquanto ela orava.
— Pelo que você rezou? — perguntou ele, olhando para ela
com as sobrancelhas franzidas.
— Pela paz, por força — sussurrou de volta. E, quando se
tratava da paz, eles precisariam de toda a ajuda que conseguissem.
Sobretudo a da Sagrada Mãe. — Mas principalmente apenas dando
graças.
Quando ela sorriu para a multidão, alguns rostos sorriram de
volta, mas outros se afastaram, murmúrios se espalhando.
Eles não estavam aqui há muito tempo, mas claramente foi
tempo suficiente para permitir que a dúvida se espalhasse e as
pessoas começassem a questionar.
— Monstros — sussurrou alguém.
— Perigosos — disse outro.
Ela tinha que salvar isto... agora. Da única maneira que sabia.
Ela pigarreou.
— Povo de Stroppiata — gritou. — Agradecemos por abrir a
sua cidade e os seus corações para nós, e nos permitir compartilhar
o nosso culto à Sagrada Mãe. — Ela olhou para as pessoas
reunidas enquanto elas se acalmavam. — Eu oro para Terra desde
que me lembro, e hoje estou aqui, abençoada, com um marido gentil
e forte o suficiente para defender nosso povo, e uma nova família,
tendo os Sileni e os elfos sombrios se unido contra os Immortali que
nos ameaçam, e pela justa causa de uma paz duradoura. — Tanto
pela sobrevivência quanto pelo nosso próprio aperfeiçoamento. —
Seguimos a orientação da Sagrada Mãe, compartilhando nossa
generosidade com uma mão, enquanto com a outra defendemos um
ao outro contra quaisquer perigos que buscam nos destruir ou nos
separar. E juntos, somos mais fortes. Que as bênçãos de Terra
caiam sobre todos vocês, meus irmãos e irmãs.
— E sobre você — soou a harmonia de vozes, a resposta que
todos os Terranos instintivamente davam, arraigada desde que
nasceram.
Ela inclinou a cabeça, assim como Veron ao seu lado, mas o
olhar dourado dele repousou nela, intenso, mas se suavizando,
enquanto sua boca se curvava. Aquele olhar permaneceu quando
eles saíram do santuário, embarcaram na carruagem e se dirigiram
para os portões ocidentais da cidade em direção ao reino Fortaleza
Central dos elfos sombrios.
Com os braços cruzados, Veron se inclinou contra a janela da
carruagem, um sorriso em seu rosto e um brilho em seus olhos.
— Você foi incrível lá, Aless.
Então ela voltou a ser Aless e não Alessandra. Aquele foi um
passo para recuperar a confiança dele, talvez?
Não coloque a carroça na frente dos bois.
Ao lado dela, Gabriella sorriu, mas disfarçou e desviou o olhar.
Muito gentil da parte dela.
— Foram apenas algumas palavras — respondeu ela, batendo
na bota dele com o sapato. — Nada como lutar contra harpias.
— Não — disse ele, com um lento balançar de cabeça. —
Você conhece o seu povo. Você os enxerga.
Foi bom da parte dele dizer aquilo, mas fora a discussão entre
eles que a inspirara a olhar mais de perto. E ela continuaria fazendo
isso. Mas...
— Não vou argumentar contra isso.
E assim ela fez.
Capítulo 14

Sentada num cobertor, Aless colocou o bule de chá de passiflora


diante da fogueira enquanto observava as castanhas assarem. O sol
do final da tarde espiava através das copas dos carvalhos,
esparsas, mas de um verde vívido. Alguns dos elfos sombrios
colheram as castanhas pela vegetação rasteira e escalaram uma
enorme castanheira doce, reunindo mais do que Gabriella ajudou a
coletar.
— Elas são gostosas? — perguntou Gavri, acenando para a
árvore.
Nos últimos dias, elas se falavam de vez em quando, já que
Gavri parecia ser quem ficava como guardiã dela quando Veron não
estava por perto. Ela queria fazer amizade com Gavri, se pudesse,
mas não conseguia passar mais do que alguns poucos minutos na
presença dela.
— Eu já comi creme de castanha em sobremesas antes. Bem
doce. Saborosas. — Crème de marrons, como os Emaurrianos o
chamavam. — Li sobre soldados da antiga Silen que tomavam
mingau de castanha na manhã antes da batalha.
Gavri grunhiu.
— Prefiro esse tal de creme que o mingau. Mas considerando
que estamos indo para Dun Mozg, talvez se preparar para a guerra
não seja uma má ideia.
— Por quê? — perguntou, franzindo a testa.
Gavri se inclinou, a trança caindo sobre o ombro.
— Veron não te contou?
Ela se se moveu para o lado no cobertor até que houvesse
espaço suficiente e acenou para Gavri se sentar. A elfa olhou em
volta com cautela antes de se abaixar.
— Ele me contou sobre a rainha Nendra, que ela é a guerreira
mais famosa entre os elfos sombrios — disse Aless, preparando
outra xícara de chá de passiflora.
— Ela é — respondeu Gavri, mas com uma exaustão que
parecia carregar o peso de uma década. — E seu reino possui a
maior mina de arcanir que conhecemos. Uma muito importante, que
vale quase qualquer sacrifício para se ter acesso. Dun Mozg tem
orgulho de suas armas e de sua tropa.
Arcanir? O metal sem dúvida fora útil contra as bestas
Immortali. Ela entregou xícara de chá para Gavri, que aceitou com
uma sobrancelha arqueada.
— Ele também disse que o irmão Zoran foi escolhido como
consorte dela por suas proezas entre seu povo no Bosque Noturno.
Gavri inalou profundamente, virou a xícara em suas mãos, e
balançou a cabeça, devagar.
— Ah, sim — disse ela. — Eu conheço bem as proezas de
Zoran...
Não parecia que Gavri estava falando sobre proezas de
batalha.
Ela engoliu, derramando a água fervente na xícara.
A xícara transbordou, e Gavri pegou a alça da chaleira.
— Vo... você e... — gaguejou ela.
Gavri pousou a chaleira no chão.
— Uma vez, há muito tempo. — Ela suspirou. — Numa época
que eu era apenas uma recruta kuvari muito ambiciosa, e ele era um
dos guerreiros mais talentosos de Nozva Rozkveta. A matemática
me disse que eu precisava vencê-lo para provar a mim mesma do
que eu era capaz. E foi o que eu fiz, e... — Ela encolheu os ombros.
Paralisada, Aless continuou com os olhos fixos nela. Nunca ela
quis tanto que alguém terminasse uma frase como naquele
momento.
— E o quê?
— E, por oito anos, nós dois nos exauríamos no pátio de
treinamento e no quarto — disse Gavri com um sorriso, depois
tomou um gole do chá.
— Oito anos? — Como eles estiveram juntos por oito anos,
oito longos anos, e ainda assim ele acabou como consorte da rainha
Nendra?
Gavri assentiu e tomou outro gole.
— O que tem nisso?
— Passiflora — soltou Aless, em seguida, acenou para que ela
continuasse.
— Passiflora? Como o afrodisíaco? — Ela lançou um olhar
desconfiado. — Você vai...
— Não! Pela Sagrada Mãe, não! — Aless pigarreou,
retomando a compostura enquanto alguns olhares se viravam em
sua direção. Ela não estava bebendo para aquilo. — Mesmo que
seja um afrodisíaco leve, também acalma os nervos.
Sorrindo amplamente, Gavri encolheu os ombros de novo.
— Se você diz.
— Então, o que aconteceu?
— Nendra venceu a rainha anterior de Dun Mozg, e precisava
de um consorte. A rainha Zara ofereceu o seu melhor guerreiro. —
Ela tomou um gole do chá. — Quer saber? Estou mesmo
começando a gostar desse chá.
— E ele partiu assim, de uma hora para outra?
— Sim. Como um príncipe, ele nunca seria capaz de fazer a
Entrega a ninguém que não fosse da realeza — disse Gavri,
assentindo. Ela suspirou. — Depois disso, o príncipe Veron me
encontrou na caverna de treinamento e me pediu para lutar. E no dia
seguinte, e no outro. Nós nos tornamos amigos, e após isso a rainha
Zara me designou para ser guardiã dele.
Então, Veron fora ver Gavri depois que ela perdera alguém que
amava e fez amizade com ela. Isso era bem o estilo dele. Ela abriu
um sorriso caloroso.
Um arrepio gentil acariciou suas costas e, quando ela olhou
para o outro lado do campo, Veron a estava encarando enquanto
escovava Noc. Ela estava ganhando a confiança de Noc nos últimos
dias, pelo menos, com algumas maçãs aqui e ali, e contando
fábulas que Mamma tinha lido para ela sobre unicórnios e cavalos
feéricos. Se ao menos a confiança de Veron pudesse ser
recuperada tão fácil assim.
Gavri seguiu sua linha de visão e se assustou.
— É... é melhor eu ir.
— Não, fique, por favor — disse ela, pousando uma mão no
joelho de Gavri.
Do outro lado do campo, uma cauda preta longa e sedosa
bateu na cara de Veron. Ele lançou um olhar de vergonha para Noc
e murmurou algo para ele.
Enquanto ela sorria, uma risada suave borbulhou ao lado dela.
Era de Gavri. Mas o riso logo desapareceu.
— O que aconteceu entre você e Veron? Vocês não estão
mais se falando.
Gavri pousou a xícara no chão, jogou a trança sobre o ombro e
brincou com a ponta, o olhar fixo no chão.
— Eu... traí a confiança dele. — Ela respirou fundo. — Perdi
Zoran em um instante. E, quando Veron ficou noivo de você, eu
esperava... muito. Depois do casamento, depois do seu... vestido...
não foi como se não desse para ver a reação do seu povo.
— Eu sei, eu me arrependo disso — concordou Aless,
baixando o olhar também.
— Era algo entre vocês dois. Sei disso. Mas... Eu só queria
que ele se rebelasse contra o casamento também. Não queria que
ele fosse compreensivo, razoável e diplomático, como sempre é. Eu
queria que ele revidasse — continuou ela, batendo uma mão na
coxa. — Já que ele não faria isso, eu me intrometi. Eu falei mal de
você a ele e menti, dizendo que entreguei a tenda, só para que você
pudesse parecer mimada. Bom, mais mimada.
Uma meia risada escapou dela antes que Aless pudesse se
segurar, mas Gavri respondeu com um sorriso breve.
— Eu provavelmente mereci isso, Gavri.
— Ah, você mereceu. Mas ele não. Ele não merecia que eu o
traísse. Ele não é Zoran, e você não é Nendra. E você... não é o que
eu esperava. — Ela mordiscou o lábio por um momento. — Um
pouco mimada, sim, mas você realmente se importa com cultivar a
paz entre nós e os humanos. Você tentou fazê-los nos aceitar em
Stroppiata, primeiro com a coisa da máscara, depois no santuário.
Fiz um julgamento muito precipitado e estava enganada.
Sem saber o que falar, Aless só podia assentir.
— Veron não deixa as pessoas entrarem em seu coração
facilmente. — Gavri terminou de beber o chá e colocou a xícara
vazia diante de si. — Nozva Rozkveta já esteve em guerra com o
reino de Lumia dos elfos de luz. O pai de Veron, o rei-consorte
Mirza, matou o consorte dos elfos de luz em batalha, mas
perdemos, e Lumia tomou muitos do nosso povo como prisioneiros.
Lumia ameaçou matá-los a menos que a rainha Zara entregasse
Mirza em troca. Antes da mensagem chegar a ela, Mirza já havia
decidido se entregar. Sem mesmo considerar os desejos da rainha.
Veron o pegou fugindo e Mirza sorriu. Disse a Veron que ia caçar e
que voltaria logo, para que não houvesse comoção, nem luta. E
então ele partiu para Lumia, onde foi executado antes que a rainha
dos elfos de luz libertasse nossos prisioneiros.
As palavras, embora ditas em voz alta, pareciam feitas de puro
ar. Um ar espesso, denso e sufocante, pressionando cada vez mais
até que ela mal conseguisse respirar.
O pai de Veron tinha ido contra sua esposa e rainha, tinha se
sacrificado por ela, por seu reino, por Veron... Mas, ao fazer isso,
machucou o seu filho, de maneira profunda, deixando uma ferida
que durou anos, e talvez durasse uma vida inteira.
— Veron ficou devastado. Totalmente destruído. Em sua
cabeça, Mirza traiu ele e toda a sua família, porque eles amavam
Mirza e ele ignorou isso para se entregar. Não acho que Veron
algum dia perdoou o pai, e sua confiança, uma vez quebrada, é
irrecuperável.
Irrecuperável. A palavra a atingiu como uma flecha, e ela
estremeceu.
Gavri se aproximou.
— Mas ele vê algo diferente em você — sussurrou. — Algo
especial. E eu... Eu vejo isso, também.
— Tomou muito chá de passiflora, Gavri? — perguntou Aless,
encarando-a.
Uma risada calorosa.
— Nada disso. Embora eu tenho certeza de que ajudaria. —
Ela balançou uma sobrancelha.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe.
— Quer dizer... Você pensa de uma maneira incomum. No
início, em sua capital, você estava usando isso de um jeito egoísta.
No entanto... no caminho para Stroppiata, e quando estávamos
saindo, você lidou com as coisas de maneiras que normalmente não
faríamos. E Veron também é um guerreiro, mas ele quer encontrar
meios mais pacíficos, meios diplomáticos, é com isso que ele
sempre sonhou. E então aqui está você, como se tivesse saído
direto de um desses sonhos. — Gavri se afastou, mordendo o lábio.
— Se você fosse uma elfa sombria, seria perfeita — completou ela,
com uma piscadela.
Sorrindo, Aless lhe deu uma cotovelada. Por vezes, Veron
olhava para ela por um tempo, contemplativo, entretanto, exceto nas
aulas diárias de arco e flecha, ele mantinha distância. Para seu
crédito, agora ela às vezes conseguia acertar o alvo. Às vezes.
Porém, o que eles tiveram no jardim... Aquilo não acontecera
novamente. E, apesar de sua aparência contemplativa, podia nunca
mais acontecer, por mais que ela se esforçasse para isso.
Mas não vou desistir. Ela ganharia a confiança dele de volta,
não importa o que fosse preciso.
— Vou ver se posso ajudar com essa meleca de castanha. —
Gavri se levantou.
— O mingau.
— Isso. — Inclinando a cabeça, Gavri se despediu.
Bom, se eles comessem mingau de castanha no café da
manhã, pelo menos estariam preparados para o reino de arcanir e
as tropas no dia seguinte.

Veron observava Aless nos túneis Dun Mozg, seu olhar, sua
respiração ofegante, sua admiração. Ela estava impressionada, e
ficaria ainda mais impressionada quando chegasse em Nozva
Rozkveta.
Perfeitamente circulares, os túneis ondulados se estendiam
por incontáveis quilômetros de rocha sólida, conectando os reinos
dos elfos sombrios. Ninguém além de um elfo sombrio de Dun Mozg
sabia sobre portões diretos entre seu reino e o reino do céu, mas os
túneis eram usados por todos os reinos de seu povo e ele sabia
muito bem como chegar a Dun Mozg através deles, mesmo que até
agora estivesse levando uma hora a cavalo para chegar.
— Eles são enormes — sussurrou Aless, mesmo assim, sua
voz ecoou. — Como você pode ter certeza de que... que os wyrms
escavadores se foram?
Ele riu baixinho. Ela estava certa, os túneis eram imensos e
eles não passavam de formiguinhas ali dentro.
— Embora os escavadores tenham criado nossos túneis e
territórios, sabemos que eles não estão mais aqui porque não há
terremotos.
— Terremotos? — As sobrancelhas escuras de Aless se
uniram antes de subirem. — Aha. Escavadores.
Pouco tempo depois, os túneis começaram a brilhar à luz de
suas tochas e lanternas, e ela cerrou os olhos.
— O que são...?
— Pedras preciosas — respondeu ele, e arfou. — Arcanir não
é o único material encontrado aqui, embora seja um dos poucos
úteis.
— Mas pedras preciosas são... — disse ela, sua boca se
escancarando.
— Muito valiosas para os humanos. — Ele sorriu para ela. —
Eles nos fornecem madeira, couro, colheitas, gado e outros itens
valiosos e, em troca, querem pedras brilhantes.
Ela inclinou a cabeça.
— Quando você coloca assim, todos nós parecemos idiotas.
— Nem todos vocês, mas se as joias serviram... — disse ele,
dando de ombros, feliz.
Ela passou os dedos sobre suas pérolas.
— Sabe, não é apenas o aspecto brilhante da coisa. Raridade
também tem um grande significado. Significa que tivemos que nos
sacrificar para obter algo. Quando uma cidade inteira constrói uma
imagem de Terra a partir do ouro significa que sacrificaram muito
pela Sagrada Mãe.
Aquilo foi um pouco defensivo. Ele abaixou a cabeça,
escondendo um sorriso.
— Açafrão é raro, não é?
— Pode ser que uma estátua feita de açafrão não dure muito,
Veron — rebateu, apertando os lábios. Apesar de seu tom irritado,
os olhos dela brilhavam.
Aquele brilho fez que toda a provocação valesse a pena. Havia
algo nela que iluminava o coração dele, fazia com que se sentisse
leve. A maneira como ela o fazia se sentir... não seria possível se
fosse maligna, alguém que trairia uma afeição sincera. Talvez ele
tivesse a julgado mal.
As pessoas sempre foram difíceis para ele entender, desde
Ata. Como ele podia ter se enganado tanto com o próprio pai? E
outros volodari, kuvari e ex-amantes.
Ele se importava com Aless. Talvez até confiasse nela, mas
não confiava em si mesmo, nem na sua capacidade de entendê-la
bem o suficiente para prever quando as coisas poderiam dar errado
e impedir que isso acontecesse.
— Então o Bosque Noturno recebe arcanir daqui? — quis
saber Aless.
Ele respirou fundo.
— Dun Mozg nos fornece armas de arcanir, sim. Em troca, nós
fornecemos comida e especiarias, já que são escassos aqui —
explicou. — Eles tiveram que caçar muito mais do que nós e
perderam muitos volodari para a Irmandade. Quando despertamos
da Ruptura, todas as nossas fazendas tinham murchado ou foram
cobertas pelo mato, então não pudemos nos abastecer ainda, muito
menos fornecer para Dun Mozg. Enquanto restabelecemos os
nossos plantios e as caravanas de especiarias, precisamos do
comércio que Silen pode fornecer.
Nozva Rozkveta estava faminta, mas Dun Mozg tinha sofrido
uma escassez alimentar ainda maior; eles tinham enviado mais
volodari para lidar com isso, e perderam muitos para a Irmandade.
Aquilo os deixaria mais felizes com o tratado ou mais amargurados
com os humanos em geral. Com sorte, seria o primeiro.
— Vocês ajudam contra os outros Immortali em troca da nossa
comida — sussurrou ela. — E então fornecem comida e especiarias
para a Fortaleza Central em troca de armas...
Ele assentiu. Agora ela entendia o básico do comércio com a
rainha Nendra.
Em pouco tempo, eles se depararam com o conjunto circular
das portas de pedra de Dun Mozg, onde Riza desmontou, pegou um
dos martelos que estavam por perto e bateu no ritmo de Nozva
Rozkveta. Ela devolveu o martelo e recuou.
— Esse som era... —  sussurrou Aless para ele, com a cabeça
inclinada.
Ele pediu que Noc se aproximasse dela.
— Cada reino de elfo sombrio tem a própria batida. É como
nos identificamos um para o outro.
Ela bateu os dedos contra a coxa, o mesmo ritmo que Riza
havia batido. O ritmo de Nozva Rozkveta. De novo e de novo, como
se estivesse praticando.
Ele se inclinou para a frente, observando o movimento
daqueles dedos elegantes e afilados enquanto soavam como lar, o
seu lar, o lar deles, e quando as portas se abriram, minutos devem
ter se passado... ou segundos. Pigarreando, endireitou-se.
Zoran, Noc pensou para ele, com um balanço de sua cauda e
uma bufada longa e forte.
Nós o veremos em breve. Veron deu um tapinha em Noc.
Zoran visitava os estábulos todos os dias em Nozva Rozkveta, antes
de se tornar rei-consorte de Nendra, e tinha se apegado a Noc, em
particular.
Quando as portas se abriram, duas kuvari surgiram usando
armaduras leves de arcanir e carregando alabardas.
Riza deu um passo à frente.
— Salve, povo de Dun Mozg, abençoados pelo Profundo, pela
Escuridão e pelo Sagrado Ulsinael — gritou ela, e todos os elfos
sombrios da comitiva saudaram. — Nós de Nozva Rozkveta viemos
como família, a serviço de Sua Alteza, príncipe Veron u Zara u
Avrora u Roza, Valaz u Nozva Rozkveta, Zpevan Kamena, Volodar
T’my, e Sua Alteza, princesa Alessandra u Aldona u Noor u Elise,
Valazi u Nozva Rozkveta, Valazi u Silen.
Aless se inclinou em direção a ele.
— Esses são os nomes da minha mãe, da minha avó e da
minha bisavó — sussurrou ela, com a voz aguda.
Ficara surpresa?
— Minha mãe queria saber tudo sobre você — sussurrou ele
de volta. E eu queria saber tudo sobre você...
— Dun Mozg oferece a vocês as boas-vindas — veio a
resposta da kuvari de Dun Mozg. — Que o Profundo, a Escuridão e
o Sagrado Ulsinael os guiem em nosso reino. — As duas se
afastaram, permanecendo em alerta enquanto a comitiva passava
pelas portas abertas. — Sua Majestade, rainha Nendra, espera por
vocês no salão nobre. Aproveitem os Jogos.
— Jogos? — perguntou Aless a ele. — Como os que você
mencionou em nosso casamento?
Ele assentiu.
— Nossas festividades incluem jogos, onde qualquer um pode
desafiar qualquer um no ringue para uma luta leve corpo a corpo.
— Qualquer um? — A voz dela falhou.
Fechando os olhos, ele colocou a mão no rosto. Era uma
tradição tão comum entre seu povo que nem sequer tinha pensado
nisso.
Mas ele deveria.
Ele deu um leve pigarro.
— Sim. Qualquer um.

Aless apertou os dedos trêmulos nas rédeas. Haveria jogos


naquela noite e ela, que nunca havia treinado em combate um dia
sequer em toda sua vida, poderia ser desafiada?
Um calor suave repousou em sua mão, a palma de Veron em
sua pele. Cavalgando perto, ele baixou a cabeça e a encarou com
seus olhos dourados cintilantes.
— É apenas uma disputa leve, mas não há honra em desafiar
alguém sem habilidades — disse ele, com delicadeza.
— Yelena — disse a guardiã de olhos afiados com uma tosse,
fazendo com que Veron sibilasse e a olhasse com uma carranca.
Aquilo não pareceu um bom sinal.
— O que é Yelena?
— Não o quê. Quem — respondeu a guardiã de olhos ferinos,
enquanto Veron dispensava seus comentários com um aceno da
mão.
— Não dê ouvidos a Riza. Yelena não vai te desafiar.
A guardiã de olhos afiados, Riza, zombou, o som ecoando no
enorme túnel escuro.
Aless agarrou os dedos de Veron.
— Quem é ela? — Uma rival? Um caso antigo dele? Uma
inimiga?
Ele fechou os olhos por um momento e soltou um longo
suspiro.
— Yelena é mimada...
— Forte — interveio Riza.
— E egoísta.
— Ambiciosa.
— Oportunista.
— E sua antiga amante. — Riza fez uma careta para ele. —
Ela vai sentir uma rivalidade instantânea.
— Seu povo está morrendo de fome e sendo pego pela
Irmandade. Ela não é estúpida o suficiente para colocar este tratado
em risco — grunhiu Veron.
Antiga amante...
Que tipo de mulher ela era, essa Yelena? Forte, ambiciosa...
— Ela não precisa machucar Vossa Alteza — disse Riza. —
Um desafio será suficiente para todos os presentes testemunharem
seu declínio. Os elfos sombrios nunca a respeitarão depois disso.
Então, ela não podia lutar, nem recusar.
Tinha que haver outras opções. Ela só tinha que encontrá-las.
— Vou falar com ela — rosnou Veron para Riza.
— Por acaso isso já adiantou antes? — ironizou Riza, com
escárnio. — Apenas a ignore, de todas as formas.
— Isso pode irritá-la a ponto de encorajá-la — rebateu ele
quando se aproximaram do fim do túnel.
— É a sua melhor chance — disparou Riza de volta, e eles
continuaram discutindo, mas isso não importava.
Ela não tinha controle sobre o que essa tal Yelena poderia
fazer ou deixar de fazer. Tudo o que restava era reunir todos os
fatos que conseguisse para determinar a estratégia a tomar. A
estratégia certa, para tanto ganhar o respeito dos elfos sombrios
como ficar longe do caminho de Yelena.
O túnel se abriu para uma caverna tão grande que nem
parecia real, tão vasta que seu fim não era visível, banhada por um
brilho verde suave que iluminava as construções abaixo. As paredes
das cavernas tomadas de verde floresceriam com...
— Bioluminescência — sussurrou Veron no ouvido dela, sua
voz suave e aveluda a fazendo tremer. — Quatorze tipos de
cogumelos bioluminescentes crescem em nossos reinos.
Cogumelos? Eles quase pareciam flores. Ou pétalas. Mas
abaixo deles havia uma cidade construída com algo como vidro
preto. Edifícios com bordas irregulares, pontas e ângulos agudos,
mas que brilhavam e cintilavam como espelhos. Algumas pessoas
vagavam pelos caminhos da pedra negra, conversando e rindo,
enquanto outras desapareciam em cavernas que se ramificavam da
principal. No centro de tudo estava o maior edifício de todos, com
um aglomerado de cristais pretos brotando dele, lindo e majestoso,
cercado por uma hidrovia azul esverdeada que transbordava para
as profundezas abaixo.
O coração dela congelou e depois começou a acelerar.
— É de tirar o fôlego.
Veron soltou um riso baixo, os olhos brilhando.
— Espere até ver Nozva Rozkveta.
Será que era assim também?
Mas a cavalgada já estava se movendo, e ele inclinou a
cabeça para ela seguir. Aless guiou seu cavalo para que
acompanhasse Veron e Noc por um caminho que levava a um longo
edifício, onde foram recebidos com relinchos e bufadas.
Veron a ajudou a desmontar e ele mesmo levou Noc e o cavalo
dela para dentro, atravessando uma agitação de pessoas.
Um homem com cabelos longos e soltos estava diante de uma
das baias, esfregando o nariz de um cavalo. Ele era robusto, com
cabelos longos e esvoaçantes, um sorriso brotando dos cantos dos
lábios, que parecia quase permanente. Além de ter o mesmo tom de
pele azul-ardósia que Veron, apenas um pouco mais escuro do que
a maioria.
— Zoran — chamou Veron. — Eu sabia que o encontraria aqui.
Zoran? O mesmo Zoran que Gavri havia mencionado?
— Irmão! — Zoran se virou para ele, aqueles olhos dourados
parecidos com o do irmão estavam arregalados, e ele envolveu
Veron em um abraço, dando-lhe tapinhas nas costas. — Já faz uma
era!
Zoran tinha os mesmos traços elegantes que Veron – as
maçãs do rosto altas, o queixo proeminente, a mandíbula angular –
e, ainda assim, eram mais acentuados, de alguma forma. O sorriso
de Zoran era largo e sua risada, calorosa, seus movimentos,
amplos. Ele mesmo era um pouco mais alto do que os 1,95 m de
Veron, e mais largo. Enquanto Veron era quieto e intenso, ela já
conseguia até imaginar a gargalhada e a voz potente de Zoran.
— Eu sabia que você estaria perto de onde quer que os
cavalos estivessem. — Com um sorriso de lado, Veron olhou para o
irmão, dando-lhe um tapinha no ombro. Eles acomodaram o cavalo
dela e Noc no estábulo, com mãos se aproximando para auxiliar.
— Melhor aqui do que na fortaleza. Nendra está ocupada com
seu favorito atual. Um lobisomem alfa — respondeu Zoran, soltando
um suspiro pesado.
Favorito atual?
O sorriso de Veron desapareceu quando ele balançou a
cabeça, ganhando um dar de ombros de Zoran.
— Ela vai se cansar dele em breve. Muito temperamental.
A rainha não era casada com Zoran?
Ele desviou o olhar de Veron e o fixou nela.
— E você deve ser Alessandra!
Pigarreando, ela fez uma reverência, mas ele passou direto
por Veron e a abraçou.
— Fico feliz em conhecê-lo, rei consorte...
— Zoran — corrigiu ele, com os braços apertados em volta
dela. — Somos família agora.
Apesar de seu tamanho, seu abraço era genuíno, e ele tinha
um cheiro familiar, de cavalos – não tinha como não gostar dele.
— Prazer em conhecê-lo — repetiu, encontrando o olhar
cintilante de Veron, que estava parado, observando-a, um braço
cruzado no peito e a outra mão em punho, cobrindo a boca.
Ele parecia prestes a explodir numa risada, o que seria uma
nova visão para ela.
Zoran a soltou e se inclinou contra uma baia, com o rosto
iluminado.
— Então, o que você acha do meu irmão? Ele é muito quieto?
Muito sério? Com toda sua obediência, dever e paz?
Algo como uma gargalhada engasgada veio de Veron antes
que ele baixasse a cabeça e tossisse.
— Ele é... — Maravilhoso. — Eu... — Adoro ele. — Nós...
— Não diga mais nada! — Zoran ergueu uma mão. — Ou o
ego dele pode explodir.
Ela fez uma careta.
— Ah, então ela tem senso de humor.
Veron deu uma cotovelada no irmão.
— E essa coisa com botas que ele tem? — acrescentou Zoran.
— Continua assim?
— Eu não tenho uma coisa com botas. Não é minha culpa que
a maioria das botas não são, no mínimo... — disse Veron, lançando
um olhar torto para ele.
— Você tem sim uma coisa com botas — provocou Zoran,
encarando-o.
— Coisa... com botas? — perguntou ela. Se havia um homem
que poderia fazer um par de botas perfeito era o sapateiro de
Lorenzo. Ela teria que escrever para ele.
O barulho de cascos soou atrás dela e a alegria desapareceu
do olhar de Zoran quando ele olhou para algum ponto atrás dela.
Ela olhou para trás, onde Gavri entrava com um cavalo. Gavri
rapidamente tentou recuar, mas não havia para onde ir.
Zoran caminhou até ela, inclinando-se em sua direção.
— Gavri. — A palavra soou como uma saudação, um sussurro,
um pedido de desculpas e uma forma de admiração, tudo ao mesmo
tempo.
— Eu preciso ir. Licença... — disse Gavri, empurrando um trio
de kuvari e seus cavalos, mas Zoran pegou sua mão.
— Me encontre aqui mais tarde, durante o jantar — sussurrou
Zoran para Gavri. — Preciso muito conversar com você.
Gavri se retorceu em seu aperto, a mão indo para a trança.
— Eu... não posso. Tenho deveres de guardiã para cumprir. —
Ela se virou e abriu caminho através do estábulo lotado, mas os
olhos brilhantes de Zoran a seguiram enquanto ela partia.
Gavri realmente não ia ouvir o que Zoran, o homem que ela
amava, a quem havia dedicado oito anos de sua vida, tinha a dizer?
Ela se apressou para seguir Gavri, já do lado de fora do
estábulo, e Veron a alcançou.
— Vejo você nos jogos — gritou Veron de volta para o irmão,
em seguida a ajudou a abrir caminho.
Os jogos... que, a menos que pensasse numa saída nas
próximas horas, acabariam com ela decepcionando seus novos
súditos com uma única palavra.
Capítulo 15

Quando Veron entrou na caverna de treinamento, Yelena já estava


lá, com suas vestes kuvari, praticando com a espada. O cabelo
estava arrumado numa coroa trançada, como sempre, e os
movimentos eram tão flexíveis e ágeis como de costume.
— Sentiu saudades de mim? — perguntou ela com um
movimento da lâmina e um sorriso travesso.
— Dois mil anos se passaram num piscar de olhos —
murmurou ele, recostando-se num pilar de pedra negra. Mais dois
mil poderiam se passar antes que ele sentisse falta dela... não, nem
mesmo assim.
Seus olhos de âmbar escuro dispararam para ele enquanto ela
avançava numa investida.
— Olhe para você, todo enfeitado.
Ele já estava vestido com seus couros de combate, pronto
para o jantar.
— Então sua mãe finalmente lhe casou. E com uma humana.
Ele cruzou os braços. Importava-se com Aless, mas esfregar
aquilo na cara de Yelena não o faria ganhar nenhum favor dela.
— Faço o que minha rainha ordena.
Ela forçou uma risada.
— Eu sem dúvida teria usado isso ao meu favor.
— E isso nunca seria seu para ser usado.
Cerrando a mandíbula, ela praticou um movimento de
bloqueio.
— Você nunca conseguiu entender a minha visão.
Ah, mas ele tinha entendido a visão dela, perfeitamente. Uma
kuvari ambiciosa e de sangue real que sabia que nunca conseguiria
derrotar a própria mãe num combate individual... e por isso tivera
um caso de amor com ele em Nozva Rozkveta e o usara para tentar
descobrir as fraquezas de Mati, numa tentativa de tomar o trono de
Nozva Rozkveta. O plano dela dependia de realizar a Entrega com
ele e, depois, duelar para se juntar ao Conselho da rainha –, mas
ele descobrira as mentiras de Yelena antes e havia contado tudo à
Mati
Em vez disso, Mati acabara noivando Zoran com a mãe de
Yelena, e esse foi o fim dessa história.
— A sua... “visão” era um monte de mentiras — disse ele, de
uma maneira casual. — E eu não ia deixar você tentar derrubar
minha mãe.
— Tentar? — Ela soltou uma risada profunda. — Eu teria
conseguido.
Yelena era uma guerreira habilidosa, mas não era páreo para
Mati, a quem até Nendra teria dificuldades para vencer. Mas, como
uma pessoa desesperada para sair da sombra da própria mãe,
Yelena parecia realmente acreditar no que dizia.
— Você não tem que provar nada a ninguém — continuou ele.
— Todos sabem que você é uma das kuvari mais fortes. E não
apenas em Dun Mozg.
Ela revirou os olhos e, com a espada, cortou baixo no ar,
depois no alto.
— Não preciso que me digam isso.
— Porque você já sabe. Todo mundo já sabe.
— Aonde quer chegar com isso? — perguntou ela, expirando
com força pelo nariz.
Ele deu passo para frente e ela parou um golpe a poucos
centímetros do braço dele. Com os olhos arregalados, ela olhou
para ele, enquanto ele pousava sua mão na mão em que ela
segurava a espada.
— O que quero dizer é que Alessandra é humana — concluiu,
mantendo a voz baixa. — Você não tem nada a ganhar a
desafiando.
Com um riso de escárnio, Yelena jogou os ombros para trás,
afastou-se dele e embainhou a espada, suas vestimentas pálidas de
kuvari escurecidas com o suor.
— É isso que você prevê que eu vou fazer? Desafiar sua
pequena humana?
— Eu não sou tolo o suficiente para tentar prever o que você
vai fazer, Yelena. — Ele olhou para ela, para seus olhos, que
maquinavam algo, e a expressão de seu rosto. — Mas nossa paz
com os humanos, nosso comércio, até mesmo a comida que este
reino está recebendo, dependem do meu casamento com
Alessandra.
— Eles são fracos. Indefesos. Diante do menor desafio, correm
como salamandras. Não têm nem sequer um pingo de força.
— Não no ringue. Não têm força de combate. Mas a
Alessandra tem um tipo diferente de força — disparou ele. Aless não
era fraca. Não era indefesa. Ela superaria Yelena em um teste de
inteligência sem nenhum esforço.
— Há apenas um tipo de força que importa, Veron — sibilou
ela.
Aquilo não estava dando em lugar nenhum.
— Estou pedindo isso como um favor, Yelena.
— Um favor? Pelos velhos tempos? — Arqueando as
sobrancelhas, ela olhou para longe e balançou a cabeça, em
seguida cruzou os braços. Quando seus olhos se encontraram mais
uma vez, os dela estavam estreitos e dançando maliciosamente. Um
olhar que ele já tinha visto inúmeras vezes. — Quem sabe
poderíamos rolar no musgo uma última vez, então, pelos velhos
tempos?
Ele soltou um rosnado baixo. Não fazia sentido tentar
argumentar com ela quando tudo que ela faria era zombar dele para
a própria diversão. Yelena estava determinada a lançar o desafio e
envergonhar Aless na frente de todos os presentes, espalhar a
notícia pelos reinos sobre a nova princesa humana de Nozva
Rozkveta, que se recusara a lutar e que, portanto, não tinha honra.
Ele estava cansado das brincadeiras dela. Ele apenas a
desafiaria primeiro e venceria Yelena no ringue. Após isso, como
vencedor, seria capaz de escolher seu próximo oponente e esse
seria o fim. Yelena nem sequer teria a chance de envergonhar sua
esposa.
Era a jogada certa.
Ele se virou e caminhou até a saída.
— Foi bom falar com você, Yelena — zombou.
— Vejo você no jantar — veio a resposta jocosa.

*
Aless se levantou do banco de pedra do aposento que
compartilhava com Veron. Decorado em pedra lisa e metal, as
superfícies eram duras, afiadas, suavizadas apenas pelo que
parecia ser seda sem tingimento, de um branco macio como
algodão. Roupas de cama, almofadas e cortinas de seda. Até
mesmo um tapete de seda, tecido em tons de branco e marrom. O
quarto era um casamento entre o suave e o rijo.
No espelho, ela usava seu vestido de cetim azul-escuro – um
dos seus melhores –, bem ajustado ao seu corpo pelo corpete
ricamente bordado, com botas por baixo e o colar de pérolas de
Mamma em volta do pescoço.
Ela não sabia lutar, era verdade, mas ainda era uma princesa
de Silen. E todos que olhassem para ela naquela noite saberiam
disso, e saberiam que, com a sua posição, vinha a ajuda de que
todos desfrutavam. E que, se algum mal lhe acontecesse, ficariam
sem esse auxílio.
Gabriella apertou a trança enrolada em sua nuca.
— Pronto, perfeito.
— Eu aprovo — comentou Gavri da sua posição de vigia na
porta, girando a ponta de sua própria trança em torno dos dedos. —
Tem algo sobre esse penteado que eu amo, só não consigo dizer o
quê.
Por mais casual que Gavri parecesse naquele momento, seu
encontro com Zoran a tinha deixado abalada. Afinal, ela
praticamente fugira correndo do estábulo.
— Engraçadinha.
Tanto Gavri quanto Zoran tinham coisas que precisavam dizer
um ao outro, ao que parecia, perguntas que precisavam de
respostas, feridas que precisavam ser curadas. Talvez fosse melhor
se desabafassem em vez de manter tudo preso dentro deles. Seria
mais fácil para seguirem em frente.
Aless caminhou até Gavri e apontou um dedo para ela.
— Você vai se encontrar com ele nos estábulos mais tarde.
— Vou? — Gavri olhou para o dedo dela. — Não posso. E meu
dever de guardiã...?
— Você precisa ouvir o que quer que seja que ele tem a lhe
dizer. Vocês dois têm assuntos pendentes — rebateu Aless,
balançando a cabeça.
Suspirando, Gavri apoiou a cabeça contra a porta.
— Se a rainha Nendra souber disso, mesmo que nada acont...
— Você não pode fazer nada se eu precisar tomar um pouco
de ar mais tarde e exigir que a minha guardiã me acompanhe, não
é? — Com um sorriso, ela passou devagar pela porta.
— Bom plano — disse Gavri, com uma voz aguda,
aproximando-se dela. — Gostei.
No corredor, Veron caminhou na direção delas, com seus
quase dois metros de puro músculo vestido de couro preto, os
ângulos duros de seu rosto assustadoramente bonito estavam
tensos, as sobrancelhas, franzidas, e os olhos dourados, duros.
Riza o seguia com uma carranca.
Então ele falara com Yelena?
Mas quando ele olhou para cima e encontrou o olhar dela,
aqueles ângulos duros deram lugar a um sorriso suave. Um que ela
colocara lá.
Ele a olhou da cabeça aos pés e a curva daquele sorriso era
inconfundível enquanto pegava suas mãos.
— Você está linda.
— O mérito é todo de Gabriella — disse ela, esfregando o
polegar na mão dele.
Ele deu um aceno amigável para Gabriella, que fez uma
reverência. Quando o olhar dele vagou para Gavri, ela inclinou a
cabeça e desviou o olhar.
Aquela desavença entre eles teria que acabar. Talvez
pudessem discutir isso mais tarde.
— Como foi a sua conversa? — perguntou ela, enquanto ele
passava a mão dela em volta do braço e a conduzia pelo corredor.
— Às mil maravilhas — cuspiu Riza, balançando a cabeça.
Veron sibilou para Riza, depois se virou para ela, esfregando a
mão dela para esquentá-la.
— Ela está ansiosa para governar...
— Essa é uma maneira de dizer isso — murmurou Riza.
— Mas está frustrada por estar sempre na sombra da mãe.
— Ela está frustrada, mas não é estúpida — disse Gavri,
apesar do olhar duro que Veron lhe lançou. — Se ela envergonhar
Sua Alteza e a rainha Zara souber disso, isso poderá afetar as
relações com Dun Mozg. Ela não colocaria a aliança em perigo.
— Você não a conhece tão bem quanto eu — retrucou ele.
— Ninguém a conhece tão bem quanto você — revidou Gavri,
então seus olhos se arregalaram enquanto ela engolia em seco.
Veron ficou rígido, mas Aless interveio:
— Como funcionam os jogos? — perguntou, enquanto
atravessavam um corredor no palácio de cristal preto, as batidas de
suas botas ecoando pelo chão.
— O primeiro guerreiro pode desafiar até que ela ou ele perca
— explicou Veron. — Quando o primeiro guerreiro finalmente perde,
é o vencedor quem desafia os próximos participantes até que ele ou
ela perca.
— Como se ganha?
— Tirando o oponente do ringue, ou até que seu oponente
bata duas vezes — informou Gavri e Veron assentiu, mas uma
carranca devagar franziu seu rosto. — Nada de sangue derramado,
é uma tática ruim.
— E quanto ao ringue? Do que é feito?
Veron virou a cabeça para trás.
—Não — sibilou ele, parando perto de um banco de pedra.
— Areia. — Gavri arqueou uma sobrancelha para ele.
Areia... Não doeria muito.
— É um combate leve, certo? — perguntou ela. — E se eu
aceitar o desafio?
— De jeito nenhum — proibiu Veron, com os dentes cerrados.
— Não é uma ideia tão ruim — rebateu Gavri, enquanto Veron
fazia uma careta para ela. — Machucar Sua Alteza destruiria a paz.
Ela não usaria os jogos para realmente ferir Sua Alteza.
— Se ela colocar a paz em perigo, isso pode significar que seu
povo não comerá. — Ela pegou o braço de Veron com as duas
mãos até que ele olhou para ela. — Se ela quer mesmo governar e
for inteligente, o que espero que seja, já que você gostava dela,
então ela não vai deixar que seu povo morra de fome apenas para
fazer com que uma estranha fique com uma imagem ruim.
— Ela é apaixonada por liderança — disse ele, com um
suspiro. — Apenas impaciente demais e, às vezes, míope.
Aquilo soava muito familiar. Com um sorriso fugaz, ela baixou
o olhar enquanto caminhavam por trechos intermináveis de pisos
pretos brilhantes refletindo a luz de cogumelos, vaga-lumes e
tochas.
Yelena – como uma mulher entre os elfos sombrios – tinha
uma chance real, não importava como era pequena, de chegar a ser
uma verdadeira líder. Quando um sonho se tornava tangível, a
tentação de alcançá-lo era quase irresistível. O que Yelena tinha
feito?
Nada de muito repugnante, se ainda estava livre, ainda uma
herdeira do trono daqui. Ela podia até ser impaciente, mas não era
louca.
Logo, o barulho abafado de uma miríade de vozes soou por
trás de duas portas pesadas de pedra.
— Se ela desafiar você — sussurrou Veron —, apenas recuse.
Não há uma boa razão para você correr esse risco.
Duas kuvari, blindadas em armaduras de arcanir com uma cor
verde-sálvia, abriram as portas, revelando um mar de pessoas
aglomeradas em longas mesas de pedra e bancos. Alguns dos que
estavam lá haviam chegado com ela e Veron – o povo dela.
Aquela era razão suficiente para correr esse risco.
— Sua Alteza, príncipe Veron u Zara u Avrora u Roza, Valaz u
Nozva Rozkveta, Zpevan Kamena, Volodar T’my e Sua Alteza,
princesa Alessandra u Aldona u Noor u Elise, Valazi u Nozva
Rozkveta, Valazi u Silen — anunciou um arauto em voz alta, e todas
as vozes no salão se calaram enquanto Veron escoltava ela e
Gabriella para dentro, com Riza, Gavri e dez outras kuvari os
seguindo. Todos os elfos sombrios estavam de pé, suas posturas
eretas e em alerta, com os braços ao lado do corpo.
Os candelabros de chão e os enormes girandoles de cristal
iluminavam o grande salão, refletindo a luz das velas em superfícies
que pareciam vidro preto, com um círculo de areia vazio no centro,
delineado por gravuras brancas. Os passos deles eram o único som
e, quando passaram por vários espaços vazios nos bancos de
pedra, a maior parte de sua comitiva parou, exceto ela, Veron,
Gabriella, Riza e Gavri.
O ar estava denso com o tempero saboroso das salsichas
assadas, limão, azeite, polenta e massa de farinha de arroz. O
aroma das iguarias de Bellanzole – comidas humanas.
Veron as conduziu até a mesa mais distante, onde uma mulher
com um corpo forte e escultural esperava diante de um trono preto
reluzente, seus longos cabelos presos, ladeada por quatro homens,
Zoran entre eles. Ninguém mais no local parecia ter mais do que um
parceiro, mas esta rainha tinha. Ela estava vestida em um couro
preto cromado impecável e armadura sobre os dedos.
— Eu sou a rainha Nendra. Boas-vindas a Dun Mozg, príncipe
Veron, princesa Alessandra. — Com um sorriso comedido, Nendra
inclinou a cabeça, e ela e Veron retornaram o gesto. Nendra
gesticulou para os homens que a cercavam. — Este é meu rei-
consorte, Zoran. — Ele sorriu e acenou com a cabeça. — E meus
concubinos.
Concubinos?
— Kral, Ivo e Cipriano. — Um elfo musculoso de rosto sombrio
usando armadura, um homem pálido e esguio bem elegante em um
casaco preto, e um homem de barba preta, olhos verdes e pele
morena perecida com a de Aless. Um Sileni?
Um humano? Não, Zoran tinha mencionado um amante
lobisomem, não tinha? Mas e quanto a Ivo?
Ela e Veron cumprimentaram cada um deles, então Nendra
gesticulou para uma mulher que era sua cópia exata, com o cabelo
branco trançado como uma coroa sobre a cabeça.
— E esta é a minha primogênita, Yelena.
— Um prazer, Vossa Alteza. — Ela inclinou a cabeça para
Yelena.
Yelena sorriu, mas seus olhos castanhos permaneceram
impassíveis, e cada pedaço de seus couros marrons estava justo
em seu corpo. Um músculo se contraiu na mandíbula cerrada de
Yelena.
— O prazer é todo meu.
Rainha Nendra lançou um olhar fulminante para ela, em
seguida, olhou para uma menina sentada ao lado de Yelena.
— E a minha caçula, Karla.
Karla, com seu cabelo volumoso preso num rabo de cavalo
alto, olhou direto nos olhos de Aless, mesmo enquanto se escondia
parcialmente atrás do quadril de Yelena. Uma menininha corajosa,
que não tinha mais do que 5 ou 6 anos, isso se as crianças de elfos
sombrios envelhecessem como as crianças humanas. No entanto,
mesmo para uma criança, era magra. Quando Veron lhe contara
sobre a fome, ela não quisera acreditar, mas ele estava certo.
— Nossos convidados de honra chegaram — gritou Nendra,
virando-se para seu povo, com os braços erguidos. — Como Kral
salvou dois dos nossos volodari ontem, ele tem a honra do primeiro
desafio. Que os jogos comecem!
Gritos e aplausos irromperam da multidão, que tornaram a se
sentar nos bancos de pedra. Um músico no canto começou uma
batida num tambor grande e ressonante.
Carrancudo, Veron apontou para um espaço próximo, onde ela
se sentou entre ele e Gavri na superfície fria e dura, com Gabriella
logo depois e Riza no final do banco.
— Algum problema? — sussurrou para ele.
— Eu não sabia que alguém teria a honra do primeiro desafio
— disse Veron, balançando a cabeça.
Pelo menos não foi Yelena.
O banquete diante deles era colorido, com pratos fumegantes
de macarrão e salsicha colocados entre pães, verduras, frutas e
bolos de Silen. A mesa inteira estava lotada de comida humana.
— Por favor, me diga que tem manteiga aqui — murmurou
Gavri, dando um tapinha no braço de Gabriella. — Gabriella colocou
um pouco no meu mingau de castanha hoje cedo, e Sagrado
Ulsinael, ela mudou minha vida.
Aless riu e, em frente a ela, Cipriano disfarçava um sorriso
enquanto passava manteiga num pãozinho.
— Algumas coisas valem esperar dois mil anos — comentou
ele, com a voz profunda e grave.
— Eu vou precisar disso. Vou realmente precisar disso —
continuou Gavri, com os olhos fixos no bloco de manteiga.
— Com esta nova aliança, você pode comer toda a manteiga
que quiser. Só não engorde, hein? — disse Nendra, virando a
cabeça para Cipriano.
— Se eu não engordar, não será por falta de tentativas, minha
rainha. — Eles compartilharam um sorriso que teria sido doce se
Zoran não estivesse sentado entre eles, piscando preguiçosamente.
— Você poderia passar o, hã... o pão humano gigante? —
pediu Zoran para Veron, acenando com um garfo, e Veron deslizou
o pão através da mesa até ele, com os olhos semicerrados.
Yelena observou a troca com um olhar distante, seus olhos
passando sobre as montanhas de comida Sileni. Karla se sentou ao
lado dela com as sobrancelhas pálidas franzidas enquanto encarava
os pratos. Yelena colocou um pouco de macarrão e pão em seu
prato, sussurrando palavras em um tom encorajador.
Ao oferecer comida humana à irmã mais nova, Yelena tinha
que saber o que aquele tratado de paz significava. Ela tinha que
saber.
Enquanto Zoran rasgava um pedaço de pão e passava
manteiga sob o olhar avarento de Gavri, Kral se levantou e
caminhou para o ringue vazio. No centro, ele jogou as mãos atrás
das costas e encarou Yelena, que continuava sentada ao lado de
Karla.
Uma série de gritos e baques rítmicos de mãos batendo na
pedra ecoaram, até que Yelena olhou por cima do ombro para ele,
bateu em seu peito duas vezes com o punho e ficou de pé ao som
de uma torcida ensandecida.
— E assim começam os jogos — disse Veron, com um suspiro.
— Por que lutar durante uma celebração? — perguntou Aless,
em voz baixa. — Por que não apenas dançar?
— A luta pode ser como uma espécie de dança — disse Gavri,
com a boca cheia de pão com manteiga. — Quando dois guerreiros
sentem atração um pelo outro e possuem o mesmo nível de
habilidade, é... provavelmente o que vocês humanos chamariam de
sedução.
Engolindo o nó em sua garganta, ela assentiu. Elfos sombrios
escolhiam seus parceiros por sua força, procurando alguém
equivalente.
E nunca em sua vida ela estaria no mesmo nível que Veron em
combate.
Kral e Yelena circularam um ao outro, trocando brincadeirinhas
e façanhas, até que Kral desferiu um soco, e com seu físico maciço
era como se fosse o golpe de um touro. Yelena desviou o braço
dele, fazendo com que ele errasse, depois se esquivou de uma
cotovelada antes de acertar uma joelhada no estômago de Kral, em
seguida outra, no rosto.
Ela se afastou, sorrindo para ele, que esfregou a mandíbula.
Enquanto circulavam, ele a aproximava cada vez mais do círculo
branco, até que ela tentou desviar para a esquerda.
Ele a bloqueou, envolvendo-a em seus braços enormes, mas
ela bateu o topo da testa contra seu rosto. O aperto dele vacilou,
então ela agarrou o braço de Kral e o torceu e, com um pé nas suas
costas, empurrou-o para fora do ringue.
Gritos da torcida explodiram da multidão enquanto Yelena
erguia um punho, sorrindo.
Nada de sangue – Yelena com certeza controlara os socos,
não?
— Ele vai ficar bem? — sussurrou ela para Veron.
— Nada que as fontes termais não curem — murmurou ele.
Tocando em seu rosto, Kral voltou para a mesa, onde um elfo
sombrio em vestes cinzas e colar de osso correu para cuidar dele. O
tempo todo, Ivo e Cipriano e até a própria Nendra deram tapinhas
nas costas dele, enquanto outros gritavam palavras de apoio.
Quando eles se acalmaram, gritinhos ainda soavam através do
mar de mesas e o bater rítmico na pedra recomeçou. No meio do
ringue, Yelena estava de pé, com as mãos entrelaçadas atrás de
suas costas...
Até que olhou direto para ela.
Capítulo 16

Aless estremeceu.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe. Aquilo ia mesmo
acontecer. Na verdade, já estava acontecendo.
Ela só tinha que recusar e...
Ao lado dela, Veron ficou de pé, olhando para Yelena com uma
ferocidade inabalável, e bateu com o punho duas vezes contra seu
peito.
Yelena balançou a cabeça e olhou para ela.
Gavri ficou de pé e bateu no peito.
Ela balançou a cabeça outra vez.
Do outro lado da mesa, Kral se sentou, e, mesmo perdendo,
ele ganhou o respeito de sua família, amigos e súditos. Não havia
desonra em perder. Só em não conseguir encarar o desafio. E ela
não só desapontaria os elfos sombrios do Bosque Noturno, seu
próprio povo, mas também os humilharia na frente de uma rainha
aliada.
— Vossa Majestade — declarou Veron, voltando-se para a
rainha Nendra. — Peço vossa permissão para tomar o lugar da
minha esposa no ringue.
A rainha Nendra se inclinou para trás em seu trono e encarou
Yelena de maneira ameaçadora, que ainda olhava na direção de
Aless. A multidão tinha ficado em completo em silêncio, como se
trezentas pessoas tivessem parado de respirar.
— Os jogos são uma tradição, príncipe Veron — respondeu a
rainha num tom monótono. — O combate deve acontecer por
aqueles que recebem o desafio, ou não acontecer. — A rainha
pousou o olhar nela, abrindo os olhos de uma maneira sutil.
Até a rainha Nendra a convidava a recusar.
— Princesa? — perguntou a rainha Nendra. — Você deve
aceitar ou recusar — disse ela, lentamente. — A menos que você
tenha sido abençoada pelo Sagrado Ulsinael.
Abençoada?
O olhar da rainha baixou para sua barriga.
Ah.
Aquela era uma saída? Seria fácil mentir, a coisa mais fácil do
mundo, mas em poucos meses as chances eram de que todos
acabassem descobrindo. Ela poderia perder o respeito deles de
qualquer maneira.
No entanto, com todos aqueles elfos sombrios sentados em
torno de tantas mesas repletas de comida humana e sua rainha
celebrando um casamento entre uma humana e um elfo sombrio,
Yelena precisaria ser louca para machucá-la. E uma pessoa insana
não tentaria dar comida à sua irmãzinha de um jeito tão gentil.
Enquanto Veron continuava de pé, os punhos cerrados, seus
olhos se encontraram com os dela, intensos, cheios de dor, e,
mesmo sendo tão comprometido quanto sempre foi com a verdade,
aquela intensidade agora sugeria o oposto.
Mas e as consequências? Como isso refletiria em Veron, na
mãe dele, no povo do Bosque Noturno? E a mãe dele retaliaria pelo
constrangimento, como Gavri havia sugerido?
Mesmo que Yelena estivesse disposta a arriscar o bem-estar
de seu povo, o bem-estar de Karla, ela não estava. Não estava
disposta a arriscar o bem-estar de ninguém só para manter seu
próprio traseiro intacto, ainda mais quando Yelena tinha todos os
motivos para não machucá-la.
Engolindo o nó em sua garganta, ficou de pé.
— Vossa Majestade, não estou em um estado sagrado.
Uma onda de suspiros se espalhou pelo salão.
— Aless, não — sussurrou Veron, pegando a mão dela. — Por
favor.
Ela enrolou os dedos em punho e bateu duas vezes no peito,
mas o silêncio permaneceu.
— Vossa Majestade — gritou Veron, virando-se para a rainha
Nendra. — Eu não vou...
A rainha Nendra ergueu a mão.
— O desafio foi aceito.
Yelena fez uma reverência elaborada.
— Yelena — rosnou Veron. — Que Ulsinael me ajude, se
você...
Riza e Danika se levantaram para agarrar os braços de Veron
e o forçaram a se sentar enquanto ele se debatia. Até Zoran se
aproximou para ajudar e finalmente conseguiram levar Veron para o
banco, enquanto Zoran murmurava algo, garantindo a ele que tudo
ficaria bem.
Duas batidas. Um passo para fora do ringue. Isso era tudo o
que precisava.
Ela pegou a mão de Veron e lhe ofereceu um olhar que
esperava que fosse tranquilizador.
— Por favor. Eu tenho que fazer isso.
Seus olhos se fixaram nos dela, ardentes e furiosos, enquanto
ele arfava.
— Se ela tocar em você, Aless, eu... — Uma loucura dominou
suas feições antes que ele balançasse a cabeça.
Mas ela havia pensado bem nisso.
Yelena não era louca, e se um dia quisesse governar seu
povo, destruir essa paz e deixá-los passar fome não a ajudaria em
nada. O que eram armas nas mãos de soldados desnutridos?
Ela queria envergonhar a humana. Talvez até frustrar Veron.
Mas ela pagaria para ver, e com duas batidas ou apenas alguns
passos, tudo isso estaria acabado.
— Confie em mim dessa vez, Veron, tudo bem? — disse ela,
pousando uma mão no rosto dele.
Enquanto ele a encarava, ela acariciou seu rosto suavemente
antes de beijá-lo. Então, com um aceno para ele e outro para Gavri,
passou por cima do banco e se dirigiu ao ringue.
No centro, Yelena a esperava com um sorriso amargo, as
sobrancelhas arqueadas.
— Isso foi tolo de sua parte, humana.
Aless entrou no ringue, mas ficou à margem, perto o suficiente
para sair rápido, se precisasse.
— Eu me casei com um elfo sombrio e isso faz parte das
tradições do povo dele. Quero que eles sejam o nosso povo, e isso
significa me envolver. Participar.
— Palavras corajosas, humana. — Yelena assumiu uma
posição de luta, estreitando os olhos. — Mas o quanto você é
corajosa?
Dentro dela, tudo tremia, mas Aless manteve as mãos em
punhos e ficou firme. Ela não sabia lutar, de modo algum, mas isso
não se tratava de ganhar uma luta.
Ela faria o seu melhor para aguentar como Kral fizera, depois
se sentar e ser bem recebida de volta à mesa. Evitar um incidente
que pudesse afetar muitas pessoas.
Yelena a circulou, fingindo que atacaria algumas vezes, rindo,
mas Aless não se moveu. Não conseguia se mover. Fosse por medo
ou determinação, desde que a mantivesse de pé, ela não se
importava.
Um chute passou perto de seu rosto, apenas uns centímetros
distantes de seu nariz.
Seu coração ameaçava explodir em seu peito enquanto a
multidão vaiava Yelena, gritando seu nome em tons decepcionados.
Yelena andava em volta dela, rosnando, grunhindo e sibilando
algumas palavras. O golpe poderia vir de qualquer direção – por
trás, pelo lado, por cima, por baixo. Poderia atingi-la em qualquer
lugar, porém, mesmo que custasse sua vida, ela não conseguia se
mover.
Yelena deu a volta e parou em sua frente, seu rosto contorcido,
e Aless olhou rápido na direção de Veron, que se inclinou para a
mesa, ambas as mãos sobre ela, com Gavri, Riza e Zoran o
segurando pelos ombros. A intensidade de seu olhar a perfurou...
Com um golpe, Yelena tirou os pés dela do chão.
Aless caiu de costas na areia.
O ar fugiu de seus pulmões.
—Yelena! — gritou Veron do outro lado do salão, sua voz
ecoando.
Ela gemeu, tentando recuperar o fôlego, enquanto Yelena a
prendeu, segurando seus dois pulsos com uma mão, os dedos com
garras de sua outra mão prontos para um golpe.
— Não vai nem tentar lutar comigo? — rosnou Yelena,
tensionando aqueles dedos.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, ela não podia se me mover
nem se tentasse. Mas se Yelena a quisesse morta, então já estaria.
Aquilo se tratava de outra coisa.
— Eu não vim aqui para lutar com você — disse ela,
sustentando o olhar de Yelena.
— Então este pode ser o seu fim — provocou Yelena,
mostrando os dentes.
Estudando os olhos de Yelena, Aless balançou a cabeça de
leve. Se fosse assim, seu fim teria vindo assim que entrasse no
ringue, mas Yelena fingiu todos os seus golpes, tentando irritá-la.
Recusar o desafio teria demonstrado medo. E ter se encolhido no
ringue também teria. Talvez esse fosse o objetivo de Yelena. O
medo. E com isso ela poderia afirmar, por associação, que todos os
humanos eram covardes.
— Não — disse Aless, em voz baixa. — Sou sua aliada e
confio em você.
No entanto, mesmo dizendo essas palavras e fechando os
olhos, um frio a dominando, reivindicando-a, arrepiando todos os
pelos do seu corpo.
Talvez aquilo não fosse bravura, mas sim bravata. Talvez ela
tivesse calculado mal, fatalmente, e Yelena a mataria.
Ela não faria isso.
Um chiado cortou o ar, e um golpe soou, ela sentiu o impacto
ondulante através da areia e do chão sob sua cabeça.
Ela respirou fundo, tremendo, querendo que suas mãos se
movessem, mas Yelena segurava firme os seus pulsos.
A sombra sobre ela se moveu e o aperto de Yelena vacilou,
permitindo que se movesse um pouco.
Aless bateu o pé duas vezes na areia.
Quando abriu os olhos, Yelena ainda estava em cima dela, os
olhos estreitos, a testa franzida.
— Você... você não deveria estar aqui — rosnou Yelena, em
seguida, com uma respiração profunda, ela se afastou.
Minutos se passaram, ou horas, enquanto ela olhava para o
teto de pedra preta, esperando seus batimentos diminuírem e que
sua respiração voltasse ao normal. A luz do fogo cintilou reflexos na
superfície espelhada e as vozes começaram a se infiltrar. A multidão
comemorava.
Ela se apoiou nos cotovelos, seu cóccix e as costas doeram
enquanto limpava a areia, e havia um mar de rostos sorridentes e
gritos de encorajamento. Enquanto se levantava, ela conseguiu ver
Veron entre as outras pessoas, ainda sendo contido, seus olhos
selvagens enquanto olhava nos dela.
Yelena já estava no centro, sem sequer ligar para ela, então
Aless voltou para seu lugar na mesa, acenando em reconhecimento
enquanto outros lhe davam tapinhas nas costas e ofereciam
palavras gentis, e uma elfa sombria ofereceu para tratar de seus
machucados, mas ela recusou. Estava um pouco dolorida, só isso.
Gavri deu uma piscadela para ela, então ela, Riza e Zoran
libertaram Veron, que deu um pulo do assento.
Ele a pegou em seus braços, segurando-a firme, respirando
fundo sobre sua cabeça antes de baixar a boca para a dela. Seu
coração se acelerou de novo enquanto os lábios dele se
pressionavam fortemente contra os seus, o beijo apaixonado e
profundo, seu corpo tenso e inclinando-se para o dela.
Ele se afastou, rápido demais, e segurou seu rosto nas mãos,
estudando os olhos dela com os próprios, seu peito subindo e
descendo em respirações rápidas e ofegantes.
— Aless, isso foi...
— Um sucesso? — sugeriu ela.
— Perigoso — concluiu, calmamente, antes de puxá-la para
perto mais uma vez. — E um sucesso — acrescentou, e ela podia
ouvir o sorriso em sua voz.
Seus braços em volta dela não eram apenas quentes e
seguros, mas despertavam uma familiaridade amorosa nela, um
sentimento com o qual ela queria se envolver e nunca sair, dormir e
acordar, senti-lo todos os dias e todas as noites, pelo tempo que
quisesse, quando quisesse. Ela fechou os olhos e respirou nele, o
cheiro de couro e aquele riacho da floresta, e algo mais profundo,
primitivo, do qual ela não se cansava.
Logo os baques rítmicos e gritos soaram mais uma vez e,
quando ela se virou para o ringue, Yelena estava no centro, os
braços entrelaçados atrás das costas, encarando Veron.
— Ela escolheu o dia errado — rosnou ele sob a respiração,
em seguida, deu um passo para o lado e bateu com o punho no
peito. Com um último olhar para ela, deu a volta na mesa, estalando
os dedos enquanto caminhava para o ringue.
— Eles sempre lutaram em pé de igualdade, mas hoje,
escreva o que estou dizendo, quando ele terminar com ela, ela não
vai passar de um esfregão glorificado — comentou Gavri, com a voz
baixa em meio ao barulho ensurdecedor.
Ela se sentou, seu traseiro se rebelando, mas lhe daria um
banho quente mais tarde, como uma oferta de paz. Gavri deu um
tapinha em seu cabelo, sacudindo a areia, e ela sorriu em
agradecimento.
Enquanto Yelena e Veron circulavam um ao outro no ringue, os
olhares fixos um no outro, seus movimentos perfeitamente
sincronizados, aquilo era mesmo como uma dança. Yelena
respondia à ferocidade dele com uma sobrancelha arqueada e um
olhar travesso, e ele contra-atacava cada ataque dela, seus corpos
reagindo aos caprichos um do outro sem nem sequer se tocar.
Era como se tivessem feito isso centenas de vezes antes, mil
vezes, e soubessem tudo um sobre o outro, uma espécie de
intimidade natural que levava anos para ser construída, ou mais.
Yelena deu um soco e ele girou com um chute, do qual ela
desviou. Ela rebateu e ele pegou o pé dela, em seguida, deu uma
rasteira.
Mas as pernas de Yelena se fecharam ao redor dele e ela
arqueou as costas, as palmas batendo no chão enquanto ela
tentava derrubá-lo. Ele girou para o lado, apoiou uma mão no chão
e tentou passar outra rasteira baixa, mas ela pulou para desviar.
Eles conheciam os movimentos um do outro, cada um deles, e
fluíam um ao redor do outro como ventos em um ciclone.
Eram compatíveis.
Ela entrou em pânico, baixando o olhar para a mesa e seu
prato de comida meio consumido. Não, Veron não se importava com
isso, não com Yelena, mas cada instante que ela observava os dois
juntos apenas reforçava como pareciam perfeitos, que tipo de casal
ideal eram, e como ela nunca poderia ser igual a ele, como Yelena.
Nunca tão forte ou hábil. Nunca uma guerreira dos elfos sombrios. E
aquela dança, aquela sedução, seria algo que nunca poderia fazer.
Quanto ao que ele via nela... poderia ser suficiente? Poderia
mesmo bastar?
Ele a perdoara pela mentira?
Alguém passou por ela, era Zoran saindo do salão nobre. No
ringue, Veron e Yelena lutavam golpe por golpe, com o rosto de
Yelena iluminado num sorriso largo.
Yelena parecia confiante, mas Veron conseguiria lidar com ela.
Ele conseguiu dar pequenos golpes e, pouco a pouco, ele a
enfraqueceu.
Com Zoran no estábulo, tudo o que restava era levar Gavri até
lá, mas não sozinha, para que a rainha Nendra não suspeitasse de
nada. E nada aconteceria... Gavri sabia disso, mas ao menos eles
finalmente teriam a chance de conversar.
Ela se levantou.
— Acho que vou tomar um pouco de ar — disse ela por cima
da cabeça de Gavri para Gabriella e Riza. — Poderia dizer a Veron
que logo estarei de volta?
— Vossa Alteza — disse Riza, levantando-se. — Vou
acompanhá-la.
— Não precisa — afirmou ela, com um encolher de ombros
alegre. — Vou com Gavri. Estaremos de volta em breve. — Ela
acenou com a cabeça para Gavri, que se levantou também.
Riza olhou para as duas, em seguida, de volta para o ringue.
— Muito bem. Vou informar Sua Alteza.
Riza inclinou a cabeça e esperou. Veron e Yelena ainda
estavam lutando quando Gavri a acompanhou para fora do salão
nobre, para a ampla luz verde brilhante dos cogumelos
bioluminescentes.
— Obrigada por isso — sussurrou Gavri para ela, enquanto se
dirigiam para os estábulos, atravessando as calçadas pretas sobre
cachoeiras e profundezas escuras.
— Vocês não se veem há dois mil anos — respondeu ela,
baixinho. — Acredito que uma conversa privada é o mínimo que
merecem.
Gavri assentiu, passando devagar a ponta de um dedo no
lábio.
— A propósito, o que você fez lá...
Com um encolher de ombros, ela balançou a cabeça.
— Agora ninguém mais vai duvidar que meus punhos são
inúteis.
Gavri agarrou o pulso dela.
— A força não está apenas em seus punhos. A força depende
do seu conhecimento diante do perigo. É enfrentar um desafio com
coragem e dignidade. Sem fugir.
Ela queria fazer o que era certo pelo povo de Veron – agora
também o seu povo. Se Veron ainda duvidasse de seu compromisso
com ele ou seu povo, agora poderia deixar isso de lado. Ela faria o
que fosse preciso para protegê-los, para mantê-los seguros e para
manter a paz. O que quer que fosse preciso
— Na verdade, era algo de que eu precisava ser lembrada —
disse Gavri, baixando o olhar.
Aless inclinou a cabeça em direção aos estábulos.
— Então vamos encontrar Zoran.
Com um sorriso, Gavri a acompanhou até lá, onde um
relinchar baixo soou pelas portas abertas. Em uma baia próxima,
Zoran, forte, alimentava Noc com uma maçã.
— Estamos todos festejando com alimentos humanos — disse
Zoran, em voz baixa. — Então por que ele deveria ser deixado de
fora? — Ele olhou por cima do ombro com um sorriso pensativo,
lançando um olhar suave para Gavri.
Gavri ficou parada, mordendo o lábio por um longo momento
antes de expirar bruscamente, correr e jogar os braços em volta
dele. Ele a pegou em seu abraço, segurando-a perto.
— Sinto muito por nunca ter dito adeus — sussurrou ele,
descansando a bochecha na cabeça de Gavri. — Tinha tanta coisa
que eu queria dizer, mas...
Pigarreando, Aless caminhou até a baia de Noc e a abriu.
— Acho que vou levar Noc para uma caminhada e dar um
tempo para vocês dois.
Gavri olhou por cima do ombro com os olhos marejados e
assentiu.
— Vou encontrá-la daqui a pouco. Fique por perto, Vossa
Alteza.
— Ficarei — disse ela, sorrindo.
Enquanto Zoran e Gavri sussurravam um para o outro, ela
amarrou um arreio em Noc e colocou uma guia.
— Caminhar um pouco seria bom, não é? — sussurrou ela,
esfregando o nariz dele. — Vamos.
Noc bufou baixinho e a cutucou com o nariz antes de seguir
para as portas abertas. Do lado de fora, alguns cavalos estavam
encurralados em cercados cheios de terra, agrupados em torno de
cochos de água e ração, mas Noc a guiou para além deles... apesar
de ser ela segurando a guia dele.
Talvez uma mensagem não tão sutil de que ele não precisava
de uma.
Um túnel fazia fronteira com a área do cercado, não era tão
grande quanto o que eles tinham usado para entrar na Fortaleza
Central – não, Dun Mozg. Por que os Sileni o chamavam de
Fortaleza Central quando os elfos sombrios o chamavam de Dun
Mozg?
Ou Bosque Noturno, por falar nisso? Era Nozva Rozkveta.
Candelabros de chão esparsos iluminavam o túnel enquanto
eles entravam, lançando fogo em um milhão de cores brilhantes.
Ela suspirou.
Cada superfície estava incrustrada com veios de pedras
preciosas, brilhando em um caleidoscópio de cores, refletindo sua
cor vibrante uma sobre a outra, e sobre ela e Noc.
— Você é um romântico de coração, não é? — brincou ela,
baixinho, e ele lhe bateu com o rabo.
Ela acariciou seu pescoço, olhando para a beleza ao seu
redor, incapaz de decidir em que direção olhar. O túnel cravejado de
joias continuava em uma inclinação ascendente, e ela se aproximou
da borda para passar os dedos sobre os muitos tesouros.
Era estranho. Os elfos sombrios alegavam não valorizar essas
coisas e, ainda assim, se isso fosse verdade, com certeza já teriam
comercializado todas aquelas joias naquela altura, não é? Mas aqui
estavam, preservadas em sua beleza natural, uma alegria para
todos verem.
Noc balançou a cabeça. Ela agarrou seu arreio enquanto ele a
puxava para trás.
— O que foi?
O chão sob seus pés estremeceu. A poeira choveu de cima e
pedaços de escombros bateram no chão enquanto algo pesado caía
atrás deles. Gritos distantes soaram.
Noc a arrastou até a inclinação...
Veron.
— Aonde você está indo? — Ela puxou o arreio de Noc, sem
sucesso. — Você sabe uma saída? Precisamos voltar. Veron...
Seguro.
A palavra apareceu em sua mente, mais como uma sensação
do que uma voz, e o mundo desacelerou ao seu redor enquanto ela
olhava para Noc, realmente olhava. Ele olhava de volta para ela
enquanto a guiava, e aqueles olhos escuros... havia algo
reconfortante lá, naquele olhar deliberado, naquele piscar lento.
Sem dúvida ele não era apenas um cavalo.
Com um aceno resoluto, ela o acompanhou, o cheiro de ar
fresco da floresta se infiltrando enquanto as rachaduras e o colapso
das pedras ressoavam atrás deles.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, aquele túnel estava
desabando.
Noc parou e ela estendeu a mão, suas palmas encontrando
uma barra. Um conjunto de portas trancadas!
Grunhido com o esforço, ela puxou a barra, tentando levantá-
la, e ela subiu...
Um pouco mais, um pouco mais...
Finalmente fora dos ganchos, a barra caiu no chão. Ela
empurrou a pedra sólida diante dela enquanto o chão tremia, então
Noc também se inclinou contra a porta até que ela enfim começou a
se abrir.
Eles abriram caminho através da vegetação frondosa até um
bosque escuro de carvalhos altos, com a lua crescente lançando
seu brilho do alto. Um estrondo parecido com o anterior ecoou do
túnel, enquanto Noc os levava a uma clareira gramada.
Veron – ele estaria bem? E quanto a Gavri, Zoran, Gabriella e
Riza? Todos os outros? Veron ainda estava no palácio, ainda na
cidade, aonde ela não podia ir.
Ela agarrou o cetim sobre o peito, tentando recuperar o fôlego.
Os elfos sombrios viviam no subterrâneo há muito tempo e tinham
que ter algum tipo de abrigo.
— O que foi aquilo? — perguntou, e Noc apoiou a cabeça nela.
Um terremoto? Veron dissera que não havia terremotos, então
os escavadores tinham desaparecido. Mas se houve um terremoto
agora, o que isso significava?
— Pela misericórdia da Sagrada Mãe — sussurrou ela,
segurando a crina de Noc.
Ele relinchou, um som perturbador, e começou a recuar.
— Temos que voltar. — Ela foi em direção às portas, faria o
que fosse preciso...
Figuras escuras surgiram entre as árvores. Três delas, em
casacos longos, com espadas nos quadris e bestas nas mãos.
Com o pulso se acelerando, ela recuou e se pressionou contra
Noc.
Quando as três figuras entraram na clareira, a luz da lua
revelou que eram três homens. Homens Sileni.
— Ora, ora... Olha o que nosso geomante afugentou da toca
— disse um deles com um sorriso torto, um homem com uma
cabeça cheia de cachos pretos.
— Vossa Alteza — zombou o segundo, com uma reverência
exagerada. — O general ficará feliz em vê-la inteira.
O general. Tarquin Belmonte.
Eles se aproximaram, mas Noc deu um coice na direção deles.
Capítulo 17

Veron pegou o chute de Yelena e a empurrou para fora do ringue


quando um grande estrondo ecoou pelo salão.
As pessoas saltaram dos bancos e Yelena caminhou para o
lado dele.
— Escavadores? — perguntou ele, franzindo a testa enquanto
tentava analisar o som.
Yelena balançou a cabeça e olhou para Nendra.
— Mati? — gritou ela.
— Bruxas — respondeu Nendra, ficando de pé em seu lugar
na cabeceira da mesa, sua voz ecoando. — O centro de Dun Mozg
é feito de arcanir. Eles não vão chegar até nós.
Nenhuma magia poderia penetrar arcanir, então estariam
seguros aqui. Ele olhou para onde ele e Aless estavam sentados,
mas apenas Riza o encarou de volta, seu rosto sério. Onde antes
estavam Aless e Gavri, apenas dois espaços vazios permaneceram.
Enquanto o chão tremia, ele correu em direção a Riza, e ela
marchou para encontrá-lo.
— Onde está Aless? — perguntou ele, agarrando seu ombro
blindado.
— Saiu para tomar um ar e levou Gavri com ela — respondeu
ela, segurando seu antebraço.
Atrás dela, Gabriella se aproximou deles.
— Vossa Alteza, acho que ela pode estar nos estábulos.
— Nos estábulos? — Por que ela iria lá? Mas, quando ele
olhou para Nendra e seus concubinos, o consorte dela não estava à
vista. Zoran.
Ele marchou até Nendra e curvou a cabeça.
— Majestade, tenho que ir...
— Encontre sua esposa, Veron. — Com um aceno da mão, ela
o dispensou. Ele correu pelo salão com Riza e Gabriella, e todas
suas kuvari seguiram seu rastro.
Fora do salão nobre, a poeira caía do teto, e em todos os
lugares as pessoas corriam procurando coisas enquanto tremores
reverberavam através da rocha. Gavri e Zoran não deixariam nada
acontecer com Aless. Eles a manteriam segura. Sem dúvida, estava
tudo bem.
Mesmo sabendo de tudo isso, correu para os estábulos e não
parou até que atravessou as portas abertas. Cavalos guinchavam
em suas baias, mas Aless não estava à vista. Nem Noc.
Alguns cavalos circulavam inquietos no cercado, mas...
— Vossa Alteza — chamou Riza.
Ele seguiu o som de sua voz até uma pilha de escombros na
abertura de um túnel, onde Riza, Gavri e Zoran arrancavam detritos
da pilha freneticamente. Pelo Profundo, Escuridão e Sagrado
Ulsinael, se Aless estivesse... se ela estivesse sob os escombros...
Seu coração martelou em seu peito, e ele já estava correndo
antes que pudesse pensar. Ele jogou os pedaços de rocha para
longe dos escombros, cavando em desespero.
— Vossa Alteza — disse Gavri, abalada. — Ela saiu com Noc,
apenas por alguns minutos, e...
Ele jogou um bloco de escombros para o lado. Nenhuma
palavra importava agora.
— Só encontrem ela — explodiu, e todos eles cavaram através
dos escombros.
Sagrado Ulsinael, mantenha-a segura. Profundo e Escuridão,
cubra-a com sua proteção.
As mãos dele sangravam, mas ele não se importou. Que
sangrem, que quebrem, se isso significasse encontrar Aless a salvo,
mas não havia nada. Nada.
Finalmente duas kuvari limparam uma grande parte dos
escombros. Atrás dele, duas placas formavam uma passagem, e ele
correu para dentro.
— Irmão! — gritou Zoran atrás dele. — É muito perigoso! Ele
pode entrar em colapso se isso...
Escombros caíram atrás dele e vozes gritaram, mas ele se
espremeu entre as placas e seguiu um caminho até que finalmente
sentiu uma brisa noturna soprar.
Uma porta. Uma passagem.
Ele correu até ela e a atravessou, onde a vegetação rasteira
deu lugar a uma floresta esparsa na escuridão.
Um relincho alto – Noc –, seguido de um grito.
Aless.
Seu coração se apertou, e ele correu em direção ao som,
cortando caminho através da folhagem. Na clareira à frente, dois
homens arrastavam Aless, que chutava e gritava, em direção ao sul.
Noc prendeu os dentes no ombro do mais magro, provocando um
grito.
Logo à frente, um homem barbudo estava na grama, gemendo,
com uma besta jogada perto dele. Veron aproveitou para pegá-la
enquanto corria.
Aless bateu e chutou o Magro, que estava preso na mordida
de Noc.
— Mate logo o cavalo! — gritou o Magro para um terceiro, de
expressão carrancuda, que sacou a espada.
Veron mirou com a besta e disparou o virote, que voou dezoito
metros, direto no peito do Carrancudo, fazendo-o cambalear para
trás.
— Veron! — gritou Aless, batendo várias vezes no Magro, que
atingiu Noc no nariz e a arrastou para longe.
Ele se aproximou, agarrou o Magro pela capa e o jogou para
trás. Aless caiu no chão quando o Carrancudo arrancou o virote de
seu próprio peito e o golpeou com a espada.
O Magro se levantou e Veron puxou o homem para si, usando-
o como escudo e fazendo com que a espada do Carrancudo
atingisse o Magro na barriga.
— Atrás de você! — gritou Aless, tentando ficar de pé.
Ele chutou as costas do Magro, enviando-o com o Carrancudo
para o chão, enquanto o barulho de passos esmagando a folhagem
soava por trás dele.
Uma lâmina cortou seu braço antes que Veron pudesse se
esquivar, enquanto o Barbudo aproveitava sua vantagem sobre ele.
Um corte, ele se abaixou, um golpe, e ele desviou, pegou o braço do
Barbudo que segurava a espada e o puxou para frente, em seguida
enterrou as garras em seu pescoço.
Sangue borrifou em seu rosto quando Aless gritou e um
conjunto de braços apertou o pescoço dele. Ele arranhou a
armadura que cobria aquelas mãos e, por fim, agarrou a cabeça do
homem...
Veron ouviu um grito agudo, e o sangue espirrou sobre a
lateral do seu rosto.
Os braços o soltaram e ele saltou para longe, girando para
encarar o homem.
Um corpo bateu no chão.
Aless ficou de pé sobre o Carrancudo com olhos assustados e
arregalados, a respiração entrecortada. O virote da besta estava
enterrado na têmpora do Carrancudo, seu rosto manchado de
sangue e os olhos congelados na morte.
— Eu... eu... — gaguejou ela.
Ela matara um homem.
Ela matara um homem para ajudá-lo.
— Você está ferida? — Ele agarrou a parte superior dos
braços dela, mas seu olhar aterrorizado permaneceu fixo no homem
morto. — Aless — disse ele, sacudindo-a um pouco. — Por favor,
você está machucada?
Tremendo, ela olhou para ele, os olhos arregalados brilhando,
os lábios separados, e ela cobriu a boca com uma mão antes de
soltar um enorme suspiro. Ela começou a cair, mas ele a pegou,
segurou-a com força e a balançou suavemente.
— Eles iam me levar embora. — Ela deixou escapar, a voz
falhando. — Veron, eu estava tão... eu pensei que...
— Eu sei — sussurrou ele, acariciando de leve suas costas.
Era aqui que ela deveria estar, segura em seus braços. E nunca em
sua vida, em séculos, em milênios, ele permitiria que ela fosse
levada. Nunca. Se ela estivesse em perigo, ele a seguiria até o fim
do mundo, até o fim da própria vida. Porque era aqui que ele deveria
estar, também. Com ela.
Ela parecia tão macia, tão frágil, sua noiva humana, mas esta
noite ela matara um homem para salvar a vida dele. A mulher com
quem ele se casou era forte, mais forte do que ele jamais imaginara.
O plano dela de deixá-lo não importava. A mentira não
importava. Nada mais importava a não ser isto, ela, aqui. E ela tinha
que saber o quanto ele se importava com ela.
— Vossa Alteza! — berrou Riza ao longe, vozes e passos mais
silenciosos a acompanhando.
Ainda segurando Aless, ele olhou por cima do ombro. Riza,
Gavri, Zoran e o resto de suas kuvari pararam na clareira, dividindo-
se para verificar o perímetro.
— Livre-se desses três — disse ele a Riza.
Ela se aproximou, olhando fixamente para os corpos.
— Irmandade?
Ele assentiu.
— Batedores. Eles devem ter usado uma bruxa para tentar nos
forçar a sair, depois mandaram batedores para examinar a área e
encontrar uma maneira de entrar.
— Quando estes não voltarem para reportar... — começou
Riza.
— Nos certificaremos de que Nendra esteja preparada.
Riza apontou para Danika e duas outras kuvari, que se
aproximaram dos corpos.
— Sua Alteza está bem? — perguntou Gavri, dando um passo
à frente com Zoran.
Veron a fulminou com os olhos.
— Veron — sussurrou Aless. — Não foi culpa dela. Eu estava
do lado de fora, bem perto do estábulo e...
— Ela deveria ter ficado com você — rebateu ele.
— Mas o colapso nos separou. Se Noc não me levasse para
fora eu estaria... — Ela baixou o olhar enquanto Noc trotava até
eles.
Eu nunca conseguirei te agradecer o suficiente, meu amigo.
Noc balançou a cabeça.
No entanto, agora cabia a ele dizer a Nendra que a batalha
estava à sua porta, e a postura irredutível de Yelena sobre a aliança
entre humanos e elfos sombrios só cresceria em popularidade.
— Vamos. Vamos ajudar a rainha Nendra a se preparar o
máximo que pudermos. Estamos juntos nisso.
Ele conduziu Aless para além de Gavri e em direção ao túnel,
enquanto Zoran pegava a guia de Noc; ele teria que conduzi-lo por
outra entrada.
— Veron — sussurrou Aless enquanto estremecia.
— Você está bem? Está ferida em algum lugar? — perguntou
ele, desacelerando e olhando para ela.
— É a minha... — Ela corou.
Ele reprimiu um sorriso. Ele tinha visto quando Yelena a jogara
de bunda no chão.
— Eu sei o que vai te ajudar com isso.
Um longo mergulho nas fontes termais de Dun Mozg aliviaria
aquela dor... embora ele quisesse – e muito – levá-la na fonte
pessoalmente.
Um Canto de Pedra baixo e profundo veio do Portão, os
cantores pedindo para que a pedra permanecesse estável.
Duas kuvari correram à frente deles para o túnel, depois
gritaram que estava tudo limpo. Ele e Aless se arrastaram, enquanto
se espremiam pela passagem apertada para retornar ao coração de
Dun Mozg. As kuvari de Nendra já estavam lá, assim como os
Cantores e Pedra, os stavbali, que construíam, e um inzenyra, que
projetava.
— Veron — chamou Aless mais uma vez. — Acho que
devemos enviar uma mensagem ao meu pai.
Ele parou, observando o restante de suas kuvari sair do túnel.
— Ele não vai querer arriscar esta paz, não depois de todo
custo público que teve para obtê-la. E, se uma ameaça à minha vida
não for convincente o suficiente, podemos sempre ter certeza de
que ele faria de tudo para defender seu orgulho — acrescentou ela,
com calma.
— Mas seu pai não é um aliado direto de Dun Mozg —
respondeu ele. O Rei Macário arriscaria mesmo seus soldados e
sua reputação sem uma aliança formal entre Silen e Dun Mozg?
Aless assentiu.
— Você disse que elfos sombrios viajam entre os seus reinos
por meio dos túneis, não é?
— Sim.
— E se enviarmos uma mensagem para sua mãe também,
junto com a maior parte da nossa carga para Nozva Rozkveta por
meio dos túneis — disse ela —, e então seguimos viagem com
nossas tropas por terra e com uma carga leve, assim levamos a
Irmandade para longe de Dun Mozg?
Ele cruzou os braços, andando de um lado para o outro diante
do estábulo. Se ficassem e a Irmandade sitiasse o lugar, poderia
prejudicar a visão do povo sobre a aliança dos humanos com os
elfos sombrios, mas também poderia arriscar o acordo entre Dun
Mozg e Nozva Rozkveta.
Mas se eles fizessem o que Aless sugeriu, se pudessem ficar à
frente da Irmandade, isso significaria levar o inimigo a uma Nozva
Rozkveta já preparada e, num cenário ideal, eles teriam o suporte
do exército do Rei Macário. O que seria estrategicamente vantajoso.
E isso significava preservar os pontos de vista favoráveis tanto da
aliança com os humanos quanto entre Dun Mozg e Nozva Rozkveta.
E Mati nunca iria querer que ele trouxesse seus problemas
para o território de um aliado se isso pudesse ser evitado. Ela
apoiaria este plano.
— Gosto da ideia — pronunciou ele depois de um tempo e ela
esfregou as mãos uma na outra, mãos manchadas de sangue. —
Vou informar Riza e pedir que ela discuta os detalhes com Nendra.
Vamos partir antes da chamada do despertar. — Ele se aproximou
de Riza na entrada do túnel para fazer o que tinha acabado de dizer.
— E quanto a você? — chamou Aless, seguindo-o. — Nós?
Ele se virou para ela e segurou seus ombros de uma maneira
gentil. Seus olhos grandes e escuros olharam para os dele. Ela era
brilhante, inteligente, corajosa. Mas, esta noite, ela seria completa e
absolutamente dele para cuidar, de todas as maneiras que
precisasse, pelo tempo que quisesse, até que se sentisse segura de
novo.
— Você foi atacada hoje. Não vou sair do seu lado.
— Eu... Eu preciso saber... — Ela respirou fundo. — Você me
perdoou?
Sim, ele queria dizer na mesma hora. Foi o que sentira
momentos antes, de maneira tão clara e com tanta força quanto
uma fonte da vida.
Ela aceitara aquele casamento sob coação e escondera aquilo
dele desde que ele a conhecera em Bellanzole, e isso... tinha sido
um agravante. Todo esse tempo ele pensou que eles eram aliados,
até mesmo amigos, talvez algo mais, quando ela tinha sido forçada
a isso e planejava escapar do acordo desde o início. Ela teria ao
menos se despedido? Ou teria sido mais fácil sair com um sorriso
no rosto?
Mas aquilo tinha sido agravante, no passado. Eles
conversaram sobre isso e ela tinha se esforçado, de novo e de
novo, para provar seu comprometimento. Às vezes até mesmo
sendo imprudente, como hoje, no ringue.
E, embora ela tivesse escondido as circunstâncias dele,
quando ele pensava nisso agora, não tinha ressentimento em seu
coração em relação a ela. Nenhum. Aquela não fora uma traição,
maliciosa e cruel, para machucá-lo. Ela era uma humana assustada,
sacrificando-se em casamento com uma pessoa que ela nunca
conheceu, de uma cultura que ela nada sabia – ou, pior, recebera
informações equivocadas. Se ela fosse uma pessoa fraca, apesar
de tudo isso, teria se resignado.
Mas essa não era a mulher com quem ele se casou. Sua Aless
era forte. Quando alguém lhe dizia que não havia saída, ela dava
um jeito de criar uma. Ela não escolheu estar com ele porque seu
pai tinha dito para fazer isso. Ela tomou a própria decisão e, por
isso, ele a adorava ainda mais. Não havia traição em sua afeição
agora.
— Sim, eu te perdoo — respondeu ele.
Capítulo 18

Enquanto Aless observava Veron falando com Riza, todo o resto


parecia desbotar, desaparecer. Cores borraram ao seu redor, sons
ficaram tão abafados que não passavam de vibrações ininteligíveis,
e seu olhar não conseguia se desviar de seu marido, que passava
instruções – as instruções dela – sobre um assunto importante.
Ele a escutou, ouviu sua opinião, considerou sua ideia, e não
era a primeira vez que fazia isso. Ele também considerou suas
ideias em Stroppiata, sobre a entrada, quando lutaram contra as
harpias, sobre o santuário...
Teria sido fácil para ele ignorá-la, ir embora e não dar ouvido
às suas “intromissões” e dizer que ela não preocupasse sua bela
cabecinha com assuntos tão complicados, como Papà sempre lhe
dissera.
Mas para Veron...
Para Veron, ela não era apenas uma bela cabecinha. Ela era
alguém. Uma pessoa com ideias, com uma voz, com necessidade
de ajudar e contribuir, com opiniões válidas, e ele a ouvia.
E então, esta noite, ele a perdoou.
Enfim, o plano apressado que ela fizera antes do casamento
não estava mais entre eles.
Ela ainda correria atrás de seu sonho, mas não podia imaginar
de outra forma a não ser com Veron ao seu lado. Juntos, eles
dariam um jeito de construir a biblioteca algum dia. Ela iria propor
isso a ele, à mãe dele, a qualquer um que escutasse até que
conseguisse construi-la.
Após Riza prestar continência e caminhar para longe, Veron
olhou sobre o ombro para trás, para ela, o olhar caloroso e dourado,
e ela teve que se lembrar de piscar.
Ele caminhou de volta, todo aqueles 1,95 m de guerreiro, forte,
mortal, dela. O sangue manchava sua mandíbula, seu pescoço, sua
armadura de couro e uma parte de seus cabelos, mas ela não
queria nada mais do que envolver seu corpo em torno do dele e
beijá-lo até que ela não soubesse mais onde ela terminava e ele
começava.
Com um sorriso, ele lhe ofereceu uma mão e ela a pegou. Ele
esfregou um polegar suavemente sobre o sangue seco em sua pele.
— Vamos nos limpar.
Ele a guiou em direção aos aposentos deles através dos
caminhos de pedras pretas brilhantes, riachos barulhentos e
cachoeiras em cascata, brilhando com a luz esverdeada suave da
bioluminescência.
Um tremor fraco sacudiu a superfície da água e ela apertou a
mão de Veron.
— A magia não pode penetrar em Dun Mozg. — Ele pegou a
bochecha dela com a mão. — O reino é envolto em arcanir. Você
está segura.
Ela soltou um suspiro lento e profundo pelo nariz. Graças à
Mãe.
Veron pressionou um beijo gentil em sua testa, depois em seus
lábios.
Seus dedos ansiavam por ele, e ela se aproximou, os pousou
em seu peitoral amplo, deixando-os deslizar lentamente para a
dureza esculpida de seu abdômen.
O ritmo da respiração dele mudou, ficou mais profunda e lenta.
A terra tremeu mais uma vez e ela piscou, encontrando diante
dela olhos entreabertos e escuros de desejo. Ele traçou o maxilar
dela com os dedos e ergueu seu queixo, prendendo seu olhar. Os
lábios dela se separaram e um suspiro trêmulo escapou deles.
Alguns transeuntes sorriram para eles e Aless ficou muito
consciente de como aquilo parecia na frente de todos. E o que a
fazia sentir.
Veron inclinou a cabeça na direção de seus aposentos e ela
assentiu. Quanto mais cedo eles se limpassem de todo aquele
sangue, melhor.
Já no quarto, Aless tirou as botas e ele fez o mesmo com as
dele, então ela começou a desamarrar seu vestido ensanguentado.
Veron acendeu uma vela e depois foi para a bacia, onde mergulhou
as mãos e começou a esfregá-las e lavar o rosto.
Por baixo do vestido, ela usava uma chemise curta de challis
enfiada nas calças – suas calças manchadas, então ela as tirou
também. Ela caminhou até a bacia ao lado de Veron, lavou seu
rosto e depois suas as mãos e as dele, com o sabão de azeite e
alecrim que trouxera de Bellanzole.
Ela ensaboou as mãos dele também, tomando cuidado com as
garras, enquanto ele sorria.
— Tem o seu cheiro — disse ele, levando a palma da mão ao
nariz. — O que é isso? Essa flor?
— É uma erva. Alecrim.
Fechando os olhos, ele emitiu um som baixo, um grunhindo
que rolou por sua garganta, e o calor ondulou nela, fazendo todo o
seu corpo formigar. Era um som que ela nunca se cansaria de ouvir,
que agraciaria o melhor de seus sonhos – aqueles dos quais ela
esperava não acordar.
Ele colocou o sabão de lado, enxaguou as mãos e começou a
desamarrar sua armadura de couro. Ela também pegou as tiras e
acariciou as palmas das mãos sobre o couro liso, em seguida o
ajudou a se despir até que ele ficou apenas com suas roupas
íntimas, uma camisa e os calções. Havia um corte no braço dele, e
ela segurou sua mão, examinando o ferimento.
— Veron, você está ferido.
Com um aceno de cabeça e um sorriso, ele tirou a camisa e
mostrou para ela o bíceps. O corte já estava parcialmente curado.
— Nós nos recuperamos rápido — disse ele, embora ela tenha
começado a limpar a ferida com uma toalha de banho limpa. Ele
pegou a mão dela. — Estou bem, Aless. Sério.
Ele olhou para ela, os lábios curvados, e havia uma espécie de
diversão neles. Uma provocação.
Então ele acreditava que ela estava exagerando. Talvez
estivesse mesmo. Mas só pensar nele ferido, apenas imaginar isso,
a deixava tão preocupada que ficava sem saber o que fazer.
Pelo visto, ficar agitada não era a resposta. Ela sorriu para si
mesma e desviou o olhar para o peitoral nu dele, forte e macio, e o
sol preto tatuado lá.
— É lindo — sussurrou ela, acariciando-o com as pontas dos
dedos.
— Você terá um também, Aless — disse ele, com a voz
profunda e fluida, enquanto cobria a mão dela com a dele. — Se
escolher ir adiante com a segunda cerimônia em Nozva Rozkveta.
— Eu quero a segunda cerimônia. Veron, fiz aquele plano
desesperado antes de conhecê-lo. Agora que o conheci, quero
perseguir meu sonho com você. E eu quero me casar com você.
Quantas vezes e de quantas maneiras você quiser.
Ele se inclinou devagar, insuportavelmente devagar, então
puxou o seu queixo até o dele e a beijou, tomando-a em seus
braços. O cabelo dele passou pelo rosto dela enquanto Aless abria
a boca para ele, pressionava-se contra o corpo duro de Veron. Pela
misericórdia da Sagrada Mãe, ele tinha que saber, tinha que
entender que ela nunca o deixaria, nunca. Que ela o escolhera, com
tudo o que era e tudo o que tinha para dar, e que não importava o
que pensara antes de conhecê-lo.
A cada respiração, ela inalava o cheiro de floresta dele, e de
algo mais profundo, algo primitivo, do qual parecia que nunca teria o
suficiente. Veron.
A língua dele reivindicava sua boca em movimentos lentos e
sensuais que a faziam gemer, faziam seu coração se acelerar. Ela o
queria. Mais do que qualquer coisa ou qualquer um que ela já quis
antes, ela queria Veron.
Quero que saiba que estou aberto aos seus desejos e que não
deve temer a rejeição caso os expresse para mim, era o que ele
havia dito na noite de núpcias.
Ela engoliu em seco e, quando se inclinou para ele, contra o
comprimento duro e sólido dele, arfou. Seus pensamentos não
poderiam ser muito diferentes dos dela.
— Veron — sussurrou ela entre beijos. — Eu quero... Eu
desejo...
Ela fora ousada a vida toda, dissera coisas aos amantes que
fariam uma cortesã corar, mas aqui, agora, com ele, não conseguia
nem sequer se forçar a formar uma frase coerente, e que a Sagrada
Mãe a ajudasse, se ele risse dela agora, ela morreria num piscar de
olhos com o constrangimento.
Ele se afastou, apenas o suficiente para seu olhar dourado
carinhoso travar com o dela, e, em seguida, entrelaçou seus dedos
nos dela. A luz da vela cintilou, seu brilho quente iluminando a pele
de Veron. O coração dela disparou enquanto ele estudava seus
olhos.
— Eu quero fazer amor com você, Aless — sussurrou ele,
fazendo-a estremecer. — Quero conhecê-la, tão de perto quanto um
coração pode conhecer o outro, e eu quero que você me conheça.
Cada centímetro dela estava tenso e tremia em igual
proporção, e havia uma boa chance de ela estar prestes a pular em
cima dele, não importava o que dissesse em seguida.
— Você me quer, Aless? — Um sorriso provocante repuxou o
canto de sua boca enquanto ele olhava para ela com os olhos
brilhantes.
Ela assentiu, mais de uma vez, e jogou os braços em volta
dele, erguendo-se na ponta dos pés para beijá-lo, e ele tomou sua
boca, agarrou seu traseiro e a levantou. O local estava dolorido,
mas ela não se importou, não agora, não até que a necessidade
correndo em suas veias diminuísse.
Com sua boca nunca deixando a dele, ela prendeu as pernas
em torno dos quadris de Veron, deixando que ele a levasse para a
cama, onde tirou sua chemise enquanto ele despia os calções.
Em sua nudez, ele era a visão mais bonita que ela já tinha
visto – como se seu deus ou a deusa dela tivessem esculpido
aquele corpo musculoso no mármore até chegar à perfeição que
agora estava diante dela. Seu marido. Ele era grande, forte, dela, e,
quando ela acabasse com ele esta noite, Veron teria certeza disso
até mesmo nas partes mais profundas de seu ser.
Ele a observou, devorando-a com os olhos, seu peito subindo
e descendo com cada respiração poderosa, e ela teria dado
qualquer coisa, qualquer coisa, para saber o que estava pensando
agora, olhando para uma mulher humana, sua mulher humana.
Ele a pegou nos braços, reivindicou-a com os lábios, seus
beijos percorrendo o pescoço dela, enquanto ela enterrava as mãos
em seus cabelos longos e macios.
— Ensine minhas mãos a tocá-la, Aless — sussurrou ele, e
seu toque era de uma curiosidade gentil, desamarrando o cabelo
dela, deslizando os dedos através de seus cachos; acariciou
levemente os seus seios e, quando ela arfou, ele firmou o toque,
esfregou-os, beijou-os. Ele acariciou ao longo de seu tórax e sobre
sua cintura, até sua coxa e por todo o caminho até seu tornozelo,
que agarrou e pressionou contra os lábios. — Ensine meus lábios a
beijá-la — sussurrou ele, seus beijos flutuando ao longo de sua
pele, tão leves que ela se contorceu enquanto ele deslizava pela
parte interna da sua coxa, que tremia.
— Infinitamente — respondeu ela, baixinho, e ele sorriu antes
de puxá-la para a beirada da cama e voltar a beijar o seu corpo. Ele
beijou sua barriga, seu quadril, descendo cada vez mais até que os
lábios dele encontraram seu centro, fazendo-a ofegar. Ele lhe deu
prazer devagar, seus movimentos apaixonados e deliberados,
persuadindo sua respiração entre um suspiro e outro, enquanto as
mãos dela seguravam a cama em punhos apertados. A pressão
nela aumentou e aumentou, cada vez mais até que ela se contorceu
debaixo dele, ela estava perto, tão perto, a tensão crescendo até
que chegou ao topo, ao clímax, explodindo dela em gritos enquanto
ela estendia a mão para ele. — Por favor — pediu ela, arrastando-
se mais para cima da cama enquanto ele se posicionava por cima
dela, provocando-a com toques leves sobre suas coxas, por sua
barriga, sobre seus seios. As pontas de seus cabelos compridos
faziam cócegas em sua barriga antes dele beijar seu peito e
esbanjar seus pontos sensíveis com brincadeiras que a fizeram
arquear na cama.
Ela enterrou os dedos em seu cabelo, puxou-o até o rosto e
sua boca encontrou a dela de novo, reivindicando seus lábios
carentes. Enquanto ela se inclinava para ele, gemendo por uma
união... uma união celestial, maravilhosa, gloriosa, ele estava pronto
contra ela. Tão pronto, mas, quando ela se esfregou contra ele, algo
afiado deslizou por seu traseiro onde a mão de Veron a agarrara.
Apenas um arranhão, não foi nada de mais, ela não reagiu e
continuou o beijando, enquanto suas próprias mãos agarravam a
musculatura tensa das costas dele.
— Aless — sussurrou ele entre beijos. — Me ensine a amá-la
do jeito que você deseja ser amada.
Ela se moveu contra a dureza dele, ofegante, empurrando, e
pela misericórdia da Sagrada Mãe, se ele não a tomasse agora,
naquele instante, ela morreria de desejo.
— Me mostre — disse a ela, sua voz que já era grave ficando
uma oitava mais baixa.
Ele não queria machucá-la, talvez não quisesse se atrever a
fazer algo, a perder o controle – ele queria agradá-la, ser quem ela
precisava que fosse, dar o que ela necessitava. Assim como ela
queria fazer por ele.
— Fique de costas — sussurrou ela.
Com o olhar travesso fixo no dela, ele fez o que ela pediu, e
ela montou nele, segurou-o em seu centro, observou enquanto sua
boca se abria e o corpo inteiro ficava tenso enquanto ele sibilava
uma prece ao seu deus.
Com um suspiro, ela o tomou devagar, com todo o cuidado, até
que enfim eles eram completa e absolutamente um, e, apesar de
seus músculos tensos tremendo, ele a acariciou suavemente, suas
coxas, seus quadris, com perfeito autocontrole. Os olhos dele
seguiam cada parte que ele tocava, suas pálpebras pesadas e seu
olhar intenso, tomando-a com uma fome sem limites. Havia mil
coisas que ela queria contar a ele, mil memórias que queria
compartilhar, e outros milhões que queria viver com ele, aprender
com ele, criar juntos.
Ele não tinha medo de encarar o seu olhar, de ver a verdade
em seu rosto, assim como ela o observava, o afeto lá, o desejo, e
não apenas neste momento na cama, mas em incontáveis outros, e
por ela.
Ela soube naquele instante, olhando para aqueles olhos, que
ele nunca a trairia. Que ele sempre estaria lá para ela. E que a
ouviria e consideraria as suas palavras.
Enquanto ela se movia, prendeu o olhar dele, olhando no
fundo de seus olhos, que pareciam adorar e admirar, as
sobrancelhas franzidas. Uma excitação reverberou através da parte
inferior de sua barriga; a plenitude dura dentro dela era puro prazer,
um prazer insuportável, e a cada movimento ela tremia, ofegava, o
calor de cada toque dele acumulando em seu centro, que só queria
mais e mais.
A respiração lenta e pesada dele, rítmica e primitiva, começou
a se acelerar, e sua própria rendição estava lá, ao alcance, e ela o
tomou mais forte, mais rápido, perseguindo o clímax, perseguindo-o,
até que finalmente o alcançou, soltando um grito de prazer, uma e
outra vez, ondas de uma sensação quente cascateando através
dela, latejando através de suas veias, pulsando em seu núcleo.
Enquanto ele gemia, baixo e profundo, ela não parou, continuou até
que os olhos dele se fecharam e sua boca se abriu, precisando
reivindicar seu rosto com o dobro de determinação até que, com um
grunhido, o prazer dele se libertou e fluiu mais e mais a cada
respiração ofegante. O calor a preencheu, espalhando-se por cada
parte dela, despertado pelo seu toque, seu cuidado e o amor que
fizeram juntos.
Veron, o Veron dela, estava ali embaixo, observando-a com
estrelas nos olhos, e ela estendeu a mão para seu rosto,
acariciando a linha de sua mandíbula, seus lábios e escorregando
sobre a beleza esculpida de seu peito com o sol preto tatuado e seu
abdômen.
Com um sorriso, ele a trouxe para perto dele, prendeu seus
cachos atrás da orelha e a beijou. Ela pegou seus lábios entre os
dela, explorando aquela boca com a língua e provocando-o com
movimentos brincalhões, enquanto ele esfregava suas costas nuas
com um toque firme e sensual.
— Valeu a pena esperar? — murmurou ela.
— Você vale qualquer espera, Aless — respondeu ele,
sorrindo.
Veron a observava completamente sereno, e ela se inclinou
para beijá-lo outra vez.
— Então é assim que os elfos sombrios fazem as coisas? —
perguntou ela, com um sorriso. — Porque, se for, eu aprovo.
Ele soltou um riso do fundo da garganta e balançou a cabeça.
— Em essência, sim — respondeu, com a voz arrastada. —
Mas, entre nosso povo, tudo é um teste de força. Até mesmo fazer
amor.
Ela tentou imaginar imobilizá-lo, ofegante enquanto ele a
rolava, duelando entre os lençóis. Se era assim que as coisas
costumavam acontecer, então, com ela, ele fora cauteloso demais,
se submetera completamente aos seus caprichos, ao jeito dela de
fazer as coisas, e deixara que fizesse o que quisesse enquanto
resistia a seus instintos, que manteve sob controle. Ele estava tão
tenso, seus músculos ondulando, tremendo, e aquilo, na verdade,
era controle.
No dia em que ela o conheceu, ele apertou as mãos atrás das
costas, mas, quando ela deu um passo para longe, ele as revelou,
manteve-as ao lado do corpo, mostrando que não queria machucá-
la.
— Veron — disse ela, e ele apertou o abraço em volta dela.
Aless se deitou ao lado dele, aninhada na curva de seu ombro, no
seu calor, enquanto ele acariciava seu braço. — Como é onde você
mora?
— Nozva Rozkveta? — perguntou ele, baixinho. — É lindo,
repleto de vida. É uma fortaleza, mas você poderia passar horas
observando a água cintilante, as superfícies brilhantes...
— De pedras, certo? — perguntou ela, recebendo um aceno
de cabeça em resposta. — Vamos viver numa casa de pedra?
— Nos aposentos do palácio. Não muito diferente disso aqui,
na verdade — acrescentou ele, com uma risada. — Mas não se
preocupe, vamos nos certificar de ter algumas das suas coisas
humanas macias por perto.
Ela o cutucou e ele riu mais uma vez, depois acariciou a
cabeça dela com o nariz antes de beijá-la levemente lá.
— Acredite em mim, não tenho nada além do máximo respeito
pelas coisas humanas — disse ele num tom de voz carinhoso e
arrastado, e a colocou de costas contra a cama.
Não havia humor em seus olhos agora, apenas atenção
absoluta, e ele estendeu a mão para roçar os lábios dela com o
polegar antes de tomá-los com os dele outra vez.
As mãos de Veron a exploraram com movimentos gentis e
lentos, percorrendo o traseiro dela, então ele ficou rígido. Congelou.
Afastou-se.
Ele olhou para a palma da mão, olhou para ela e saiu da cama.
— Veron? — perguntou ela, deslizando para a borda da cama
e olhando para ele.
Ele esfregou o rosto com uma mão e começou a andar pelo
aposento, depois ergueu a outra.
Sangue.
Capítulo 19

Pelo Profundo e pela Escuridão, ele a machucou, de novo.


Enquanto o desejo reivindicava Veron, ele se lembrou de ser
gentil, de manter o toque leve, para evitar feri-la, mas aquilo havia
acontecido de qualquer maneira.
— Veron? — chamou Aless de novo, levantando-se da cama.
Ela tentou abraçá-lo, mas ele se afastou.
Ele balançou a cabeça. Não, ele não podia tocá-la desse jeito,
não de novo. Não com as garras.
— Está tudo bem — sussurrou ela, esfregando suas costas. —
Foi apenas um pequeno arranhão. — Ela beijou o ombro dele. —
Volte para a cama.
Cada elfo sombrio de valor tinha garras – afiadas, fortes e
prontas para a batalha. Garras com as quais ele a defendera mais
cedo naquela mesma noite. Se fossem quebradas, tomadas em
batalha, ou mutiladas, seria uma desonra. Um sinal de fraqueza.
Aless travou os braços ao redor dele por trás, seus braços
delicados e esbeltos, com sua pele macia e frágil. Sua amante, sua
parceira, sua esposa. Sua esposa humana.
Ele não correria o risco de machucá-la de novo, nem por toda
a honra e força do Profundo. Nunca mais.
Ele nunca poderia lhe dar luxuosas celebrações humanas, com
novas danças a cada temporada, teatro e ópera, moda e excesso.
Ele nunca poderia lhe dar uma legião de criados em sua casa para
mimá-la como faziam com ela no palácio. Nem poderia lhe dar um
lugar ao sol, no reino do céu, entre os de sua espécie, sob os raios
solares e a luz. Ele nunca poderia impressioná-la ou cortejá-la da
maneira que um homem humano faria.
Mas o mínimo que ele poderia fazer era nunca machucá-la.
Mantê-la a salvo. Era o mínimo.
Quando ele se aproximou da mesa em que estavam os
produtos de higiene pessoal dela, ela o soltou, e ele procurou entre
os objetos até encontrar a lixa de unhas.
— Veron, o que você está fazendo? — A voz dela tremeu.
— O que eu deveria ter feito antes do nosso casamento —
murmurou ele, depois começou a lixar as garras.
Ela agarrou a mão dele, as sobrancelhas franzidas.
— Mas a sua reputação não vai ser...
Ele levou a mão dela aos lábios e a beijou. Por toda a sua
vida, ele protegera sua reputação com ferocidade, nunca quisera ser
nada além de alguém digno de honra para Mati e Nozva Rozkveta.
Mas pelo Profundo, a Escuridão e o Sagrado Ulsinael, o que a
reputação dele importava comparado com o bem-estar dela?
— Eu não quero machucá-la, Aless, nunca — sussurrou ele,
baixando a mão dela. — E, se alguém questionar minhas proezas
de batalha, não precisarei de garras para derrotá-lo no ringue.
Ele fora treinado por Mati e Zoran, os melhores, e não
precisava de garras para lutar.
Voltou a lixá-las, tão curtas quanto as unhas humanas, até
mesmo mais curtas que isso. Elas voltariam a crescer daqui a um
mês, mas ele as lixaria de novo, e no mês seguinte, e no seguinte,
pelo resto da vida.
Recuando em direção à cama, ela jogou os cabelos longos e
escuros por cima do ombro e arqueou uma sobrancelha.
— Tem certeza de que precisa fazer isso agora?
Ele já havia dado vários passos na direção dela antes mesmo
de perceber. Balançando a cabeça, continuou lixando enquanto ela
ria. Era a primeira noite deles juntos e ela já sabia o poder que
detinha sobre ele, e não tinha medo de usá-lo. Se ela alguma vez
tirasse do baú aquela coisinha vermelha e translúcida da noite de
núpcias deles, ele estava quase certo de que não haveria nada que
não faria.
— Não sei se já vi alguém lixar as unhas tão rápido na minha
vida — provocou ela, pulando na cama e chutando as pernas de
forma brincalhona. Ela se recostou, apoiou um pé na cama e o
olhou por cima dos seios redondos e nus.
Ela abriu as coxas, apenas um pouco, e Sagrado Ulsinael, a
lixa de unhas caiu no chão.
 
Veron segurou a mão de Aless, levando-a pela passagem para
as fontes termais.
— Para onde estamos indo? — perguntou ela inclinando a
cabeça, apertando a faixa do roupão e olhando em volta. — Eu mal
consigo me mexer.
Ele bufou uma risada baixinho. Até aquele momento, eles
haviam passado a maior parte da noite na cama, e ele ficaria feliz
em passar o resto do tempo lá, mas Aless não poderia deixar Dun
Mozg sem visitar as fontes termais, ainda mais considerando que
tinham alguns dias de cavalgada pela frente.
— Depois daquela aterrissagem no ringue mais cedo, acho
que você vai gostar de para onde estamos indo. — Ele sorriu para
ela por cima do ombro.
O ar ficou mais agradável logo antes da entrada, o suave
barulho de água batendo nas pedras soando nas proximidades. Ele
a levou para dentro e ela ofegou.
O luar prateado espreitava no alto, refratando nos veios de
joias nas pedras, fluindo até o vapor que subia da água azul-
petróleo, vívida. As águas caíam da rocha para a nascente com um
som agradável e contínuo. Por sorte, o lugar estava vazio.
— Eu achei que você poderia precisar de um banho que...
Ela jogou os braços em volta do pescoço dele e o beijou,
depois o beijou mais uma vez... um beijo mais profundo e lento;
desamarrando a faixa do roupão dela, ele se moveu em direção à
água, tirando a toalha da cintura antes de entrar no calor calmante.
Ela deixou o roupão cair aos seus pés e – pelo Sagrado Ulsinael,
ele nunca se cansaria de vê-la nua – o seguiu, soltando um gemido
longo e baixo ao entrar.
Degraus largos desciam para as águas quentes e ele se
sentou em um, afundando até o peito na água, e ela afundou ao
lado dele.
— Podemos ficar aqui para sempre? — murmurou ela com os
olhos fechados, enquanto se acomodava nos braços dele.
— Podemos ficar aqui... por pouco menos de uma hora —
ofegou ele.
Com um gemido baixo, ela esfregou a bochecha no peito dele
antes de descansar a cabeça contra ele.
Para que o plano deles funcionasse, eles teriam que deixar
Dun Mozg antes do amanhecer. Naquela altura, teriam que viajar
tendo dormido quase nada, mas ele já planejava deixá-la dormir na
sela enquanto cavalgavam.
— Veron — disse ela, acariciando de leve seu abdômen. —
Podemos falar sobre Gavri?
Pigarreando, ele se endireitou. Não, eles absolutamente não
poderiam falar sobre Gavri enquanto ela o tocava assim.
Ela riu e colocou o braço em volta dele.
— Desculpa.
Ele revirou os olhos e suspirou.
— O que você quer falar sobre Gavri?
Por mais que ele se importasse com Gavri, as decisões delas
não foram muito brilhantes nos últimos tempos – primeiro ela o traiu,
depois decidiu se encontrar sozinha com Zoran, e até mesmo
abandonou seu dever de proteger Aless.
Aless ficou quieta por um momento, acariciando o peito dele
com a bochecha.
— Gavri me disse que, quando alguém trai sua confiança,
nunca mais consegue recuperá-la.
Gavri diria mesmo aquilo, porque, até recentemente, era a
verdade. Após perder Ata, ele nunca mais quisera passar por algo
parecido.
— Uma traição tem o poder de destruir tudo. E estou cansado
de perder coisas.
— Mas você me perdoou.
Sim, ele tinha perdoado. E aquilo não aconteceu através de
nenhum de seus próprios feitos – estava claro que seu coração fazia
escolhas melhor do que ele, e Veron não reclamaria disso.
Aless ergueu o rosto e olhou para ele, a palma pressionada
sobre o coração dele.
— As pessoas às vezes podem trair sua confiança, Veron, e
você pode perdê-las. Mas, se escolher não perdoar, você não
precisa se preocupar em perder essas pessoas... porque já as teria
afastado. Ainda é uma perda, mas você é o único responsável por
ela.
Ele piscou.
— Você quer mesmo perder Gavri?
Mesmo que Aless tivesse mentido, ele não queria perdê-la... e
por isso a perdoara.
Ele baixou o olhar para a água, observando o vapor subir. Mas
não era melhor perder alguém conscientemente, por sua própria
escolha, do que esperar por uma traição pior? Assistir enquanto eles
te enganavam e depois te abandonavam e, por não saber a
verdade, acabar impotente para fazer qualquer coisa? Não era
melhor fazer isso do que passar anos se perguntando: e se?
E se ele não tivesse deixado Ata sair naquele dia? E se o
tivesse seguido? E se soubesse dos planos de Ata?
Ele teria sido capaz de detê-lo? Salvá-lo? O pai dele estaria
vivo agora?
— Ela me contou o que aconteceu com o seu pai — sussurrou
Aless. — Você era apenas uma criança, Veron. Não foi justo, mas
não havia nada que pudesse ter feito.
Ele balançou a cabeça.
— Você está errada. Ele era o meu pai. Eu o amava e deveria
conhecê-lo melhor do que qualquer pessoa. Mas me deixei enganar.
— Naquele dia, ele aceitara o sorriso de Ata sem pensar duas
vezes. — Eu perdoei você, mas há uma razão pela qual não perdoo.
Eu consigo ver as pessoas, Aless, mas não as entendo. Posso
conhecer alguém por toda a minha vida e não fazer ideia de que vão
me trair. Posso estar apaixonado por uma pessoa e não saber que
ela está conspirando para matar a minha mãe. Quando se trata de
entender as outras pessoas, eu... nem posso confiar em mim
mesmo.
Se ele confiasse naqueles que o traíram, se os perdoasse, a
próxima traição poderia levar à morte de Aless? Ou de Mati? Ou de
Riza? Ou de alguma das irmãs ou dos irmãos dele? Do seu povo?
Ele sabia que Aless nunca o trairia de novo, que nunca o
machucaria ou a ninguém que ele amasse, então foi capaz de
perdoá-la. Devia ser esse o motivo.
Mas e os outros? Ele confiara em Gavri depois que ela mentiu,
pelo menos o suficiente para deixá-la continuar desempenhando
suas funções de guardiã, e o que aconteceu? Aless e Noc poderiam
ter sido enterrados sob escombros.
Havia uma razão para ele não perdoar os traidores. E não era
porque eram terríveis, ou egoístas, ou maus. Era porque não podia
confiar nele mesmo para saber as intenções deles. E isso podia
significar perder alguém que amava... outra vez.
Aless se virou para encará-lo, enquanto passava devagar seus
joelhos em torno dos quadris dele e se acomodava em seu colo. Ela
envolveu os braços em volta de seu pescoço e, por mais quente que
estivesse a água, o calor dentro dele não vinha da fonte, mas do
olhar suave dela fixo em seus olhos, enquanto ela se inclinava e
acariciava de leve os lábios dele com os seus.
— As pessoas que você ama vão desapontá-lo, Veron — disse
ela, carinhosamente. — Me decepcionaram e decepcionei outros
mais vezes do que posso contar. Mas ninguém é perfeito. Todos
cometem erros. Se você não os perdoar, a única diferença é que
eles cometerão os erros sem você na vida deles. É isso mesmo que
você quer?
Aqueles erros eram dolorosos. Mas nunca mais rir com Gavri?
Ou perdê-la, ou Aless, ou qualquer um dos seus entes queridos?
— E devo lembrá-lo que — disse Aless, dando-lhe outro beijo
leve enquanto se aproximava mais de seu corpo —, se não fosse
por seu perdão, provavelmente não estaríamos aqui, assim, agora.
Um bom argumento. Um argumento excelente.
— Você pode não estar afastando apenas o ruim, mas o bom
também. — Os lábios de Aless se entreabriram enquanto ela se
balançava contra ele, a água ondulando ao redor deles.
Só de pensar que ela se importava o suficiente com seus
amigos, e com ele, para abordar esse assunto era motivo o bastante
para ele considerar.
— Vou pensar nisso, prometo — respondeu.
— Ótimo — disse ela com um sorriso, e ele a segurou perto
enquanto a erguia na água. — Porque temos uma longa cavalgada
pela frente.
E alguns dias de viagem também.
Capítulo 20

Quando a chuva começou a cair no meio da tarde, Veron enfiou a


cópia de Aless de Uma História Moderna de Silen dentro do manto
dela, preso em seu cinto. Cavalgando montada com ele em Noc, ela
passara a manhã inteira lendo em voz alta desde que deixaram Dun
Mozg, e a viagem foi muito menos maçante com sua voz animada
narrando os vários contos.
Naquele momento ela estava dormindo, com a cabeça
descansando contra o braço dele, e a marcha de Noc tinha se
tornado ainda mais suave.
Você gosta dela, ele disse a Noc.
Assim como você, Noc respondeu.
Ele riu baixinho. Aquela afeição toda provavelmente não tinha
nada a ver com as maçãs que ela trouxera em sua bolsa e que
desapareceram de modo misterioso após a parada para descanso.
Mesmo durante aquele curto período de pausa, ela estava ansiosa
para aprender a usar o arco, e já conseguia até acertar o alvo... às
vezes.
— Você a mima — murmurou Yelena, cavalgando até ele,
escondida sob o capuz e a capa.
Ele suspirou. A rainha Nendra insistia que Yelena e algumas
de suas kuvari os acompanhassem a Nozva Rozkveta, dizendo que
não arriscaria que o filho da rainha Zara e uma princesa Sileni
fossem mortos no caminho de casa após saírem de seu reino.
— Ela foi atacada ontem à noite, caso tenha esquecido —
disparou ele de volta. — Por fanáticos e, antes disso, por você.
— Você sabe que minha mãe me ofereceria à Escuridão se eu
destruísse a paz — disse ela, bufando. Revirou os olhos. — Além
disso, não vamos fingir que isso é sobre o pequeno tombo dela no
ringue, ou os batedores humanos que você matou. — Ela examinou
os dois com um olhar severo. — Vocês foram vistos se agarrando
na via principal. Foi a conversa da caverna esta manhã. E então
você... — ela repuxou o lábio superior — desfigurou o seu corpo
dessa forma. — Ela inclinou a cabeça em direção às mãos dele. —
Nenhuma elfa sombria ficaria com você agora.
Aless roçou o braço dele enquanto dormia e ele a segurou
mais perto. Ele não queria uma elfa sombria, ou qualquer outra
mulher. A única que ele precisava estava bem ali, estaria sempre
com ele.
— Tudo o que importa é que ela me quer.
Yelena balançou a cabeça.
— Deixe-me adivinhar, você desaprova — concluiu ele.
— Bom, ela não é uma elfa sombria — disse ela, após soltar
um barulho de escárnio. Os olhos de Yelena se fixaram em Aless. —
Mas ouvi dizer que ela matou um dos batedores ontem à noite.
Enfiando um virote de besta na cabeça dele, com a mão. — Ela
soltou um assobio baixo. — Ela pode não ser uma guerreira, mas
também não é a típica salamandra assustada. Mesmo assim, ainda
não gosto dela.
Vindo de Yelena, aquilo era um elogio e tanto.
— E não acredito em uma palavra sobre esses feitos humanos
dos contos dela — acrescentou, com um grunhido. — Exceto as
partes sobre as pessoas morrendo e fugindo.
Ele disfarçou um sorriso. Então ela estava ouvindo à leitura de
Aless.
Com a chuva caindo, aquilo atrasou o dia de viagem pelo reino
do céu, contudo, pelo menos nos túneis, sua caravana de carga não
seria retardada por ela. Sem dúvida os alimentos e suprimentos de
Bellanzole e Stroppiata chegariam em Nozva Rozkveta bem antes
dele. Ele e Aless também enviaram Gabriella com Danika para
entregar a mensagem ao rei Macário; com alguma sorte, elas
viajariam pelos túneis o mais longe que pudessem e ficariam fora do
alcance da Irmandade.
Sem carruagens e cargas, seu grupo cobria uma boa distância
mesmo na lama, movendo-se rápido o suficiente para se manter à
frente do exército da Irmandade enquanto os levava para longe de
Dun Mozg. Ele e Yelena fizeram questão de deixar para trás rastros
que fossem fáceis de encontrar, então, se a Irmandade o queria, ou
queria Aless, os seguiriam.
Apesar de viajarem mais rápido, ele e o resto do grupo ainda
tomavam precauções – como apenas descansos curtos e dormir em
turnos. Batedoras patrulhavam para ter certeza de que eles não
fossem surpreendidos por uma equipe na frente deles – Riza estava
fora naquele instante com Kinga fazendo exatamente isso. Com
alguma sorte, estariam em Nozva Rozkveta na noite do dia
seguinte.
Ao contrário de Dun Mozg, no entanto, Nozva Rozkveta não
era envolta em arcanir. Embora aninhada em um enorme veio de
anima, sua única proteção era que qualquer magia usada ali faria a
bruxa correr o risco de uma convergência – ou o que as bruxas de
hoje se referiam como “fureur”, a fúria, de acordo com Aless. Tocar
na força vital da Terra, sua magia inata, significaria a morte certa
para uma bruxa. Isso e o perigo de acabar perturbando o anima da
Terra.
Aquilo bastaria para mantê-los longe. Pela graça do Profundo,
da Escuridão e do Sagrado Ulsinael, tinha que bastar.
Gavri cavalgava perto dele, e ele havia prometido que pensaria
em perdoá-la.
Uma traição tinha o poder de destruir tudo, mas afastar alguém
era o mesmo que destruir tudo com as próprias mãos. Ele não podia
prever as ações dos outros com precisão, não podia explicar erros
ou traições, mas, quando se tratava de pessoas a quem amava,
queria estar lá ao lado deles nos momentos bons e ruins. E, quando
eles cometessem erros, queria estar lá para ajudá-los, apoiá-los,
salvá-los se pudesse, em vez de se isolar, se afastar e acabar
sozinho.
Nem todas as inverdades possuíam maldade por trás. Ele
estava cansado de perder as pessoas, mas isso significava que
precisava parar de afastar a todos.
— Gavri — chamou ele, e ela olhou por cima do ombro, sua
trança molhada balançando, e diminuiu a velocidade. — Eu... queria
dizer que sinto muito. Eu exagerei.
Os olhos de Gavri se arregalaram, e ela olhou para Aless
antes de encontrar os olhos dele outra vez.
— Você não precisa se desculpar comigo, Veron. Eu entendo.
Ele respirou fundo e passou os dedos pela crina de Noc.
— Não, eu preciso me desculpar. Quero fazer isso — disse
ele. Ela balançou a cabeça. — Quase deixei uma discussão destruir
nossa amizade. Pode me perdoar?
Com um sorriso sutil, ela abaixou a cabeça.
— Já está perdoado. E me desculpe por deixar as coisas com
Zoran interferirem nos meus deveres. Não acontecerá de novo.
O pensamento de Aless sob os escombros fez seu corpo ficar
rígido, mas ela estava bem ali, em seus braços. Estava tudo bem.
— Como foi entre você e Zoran? — perguntou.
Gavri revirou os olhos e soltou um suspiro.
— Eu tinha decidido trancar meu coração, para mantê-lo do
lado de fora. E então, em Dun Mozg, ele me disse que eu era o
amor da vida dele, que foi muito difícil ter que partir, que não podia
suportar me dizer adeus, e que nunca poderíamos ficar juntos.
O que era verdade. A Entrega de Zoran a Nendra selara a
aliança entre Nozva Rozkveta e Dun Mozg. Enquanto Nendra
permanecesse no poder, Zoran tinha que ficar ao seu lado como rei-
consorte, se quisesse proteger essa aliança. Zoran e Gavri tinham
se amado – ainda se amavam – e nunca poderiam ficar juntos.
E eu posso ficar com Aless. Em seus braços estava tudo o que
ele nunca soube que queria, mas, se tivesse sido um pouco mais
habilidoso, um pouco mais talentoso com a espada, poderia ter sido
o mais forte de seus irmãos e feito a Entrega com Nendra, em vez
de Zoran. Essa era uma reviravolta injusta do destino que ele sentia
no fundo do seu ser, que ele poderia ter Aless em sua vida,
enquanto Zoran não poderia estar com Gavri.
— Eu não tenho nenhum conselho quanto a isso. Só que
queria muito que a Escuridão tivesse lançado suas sombras nas
vidas de vocês de uma forma diferente.
— Servimos à vontade de Sua Majestade — disse Gavri com
um olhar abatido, dando de ombros, desanimada.
Ao olhar para ele por cima do ombro, Gavri levantou um
punho.
O grupo inteiro parou. Ela gesticulou para um ponto atrás
deles, onde duas amazonas cortavam o chão lamacento em um
galope constante. Riza e Kinga.
Elas continuaram cavalgando, e Riza desacelerou o cavalo
para um trote, aproximando-se de Veron.
— Vossa Alteza — disse ela, entre respirações ofegantes e
cansadas. — Tem uma tropa avançada. Menos de meio dia na
nossa retaguarda.
Eles apostaram na probabilidade de que a Irmandade iria
segui-los, mas uma equipe avançada tornava a situação muito mais
perigosa.
— Nesse ritmo, vão nos alcançar amanhã à tarde —
acrescentou Kinga, ofegante.
— Mande Gavri e Valka ficarem de olho neles. E quanto a nós,
não faremos mais paradas longas — rosnou ele. Eles não podiam
arriscar. Se fossem localizados e o exército da Irmandade os
alcançassem... Ele balançou a cabeça. — Vamos acelerar o ritmo.
Riza deu um aceno curto.
— Vocês ouviram Sua Alteza — gritou ela para o grupo. —
Mexam-se. Agora!

Aless acordou dos seus sonhos com emaranhados de roseiras


e os toques de Veron. Enquanto piscava e despertava, o sol já
estava se pondo e ela ainda estava na sela com Veron. Aless olhou
em volta procurando por Gabriella, então se lembrou: Gabriella fora
com Danika através dos túneis feitos pelos escavadores em direção
a Bellanzole, com cartas para Papà, Bianca, Lorenzo e até mesmo
para duchessa Claudia, que seria entregue no caminho. Sagrada
Mãe, mantenha-a em sua luz.
— Está com fome? — sussurrou Veron em seu ouvido, sua voz
rouca e áspera. Ele lhe deu um pouco de pão e queijo que
trouxeram de Stroppiata.
— Obrigada — murmurou ela, mordiscando a comida.
Quando foi a última vez que ele dormiu? O ritmo só vinha
acelerando desde a notícia da equipe avançada, e aquilo estava
afetando a todos. Eles tinham que ficar à frente, mas não
aguentariam manter esse ritmo por muito mais tempo. Veron não
aguentaria por muito mais tempo.
Ela tinha acordado algumas vezes durante a viagem, quando
eles fizeram paradas curtas para alimentar e dar água aos cavalos,
permitir que descansassem um pouco e trocar de montaria, mas
Veron lhe disse todas as vezes para que voltasse a dormir. Ela
estava dolorida de passar tanto tempo na sela e cansada, mas
como não faziam pausas longas desde o dia anterior, ele tinha que
estar exausto.
— Há alguma maneira de eu ficar acordada e você poder
dormir?
— Estamos quase chegando. Só um pouco mais, e então nós
dois vamos descansar um pouco. Prometo — disse ele, beijando a
bochecha dela.
O otimismo dele era comovente, mas ela podia ouvir a
exaustão se arrastando em sua voz grave. Ele estava tão cansado.
Mais do que cansado.
Ao lado deles, Riza se aproximou em seu cavalo.
— Vossa Alteza... — A voz dela falhou.
Riza não era de medir as palavras, pelo menos não no pouco
tempo que ela a conhecia. Isso tinha que ser uma má notícia.
— O que foi? — perguntou Veron, ficando tenso.
— Gavri e Valka já deveriam ter voltado da ronda, Vossa
Alteza. — As palavras soaram baixas, incertas.
Talvez elas tivessem se perdido. Talvez um dos cavalos delas
tenha perdido uma ferradura. Ou talvez...
— Elas poderiam ter se perdido?
— Não aqui. Conhecemos bem essa floresta, às vezes nossa
caça ou exploração nos traz até aqui — disse Veron, respirando
fundo.
O que significava...
Temos que procurá-las, ela quis dizer.
Mas era a decisão errada e ela sabia disso, no fundo de seus
ossos. Se a Irmandade as tivesse capturado, então queriam que
Veron fosse procurar por elas. Queriam capturá-lo, e talvez capturar
ela também, e fazer sabe-lá-o-que com todos os outros.
Ela e Veron precisavam negociar pela libertação delas, só
que... não tinham nada além de si mesmos para oferecer. E Gavri e
Valka só teriam valor para eles até Tarquin obter o que queria:
vingança por sua irmã, Arabella.
A rainha Zara estaria numa posição melhor. Mesmo assim...
— Tem que haver algo que a gente possa fazer, Veron —
sussurrou ela. — É de Gavri que estamos falando.
— Gavri e Valka sabem o que significa ser kuvari — disse Riza
com um tom severo, mas não cruel. — Elas estão preparadas para
dar suas vidas pelo nosso príncipe e por Nozva Rozkveta.
— Não precisa chegar a esse ponto — respondeu Aless,
contorcendo-se no aperto de Veron.
— Não há outras opções — declarou Yelena ao lado deles. —
Não estamos em posição de negociar e os humanos estariam à
espera de uma missão de resgate se tentássemos algo assim.
Por mais que quisesse argumentar por Gavri, nada do que
Yelena disse estava incorreto.
O aperto de Veron nas rédeas se intensificou e, ao lado deles,
Noc, que estava descansando sem o peso dos dois, bufou e sacudiu
a cabeça.
Veron assentiu.
— Não mandaremos mais batedoras. Nós iremos para Nozva
Rozkveta, então tenho certeza de que minha mãe enviará um
mensageiro para tentar negociar.
— É a decisão certa — disse Yelena.
Não parecia, mas serem capturados ou se oferecerem como
troca não ajudaria Gavri, ou Valka. Eles teriam que lidar com a
situação com cuidado, junto à rainha Zara.
Riza passou as ordens de Veron e a cavalgada acelerou o
ritmo, levando os seus cavalos ao limite. Noc correu ao lado dos
outros, estimulando-os, e Aless não podia deixar de olhar ao redor
por cima dos braços de Veron às vezes, procurando por Gavri e
Valka no horizonte escuro.
Depois de horas cavalgando, a noite já havia caído, e ela mal
era capaz de distinguir a própria mão na frente de seu rosto, muito
menos o caminho adiante, mas Veron e o resto das kuvari seguiam
o caminho com confiança. Ela queria perguntar a ele sobre isso,
mas seu traseiro e suas coxas estavam tão doloridos, seu corpo
inteiro estava tão sensível, que ela não podia nem sequer dizer uma
palavra. Seus pensamentos permaneceram em Gavri, e ela orou
para que ela e Valka retornassem em segurança, e rápido.
Suas pálpebras estavam pesadas quando um brilho fraco
surgiu à frente. Como vaga-lumes, luzes piscavam na escuridão,
fluindo em voltas e giros preguiçosos. Fadas.
Um cheiro fresco e sedutor encheu o ar – rosas – e a
densidade do aroma a cercou, tão poderoso que ela poderia fechar
os olhos, erguer a mão e tocar as pétalas aveludadas. Um sonho –
não, uma alucinação?
O brilho das fadas iluminava suavemente as videiras que se
entrelaçavam em ruínas antigas, subiam a pedra, reivindicando-a
num verde exuberante – era um antigo pátio –, e flores vermelhas
brilhantes se espalhavam em meio a uma densa vegetação, rosas
tão grandes, tão vívidas, como se tivessem saído de seus sonhos e
fantasias. Em plena floração, misteriosas e adoráveis, as flores
exalavam o perfume mais fascinante no ar puro. Tão emaranhadas,
selvagens e, ainda assim, cintilavam em seu brilho, deslumbrantes,
com uma beleza de outro mundo.
As únicas rosas que ela já vira que se aproximavam daquela
maravilha foi no palazzo, durante o casamento, mas não brilhavam
como estas.
— Veron — ofegou ela, sua voz não era mais do que um
gemido fraco e cansado. — Essas rosas...
Calor encontrou o topo de sua cabeça na forma de um beijo, e
o abraço apertado dele a puxou para mais perto.
— Levamos muitas dessas rosas para o casamento em
Bellanzole, mas, uma vez cortadas, elas começam a perder o brilho.
Elas brilham aqui, selvagens e livres, porque é aqui onde
pertencem, onde podem prosperar.
Enquanto se aproximaram, ela arfou. Poderia admirar a beleza
delas a vida inteira e nunca se dar por satisfeita. Aquelas rosas não
eram como os jardins aparados e bem cuidados da nobiltà, mas de
uma beleza caótica e sem limites que nada tentaria conter.
À frente, arbusto dessas rosas se entrelaçava numa enorme
massa, cheia de espinhos e de tirar o fôlego.
— Nozva Rozkveta fica sobre o maior veio de anima do
mundo, a força da qual toda a vida e a magia nascem. O Bosque
existe aqui por tanto tempo quanto nós, cercando e protegendo
nossa casa de todos os que nos fariam mal, permitindo a entrada
apenas de amigos da nossa espécie.
Era como se a própria terra protegesse o povo de Veron –
agora o povo dela –, consagrando-os e os livrando do perigo.
Logo, Veron parou a cavalgada e todos desmontaram. Ele a
ajudou a desmontar e se firmar em suas pernas doloridas, e ela
precisou dar alguns passos bambos enquanto se segurava nele
antes que pudesse sequer se mover direito.
Eles se aproximaram de uma parte mais densa do Bosque,
com roseiras emaranhadas e retorcidas em uma mistura caótica de
talos e rosas, mas Veron não parou. O emaranhado se abriu para
ele, remodelando-se em uma colunata arqueada pela qual ele
entrou, sem hesitação. Ao seu redor – nos lados, acima e até
mesmo abaixo –, as videiras se retorciam, vivas, até que se
estabilizaram, enquanto ela o acompanhava e os outros os seguiam
com Noc e os cavalos.
No final da colunata do Bosque, o caminho baixava para uma
grande porta de pedra, antiga e maciça, gravada com runas. Ainda
segurando sua mão, Veron se aproximou da porta e bateu um ritmo
nela, a batida Nozva Rozkvetana.
A porta maciça se abriu, arrastando-se contra sua estrutura de
pedra, revelando um túnel por trás dela e duas kuvari em armadura
de couro.
— Vossa Alteza — saudaram elas, em uníssono. — Nozva
Rozkveta lhes oferece as boas-vindas.
Ele lhes agradeceu enquanto entrava, acariciando a mão dela
com um toque carinhoso, e o resto da cavalgada o seguiu.
O túnel estava escuro, mas no seu fim havia um brilho cor de
lavanda. Quando eles se aproximaram, Veron levou a mão dela para
os lábios e pressionou um beijo gentil em sua pele.
— Bem-vinda ao lar, Aless — sussurrou ele enquanto
entravam num espaço amplo.
Cogumelos bioluminescentes escalavam as paredes das
cavernas, banhando o reino abaixo naquela luz lavanda, junto ao
brilho dos vaga-lumes brancos e videiras brilhantes do Bosque se
espalhando até onde os olhos podiam ver.
Ela ofegou, olhando para todos os lugares ao mesmo tempo,
para as habitações brilhantes de pedras pretas espelhadas e os
riachos cintilantes serpenteando entre caminhos luminosos. No
horizonte, campos de brotos verdes espreitavam do solo de ébano.
— Co-como eles podem crescer aqui, quando...
Veron sorriu para ela, seus olhos dourados cheios de carinho.
— O Veio. Ele traz a vida para tudo aqui. Para todos.
Grupos de cantores retocavam estruturas inacabadas, seus
tons impossivelmente graves, suas canções diferentes de tudo o
que ela já tinha ouvido. Transeuntes paravam para fazer reverências
e oferecer saudações alegres.
Veron acenou com a cabeça em direção às torres escuras e
altas, atingindo o pico acima de um edifício como um conjunto de
cristais.
— Eu gostaria que tivéssemos tempo para parar na fonte da
vida primeiro, mas precisamos contar à minha mãe o que
aconteceu.
— Vamos trazer Gavri e Valka de volta primeiro — concordou,
assentindo. Mais tarde poderia perguntar o que era uma fonte da
vida.
Riza se juntou a eles enquanto caminhavam em direção ao
palácio, e todos os músculos do corpo de Aless se rebelaram. A
longa viagem fora difícil, dolorosa, mas eles conseguiram chegar
antes que a Irmandade pudesse alcançá-los.
Nozva Rozkveta teria tempo para se preparar para o ataque, e
pela graça da Sagrada Mãe, ela esperava que a comida tivesse
chegado pelos túneis.
Quatro kuvari que guardavam a entrada do palácio abriram
espaço e Veron entrou e seguiu direto pelo corredor principal para
um conjunto de portas enormes.
Duas kuvari abriram as portas e, dentro, o grande salão se
alargava, massivo, as videiras florescidas escalando as suas
paredes, o teto, e as estalactites, adornando tudo em um verde e
vermelho das rosas que irradiavam um brilho vívido.
Aquele lugar respirava vida, era repleto dela.
No fundo do salão, uma mulher majestosa se sentava em um
trono de cristal translúcido, com picos espalhados como um leque
atrás dela. Ela tinha um rosto em forma de diamante, elegante e
suave, a pele um pouco mais clara que a de Veron, e cabelos
platinados volumosos caindo em cascata, seus cachos seccionados
com contas, uma tentativa frustrada de conter as madeixas
selvagens. Suas roupas eram um manto e túnica feitos da melhor
seda que ela já vira, e as importações de Papà não custavam
pouco. Seus pés estavam descalços e tinham garras, as pontas
mais curtas do que as bem afiadas de suas mãos, onde usava um
par de braçadeiras de arcanir.
Cada parte dela era ágil, elegante, e, mesmo enquanto sua
perna cruzada balançava levemente, o movimento tinha uma graça
felina, e ainda assim seus braços e ombros eram musculosos,
tonificados. A rainha se sentava ao trono agora, mas seu físico
deixava claro que poderia imobilizar qualquer um na pedra negra
reluzente em segundos.
Seus olhos eram de um âmbar caloroso, gentis e plácidos, e
ao mesmo tempo brilhavam com inúmeras facetas de sabedoria,
como joias tão profundas que aqueles olhos podiam ser infinitos.
A mãe de Veron. A rainha. Rainha Zara.
Aquela era a mãe do seu marido e, entretanto, ela chegara
com Veron em roupas amassadas, sujas, encharcadas de chuva e
suor, parecendo algo feroz e cheirando... bom, “ainda pior do que
aparentava” era dizer o mínimo. Pigarreando, ela limpou alguns fios
de crina de cavalo que estavam grudados na sua capa de montaria
ainda úmida pela chuva, a outra mão no aperto quente da palma de
Veron.
A rainha sorriu quando seu olhar pousou em Veron, um sorriso
genuíno, doce, de uma maneira que iluminou seu rosto e o deixou
radiante. Ela se levantou do trono, avançando com um pequeno
salto ágil, e caminhou até se aproximar deles.
Veron se curvou diante da rainha e Aless seguiu o exemplo.
— Bem-vindo ao lar, Veron — disse a rainha, sua voz tranquila,
baixa, melodiosa e agradável. — E você, filha... — Uma mão gentil
tocou seu ombro e Aless se ergueu devagar para encarar uma
rainha sorridente. — Eu a recebo com um coração feliz.
A rainha era tão bonita que era difícil não encará-la.
— Obrigada, Vossa Majestade — suspirou Aless. — Estou
honrada por finalmente conhecê-la.
A rainha olhou para onde a mão de Veron ainda segurava a
dela e, de alguma forma, seu sorriso radiante se alargou.
— Espero que com o tempo você venha a me chamar de Mati.
— Virando-se para Veron, ela acrescentou: — Estou muito feliz por
você, Veron.
Um canto de sua boca se curvou para cima quando o olhar
dele se desviou para ela brevemente, os olhos suaves e amorosos,
brilhantes e satisfeitos, antes de olhar de volta para sua mãe, aquele
sorriso gentil desaparecendo.
— Mati, adoraria que viéssemos apenas com boas notícias.
— A caravana de suprimentos chegou pelos túneis hoje cedo,
e já começamos a distribuir a comida — respondeu a rainha. — E
eles trouxeram notícias do exército da Irmandade e do plano de
vocês.
Quem dera essa fosse a única má notícia. Veron respirou
fundo e assentiu.
— Eles capturaram Gavri e Valka.
Capítulo 21

Veron caminhou com Aless para seus aposentos, a mão dela na


dele, os olhos fixos no chão. Ele trouxera para casa sua noiva e sua
mãe, e rainha, já a havia aprovado. Ele faria a Entrega a Aless na
segunda cerimônia em três dias.
Naqueles três dias, eles podiam já estar envolvidos numa
guerra.
Uma das suas melhores amigas e outra de suas kuvari podiam
estar nas mãos de uma facção radical determinada a aniquilar o seu
povo.
Mati havia dito que enviaria uma de suas kuvari até o exército
da Irmandade para discutir os termos. Uma delas já havia se
voluntariado, mesmo sabendo que aquela era provavelmente uma
missão suicida.
Se eles ao menos pudessem enviar uma pequena equipe para
resgatá-los –, mas não teriam chance de sucesso. Se Tarquin fosse
esperto, manteria Gavri e Valka no centro do acampamento, e uma
equipe de elfos sombrios não teria chance de passar despercebida
pelos arredores. Gavri ou Valka, ou ambas, seriam mortas, assim
como a equipe.
Aquela mistura da angústia mais dolorosa com a alegria mais
intensa que ele sentia pesava como se o céu de pedra da caverna
estivesse sobre seus ombros. Ele segurou a mão dela e, ao se
permitir sentir sequer uma fração daquela alegria, junto vinha a dor
aguda de imaginar Gavri presa, talvez até mesmo machucada e
sofrendo, e seu povo se envolvendo no que poderia ser uma guerra
iminente.
— Papà vai vir nos ajudar, Veron — disse ela, esfregando o
braço dele. — Ele não faria essa aliança a menos que estivesse
preparado para defendê-la. E já demonstramos o valor dela. Os
elfos sombrios defenderam os humanos em Stroppiata. Nós
conquistamos a amizade da duchessa. A população nos acolheu. A
Irmandade sozinha não passa de um grupo radical amargo e sem
apoio. Papà aproveitará a oportunidade para livrar a sua terra deles.
As vidas e a segurança de Gavri, Valka e todo o seu povo
estavam nas mãos de um homem que havia trocado Aless – sua
brilhante, corajosa e maravilhosa Aless – e a enviado para longe
sem se importar nada com sua relutância, da maneira mais fria e
insensível imaginável.
— Eu escrevi para todos. Escrevi para Bianca, e para Lorenzo
também — acrescentou Aless, apertando o bíceps dele. — Lorenzo
não vai desistir disso. Ao contrário de Papà, ele realmente se
importa conosco. E talvez Bianca possa conversar com Luciano e
convencê-lo a persuadir o irmão a desistir disso. — Ela lhe deu um
empurrãozinho. — Temos vários planos em andamento. Algo vai
funcionar a nosso favor. Você vai ver.
Eram esperanças remotas, mas ela estava certa em seu
otimismo, em seu ânimo. Eles tinham que acreditar em algo, caso
contrário a batalha já estava perdida.
— Além disso, sua mãe já disse que tinha um plano.
Em uma hora, Mati os esperava para um jantar à meia-noite
com Vadiha, Dhuro e Yelena. Antes de ele e Aless se apresentarem,
ele teria que reunir o ânimo necessário. Mati dera as ordens, era
hora de acatá-las.
— Você tem razão. Eu sei que tem razão — disse ele,
puxando-a para dar um beijo em sua têmpora. — Saberemos mais
quando a nossa mensageira voltar. — Não se voltar, mas quando.
Ela lhe deu um aceno encorajador enquanto ele abria a porta
de seus aposentos. Não sobrara muita coisa desde a Ruptura, mas
ele nunca precisou de muito.
Lá dentro, o espaço estava vazio, exceto por suas mesas de
pedra negra, repletas de cordas para arco, penas e pontas de flecha
que ele estava montando, e uma escova de botas e cera para couro.
Aless caminhou direto para uma das mesas e pegou a escova,
sorrindo.
— Você tem mesmo uma coisa com botas.
— Cuidar das suas botas é apenas ser responsável —
retrucou ele, pigarreando.
Ela arqueou uma sobrancelha, o sorriso se alargando.
— Se não fizer isso, o couro pode ficar duro, muito duro,
implacável e...
Aquela sobrancelha se ergueu ainda mais alto e ela se
recostou na mesa.
— Eu diria para continuar, mas sofro do pior caso de dor de
sela conhecido pela humanidade.
Balançando a cabeça, ele sorriu e se aproximou dela, roçando
sua bochecha com os dedos. Era um prazer surreal acariciá-la sem
se preocupar que as garras pudessem machucá-la, e ele não se
cansava da maciez de sua pele, de tocá-la, em qualquer lugar que
ela quisesse, da maneira que quisesse.
— Se você está dolorida... — E ele também estava —, eu
tenho a cura perfeita para isso.
Fechando os olhos de forma divertida, ela inclinou a cabeça.
— Eu sou totalmente a favor da cura, embora deva avisá-lo de
que, depois de dias de cavalgada na chuva, estou fedendo como um
animal de fazenda agora.
Ele conteve um sorriso. Havia a possibilidade de que algo mais
divertido do que Aless existisse no mundo, mas tinha que ser bem
remota.
— Estava falando da fonte da vida. Ela tem propriedades
restauradoras.
Aquelas sobrancelhas se ergueram e sua boca se abriu antes
de ela tentar virar o rosto. Mas não, ele queria uma visão completa
disso. Corando, ela olhou para todos os lados, exceto nos olhos
dele, até que finalmente cedeu e mordeu o lábio.
— Eu adoraria ouvir tudo sobre essa “cura” a que você pensou
que eu estava me referindo — brincou ele, sustentando o olhar dela.
Os dedos longos e elegantes dela brincaram com os fechos do
casaco dele, enquanto aquele rubor foi logo acompanhado por um
sorriso tímido.
— Bom, isso envolveria você, eu e... — Ela olhou para a cama,
depois arfou. — Veron!
Ele seguiu a direção do olhar dela até o enorme colchão ao
estilo dos humanos posicionado na plataforma abaixo da cabeceira
de pedra negra. O colchão dela.
— Alguém deve tê-lo trazido pelos túneis.
Ela correu e passou as mãos sobre ele, depois pressionou a
palma da mão, testando sua elasticidade.
— Ele é mesmo o... Como você...
— Eu imaginei que você poderia gostar — disse ele. — Então
mandei trazer de Bellanzole conosco quando saímos. — Com todas
as roupas de cama e travesseiros e inúmeras outras coisas que
adornavam as camas no palácio do rei Macário, que ele havia
trazido em algum lugar, em uma das carroças.
Os olhos de Aless estavam arregalados, mas, quando
encontraram os dele mais uma vez, ele teve o vislumbre de um
brilho travesso.
— Ah, Veron... Este quarto verá muita “cura”, muita mesmo.
Ele começou a rir antes que pudesse se conter, e ela apenas
sorriu de volta. Veron lhe ofereceu uma mão.
— Mas, antes, que tal a fonte da vida?
— E o jantar — assentiu ela, pegando a mão dele.

Aless esfregou o pescoço enquanto Veron a levava para o


salão de jantar menor e mais privativo nas dependências da rainha.
A dor que ela sentira ali, e em todos os outros lugares, havia
desaparecido, assim como todos os vestígios de dor que já havia
sentido na vida. Bastou uma breve imersão na fonte da vida e ela
fora renovada por completo.
Eles encontraram duas mulheres lá, Vlasta e Rút, que
agradeceram profusamente a Veron por sua ajuda.
Ele explicou que elas tinham um laço vitalício, um ritual dos
elfos sombrios que de alguma forma unia duas vidas como se
fossem uma. Com isso, tornavam-se mais fortes, compartilhavam a
vida, mas, se um dos dois morresse... compartilhariam a morte
também. Um conceito ao mesmo tempo assustador e romântico.
A mística da fonte da vida, uma curandeira chamada Xira,
havia dado a ela vestes que os outros elfos sombrios pareciam usar
fora de ocasiões especiais, viagens ou batalhas. Eles tinham uma
coloração esbranquiçada e eram macios, envolvendo-a
confortavelmente, com calças combinando que ficavam por dentro
das botas. Era estranho não usar suas roupas habituais, sem
mencionar usar as mesmas roupas que Veron, mas ela queria fazer
um esforço para se encaixar. Aquelas pessoas eram também o seu
povo agora, a sua família.
A rainha queria ter uma refeição privada com ela, Veron, seu
irmão e suas irmãs, mas havia tanta coisa acontecendo que parecia
impossível conseguir se concentrar apenas em conhecer sua nova
família.
E havia o assunto da biblioteca. O grand cordon dos Paladinos
Nunzio não parecia avesso ao plano e ela tinha que aproveitar
enquanto ele ainda parecia interessado, mas com a Irmandade
ameaçando uma guerra de grandes proporções, a biblioteca teria
que esperar.
Ela respirou fundo. O importante naquela noite era causar uma
boa impressão.
— Eles vão te adorar — sussurrou Veron para ela enquanto
entravam nos aposentos da rainha, onde as videiras brilhantes do
Bosque envolviam os pilares e subiam pelo teto, como algo saído de
um sonho. Veron a conduziu por uma passagem lateral, através de
um grande arco, até uma sala de jantar com uma mesa redonda de
pedra negra rodeada por bancos.
Várias pessoas já estavam lá: uma mulher de rosto severo
com cabelos longos e despenteados, carregando um bebezinho, e
um homem a acompanhando, os lados da cabeça dele estavam
raspados e o restante do cabelo amarrado para trás.
Havia também um homem alto com cabelos até os ombros, o
rosto intenso sob uma sobrancelha arqueada, e três mulheres com
cabelos tão selvagens que mal eram domados por suas tranças
grossas – estava claro que haviam puxado aquele traço da rainha.
As três usavam tinta nos rostos, uma com manchas pretas sobre os
olhos, outra com uma faixa sobre eles e a terceira com uma linha
em cada bochecha.
Todos os olhos se voltaram para ela e Veron quando entraram,
e a mulher de rosto severo que segurava o bebê e o homem com
ela se levantaram primeiro.
— Pessoal, esta é Aless — disse Veron, com um sorriso. —
Aless, esta é minha irmã, Vadiha, seu marido, Arigo, e sua filha,
Dita.
Dita tinha olhos grandes, amarelos como o sol, com cílios
longos, bochechas gordinhas, orelhas pontudas e os cabelos
brancos finos e espetados.
— Ela estava com fome, então está acordada até essa hora —
disse Vadiha enquanto se aproximava com Dita nos braços, que
estendeu a mãozinha para o cabelo de Veron. Ele lhe estendeu o
dedo para agarrar em vez disso e deu um beijo leve em sua testa.
— Veron — sussurrou Vadiha, os olhos arregalados enquanto
olhava para a mão dele. As sobrancelhas do marido dela também se
ergueram. — O que aconteceu? Você mesmo fez isso?
As garras dele. Veron havia dito que eram um símbolo de
respeito, não foi? Aquilo era um choque para a família dele, porque
ele as havia lixado por ela.
Mas aquela mudança... significava tudo. Significava que
ambos poderiam deixar o medo de lado e ficar juntos sem se
preocupar com acidentes. Ele fizera isso pelo bem do casamento
deles. Mesmo diante do choque da família dele, ela não se
arrependeria dele ter feito isso. Mesmo que a tornasse uma egoísta.
— Estou feliz, Vadiha — disse Veron, dando de ombros para a
irmã.
Mas o olhar de Vadiha vagou até Aless, piscando os cílios
longos e pálidos.
Veron se inclinou para entrar na linha de visão da irmã,
bloqueando-a.
— Vadiha. falo sério. — Sua voz despreocupada havia se
tornado firme.
Mas os olhos da irmã só se endureceram quando encontraram
os dele.
— Amor — sussurrou Arigo para Vadiha —, não é
automutilação. Algumas coisas precisam mudar quando dois
mundos colidem. — Arigo ofereceu a Aless um sorriso encorajador e
um aceno de cabeça ao aceitar Dita de sua esposa. — É um prazer
conhecê-la, Aless. Bem-vinda à família.
— Obrigada — disse ela, com um sorriso e devolvendo o
aceno de cabeça. — Eu ainda tenho muito a aprender, então
agradeço qualquer ajuda enquanto me adapto.
Dita fez um barulhinho e piscou os grandes olhos cor de âmbar
para ela, estendendo as mãos minúsculas querendo pegar seus
cabelos.
— Desculpa. Ela parece estar em uma fase de amar cabelos.
— Arigo riu.
— Se bem que eu meio que quero tocar também. Nunca toquei
nos cabelos de uma humana — disse uma das mulheres, a que
tinha uma faixa de tinta preta nos olhos como uma venda, quando o
trio se aproximou. Ela apertou os lábios. — Isso é estranho?
— Brincar com o cabelo uma da outra? Nem um pouco —
respondeu Aless. Ela não era tão diferente deles, mas, se estavam
curiosos, ela não os afastaria.
— Me chamo Amira — disse ela, oferecendo a mão. — Vocês
humanos apertam as mãos um do outro, não é?
— Sim — disse ela, pegando a mão de Amira.
— Seja gentil — Veron avisou a irmã.
— Eu sei, eu sei. A pele deles é fina como seda. Eu sei. — Os
dedos de Amira estavam rígidos enquanto ela mantinha as garras
afastadas. — Veron, como você consegue evitar machucá-la sem
querer? Mesmo sem as garras, quero dizer, com a pele dela, você
sabe...
Pressionando os lábios com força, ele deu a Amira um leve
aceno de cabeça.
— Minha pele não é tão frágil assim — interrompeu Aless. —
Quer dizer, eu posso ter o traseiro jogado num ringue e não explodir.
Uma gargalhada irrompeu de uma das outras duas mulheres.
— Estas são Zaida e Renazi — disse Amira, inclinando a
cabeça para indicar as duas enquanto elas curvavam a cabeça para
cumprimentar Aless, aquela com as bochechas pintadas com listras
rindo para si mesma. — Somos volodari e, na verdade, vamos partir
em breve para uma caçada, mas não queríamos ir sem conhecer a
nossa nova irmã.
Aquela com as manchas sobre os olhos deu um passo
deliberado à frente, o resto do corpo perfeitamente controlado.
— Amira fala mais do que deve, mas estamos felizes em
conhecê-la, Aless. Eu sou Zaida. — Sua voz era como uma noite
silenciosa, um sussurro enevoado, séria, do tipo que poderia
silenciar todo um ambiente. Bom, exceto a irmã Renazi, que ainda
parecia estar rindo para si mesma.
— Vão sair numa caçada, mesmo com as coisas como estão?
— perguntou Veron.
— Mati nos designou um território mais distante, vamos pelos
túneis — respondeu Zaida olhando para ele, o resto de seu
semblante imóvel.
— Estaremos seguras, Veron. Não se preocupe! — disse
Amira, cutucando o ombro de Veron.
— Só porque recebemos ajuda não significa que devemos
parar o nosso modo de vida. Você sabe disso, Veron. — O homem
com a carranca intensa se aproximou, acenando com a cabeça para
ela, cada parte de seu corpo tensa e rígida. — Dhuro — disse ele,
olhando-a antes de encontrar o olhar de Veron por um instante, o
dele falando mil palavras que ela ainda não entendia. Dhuro parecia
uma bolha prestes a estourar.
— Prazer em conhecê-lo — cumprimentou ela, inclinando a
cabeça.
— Eu gostaria de poder dizer o mesmo — retrucou ele,
estreitando os olhos.
— Dhuro. — Veron se aproximou dele, cada parte sua rígida,
enquanto se inclinava em direção a Dhuro. — Peça desculpas,
agora.
Dhuro também se inclinou para ele.
— As kuvari e Yelena conversam entre elas, Veron. Você sabia
que a irmã dela se casou com o irmão do general da Irmandade?
Como podemos saber que não é tudo uma manobra humana para
dizimar Nozva Rozkveta? Ela pode estar só esperando o momento
certo, uma oportunidade para abrir os Portões...
— Para o ringue. Agora — sibilou Veron, estalando os dedos.
Dhuro pensava que ela era uma traidora esperando o
momento exato para se voltar contra eles? E Veron queria lutar com
ele? Ela tocou no ombro de Veron, mas ele não cedeu.
Ela ouviu passos se aproximando por trás, e todos viraram na
direção deles, enquanto a rainha se aproximava, suas vestes e
túnica de seda fluidas.
— Não haverá nenhum desafio hoje à noite — disse a rainha,
com a voz firme. — Veron, respire fundo.
Forçando um bufo de raiva pelo nariz, Veron se afastou, seu
olhar fulminante ainda perfurando Dhuro enquanto ele a bloqueava
da linha de visão de seu irmão.
— Dhuro, sente-se e mantenha a boca fechada até que eu lhe
dê permissão para falar. — A rainha lançou um olhar severo para
Dhuro, sua postura pronta para batalha... Ela o atacaria? O próprio
filho? Por fim, ele suspirou e se jogou no banco, espalmando as
mãos na mesa e arqueando as sobrancelhas.
Amira, Zaida e Renazi cumprimentaram a mãe antes de se
despedirem e partirem para a caça, e Arigo pediu licença para
colocar Dita na cama.
E, simples assim, ela foi deixada com Veron, de frente para
Dhuro e Vadiha, nenhum dos quais parecia gostar dela naquele
momento. Pelo menos Vadiha não a chamou de traidora na cara,
então era uma vitória.
— Vá pegar a comida, Vadiha — disse a rainha, inclinando a
cabeça em direção aos arcos. Vadiha obedeceu, mas, enquanto
passava por Aless, fez uma careta para ela.
— Aless, por favor, não ligue para os maus modos da minha
família — disse a rainha para ela, tocando de leve a parte superior
do braço de Aless. — Eles parecem se esquecer de que têm comida
na mesa graças a você, e que você e Veron têm enfrentado a
Irmandade desde o momento em que a paz foi assinada.
Atrás dela, um músculo se flexionou na mandíbula de Dhuro.
— Eu entendo — respondeu Aless, inquieta. — Sou nova aqui.
Ninguém me conhece ainda. Confiar numa estranha é pedir muito.
— Mas todos me conhecem. E confiar em mim não é pedir
muito à minha família — disse Veron, pegando a mão dela e
acariciando seus dedos.
Dhuro revirou os olhos enquanto Vadiha trazia os pratos de
comida. A rainha apontou para os bancos e todos se sentaram. De
frente para Dhuro, Veron o encarava, seus olhos estreitos,
selvagens e intensos. Ela segurou a mão dele, apertando-a de vez
em quando, na esperança de amenizar aquela intensidade. Sem
qualquer resultado.
Dhuro olhava para ela algumas vezes, por cima dos pratos que
Vadiha colocava. Quando ela terminou e todos estavam sentados, a
rainha respirou fundo e jogou as volumosas mechas despenteadas
por cima do ombro.
— Eu só vou dizer isso uma vez: Aless é nossa aliada e parte
da nossa família. — Ela olhou de um rosto para o outro à mesa,
encontrando a expressão severa de Vadiha e a carranca evidente e
intensa de Dhuro. — Dhuro, repita isso para ela e peça desculpas.
Com o rosto tenso, Dhuro desviou o olhar, passou a mão pela
massa de cabelos até os ombros e se virou para ela.
— Você é nossa aliada e faz parte da nossa família. Sinto
muito por acusá-la de traição — disse ele entredentes.
— Você aceitas essas desculpas? Se não, não será Veron que
vai acabar com ele no ringue, mas eu — disse a rainha, olhando
para Aless.
O que, sério? A rainha lutaria contra o próprio filho... não,
acabaria com ele?
Bom, a rainha Zara certamente governava a família com punho
de ferro. E... talvez fosse melhor permanecer em suas boas graças.
Aless pigarreou.
— Aceito. Obrigada, Dhuro. Sem ressentimentos.
Ele arqueou uma sobrancelha, mas não disse outra palavra
enquanto comiam as diversas comidas humana dispostas na frente
deles, além de um ensopado feito de algum animal pequeno que os
volodari haviam caçado. A rainha perguntou sobre a cerimônia em
Bellanzole e sua viagem, enquanto Vadiha perguntou sobre o
ataque em Stroppiata e o combate do lado de fora de Dun Mozg.
Enquanto Veron se acalmava, ela respondeu à maioria das
perguntas, enquanto brincava com os dedos dele.
Depois de uma breve pausa, uma kuvari da rainha anunciou
Riza, que entrou e prestou continência.
A rainha Zara lhe deu permissão para falar, cruzando as
pernas longas e elegantes enquanto se empoleirava no banco.
— Vossa Majestade, Halina voltou com a resposta da
Irmandade — anunciou Riza, com a respiração ofegante. Ela viera
até o salão correndo? — É que... Eles estão dificultando as coisas.
A rainha Zara esperou.
— Minha rainha...
— Qual foi a mensagem?
Riza inclinou a cabeça, as sobrancelhas unidas e, por um
instante, lançou um olhar dolorido para Veron e depois para ela,
antes de olhar de volta para a rainha Zara.
— A mensagem dizia: “Se vocês não obedecerem até o
amanhecer, o nosso geomante irá derrubar todos os túneis que
saem do seu reino. Vamos cercá-los até que definhem e morram. Se
desejam viver para ver o amanhecer, devolvam nossa princesa para
nós e devolveremos suas duas bestas vivas”.
Devolvam a nossa princesa? Ela estremeceu, mas Veron
segurou sua mão entre as dele. Com um rosto sério, ele balançou a
cabeça ligeiramente para ela.
A rainha não se moveu, apenas olhando para o vazio, sem
reação.
— Dizia “viver para ver o amanhecer”. Não há nada sobre
suspender as hostilidades depois disso.
— Você não está mesmo considerando entregar Aless a eles,
não é? — exigiu Veron, um rosnado baixo pontuando sua pergunta.
— Claro que não — sibilou a rainha Zara. — Mas tenho que
determinar se este é um ponto de partida de boa-fé para iniciar as
negociações antes de emitir uma contraproposta. Parece, no
entanto, que mesmo que obedecêssemos a isso, não significaria
nada além de um cessar-fogo até o amanhecer.
— E quanto a Valka e Gavri? — rosnou Dhuro. — Vamos
deixá-las para morrer? Digo para fazermos a troca.
A rainha Zara se virou tão rápido que agarrou a garganta de
Dhuro antes que ele pudesse escapar.
— Você não tem voz neste assunto. — Ela bateu com uma
garra no pescoço dele. — E não se esqueça disso, criança.
Olhos brilhantes fixaram os da rainha.
— Vossa Majestade — guinchou Aless, mesmo com Veron
balançando a cabeça para ela. — Com todo o respeito, mas ele não
está errado. A minha vida não vale mais do que a de ninguém.
Ainda mais de duas pessoas. O general deles é cunhado da minha
irmã. Ele está errado, mas... não vão me matar. Tenho certeza
disso.
Até mesmo os batedores dos arredores de Dun Mozg não a
machucaram, só tentaram capturá-la e levá-la para Tarquin.
A rainha Zara ainda agarrava a garganta de Dhuro.
— Eu aprecio sua bravura, Aless, mas, como Dhuro, você não
tem voz quanto a isso. — O olhar da rainha Zara deslizou para o
dela, e a rainha sorriu gentilmente antes de empurrar Dhuro para
longe. — O jantar acabou. Vou convocar o resto do meu Conselho e
me preparar para o amanhecer. Veron, Aless, fiquem nos seus
aposentos. Os próximos dias serão difíceis, mas estamos bem
abastecidos e vamos perseverar, como sempre fizemos. — Com
isso, ela assentiu em direção aos arcos e todos, exceto Vadiha, se
levantaram e saíram.
Ela não tinha voz. Todas as partes dela se rebelaram.
Com uma mão nas costas dela, Veron a guiou para fora,
deixando a rainha Zara com Vadiha e Riza.
A rainha Zara planejava esperar o amanhecer.
E se ela ficasse em seus aposentos como a rainha Zara
ordenara, a Irmandade mataria Gavri e Valka, sem hesitar. Duas
vidas, uma das quais era de sua amiga, estariam perdidas.
Não sem lutar.
Capítulo 22

Aless já estava caminhando de um lado ao outro do quarto assim


que Veron fechou a porta. Seu estômago estremeceu, mas ela o
esfregou por cima das vestes. Não era hora de ficar nervosa.
A Irmandade mataria Gavri e Valka ao amanhecer. Assim que
fizessem isso, a guerra começaria. Centenas ou milhares
morreriam, e não apenas aqui, mas em todo o país, quando
pessoas com ideias semelhantes se levantassem para tomar
partido. Se nada mudasse, aquilo seria inevitável.
Mas a Irmandade queria a ela em troca. Tinha que haver uma
jogada nisso. Alguma coisa.
Não havia dúvida de que a Irmandade mataria qualquer elfo
sombrio sem hesitar. Não havia como nenhum deles planejar uma
missão de resgate. Mas e quanto a ela?
Você não precisa se esconder por trás de sua máscara,
princesa, Tarquin sussurrara para ela no dia do casamento. Não
comigo. O orgulho está observando. Apenas diga uma palavra, a
qualquer hora, em qualquer lugar, e a nossa força... aliviará sua
solidão.
A Irmandade a queria, mas eles não a machucariam. Tarquin
não lhe faria mal. Não, naquela primeira noite, e mesmo na
cerimônia de casamento, Tarquin quisera ela para algo, tinha até
mesmo oferecido sua mão para protegê-la. Aquele era um homem
que travava uma guerra de ódio, mas também o irmão de Luciano, o
cunhado de Bianca. E, se matasse uma princesa de Silen, seria
uma jogada tão chocante que não ficaria sem resposta, pois criaria
um precedente perigoso. Papà não só o aniquilaria, mas toda a sua
família seria jogada na obscuridade.
Não, Tarquin Belmonte não faria mal a ela.
E embora Papà não fosse se envolver para salvar a vida de
duas elfas sombrias, se ela fosse capturada, isso o forçaria a agir.
Ele teria que intervir e ajudar a parar a Irmandade.
Havia apenas uma pessoa que tinha a chance de libertar Gavri
e Valka, e era ela. A pessoa menos habilidosa e a pior candidata a
fazer isso, mas a única humana entre eles. Se ela fosse pega – e as
chances de isso acontecer eram bem altas – ninguém morreria.
Tarquin prometera libertar Gavri e Valka se a entregassem. Então,
ou ela libertaria as duas com sucesso e escaparia com elas, ou
seria pega e exigiria a troca. De qualquer forma, Gavri e Valka
viveriam.
E, por mais inexperiente que fosse, ser humana lhe dava uma
vantagem. Não havia mulheres entre os soldados da Irmandade,
mas todo exército tinha seguidores no acampamento. Os militares
de Silen muitas vezes tinham esposas e filhos entre eles, mas as
únicas mulheres que acompanhavam a Irmandade em qualquer
lugar eram as cozinheiras, enfermeiras, vivandeiras, lavadeiras e
prostitutas.
Aless podia se disfarçar de uma delas e se infiltrar pelos
arredores do acampamento. A partir daí, ninguém daria uma
segunda olhada para uma mulher Sileni, uma seguidora humana e
do acampamento, ou a consideraria uma ameaça. Ela poderia
procurar por Gavri e Valka até mesmo no coração do acampamento
sem chamar muita atenção.
Mas se fosse apanhada...
Se ela fosse pega, a Irmandade – não, Tarquin – nunca a
libertaria de volta para Veron. Se ela partisse naquela noite, talvez
nunca mais o veria.
Se lhe contasse o seu plano, ele nunca aceitaria que ela fosse.
Não só porque ele se preocupava, mas porque sua mãe havia
proibido, e desobedecer a uma ordem dela era algo impensável
para ele. Ele ficaria furioso, magoado, mas, se ninguém fizesse
nada e Gavri e Valka fossem mortas, haveria uma guerra. Uma
guerra que Nozva Rozkveta corria o risco de não ganhar. Uma em
que ele poderia ter que lutar, talvez até morrer, assim como
inúmeras outras vidas inocentes poderiam ser perdidas. Não. Se
houvesse uma solução sem precisar que houvesse um
derramamento de sangue, ela tinha que tentar, mesmo que ele a
odiasse, mesmo que nunca mais falasse com ela. Isso era para
salvar a vida dele, salvar o povo deles, e ela prometera em Dun
Mozg que faria o que fosse preciso para protegê-los, mantê-los
seguros e manter a paz.
A rainha Zara a confinara aos aposentos, e ninguém
desobedecia às suas ordens. Ninguém. No entanto, por mais que
quisesse se encaixar naquele lugar, se encaixar nunca foi mais
importante do que fazer a diferença. E ela não sacrificaria inúmeras
vidas só para ficar nas boas graças da sogra.
Aconteça o que acontecer, ela tinha que tentar.
Os braços de Veron se fecharam ao redor dela por trás, e ele
enterrou o nariz em seu cabelo e respirou fundo.
— Sinto muito por Dhuro e Vadiha — sussurrou ele.
— Eu não esperava que todos gostassem de mim logo de
cara. Até mesmo você precisou de um pouco de persuasão — disse
ela, acariciando as juntas dos dedos dele.
Uma risada suave soprou contra a orelha dela.
— Você precisou de mais persuasão ainda para gostar de
mim.
Depois de chegar a Nozva Rozkveta, ela não esperaria menos
do que isso. Nem um pouco.
— Estou feliz que tenha sido você naquele dia em Bellanzole,
Aless — sussurrou ele, beijando a maçã do rosto dela —, porque eu
me apaixonei por você.
Mesmo naquele momento, sua pele se arrepiou com aquelas
palavras, cada fio de cabelo dela ficou em pé, um arrepio acariciou
sua espinha enquanto o calor se espalhava em seu peito. Sorrindo,
ela balançou a cabeça, embalando-se no abraço dele.
— O que você não faz ideia é que eu o amei muito antes de
pousar os olhos em você.
Ele a virou, os olhos com pálpebras pesadas enquanto erguia
o queixo dela.
— Como assim, meu amor?
— Sonhei com essas rosas abundantes, cobrindo todos os
lugares, selvagens e belas, até mesmo com o cheiro delas —
sussurrou. — E, quando cheguei aqui e vi o Bosque, pode até não
ser possível, mas sonhei com este lugar muito antes de você me
trazer aqui. Você era o meu sonho, Veron, e se tornou realidade.
Ele acariciou o rosto dela, passou os dedos com carinho em
seus cabelos, enquanto os prendia atrás da orelha dela.
— Estamos no maior Veio de anima da terra, uma fonte da
vida que percorre tudo e todos. Caminhamos em direção ao Bosque
e ele se abre para nós. Cantamos para a pedra e ela muda de
forma. Nada é impossível, meu amor, e acredito nos seus sonhos
também, porque você os sonhou e agora estamos aqui, juntos.
Todo o corpo de Aless tremia, e não era por descrença, medo
ou nervosismo; mas por tudo dentro dela o desejar, desejar abraçá-
lo, beijá-lo, ficar com ele para sempre e nunca o soltar, e ela ouviu,
ouviu tudo o que ele disse naquele momento e se agarrou a ele,
pressionou sua boca na dele, despiu-o com mãos que não podiam
se mover rápido o suficiente, nunca rápido o suficiente, frenéticas,
desesperadas.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, nunca haveria tempo
suficiente para ela se satisfazer com o seu amor, com a sua paixão,
com ele. Viver como sua parceira, construir a biblioteca juntos, criar
uma família. Não haveria horas suficientes, vidas suficientes, e se
as mãos cruéis do destino os separassem ao amanhecer, então ela
queria viver cem horas, mil vidas, em seus braços esta noite.
— Me ame, Veron — sussurrou ela. — Me ame esta noite,
como uma noiva de um elfo sombrio.
— Aless... — sibilou ele nos lábios dela.
— Eu quero saber o que significa — disse ela baixinho entre
beijos —, ser sua em todos os sentidos. — Ela o agarrou e o puxou
para perto. Com a testa franzida, ele assentiu contra ela e
reivindicou seus lábios de uma maneira faminta.
Veron puxou as roupas dela, costuras se soltando e tecidos se
rasgando até que tudo caiu no chão, e quando as presas dele
roçaram sua língua, ela mordeu o lábio dele, e ele rosnou, tomando
sua boca com um fervor renovado enquanto ela o empurrava em
direção à cama, ela o empurrava com cada vez mais força, mas os
passos dele eram uniformes e lentos, resistindo alegremente
enquanto seus olhos brilhavam. Aquele sorriso divertido que ele deu
quando ela o provocara mais cedo naquele quarto havia retornado,
brincando em seus lábios.
Quando ele chegou à borda da cama, ela agarrou o tornozelo
dele com o pé, assim como o vira fazer no ringue, e ele permitiu,
deixando-se cair na cama. Ela passou os joelhos em volta dos
quadris dele, trouxe a sua boca para a dela, e ele se torceu,
jogando-a de costas e prendendo-a na cama.
Ela lutou, apenas o suficiente para irritá-lo, para estimular seu
ardor, e a intensidade determinada em seu olhar foi suficiente para
fazê-la ofegar, para fazê-la olhar fixo para ele, para fazê-la querer
imortalizar aquele olhar em sua mente pelo resto de sua vida, e foi o
que ela fez enquanto ele a tomava, memorizando os traços de sua
mandíbula, de sua sobrancelha, a chama que ardia no ouro quente
daqueles olhos e a dança arrebatadora de selvageria e paixão que
significava ser dele, em todos os sentidos.
Por mais cansada que Aless estivesse, ela não se deixou
adormecer, não por completo – em vez disso, esperou até que a
respiração de Veron se acalmasse, até que ele estivesse dormindo
profundamente. Depois de dias de viagem, ele precisava disso, e
não tinha razão para não confiar nela.
Ela puxou um cobertor que encontraram em um de seus baús
e jogou sobre ele com gentileza, resistindo ao desejo de beijá-lo.
Mesmo assim, ele só se mexeu por um instante antes de retomar
aquelas respirações rítmicas.
Aquilo iria magoá-lo. Profundamente. Mas, se ela lhe contasse
seu plano, ele nunca aceitaria que ela fosse. Porém, não havia
como viver com a ideia de Gavri e Valka morrerem por causa dela,
de uma guerra começando, de inúmeras vidas sendo perdidas,
talvez até mesmo a de Veron... quando ela poderia tê-los salvado
apenas dando um passo para longe. Ela precisava tentar.
Era a coisa certa a se fazer. A única coisa. Mas, quando
escorregou para fora da cama, tudo em que conseguia pensar era
em Veron acordando e descobrindo que ela se fora, se dando conta
de que ela o havia abandonado, assim como o pai dele fizera.
Me desculpe.
Aquilo doeria, mas, com isto, ela salvaria vidas. Talvez até
conseguisse convencer Tarquin a desistir de fazer aquilo tudo.
Agora que ela conhecia os elfos sombrios, podia enfrentar o ódio
dele com conhecimento.
Ela se curvou para pegar suas vestes. Elas estavam um pouco
rasgadas em alguns lugares, mas não era muito visível. Além disso,
as de Veron eram enormes, não tinha como usá-las. Mas, se ela
quisesse ser discreta em Nozva Rozkveta, atrairia muito menos
atenção vagando por aí com roupas de elfos sombrios do que com
as suas.
Ela abriu cuidadosamente um dos seus baús e procurou por
algo adequado para se disfarçar. Ela não tinha roupas de plebeus,
mas uma prostituta bem-sucedida poderia usar algo que se
aproximasse de algumas de suas coisas mais simples.
Estremecendo, ela agarrou com pressa um bustiê, uma
chemise branca e um vestido azul tão simples quanto pôde
encontrar, com decote baixo e amarrado na frente, mas feito de
veludo refinado. Ela os escondeu em uma das bolsas de Veron,
semelhantes às que tinha visto outros elfos sombrios carregarem.
Sua cópia de Uma História Moderna de Silen estava na mesa
de Veron e, com um olhar cauteloso para onde ele estava deitado,
pegou lentamente sua pena e tinteiro. Ela tinha que partir, mas não
podia sair sem se despedir, sem deixá-lo saber o quanto ele
significava para ela, caso não conseguisse voltar.
Ela abriu na primeira página em branco. O que poderia dizer
que aliviaria a dor do que estava fazendo? Havia alguma coisa que
pudesse ser dita?
Ela apenas seria honesta.

Eu te amo.

Talvez ele a odiasse, amaldiçoasse o dia em que a conheceu,


talvez nunca mais quisesse vê-la. Mas ela não podia fazer isso, nem
mesmo para parar uma guerra, sem lhe dizer o que sentia uma
última vez.
Ela deixou o livro aberto, colocou a pena na página, e, quando
chegou à porta, virou-se para olhar para o rosto adormecido dele
uma última vez.
Veron, príncipe de Nozva Rozkveta, eu, Alessandra Ermacora,
princesa de Silen, ofereço-lhe amor – ela pousou uma mão em seu
coração – paz, e uma vida aqui, tranquila, segura da Irmandade, e
de todos os inimigos dos quais posso protegê-lo... para aproveitar
para os seus fins ou os nossos, enquanto nós... enquanto trilhamos
nossas vidas juntos deste dia em diante, pelo tempo que o Profundo
permitir.
Limpando as bochechas, ela respirou fundo três vezes e saiu
para o corredor.
Tudo estava quieto e não havia ninguém por perto. Pela hora,
todos deviam estar dormindo. Ela podia encontrar o caminho até a
fonte da vida e, de lá, os túneis não ficavam longe. Havia roupas na
fonte da vida, incluindo couros, máscaras e capuzes kuvari, que
poderia usar se conseguisse roubá-los, mas, a partir daí, ainda
precisava de uma maneira de passar pelas kuvari que guardavam o
Portão.
Gavri e Valka eram kuvari, então talvez ela pudesse usar isso
para conseguir passar.
Ao sair do palácio, ninguém a impediu. Na verdade, os poucos
transeuntes que encontrou a cumprimentaram calorosamente, do
jeito adequado à sua posição. A parte principal da cidade – a
Caverna Central, como todos a chamavam – estava vazia, e ela
cruzou sua escuridão reluzente em direção à fonte da vida. Através
da entrada escura, as piscinas da fonte cintilavam em um azul-
petróleo brilhante, e as roupas estariam em uma pequena caverna
ao lado das piscinas.
Lá dentro, uma das místicas, vestida num manto violeta, falava
com uma mulher com o cabelo trançado em uma coroa em volta da
cabeça que estava em uma das piscinas.
Yelena.
Recuando, ela deu a volta para sair, mas Yelena se virou e
encontrou o olhar dela.
— Você. O que está fazendo aqui?
— Eu poderia lhe perguntar o mesmo — rebateu ela,
endireitando-se.
— Estou praticando com a espada. O que parece que eu estou
fazendo? — zombou Yelena.
— Se recuperando.
— Esses olhos humanos funcionam, afinal. E você também
passou os últimos dias sobre uma sela, assim como eu. — Yelena
olhou para ela com olhos atentos. — Suas vestes estão todas
esfarrapadas. Noite difícil?
— Algo assim — respondeu ela, pigarreando.
Yelena sorriu e abriu um braço.
— Bom, então, venha e se recupere, princesa humana.
Ela deu um passo à frente, mas... não havia tempo para isso.
Sequer havia algum sentido em tentar se disfarçar com uma
máscara e um capuz? Ela provavelmente seria apanhada de
qualquer maneira.
— Eu...
— O quê? A minha companhia não é boa o suficiente para
você? — Yelena arqueou uma sobrancelha.
— Não, não é isso...
— O que você está aprontando? O que tem na bolsa?
Jogando a bolsa para trás, Aless olhou por cima do ombro, e
viu que a mística havia desaparecido. Eu preciso de uma máscara,
um capuz e couro, se eu quiser salvar Gavri e Valka e parar uma
guerra, ela queria dizer, e então... disse tudo de uma vez.
A testa de Yelena se franziu e permaneceu franzida por um
longo tempo. Sua cabeça balançou antes que ela respirasse fundo.
— Bom, se precisa de ajuda para se livrar de si mesma, veio à
pessoa certa.
Capítulo 23

Do lado de fora do Portão, após passarem pelo Bosque, Aless


largou a bolsa, removeu o capuz, a máscara e os couros que pegara
emprestado, depois começou a vestir o bustiê, a chemise e o
vestido de veludo azul.
— O que está fazendo? — sibilou Yelena no escuro. Confiante
e grosseira, Yelena a conduzira pelos túneis dos escavadores,
disfarçada como uma de suas kuvari, e como Yelena não era cidadã
de Nozva Rozkveta, ninguém nem sequer tentou impedi-la.
— Lá dentro — disse Aless, inclinando a cabeça em direção ao
Portão e passando as mãos sobre as saias de veludo —, preciso de
uma máscara e um capuz para me misturar. Aqui fora, posso ser
morta à primeira vista se usá-los. É melhor que eles vejam que eu
sou humana.
Yelena a olhou com uma carranca, depois respirou fundo.
— Você está certa disso?
— Eu pensei que você estava muito interessada em se livrar
de mim.
— Faça como quiser. Vou manter a cama de Veron aquecida
quando você morrer — disse Yelena, encolhendo um ombro e
desviando o olhar.
Veron.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, apenas pensar nele agora,
em deixá-lo assim, fez as mãos dela tremerem, mas ela as cerrou
em punhos. Isso era para salvá-lo, para salvar a todos da guerra e
da morte, e mesmo que falhasse e fosse pega, pelo menos forçaria
Papà a intervir e impedir a guerra.
Para fazer o que ela precisava fazer, ela teria que enterrar
aquele sentimento trêmulo, a memória do rosto apaixonado de
Veron, a visão dele dormindo profundamente quando ela partiu.
Enterre tudo bem fundo.
Ela sacudiu o cabelo até que ficasse uma bagunça
encaracolada e solta, pigarreou e assentiu para Yelena.
— Estou certa de que ele prefere que uma harpia aqueça a
cama dele do que você, mas obrigada.
Yelena cruzou os braços e fez uma careta envergonhada.
— Vou esperar aqui até o amanhecer. Se você não voltar até
lá, vou retornar para dizer a todos que você provavelmente está
morta.
As palavras de Yelena eram duras, mas sua ajuda foi
inestimável.
— Obrigada, Yelena. De verdade.
Yelena assentiu uma última vez.
Então, isso é agora. Ela se virou para o sul e começou a
caminhada até o acampamento da Irmandade.
A floresta estava escura e silenciosa, somente o chamado de
algum animal interrompendo o silêncio de vez em quando. A única
luz vinha do brilho leve das videiras e flores do Bosque, e os
pequenos brilhos das fadas tremulando no ar noturno.
Depois de caminhar por um tempo, o silêncio e a escuridão
não diminuíram – ela já deveria ter encontrado o acampamento da
Irmandade, não deveria? O Portão de onde saiu não era o mesmo
pelo qual ela e Veron haviam chegado.
Uma fada voou ao seu lado e ela suspirou.
— Suponho que não possa me ajudar a encontrar Gavri e
Valka? Duas elfas sombrias num acampamento humano?
A fada voou de um lado para o outro, disparando
erraticamente, depois decolou para o lado.
Uma fada está mesmo me ajudando? Era ridículo, sem
dúvidas, mas se ela estivesse perdida, seguir uma fada não era
mais ridículo do que andar na direção errada.
Ela apertou o tecido da saia nas mãos e seguiu o brilho fraco
da fada e, logo, luzes de fogueiras esparsas cintilaram entre as
árvores e a vegetação rasteira, e um mar de tendas surgiu.
Ela suprimiu um arquejo, escondendo-se atrás de um carvalho.
Você me ajudou de verdade? Ela olhou para a fada, que
pairava ao lado dela atrás de outro tronco.
Obrigada, ela gesticulou com os lábios, mantendo um olho
cauteloso no acampamento.
Estava silencioso, com pouquíssimos soldados da Irmandade,
ou qualquer um, vagando, mas, considerando as centenas de
tendas, isso poderia facilmente mudar com um único alarme. A
maioria nos arredores eram tendas pequenas, com as maiores se
agrupando no centro do acampamento.
Algumas sentinelas percorriam um circuito, o que não seria
problema se ela fosse Yelena ou Veron. Mas naquela situação até
mesmo um deles era mais do que ela conseguiria lidar. Não havia
possibilidade de entrar despercebida naquele lugar e se misturar.
Eles estariam à espera de que alguém fizesse uma tentativa de
resgate vindo daquelas árvores.
Porém, no final do acampamento, havia uma movimentação de
pessoas que iam e vinham de uma área bem iluminada, e ela
caminhou pela vegetação rasteira, mantendo-se atrás das árvores o
melhor que podia, para dar uma olhada mais de perto.
Barras improvisadas pontilhavam a parte de trás do
acampamento, além de algumas tendas onde os soldados entravam
e de onde saíam, sorrindo e gargalhando.
Os seguidores do acampamento.
Se houvesse alguma chance de chegar ao centro do
acampamento, seria assim. Teria que ser por lá.
Enquanto um coro de grilos chilreava, ela rastejou tão perto
quanto ousou na ocultação da floresta, afofando os cabelos e
beliscando as bochechas, balançando o vestido e até sujando um
pouco a barra.
A fada voou para mais perto, pousando no ombro dela.
— Sua luz vai nos entregar — sussurrou ela, e a luz da fada
diminuiu o brilho para quase nada, e um som de sino quase
inaudível veio dela. Ela estava falando?
Naquela luz, a fada parecia uma pequena pessoa alada do
tamanho de uma borboleta, uma mulher de cabelos cor-de-rosa
coberta com uma folha. Uma pequena mulher de cabelos cor-de-
rosa absolutamente adorável.
Seu peito tremia e, se isso fosse em qualquer outro momento e
lugar, que não no meio de uma tentativa de se esgueirar num
acampamento da Irmandade, ela poderia ter gritado de prazer.
A fada disparou para seu cabelo solto, agarrando-se nele com
um pequenino puxão. Aquilo foi inesperado, mas, de alguma forma,
isso não seria tão aterrorizante se tivesse alguém com ela.
Ela observou os movimentos do acampamento, com duas
tendas perto da borda em total escuridão, sem ninguém entrando ou
saindo delas. Um homem solitário andou por um caminho de terra e
depois entrou numa tenda próxima, iluminada por lanternas.
Seja corajosa.
Respirando fundo, ela saiu da floresta com confiança, com
apenas as roupas do corpo e uma fada no cabelo. Ninguém estava
por perto e ela só precisou de um minuto mais ou menos para
atravessar a clareira entre as árvores e o acampamento.
Só um pouco mais.
Se ela corresse, isso chamaria a atenção. Pelo menos,
andando, ela poderia parecer uma prostituta voltando após ter se
aliviado. Seu coração bateu forte quando ela se aproximou da
primeira tenda e vozes riram por perto.
Só um pouco mais. Um pouco mais.
Ela espiou na primeira tenda – uma mulher estava dormindo –
e uma fivela de cinto se fechou e moedas tilintaram de algum lugar
próximo enquanto ela espiava a segunda.
Estava vazia.
Ela correu para dentro e fechou a aba da tenda assim que
passos de botas emergiram da que estava ao lado dela.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe.
Ela engoliu em seco, tentando desacelerar o coração
disparado, e olhou ao redor da tenda escura. O fedor do saco de
dormir era suficiente para fazê-la ter ânsias. Vinho, cenoura-brava,
ervas amargas...
Era parou por um momento para se recompor. Iria para o
centro do acampamento e, se alguém a impedisse, diria que o
general Belmonte pedira seus serviços. Na melhor das hipóteses,
ela seria deixada em paz para ir aonde quisesse e, na pior, seria
levada até ele – e de todos ali, Tarquin ainda era sua melhor chance
de não acabar machucada, nem que fosse por medo da ira de seu
Papà.
Ela pegou uma garrafa de vinho tinto – segurar algo ao menos
a faria se sentir melhor e daria a suas mãos trêmulas algo para fazer
–, em seguida contou até três antes de emergir.
Ninguém estava do lado de fora, mas, enquanto se dirigia ao
centro, alguns soldados passaram, não lhe prestando muita atenção
além do raro assobio e de sons de beijos.
Graças à Mãe.
Um grito de outro mundo veio do anel fora do centro, diferente
de qualquer coisa que ela já tinha ouvido. Não podia ser Tarquin ou
qualquer um da Irmandade. Algum outro Immortali estava sendo
mantido prisioneiro ali?
É a nossa melhor oportunidade.
Ela foi em direção ao som, e a fileira de tendas daquele lugar
estava completamente silenciosa, e o fedor...
Engolindo o nó na garganta, ela espiou dentro das tendas,
encontrando postes, cordas, correntes e trapos ensanguentados.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, se tivessem matado...
Não. Ela balançou a cabeça. Eles não teriam matado sua
única vantagem contra a rainha Zara; a Irmandade era odiosa e
violenta, mas Tarquin não era burro, e subestimar sua inteligência
em vez de contar com ela só levaria ao fracasso.
Um grunhido veio da grande tenda à frente.
Tudo dentro dela queria congelar, mas, se uma pessoa saísse
de dentro da tenda, isso só pareceria suspeito.
Um homem com um tabardo branco decorado com uma
insígnia de mãos vermelhas entrelaçadas deixou a tenda sorrindo,
seus olhos cruéis se fixando nela enquanto o sorriso dava lugar a
uma careta.
— O que você está fazendo aqui, puta?
O tom áspero era acusatório, mas, quando ele se aproximou e
olhou para ela, as rugas franzidas em seu rosto desapareceram.
Com o coração batendo forte, ela colocou um sorriso sedutor
no rosto, relaxando a postura enquanto colocava a mão no quadril e
dava uma sacudida na garrafa de vinho.
— Deve ser muito solitário por aqui. Achei que você poderia
querer companhia.
O sorriso malicioso voltou quando a palma da mão dele
pousou na cintura dela e viajou para cima.
— Eu não imaginaria que um rosto como o seu precisaria
trabalhar tão duro.
Sagrada Mãe, me ajude.
— Só estou tentando fazer a minha parte.
Ele estendeu a mão para o queixo dela...
A fada disparou do cabelo dela e passou por ele...
Ele girou, e ela bateu a garrafa de vinho em direção à cabeça
dele. Conseguiu atingir, quebrando o vidro e derramando o vinho
enquanto ele caía na grama.
Com o coração na garganta, ela o agarrou pelo tabardo e lutou
para arrastá-lo para a tenda de onde saíra enquanto ele gemia.
Tudo estava muito quieto, o barulho da luta fora muito alto, e
alguém tinha... alguém tinha que estar vindo...
— Aless — sibilou Gavri, amarrada a um poste em frente a
outra elfa sombria... Valka? Estavam sujas, os couros esfarrapados,
os rostos machucados e ensanguentados. — O que você...?
Ela correu para Gavri, agarrando em desespero as cordas que
prendiam seus pulsos, e as cortou freneticamente usando o que
restou da garrafa quebrada em suas mãos. O vidro não era... não
dava... não era afiado o suficiente, rápido o sufi...
Aquele grito de outro mundo perfurou o ar outra vez.
— Atrás de você — rosnou Gavri.
Ela girou enquanto o homem a agarrava, e tanto Gavri quanto
Valka puxaram as cordas. A fada disparou para o rosto dele, que
puxou o tornozelo de Aless e a derrubou no chão, arrastando-a para
baixo dele.
— Você... — rosnou ele, mas um pé bateu em seu rosto,
fazendo-o voar de cima dela.
Gavri tirou a garrafa quebrada das mãos de Aless e a enterrou
no pescoço do homem, cuspindo nele. Ela pegou a espada curta
dele e libertou Valka, que pisou na cabeça dele.
Os gritos de outro mundo retornaram.
— O que é isso? — arfou Aless, lutando para ficar de pé
enquanto Gavri tirava peças de equipamentos e armas do homem.
— Eles têm um unicórnio preso — disse Gavri, jogando para
ela uma faca de caça embainhada.
Ela tentou apanhá-la, mas a arma caiu no chão. Um unicórnio?
Será que era aquele dos arredores de Stroppiata? Eles estavam
com ele aqui? Ela pegou a faca e a enfiou na bota, e a fada passou
por seu rosto e pousou em seu ombro.
— Obrigada, Pequenina — sussurrou ela.
— Vamos — disse Gavri, acenando com a cabeça em direção
à aba da tenda. — Toda essa agitação não deve ter passado
despercebida.
Valka assentiu, segurando a garrafa de vinho quebrada e
ensanguentada, e afastou a aba.
— Ainda não apareceu ninguém — disse ela. — Vamos para
as árvores.
Gavri seguiu.
— E o unicórnio? — sussurrou Aless, enquanto os gritos
continuavam. O que a Irmandade faria com ele? O torturaria?
Venderia? Mataria?
— Não há tempo — disse Gavri.
Não havia tempo? Algo se apertou no peito dela, sua
respiração ficou pesada, saindo apenas em suspiros trêmulos.
— Já alcanço vocês — disse ela a Gavri, depois foi em direção
aos gritos.
— Aless — sibilou Gavri atrás dela.
— Vá — sussurrou ela em resposta. — Eu sou humana.
Ficarei bem.
Com um olhar selvagem, Gavri ficou congelada, mas Valka
agarrou seu pulso e a arrastou para longe enquanto Aless percorria
as linhas das tendas.
Elas tinham que escapar. Como elfas sombrias, elas seriam
identificadas e atacadas num segundo. Mas ela havia conseguido
atravessar o acampamento sem incidentes. Humana, bem
disfarçada, ela tinha uma chance.
Houve um caos de gritos e botas batendo no chão atrás dela,
mas ela ignorou. Soldados da Irmandade gritando sobre a fuga de
Gavri e Valka, e berrando ordens para as perseguir pela floresta.
Os gritos do unicórnio foram se acalmando e se transformando
em relinchos e guinchos exaustos, o bater de cascos dele estava
próximo.
Uma grande tenda aberta continha uma massa de correntes
com tons de sálvia, todas amarrando o unicórnio tão brutalmente
que ele mal conseguia se mover. Vergões vermelhos, antigos e
extensos, marcavam o seu pelo, antes imaculado, sob as correntes,
manchando-o de sangue, e os brancos de seus olhos estavam à
mostra enquanto ele a olhava com cautela. Era menor do que o que
ela tinha visto no caminho para Stroppiata, com um chifre mais curto
e, até mesmo na escuridão, tinha olhos verdes deslumbrantes.
Pela Misericórdia da Sagrada Mãe, como alguém poderia fazer
aquilo a um ser inocente? Amarrá-lo, torturá-lo, e para quê? Por que
manter os imortais presos? Como troféus, como prêmios? Para
estudá-los? Só por maldade?
Checando a área ao redor, ela a encontrou vazia, então correu
para o unicórnio estremecendo sob as correntes. Por onde
começaria?
— Eu vou ajudá-lo — sussurrou ela, e Pequenina voou para
fora de seu cabelo de novo e foi até um poste atrás do unicórnio,
onde balançou um chaveiro em um gancho.
Vozes vieram de trás da tenda.
Ela se abaixou, apertando-se entre o unicórnio e a lona da
tenda, mas as vozes continuaram – dois soldados discutindo a caça
a Gavri e Valka, perguntando-se se elas haviam se escondido entre
as tendas.
Não! Eles não podiam encontrá-la... não podiam. Não quando
estava tão perto de realmente ter sucesso em seu plano. Pequenina
voou de volta para ela, refugiando-se em seus cachos.
Ela se esgueirou no espaço estreito em direção ao poste. Se
eles a encontrassem, pelo menos poderia libertar o unicórnio. Ele
também se acalmou, parando por completo enquanto ela pegava as
chaves, devagar.
Quando as tinha na mão, seguiu as correntes até encontrar a
fechadura ao seu lado e a abriu com um clique quase inaudível.
As vozes pararam por um instante. Tinham ido embora?
O unicórnio repuxou contra as correntes, tilintando-as, e o
barulho só piorou quando ele as puxou pelo caminho entre as
tendas, arrastando-as com ele.
Uma dor se formou na parte de trás de sua garganta e o
tremor em seus membros se espalhou para seus dedos frios, que
torciam, nervosos, a saia de veludo, molhada com vinho.
Gritos e passos pesados de botas se misturavam, e ela se
encolheu contra a tenda, escondendo-se atrás da lona ao lado da
entrada, tremendo, e pegou a faca na bota. Mas, se a Irmandade
soubesse que ela estava lá, aquela faca não a salvaria. Fugir não a
salvaria. Gritar não a salvaria.
Mas ela poderia salvar Gavri e Valka. Desviar a atenção da
Irmandade...
— Pegue-os! — Veio um comando.
— Senhor!
Engolindo, ela ficou de pé, forçou os braços para os lados do
corpo e ergueu o queixo, respirando fundo. Só havia uma coisa que
poderia salvar Gavri e Valka agora. Usar a sua voz.
— Meu nome é princesa Alessandra Ermacora de Silen —
gritou ela, firmando sua voz com cada grama de arrogância real que
podia reunir. — E eu exijo falar com o general Tarquin Belmonte
imediatamente.
Fora da tenda, tudo ficou em silêncio.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, eles a atacariam aqui, a
amarrariam e a arrastariam até ele? Nada e ninguém se moveu,
apenas o som de vários homens respirando indicava sua presença
lá fora.
Você é uma princesa de Silen. Seja corajosa.
Jogando os ombros para trás, ela saiu de trás da lona da tenda
e até a entrada.
Nada menos que duas dúzias de homens cercavam a tenda,
as armas sacadas, todos eles abandonando a busca, pelo que
parecia.
No centro, os olhos divertidos de Tarquin Belmonte se fixaram
nela, o polegar enfiado no cinto que prendia o longo casaco branco
de oficial. Ele sorriu.
— O orgulho lhe dá as boas-vindas, Vossa Alteza.
Capítulo 24

Uma suavidade fez cócegas contra a pele nua de Veron e, com os


olhos ainda fechados, ele estendeu a mão. Eles não conseguiram
encontrar os travesseiros mais cedo, e Aless adormecera com a
cabeça na barriga dele, mas...
O peso da cabeça dela não estava lá. Talvez fosse o cabelo
dela que fazia cócegas nele.
Mas, quando ele agarrou um punhado, era tecido. Um
cobertor.
Ele abriu os olhos e estendeu a mão para o lado.
A cama estava vazia.
Aless não estava lá.
— Aless? — Ele se sentou e olhou ao redor do quarto,
piscando. As roupas dele ainda estavam no chão, as botas no
canto, mas as dela...
As dela tinham sumido.
Ele saltou da cama e puxou o cabelo para trás. Ela só tinha ido
se aliviar, ou talvez pegar alguma coisa para comer. Afinal, o jantar
havia terminado de forma abrupta. Ele afundou de volta, com a
cabeça nas mãos.
Eram todos aqueles problemas com a Irmandade. Quando
Nozva Rozkveta entrou em guerra pela última vez, Ata partira. E
agora que a guerra os cercava de novo, aquilo desenterrara velhas
inseguranças. Era só isso.
Mas, à medida que os minutos passavam, Aless não retornou.
Ele percorreu a sala com olhos frenéticos e ali, sobre a mesa,
estava um dos livros dela, aberto. Correu para ele, colocou a pena
de lado e leu...

Eu te amo.

Ela... Isso era um...


Não, ela não...
Mas enquanto ele passava as pontas dos dedos pela tinta, por
uma linha escrita no livro da mãe dela, não havia outra razão pela
qual Aless teria feito isso.
Exceto para dizer adeus.
Ela... tinha ido embora. Sem dizer uma palavra, ela o deixara.
Para fazer o quê? A troca? Render-se à Irmandade, que faria
sabe-se-lá-o-que com ela? A Irmandade desprezava os imortais, e
com eles os elfos sombrios, então o que fariam com uma humana
casada com um?
Eles não me matarão, ela dissera. Tenho certeza disso.
Ela arriscara a vida contando com isso, com Tarquin, um
homem que soltara harpias em sua presença, ordenara que uma
bruxa desmoronasse túneis em um reino em que ela estava. Um
homem que preferia fazer dela um exemplo a protegê-la.
Ele agarrou as roupas do chão e as vestiu às pressas, puxou
os couros, calçou as botas e prendeu as lâminas vjernost no cinto.
Ela fora para aquele homem, se entregara, confiara em Tarquin
Belmonte.
Naquela noite, ela estava toda sorridente, carinhosa, sedutora.
Eles passaram as últimas duas horas se amando, juntos, como um,
sem mais medos ou restrições entre eles. Ele adormecera abraçado
com ela, enrolado com a mulher que amava, e, apesar da guerra em
seus portões, apesar de tudo, ele nunca se sentira tão inteiro. Ele
teria confiado a ela qualquer coisa, a sua vida, sua família, a sua
pátria.
E ela nem sequer confiara nele com o seu plano. Havia
deixado de lado a confiança que construíram juntos, seu vínculo, e
partira sem dizer uma palavra. Ela queria se entregar como moeda
de troca para a Irmandade, que poderia nem mesmo libertar Gavri
ou Valka, se é que ainda estavam vivas. E então Tarquin Belmonte a
algemaria, a levaria embora e a usaria para alcançar seus fins
odiosos.
Sagrado Ulsinael, ele fora quem falara para ela que ela não
conseguia enxergar as pessoas, enxergar as consequências de
suas ações. Desde que ele mencionou isso em Stroppiata, ela fez
esforços genuínos para olhar para além de si mesma e do que se
importava em ver, e passara a enxergar como afetava aqueles ao
seu redor e as consequências maiores. Ela trabalhou várias vezes
para mudar isso, às vezes a ponto de ser imprudente, como no
ringue de Dun Mozg.
Ela havia pensado na guerra iminente esta noite e decidira que
não poderia suportar as consequências de ficar parada?
Mati dissera que ela não tinha voz quanto à decisão e para que
permanecesse em seus aposentos, mas... quando alguém dizia a
Aless que não havia saída, ela criava a própria.
E ela acreditou que ele concordaria com Mati e a obedeceria
em vez de ajudá-la com seu plano... E, se foi isso que pensou, não
estava errada.
Aless desobediente, imprudente, rebelde, altruísta, corajosa,
angustiante.
Por favor, esteja segura. Por favor.
Ao sair, ele agarrou o arco e a aljava, depois correu pelo
corredor.
Mati iria...
Não, Mati ordenaria que ele ficasse. Por mais que gostasse de
Aless, não permitiria que ele interferisse nas negociações ou
corresse o risco de ser capturado como vantagem.
No entanto, assim que a Irmandade tivesse Aless em sua
posse, poderiam não haver mais negociações. Tarquin poderia
lançar o ataque, ou pegar Aless e ir embora. Ou ela poderia ser
morta, sacrificada para desencadear a guerra de modo irreversível.
Mati ordenara que ele ficasse em seus aposentos, mas, com
ou sem ordens, a Irmandade não levaria Aless a lugar nenhum. Não
enquanto ele respirasse. Ele deixara Ata partir uma vez e não o
seguira – por ser uma criança, não teria sido capaz de seguir –, mas
não deixaria Aless partir. Mati poderia transfigurar o rosto dele mais
tarde e ele aceitaria, desde que pudesse trazer Aless de volta.
Ele caminhou pelo corredor em direção ao Portão de Heraza.
Alguns dos moradores do palácio já estavam saindo dos seus
aposentos, e não haveria muito tempo antes que toda Nozva
Rozkveta acordasse com o brilho branco do Bosque.
Os transeuntes o cumprimentavam enquanto ele atravessava a
Caverna Central e ele ofereceu respostas agradáveis – talvez assim
parecesse menos suspeito, mesmo correndo pelas passarelas.
Perto da entrada do túnel de Heraza, um grupo de pessoas se
amontavam, Yelena e...
— Gavri — gritou ele, e ela ergueu a cabeça, o rosto marcado
por hematomas, sangue e um olho roxo.
— Veron! — Ela correu para ele, com Yelena e Valka a
seguindo. — Aless ainda está lá fora...
— Ela está segura? — perguntou ele, agarrando os ombros
dela.
Ela piscou, balançando a cabeça.
— Eu... eu não sei. Da última vez que a vimos, a Irmandade
estava vindo atrás de nós, e ela foi na direção oposta...
Ele a soltou e passou por ela...
— Veron — chamou ela atrás dele. — Quando Valka e eu
estávamos patrulhando, quando fomos pegas... dois outros
exércitos estavam a caminho. Exércitos humanos.
Olhando por cima do ombro, ele parou. Dois exércitos
humanos?
— De quem? Reforços da Irmandade?
— Fomos detidas antes de conseguir investigar mais, Vossa
Alteza — respondeu Valka.
O pai de Aless havia chegado, afinal? Mas e o segundo
exército?
Uma série alta de batidas ecoou pela Caverna Central vindas
dos túneis dos escavadores, uma batida de martelo. A batida de
Dun Mozg.
— Minha mãe chegou — disse Yelena, sorrindo.
— Sua mãe?
Aquele sorriso se alargou.
— Se é uma luta que os humanos querem, então Dun Mozg
está com Nozva Rozkveta, para a Escuridão e além.
Então Nendra veio com tropas e armas. E logo todo o reino
estaria acordado e agitado com os preparativos para a batalha –
tudo enquanto a Irmandade mantinha Aless presa. Mesmo se sua
avaliação de Tarquin estivesse correta, seu exército iria se abster de
machucá-la se estivesse sob pressão?
Os exércitos haviam chegado, com alguns sedentos por
guerra. Se nada mudasse, haveria uma perda impensável de vidas.
— Temos que impedir isso — rosnou ele. — Alguém tem que
descobrir a identidade desses dois exércitos. Abrir um canal de
negociações com eles. — Alguém como ele. Se o exército fosse
realmente do rei Macário, então talvez ele pudesse convencer a
Irmandade a libertar Aless e se render antes que tudo isso chegasse
à batalha e resultasse em mortes.
Ele atravessou o túnel até o Portão de Heraza.
— Veron — gritou Yelena. — Você recebeu ordens. Você não
pode simplesmente...
Mas ele foi mesmo assim.
Capítulo 25

Na tenda luxuosa do general, Aless estava sentada na cadeira, sem


se mexer, seguindo todos os movimentos de Tarquin enquanto ele
servia chá para os dois ao lado do enorme mapa aberto sobre a
mesa. Um marcador estava abaixo de Nozva Rozkveta – o local da
Irmandade, sem dúvida – e dois outros, um ao sul e outro a oeste. O
que representavam?
Um jovem alto e esguio com cabelos pretos longos e lisos
estava em posição de sentido na entrada da tenda, vestindo um
casaco de oficial branco, observando-a com um olhar castanho e
duro.
— Não ligue para Siriano, Vossa Alteza. Nem ele, nem
ninguém aqui, lhe fará mal. — Tarquin colocou uma colher de mel
em uma das xícaras e mexeu sem fazer barulho. — Ele é um mago
capitão da Companhia Belmonte e leal ao extremo.
Leal a quem? A Tarquin? À Irmandade? Certamente não à
Coroa, se estava permitindo que alguém mantivesse uma princesa
de Silen em cativeiro.
Além disso, Tarquin disse mago capitão. Era ele o geomante
que atacara Dun Mozg?
Tarquin deslizou a xícara em sua direção antes de levar a dele
até o nariz e inspirar profundamente.
— O melhor chá preto kamerish vem de uma região logo
depois de Ren. — Ele sorriu. — Você não concorda?
No momento, a única qualidade daquele chá que a interessava
era o quanto queimaria Tarquin Belmonte se ela o jogasse na cara
dele.
Sob os olhos atentos de Siriano, seus dedos se enrolaram ao
redor da xícara, porém... escaldar a única pessoa que a mantinha
viva era uma má ideia, até mesmo para a Princesa Bestial.
— Você não me trouxe aqui para falar sobre chá.
— Eu não a trouxe aqui — Tarquin riu, baixinho.
Ele está se fazendo de desentendido?
— Certo — disse ela, fazendo uma careta. — Você não está
me mantendo aqui para falar sobre chá.
Ele tomou um gole e depois suspirou longamente pelo nariz.
— Vossa Alteza, eu sou a única pessoa neste reino todo que
se importou o suficiente para salvá-la deste casamento forçado. Sua
Majestade a manipulou a se casar contra sua vontade, e isso é um
erro que deve ser corrigido.
Palavras bonitas. Mas, se ele pensava que ela acreditaria que
ele mobilizou um exército e veio até aqui apenas por se importar
com ela, então estava prestes a ser acordado de seu pequeno
devaneio.
— E como você corrigiria isso?
— Primeiro, trocando aquelas duas bestas por você. Depois,
fingindo ameaçar a sua vida se Sua Majestade não anular o seu
casamento...
Apenas um casamento não consumado poderia ser anulado
em Silen, mas ela manteria aquela informação para si mesma.
— E, assim que ele aceitar os termos, encorajarei você a se
casar com o homem de sua escolha.
Veron. Veron. Para todo o sempre, Veron.
— E presumo que você esteja se referindo a si mesmo?
— A ideia não pareceu desagradá-la na noite do baile de
máscaras — respondeu Tarquin, sua boca se curvando num sorriso
sedutor.
— Asseguro que estava contemplando uma ideia muito mais
grosseira.
— E me achou uma opção agradável.
Até ele abrir a boca. Uma única palavra de ódio poderia tornar
feio até mesmo o rosto mais belo. E Tarquin dissera muitas.
Apesar da idiotice de sua afirmação, ela não se atreveu rir
dele. Não enquanto ele a mantinha cativa, achando que conquistaria
seu caminho até o principado apenas com perseverança.
Transformar os sonhos dele em farrapos podia significar que ele
manteria uma prisioneira da qual não precisava mais.
E imaginar os resultados que isso poderia desencarrilhar era
aterrorizante.
— Bom, aqui estou — disse ela, mantendo seu olhar firme nos
olhos castanho-escuros dele. — Se isso é entre nós dois, você não
precisa de um exército. Ou talvez devêssemos marchar até
Bellanzole. — Se ela pudesse fazê-lo levar a Irmandade para longe
de Nozva Rozkveta e em direção à capital, Papà seria forçado a
intervir.
— As pessoas adoram você. Tenho tanto a Companhia
Belmonte como a Irmandade ao meu comando. Juntos, poderíamos
colocar esta nação de volta no caminho certo, eliminar os Immortali
que nos atacam. — Do outro lado da mesa, ele cruzou
preguiçosamente uma perna sobre a outra. — Você é uma grande
parte deste quebra-cabeça, Vossa Alteza, mas tenho outras peças
em jogo.
— Que outras peças?
— Restaurar o reino à sua antiga glória. Como era antes dos
Immortali invadirem e arruinarem tudo.
— Os Immortali não são uma entidade monolítica. Eles variam
de pessoa para pessoa, assim como nós. — Espalhar uma crença
do contrário era apenas colocar mais lenha na fogueira. — Você é
um homem inteligente, Tarquin, então sei que entende isso.
Ele franziu a testa.
— E, na sombra deles, o perigo acompanha. A vida nunca foi
tão violenta e perigosa do que vem sendo agora.
— Estamos trabalhando para mudar isso. Os elfos sombrios
podem nos ajudar a manter os Immortali perigosos longe. Aqueles
que nos atacam primeiro, que não fazem nada além de matar e
prejudicar. São apenas uma pequena fração deles, porém,
trabalhando juntos, podemos combatê-los.
Os vincos na testa dele se aprofundaram.
— Não precisamos trabalhar com eles. Temos magos. —Ele
deu um aceno em direção a Siriano, cuja expressão dura não
vacilou.
— Mas os elfos sombrios são exatamente como nós, Tarquin.
Eles se casam, constroem famílias, têm bebês. Eles querem paz,
querem amor. Eles só querem sobreviver.
— Você fala como uma mulher de bom coração. — Ele deixou
um riso zombeteiro escapar. — Eles precisam estocar armas para
sobreviver? Nossa equipe de inteligência reportou que é exatamente
isso que o reino da Fortaleza Central está fazendo.
— Você pode culpá-los por isso? Os humanos estão atacando
o povo deles desde que acordaram. Você também não se prepararia
para se defender? Ainda assim, eles querem paz. Eles não tiraram
uma única vida humana.
— Ah, mas eles tiraram, sim. Três dos meus batedores
desapareceram perto da Fortaleza Central — disse ele, batendo na
mesa com os nós dos dedos.
— Eles me atacaram — deixou escapar ela. O que aconteceu
não foi culpa dos elfos sombrios. — Eu tive que me defender e
matei um deles, e os outros dois foram mortos para me proteger.
Ele balançou a cabeça com veemência.
— Aqueles homens foram enviados para encontrá-la, e
resgatá-la, se surgisse a oportunidade.
— Eles tentaram me arrastar para longe, chutando e gritando!
— As mãos dela tremiam, então ela as dobrou no colo. — Você
chamaria isso de resgate?
Ele inclinou a cabeça, examinando-a.
— Você não queria ser salva?
Aquela conversa estava tomando o caminho errado.
— Meu pai queria criar um tratado de paz. Essa paz
desmorona sem mim.
Ele se levantou da cadeira e começou a andar pela tenda.
— Ele criou esse tratado paz em cima do seu sacrifício. Você
foi uma vítima, assim como Arabella. Isso não estava certo desde o
começo.
Ele queria falar sobre o que era certo?
— Tarquin, eu vi o que foi feito com aquele unicórnio. Aquilo
também não estava certo.
— Unicórnio? Você quer dizer aquele cavalo-besta Immortali?
— Ele não é uma besta. Eles são seres pacíficos...
Ele se virou para ela, o rosto contorcido.
— Minha irmã, Arabella, gostava do que você chama de “ser
pacífico”. Ela era inocente, adorava cantar, colher flores silvestres e
admirar belezas de todos os tipos. Ela viu um daqueles cavalos
Immortali e não conseguiu parar de olhar para ele, procurar por ele.
Um dia, ela desapareceu, e quase três dias depois aquela besta
invadiu nossas terras e começou a atacar nossas portas, quebrando
janelas, aterrorizando a todos, destruindo tudo.
— Então você o torturou?
— Ele continuou voltando, causando estragos, então meus
homens o prenderam. Devido ao seu tamanho e força, eles têm
tentado domá-lo, mas tem sido uma perda de tempo. Eles estavam
quase a ponto de matar a besta — disse ele, aproximando-se.
— Então você vai permitir que matem qualquer coisa que não
obedeça? — Foi daí que vieram todos aqueles ferimentos do
unicórnio? — Tarquin, ele é um ser inteligente. Tem pensamentos,
sentimentos e pode ser muito mais velho e sábio do que você e eu.
Você não pode simplesmente trancá-lo e abusar dele assim.
— Ele é a razão pela qual Arabella se foi. Se não fosse por
aquela... coisa, ela estaria segura, em casa.
— Ele não é uma coisa! É um...
Um metamorfo.
Ela pausou.
A carranca de Tarquin se suavizou um pouco.
— É um o quê?
Veron lhe contara tudo sobre eles. Ela se ajeitou na cadeira.
— Tarquin, os unicórnios possuem um território próprio e não
saem dele. Abominam a violência. Eles são pacifistas por natureza.
— Só que esse não era.
Ela assentiu. E esse era o problema. Algo não se encaixava.
— Você disse que ele surgiu três dias depois que Arabella
desapareceu?
Uma linha se formou entre as sobrancelhas dele enquanto
erguia um ombro.
— E daí?
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, se ela estivesse errada
sobre isso...
— Você disse que Arabella amava os unicórnios, que ia em
busca deles, apenas para olhar para eles. — Quando ele assentiu,
ela continuou: — Unicórnios são metamorfos, como os lobisomens.
Eles podem transformar as pessoas, Tarquin. E você disse que este
unicórnio surgiu alguns dias depois da Arabella desaparecer? E que,
diferentemente de sua reputação pacífica, ele estava destruindo as
coisas? E se ela quisesse se tornar um unicórnio...
— Você está dizendo que aquela coisa é Arabella? — gritou
para ela, os olhos arregalados e fulminantes.
Ela se encolheu. Talvez aquela não foi sua melhor jogada.
— Se isso é verdade, e é ridículo demais para ser, então por
que ela não se transformou de volta? Já que é uma metamorfa?
Ela engoliu em seco.
— Você a manteve presa em correntes de arcanir. Elas
interferem com os Immortali.
Ele esfregou as mãos no rosto.
— Se isso é verdade... se aquela coisa era Arabella...
— Então você vem torturando a mesma pessoa que se propôs
a defender.
Ele congelou, parado na luz fraca da tenda. Tantas ações
malignas que ele havia feito em nome de sua irmã e existia uma
chance de que ela não só estivesse viva, mas sob sua custódia por
todo esse tempo, sendo machucada por seus próprios homens,
desesperada para mostrar ao irmão de qualquer maneira que
pudesse quem ela era... sem sucesso.
— General — chamou alguém do lado de fora da tenda e, com
a permissão de Tarquin, Siriano afastou a aba e deixou um oficial
jovem entrar, que a observou de boca aberta, reparando em suas
roupas, o disfarce dela.
Com um olhar carrancudo, Tarquin fez sinal para que o oficial
continuasse.
— Senhor, os batedores dizem que as forças do rei Macário
acamparam ao sul daqui, nas colinas adjacentes ao rio a leste. O
exército da duchessa assumiu posição a oeste e está construindo
fortificações improvisadas.
O coração de Aless disparou.
Papà tinha vindo buscá-la.
E a duchessa se juntara a ele.
Tarquin moveu os dois marcadores no mapa seguindo as
informações que recebeu, seu rosto o retrato da calma.
— Envie uma mensagem ao rei Macário. Diga a ele para
anular o casamento da princesa com a besta...
Como ele ousa chamar Veron de besta?
— E que entre em contato com a duchessa e ordene que as
forças dela se retirem com as suas antes do anoitecer de amanhã.
Caso ele não obedeça, Sua Alteza será executada no amanhecer
seguinte.
Não, ele não podia – com a vida dela em jogo, Papà
obedeceria. Mas se Papà e a duchessa se retirassem, então não
haveria ninguém para impedir a Irmandade de matar o povo de
Nozva Rozkveta de fome... fazendo dezenas de milhares sofrer.
Não, ele não podia nem sequer ter a chance de fazer esta
oferta a Papà.
Ela tinha chegado até ali. As forças de Papà não podiam
abandonar Nozva Rozkveta. E Tarquin não a machucaria, a menos
que quisesse que toda sua família fosse reduzida a uma poça de
sangue.
O propósito de Tarquin teria que ser frustrado para que ele
parasse com aquilo naquele instante.
Ela engoliu o nó na garganta.
— Meu pai não pode anular o casamento, Tarquin..
A cabeça dele disparou em sua direção para encará-la, e as
suas sobrancelhas se franziram.
— Ele foi consumado.
Capítulo 26

— Eu sou o príncipe Veron do Bosque Noturno! — gritou


Veron, estendendo os braços para os lados enquanto saía da
floresta. Ele se dirigiu com passos lentos para o mar de tendas de
listras roxas e brancas através da grama alta, avançando pelo
caminho com suas botas rígidas. — Não atirem! Solicito uma
audiência com o rei Macário de Silen!
Se alguém lhe dissesse há alguns meses que ele
desobedeceria às ordens e trairia a confiança de Mati, deixaria
Nozva Rozkveta na véspera de uma batalha e se entregaria à
misericórdia dos humanos, ele nunca teria acreditado.
Mas aquilo não se tratava de confiança. Tratava-se de proteger
aqueles a quem ele amava.
Ele havia desobedecido Mati, a traíra, mas as pessoas eram
mais que seus erros, e nem toda decisão que machucava alguém
tinha a intenção de magoar. Às vezes podiam machucar e, no
entanto, por mais grave que aquilo pudesse ser, tinha que ser uma
preocupação secundária quando se tratava de salvar muitas vidas.
Ou até mesmo só uma.
O sol estava apenas começando a nascer no céu de tons rosa,
dourado e azul enquanto arqueiros se arrastavam ao longo do topo
de uma colina, gritando um para o outro e para ele.
— Pare aí mesmo! — gritou um, e ele fez o que lhe foi
ordenado.
Com os arcos prontos para atirar, os arqueiros desceram a
colina e o cercaram, exigindo que entregasse suas armas antes de
escoltá-lo até o centro do acampamento.
Oficiais com casacos roxos escuros o examinaram, e o escriba
do rei, Álvaro, confirmou sua identidade antes de o admitir no iurte
no coração do acampamento real.
Assim que entrou, braços longos o puxaram para um abraço –
Lorenzo. Usando uma jaqueta protetora acolchoada roxo-escura, o
irmão de Aless o recebeu com aqueles olhos escuros tão parecidos
com os dela, e um sorriso largo, seus cabelos escuros amarrados
para trás. Uma dúzia de facas estava embainhada em uma
bandoleira sobre seu peito.
— É muito bom te ver. — Lorenzo deu um tapinha em seu
ombro.
— Gostaria que fosse em melhores circunstâncias.
— Estamos prestes a esmagar a Irmandade — disse o rei
Macário por trás de Lorenzo, olhando para um mapa enquanto
acariciava sua barba preta salpicada de branco. — As
circunstâncias são favoráveis. — Ele se afastou do mapa e apontou
para uma cadeira próxima. — Como está a minha filha? Os dois se
saíram bem em Stroppiata e na Fortaleza Central, como esperado.
Vocês devem ter impressionado bastante a duchessa Claudia, pois
ela também está aqui com suas forças.
Então o segundo exército era dela.
— Vossa Majestade, Aless está no acampamento da
Irmandade.
Tanto o rei Macário quanto Lorenzo fizeram uma pausa,
trocando olhares. Lorenzo fechou os olhos e exalou um suspiro,
esfregando o rosto enquanto se virava.
— Você deveria mantê-la segura. — O rei se aproximou dele,
mas logo seu rosto relaxou. — Só que... eu conheço a minha Aless.
Sempre fazendo algum tipo de cena. Implacável, imprudente,
selvagem, tola...
— Vossa Majestade — interrompeu Veron, com um rosnado
por trás de sua voz. — Nós não sabíamos se o senhor ou algum
outro viria. Aless trocou de lugar para salvar duas vidas que, se
tivessem sido tiradas, nos colocariam em um caminho sem volta.
Ela não tinha as informações completas, mas está tentando salvar
incontáveis outras. — Ele sustentou o olhar do rei.
Talvez as palavras do rei possam ter sido verdadeiras antes,
mas a Aless dele era corajosa, defendia o que acreditava ser certo e
sempre pensava antes de fazer as coisas. Se era selvagem, era por
ser como o Bosque em sua proteção, sua ousadia, seu poder.
Álvaro entrou com uma mensagem que entregou ao rei
Macário, cujo rosto escureceu enquanto lia. Ele amassou a
mensagem e acenou para Álvaro se retirar, sentando-se
cuidadosamente em uma cadeira.
— É sobre a Aless? — perguntou Veron, dando um passo à
frente, mas o rei não reagiu.
Lorenzo tirou a mensagem da mão dele e leu:
— Para Sua Majestade, rei Macário: Você deve anular o
casamento da princesa com a besta e entrar em contato com a
duchessa para ordenar que suas forças se retirem, junto com as
suas, antes do anoitecer de amanhã. Caso não cumpra essas
exigências, Sua Alteza será executada na alvorada seguinte.
General Tarquin Belmonte.
— Executada? — exigiu saber ele, e Lorenzo lhe entregou a
mensagem. Leu e releu as palavras, mas eram as mesmas.
— É isso — murmurou o rei. — O fim da nossa estratégia. Ele
tem Aless e não tem medo de matá-la.
Lorenzo bateu as mãos na mesa.
— Você viu a maneira como Tarquin olhou para ela, Papà. Ele
está blefando.
— Eu não vou arriscar a vida dela — disparou o rei de volta,
levantando-se. — Temos que trazê-la de volta em segurança, custe
o que custar.
Nisso, eles concordavam.
O rei aceitaria os termos de Tarquin, deixaria a área com o
exército da duquesa e Aless ficaria bem...
E a Irmandade continuaria a fechar o cerco em volta de Nozva
Rozkveta. Se Tarquin ordenasse que sua bruxa desmoronasse os
túneis, seria apenas uma questão de tempo até Mati e Nendra
liderarem suas forças para o reino dos céus e atacarem, aniquilando
a Irmandade...
E colocando Aless em perigo mais uma vez.
Diante de uma ameaça à vida de sua filha, o rei Macário
estava pronto para se render por completo. Não era algo que
qualquer rainha elfa sombria faria por um filho – nem mesmo Mati.
Se fosse ele...
Se fosse...
Ele balançou a cabeça, tentando limpá-la. Se fosse ele sob a
custódia de Tarquin, Aless seria liberta, enviada de volta com o rei
Macário, que não teria mais motivo para recuar. Tanto o exército real
quanto o da duquesa poderiam ficar e ajudar Nozva Rozkveta.
E Mati nunca sacrificaria o povo dela por ele.
Aless estaria segura... Nozva Rozkveta teria seus aliados...
E Tarquin teria ele.
— Diga a ele para me levar no lugar dela.

Aless olhou para o papel enquanto Tarquin terminava de


escrever as últimas palavras, mas as letras eram muito pequenas,
muito embaçadas, para ela entender. Sob os olhos atentos de
Siriano no canto da tenda, Tarquin dobrou o papel, selou-o e o
entregou a um de seus homens.
Tinha que haver alguma maneira de convencê-lo a não fazer
isso. Ela tinha que achar uma saída.
Ele se recostou na cadeira, as mãos cruzadas enquanto a
olhava de maneira serena, alguma epifania se desenrolando por trás
daquele olhar castanho profundo.
— Você realmente se apaixonou por aquela besta — disse ele,
sem exibir uma expressão.
— Ele não é uma besta! — ela disparou de volta, e Pequenina
fez um barulhinho, ainda escondida em seu cabelo, mas ela ignorou.
— Veron é amoroso, gentil e bondoso...
— Feitiçaria — disse Tarquin, com raiva. — Ele te enfeitiçou de
alguma forma. Essas bestas têm presas, garras...
— Os elfos sombrios não têm magia! Tudo o que têm é
sangremancia, que qualquer um com sangue, conhecimento e
habilidade pode usar. Você saberia disso se tentasse aprender
sobre eles em vez de apenas odiá-los com essa sua ignorância.
Ele bufou, zombeteiro.
— Se eles tivessem uma maneira de controlar sua mente,
acha que contariam a você?
— Você é impossível. Se eles pudessem controlar mentes,
você não seria capaz de estar aqui, os odiando e travando uma
guerra. — Ela cruzou os braços, o que evidenciou o cheiro de vinho
barato embebido em seu disfarce. — Você é um homem culto,
Tarquin, e um general. Com certeza entende o valor dos fatos. Você
está se deixando levar pelas emoções, e pior, seus motivos são
infundados. A sua irmã não foi morta pelos Immortali. Ela escolheu
se tornar uma.
— Você não tem como saber disso! — cuspiu ele, batendo na
mesa com a palma da mão. — E não tem provas, apenas algumas
histórias que ouviu daquelas bestas.
— Bom, e você não tem nenhuma prova de que ela morreu, ou
que os Immortali a mataram, ainda assim, você acredita nisso! —
disparou ela de volta. — Se houver pelo menos uma chance de
Arabella estar viva, mesmo como um unicórnio, você não quer pelo
menos descobrir se é verdade?
— Você se certificou de que eu não pudesse checar essa sua
história quando soltou o cavalo Immortali — respondeu ele, sua voz
mudando para uma rouquidão baixa e cheia de amargor.
— Sim, soltei o unicórnio — disse ela, respondendo a voz
baixa dele com a dela —, mas não o fiz fugir. Os seus homens
fizeram isso ao abusar dele. Você fez isso. — Quando ele apenas
inclinou a cabeça, ela acrescentou: — Se aquela é realmente
Arabella, então, teve que fugir do irmão por medo pela própria vida.
Um longo silêncio se instalou.
— Aquela. Coisa. Não. Era. Ela. — Ele olhou para cima, os
olhos fumegando. — Você sabia que seria pega, então soltou o
cavalo Immortali e inventou uma história. Uma que esperava que me
distraísse do meu propósito.
Ela balançou a cabeça.
— Tarquin, foi você quem me contou, bem aqui, sobre o amor
de Arabella por unicórnios. Você me disse que ela desapareceu ao
procurar por um. Você me disse que o unicórnio apareceu alguns
dias depois. Você me disse que ele estava destruindo as coisas e
atacando. Foi nisso que eu baseei minha conclusão, no que você
me disse, e eu não sabia nada disso antes de você me enfiar nesta
tenda. — Ela se inclinou para frente e acrescentou, com uma voz
gentil: — Deixe de lado seus planos de batalha, seu ódio, tudo o
mais em que sempre acreditou e pense nesses fatos por um
segundo, racionalmente. Você sabe que eu não poderia ter
inventado nada disso antes de libertar o unicórnio. Você sabe disso.
Ele respirou fundo e depois suspirou, encontrando os olhos
dela com um olhar suave.
— Vossa Alteza, se alguma parte disso for verdade, então tudo
o que fiz foi cometer um erro terrível após o outro, erros que nunca
poderei reverter. Se alguma parte disso for verdade, como posso
viver comigo mesmo?
— Não cometendo mais erros terríveis — respondeu ela. —
Você tem a oportunidade de encontrar Arabella e dizer a ela que a
ama e que sente muito. Tem a chance de parar com tudo isso antes
que piore, Tarquin.
Ele baixou o olhar por um momento, depois olhou para Siriano
antes de se virar para ela.
— Eu não tenho como fazer isso, Vossa Alteza. Mesmo que
Arabella ainda esteja viva, mesmo como uma dos Immortali, as
únicas pessoas aqui que poderiam parar isso são Siriano e eu. Mas
há um exército lá fora que não vai recuar até que um rio de sangue
flua. E nós dois não podemos impedi-los. — Antes que ela pudesse
responder, ele interrompeu: — Então como pode ver, Vossa Alteza,
o que você está dizendo não pode ser verdade, e eu tenho que
acreditar que não é.
Respirando fundo, ele se levantou e se dirigiu para a aba da
tenda.
— Não só você e Siriano, Tarquin — disse ela, girando em
direção a ele. — Eu também ajudaria a parar essa luta, com vocês
dois. Com tudo que eu tenho.
Ele olhou por cima do ombro.
— Já não importa mais. A Irmandade quer sangue. O rei
Macário ofereceu para trocar Veron do Bosque Noturno por você, e
eu acabei de aceitar.
Capítulo 27

O sol vermelho brilhante estava tremulando pelo céu nublado com


um tom castanho-alaranjado e, enquanto Aless esperava na frente
de uma companhia de soldados da Irmandade, aquele céu escuro
olhou para ela como fogo em meio a nuvens de cinzas, ondulando e
acinzentando até onde os olhos podiam ver.
O horizonte arborizado estava escurecendo. Quando ela disse
a Veron que Tarquin não a machucaria, ele poderia ter acreditado
nisso, confiado, mas Papà? Papà nunca a ouvira antes e não
passaria a fazer isso agora. Se ele acreditasse que Tarquin a
mataria, se concordasse em recuar em troca de sua vida, isso teria
deixado Nozva Rozkveta exposta à Irmandade. Vulnerável.
E isso Veron não permitiria. Ele não permitiria que seu povo
fosse abandonado por seus aliados, passasse fome, lutasse por
desespero, não se pudesse impedir. Ele já havia se sacrificado e se
casado por eles antes. E, se chegasse esta noite, agora estaria
sacrificando a própria vida por eles.
Tarquin não a machucaria, e nem mesmo o exército da
Irmandade faria isso. Mas não havia tanta certeza quanto a Veron.
Não venha. Não venha, Veron. Por favor, não venha.
Talvez Tarquin estivesse errado. Talvez Papà não concordasse
em trocar Veron. Talvez tudo isso fizesse parte de uma manobra e,
em vez disso, um ataque fosse iminente, enquanto Veron seria
mantido em segurança e a sensação ruim em seu peito se
dissiparia.
Na escuridão, a lua cheia subiu no céu, dourada, enorme.
Pequenina, que estava no ombro de Aless, espiou por trás de
seus cabelos.
— Fique escondida, Pequenina — sussurrou ela, sua voz
quase inaudível. Se alguém da Irmandade pegasse um dos
Immortali, mesmo um minúsculo, as coisas poderiam acabar muito
mal.
Pequenina voou de volta para suas mechas e subiu por sua
orelha, tinindo suavemente com sua voz de sininho.
Tarquin estava tenso como uma vara ao lado dela, os olhos
procurando no horizonte, Siriano ao seu lado, e uma companhia de
homens rígidos atrás deles. Eram homens severos, com olhos
cruéis e rostos inflexíveis, uma espécie de escuridão emanando
deles, uma frieza, e isso a fez tremer. Estes não eram homens que
buscavam fazer as pazes, não importa qual fosse a oferta. Não era
para isso que tinham vindo.
Ela poderia ter sido capaz de convencer Tarquin a mudar de
curso, mas e quanto às centenas de homens ao seu lado, os
milhares? Alguns tinham sua própria Arabella, e uma verdade por
trás dela, e outros acreditavam em coisas completamente falsas, e
outros ainda tinham tanto medo de compartilhar o mundo que
encobriram esse medo com agressão. O ódio deles vinha da
ignorância pura e amarga, que preferiam descontar nos Immortali
em vez de assumir a responsabilidade por ela.
Este mundo precisava de uma biblioteca como a que ela e
Veron sonhavam em construir. Este mundo precisava de cem
bibliotecas. Mil delas.
Ela olhou para além deles, para o horizonte escuro, onde um
pequeno grupo de silhuetas se aproximava.
Não, Sagrada Mãe, por favor...
No entanto, ela distinguiria a forma dele em qualquer lugar, sua
marcha, a um quilômetro de distância, no escuro... ela o
reconheceria.
Seus pés estavam se movendo antes que ela pudesse pensar,
mas Tarquin agarrou seu antebraço e a puxou para trás.
— Ainda não — disse ele, de modo severo, segurando-a no
lugar. — Cem metros.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, ela queria parar uma
guerra, queria proteger Veron, ela nunca sonhou que ele
desobedeceria a rainha Zara e viria atrás dela. Ela o amava por
isso, mas agora, o que parecera ser sua melhor decisão, tornou-se
o seu mais grave erro de cálculo.
Papà tinha que ter um plano de contingência. Não podia ser só
isso. Ele não podia apenas entregar Veron. Não podia.
O coração dela trovejou no peito enquanto ela olhava para a
distância, para a amplitude de seus ombros, seu cabelo comprido
balançando ao vento, e, quando ele se aproximou, a forma de seu
rosto ficou nítida, sua mandíbula esculpida, seu nariz reto, suas
sobrancelhas pálidas, seu queixo saliente... e aqueles olhos
dourados intensos que ela observara inúmeras vezes, nos quais viu
bondade, raiva, frustração, prazer, amor...
— Veron — sussurrou ela, e cada parte sua tremeu, suplicava
que fosse até ele, para se envolver em torno dele e nunca o deixar
ir.
Ao lado dele estava Lorenzo, em uma brigandina violeta sobre
uma jaqueta protetora de um tom mais escuro, com uma bandoleira
de facas em torno do peito e um pequeno esquadrão da Guarda
Real o acompanhando. Seu rosto estava cansado, os olhos
abatidos. Então Papà o mandara.
— Aless — disse Veron, sua voz falhando, e uma dor se
formou na garganta dela.
— Veron — sussurrou ela, inclinando-se para a frente,
puxando o braço do aperto de Tarquin.
Enfim, Tarquin caminhou na direção deles, ainda a segurando,
Siriano ao seu lado, e um esquadrão de soldados com ele. Ela lutou
para se livrar de sua mão, tentando se libertar, até que finalmente
ele a soltou, e Aless correu para Veron, para seus braços abertos
esperando por ela. Seu abraço se fechou ao seu redor e ele a
segurou forte, beijou o topo de sua cabeça, e, quando olhou para
ele, ela acariciou os lábios dele com os seus.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, depois de machucá-lo
como havia feito, Aless não tinha direito a isso, a ele, e Veron
deveria afastá-la, evitá-la, odiá-la, porém, mesmo sabendo de tudo
isso, naquele momento, ela não poderia cogitar não o abraçar com
todas as forças.
— Veron, eu sinto muito — disse ela, baixinho, com os olhos
ardendo enquanto se enchiam de lágrimas. — Achei que se eles me
levassem, não me matariam, e Papà teria que intervir... e que ele
poderia parar a guerra. Sinto muito...
— Shhh — sussurrou ele em seu ouvido, acariciando seu
cabelo suavemente. — Não vamos falar disso. Não agora. Você
tinha boas intenções... eu sei disso. Doeu, profundamente, mas sei
que você quis fazer o bem. — Ele ergueu o queixo dela com
gentileza, fazendo carinho nele com a ponta calejada de seu
polegar, observando-a com um olhar carinhoso.
— Gavri e Valka estão...
— Elas estão seguras. Preocupadas com você — disse ele,
com um bufo suave —, mas seguras. — Ele estava tão calmo, de
um jeito inacreditável, impossível.
— Me desculpe por não ter contado — desabafou ela. — Eu
sabia sobre seu pai, e eu...
— Agora eu sei por que ele fez o que fez, Aless. — Sua voz
estava calma, serena, enquanto ele estudava seus olhos. — Meu
pai. Ele saiu sem dizer uma palavra porque não podia deixar
ninguém impedi-lo. Ele estava determinado a desistir de sua vida...
porque nos amava. Aquilo me machucou na época, mas agora
entendo. O que ele fez não foi uma traição. Foi um último ato de
amor.
Havia algo diferente nele, algo decidido e pacífico, uma calma
extraordinária e, ainda assim, aquilo a rasgava por dentro, a
enfurecia tanto que ela queria gritar, implorar e chorar, fazer
qualquer coisa e tudo ao mesmo tempo para afastar essa expressão
resignada, e afastar tudo e todos, menos Veron.
Um par de mãos se fechou em torno de seus braços – um
guarda real.
— Não — disse ela, balançando a cabeça de um lado para o
outro enquanto os homens de Tarquin prendiam Veron, afastavam-
no dela, arrastavam-no. — Por favor, espera...
Ela se contorceu para olhar para ele por sobre os ombros,
onde seus olhos ainda estavam nela, também. Uma dureza por trás
deles, um controle que deixava todo o seu corpo tenso enquanto
eles amarravam seus pulsos.
— Veron — gritou ela, enquanto Lorenzo a segurava e
sussurrava palavras de conforto.
— Viva, Aless — gritou Veron, com a voz rouca. — Eu te amo.
Um de seus captores chutou a parte de trás do joelho de
Veron, forçando-o a se abaixar na grama, enquanto outro agarrou
um punhado de seu cabelo e puxou sua cabeça para trás.
Ela gritou, um som estridente que não reconheceu como dela,
enquanto Veron mantinha a mandíbula cerrada, sem emitir um som,
rígido, e, quando uma lâmina sibilou ao ser tirada de uma bainha,
ela implorou, implorou, uma série de palavras choramingando de
seus lábios...
— Por favor — chorou ela, seu pulso martelando em seu peito,
selvagem, violento. — Não! Veron! — Seu grito cortou o ar,
seguindo pelo som em staccato de cascos batendo contra o solo.
Uma rajada de pelos brancos e imaculados explodiu das
árvores – o unicórnio – correndo em direção a Tarquin, direto para
ele.
Os homens gritaram, sacaram espadas e arcos, e os soldados
mantendo Veron olharam, surpresos.
— Não atirem! — gritou Tarquin, o unicórnio se aproximou
mais cem metros, mais de uma tonelada de músculos e poder
rasgando a grama.
— Atire nele! — gritou alguém.
— Não atire! — Tarquin encarou o unicórnio. — Arabella!
O unicórnio correu para ele – cinquenta metros, trinta metros...
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, talvez não fosse ela...
Quinze metros...
Quatro pernas se transformaram em duas, mechas de cabelos
pretos brotando de sua cabeça e, linda e ágil, ela correu, chorando,
tropeçando sobre suas próprias pernas até que caiu na frente de
Tarquin.
Murmúrios de “anormal” e “matem ela” ondularam através das
forças da Irmandade enquanto Tarquin corria para ela, despindo o
seu casaco de oficial para envolvê-la nele. Ele caiu de joelhos diante
dela.
— Arabella — disse ele, com a voz falhando, e a pegou em
seus braços, onde ela chorou agarrada em seu peito. — Sinto muito,
Arabella. Lamento tanto. — Ele a balançou gentilmente, dando
tapinhas em suas costas.
— Pare com isso, irmão — gemeu ela, enquanto olhava para o
rosto dele com seus olhos verdes grandes e deslumbrantes. —
Chega de violência por minha causa. Chega de violência. Por favor.
Os captores de Veron não se moveram, e nem ele, que
continuou congelado de joelhos no chão, com a cabeça puxada para
trás, mas a mão que o segurava tinha afrouxado seu aperto.
Veron, por favor, fique seguro... Veron... Ela se moveu, mas
Lorenzo a segurou e balançou a cabeça. Ele deu um tapinha em
uma das facas embainhadas em sua bandoleira.
A companhia de soldados da Irmandade permaneceu parada,
alguns com os arcos tensionados, outros olhando. Dois se
aproximaram com bestas a postos.
— Abaixem as armas — ordenou Tarquin.
Os besteiros não se mexeram.
— Eu disse abaixem as armas! — Ele olhou para os besteiros.
— Vocês ouviram o general — gritou Siriano, aproximando-se
deles com a mão direita brilhando uma luz verde fraca.
Uma besta disparou.
Tarquin se jogou na frente de Arabella.
O virote se alojou em seu ombro.
Veron deu uma cabeçada no captor que puxava seu cabelo.
Outro ergueu a espada.
Lorenzo lançou uma faca no pescoço do homem.
O caos completo eclodiu entre as patentes da Irmandade, lutas
internas e flechas dispararam enquanto Siriano erguia um muro de
terra entre a tropa e sua equipe de frente. Lorenzo ordenou que a
Guarda Real atacasse e eles entraram em ação, atacando os
captores de Veron enquanto ele lutava contra eles.
Um deles foi para cima dela e de Lorenzo, mas ela se abaixou,
cobrindo a cabeça enquanto Pequenina voava e atacava o rosto do
homem. Ele a golpeou, mas errou, e Lorenzo jogou uma saraivada
de facas no peito revestido de couro do homem. Ele balbuciou e
caiu.
— Pequenina! — gritou ela, e a fada voou de volta e pousou
em seu ombro, tilintando com raiva.
Um guarda real cortou as cordas que prendiam Veron e ele
pegou uma lâmina do chão, lutando até que cada soldado da
Irmandade daquele lado da parede estivesse morto.
Ela correu para ele, e Veron se virou, pegando-a em seus
braços, inalando o seu cheiro, e logo eles estavam retornando para
o lado de Lorenzo e sua Guarda Real.
— Veron, por um segundo, eu pensei... — A voz dela falhou.
Seus olhos estavam fixos na parede de terra e ele segurava a
lâmina em posição de ataque, mas desviou o olhar na direção dela
por um momento.
— Eu também — respondeu ele, abrindo um sorriso
preocupado.
Tarquin se moveu para trás em direção a eles com Arabella e
Siriano, sacando a espada e ficando de frente para o muro.
— Para trás, Belmonte! Ou eu vou cortar a sua cabeça! —
disse Lorenzo, desembainhando a espada dele.
Os olhos de Tarquin se fixaram nele por apenas um momento
enquanto segurava Arabella perto de si, protegendo-a.
— Eu me rendo. Por favor, não quero fazer mal nenhum a
vocês. Só quero ter certeza de que Arabella está segura.
O barulho da batalha aumentou do outro lado do muro, caótico,
ensurdecedor, e os homens começaram a surgir no final da parede.
Siriano ergueu outra perpendicular a ela.
— General, precisamos nos mover.
— Espere — disse Lorenzo.
— Pelo quê? — sibilou Tarquin, e Arabella soluçou, tremendo
contra ele como uma folha numa tempestade.
O chão tremia enquanto ela girava no lugar.
A cavalaria pesada de Silen se aproximava deles – centenas,
milhares –, com um véu brilhante acima deles, iluminando o
caminho – fadas.
Pequenina disparou e se apressou para se juntar a eles.
— Juntem-se! — gritou Siriano e, com um gesto, ergueu uma
parede triangular entre eles e a cavalaria se aproximando.
Seu primeiro feitiço desabou e o batalhão da Irmandade
atravessou. Com um aceno de Tarquin, Siriano desintegrou a
segunda parede e todos eles permaneceram dentro da proteção do
triângulo, amontoados, enquanto um terremoto em forma de cavalos
passava por eles e se infiltrava nas forças da Irmandade em
combate.
Gritos e relinchos rasgaram o ar, seguidos dos sons de
cornetas e ordens gritadas.
A Irmandade foi totalmente dizimada, corpos quebrados e
sangue...
Veron a puxou para ele, escondendo o rosto dela contra seu
peito, e ela balançou a cabeça, apertando os olhos. A batalha, a
violência, eram horríveis, mas Veron estava com ela, seguro, seu
calor a acalmando, a respiração suave na cabeça dela, suas mãos
acariciando as costas de Aless, ele estava vivo.
— Papà planejava atacar a Irmandade com força total e
resgatar Veron quando você estivesse segura — disse Lorenzo,
calmamente. — Você não pensou que iríamos apenas entregá-lo,
não é?
Capítulo 28

De joelhos na antecâmara de Mati, Veron observava enquanto ela


caminhava de um lado para o outro diante dele, Yelena e Aless.
Havia uma violência em seu passo, na contorção de seu rosto, e ele
tinha o bom senso de saber que só devia falar quando ela
ordenasse. Ainda mais depois de tudo o que fizera.
— Vossa Majestade — deixou escapar Yelena. — Só quero
dizer que foi tudo ideia da humana e não tive nada a ver com isso.
Na verdade, eu nem fazia parte disso até que ela me pediu ajuda e,
como convidada daqui, não senti que poderia recusar ajuda a uma
princesa de...
Mati foi até Yelena, seus olhos selvagens, ficou cara a cara
com ela e rugiu. Yelena apertou os olhos diante do som
ensurdecedor, enquanto ele e Aless se inclinaram para longe.
— Você — disse Mati, com escárnio. — Depois de sua
conspiração fraca e covarde para me depor, agora sequer tem a
honra de assumir a responsabilidade por suas ações? A rainha
Nendra me deu você como presente. Para fazer o que eu achar
melhor. E seus dias como kuvara acabaram. — Mati permaneceu na
cara de Yelena, seu olhar implacável, mesmo assim, Yelena não
abriu os olhos. O momento durou uma eternidade, muito além do
que era confortável. — A partir de agora você será um sluha e
servirá as kuvari e os volodari da maneira que desejarem.
Uma sluha. Ela teria que servir como uma criada.
Yelena estremeceu, mas não falou.
Mati se moveu para frente de Aless.
— E você. Eu lhe dou meu filho, meu sangue, e as boas-
vindas ao meu reino, então você me trai na primeira oportunidade. O
que estava pensando?
Aless chacoalhou, seus dedos tremendo em seus lados. — Eu
p-pensei que se eu f-falhasse e fosse capturada, meu pai teria que
s-se envolver e ajudar. E se eu tivesse s-sucesso, a Irmandade não
t-teria n-nenhuma vantagem.
Mati estreitou os olhos, mas havia um brilho neles.
— Seja como for, essa decisão não era sua para tomar.
Desobedeça às minhas ordens novamente e vou pôr você para
colher líquen de caverna até esquecer como a civilização é.
— S-sim, Vossa Majestade. — Aless assentiu rápido.
— É sua sorte sombria que o rei Macário e eu escolhemos
declarar isso uma operação conjunta, na qual ambos concordamos
em trocá-la pelas minhas duas kuvari como parte de uma estratégia
maior. Não preciso dizer como seria se o mundo acreditasse que eu
sacrifiquei a filha do meu aliado humano ou, pior, que não pude
conter uma única humana que mal saiu de sua infância.
Aless engoliu audivelmente.
Mati encarou cada um deles.
— Se qualquer um de vocês contar sobre isso para alguém,
vou arrancar suas línguas com minhas próprias garras. Vocês
entenderam?
— Sim, Vossa Majestade — disseram em uníssono.
Por fim, ela caminhou até ele e se agachou.
— E você, Veron, que já foi uma honra para este reino e para
mim, me desapontou gravemente com sua desobediência. — Seus
olhos se suavizaram por um instante, enquanto suas sobrancelhas
se uniam. — Por conta disso, você está dispensado dos volodari até
segunda ordem...
Dispensado dos volodari? Era a única coisa na qual ele tinha
alguma habilidade considerável. Porém, mesmo com o seu corpo se
rebelando, sabia que merecia qualquer punição que Mati desse a
ele, e essa, considerando tudo, foi leniente.
— ...e será realocado com os stavbali para construir o que
Nozva Rozkveta precisar.
Os stavbali faziam o trabalho de construção, auxiliando os
inzenyri e os Cantores de Pedra, mas ele faria o que fosse
necessário para se redimir.
— Dito isso — acrescentou ela, um leve sorriso curvando seus
lábios. — Você fez tudo ao seu alcance para proteger a quem você
ama. — Seu rosto se suavizou por um momento. — Estou orgulhosa
que tenha feito isso, que você amou ferozmente e perdoou, mesmo
que suas ações tenham sido imprudentes.
Ela estava... orgulhosa? Ele não se arrependia do que fez,
nem um pouco, porque, embora Mati estivesse com raiva e ele a
tivesse desobedecido, Aless ainda estava aqui. Ele ainda estava
aqui. Toda Nozva Rozkveta ainda estava aqui. O que eles fizeram
não foi certo, mas os trouxe a este momento, em que todos ainda
estavam vivos e tinham um futuro pela frente.
Mati estava com raiva... mas às vezes havia preocupações
mais importantes do que não irritar os entes queridos. Como salvar
o amor de sua vida e tentar parar uma guerra. E, por isso, ele
aceitaria essa punição, cem punições, mil – desde que Aless ainda
vivesse e respirasse.
Ele olhou para Aless, que ainda tremia, mas, se Mati estava
fortificando os stavbali, isso só podia significar uma coisa: o sonho
de Aless estava prestes a se tornar realidade. O sonho deles.
Suspirando, Mati se levantou.
— Apesar de todas as suas ações, conseguimos evitar uma
guerra, reafirmar uma aliança e construir uma nova. Agora,
levantem-se e se juntem a mim no salão nobre, onde o rei Macário,
a rainha Nendra, a duquesa Claudia, e toda Nozva Rozkveta
esperam.

Veron estava no canto do salão nobre, Aless segurando o seu


braço, enquanto Mati apertava a mão do rei Macário e, em seguida,
a da duquesa Claudia. Lorenzo estava ao lado de Aless, com
Bianca e Luciano, que vieram para tentar mudar a mente de Tarquin
– ainda que tarde demais. As kuvari já o tinha sob custódia no
Portão de Heraza.
— O que você acha que foi o acordo final? — sussurrou Aless,
inclinando-se para ele.
Sobre aquilo ele tinha ouvido.
— Uma reafirmação da aliança Sileni-Nozva Rozkvetana. Um
acordo mais concreto entre Stroppiata e os reinos aliados. A região
de Roccalano foi oferecida para compensar a rainha Nendra pela
perda de seus volodari assassinados, com grandes quantidades de
comida e outros suprimentos. A Irmandade apodrecerá e será
terminada pela coalizão. E Tarquin Belmonte será exilado.
Tinha sido uma gentileza com Bianca e Luciano, e com
Arabella. Mas também, com o exílio, Tarquin não poderia ser usado
como mártir para atiçar ainda mais os descontentes; ele
simplesmente desapareceria e seria esquecido.
Aless descansou sua cabeça no braço de Veron, e havia algo
sobre ela em vestes Nozva Rozkvetanas que lhe agradava
enquanto ele olhava para ela. Suas roupas humanas sempre lhe
serviram bem – e ele diria ou faria qualquer coisa para vê-la naquela
coisinha vermelha e translúcida que ela usara na noite de núpcias –,
mas, nestas vestes simples, ela afirmava algo para ele, para sua
família, para toda Nozva Rozkveta, sem nem sequer dizer uma
única palavra. Essa mensagem importava muito para ele, mesmo
que sua Aless nunca pudesse desaparecer em segundo plano,
nunca se misturasse entre o povo dele – e ele não queria isso. Essa
não seria a mulher com quem ele se casou... e estava se casando
mais uma vez naquele dia, com a Entrega.
— E quanto a Arabella? — perguntou ela.
Arabella se movia livremente por Nozva Rozkveta, mesmo
agora, embora parecesse passar a maior parte do tempo com Noc,
que era capaz de responder à maioria de suas perguntas sobre sua
nova natureza.
— Ela quer aprender o controle de sua Transformação —
respondeu ele. — E minha mãe concordou em ajudá-la. —
Unicórnios sempre foram uma força benevolente no mundo, e a
própria Arabella o salvara da morte iminente e impedira uma guerra.
Em breve, Mati enviaria uma equipe de volodari para rastrear
outros unicórnios, que geralmente não queriam ser encontrados, em
um esforço para achar o criador de Arabella, assim ele poderia
ajudá-la a controlar sua Transformação através de um laço vitalício
com ela.
— E, em troca, Tarquin vai embora em silêncio. — Aless
respirou fundo.
— Algo assim.
Ela lhe deu um sorriso fraco, embora logo desapareceu. Toda
essa situação a atingiu duramente – eles quase perderam um ao
outro, uma guerra quase foi instigada, pessoas tinham morrido, e
nem todos os mortos foram os membros odiosos da Irmandade. E
tudo isso foi por conta da ignorância.
Foi pela graça sombria do Sagrado Ulsinael que a paz
sobreviveu.
Mati se virou para a assembleia de humanos e elfos sombrios
e ergueu as mãos.
— Hoje, reafirmamos uma amizade entre o reino de Silen e
Nozva Rozkveta, entre humanos e elfos sombrios, construída em
uma terra compartilhada, um propósito compartilhado e o
casamento de nossos filhos. — Sorrindo, Mati gesticulou para os
dois, e Aless fez uma reverência enquanto Veron se curvava. —
Essa amizade foi forjada com um casamento, e hoje nós a
renovamos com um casamento, mais uma vez. Convido todos a se
juntarem a nós no Portão de Baraza em uma hora para a Entrega
entre meu filho, Veron, e sua esposa, Alessandra.
Todos se voltaram para eles e aplaudiram, e ele não podia
evitar um zumbido nervoso correndo em suas veias. Se Aless o
aceitasse, aquele dia mudaria a vida deles para sempre.
Ele era um elfo sombrio, imortal, e o amor de sua vida era uma
humana.
Naquele dia, ele havia chegado tão perigosamente perto de
perder Aless, e nunca mais queria se sentir assim. Nunca.
— Também escolhemos compartilhar nosso conhecimento com
o reino do céu para forjar uma parceria que ajudará a proteger
nossos povos contra aqueles que pretendem nos prejudicar,
enquanto recebemos o povo do reino do céu para que nos
conheçam — continuou Mati.
Ao lado dele, a respiração de Aless falhou.
— Uma biblioteca — declarou Mati, com aplausos
preenchendo o silêncio que ela deixou.
Aless segurou a mão dele com força, quase transbordando de
felicidade.
— Vamos convidar especialistas de todo o mundo que possam
nos ajudar a aprender sobre nossas novas circunstâncias, enquanto
compartilhamos com o mundo a nossa cultura, o nosso
conhecimento, a nossa língua, ensinando qualquer um que deseje
aprender. Para esse fim, a Ordem da Terra, uma ordem monástica
dedicada a servir a deusa Terra, concordou em ser nossa parceira.
— Mati gesticulou para o grand cordon dos Paladinos ao lado da
duquesa Claudia, que inclinou a cabeça para agradecer os
aplausos.
— Minha nora supervisionará o projeto e garantirá que atenda
às necessidades de todos. — Mati sorriu para Aless, que arquejou,
mal conseguindo recuperar o fôlego.
Apesar de tudo, ou talvez até por causa disso, era seguro dizer
que Mati gostava de sua esposa.
Depois de mais uma salva de palmas, Mati ergueu as mãos.
— Agora, vamos todos nos preparar para o casamento.
— A biblioteca — sussurrou Aless, com as bochechas
avermelhadas. — Nossa biblioteca... e a segunda cerimônia. Tudo
em um único dia. Veron, eu...
— Eu sei. — Ele sorriu. — Venha, vamos nos preparar.
Ele estava preparado. Naquele dia, com todo seu coração, ele
lhe ofereceria tudo o que tinha e tudo o que era. E rezava para que
ela dissesse que sim.

Aless agarrou a antiga balaustrada de pedra nas ruínas atrás


do Portão de Baraza, onde o Bosque se enrolava em torno de
pilares de pedra em ruínas e em cada pedaço de pedra do pátio,
uma linda trama de videiras verdejantes e rosas vermelhas
luminosas que só brilhavam cada vez mais enquanto o mundo
escurecia.
Logo seria o anoitecer, e ela faria a Entrega a Veron.
Eles pararam uma guerra, ainda tinham um ao outro, e ele não
a odiava depois que ela o abandonara. E a rainha Zara havia
anunciado a biblioteca. Logo, haveria várias bibliotecas por toda
Silen, abertas a todos, desfazendo aquele ódio ignorante livro por
livro.
Aquilo estava mesmo acontecendo. Tudo.
Ela respirou fundo três vezes.
— Alessandra. — A voz de Papà veio dos degraus. — Você
devia estar feliz. Finalmente conseguiu o seu desejo.
Ele quis dizer a biblioteca ou Veron?
— Papà, este é o melhor dia da minha vida.
Ele acariciou a bochecha dela, o olhar carinhoso.
— O desejo de sua mãe se tornou realidade, mas ela se foi.
Gostaria que visse o perigo nisso.
Ela balançou a cabeça.
— Mamma morreu fazendo o que amava. Era importante para
ela, e ela, e seu propósito, também são importantes para mim.
Quero o desejo dela vivo. Talvez eu fosse inútil no seu mundo —
disse ela, e quando a boca de seu Papà se abriu, ela acrescentou:
—Sim, ouvi quando disse isso para Mamma. Mas finalmente o
encontrei. O meu mundo. Ajudei a semear a paz, e continuarei
fazendo isso. A biblioteca será um símbolo de conhecimento,
educação e esperança.
Papà exalou um suspiro.
— Alessandra, tentei toda a sua vida protegê-la. Isso,
envolver-se em algo tão arriscado, se fazendo vulnerável e
acessível a qualquer canalha... — Ele balançou a cabeça, com
tristeza. — Você ainda está aqui, e a sua mãe se foi. Deixe o
passado no passado. Você devia apenas viver em segurança.
Não era da natureza dela se esconder e viver uma vida
segura. Não enquanto ela ainda tinha as duas mãos e havia
pessoas que tinham sede de conhecimento, mas não tinham as
ferramentas para adquiri-lo. Mamma havia tentado iluminar o
mundo, lutar contra a ignorância que gerava medo, e essa era uma
causa digna, pela qual ela continuaria a lutar.
— Mamma se foi — sussurrou Aless —, mas ela não precisa
ser esquecida. Fizemos isso ao ignorar os desejos dela, o trabalho
de sua vida, tudo o que importava para ela. Eu entendo que você
tenha boas intenções, mas escolho um caminho diferente, Papà.
Outro suspiro pesado o deixou, mas ele beijou a bochecha
dela.
— Parabéns, filha. Posso não concordar com você, mas sei
que a sua mãe ficaria orgulhosa. Tanto da sua biblioteca quanto de
você.
Ela não pôde deixar de sorrir e, com um aceno final, ele
desceu os degraus e se dirigiu para a frente das ruínas.
Bianca se aproximou dela com uma Gabriella radiante.
— Bom, isso foi inesperado.
Ela não pôde evitar uma risada enquanto Bianca a olhava.
— Tem certeza de que este é o vestido certo? — perguntou
Bianca.
Aless passou os dedos sobre o tule vermelho do vestido de
casamento que usara em Bellanzole. Servia perfeitamente, e as
saias emitiam um brilho, com uma cauda de três metros atrás dela.
Veron pediu que ela usasse aquele vestido, o mesmo exato
vestido, e, como não trouxera outro para a segunda cerimônia, ela
concordou, com certa relutância. Além disso, quando todos em
Bellanzole viram aquela vestimenta como chocante, ele não, nem
um pouco. Significava algo diferente para ele.
— Tenho.
— Você está linda — disse Gabriella, tirando uma mecha de
cabelo do rosto dela. Ela e Danika haviam voltado com Papà e
Lorenzo em segurança, graças à Mãe.
— Obrigada. Por levar as mensagens até Bellanzole. Você fez
uma coisa muito corajosa e que salvou vidas — disse ela, pegando
a mão de Gabriella.
Gabriella corou, depois inclinou a cabeça.
— Foi uma honra.
Os olhos de Bianca se arregalaram, e Aless se virou para ver
Veron se aproximar, vestindo seu melhor couro, montado em Noc.
Ela piscou, e de repente estava em L’Abbazia Reale mais uma vez,
observando um príncipe elfo sombrio em um enorme cavalo preto
trotando pelo corredor, vestido para batalha, majestoso e
intimidante, lindo e musculoso como os heróis da antiguidade,
esculpido em mármore de Carrerra.
Ela piscou de novo, e Veron era o mesmo homem, mas muito
mais. O homem que ela amava, que a amava. O homem que a
ouvia. O homem que queria viver os sonhos dela ao seu lado. O
único com quem ela podia imaginar querer passar o resto da vida.
Ela não viveria nem uma fração da vida dele, mas viveria os
dias que teriam juntos ao máximo, sabendo que ele a amava assim
como ela o amava. Isso era mais do que jamais ousara desejar.
Com um sorriso no rosto, Veron explorou cada pedacinho dela
com um olhar atento, fazendo suas bochechas se aquecerem.
— Acho que ele gosta do vestido — sussurrou Bianca em seu
ouvido com uma risada.
Ela fez um barulho para Bianca ficar quieta e se aproximou da
balaustrada.
— Está na hora?
— Está. — Então, naquele lugar, no pátio florescente dos seus
sonhos, ele estendeu a mão para ela. — Você me daria a honra?
Ela pegou a mão dele, desceu os degraus e deixou que a
ajudasse a subir na sela. Ele assentiu para Bianca e Gabriella, que
eram agora como unha e carne, e que ficaram assistindo enquanto
partiam. Bianca até deu uma piscadela a Aless. A encrenqueira.
As provocações delas fizeram seu coração palpitar, e ali,
abençoada nos braços de Veron, ela tinha todas as razões do
mundo para estar feliz.
Com os olhos fechados, ela ajeitou a cabeça sob o queixo de
Veron, aconchegou-se em seu abraço e inalou seu cheiro fresco de
água de riacho da floresta.
— Você tem certeza de que gosta do vestido?
— Eu gosto. Combina com você, meu amor — respondeu,
soltando um suspiro suave. Um tom leve e brincalhão dançou em
sua voz profunda. — Mas eu tenho uma coisa para perguntar —
acrescentou, e aquele tom brincalhão desapareceu.
— Hum? — Ela abriu os olhos, endireitando-se um pouco.
Ele deixou o silêncio perdurar um pouquinho.
— Tem certeza de que quer fazer isso?
Ela olhou para ele, mas não havia espaço para ver o seu rosto.
Faltando minutos para a Entrega, ele duvidava dela?
— Uma vez eu disse que não poderia libertá-la do acordo —
disse ele, baixinho. — Mas agora, Aless, se você me disser que isso
não é o que você quer, eu vou ajudá-la, a qualquer custo.
Era disso que se tratava? Ele lhe dissera em Stroppiata que
não poderia libertá-la, mas ela não queria ser liberta de nada. Ela
queria aquilo, ele, com cada fibra do seu ser.
Mas Veron... ele queria que ela escolhesse fazer isso, não que
apenas aceitasse. Ele apoiaria a decisão dela, quer fosse para fazer
o que ele desejava ou não.
Se eles não estivessem na sela e prestes a ficar na frente de
centenas de pessoas, ela pularia em cima dele ali mesmo.
— Veron, eu quero uma vida com você. Eu escolho isso.
Escolho você.
Ele soltou um suspiro pesado.
— Isso é um alívio. — Após algumas respirações profundas,
continuou: — Mas eu queria... eu precisava perguntar.
— E eu amo que você tenha perguntado. — Ela acariciou o
peito dele enquanto Noc os levava para a frente do Portão de
Baraza, onde nada menos que trezentos convidados cercavam as
ruínas cobertas pelas videiras. As flores do Bosque tremeluziam ao
seu redor, cintilavam, e o brilho suave como estrelas que pairava no
ar eram as fadas presentes.
Uma se separou dos outros e se aproximou rápido, uma
pequena estrela brilhante, e pousou em seu ombro com um tilintar
feliz em saudação. Uma pequena fada de cabelo cor-de-rosa e
envolta em folhas.
— Pequenina — sussurrou ela, e sorriu. — Você veio.
— Pequenina? — perguntou Veron, curvando-se para olhar. —
Olá — sussurrou, alegre.
Pequenina passou as mãos pelos cabelos e cruzou as pernas,
vibrando as asas como se para demonstrar sua beleza cintilante.
— Você fez algo diferente no cabelo? — perguntou Aless,
recebendo um tremeluzir de asas animado em resposta.
Xira, a mística da fonte da vida, estava no topo dos degraus
das ruínas em suas vestes violetas, seu cabelo branco se agitando
na brisa. Enquanto a rainha Zara – Mati – parecia presidir quase
todos os eventos em Nozva Rozkveta, Entregas eram reservadas às
místicas.
Veron desmontou e a ajudou a descer da sela de Noc.
— Obrigado, velho amigo — disse ele em voz baixa, dando
tapinhas no pescoço do cavalo.
Noc balançou a cauda e saiu alegre para se posicionar do lado
da escadaria, de onde Arabella observava a assembleia com
interesse, virando sua cabeça com chifre de um lado para o outro.
Dhuro e Gavri estavam com ela, ocasionalmente sussurrando
coisas.
Veron pegou sua mão e, juntos, eles subiram os degraus para
ficar diante de Xira. Quando seus olhos se encontraram, ele estava
sorrindo, e Aless não pôde deixar de sorrir também. Eles estavam
fazendo aquilo. Enfim estavam fazendo aquilo.
— Nozva Rozkveta lhes oferece as boas-vindas — anunciou
Xira a todos os convidados. — Hoje nos reunimos em apoio ao
príncipe Veron de Nozva Rozkveta e à princesa Alessandra
Ermacora de Silen enquanto fazem a Entrega um ao outro, perante
o Profundo, a Escuridão e o Sagrado Ulsinael, e prometem trilhar
suas vidas juntos. Vamos fazer uma pausa para dar as boas-vindas
ao Sagrado Ulsinael aqui, que abençoará esta união com sua graça
sombria.
Xira juntou as mãos, fechou os olhos e inclinou a cabeça,
assim como Veron, Mati e todos os elfos sombrios presentes, e
Aless fez o mesmo.
Sagrada Mãe, abençoe a nossa união. Sagrado Ulsinael,
abençoe a nossa união.
Ela orou, desejando de todo o coração que suas preces
fossem ouvidas e, quando abriu os olhos, Veron e Xira estavam
sorrindo para ela. Suas bochechas se aqueceram, mas ela
sustentou o olhar dele, mesmo quando aquele sorriso brincalhão
aqueceu ainda mais sua face.
Xira pegou as mãos deles e as juntou.
— Façam as suas Entregas.
Segurando a mão dela, Veron acariciou seus dedos, o sorriso
desaparecendo e seu semblante se tornando pensativo,
intensificando aqueles olhos dourados calorosos enquanto ele se
mexia nas botas. Em Bellanzole, ele chegara com um arsenal e
fizera uma Entrega para ela bem ali, no corredor da L’Abbazia
Reale. Fora um momento deslumbrante, que ela nunca esqueceria.
Naquele dia, ele não carregava espada, arco, facas, escudo ou
pergaminho.
Ele estava diante dela, segurando sua mão, olhando para ela
com carinho.
— Aless, quando nos casamos pela primeira vez em
Bellanzole, eu lhe ofereci poder, sobrevivência, habilidade, defesa e
sabedoria. Só que não a conhecia ainda — disse ele, estudando os
olhos dela enquanto um sorriso sutil reivindicava seus lábios. —
Mas eu a conheço agora e você não precisa que eu ofereça
nenhuma dessas coisas. Você é uma força a ser reconhecida por si
mesma, e tenho muita sorte de estar ao seu lado.
A respiração de Aless ficou presa em sua garganta, e ela só
conseguia ofegar.
— Alessandra Ermacora, princesa de Silen, eu, Veron de
Nozva Rozkveta, entrego a você meu amor, minha lealdade e minha
vida — Ele segurou a mão dela contra o seu peito —, para serem
usados para os seus objetivos ou os nossos, enquanto trilhamos
nossas vidas juntos a partir deste dia e até quando o Profundo
permitir.
A vida dele?
Os olhos dourados de Veron continuaram fixos nos dela, e ela
perdeu ainda mais o fôlego.
A vida dele... a vida...
Ele quis dizer... um laço vitalício?
Ela arfou.
— Veron...
Ele não podia fazer isso! Pela misericórdia da Sagrada Mãe,
um laço vitalício? Oferecer para partilhar a sua força vital com a ela,
para fortalecê-la, para se enfraquecer quando ela enfraquecer, para
morrer ao mesmo tempo que ela?
Ele assentiu para Xira, que segurava um aglomerado de cristal
em forma de uma pequena estrela brilhante e metálica.
— Eu sou mortal — sussurrou ela. — Você não pode...
Ele beijou a mão dela.
— Isso não a tornará imortal. Mas, juntos, teremos algo mais
do que uma vida mortal, e algo menos do que uma vida imortal.
Disso tenho certeza.
Aquilo era... Ela balançou a cabeça.
— Veron, você tem certeza...
— Eu quero passar as nossas vidas juntos, Aless. Sempre
juntos. Quer sejam cem anos ou mil, seja o que for que o Profundo,
a Escuridão e o Sagrado Ulsinael permitirem. Por favor, faça de mim
o homem mais feliz do mundo e diga sim.
Dizer sim? Dizer sim para uma vida inteira com Veron, para
anos, décadas e séculos de amor, de alegria, juntos? O sacrifício
dele era enorme e ela queria discutir, mas, quando ele sustentou o
olhar dela, pressionou os lábios na mão dela, ele deu a ela a
resposta.
— Sim — sussurrou ela, e quando o sorriso dele se alargou, o
dela também. — Aceito a sua Entrega.
Uma Xira radiante assentiu para ela.
Era a vez da Entrega dela. Ela planejara lhe entregar seu
conhecimento, sua ousadia e sua ambição... mas ele estava certo.
Essas não eram as coisas que eles realmente precisavam Entregar
um ao outro.
— Veron de Nozva Rozkveta, eu, Alessandra Ermacora de
Silen, entrego a você meu amor, minha lealdade e minha vida
também — disse ela, entrelaçando os dedos nos dele —, para
serem usados para os seus objetivos ou os nossos, enquanto
trilhamos nossas vidas juntos a partir deste dia e até quando o
Profundo permitir.
Ele segurou as duas mãos dela e sorriu.
— Aceito a sua Entrega.
Xira estendeu o pequeno e brilhante aglomerado de metal e o
colocou entre as palmas das mãos deles. Quando eles apertaram,
houve uma picada, e Xira segurou as mãos deles entre as dela,
cantou em élfico, e, quando terminou, apesar da picada, não havia
marca, nem sangue.
— As vidas de vocês agora estão ligadas — disse Xira. —
Unidos na vida e na morte, capazes de sentir um ao outro, atrair um
ao outro, chamar um ao outro.
O que isso significava, ela descobriria nos próximos dias, mas
desde que fosse para ficar com Veron, o laço vitalício era algo
perfeito.
— Que as Entregas feitas e aceitas hoje diante do Profundo,
da Escuridão e do Sagrado Ulsinael não sejam quebradas por
ninguém — declarou Xira aos convidados. — Nós juramos pela
Escuridão.
— Pela Escuridão — murmurou a multidão, e os lábios de
Veron encontraram os dela.
Capítulo 29

Depois de uma noite de banquetes, jogos e dança – para os


humanos presentes –, Veron abriu a porta de seus aposentos com
um suspiro de alívio.
— Você vai me levar para caçar amanhã? — perguntou Aless,
passando por ele enquanto fechava a porta. — Preciso de mais
prática.
— Talvez não amanhã — disse ele, com um sorriso. Quando
ela franziu os lábios, ele acrescentou: — Os Cantores de Pedra e os
stavbali começarão a construção da biblioteca amanhã. Achei que
você iria querer estar lá.
— O quê? — Ela pulou nos braços dele, dando um gritinho. —
Amanhã? Veron, de verdade? Amanhã!
— Sim, de verdade — respondeu ele. — Amanhã.
Aless beijou seu rosto uma vez, depois mais uma, então beijou
seus lábios, em seguida, lentamente reivindicou sua boca, os dedos
se entrelaçando no cabelo dele enquanto se inclinava para ele, um
gemido suave zumbindo em sua garganta.
— Antes disso, preciso fazer uma coisa — murmurou ele,
embora seu corpo tivesse ideias diferentes. Enquanto ela sorria
maliciosamente, ele pigarreou e a conduziu através da antessala até
o quarto, onde na mesa estava a sua cópia de Uma História
Moderna de Silen. — Eu sei que já trocamos presentes de Entrega
em Bellanzole, mas eu queria compartilhar isso com você. — Ele
estendeu o livro para ela.
Suas sobrancelhas se arquearam enquanto ela o pegava,
folheando até chegar às páginas em branco – porém algumas não
estavam mais em branco. Ele as preenchera com os detalhes da
jornada deles, fazendo esboços de... bem, a maioria dela. Quase
todos os desenhos – quer dizer, se ele fosse honesto, todos eram
dela.
Ela traçou um esboço dela no jardim da duquesa, cercada por
lavandas e fadas e arfou.
— Veron, isso é... Isso é deslumbrante.
Ele se aproximou dela e passou suas volumosas tranças
escuras por cima de seu ombro.
— Meu pai me ensinou, quando estudamos a flora e a fauna
do reino do céu juntos. Eu não tinha desenhado nada desde que ele
morreu.
Por muito tempo, ele não queria fazer nada que o lembrasse
de Ata, e ainda assim se tornou um volodari, como ele. O nó de dor
que Ata havia deixado tinha se desemaranhado, sumido, e agora ele
entendia. Entendia o que significava estar pronto para fazer
qualquer coisa – qualquer coisa – por aqueles que amava.
— É lindo, Veron — sussurrou ela, e acariciou seus lábios com
os dela. Sorrindo, ela se afastou. — Não tenho certeza se o meu vai
estar à altura...
— Você tem algo para mim?
Com o rosto iluminado, ela correu para um de seus baús,
abriu-o, e puxou uma caixa.
— Veja, quando escrevi para Bellanzole de Dun Mozg, posso
ter incluído certo pedido a Lorenzo. — Ela lhe entregou a caixa
amarrada com fita.
Erguendo uma sobrancelha, ele puxou a fita – algumas vezes
ele sentia falta da praticidade de suas garras – e em seguida abriu a
tampa.
Dentro estava um par de botas, com o couro perfeito, flexível,
bem lubrificado, macio como manteiga e...
— Experimente! — ordenou ela.
— Você encontrou tempo, no meio de uma guerra, para
encomendar botas ao seu irmão? — perguntou ele com uma risada.
Ela assentiu, feliz.
Ele calçou as botas e... Sagrado Ulsinael.
Ele andou pelo quarto, mexeu os pés, agachou-se, saltou, tudo
enquanto Aless ria.
— Pelo Profundo e pela Escuridão, você ri, meu amor, mas
essas... essas botas são as mais confortáveis que eu já... — Ele
apoiou o peso todo nos calcanhares, mas apenas o que sentiu foi
maciez... e...
Ela cobriu a boca enquanto ria.
— O sapateiro de Lorenzo nasceu de uma longa linhagem de
sapateiros, só que ele nasceu um manipulador, também. Ele usa
suas habilidades e sua magia para fazer o que Lorenzo chama de
“os sapatos dos deuses”. — Ela sorriu.
— Sagrado Ulsinael, ele não está errado, Aless. Essas botas
são... elas são... — Era inconcebível, mas ele quase queria ir em
uma caçada agora. Quase. Mas ainda demoraria algum tempo até
que Mati permitisse que ele voltasse para os volodari.
— Ah! Tem mais uma coisa — disse ela, batendo palmas.
Depois de fazer a Entrega e o laço vitalício com Aless, se
houvesse algo neste reino que pudesse tornar este dia melhor, ele
não saberia dizer o quê.
— Feche os olhos. — Seus olhos escuros quase cintilavam. O
que ela estava planejando agora?
Ele fez o que ela pediu e depois se afundou na cama.
Ele ouviu passos apressados e o ranger de uma dobradiça,
mais passos rápidos, barulho de tecido e...
— Tudo bem. Pode abrir. — A voz dela tinha um tom alegre, e
ele estava baixinho quando abriu os olhos.
Pelo Profundo e pela Escuridão, era a coisinha vermelha e
translúcida. Seu riso cessou no mesmo instante.
Ela se inclinou contra a parede naquela camisola vermelha
etérea de sua noite de núpcias em Bellanzole e as dobras do tecido
fino provocaram sombras e curvas sob um véu vermelho. Ele estava
pendurado no seu corpo por alças finas e delicadas, o tecido
translúcido caindo até se acumular no chão ao seu redor.
Os ombros e braços longos e elegantes dela estavam
expostos, uma boa parte de sua pele macia e bela estava nua para
ele, e seus dedos agarraram o colchão de tanto que desejavam
tocá-la. Naquela noite, em Bellanzole, ele estava preparado para
cumprir seu dever como ordenado e nenhum deles estava pronto
para isso, nem de longe, mas a imagem de Aless em sua camisola
vermelha translúcida permaneceu em sua memória, e ressurgia
cada vez mais nas últimas semanas.
E lá estava ela, como se tivesse saído daquela noite para esta,
sua esposa corajosa, inteligente e linda, seu amor, sua Aless.
Pelo Profundo e pela Escuridão, ele queria vê-la, cada parte
dela, gravá-la em sua memória e conseguir reconhecê-la pela ponta
de um dedo ou pela curva de uma clavícula.
Mordendo o lábio, ela caminhou lentamente até ele e parou
entre seus joelhos, as mãos acariciaram o seu cabelo, sobre seus
ombros, ao longo de sua mandíbula, e ele fechou os braços em
volta dela, puxou-a contra ele enquanto afundava mais na cama.
Suas mãos encontraram a pele lisa das costas dela, enquanto seus
lábios se encontravam com os dele, o beijo dela se aprofundava,
eles respiravam o mesmo ar, então ele a rolou para debaixo de si,
prendendo-a na cama.
Olhos escuros e brilhantes dançavam enquanto ela olhava
para ele, um sorriso brincando em seus lábios.
— O que você fará comigo, príncipe elfo sombrio?
Ele exalou um suspiro leve. Ah, ele tinha muitas coisas em
mente, mas uma acima de todas.
— Amá-la até o fim dos tempos, Aless. Até o fim dos tempos.
Epílogo

O vento de outono soprava gentilmente através das árvores


enquanto Veron se dirigia para o local da construção da biblioteca.
Folhas douradas, vermelhas e cor de cobre caíam das copas das
árvores iluminadas pelo sol.
Ele esfregou o queixo, pensativo. Embora não fosse incomum
para ele visitar Aless durante o dia, era raro, de fato, as vezes em
que ela se dava ao trabalho de convidá-lo. Através de um bilhete,
ainda por cima.
Ele acenou para seus companheiros stavbali, para os Cantores
de Pedra e os inzenyri. Mati ainda o mantinha nos projetos de
construção em vez de permitir que voltasse às caças com os
volodari. Passaram-se quatro meses desde o anúncio da construção
da biblioteca e o exterior do prédio estava quase completo. A tarefa
mais longa tinha sido transportar as pedras para os Cantores de
Pedra, e por mais forte que seu povo fosse, os stavbali não eram
onipotentes. Ele girou o ombro, dolorido, como se tivesse ajudado a
carregar pedras ainda no dia anterior.
Um mar de grandes tendas brancas cercava a construção, e
abaixo de uma delas havia duas mulheres rodeadas por crianças
com penas e papel. Com o cabelo abençoadamente escuro
dançando na brisa, Aless removeu uma das mãos de seu manto
lavanda e acenou para ele antes de esconder o sorriso recatado
com um dedo.
Ela falou com Gabriella, então se despediu das crianças e
andou rápido em direção a ele, enquanto ele começou a correr para
encontrá-la. Cercando-a em seus braços, ele a beijou, permitindo
que os dedos escorregassem por aquele cabelo sedoso. Sagrado
Ulsinael, ele era um homem de sorte.
Afastando-se, ela abriu um pequeno sorriso, seus olhos
escuros brilhantes em busca dos dele. As pontas macias dos seus
dedos acariciaram o queixo dele, e seu pequeno sorriso se alargou.
— Você não vai me perguntar por que o convidei para vir aqui
hoje?
Ele bufou.
— Certamente a essa altura você sabe que eu nunca
questionaria uma bênção, não é, meu amor?
Suas bochechas coraram e ela o cutucou com o ombro antes
de tomar sua mão. Enquanto caminhavam em direção à biblioteca,
Aless esfregou um pouco a lombar e ele substituiu a mão dela pela
dele.
— Você trabalha demais — disse ele. Desde o início do
projeto, não havia nada que ela não tivesse feito, desde tentar
ajudar a transportar as pedras até tentar construir os móveis. Ela se
manteve ocupada mesmo antes de organizar a escola para as
crianças locais e qualquer um que quisesse aprender.
— Não consigo evitar — respondeu ela, mas ele já sabia disso.
— Quando seu sonho se torna realidade, você não descansa em
seus louros. Esta é apenas a primeira de muitas bibliotecas, Veron.
A visão dela tinha ampliado e ele moveria montanhas para
realizar aquele sonho com ela.
— Além disso, depois do nosso laço vitalício, nunca me senti
mais forte — disse ela com um tom alegre quando entraram no
prédio.
Ele bufou, zombeteiro.
— Eu não esperava que seria algo tão empolgante para uma
mortal, mas... de novo, eu não questiono bênçãos.
— Neste caso, nem eu. — Ela se apoiou nele, e ambos
seguiram em direção ao lado leste da biblioteca, onde os primeiros
vitrais já haviam sido instalados. Eles retratavam uma rosa, uma
beleza compartilhada entre os humanos e os elfos sombrios.
Ela olhou para ele, a luz do sol emanando através dos vidros
vermelhos e verdes, em seguida se virou para ele e o fez perder o
fôlego. O rosto dela brilhava com as cores deslumbrantes e, quando
sorriu, era uma deusa em carne e osso.
— Veron, estou grávida.
Suas sobrancelhas dispararam para cima e ele lutou para
respirar... e tentar falar, qualquer coisa. Mas, infelizmente, tudo o
que conseguiu fazer foi inspirar, expirar, franzir o cenho... inspirar...
pausar, ia falar... não, alarme falso.
Ela sufocou uma risada, mas seus olhos eram como meias-
luas. A mão dela apertou a dele.
Ele a puxou para seus braços e beijou o topo de sua cabeça.
— Eu já era o homem mais sortudo do mundo quando você
disse que me amava, Aless. E de alguma forma, pelo Profundo e
pela Escuridão, você me deu uma fortuna a mais.
Um arquejo silencioso e ela se inclinou para ele, agarrando-se
a ele enquanto fungava baixinho.
— Eu não sabia se isso era possível, eu não tinha certeza. No
entanto, meu ciclo não veio pelo segundo mês, e quando fui ver
Xira, ela disse... ela disse que vamos ter um bebê.
O que ele não teria feito para estar lá naquele momento e ouvir
essa notícia com Aless.
— Mal posso esperar para conhecê-la, meu amor.
Ele baixou cabeça e ergueu os lábios dela para os seus,
acariciando as lágrimas que rolavam por suas bochechas,
provocando sua língua com a dele, persuadindo sua paixão. Seu
coração estava inchado de tanto amor e ele nunca imaginou que
isso era possível, mas, depois do que ela disse, ele tinha se
expandido ainda mais.
Ele ouviu passos suaves se aproximando deles – era Gabriella
– e se afastou com um sorriso. Será que Gabriella sabia? Se não
sabia, ele mal podia esperar para ver a reação dela...
— Vossa Alteza — disse Gabriella, segurando uma
correspondência para Aless. — É da Maga Suprema Sabeyon de
Courdeval.
Aless franziu a testa, mas aceitou o pergaminho selado de
Gabriella.
— Eu não a vejo desde... Ora, já faz quase um ano. — Ela
abriu o selo e leu. — Ela... Ela está perguntando se podemos ajudar
a realizar um ritual de laço vitalício...
Um laço vitalício? Courdeval era a capital da Emaurria. Um
reino humano. Os humanos há muito buscavam os segredos de...
Aless arfou, seu rosto empalidecendo. Ele passou um braço
em volta dos ombros dela, firmando-a.
— O que foi? Qual o problema?
Ela piscou e virou para ele com a boca escancarada, o choque
de sua boca aberta ampliando-se para um sorriso. Lágrimas
encheram seus olhos e transbordaram.
— Veron... Ela... ela está dizendo que um amigo libertou
Immortalis trancados em uma prisão marítima, e entre eles estava
um elfo sombrio... Ele diz que o nome dele é Mirza... Ele diz que...
ele é seu pai.
Engolindo, ela pegou a mão dele.
Mirza... Ata...
Ele lambeu os lábios, balançou a cabeça. Não, Ata tinha
morrido. Ele tinha morrido. Todos sabiam disso, todos eles...
Ele inspirou, uma respiração doída. Eles foram avisados sobre
isso. Eles foram informados pelos elfos de luz que Ata havia sido
assassinado. Porém, nunca viram ou receberam o corpo dele.
Aquilo era...
Seu coração deu um salto.
Aquilo era possível. Ele não questionaria, não enquanto havia
esperança.
— Veron, você está...? Está tudo bem? Seu pai... — Ela soltou
um suspiro descrente.
Ele respirou fundo, tentando retomar a compostura, e
encontrou o olhar dela, choroso e cintilante.
O pai dele estava vivo. Ata estava vivo.
Ele teria o amor de sua vida, uma criança, e agora o seu pai de
volta em sua vida... Nesse ritmo, seu coração iria estourar. E ele
receberia tudo de braços abertos.
— Você virá comigo, meu amor? Eu sei que você tem a
biblioteca aqui, e que é o seu sonho...
— Do qual você faz parte, Veron. A construção continuará
enquanto nós estivermos fora. Com nós quero dizer que é claro que
irei com você. — Ela sorriu, pousando a palma da mão na barriga, e
assentiu. — Para os confins da terra e para a eternidade.
FIM

Obrigada por ler A princesa e o elfo sombrio! Se você gostou da


aventura, por favor, considere fazer uma resenha.

Preparados para o próximo capítulo da série Elfos Sombrios do


Bosque Noturno? O próximo livro se chama Luar resplandecente, a
história de Dhuro e Bella! Segue uma prévia.
Nota da autora

Obrigada por ler A princesa e o elfo sombrio, o primeiro romance


fantástico na série Elfos Sombrios do Bosque Noturno. Se você leu
minha série de fantasia romântica Blade and Rose, vai notar que as
duas series se entrelaçam. Aless e Veron aparecerão novamente
em The Dragon King, que sairá em breve. E o próximo livro dos
Elfos Sombrios do Bosque Noturno é sobre a história do seu irmão
Dhuro e uma certa nobre senhora que se transformou num
unicórnio!
Se quiser acompanhar as notícias sobre meus livros e outras
atualizações, você pode se inscrever na minha newsletter em:
www.mirandahonfleur.com. Como um presente de agradecimento,
você terá acesso ao prólogo em inglês da série Blade and Rose,
“Winter Wren”, com o primeiro encontro de Rielle com um certo
paladino.
Todos os meus livros só são possíveis com a ajuda de muitas
pessoas. A princesa e o elfo sombrio não é exceção! Gostaria de
agradecer às senhoras do Enclave Authors – Katherine Bennet,
Emily Allen West, Emerald Dodge e Ryan Muree – pela ajuda na
crítica a este livro. Também gostaria de agradecer às editoras
Deborah Nemeth e Laura Kingsley por suas ideias, e estender
minhas condolências aos entes queridos de Laura Kingsley. Eu só a
conheci por pouco tempo, mas ela era uma pessoa com mente
afiada, uma editora inteligente, e uma pessoa gentil, e fará muita
falta.
Eu também gostaria de agradecer às minhas revisoras,
Patrycja Pakula e Charity Chimni, que apontaram os muitos, muitos,
muitos erros de digitação neste manuscrito. Se sobrou algum, é
obra minha. Lea Vickery, obrigada por ser uma assistente incrível e
me ajudar a me manter organizada. Eu não conseguiria fazer isso
sem você. E um agradecimento especial a Erin Montgomery Miller
por sua ajuda e seu olho de águia.
E como sempre, agradeço ao meu marido, Tony, e a minha
mãe. O amor e o apoio de vocês significam tudo no mundo para
mim, enquanto vou em busca dessa paixão que, de uma maneira
improvável, também é minha carreira.
Obrigada também à minha incrível equipe externa, a Queen’s
Blade, por ajudar a divulgar os meus livros e trazer um sorriso ao
meu rosto! Estou tão feliz que nos encontramos, e estou animada
para continuar me divertindo em 2019!!!
E vocês, meus leitores. Sem o seu apoio, eu não lançaria um
quinto livro. Graças às suas mensagens e resenhas e por
divulgarem minhas obras posso ter meu trabalho dos sonhos e ser
uma autora. Eu amo ouvir de vocês, então, por favor, sinta-se livre
para me deixar um comentário em: www.mirandahonfleur.com,
Facebook, Twitter e miri@mirandahonfleur.com. Obrigada pela
leitura!

Com carinho,
Miri
LUAR RESPLANDECENTE

A ira o consome como a escuridão faz


com a noite... Até ela se levantar. Mas seria
ela capaz de afastar a escuridão dele?

A maioria diria que a “doce” e “quieta”


Bella viveu uma vida tranquila como uma
jovem nobre no castello de sua família. No
entanto, eles pouco sabiam que ela escrevia
tratados criticando os instigadores de guerra...
e agora há um preço por sua cabeça.
Enquanto ela luta para esconder suas
atividades insurgentes, um encontro casual
com um unicórnio a deixa com quatro cascos e
um chifre próprios – e uma forma que ela não
consegue controlar. A rainha dos elfos
sombrios lhe ofereceu uma chance de adquirir
esse controle... se Bella conseguir encontrar o
unicórnio que a transformou.

O príncipe Dhuro do Bosque Noturno


nunca encontrou um problema que não
pudesse resolver com os punhos – isto é, até
que lutou contra a irmã por um lugar nas
forças de elite do exército e perdeu. Quando
os elfos de luz os derrotaram e seu pai foi
executado, os demônios interiores de Dhuro o
reivindicaram por completo. Agora as bestas
imortais estão adquirindo poder e ameaçando
o seu povo.

Dhuro tem a chance de ajudar o seu


povo quando sua mãe, a rainha, o envia em
uma missão – ajudar uma humana recém-
transformada em unicórnio a encontrar o
responsável por sua transformação e
perguntar o impossível: se o mais velho dos
unicórnios pacifistas se juntaria a eles para
lutar contra as bestas que devastavam o seu
povo. Para piorar as coisas, Bella desafia cada
decisão dele, discute, o enfurece... até que,
sob a lua cheia, ela muda para sua forma
humana... e o encanta. Nenhum deles quer o
amor: ele foi traído por uma antiga amante, e
ela perdeu o amor de sua vida. Mas o coração
deles pode não ter escolha quanto a isso...

Uma guerra está sendo travada e Dhuro


tem que se casar para obter vantagem política,
e só o criador de Bella pode ajudá-la... E
quando os caçadores de recompensas que a
caçavam os encontram, as visões de mundo
de Dhuro e Bella colidem como uma questão
de vida e morte. Mas ele poderia ser a
resposta para ajudá-la a controlar sua forma, e
poderia ela afastar sua escuridão? Ambos
seriam capazes de encontrar uma maneira de
ficar juntos e lutar contra a guerra que ameaça
devastar a terra... ou ela os engolirá também?

Segundo os leitores, se você gosta de


fantasia, dos livros da série Wraith Kings de
Grace Draven e de uma releitura sarcástica do
conto da Princesa Cisne, só que com
unicórnios, Luar resplandecente é o romance
entre os companheiros de cama que viram
amantes que vai atrai-lo para o seu mundo e
você não vai querer largar.

Mergulhe em Luar resplandecente e


viaje para um mundo medieval de magia e
imortais, provações e encontros, sangue e
paixão, e um amor que dura muito mais do
que para sempre...
Prólogo

Para Bella, respirar doía enquanto corria pela floresta implacável o


mais rápido que seus pés calçados conseguiam aguentar.
Visões de um branco imaculado atravessavam o bosque de
castanheiras, vislumbres pouco visíveis a distância. Galhos baixos
agarravam seu vestido como mãos desesperadas, mas ela não
ousou desacelerar. Não se quisesse alcançar o unicórnio.
Ela desviou pelos troncos finos, seus passos esmagando os
galhos congelados. O manto puxou o pescoço dela ao se prender
num galho coberto de neve e ela o desabotoou. Não importava. O
frio do fim do inverno não impediria sua corrida.
Por toda a sua vida, ela procurara secretamente por outros
como ela, que acreditavam que a inteligência era uma arma muito
mais afiada que a espada. No início, havia apenas os humanos.
Mas, quando um número incontável de criaturas imortais despertou
há cerca de um ano, uma esperança maior emergiu com elas. Uma
guerra foi travada entre humanos e Immortali. E, se os unicórnios
eram reais, então talvez seus poderes míticos de paz também
fossem; ela ficaria frente a frente com este. Aqui. Hoje. Talvez ela
conseguisse ajudar a poupar outra Bella de perder o amor de sua
vida para a guerra. No mínimo, ela não decepcionaria a memória de
Cosimo.
Ela saltou sobre uma árvore caída e sua bota deslizou num
trecho de lama que resultaria numa queda mortal, mas conseguiu se
segurar com uma mão enluvada.
Tempo precioso. Ela estava perdendo um tempo precioso.
Mas a magnífica pelagem branca brilhava logo à frente,
evidente entre as folhagens murchas e os troncos marrom-
acinzentados.
O unicórnio havia parado. Ele estava esperando.
Ela desacelerou, testando os passos ao se aproximar dele com
cautela. Persegui-lo era uma coisa, mas correr em direção a ele
agora? Ela não podia arriscar assustar o ser que havia admirado por
tanto tempo. Não agora. Não quando estava tão perto e seu ídolo
era tão real.
Tarquin, Luciano e Mamma nunca acreditariam nela, mas não
importava. A única coisa em que a família Belmonte acreditava era
na guerra. Mas como “Renato”, seu pseudônimo e alter ego político
secreto, ela poderia apresentar o reino de Silen a toda uma
sociedade que havia renunciado à guerra eras antes de Silen ter
coroado seu primeiro rei. Com a ajuda dos unicórnios, ela poderia
mudar o curso não apenas de sua família, mas do reino.
Desde que conseguisse escapar dos assassinos que queriam
a recompensa pela cabeça de Renato. A recompensa pela cabeça
dela.
Agora que tinha desacelerado, seu rosto queimava. Ela lutou
para permanecer ereta enquanto lutava para respirar, cada fôlego
mais difícil que o anterior. Com alguma sorte, ela chiando, grunhindo
e ofegando como um bárbaro constipado não assustaria o unicórnio.
Talvez, escritores não fossem tão bons em correr. Ou respirar.
Mas ele apenas a observou, balançando a cauda, a crina
sedosa, longa e ondulada oscilando na brisa. Embora fosse
parecida com um cavalo, chamar a criatura – ele – de cavalo não
seria certo. Ele parou com uma postura despreocupada e aberta, e
inclinou a cabeça de um jeito curioso. Deu um leve balançar de
cauda como se quisesse dizer olá. A linguagem corporal dele tinha
uma característica incrivelmente humana. Ele teve a intenção de
guiá-la até aquele lugar?
Ela se endireitou. O que os unicórnios sabiam da sociedade
humana, afinal? Tudo o que já havia lido sobre os unicórnios sugeria
que eles eram reclusos, isolados, bem reservados, alguns até
preferiam a completa solidão. Sendo assim, a comunicação deles,
seja verbal ou de outra forma, não deveria refletir isso?
Outras fontes sugeriam que tivessem habilidades telepáticas.
Ele tinha lido os pensamentos dela?
Talvez os dois conseguissem se comunicar? Aquilo seria bom.
— Olá — disse ela, sua voz trêmula e cautelosa. — Me chamo
Bella.
A nove metros de distância, ela encontrou os olhos dele. Seus
olhos eram de um violeta brilhante e sedutor, mágicos, como se as
joias mais cobiçadas e inestimáveis tivessem recebido carne e
intenção. Então...
O mundo ficou borrado ao seu redor, a vegetação era como
uma mancha. Seu peito se apertou como se estivesse caindo, mas
seus pés encontraram o chão abaixo dela.
O unicórnio estava diante dela, o rosto nivelado com o dela, o
chifre a poucos centímetros de sua testa. Violeta. Brilhante, um
violeta de tirar o fôlego...
Ela arfou. Um arrepio arcano percorreu seus ombros e sua
coluna. Magia. Aquilo era magia.
O chifre – longo, espiralado e afiado – seria assustador em
qualquer outra criatura, exceto no patrono da paz. Ainda assim, ela
não se atreveu a se mover, somente respirar, e, lentamente, o olhar
dele a consumiu.
Aqueles olhos eram infinitos, os céus sem limites de outro
mundo, onde o vento flertava através das ervas intermináveis do
verão, cravejadas de flores selvagens vibrantes, onde uma manada
de unicórnios passava, as crinas balançando, os chifres brilhando,
sob um sol quente...
Quente... e ela era como eles, seu coração preenchido pelo
silêncio, o tipo de paz perdida em outros mundos, exceto neste...
Aquele era o mundo ideal. Onde ninguém lutava, ninguém matava.
Onde os exércitos da sua família nunca haviam assassinado o seu
único amor, Cosimo. Onde a cegueira dela não a tinha impedido de
prever o que aconteceria. Onde as batalhas eram travadas com
palavras e as vitórias não tinham derramamento de sangue. Onde
unicórnios se aventuravam para fora de seu isolamento e saíam
pelo mundo com os corações calmos e ternos.
O sonho deles. O sonho dela.
Se ao menos ela pudesse se tornar um...
Uma picada aqueceu sua testa. Ela piscou para os olhos
profundos envoltos por cílios longos e densos.
O unicórnio recuou, inclinando a cabeça, o olhar nunca
deixando o dela.
A ponta do seu chifre estava vermelha.
Franzindo a testa, ela piscou novamente. O vermelho escorreu
pelo chifre espiralado, um redemoinho de fita brilhante contra branco
perolado.
Ela ergueu os dedos para a própria testa e eles também
ficaram vermelhos. Vermelho-sangue.
Toda a pesquisa dela dizia que eles eram pacíficos. Eles eram,
não eram? Então, o que foi aquilo? Um acidente, talvez? Tinha que
ser...
E diante dela não estava mais apenas o unicórnio.
Mas uma manada deles. A manada estava num prado.
Ela vacilou e seus joelhos fracos se dobraram.
Tinha que haver pelo menos duas dúzias deles. Como...?
O mundo ficou borrado ao redor dela mais uma vez. Ele devia
a estar levando para algum lugar. Mas aonde? Ela se virou no lugar,
girou, mas tudo apenas borrou mais, mais e mais e mais...
Ela tropeçou e caiu, descendo como uma pena solta no ar do
verão, deslizando até o chão da floresta, tão verde e vívido que não
parecia real. Ela caiu pelas pilhas de folhas e pétalas de flores
coloridas, através de visões do sol subindo pelo céu, e então a lua
surgindo, pelos olhos violetas, verdes e azuis, suas luvas
escorregando e voando para longe de seu alcance, as pétalas de
cetim contra sua pele e a grama fria, o sol, a lua, o sol...
O borrão se tornou cada vez mais nítido, pinceladas de cor se
juntando nas formas de castanheiras e folhas frescas de primavera
na luz do amanhecer, e o magnífico unicórnio olhando para ela, tudo
emoldurado na mais bela paleta de tons prismáticos brilhantes.
Como isso era possível...? Afinal, era inverno, não era...?
Neste mundo, é apenas um sonho. Você deve torná-lo
realidade, Arabella, um barítono firme e calmante disse a ela.
Ela inclinou a cabeça, mas algo fez cócegas em seu nariz.
Quando ela estendeu a mão para coçá-lo, uma pata se ergueu sob
ela.
O braço dela não queria cooperar — o braço dela... o braço
dela...
Com o coração disparado, ela olhou para si mesma. Para suas
pernas brancas longas e imaculadas. Para seus cascos.
Para seus cascos.
Com um arquejo, ela recuou, balançando a cabeça. Aquilo não
era possível. Um humano não poderia se transformar em... Não
havia como. Ela não podia ser...
Mas você é, disse a voz.
Os olhos violetas. A voz... era ele.
Suas pernas continuaram a recuar contra sua vontade.
Não há nada naquele lugar para você, a voz disse gentilmente.
Nada naquele lugar? A família dela estava lá: Mamma,
Tarquin, Luciano... Eles estavam bem? Será que acontecera algo
com eles? Aquilo não era real. Aquilo não era...
Arabella, venha...
Ela correu.
 
 
Passando pelo bosque de castanheiras e se afastando da
cordilheira ao norte de Silen, Bella correu para casa, o ar frio
ardendo em seus olhos lacrimejantes. Aquilo não estava
acontecendo. Era algum feitiço do unicórnio, alguma ilusão, ou... ou
ela ainda estava naquele sonho. Tinha que ser. Pelos deuses
misericordiosos e os fios etéreos do Véu, tinha que ser um sonho.
Assim que ela estivesse com os irmãos e Mamma, tudo se
dissolveria. Ela se lembraria do mundo real e, enraizada nele,
qualquer feitiço ou sonho que fosse, acabaria. Nos mitos, os
unicórnios tinham poderes deslumbrantes sobre a mente. Se ela
acreditasse nessas histórias, e considerando que acabara de ver um
unicórnio de carne e osso, talvez aquilo não passasse de um truque
da mente.
Logo acima da colina, os pomares de oliveiras se estendiam
diante do castello dos Belmonte e da cidade de Roccalano. Ela
correu por entre as árvores jovens e finas até chegar aos portões
abertos da cidade. As batidas surdas dos cascos contra o caminho
de pedras invadiram seus ouvidos, batendo cada vez mais fundo.
Não, aquilo era sonho. O som não era real, assim como tudo o que
acontecera.
Os poucos cidadãos que estavam do lado de fora naquele
momento um pouco antes do amanhecer se assustaram e ficaram
boquiabertos, saltando do caminho, ao contrário de seus sorrisos
habituais e saudações calorosas ao vê-la. Cada expressão
boquiaberta rasgava um pedaço de sua ideia de sonho, desafiava
sua concretude. Talvez não seja um sonho. Ela balançou a cabeça e
correu mais rápido em direção aos portões do castello.
Gritos soaram entre os guardas, mas ela conseguiu atravessar
e entrar no pátio com a estátua de Cosimo. Ela avançou direto para
a porta mais próxima, sem prestar atenção ao caos que se instalava
em seu rastro.
Ela estendeu a mão para bater, mas cascos atingiram a
madeira de mogno, fazendo lascas voar.
Mamma! Tarquin! Luciano!
Por mais que tentasse, nenhuma voz soou quando ela
chamou. Por favor, alguém! Qualquer um, me escutem!
Ela bateu na porta de novo e de novo, e se os deuses
pudessem ter um pouco de misericórdia dela, Mamma ou um de
seus irmãos ouviriam.
Uma ordem berrada – o capitão Sondrio e um esquadrão de
guardas se aproximaram dela com alabardas. Um cheiro
tempestuoso dominou o ar.
Capitão, sou eu! Por favor!
Mas o esquadrão só avançou e ela saltou para longe das
pontas da lâmina verde-sálvia feita de arcanir e seu metal que
anulava a magia. Vasos de cerâmica se quebraram e flores foram
esmagadas sob ela enquanto Bella passava por uma janela. As
persianas estavam abertas e, do lado de dentro, Tarquin olhava para
ela, os olhos castanho-avermelhados arregalados.
Tarquin, sussurrou ela, o coração disparado. Seu irmão mais
velho, seu herói, aquele que sempre enfaixou seus joelhos
esfolados e enxugou suas lágrimas frustradas. Ele a veria, dissiparia
o que quer que fosse, consertaria tudo. Me ajude!
A mão dele foi em direção a uma espada que ainda não estava
em seu quadril, não tão cedo pela manhã e com ele ainda em casa.
Ela bateu no vidro, mas ele se quebrou, fazendo cacos
irregulares voarem como adagas.
— É Bella? — A voz frenética de Mamma chamou de dentro
da casa. Passos leves soaram mais perto, silenciosos, mas audíveis
nos tapetes grossos que eram a herança de sua família.
A escuridão passou pelo rosto de Tarquin enquanto ele
balançava a cabeça.
— Mamma, afaste-se — gritou ele por cima do ombro. — É
uma das bestas Immortali.
Besta...? Mamma! Tarquin, sou eu! Eles não podiam ver
através dessa ilusão, ou o que quer que fosse?
Mamma ficou ao lado de Tarquin, franzindo a testa enquanto
cerrava o punho. Mesmo assim, seus olhos avermelhados
lacrimejaram, uma combinação triste para as olheiras que
sombreavam o olhar de Tarquin.
Uma pontada de dor quente queimou o flanco de Bella.
Ela cambaleou para trás, evitando as pontas afiadas das
alabardas. Um dos guardas avançou em sua direção, mas o capitão
Sondrio estendeu a mão para detê-lo.
O estômago dela se revirou. Eles... eles iriam matá-la.
— Capitão! — A voz de Tarquin explodiu. — Peguem os arcos!
Alguém me dê uma espada e tire essa besta daqui!
Essa besta. Essa besta. Aquilo não era uma ilusão ou algum
truque da mente? Então, ela era mesmo um unicórnio?
Como isso era possível? Por quê?
Mas, enquanto seu coração desacelerava, cada pelo de sua
crina ficou de pé. Era verdade. Pelos deuses, era verdade.
Se isso fosse mesmo um sonho, ela já não deveria ter
acordado a essa altura?
Arcanir. Se aquilo fosse algum tipo de feitiço, a lâmina de
arcanir da alabarda o teria quebrado. Arcanir anulava magia, mas
não havia ilusão para anular.
Abaixo dela ainda havia cascos.
Estremecendo, ela recuou, olhando para os guardas, os vasos
de cerâmica em pedaços, a janela quebrada e os cacos de vidro.
Fragmentos de um reflexo equino a encararam de volta. Acabado.
Tudo estava acabado.
Uma flecha bateu no chão de pedra próximo a ela. Reforços.
Ela girou, ficando de frente para lâminas em cada curva que
fazia, exceto na saída da cidade e, com uma ferida ardendo em seu
flanco, ela fugiu para o portão, atravessando as ruas de Roccalano,
chorando.
O que quer que o unicórnio tenha feito com ela, não fora um
sonho ou feitiço que poderia ser facilmente revertido.
Eles sempre foram descritos como seres pacifistas,
embaixadores da paz, então por que isso aconteceu? Por que ele
fizera isso com ela? E, se tudo o que aconteceu era real, então ele
deixara claro que ela não teria mais um lugar para onde voltar.
Mas ele estava enganado. Enquanto ela corria entre as
oliveiras que ajudou a cuidar por toda a vida, o ar frio roubava suas
lágrimas.
Ela nem sempre se dava bem com sua família, mas ela os
amava e eles a amavam. Ela encontraria uma maneira de se
comunicar com eles, fazê-los ver que ainda era ela por trás deste
corpo. Eles olhariam além do físico e notariam que ela estava lá,
desesperada pela ajuda deles. Juntos, eles descobririam a resposta
para tudo isso, e a acudiriam. Ela encontraria uma maneira de
reverter essa Transformação, de voltar à sua verdadeira forma e sua
vida normal.
Ela apenas teria que continuar tentando... e rezar para que
Tarquin não ordenasse que os guardas a atacassem com força letal.

Várias vezes, Bella voltou para o castello, em todas as horas


do dia e da noite. Sua família tinha que saber que ela estava
desaparecida, mas nada nos mitos sugeria que os humanos
poderiam ser transformados em unicórnios. Ainda assim, a única
opção que ela tinha era tentar se comunicar com eles.
Nas curtas lacunas de tempo que tinha antes dos guardas
aparecerem, ela criou o hábito de interagir com coisas que
associariam a ela: tocava o nariz no banco do pátio onde
frequentemente fazia sua leitura, cutucava o solo de sua pequena
horta com a pata, ou a estátua de unicórnio que Cosimo havia
esculpido para ela, até mesmo batia nas janelas sob seus
aposentos. As pequenas luzes entre as plantas de seu jardim
testemunhavam suas tentativas fúteis – fadas que se mudaram
recentemente –, mas ela não poderia parar agora.
Algo inspiraria a epifania que ela precisava que eles tivessem.
Tinha que funcionar.
Em sua terceira visita, ela espetou a ponta do chifre em uma
fechadura, desejando que abrisse, e se surpreendeu ao ver que seu
desejo se realizou. Sucesso! Era o sinal encorajador que precisava
para continuar. Ela já havia desejado antes que portas e janelas se
abrissem, e que flechas não a atingissem. Todos os desejos
funcionaram, exceto os de que ela fosse ouvida ou vista como seu
verdadeiro eu. Mas ela iria para seus aposentos e derrubaria suas
coisas favoritas. Se desse à família pistas suficientes, entenderiam
que era ela.
Naquela noite, quase duas semanas depois de sua primeira
visita, ela usou o seu desejo para que uma parte das fortificações de
pedra em torno do castello desabasse e caminhou direto por ela.
Mais uma vez, foi para as janelas sob seus aposentos, os cascos
batendo suavemente no chão de pedra do pátio.
Tudo o que ela queria era que alguém visse a verdadeira Bella,
apenas uma pessoa, e a ajudasse a se tornar ela mesma de novo.
Uma, apenas uma.
Nenhum passo ou gritos soaram; talvez os guardas ainda não
a tivessem ouvido e ela teria mais tempo?
Ela arrancou alguns lírios brancos do jardim e os organizou
nos ladrilhos para soletrar seu nome.
Unicórnio, uma voz masculina desconhecida falou em sua
mente, é uma armadilha. Fuja!
Um homenzinho fada brilhante vestido com cascas de avelã e
empunhando uma agulha empurrou o seu nariz. Eles geralmente
eram reservados. O que ele estava tentando...?
Um perfume familiar se agarrava ao ar, como o cheiro fresco e
terroso após uma tempestade, mas... temperado, de alguma forma.
Vá, agora!, pediu ele.
Ela começou a recuar quando ouviu o barulho de metal, e
desviou. Correntes enrolaram em torno de suas pernas e uma rede
pesada caiu em suas costas. A picada do metal foi instantânea e
dolorosa, queimando sua pele como um ferro quente. Ela gritou. O
metal... da cor de sálvia. Arcanir. Com aquilo, queriam restringir
qualquer habilidade mágica que ela tivesse.
Tarquin! Mamma! Luciano!
O homem fada voou para um guarda, pulando em seu rosto,
mas o guarda sacudiu a mão para frente e para trás para atingi-lo.
Não, não faça isso!, ela queria gritar, mas apenas um relinchar
agudo emergiu. Não lute! Eles vão matar você!
— Capture o unicórnio vivo! — comandou o capitão Sondrio.
As correntes e a rede apertaram. Embora ela saltasse e
chutasse, guardas a cercaram, vários esquadrões puxando forte as
correntes. O homem fada a ignorou, atacando os rostos dos
guardas.
Pare, por favor! Sou eu, Bella! Ela agitou a cabeça, o chifre
raspando contra a rede de ferro, e um de seus coices acabou
fazendo um ruído de algo sendo esmagado.
Um golpe a atingiu de volta, e vários outros. Bastões de
madeira bateram nela até que fosse ao chão. As correntes que a
queimavam se fecharam em torno de suas pernas e a fizeram
perder o equilíbrio.
Um baque soou quando ela bateu forte no chão de pedras,
pressionando o metal excruciante mais fundo contra sua pele.
Aquilo a queimou em agonia.
Um guarda cortou o ar com sua espada.
O homem fada gritou, despencando nos ladrilhos. Ela abriu a
boca, mas, antes que pudesse gritar, o guarda pisou nele.
Witam!, outra voz desconhecida tilintou em sua mente.
Chorando, ela lutou e se debateu para se levantar, mas os
golpes não pararam até que ficou imóvel, e a queimação não parou,
nem mesmo por um segundo. Pesos a pressionaram para baixo, um
após o outro, os guardas se sentando sobre ela enquanto ela se
rebelava, eles comemorando e rindo um para o outro.
Um pequeno e cintilante par de figuras surgiu e capturou o
corpo do homem fada. Será que ele estava morto? Ele tinha morrido
tentando ajudá-la?
Seu coração afundou. Como? Como isso aconteceu?
Enquanto Mamma observava, sob a supervisão de Tarquin? A
guerra era o ofício dos Belmonte, mas ela nunca notou como
Tarquin ou seus homens apreciavam a violência.
Ela procurou pelo pátio e nas janelas por um rosto solidário,
apenas um, qualquer um. Sua janela brilhava com a luz dourada das
velas, e nela estava Tarquin, os braços cruzados, a testa franzida,
olhando para ela. A maneira com que a olhava não era com os
olhos calorosos do irmão que a amava, mas um olhar frio, duro,
como o de uma estátua de bronze solitária numa praça vazia da
cidade. Ele assistia a tudo. Frio. Calado. Malévolo.
O coração de Bella travou em sua garganta. Ele não sabe. Se
ele soubesse...
Seu corpo inteiro ardia com arcanir, a dor tão abrasadora que
a cegava. Com o peso dos guardas pressionando-a, ela tentou
respirar, mas cada respiração era uma batalha, cada uma mais
difícil de vencer que a anterior, até que finalmente o céu da noite e
tudo ao seu redor escureceu.
Capítulo Um
Quatro meses depois

Um guincho veio do pântano. Correndo sob a luz escassa das


estrelas, Dhuro encontrou a harpia caída se contorcendo na água
turva e nos juncos, as asas quebradas batendo futilmente.
E agora você vai morrer.
Segurando o braço que restava da criatura, ele abriu sua
garganta com um corte profundo antes de enterrar sua lâmina
vjernost no coração dela. A cor verde-sálvia da sua arma brilhou por
um momento até que a luz abandonou os olhos do monstro.
Enquanto a brisa da noite varria para longe o suspiro da morte,
ele procurou por qualquer ameaça remanescente entre a vegetação
oscilante do pântano. Uma das guerreiras kuvari dos elfos sombrios
se ergueu de seu esconderijo na mata, limpando o sangue da sua
lâmina em silêncio. Suas inúmeras tranças, com contas de âmbar,
caíam sobre o ombro e escorriam pelas costas. Kinga. Fria,
calculista e habilidosa.
Ela encontrou seus olhos através dos espinhos ondulantes e,
enquanto embainhava sua lâmina, olhou-o de cima a baixo, girando
uma trança branca em torno do dedo. Uhum. Ele conhecia aquele
olhar.
— Esta é a última? — gritou sua irmã mais velha e balde de
água fria ambulante, Vadiha.
— Sim, Vadiha — gritou ele de volta, levantando-se enquanto
limpava a lâmina. Como a guerreira mais forte entre o Conselho de
Mati, Vadiha tinha sido encarregada da defesa de sua casa, um
dever que exigia cada vez mais atenção nos últimos tempos.
— Eu perguntei para Kinga. — Vadiha se aproximou dele e,
com a mão no quadril, lançou um olhar questionador. — E o que
você está fazendo aqui? Não deveria estar com os volodari?
— Eu estava — respondeu ele, entredentes. Como se sua
caçada fosse mais importante que a batalha? — Eu estava na
minha caça quando ouvi a luta.
Os olhos dourados dela se estreitaram.
— Você deveria ter ficado lá. Como pode ver, não precisamos
de sua ajuda.
— Disponha — devolveu em tom sarcástico, passando por ela
e dispensando a sua atitude tão gentil. Não bastava que ela o
tivesse mantido longe das forças de elite do seu exército durante a
guerra com os elfos de luz de Lumia. Não, ela precisava mantê-lo
afastado de cada batalha e conflito que pudesse.
Ele passou uma mão por seus cabelos na altura dos ombros,
fechou os olhos e soltou um suspiro. Vadiha nunca perdia a
oportunidade de enterrar o rosto dele na areia.
— Dhuro — gritou ela.
Pela Escuridão, o que mais ela queria? Ele olhou por cima do
ombro e grunhiu.
— Mati está te convocando.
Ela o tinha dedurado para a mãe deles? Pelo menos era uma
deixa para sair daquela conversa agradável.
— Bem, então, é melhor eu não a deixar esperando. — Ele
deu a Vadiha um aceno relutante.
Ao lado dela, Kinga arqueou as sobrancelhas para ele, mais
uma vez lançando aquele olhar que ele conhecia tão bem. Nada
atiçava mais o sangue de um elfo sombrio que uma boa luta. Ah,
sim, ele faria algo sobre aquele olhar mais tarde. Embora tivesse
passado muitos anos entre os humanos com seu melhor amigo,
Dakkar, e o pai, ele não havia se esquecido de Kinga. Não se
esquecera da maneira como ela subira na hierarquia e... como
costumava subir nele, também. Ao que parece, a vida como um
caçador volodar no reino da mãe não era tão ruim assim.
Sorrindo por dentro, ele rastejou através da lama do pântano,
afastando as hastes ocas até chegar ao Portão de Heraza e à casa
deles, Nozva Rozkveta.
Todas as mulheres queriam algo, seja apenas uma noite de
prazer ou um trampolim para chegar à sua mãe e o círculo íntimo da
rainha, o Conselho. Kinga não era a única, nunca foi. Mas, o que
quer que fosse, desde que mantivessem o caos emocional de fora,
ele não se importava. Considerando como esse caos funcionou
maravilhosamente bem para seus pais desafortunados, assim como
foi o caso de amor condenado de uma década de seu irmão mais
velho, aquilo era apenas algo a mais na longa lista de coisas que ele
nunca quis ou precisava.
No Portão, ele bateu o ritmo de Nozva Rozkveta para entrar e
ele se abriu.
— Vossa Alteza — disseram duas kuvari, Gavri e Danika, a
título de saudação. Elas recolocaram a barra na porta de pedra
atrás dele.
— Sabem onde está a minha mãe?
— No campo de treinamento, eu acho — respondeu Gavri. Ela
passara um tempo como amante do irmão dele, Zoran.
Com um aceno de cabeça, Dhuro desceu o túnel em direção à
Caverna Central. Que bem fez aquela quase década de sofrimento
emocional? Zoran havia partido para se tornar o rei consorte da
rainha Nendra em Dun Mozg, e seu suposto amor, Gavri, havia sido
abandonada. Se tivessem sido mais sábios, teriam mantido as
coisas casuais.
Agora, ele preferia ficar de fora. Ninguém seguia seus
conselhos, de qualquer maneira, então seria um desperdício de
saliva; todos pareciam determinados a aprender da maneira mais
difícil. Até mesmo Veron havia se apaixonado por sua noiva
humana, e embora eles realmente parecessem se amar, aquilo não
terminaria bem. Nunca terminava. Ele inspirou profundamente e
balançou a cabeça enquanto entrava na Caverna Central.
Ah, casa. Ele nunca se cansava de olhar para aquele lugar.
Nas estalactites acima, os cogumelos bioluminescentes que
iluminavam o reino abaixo com um brilho de cor lavanda, misturado
com o brilho dos vaga-lumes brancos. O emaranhado cintilante das
vinhas de roza se espalharam e prosperaram desde a Ruptura, suas
flores vermelhas brilhantes pontilhando as estalactites como estrelas
carmesins. Ele nunca viu nada no reino do céu que pudesse se
comparar a isso, e naquela altura já havia explorado cada pedaço
dele.
Os Cantores de Pedra ainda trabalhavam incansavelmente
para restaurar os brilhantes e espelhados edifícios de pedra negra,
onde riachos cintilantes alimentavam campos de brotos verdes
lutando para sair do solo fresco da caverna. Mais para o centro de
Nozva Rozkveta, as pedras já haviam sido cantadas na maioria das
casas ao longo dos caminhos entrelaçados da Caverna Central, e
sua joia mais preciosa, o palácio, florescia numa perfeição de cristal
preto, rodeado pelo curso d’água azul-petróleo brilhante que caía na
Escuridão abaixo.
Os caminhos de pedra preta estavam vazios e silenciosos, ao
contrário de algumas semanas atrás, quando Veron se casou com
sua princesa humana, Alessandra. Embora os ataques violentos dos
humanos da Irmandade tenham diminuído para quase nada, as
bestas imortais começaram a atacar com um fervor incomum.
Será que era por isso que Mati queria vê-lo, para lhe dar uma
posição de defesa do reino? Talvez Vadiha, pela primeira vez na
vida, não tivesse reclamado dele para a mãe. Vadiha o derrotara no
desafio uma vez, apenas uma vez, e havia sido há milhares de
anos. Tinha que haver algum limite de por quanto tempo a vitória
dela poderia ser usada como algema.
Com um propósito renovado, ele se dirigiu para as torres de
cristal preto do palácio, passou pelas quatro kuvari na entrada e
caminhou pelos corredores laterais até o campo de treinamento.
Os gritos vykrikovati ecoaram, curtos, altos e fortes, e ele teve
que conter um sorriso. Fazia muito tempo desde que esteve entre
eles, ao lado de Dakkar, mas não o suficiente para que seu corpo
não se lembrasse disso. Seus instrutores fizeram dele um guerreiro,
de todas as crianças elfas sombrias; a cada ataque, ele tensionava
abruptamente seu abdômen, expirando com força para gerar o
máximo de energia possível. O que tinha sido pura alegria quando
criança acabava sendo o terror do campo de batalha, já que as
legiões de elfos sombrios despertavam o puro medo nos corações
de seus inimigos.
Duas kuvari que ostentavam alabarda ficaram de lado quando
ele entrou.
— Vossa Alteza — cumprimentaram.
Com elegância felina, Mati lutava com os jovens noviços,
vestida em sua túnica de seda branca, suas volumosas cascatas de
cabelo platinados com contas de joias como um halo em volta de
sua cabeça. Ela se continha apenas o suficiente para analisar a
habilidade dos novatos e, como esperado, eram ferozes. Afinal, esta
tropa diversificada de jovens representava o futuro de Nozva
Rozkveta.
Mati defendeu um golpe com suas braçadeiras vjernost e um
sorriso se abriu em seu rosto em forma de diamante, um que refletia
em seus olhos. Então ela se virou para ele. A luta parou e, quando
ela se afastou, os noviços retomaram o treinamento um com o outro.
— Eles parecem fortes — disse ele, curvando a cabeça para
ela.
— Ficarão mais fortes. — Ela roçou o braço dele e, com os pés
com garras descalços na pedra negra, o conduziu pelas bordas dos
círculos de treinamento, em meio ao vykrikovati dos noviços e aos
gritos de ordem e encorajamento dos instrutores. — As kuvari me
informaram que você participou da batalha.
Então, ela tinha mesmo dedurado. Obrigado, Vadiha. Mati
disse aquilo sem rodeios, mas ele sabia que podia ser uma
armadilha.
— Sim.
Se Mati quisesse provar algo, então derrotá-lo aqui em meio às
crianças faria isso, o que seria muito mais severo do que ele
merecia. Como a melhor guerreira do seu povo, seria uma
brincadeira de criança para ela.
— Sua ambição é implacável. — Ela fez uma pausa para
assistir outro grupo de noviços treinar.
Ele se juntou a ela.
— Eu puxei a minha mãe.
Um brilho divertido passou pelos seus olhos de âmbar
reluzentes, e então ela voltou sua atenção para a luta.
— Nós podemos lidar com as bestas. Sempre fomos capazes.
No entanto, enquanto houver humanos acima de nós construindo a
biblioteca, devemos tomar precauções adicionais.
Os elfos sombrios sempre foram lutadores habilidosos; eles
construíram suas vidas em torno de proezas marciais. Porém, se
mais criaturas aladas como as harpias de hoje atacassem, não
conseguiriam manter a terra acima de seu domínio a salvo de
invasão, não por completo. E tudo o que precisava para reacender a
inimizade dos humanos seria uma fatalidade humana. Que a
Escuridão os livre que fosse Alessandra.
Tudo o que ele queria era estar à altura das expectativas de
Mati. Isso significava proteger o modo de vida do seu povo e seu, e
conquistar seu lugar não como um caçador, mas um guerreiro. Se
Mati quisesse a ajuda dele na defesa, ela teria. E então ele estaria
livre esta noite para ir se encontrar com Kinga.
— Aguardo as suas ordens.
A expressão neutra dela não vacilou enquanto continuava
observando os noviços. Um par de garotas treinava, depois
passaram a lutar uma com a outra na areia enquanto o instrutor
cuspia comandos para elas.
— Você está familiarizado com o unicórnio entre nós.
Como poderia não estar? Ele sufocou uma risadinha interior.
Ela se destacava como um unicórnio entre os elfos sombrios.
— Quando exilamos o líder da Irmandade, ele concordou em ir
em silêncio. — Ela apertou as mãos com garras atrás das costas, os
ombros enrijecendo. Depois das batalhas que a Irmandade humana
travou contra todos os imortais, sem dúvida ela queria arrancar a
cabeça de Tarquin Belmonte. O exílio, no entanto, foi mais palatável
para os humanos e para assegurar uma paz duradoura,
especialmente após a aliança ser selada pela Entrega e pelo
casamento humano entre seu irmão Veron e Alessandra. — Parte
dos termos envolve ajudar a irmã dele, o que fazemos, de bom
grado.
A irmã de Belmonte, uma humana que se transformou em
unicórnio, estava segura ali, aprendendo mais sobre sua espécie
com Noc, um cavalo feérico, amigo dele e de seus irmãos. O
unicórnio salvara seu irmão Veron e havia ajudado a parar a guerra
com a Irmandade, o que, apesar de seus questionáveis laços
familiares, a diferenciava do lixo que os Belmonte eram.
— Embora ela tenha aprendido muito em seu tempo aqui,
precisa aprender a controlar sua Transformação. Nossos batedores
voltaram com informações sobre um rebanho de unicórnios perto de
Dun Mozg, provavelmente de Gwydion, e devemos agir
rapidamente. Vou mandar que uma equipe a leve até lá para
encontrar o unicórnio que a criou.
Não seria uma longa viagem pelos túneis; ele e Dakkar já
tinham feito aquele trajeto inúmeras vezes.
— Dun Mozg não fica longe.
— A equipe vai por terra.
Franzindo a testa, ele inclinou a cabeça para cima. As
florações de roza cravejavam as videiras bioluminescentes
espalhadas acima, consumindo as estalactites e o teto. Não fazia
muito tempo que seu povo sofrera uma escassez de comida, mas,
com a aliança humana, conseguiram superar isso e estavam mais
fortes do que nunca, e essa recompensa havia sido compartilhada
com Dun Mozg. O reino vizinho não tinha razão para lhes causar
danos. E considerando que Zoran era o rei consorte, e Dakkar não
apenas seu melhor amigo, mas um príncipe de Dun Mozg, que tinha
sido criado ali, seus laços eram quase inquebráveis.
Ele olhou para Mati. Ela não gostava de ser questionada, mas,
se fosse para ele evitar os túneis, tinha que haver uma razão. Seria
melhor se ele soubesse no que estava se metendo em vez de
prosseguir cegamente. E despreparado.
Ela suspirou.
— Esses ataques das bestas não são aleatórios. Há um líder,
sendo auxiliado por um unicórnio caído. Esses ataques são a
estratégia deles para nos manter afastados. Eles uniram forças para
dominar os humanos.
Alguns meses atrás, ele teria dito deixe que dominem. No
entanto, por mais que a ideia o insultasse, quando seu povo estava
mais necessitado foram os humanos que ajudaram. E sua cunhada,
Alessandra, não era tão ruim.
— Por que os humanos não estão cuidando disso?
Os lábios de Mati se tornaram uma única linha severa.
— Eles não sabem quem está no comando. E não devem
descobrir.
Então a informação não fluía tão livremente nesta nova
aliança.
— O unicórnio caído é responsabilidade de Gwydion, então ele
deve ser informado. O criador de Arabella provavelmente estará
entre o rebanho dele. Você vai levá-la até lá.
Ele assentiu. Se era disso que Nozva Rozkveta precisava,
então ele faria. Com a ajuda de Gwydion, esses descontentes
seriam extintos. Os unicórnios possuíam a rara habilidade de induzir
a calma, mesmo entre um exército sanguinário de bestas e
rebeldes... se os unicórnios pudessem ser persuadidos a participar
de um conflito. Algo que Mati estava encarregando a ele.
Assim que terminasse esta missão, ele voltaria para casa e
tomaria seu lugar de direito como um kuvar. As coisas finalmente
seriam como sempre deveriam ter sido.
Mati pigarreou.
— O que quer que Gwydion queira para forjar a aliança, dê a
ele. Ele tem herdeiros que assumem a forma de elfos ou humanos.
Sele o acordo com uma Entrega entre você e um de sua linhagem.
— O quê?! Por quê? — disparou ele. Pela Escuridão, ela o
sacrificaria numa união política como tinha feito com Veron. Pelo
Profundo, pela Escuridão e pelo Sagrado Ulsinael, de todas as...
— Porque o líder desta rebelião é nossa responsabilidade, e
ele deve ser impedido antes que os humanos descubram que é um
elfo sombrio. E ele será detido, com a ajuda de Gwydion.
A cabeça dele girou.
— O líder elfo sombrio dos rebeldes... Quem?
Mati se virou para ele, encarando-o.
— Dakkar de Dun Mozg.
 
*

Luar resplandecente será lançado em Março de 2023.


Sobre a autora

Miranda Honfleur nasceu e foi criada em Chicago e hoje vive em


Indianápolis. Ela cresceu lendo romances de fantasia e ficção
científica, passando quase tanto tempo em Valdemar, Pern, Tortall,
Nárnia e Terra-média quanto na realidade.
Em outra vida, sua graduação e M.B.A. foram para servir a
uma carreira no direito, porém, agora passou a viver do seu trabalho
dos sonhos: escrever ficções especulativas protagonizadas por
heroínas poderosas e heróis ousados que fazem escolhas difíceis
ao longo de suas aventuras e se envolvem em muitas intrigas, tudo
com uma generosa (sobre)dose de romance.
Quando ela não está rosnando, escrevendo ou lendo em seu
Kindle, ela assiste à Netflix e passa o tempo com seu marido, que é
professor de inglês, ou se diverte com jogos de tabuleiro com os
amigos.

Acompanhe Miranda em:


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miri@mirandahonfleur.com
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