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O corvo lançou um olhar lascivo para Aless por trás de seu longo
bico preto enquanto ela girava, os olhos dele tão intensos que
queimavam.
Um borrão de corpos cobertos em sedas e brocados em vários
tons de pedras preciosas rodopiava ao redor dela e de sua irmã,
Bianca, em um compasso ternário. Corvos, gatos, ursos, pavões,
lobos... O reino animal estava reunido sob tetos arqueados e
marquises para atender ao chamado de seu rei...
Ou talvez para ter um vislumbre de sua filha infame que havia
retornado de sua caçada pelo mundo.
Ela estava feliz por estar em casa de novo. Isso lhe daria outra
oportunidade de confrontar Papà sobre finalmente construir a
biblioteca pública que Mamma sempre quis. Ele mal falara com a
filha desde que ela chegara.
Naquela noite, ela usava uma máscara de leão com uma juba
cheia e volumosa, e uma pintura grotesca na frente. Se todos a
encarariam de qualquer maneira, o mínimo que ela podia fazer era
dar um bom motivo. Além disso, se ela conseguisse chamar a
atenção de Papà, seja de um jeito bom ou ruim, talvez ele a
arrastasse para vê-lo e ela finalmente conseguisse falar sobre a
biblioteca.
Signore Corvo se recostou em um pilar e ergueu o queixo,
olhando para ela através da máscara. Ah, ele a observara a noite
toda com aqueles olhos escuros e famintos. E não da mesma
maneira perplexa e boquiaberta que a maioria da nobiltà a
encarava. Ele queria algo... e considerando que sem dúvida não
pertencia à realeza, ele não era um homem que Papà aprovaria.
O que tornava ainda mais tentador dar ao signore Corvo o que
ele parecia querer tanto.
O signore Gato ao lado dele não era diferente, cobiçando
Bianca como se ela fosse um canário gordo e distraído. Bianca não
havia sido enviada como oferenda pelo mundo por Papà, então ela
sem dúvida saberia quem eram aqueles cortesãos.
— Não olhe agora — sussurrou Aless por trás de sua máscara
de leão. — Mas o gato e o corvo perderam a língua.
Bianca riu e se virou, os pés com sapatilhas soando no piso de
taco ao ritmo da música da harpa, da flauta, dos tambores e das
rabecas, em meio a um coro de risadas ensaiadas e tons efusivos
de conversas. Todos os salões de baile do palazzo estavam
deslumbrantes, mas este lugar, a Sala di Forza, era uma
homenagem a um dos maiores heróis da fé Terran, Forza, filho de
Nox e uma mulher mortal, um semideus de grande força. O salão
decorado com pinturas de suas façanhas, grandes caçadas e
batalhas celebrando força, guerra e virilidade, era o favorito de
Papà.
Era sufocante.
Com Papà, tudo sempre se tratava de força, guerra e
virilidade. Lorenzo era um mestre espadachim e podia acertar um
alvo a quase trinta metros de distância com suas facas de
arremesso, então Papà sempre o favorecia, não importava seus
defeitos. E já que Papà não permitia que ela aprendesse nenhuma
das artes marciais – e por ela amar os livros assim como Mamma –,
não havia como vencer essa disputa.
Sua única opção era perder. Só que perder de forma tão
ousada e notória que Papà não poderia ignorá-la. Mas
independentemente do espetáculo e da fofoca, ela sempre podia
contar que Bianca ficaria do seu lado. Uma irmã leal e uma amiga
de confiança.
Bianca ajustou sua elaborada máscara de gato malhado e
prendeu uma mecha de cabelo brilhante cor de ônix atrás da orelha.
— Os irmãos Belmonte.
Ah, então o corvo e o gato eram ninguém menos que Luciano
e Tarquin Belmonte. A reputação deles os precedia. Ainda mais a de
Luciano – Bianca não parava de falar dele há meses. Mas ela era
assim – não, a família era assim. Quando uma Ermacora colocava
algo na cabeça, não tinha como ser convencida do contrário, e
coitado daquele que fosse tolo o suficiente para ficar em seu
caminho.
E Bianca com certeza tinha se decidido quanto a Luciano.
O mais alto dos dois, signore Corvo, tinha que ser Tarquin, o
irmão mais novo e general da Companhia Belmonte de mercenários;
o mais velho dos dois, signore Gato, era Luciano e, após a morte do
pai, o atual visconde de Roccalano.
Homens de moral fluida, fisicamente aptos, que eram bons
dançarinos e, se os rumores fossem verdadeiros, amantes
habilidosos, mas não possuíam o sangue e a obrigação moral da
realeza.
Aless guiou Bianca para fora da pista de dança até a mesa de
cavalete mais próxima, amontoada com tortas de marzipã e de
creme e frutas coloridas. Ela estourou uma uva em sua boca e
manteve um cálice estendido até que o som de vinho sendo servido
cessou. Depois de um gole de espumante, ela entregou o cálice a
Bianca, o tempo todo mantendo o olhar fixo nos irmãos Belmonte.
— Talvez Luciano finalmente se torne seu mais novo
entretenimento? — perguntou a Bianca, que escondeu o rosto atrás
do cálice de vinho. — Não que eu esteja reclamando — sussurrou,
avaliando Tarquin bem devagar. — Mas o que eles estão fazendo
em Bellanzole?
Bianca se inclinou para perto dela.
— A Companhia Belmonte está lidando com os nossos...
problemas com os Immortali. O exército não tinha a habilidade para
se livrar do ninho de harpias nos penhascos, mas desde que
Arabella Belmonte, irmã deles, desapareceu há alguns meses,
Luciano as vem estudando e Tarquin, lidando com elas. Se tornaram
especialistas nos Immortali, então Papà contratou a empresa deles.
A Ruptura tinha rasgado o Véu há alguns meses e os Immortali
acabaram reentrando no mundo como se tivessem escapado das
páginas dos mitos e das lendas. Em Silen, alguns eram pacíficos,
como os elfos de luz, os elfos sombrios e os feéricos, já outros eram
monstros que matavam sem piedade, como as harpias, as serpes,
os basiliscos e muito mais. Papà tinha designado muitas de suas
tropas para combater os piratas que assolavam as costas e suas
rotas comerciais, e com isso as reservas ficaram escassas para
lutar contra inimigos que ninguém entendia – exceto os irmãos
Belmonte, pelo visto.
— Ore por mim, Aless. — Bianca agarrou o cálice com firmeza.
— Pois acho que o amo. Acho que quero... me casar com ele.
Casar-se com ele? Falando coisas assim, seria Bianca quem
conseguiria a atenção de Papà, querendo ou não. Para qualquer
mulher da linhagem real Ermacora, Luciano era fruto proibido
quando se tratava de casamento. Ainda assim, em todos os
devaneios desejosos que contava, Bianca parecia estar sempre em
meio a um pomar de frutos proibidos, com uma escada alta o
suficiente para alcançar qualquer coisa que quisesse.
— Eu sei que seu coração já decidiu por ele — respondeu ela
—, mas talvez você possa... ajustar um pouco suas expectativas.
Bianca tomou um gole de vinho, depois virou o cálice e o
drenou de vez. Coragem líquida? Ela olhou por cima do ombro para
os irmãos Belmonte.
— Já tenho 23 anos — insistiu Bianca. — E não tenho outros
pretendentes, então talvez Luciano possa ser uma boa opção? Papà
pode estar empenhado em te enviar para todos os solteiros da
realeza elegíveis na região, mas não a mim.
— Três. Três solteiros da realeza no ano passado...
— Só no último ano. — Bianca ergueu o queixo. — E esses
três são todos os solteiros da realeza elegíveis que existem. Todos
os outros já estão casados ou noivos. — Ela franziu a testa, seus
olhos revirando para cima e para o lado. — Ou ainda são crianças.
— Papà só tem interesse em me enviar nessas viagens porque
quer se livrar de mim. Ao contrário de sua filha favorita. — Desde
que Aless atingiu a idade para se casar, Papà a mandara para
talvez... uma ou duas dezenas de solteiros da realeza. Embora
naquele ano ele só a havia enviado para dois príncipes e um rei.
Talvez fosse um sinal de que estava desistindo e que enfim a
deixaria em paz com seus livros.
Bianca pousou o cálice.
— É só porque ele acha você muito intrometida. Quando você
decide que algo deve ser de um jeito, não desiste. Isso pode fazer
com que você seja... difícil de lidar. Essa sua ideia de biblioteca
pública tem sido uma pedra no sapato dele.
Ela se endireitou. Mamma passara a vida ensinando os
paesani a ler, e quando morreu, tudo isso parou. Por quase uma
década, Papà não tinha apenas interrompido os planos de Mamma
para construir uma biblioteca pública, um centro de aprendizado
para todos, mas evitava aquilo intencionalmente. Seria mesmo
intromissão querer dedicar sua vida a ver a biblioteca construída,
querer ensinar toda e qualquer pessoa que quisesse aprender,
como Mamma desejava? Ela bufou.
— Quero fazer mais do que ser forçada para pretendentes da
realeza — declarou. — É tão errado assim sonhar com algo mais?
Suspirando, Bianca balançou a cabeça antes de responder:
— Difícil. Sua coluna pode estar curada agora, mas você ainda
é a princesa Bestial. — Com um último dar de ombros, ela voltou
para a pista de dança.
O calor se espalhou pela pele de Aless, subindo por cada
centímetro até tudo queimar. Princesa Bestial? Fazia algum tempo
desde que alguém a chamava assim – pelo menos, não na sua
frente.
Tentando ignorar as batidas aceleradas do coração que
martelavam em seu ouvido, Aless jogou outra uva na boca e se
apressou em direção à porta. Murmúrios a seguiram, mas ela não
se importou. Esta era apenas uma festa idiota e seu tempo seria
melhor empregado estudando os Immortali em seus livros.
Seu peito colidiu com alguém – uma mulher com uma máscara
de coelho, que fez uma reverência breve.
— Perdão — deixou escapar Aless, inclinando a cabeça. Um
círculo havia se formado ao redor delas, sem dúvida esperando por
mais motivos para fofocas. Mas ela não tinha sido a princesa Bestial
por toda a sua vida sem aprender a domar seu temperamento pelo
menos um pouco. Mas talvez isso fosse o que ela precisava para
conseguir uma reunião com Papà.
A mulher vestida de coelho não respondeu, mas olhou para a
comida.
Estranho. No entanto, Aless pigarreou e gesticulou na direção
da mesa de cavalete.
— Por favor, fique à vontade. Prometo que não mordo —
brincou Aless com um sorriso, mostrando os dentes e tocando sua
máscara de leão. Bem, pelo menos não morderia ninguém que não
a mordesse primeiro.
A mulher fez outra reverência. Um homem com uma máscara
de raposa se aproximou, envolvendo um braço em volta da cintura
da mulher coelho.
— Ah, Vossa Alteza, perdoe minha querida noiva, Saverina.
Ela fez o Voto de Silêncio.
Um juramento de não falar até o casamento. Muitos pais em
Silen exigiam isso de suas filhas para casamentos arranjados entre
os nobiltà, sendo tanto uma demonstração de devoção quanto uma
maneira de garantir que as línguas soltas não gerassem deslizes
infelizes.
— Que tradição desastrosa da parte de vocês.
O homem raposa soltou um risinho.
— Só podemos esperar que a tradição continue após o
casamento!
Aless forçou uma risada.
— Que absolutamente draconiano da sua parte — disse ela
com a maior doçura possível, enquanto o homem assentia de forma
efusiva.
— Sem dúvida! Muito amável. Com a sua permissão, princesa
— disse ele, fazendo uma reverência antes de levar para longe sua
noiva silenciada pelo voto.
A maioria dos paesani não sabiam ler, mas a única desculpa
dos nobiltà era a ignorância intencional. Mas aqui o conhecimento
não era mais tão valorizado como fora antes. Papà, e tudo o que ele
defendia, era prova disso. Suspirando, ela olhou para seu domínio
opulento.
Os convidados mascarados vestidos no ápice da moda de alta-
costura de Bellanzole se misturavam e dançavam. Os nobiltà e os
nuovi ricchi idealizaram essa aventura, enfeitando-se uns para os
outros como de costume, sua moda eclética e diversificada – dentro
de uma variação permitida, é claro.
Exceto pelo signore Corvo, Tarquin Belmonte. Não, ele deixara
a tal variação permitida de lado e sua intenção era impressionar.
Chegar vestido de morte era se opor a tudo aquilo. Em sua máscara
de corvo, calças e gibão de brocado pretos, e uma capa de luto feita
de penas, ele preenchia bem os requisitos da alta-costura. Além
disso, precisava ter muita audácia para ir a um baile de máscaras no
Palazzo dell’Ermacora vestido com trajes fúnebres. Tanta audácia
quanto a de uma princesa com uma máscara de leão grotesca.
Ela sorriu. Um homem de fibra. Bom. Pelo menos um cortesão
que não corria em desespero para se curvar e se arrastar diante de
Papà.
Bianca tinha encontrado algo para fazer em vez de discutir.
Havia algo de sábio nisso. Ela faria qualquer coisa para conseguir
aquela reunião com Papà.
Com os olhos fixos nos dele através de sua máscara de leão,
ela se virou, ajeitando a ampla juba de sua fantasia atrás dela, e
deslizou pela multidão com facilidade, misturando-se, afastando
cortesãos ansiosos enquanto saía da Sala di Forza e seguia em
direção à varanda.
Ele a seguiria, é claro. Era o momento perfeito para vir até ela.
Ela trocou as brilhantes sedas coloridas e as pinturas das muitas
vitórias míticas de Forza pelos diamantes distantes que pontilhavam
o céu de veludo preto.
Agarrando a balaustrada de pedra, ela fechou os olhos e
respirou fundo três vezes. O aroma suave e fresco de rosas a
abraçou, a cercou, como tinha feito inúmeras vezes em seus sonhos
e fantasias. O mesmo pátio tomado de rosas em plena floração se
espalhava diante dela, misterioso e adorável, exalando o perfume
mais fascinante no ar mais límpido e puro. Ela estendeu um dedo e
quase podia sentir as pétalas aveludadas e macias...
— Então, a cova do leão é a varanda?
Ao lado dela estava uma bela visão vestida em penas negras,
com quase 1,80 m de altura e um corpo de um gladiador. Tarquin
Belmonte. Ela piscou e aquele perfume encantador desapareceu.
Ela deu uma olhada tímida nele.
— Você não tem uma carcaça em algum lugar para bicar?
Ele soltou um meio riso.
— Eu tenho uma caça melhor em vista.
Suprimindo um sorriso, ela balançou a cabeça.
— Ousado como um corvo.
Ele também apoiou a mão na balaustrada de pedra, sua pele
quente mal tocando a dela.
— Nada menos do que ousadia pode ser esperado para se
conquistar uma princesa.
— Foi por isso que veio aqui? — Ninguém lidava melhor com
ousadia que a princesa Bestial. Ela se virou para ele, cobrindo a
mão dele com a dela, e ergueu a outra para sua máscara de corvo.
— Para me “conquistar”?
Ele não se afastou, então ela tirou a máscara dele.
Olhos castanhos da cor de cornalina brilharam com a luz das
estrelas, sob pestanas e cabelos pretos com um corte rente; os
traços do áspero maxilar eram fortes, e os cantos de sua boca se
curvaram para cima maliciosamente, como se ele soubesse de algo
que ela não sabia.
Ela não esperava encontrar um rosto bonito para combinar
com o físico alto e musculoso. Entretanto, ela não via Tarquin
Belmonte há anos, desde antes de ele assumir a companhia
mercenária de seu pai e trilhar seu caminho na hierarquia. E nossa,
como ele cresceu.
— Princesa Alessandra — disse ele em sotto voce seu
sotaque Roccalano melodioso. — Eu vim para qualquer coisa que
você deseje de mim.
Ela deveria ter rido, mas o riso não veio. Não com ele. Não
com essas palavras audaciosas.
O olhar dele a percorreu várias vezes.
— Sei que é um baile de máscaras, mas por que um leão? E
um leão macho grotesco, ainda por cima?
Ela sorriu, procurando em sua mente por palavras
emprestadas.
— Se eu contasse, revelaria a resposta de uma maneira nada
excitante.
Ele arqueou uma sobrancelha. Aless deixou que ele
trabalhasse um pouco.
Notas animadas de harpa soaram de dentro do salão, tocando
uma quessanade corrente.
— Então devemos começar a revelação com uma dança? —
Ele ofereceu sua mão. Ela a pegou e recolocou a máscara na
cabeça dele, depois ele passou o braço dela em volta do seu e a
reconduziu ao esplendor da Sala di Forza.
Do outro lado do salão, Bianca dançava com Luciano, as
máscaras de gato dos dois combinando. Até que o mensageiro
esbelto de Papà, Álvaro, se aproximou. Ele fez uma reverência e
falou com Bianca, que sorriu, assentiu e prontamente se despediu
de Luciano, antes de deslizar para o corredor.
Apenas uma coisa poderia arrastar Bianca para longe de seu
fruto proibido.
E agora Álvaro, o seu rosto jovem carregado com traços
severos, dirigiu-se a ela. Fez uma reverência.
— Vossa Alteza, princesa Alessandra, Sua Majestade requer
vossa presença.
— É mesmo? — Ela conteve um sorriso. Sucesso...
finalmente. Ela deu a Tarquin um encolher de ombros,
decepcionado. A revelação deles teria que esperar.
— Devem ser os Immortali de novo — disse Tarquin, num tom
sombrio. — Uma corrupção que tem que ser erradicada deste reino.
Corrupção? Ele provavelmente queria dizer os monstros entre
os Immortali, certo? As harpias, os basiliscos, as serpes – não o
povo Immortali pacífico.
Ela franziu a testa, mas um fogo tão intenso ardeu nos olhos
de Tarquin que queimou a pergunta para longe dos lábios dela.
— Vossa Alteza — incitou Álvaro.
Como se ela fosse recusar o encontro tão esperado com Papà.
Bufou.
Com um movimento perfeito, Tarquin inclinou a cabeça para
ela, que retribuiu, antes de se virar para sair. O que Tarquin não
sabia era que Papà jamais requisitaria sua presença para pedir a
opinião dela sobre algum assunto importante, como os conflitos com
os Immortali. Não, quando se tratava do que realmente importava,
Papà preferia que fosse como uma cortesã mascarada de coelho
sob um Voto de Silêncio.
Aquilo se tratava apenas de um sermão, nada mais, mas
usaria o encontro a seu favor.
Enquanto seguia Álvaro pelo corredor mal iluminado, Bianca
ofereceu para ela um pequeno sorriso. Um sorriso piedoso.
Então ela presumiu... Bianca tinha assumido o mesmo que
todos pensariam.
Papà tinha somente um uso para sua princesa Bestial.
Aless balançou a cabeça e engoliu. Mal tinha pisado em
casa... Papà não a mandaria embora para ser cortejada de novo.
Não tão rápido.
Mandaria?
Aless olhou para Papà, sentado em seu trono sob o teto alto
abobadado. Ele tinha deixado o baile logo após ela chegar, porque
deve ter ficado muito satisfeito, sem dúvida. Porém, parecia o
epítome da realeza, com suas vestes de um brocado de seda violeta
caro e usando a coroa de joias em seu cabelo preto como carvão
com mechas cinzentas. Guardas reais em mantos roxos rodeavam o
aposento, em formação perfeita, imóveis e intimidantes.
Naquela sala do trono, poderia lembrá-los exatamente qual era
o lugar deles – muito, muito abaixo – e quem ele era: o rei.
No entanto, pela primeira vez, chegou de fato a detalhar a
terrível condição do reino para ela e Bianca.
Papà acariciou sua barba curta.
— Aquele canalha do Sincuore e os piratas desgraçados dele
devastaram nossa marinha. Nossos recursos devem ser
reposicionados para reabastecê-la, o que significa que precisamos
de proteção e paz aqui na região central do reino.
Enquanto a costa precisava ser defendida, a região central
estava repleta de bestas imortais atacando os paesani, bem como
havia desordem entre os humanos e os Immortali.
— Os irmãos Belmonte vieram aqui na expectativa de arranjar
pretendentes em troca dos seus serviços mercenários — continuou
Papà. — Mas só posso conceder uma filha para a família Belmonte,
e ela irá se casar com Luciano.
Bianca sorriu para ela. Conseguiria o seu Signore Gato, afinal.
O pomar de seus sonhos estava se tornando realidade, e nunca
havia sido tão maravilhoso ter se enganado. Aless conteve um
sorriso interior.
Mas por que Papà tinha convocado as duas?
— Também faremos um acordo de paz com o Bosque Noturno.
— Ele se reclinou em seu trono.
Os elfos sombrios? Papà pararia com aquele seu ódio, afinal...
No entanto, dissera que tinha apenas uma filha para conceder
à família Belmonte. Isso significava...
Acordo de paz através do casamento.
Com os elfos sombrios.
O sangue dela congelou.
Ele está me oferecendo ao Bosque Noturno?
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, queria que ela se casasse
com um deles? Eles tinham garras e presas, viviam em cavernas
subterrâneas onde nem uma única rosa florescia. Não haveria
sequer um indício dos lindos jardins de Mamma lá. Eles comiam
lagartos e líquens, tinham íris amarelas assustadoras, cabelos
brancos fantasmagóricos e pele azul como a de uma cobra. A pele
dela se arrepiou.
Ela desviou o olhar para o lado, para a enorme tapeçaria com
a imagem de Forza matando a hidra. Aquele monstro mítico era tão
atraente para ela quanto um elfo sombrio macho. Ela não os odiava,
mas com certeza não queria se casar com um deles, beijar um
deles, dividir um leito matrimonial...
Aless se conteve para não vomitar. Aquelas garras em seu
corpo, uma boca com presas beijando a dela...
Um tremor sacudiu seus ossos. A paz era um objetivo
louvável, mas Papà não podia esperar que ela... se casasse com
um deles.
Ela não queria fazer isso. Nunca faria algo assim. Tinha que
haver uma maneira de consertar isso.
— Bianca, você se casará com o príncipe Veron, do Bosque
Noturno — declarou Papà, o olhar de Bianca se voltando
rapidamente para ele. — E, Alessandra, você vai se casar com
Luciano. Estamos lutando contra serpes, harpias, basiliscos e todos
os tipos de bestas, não podemos nos dar ao luxo de também
enfrentar os elfos sombrios. As tropas deles podem nos ajudar a
acabar com as bestas Immortali na região central do reino, aliviar o
fardo do nosso exército. Teremos uma cerimônia de casamento
aqui, para Bianca e príncipe Veron, depois outra, no Bosque
Noturno, e a paz será selada. Enquanto isso, você vai se casar com
Luciano, Alessandra.
Aless piscou com os olhos ainda arregalados e engoliu o nó
em sua garganta.
O sorriso de Bianca desapareceu como sementes de um
dente-de-leão soprados ao vento. Sua pele morena ficou pálida e o
brilho de seus olhos verde-azulados, como ágatas, sumiu.
Não, estava tudo errado. Tudo.
— Papà. — Aless balançou a cabeça. Tinha que haver outra
maneira. Tinha que achar uma saída. — Será que não há outra
maneira de assegurar a aliança, sem que seja pelo matrimônio?
Qualquer outra possibilidade?
Os olhos de Papà se estreitaram e ele entrelaçou os dedos.
— O sangue é a única maneira de uma aliança como esta ser
mantida. Um vínculo de sangue compartilhado.
Sangue compartilhado? Só podia estar se referindo a filhos.
Ela franziu a testa.
— Como um casamento entre um mortal e um imortal pode dar
certo? As espécies conseguem se reproduzir? É possível gerar
filhos? — Ela nunca havia lido tal coisa.
— Muito possível, tenho certeza — respondeu Papà, com
naturalidade, seu rosto uma máscara severa. — E os anciãos são
tratados com respeito na sociedade deles. A diferença de idade
seria tratada de maneira adequada.
A diferença de idade. Que maneira estranha de frasear a
rapidez com que Bianca envelheceria, enquanto seu suposto marido
permaneceria jovem, observando-a murchar. Provavelmente
ansioso para se casar de novo, com um de sua própria espécie –
contando os dias para isso.
Aquela era a demonstração de amor de Papà por sua filha
favorita? Enviar Bianca para alguém que aguardaria ansioso por sua
morte, para um lugar onde definharia sem amor ou qualquer coisa
que lhe trouxesse alegria, apenas para servir como reprodutora para
a preciosa aliança dele?
Uma dor se formou atrás de seus olhos e ela esfregou suas
palmas suadas no vestido de tule.
— Como você pode fazer isso, Papà? Tenho certeza de que
sabe como Bianca se sente em relação a Luciano. — Ela passou
um braço pelos ombros trêmulos de Bianca.
— Isso é o melhor para você — respondeu, após respirar
fundo.
— Eu sei o que é melhor para mim. — Ela o encarou. — Me
recuso a casar com Luciano. Você deve liberar Bianca desse...
desse pesadelo de noivado.
Papà apoiou a testa na mão.
— Alessandra, este casamento vai acontecer com ou sem
você. Você pode se casar pessoalmente ou in absentia, mas vai se
casar, e Luciano vai levá-la para Roccalano, com ou sem o seu
consentimento. Você vai fazer isso ou será inútil para este reino.
Inútil. Ele já tinha a chamado assim antes, há muito tempo,
embora ela tivesse certeza de que não sabia que ela estava
ouvindo. Quando ela tinha 8 anos, Mamma estava lamentando
sobre os últimos dispositivos de tortura do médico.
Devemos fazê-la passar por tanto sofrimento? Esse tratamento
deve ser uma agonia, Mamma dissera. E, sim, aquele corretor
postural tinha sido insuportável, rígido demais, apertado demais, a
dor era tanta que a levava às lágrimas.
Devemos, Papà havia respondido, severo. A menos que a
coluna dela esteja curada, será inútil neste mundo.
No corredor do lado de fora do solar, ela cobrira a boca, tinha
escondido as lágrimas e havia sufocado seus soluços. Mesmo aos 8
anos, ela decidira aprender tudo o que podia sobre governar um
reino, mesmo que tivesse que fazer aquilo sozinha. E havia decidido
nunca ser inútil, não importava o que Papà pensasse dela.
Porém, aqui estava ela. Encurralada no único propósito que
ele tinha para a vida dela.
Ou assim ele pensava. Aless recusou-se a desviar o olhar
dele. Ele não arruinaria a vida de Bianca, não enquanto ela tivesse
uma irmã com talento para criar um mar de problemas.
Bianca chorou em seu ombro e Aless esfregou suas costas
suavemente.
— E Bianca? — perguntou. — Está claro que ela não quer se
casar com esse tal elfo sombrio. Você fará com que ela seja
arrastada para... a caverna deles?
— Se isso for o necessário. — Ele observou Bianca, a boca
dela curvada para baixo, e seu olhar se suavizou. — Mas Bianca
sempre entendeu o fardo da realeza. Tenho fé que ela não me
decepcionará.
Que homem de honra, este príncipe! Ele arrastaria Bianca,
chutando e gritando, para o seu buraco no chão?
— Que homem com tanta moral e bondade você escolheu
para ela.
— Ele é — respondeu Papà, impassível. — Ele está reparando
a ruptura entre o nosso povo. É um exemplo entre sua espécie.
— Talvez você devesse se casar com ele, então.
— Ele e seu povo foram impiedosamente atacados por
humanos por meses, e ele seguiu ordens para não se envolver, não
revidar. Ele tem uma força de vontade de ferro e uma disposição
para a diplomacia.
Os humanos atacaram ele e o seu povo por meses, e ele
seguiu ordens para não revidar?
— Então, antes mesmo de conhecer Bianca, já vai odiá-la
porque ela é humana.
Maravilha. Melhor ainda.
Bianca esfregou o antebraço em seus olhos e pousou uma
mão no braço dela.
— Aless... Está tudo bem. Eu... farei o que Papà quer. — Ela
fungou. — E você não está sempre dizendo o quanto queria fazer
algo importante para o nosso reino? Luciano é... um homem
influente, e eu... tenho certeza de que vocês encontrarão um jeito de
trabalhar juntos. Essa é a sua chance.
Bianca estava apaixonada por Luciano e Papà tinha acabado
de anunciar seu noivado com um elfo sombrio! Como podia ficar ali
parada, dizendo que tudo estava bem? Bianca esperara por um
casamento desde seu décimo sexto aniversário, ela tinha 23 anos
agora, e tinha finalmente se apaixonado por um homem, mas seria
forçada a casar com um... elfo sombrio? Como podia apenas aceitar
isso?
Se fosse eu, lutaria com unhas e dentes. Encontraria uma
maneira de fazer com que esse elfo sombrio me libertasse, mesmo
que ninguém me ajudasse. Faria isso sozinha.
Se fosse ela...
Se.
Bianca ofereceu a ela um sorriso triste e um aceno quando se
virou para Papà, mas Aless agarrou seu braço.
Com o coração martelando em seus ouvidos, encontrou o
olhar de Bianca. Ela não se casaria com o amor da irmã. Não
deixaria que Bianca vivesse uma vida miserável. Poderia acertar as
coisas. Ela...
Bianca respirou fundo e balançou a cabeça. Não importava.
Ela não precisava da permissão de Bianca.
— Papà — chamou Aless, erguendo suas saias de tule
enquanto os saltos faziam barulho, indo até o primeiro degrau do
palanque onde ficava o trono. — Me ofereça no lugar dela. Eu me
caso com o príncipe Veron.
Atrás dela, Bianca arfou.
— Aless, você não pode! Você não sabe o que está...
— Não, sei sim o que estou fazendo. — Ela observou o rosto
de Papà, procurando por qualquer sinal de que concordava, mas ele
não deixou transparecer nada. — Por favor, deixe Bianca se casar
com Luciano e prometo que me casarei com o príncipe Veron.
Papà soltou um suspiro longo e sofrido.
— Posso confiar em Bianca para cumprir seu dever. Já você,
não. Luciano já sabe disso a essa altura. — A reputação dela, é
claro, também a precedia. — Mas príncipe Veron não é um Sileni.
Ele não entenderá a sua... personalidade, e este reino precisa de
um tratado de paz com o povo do Bosque Noturno para ter êxito.
Papà estava certo, Bianca cumpriria o dever. Mas, ao fazer
isso, destruiria a própria vida por completo.
— Não faz sentido que Bianca e eu sejamos infelizes —
devolveu, balançando a cabeça com veemência. — Deixe-me tomar
o lugar dela. Vou me casar com o príncipe Veron.
Papà descansou o queixo no punho.
— Alessandra, você sabe que a amo. Mas, para sermos
honestos, você é teimosa, tem pavio curto e uma língua ferina e é
presunçosa. Você é tudo que um homem não quer em uma esposa.
Você tenta contratar moleques de rua para fazer serviço em sua
casa, doa suas moedas para rebeliões de plebeus, encontra todas
as oportunidades para mostrar aos nobiltà que “discorda” deles...
Ela estava com uma objeção na ponta da língua, mas ele tinha
citado a sua língua ferina.
Suspirou. Sim, tinha feito todas aquelas coisas. Não era como
se ele tivesse razões para esperar que obedecesse em silêncio.
Silêncio...
Talvez houvesse uma maneira de persuadi-lo, uma tradição
antiga entre os Terrans mais devotos, algo que os sacerdotes e
paladinos da Ordem da Terra ainda faziam, projetado para criar
circunstâncias para introspecção e autorreflexão. Mesmo que
apenas no nome...
— Não direi uma palavra a ele. Farei um Voto de Silêncio e
não vou dizer nada a ele até o casamento.
Seria um voto. E ela não diria nada para ele. Aquela não era
bem a velha tradição, mas esperava que Papà não fizesse muitas
perguntas.
Um sorriso repuxou os cantos dos lábios de Papà. O que o
divertia mais? Ela mantendo a paz agora, casando-se com um dos
Immortali, ou prometendo manter a boca fechada?
Talvez fosse tudo.
— Esta é uma escolha fácil. Faça Bianca feliz — pediu,
apertando a mão de Bianca — e ainda se livre de mim. Tudo de uma
só vez.
Papà suspirou mais uma vez, com ombros pesados, sem
dúvida sustentando o peso de duas décadas dela o decepcionando.
— Não estou tentando “me livrar” de você.
Ela deu de ombros. Ele podia usar os termos que quisesse
para aquilo. Tinha decidido que estava farto dela e que, por isso,
precisaria sacrificar Bianca. Todos sabiam que essa era a verdade,
por mais difícil que fosse, não importava o que mais ele dissesse.
Mas o silêncio dele persistiu e a mão de Bianca amoleceu na
dela.
— Com este casamento — disse Papà, ficando de pé. — Você
fará as pazes entre duas nações. Não há nada mais grandioso que
alguém possa fazer pelo nosso reino, Alessandra.
Ele tinha concordado!
Ela queria sorrir, mas... tinha acabado de ganhar um
casamento com um dos elfos sombrios. Talvez houvesse algo mais
que pudesse acrescentar ao acordo.
— E a biblioteca? Quero ensinar em Bellanzole, como
Mamma.
Ele desviou o olhar.
— Dei muita liberdade à sua mãe, e foi isso que a matou —
disse ele, baixinho. — Se ela ao menos tivesse ficado no palazzo
em vez de se aventurar entre a ralé, ainda estaria viva.
Então era isso? Porque Mamma fora assassinada, ninguém
nunca mais poderia fazer mais nada?
Depois de anos de pesquisa, ela trabalhara sem parar na
proposta, mas ele e Lorenzo não deram resposta. Ele poderia pelo
menos considerar o caso seriamente.
— Entreguei a você os planos para a biblioteca, listas de todos
os mestres para construi-la, e sugestões para bancar...
— Isso era o que sua mãe queria, e olha o que aconteceu com
ela! — gritou Papà.
Ela estremeceu. Mamma tinha morrido, mas dedicara sua vida
a compartilhar conhecimento com os outros, ensinando a todos que
estivessem dispostos aprender a ler, acumulando sabedoria sobre o
mundo natural e todas as coisas que cresciam nele. Ela sempre fora
conhecida como o coração selvagem que ninguém podia domar,
mas Papà amara o que ela amava e havia feito o impossível – ou,
pelo menos, ele fingira que fazia, para apoiá-la. Depois de sua
morte, todos se esqueceram do seu desejo. Assim como se
esqueceram dela.
Mas eu não esqueci.
— Papà, por favor...
— Bibliotecas significam ter paesani que podem ler, escrever e
pensar, que podem escrever panfletos e tratados, e protestar, em
vez de trabalhar. Que podem encontrar novas maneiras de nos
destruir. — Ele soltou um suspiro. — Estes são tempos
imprevisíveis. O reino não pode assumir tal risco.
— Papà, isso é...
— A verdade. E, Alessandra, você tem alguma noção do
quanto custa construir uma biblioteca e mantê-la funcionando?
— Sim. Estava tudo lá nos...
— Não estou falando do custo monetário. O que você traçou
foi um plano de impostos para a construção. Mas e os custos não
monetários de tributar nossos signori, ainda mais agora, quando
muitos estão com poucos recursos ou muito endividados por ter que
financiar defesas contra os Immortali? Temos outro ninho de harpia
logo nos arredores de Stroppiata! Temos preocupações maiores
agora. Ao aprovar seu plano, eu mesmo estaria plantando as
sementes de uma rebelião.
“Nossa sobrevivência não veio sem sacrifício. Sua irmã,
Giuliana, casou-se com o Príncipe Robert de Emaurria para se
tornar rainha, para ajudar a proteger nosso reino e forjar acordos
comerciais favoráveis quando chegasse sua hora. E foi morta.
Perdemos não só nossa querida Giuliana, mas os favores que teria
concedido ao nosso reino. E você falhou em cativar o novo rei.”
Cativar? O rei estava apaixonado por outra mulher; havia
pouco o que ela pudesse fazer, a não ser deixar o lugar com
graciosidade.
— Ele já estava...
— Quaisquer que sejam as razões, você falhou. Esta é uma
responsabilidade que agora você deve aceitar. Os termos estão
definidos, e cumprir seu dever agora significará que não teremos
mais vidas de paesani perdidas para batalhas com os elfos
sombrios, nem dinheiro gasto por signori para se defender deles, e
isso significará uma aliança militar contra os outros Immortali, maior
conhecimento deste novo mundo e trocas comerciais valiosas.
Bianca se aproximou e fez uma reverência.
— Papà, por favor. Aless está tomando meu lugar, e o mínimo
que...
Papà ergueu uma mão.
Não adiantava tentar convencê-lo. Já tinha tomado sua
decisão, ela e Bianca não passavam de peões.
Sua biblioteca, um lugar onde poderia ajudar qualquer um que
quisesse aprender e crescer, nobiltà ou paesani, humano ou
Immortali... Será que fora apenas um sonho, assim como o jardim
coberto de rosas e seu perfume encantador?
Mas ela faria o que fosse necessário para que houvesse a paz
entre o seu povo e os elfos sombrios. Não precisava
necessariamente ser com um casamento.
Não sou inútil. Mas não vou deixar que você defina o meu
propósito.
Ela concordaria com esse arranjo, mas, assim que Bianca e
Luciano se casassem, encontraria uma maneira de persuadir este
tal príncipe elfo sombrio a libertá-la e deixar que a amizade entre
eles estabelecesse a paz entre suas nações. Casamentos haviam
solidificado a paz por milênios, mas aqueles eram tempos
modernos. Certamente uma amizade consensual e honesta poderia
demonstrar uma parceria sem recorrer a um casamento que
nenhuma das partes desejava, não é?
Na verdade, chegara o momento de todo o reino ouvir a voz da
razão: era hora de uma mudança.
Ela cruzou os braços e baixou o olhar.
— Está bem.
— Bom. — Ele desceu os degraus e colocou a mão no ombro
de Bianca. — Seu casamento será três dias após o de Alessandra.
Parabéns, luce dei miei occhi. — Ele tomou o rosto dela em suas
mãos. — Você será uma linda noiva.
Bianca sorriu enquanto ele enxugava suas bochechas
molhadas de lágrimas. Seus grandes olhos de ágata se suavizaram.
— Obrigada, Papà.
Ele sorriu de volta para ela, em seguida, ergueu o queixo de
Aless com um dedo de forma brusca.
— Alessandra, tente não destruir a paz. Sei que é difícil. Mas
tente.
Ela franziu rosto e, com os olhos brilhando, ele se afastou,
seus guardas o seguindo.
Aquele podia ser o fim da vida dela, e tudo o que ele fez foi
zombar? Pela misericórdia da Sagrada Mãe.
Ela concordou em se casar com o príncipe elfo sombrio, e não
dizer nada até os votos de casamento deles, e assim o faria. Sem
dizer uma palavra para ele, de qualquer maneira. Ela iria até o fim
com o casamento em Bellanzole e não diria uma palavra até aquele
momento.
Nenhuma palavra. Ela sorriu. Mas havia outras maneiras de
transmitir uma mensagem.
Capítulo 2
*
Sob o sol do final da tarde, Aless permaneceu parada no pátio,
a coluna reta, os ombros para trás e o queixo erguido. A brisa de
verão balançava o brocado de seda rosa de seu vestido e os cachos
cuidadosamente modelados, caindo em cascata por suas costas. A
tiara de joias estava quente contra sua testa, mas Papà tinha
deixado instruções específicas para suas damas de companhia e
criadas. Eles a decoraram como um cavalo indo para uma
competição.
— Você não vai mesmo falar com ele, minha senhora? —
sussurrou Gabriella, sua amiga e dama de companhia, prendendo
uma mecha de cabelo atrás da orelha de Aless.
Ela já tinha prometido a Papà que não falaria. E isso não
importava de verdade, não é? A vontade dela não contava, então
por que as palavras dela importariam? Este príncipe provavelmente
chegaria sob ordens de sua mãe apenas para olhar seus dentes e
verificar sua postura. Um bem não precisava dizer uma palavra para
ser útil.
Ele apenas a colocaria em sua carroça, a levaria para a
caverna dos elfos sombrios e a guardaria como um troféu para
apresentar sempre que a necessidade de provar seu tratado de paz
com os humanos surgisse. Eles diriam: não temos nenhum conflito
com os humanos! Olha, um de nossos príncipes tem uma esposa
humana.
Considerando que eram as elfas sombrias que governavam o
Bosque Noturno, ela nunca poderia dar sua opinião para nada, não
precisaria se fazer útil lá, apenas permanecer um peão, como
sempre fora. A única diferença é que estaria em uma cultura
alienígena, que falava uma língua alienígena, e cercada por
estranhos que não tinham razão nenhuma para ser amigável com
alguém de sua espécie.
A biblioteca de Mamma nunca seria construída, ela jamais
ajudaria ninguém a aprender a ler, nem os Immortali ou os humanos
aprenderiam um sobre o outro em um lugar de paz e conhecimento.
Sem dúvida, este príncipe elfo sombrio também não desejava
esse destino, tanto quanto ela, ainda assim, ambos teriam que fazer
esta dança a mando de seus pais e governantes.
O que não tornava nada daquilo melhor.
Uma abelha voou preguiçosamente por perto. Me pique. Por
favor, por favor, por favor, me pique. Qualquer coisa para evitar esse
encontro.
O som de cascos soara do outro lado dos portões de ferro, e
um grupo de cavaleiros trotou para o pátio, escoltados pela Guarda
Real Sileni. Os estranhos usavam capas e capuzes pretos,
parecendo sombras, exceto por suas írises amarelas perturbadoras
e os cabelos brancos fantasmagóricos. O vislumbre ocasional da
pele azul-ardósia aparecia por trás das máscaras que cobriam suas
bocas e narizes.
Os elfos sombrios.
Quando começaram a desmontar, revelaram músculos
revestidos de armadura de couro em corpos magros e atléticos.
Cada um devia ter no mínimo um metro e oitenta de altura. O mais
alto deles, que veio montado em um corcel enorme e hipnotizante,
seus pelos de ébano brilhando ao sol, era mais volumoso, com
ombros largos, bíceps robustos, coxas grossas e um peito
musculoso. Um macho.
Ele prendeu a lâmina ao seu lado e desmontou com agilidade,
esfregou sua mão e pulso, e entrou no pátio com olhos estreitos, em
busca de algo. Seu olhar pousou nela. Intenso. Misterioso.
Ele era diferente dos outros, o único homem entre eles. Tinha
que ser ele.
No entanto, nem ele, nem nenhum do seu grupo estavam
vestidos de uma maneira condizente com a realeza. Todos usavam
meras botas pretas e roupas simples, como qualquer soldado
comum. Talvez um sinal de como considerava aquele encontro
especial.
Ele já teria se reunido com Papà no cerco de Bellanzole para
que fossem escoltados até a cidade. Papà havia se encontrado com
este macho Immortali e, apesar de seu insulto óbvio, permitiu que
entrasse naquele pátio.
Mas alguma coisa seria capaz de dissuadir Papà desta
barganha? Ele vendera a mão de Bianca em casamento, às cegas,
para este homem Immortali. Ele poderia ser feio, desfigurado,
bestial, totalmente nojento, mesmo excluindo o fato de ser um elfo
sombrio, mas será que algo assim teria mudado a decisão de Papà?
Claro que não. Ele já comprara a paz. E muito barato. E nem
havia tentado mais nada.
Ela enrijeceu quando o macho se aproximou dela, escoltado
por uma de seu povo e um guarda real Sileni. Talvez seu Voto de
Silêncio fosse a melhor escolha, já que suas palavras tinham sido
congeladas, assim como o resto dela.
— É uma honra conhecê-la, princesa Alessandra — disse ele,
inclinando a cabeça, sua voz suave como veludo sobre aço afiado,
abafada pela máscara de pano preto. — Meu nome é Veron.
Aquela voz – profunda e fluida como os rios escuros e
espelhados do Solitário.
Prendendo a respiração, ela olhou para a mão dele, enluvada,
seus dedos pontudos, mas não se ofereceu para tomar a mão dela.
— É costume de vocês beijar a mão — disse ele, com
naturalidade. Removeu as luvas e as entregou à sua companheira,
uma fêmea com um olhar afiado, em posição de atenção, pela
aparência dela era uma soldada. Ele estendeu a mão, azul-ardósia,
com dedos longos terminando em pontas.
Garras.
Ela quase deixou passar o momento, quando, tremendo,
ofereceu a mão.
Uma pele calejada se fechou em torno de seus dedos
enquanto ele erguia a mão dela gentilmente, puxando a máscara
para baixo e pressionando de leve seus lábios nos nós dos dedos
dela.
O mais sutil dos toques e um arrepio passou por seu corpo
antes que ela pudesse impedir. Ele podia matá-la. Com pouco mais
do que um movimento de sua mão.
Enquanto ele se erguia, ela disfarçou sua reação com um
sorriso, ao qual ele correspondeu.
Presas. Presas afiadas e pontudas, como as de um leão. Ela
congelou o sorriso, mantendo-o estampado em seu rosto. Com
sorte, isso impediria qualquer outra reação de transparecer.
— É a primeira vez que você vê um da minha espécie
pessoalmente. — Seus olhos inquietantes permaneceram fixos nos
dela, inabaláveis, sua mão calejada ainda segurando a dela.
Nada se movia no pátio. Pela misericórdia da Sagrada Mãe,
nem mesmo a brisa se atrevia a soprar.
Ela assentiu. Aquele sorriso ainda estava estampado em seu
rosto. Ela retornou sua expressão para algo próximo do normal.
Como o resto dele, seu rosto era severo, todos os traços,
brutais, com um olhar ainda mais implacável. Como uma estátua,
poderia ter sido terrivelmente belo, mas vivo, respirando, era nada
menos que aterrorizante. Como um pesadelo de um conto de fadas
infantil.
A qualquer momento, ele poderia atacá-la, prendê-la ao chão,
afundar as presas na carne dela e abri-la ali mesmo. Atravessar seu
corpo com aquelas mãos com garras. Deixá-la em pedaços. Ele
podia fazer tudo aquilo e parecer completamente natural.
— Espero que, com o tempo, você se acostume com nosso
povo, apesar das nossas diferenças.
Se acostumar com eles? Talvez. Achá-los menos
aterrorizantes? Provável que não. No entanto, ela assentiu mais
uma vez.
— Gostaria de dar uma volta pelo pátio? Responderei a todas
as suas perguntas da melhor maneira possível. Talvez possamos
nos familiarizar melhor antes da cerimônia de amanhã.
Ela se virou para Gabriella e apontou para a própria boca.
Os olhos castanhos de Gabriella foram dela para o príncipe.
— A princesa Alessandra deseja que eu lhe diga que fez o
Voto de Silêncio e não pode falar com Vossa Alteza antes do
casamento.
Aless olhou para o seu rosto mais uma vez. Ou melhor, para
sua carranca.
— Um voto de silêncio? — Com o rosto tenso, ele cruzou as
mãos atrás das costas e sua companheira estreitou os intensos
olhos amarelos, como brasas incandescentes. — Seu povo espera
que as mulheres façam isso?
Será que Papà deixou de mencionar para ele que não tinha
concordado com o casamento até que ela propôs o Voto?
Ela assentiu.
Ele soltou um chiado, que pontuou o silêncio, e sua
companheira sibilou também. O olhar deles se tornou tenso, feroz,
como de leões prestes a atacar. Ele tinha escondido as mãos, as
garras, e quem podia saber o que fariam?
Tremendo, ela deu um passo para trás. Mas, se ele não
concordava com o Voto de Silêncio, então não era tão ruim quanto
Papà. Talvez até fosse sensato.
Ele olhou para ela e relaxou a postura, tirando as mãos de trás
das costas e as deixando cair ao lado do corpo.
O olhar dela se fixou nelas, em suas garras afiadas, até que
ele inclinou a cabeça.
— Temos alguns preparativos para acertar antes da cerimônia
de amanhã — disse ele, sua voz inexpressiva. — Então, eu me
despeço, Vossa Alteza. Desejo que tenha um bom dia.
Ela repetiu o gesto dele e, com isso, a Guarda Real escoltou o
príncipe e sua companhia em direção ao palazzo.
Como se fosse uma pedra, ela ficou parada lá, observando,
até que desaparecessem e as portas se fechassem.
— Minha senhora? — chamou Gabriella, apoiando os dedos
com gentileza no antebraço dela.
Outro tremor a atravessou. Seu coração batia forte, tão forte e
tão rápido que ela tinha certeza de que Gabriella conseguia ouvir.
— Venha, minha senhora. Vamos entrar. — Gabriella pegou o
braço dela e a levou para o caminho oposto, em direção a outra
entrada do palazzo.
Ela caminhou ao lado da dama de companhia, mas tudo ao
seu redor era como um borrão. Aqueles olhos sinistros. As garras
afiadas. Presas pontiagudas. Pele de ardósia. A voz tão gélida e
aveludada. Cabelo fantasmagórico. O jeito como ele sibilou, a
maneira ágil como se movia...
Tremendo, ela balançou a cabeça e as mãos. Não havia outra
saída. A menos que se casasse com ele no dia seguinte, Papà
também não cumpriria com sua parte do acordo. Ela tinha que fazer
isso, ou então Bianca faria.
Para seu alívio, Gabriella a ajudou a se sentar em uma
poltrona de camurça ao lado de uma caixa grande e misteriosa e,
em instantes, Bianca se afastou de onde estivera olhando pela
janela, arrastando camadas de saias de brocado de cor safira,
enquanto corria e deitava a cabeça no colo de Aless.
— Eu sinto muito! — exclamou Bianca, pegando a mão dela.
Aless acariciou o cabelo da irmã suavemente e dispensou
Gabriella com um aceno de mão.
— Você vai mesmo seguir em frente com isso? — A voz de
Bianca falhou.
Ela tinha que fazer isso. Bianca, com seus sonhos e coração
gentil, não aguentaria ser casada com um elfo sombrio, mas ela
conseguiria, pelo bem da irmã.
— Vamos, Aless — insistiu Bianca, cutucando-a. — Deixe o
Voto de lado e fale comigo. Por favor.
Após o casamento de Bianca, elas se separariam; Bianca iria
para Roccalano e ela, para o Bosque Noturno. A ideia de passar a
maior parte do tempo que ainda tinham juntas em silêncio era...
dolorosa.
Ela suspirou. Bem, ela só havia prometido a Papà que não
falaria com o seu... noivo.
— Eu... seguirei com o casamento.
Bianca ergueu a cabeça, franziu a testa e se sentou sobre os
calcanhares. — Como assim? Existe outro caminho?
Devia haver. Ela seguiria com o casamento em Bellanzole,
como prometido, porque era necessário para o bem de Bianca. Por
sua irmã, ela se casaria com ele. Aguentaria, por três dias, o que
quer que fosse, e então testemunharia o casamento de Bianca com
seu amado Luciano. Bianca e Luciano eram ambos humanos e, uma
vez consumado o casamento humano, o vínculo entre os dois seria
inquebrável. Mas e após a cerimônia?
Ela faria um bem maior para a paz se pudesse construir pontes
entre as diferentes culturas e ensinar do que se ficasse mantida
como um troféu em uma caverna. Mesmo que Veron não aprovasse
o Voto de Silêncio, ela nunca poderia ser como uma das elfas
sombrias, aquelas que detinham o verdadeiro poder no Bosque
Noturno. Ela seria apenas... um símbolo.
— Depois deste casamento, ainda há a segunda cerimônia no
Bosque Noturno antes de o acordo ser selado. Vou usar esse tempo
para tentar convencê-lo de que não precisamos nos casar para que
haja paz entre as nossas nações. Tenho certeza de que ele também
não quer se casar com uma humana tanto quanto eu não quero me
casar com um elfo sombrio.
Após conhecer o príncipe hoje... Sim, ele tinha sido
intimidador, mas também fora eloquente, educado... até mesmo
gentil.
— Talvez ele me escute.
Na verdade, ela tinha o presente de casamento perfeito para
ele: sua nova cópia de Uma História Moderna de Silen. Ela ainda
tinha a cópia de Mamma, e o presente paralelo teria um significado
especial. O livro mostraria sua vontade de compartilhar este novo
mundo com ele e seu povo, e de acolhê-los como parte dele,
enquanto ele preencheria as páginas restantes com a paz que ela
esperava que os dois povos forjassem juntos.
Com ele do lado dela, talvez pudessem convencer Papà e a
rainha do Bosque Noturno a reconsiderar. Ela e Veron ainda podiam
agir como embaixadores da paz, como amigos, demonstrando que
as relações entre os reinos podiam ser boas. Talvez ela pudesse
sugerir a biblioteca como um empreendimento conjunto, melhorando
a reputação dos elfos sombrios com os paesani.
Bianca fungou, piscando para afastar as lágrimas. Esfregou o
rosto com a manga do vestido cor de safira.
— E se ele não te ouvir?
Depois de seu casamento, Papà disse que programaram para
que fizessem um Cortejo Real desde Silen até o Bosque Noturno
para apresentar a união harmoniosa entre eles e inspirar paz entre
os paesani, os nobiltà e os elfos sombrios. Haveria muito tempo
para pensar num plano de contingência.
— Vou dar um jeito — concluiu ela, dando de ombros.
Bianca desviou o olhar, franzindo as sobrancelhas e mordendo
o lábio.
— Luciano me disse que Tarquin se tornou um membro
influente da Irmandade, na esperança de fazer justiça por Arabella.
Com a ajuda deles e da Companhia Belmonte, sua liberdade pode
ser assegurada.
A Irmandade? Tarquin estava envolvido com aquele grupo
odioso? O que ele havia dito sobre os Immortali? Uma corrupção
que tem que ser erradicada deste reino.
Não, ele não era mesmo como ela. Era um deles, da
Irmandade.
Pouco depois da Ruptura, a Irmandade se formou para
“promover os interesses humanos”. De alguma forma, “promover os
interesses humanos” sempre parecia envolver violência contra os
Immortali. Por cada dano aparente causado aos humanos, a
Irmandade retaliava com o dobro de intensidade. Por sorte, os
Immortali pareciam menos propensos a tal violência, já que
nenhuma facção desse tipo havia surgido do lado deles – não que
ela soubesse.
— Mas Luciano não é um membro?
Bianca balançou a cabeça.
— Ótimo. Qualquer pessoa envolvida com a Irmandade é
alguém que já se perdeu para o ódio. — Por mais que não quisesse
seguir em frente com este casamento, ela não desejava nenhum
mal ao príncipe ou aos outros elfos sombrios. De forma alguma
trabalharia com a Irmandade. Nunca.
— Mas eles te libertariam num piscar de olhos...
— Não. — Ela pegou a mão de Bianca. — Agradeço a sua
preocupação, mas vou pensar em algo. — Ela sorriu. — Não se
preocupe comigo. Quero que você só se preocupe com o seu
casamento, a sua lua de mel e a sua felicidade.
— Como posso pensar nessas coisas? — Bianca franziu a
testa lisa.
— Pois essa é a razão de eu fazer tudo isso. Então você tem
que ser feliz. Quero que me prometa isso. — Com um pouco de
sorte, ela e o príncipe alcançariam a paz por meios alternativos,
ambos livres um do outro e deste acordo, e Bianca ficaria com o
homem que amava.
Os lindos olhos cor de ágata de Bianca ficaram sérios e ela
assentiu, determinada.
— Eu prometo. — Ela baixou o olhar. — Mas e a sua
biblioteca? Talvez Papà ainda ajude?
Não havia esperanças de que isso acontecesse tão cedo, ela
sabia disso agora.
Mas ela não desistiria. Nunca. Os livros foram a razão da vida
de Mamma e tinham mudado a dela também, sendo seus
companheiros e escape quando a corte Sileni e até mesmo o
próprio Papà tinham sido cruéis com ela, tratando-a como um peão
inútil. Os livros tinham poder, o poder para derrotar a desesperança
ao fornecer refúgio, destruir a ignorância com sabedoria, o medo
com conhecimento. Por isso ela queria que todas as pessoas
tivessem acesso a esse poder, para fazer uso dele, para trazer paz,
compreensão e vidas melhores.
E eles teriam tudo isso, assim como Mamma desejara antes de
morrer.
Talvez um santuário Terran a acolheria. Um sumo sacerdote ou
o próprio grand cordon dos Paladinos de Silen, o senhor Massimo
de’Nunzio, poderia escutar sobre os planos dela de querer construir
uma biblioteca, cuidar de seus paesani. A Ordem da Terra era
conhecida em Silen por sua dedicação à caridade e à paz; Nunzio a
ouviria. Ela tinha certeza. E a Ordem, tão essencial para trazer a
paz, sem dúvida estaria aberta à ideia de deixar os elfos sombrios
participarem do empreendimento.
Veron parecia um homem sensato. Talvez defendesse a ideia
junto a sua mãe.
— Vou encontrar outra maneira — disse ela a Bianca. — Já
tracei todos os planos. Agora é apenas uma questão de encontrar o
investidor certo. — E a Ordem teria os fundos. Talvez ela já pudesse
enviar os planos da biblioteca para Nunzio e encontrá-lo em
Stroppiata durante o Cortejo Real para discutir sobre isso. Mas Papà
devia ter ordenado que alguém ficasse de olho nas
correspondências dela.
— Luciano e eu poderíamos ajudar — ofereceu Bianca,
animada. — Podemos mandar cartas para potenciais investidores
ricos, encontrar alguém que tenha interesse.
Sua correspondência era vigiada..., mas e quanto a de
Bianca? Ou a de Luciano?
— Eu adoraria a sua ajuda. Gostaria que enviasse algo para
mim, se puder.
— Claro — disse Bianca, assentindo.
Mais tarde, ela pediria para Gabriella entregar os planos para
Bianca, com instruções.
— Ah! Seu vestido chegou. — Bianca correu em direção à
caixa grande e misteriosa e abriu uma aba. — É uma ocasião
agridoce, Aless, mas pelo menos o vestido é lindo.
Papà vinha planejando casá-la com alguém há anos e, sem
dúvida, o vestido demorou quase o mesmo tempo para ser
confeccionado.
— Não vou precisar dele.
A boca de Bianca se abriu.
— Mas... Então, o que você vai vestir?
Ah, ela pensara muito sobre aquilo nos últimos dias. Quando
Mamma dera a ela Uma História Moderna de Silen, havia escrito
nele: Seja corajosa, minha rosa, e preencha as páginas restantes
com seus feitos.
Farei isso, Mamma.
Felizmente, algumas costureiras ainda aceitavam o seu bellani
d’oro. Aquelas que não temiam Papà.
— Vou usar os meus pensamentos, Bianca.
Mesmo nos tempos atuais, Papà os barganhara como se
fossem bens. Farei com que o signori saiba exatamente o que eu
penso sobre isso.
⁎⁎⁎
Aless lançou olhares discretos para Veron enquanto um
esquadrão de guardas da cidade escoltava os dois, Gabriella e suas
guardiãs até o castelo da duchessa Claudia La Via. A duchessa
esperava por eles no salão nobre, onde ela e Veron teriam que
conquistar seu apoio e de sua nobiltà. Se quando chegasse o
momento de partirem, a nobiltà fosse só sorrisos e a duchessa
estendesse uma promessa de amizade a eles, sua missão naquele
lugar teria tido sucesso.
Mas a duchessa tinha instruído o capitão Scianna e seus
criados a levá-los para dentro discretamente para se trocaram
primeiro.
O que foi uma boa decisão... porque, ao lado dela, os cabelos
brancos fantasmagóricos de Veron estavam tingidos de um
vermelho profundo e escuro, as manchas de sangue espalhadas por
seu rosto, pescoço e por toda sua pele azul-ardósia, o couro de sua
roupa, encharcado também. Era uma visão bem arrepiante. Aquilo
tudo, somado à sua rigidez tensa e à seriedade perceptível em sua
mandíbula travada, o fazia parecer um guerreiro demônio, composto
de ira e rancor, com uma sede de sangue brilhando em seus olhos
dourados semicerrados e sem um pingo de misericórdia em suas
veias.
Parecia um caçador fantasma da Caçada Selvagem.
Os conspiradores responsáveis pelo ataque não eram dignos
de sua misericórdia e, para ela, mereciam cada grama de ira,
malícia e rancor que ele tivesse. Mesmo deixando de lado a
repugnância por eles tentarem desencadear uma guerra – aquele
espelho havia sido colocado no arco –, tinham crianças naquela
multidão. Ela até tinha dado uma joia a uma garotinha, o que
poderia ter atraído as harpias. Graças à Mãe nenhuma das crianças
foi ferida.
O ataque precisava de uma resposta.
Pela janela, o jardim estava sereno, seu desenho como um nó
geométrico colorido, mas os vidros refletiam as imagens dela e de
Veron sobre a vegetação.
Alguém colocara o espelho naquele arco, deve ter sido a
Irmandade. Eles não tinham atacado abertamente uma cidade
humana em sua guerra contra os Immortali, mas estavam dispostos
a deixar uma raça de Immortali matar a outra, mesmo se os
humanos ficassem presos no meio disso. Mesmo que ela ficasse
presa no meio. Pelo visto, as promessas de Tarquin não valiam
nada.
Aquela união era sobre garantir a paz, porém não tinham mais
segurança. Ela não era mais a Princesa Bestial do palazzo,
desafiando egos enormes e arqueando sobrancelhas na corte. Ela e
Veron agora eram um símbolo – um símbolo que alguns tentariam
usar, e outros tentariam destruir.
Não sem lutar.
— Veron — sussurrou ela, enquanto seguiam um mordomo
pelas escadarias forradas de tapete, e a mão dele apertou a sua de
forma quase imperceptível, enquanto seus olhos semicerrados se
suavizavam e se fixavam nela. O calor, o conforto e a rugosidade
calejada de uma mão que tinha empunhado arcos e lâminas. Que
poderia protegê-la.
De alguma forma, durante todo o trajeto desde as ruas de
Stroppiata até as escadas do castelo, ela continuou segurando a
mão dele.
E ele permitiu que ela segurasse.
— Você está bem? — murmurou ele, a voz baixa e a testa
franzida enquanto a analisava.
— Estou. Quer dizer, eu... gostaria de começar a aprender a
usar o arco. — Para começar a se proteger, e a ele, e a qualquer um
que precisasse. Já era tempo. Papà sempre a proibira, mas Papà
não estava aqui agora.
Os lábios de Veron se curvaram por apenas um momento,
então ele inclinou a cabeça.
— Começaremos amanhã de manhã.
Aquelas palavras em um tom baixo e oferecidas livremente
com a sombra de um sorriso a aqueceram, mas aquela testa
franzida retornou ao rosto dele. Embora caminhasse ao lado dela e
segurasse sua mão, a mente dele ainda estava nas ruas
encharcadas de sangue, ainda encarando aquelas harpias em meio
aos gritos e às lutas.
Está tudo bem, ela queria dizer, mas... não. Não estava tudo
bem. Nem um pouco bem. Mas ela acharia um jeito de consertar as
coisas.
Graças à Sagrada Mãe que os elfos sombrios tinham suas
lâminas, feitas de arcanir, que pareciam anular certas habilidades
dos Immortali, e com isso conseguiram exterminar as harpias.
O mordomo os levou até os aposentos, e a guardiã de olhos
afiados e outras duas checaram o ambiente antes de liberar para
que entrassem. Enquanto ela e Veron entravam, Gabriella pediu
licença para supervisionar a entrega das bagagens.
Os espaços eram opulentos – os aposentos do duque, sem
dúvida –, com estofamento refinado de seda branca, móveis de
madeira preta e pé direito alto. Veron se aproximou das janelas,
olhando para fora com um olhar aguçado, preocupado.
Depois do que acontecera, o que ela poderia dizer a ele?
A Irmandade arriscara muito, e não pararia por ali.
Revelar a sabotagem poderia trazer o público contra a
Irmandade, mas também desviaria o foco do reino, da paz para a
rebelião. E, com os Immortali lutando abertamente em cidades
humanas, havia um risco muito grande de que a Irmandade gozasse
do apoio da divulgação popular, mesmo que negassem ter plantado
a isca.
Difundir a agitação podia ser exatamente o que a Irmandade
queria. Todo o propósito do Cortejo Real – espalhar a mensagem de
paz – seria frustrado. Sufocado. O foco voltaria mais uma vez à
ameaça dos Immortali.
Mas será que tinha mesmo que ser assim?
— Não sem lutar — murmurou ela.
Veron, com os braços cruzados, virou-se para ela, com uma
sobrancelha erguida. Daquele momento em diante, ela começaria a
proteger a ele, ela mesma e todos os outros – por enquanto, com os
únicos métodos que conhecia.
— Você acha que nós falhamos. — Ela se moveu em direção a
ele enquanto os criados entravam com baldes de água fumegante
para o banho, derramando-a em uma banheira atrás dela.
Ele grunhiu.
— Nós falhamos, quer eu pense assim ou não.
— Tudo estava indo bem até...
— O ataque. E isso é tudo de que todos eles vão se lembrar.
— Sua voz baixa se tornou praticamente inaudível. Ele baixou o
queixo e seu olhar se fixou no chão. Ele fechou os olhos e seu corpo
foi banhado pelos raios de sol que entravam pela janela, coberto de
sangue e brilhando, aterrorizante e resplandecente.
Quando as sombras aladas surgiram no alto, ela tinha
congelado em sua sela, incapaz de se mover, incapaz de pensar,
olhando para aquelas bocas escancaradas com dentes afiados,
olhos frenéticos e garras como lâminas. Tendo uma visão de carne
sendo rasgada e chuva de sangue, uma festa profana no céu acima
de uma cidade angustiada. Então, fora puxada da sela, coberta por
um manto preto e levada para um beco apertado.
Veron. O som baixo de sua voz, seu cheiro de água da chuva e
terra fresca. Seus braços protetores, seu corpo destemido, sua
coragem implacável. Ele não hesitara. Não tinha congelado. Não
tinha entrado em pânico.
Ele salvara a vida dela.
Ela estendeu a mão até ele, para onde seu cabelo longo
estava jogado sobre o ombro, e puxou a fita que amarrava sua
trança, de forma lenta, gentil. Os olhos de Veron se entreabriram, os
cílios pálidos refletindo os raios de sol, e a respiração dele ficou
mais lenta.
O odor metálico de sangue era avassalador e, com os braços
cruzados, aquelas garras afiadas repousavam sobre seus bíceps.
Mas ela puxou a fita para baixo e a soltou. Deslizando os
dedos através das mechas da trança, ela a desfez, desprendendo e
libertando os cabelos dele.
Ele não se moveu, simplesmente a observou através daqueles
olhos semicerrados, deixando-a fazer o que queria.
Estou aberto aos seus desejos, dissera a ela na noite do
casamento deles. Não deve temer a rejeição caso os expresse para
mim.
Ele salvara a vida dela – e ela poderia beijá-lo só por isso.
Mas, quando fizesse isso, ela iria querer que ele a beijasse de volta.
E não só por causa das ordens da mãe, nem pelo dever, mas
porque ele queria. O que, na pior das hipóteses, era uma
impossibilidade, e, na melhor, um desafio.
Porém, desafios são feitos para ser superados.
— Alessandra — sussurrou ele, e ela queria ouvi-lo dizer seu
nome mais uma vez, cem vezes, mil vezes. Que a chamasse pelo
nome que só permitia que seus entes queridos usassem.
— Aless. — Ela deslizou a mão do cabelo dele até o seu peito
blindado com a armadura de couro. — Me chame de Aless.
— Aless.
O som suave foi como a mais sutil das carícias, íntimo, mas
ela não fechou os olhos, não se deixou levar pelo momento, ela não
alimentaria suas esperanças com aquelas palavras, esperanças de
que ele poderia vê-la como algo mais...
Ela não era nada.
Ela era – como seu Papà dissera? Teimosa, de pavio curto,
tinha uma língua ferina e era presunçosa. Desobediente.
Tudo o que um homem não queria em uma esposa...
Na noite de núpcias, Veron a levara a entender que, se ela
quisesse mais, ele daria a ela. Era isso que estava fazendo? Dando
o que ela queria, não importando como ele se sentia?
Seus dedos se pressionaram contra o couro.
Ele pegou sua mão com cuidado, suas garras bem longe da
pele dela. Esfregando o polegar sobre a ponta do dedo dela, ele
limpou a mancha de sangue que acabou sujando sua mão quando
tocou a armadura.
— O sangue.
Algo foi colocado no chão atrás dela e ela olhou por cima do
ombro. O restante de sua bagagem, incluindo o baú que Lorenzo
tinha dado a ela.
Ela se voltou para Veron.
Havia a questão do sangue, sim, mas havia algo ainda mais
urgente, a duchessa os aguardava.
— A banheira está pronta — sussurrou ela.
Com uma respiração profunda e um aceno, ele olhou em
direção à banheira e de volta para ela.
— Eu a ofenderia se eu...?
— Não, de jeito nenhum — respondeu ela, rápido demais. —
Mas, se você quiser que eu vá embora, eu...
— Não. — Ele se ajeitou. — Fique.
Antes que ela pudesse responder, ele a libertou e caminhou
até a banheira.
— Lorenzo me fez trazer algumas coisas para você, já que nos
misturaríamos entre a nobiltà — começou ela, entre o farfalhar de
couro e tecido.
— Isso foi generoso da parte dele. Ele foi de grande ajuda na
capital.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, ele estava se despindo,
bem atrás dela, e seu coração estava na garganta, como se ela
nunca houvesse estado perto de um homem nu antes.
Então, em vez disso, ela abriu o baú com as roupas de
Lorenzo e removeu uma variedade de peças de alta-costura
masculina.
— Acho que as roupas ajudarão a diminuir as diferenças dos
nossos povos. Assim como as flores.
Ela ouviu o suave barulho da água e começou a torcer uma
camisa na mão. Pigarreou.
— Falando em flores, acho que não falhamos hoje.
— Aless...
— Ninguém morreu. Nenhum dos participantes nem ficou
ferido. No mínimo, provamos que seu povo pode cumprir
exatamente o que prometeu, ajudar a combater os outros Immortali.
— Ela escolheu um conjunto de veludo preto para ele, um paletó
com um belo corte e calças ajustadas, sem excessos de cor e
ornamentos que fizesse parecer que estavam se esforçando
demais.
Ele suspirou.
— Foi um mau agouro.
— Se deixarmos as coisas como estão, essa será a história. —
Ela espalhou as peças em cima da cama enquanto ouvia o barulho
suave da água atrás de si. A Princesa Bestial teria ido em direção a
ele, despido-se e entrado na banheira antes que ele se lembrasse
de fechar a boca. A Princesa Bestial seria corajosa, ousada...
A Princesa Bestial tinha sumido.
Em vez disso, só restava aquela bagunça trêmula e confusa,
mal capaz de funcionar na mera presença daquele homem. Talvez
cheirar alguns sais faria bem a ela.
Essa atração – não a levaria a lugar nenhum. Tudo o que ele
sentia por ela era obrigação, e ela não seria a patética infeliz que
ansiava por um homem que nunca a desejaria.
Ela se encontraria com Nunzio hoje, discutiria seu plano para a
biblioteca, e, não importa como, precisava viver seu sonho, de
ajudar de qualquer maneira que pudesse. Ela explicaria tudo a
Veron. Ele não merecia essa bagunça – ele merecia a verdade,
saber dos planos dela, mesmo que isso o perturbasse ou irritasse.
Era preciso tomar uma decisão, e logo.
Logo... Isto é, não naquele instante. Naquela noite teriam que
convencer a nobiltà de Stroppiata a apoiar a paz – com vidas tanto
humanas quanto de elfos sombrios em jogo, aquela tinha que ser a
prioridade deles. Mas quando isso passasse...
Ela soltou um suspiro. Depois disso, contaria tudo a Veron e
ele... entenderia seu desejo de curar a ignorância que alimentava
aquela rebelião, e se ela ajudasse a solidificar a paz durante este
Cortejo Real, não haveria necessidade da segunda cerimônia, do
casamento. Com o objetivo de sua mãe cumprido, ele não iria
querer se casar com uma humana de qualquer maneira, então
estaria livre. Ele entenderia. Ele...
— Essa era a nossa única chance — disse ele, calmo. — De
acordo com o cronograma, passaremos o resto da nossa visita aqui
com a nobiltà.
— Então, a Irmandade ganha. Eles escolhem a impressão que
deixaremos nos paesani e nós não fazemos nenhum esforço para
mudar a situação. No final, pareceremos resignados, ou pior, com
medo.
Um movimento na água soou alto, em seguida, o farfalhar de
tecido.
— O que você propõe?
— Que sejamos nós a estabelecermos a narrativa. Vamos
manter Silen focada no positivo. Focada em nós. — Quando os
passos se aproximaram da cama, ela se virou. — Pediremos à
duchessa que o povo dela espalhe a notícia do seu heroísmo e do
seu povo, durante o salvamento de hoje. E amanhã, vamos planejar
uma visita improvisada ao santuário Terrano. Farei uma oferta
perante a Mãe de Stroppiata por uma união abençoada, e faremos o
possível para parecermos afetuosos e unidos. — O que não seria
um esforço muito grande, pelo menos não da parte dela.
— Será que isso daria certo? — O barulho do veludo soou
atrás dela, Veron estava se vestindo, sua silhueta lançando uma
mistura de sombra e luz à frente dela.
— Stroppiata é a cidade mais devota de Silen. Será visto como
um ato respeitoso. — Eles tinham a vantagem de serem figuras
públicas; enquanto a Irmandade se escondia e fazia tudo nas
sombras, ela e Veron podiam usar a visibilidade para obter as boas
graças do público, caso agissem com sabedoria. Se conseguissem,
a causa da Irmandade falharia.
Houve um breve silêncio.
Ela espiou por cima do ombro enquanto ele abotoava a camisa
sob o paletó preto aberto, por cima de um corpo esculpido e
musculoso, cinza-azulado como o mármore Carrara do Norte.
Artistas sonhadores de Silen tinham esculpido deuses e heróis
poderosos, ideais de mito e lenda, com tal forma. E lá ele estava
diante dela agora, real e respirando, lindo e forte, o divino e o
heroico nele guiando-o em seus atos terrenos. Camadas de
rumores, presunção e mistério que haviam escondido dela quem ele
realmente era foram varridas como poeira ao vento, mas ele estava
por baixo daquilo tudo por todo esse tempo.
— Estou feliz por ter sido você, Aless.
O coração dela deu um salto. Piscando, fixou o olhar no chão
de parquet.
— Feliz por ter sido eu? — sussurrou ela, ousando encontrar
os olhos de Veron, enquanto ele abotoava os botões dourados do
casaco. Pela misericórdia da Sagrada Mãe. Olhar para ele só
confirmava a atração não correspondida.
Mas ele dissera que estava feliz. Talvez não fosse não
correspondida?
Mantendo o olhar nela, ele abandonou os botões no meio do
caminho e deu um passo na direção dela.
O coração dela se acelerou. Ele notara a estranheza dela?
Estava provocando-a? Ela engoliu em seco.
Ele pegou cuidadosamente a mão dela, uma mão trêmula, e a
trouxe contra seu peito, pressionando-a ali, sobre o coração.
— Quando cheguei a Bellanzole, fiquei feliz por ter sido você.
Os olhos dela se arregalaram, mas ele não vacilou, apenas
segurou a mão dela contra o pulso batendo em seu peito. Seus
olhos dourados, suaves e calorosos, mantinham-na sem palavras,
sem fôlego, e seus cabelos, limpos e úmidos, imploravam por seu
toque. Os botões do paletó, abotoados só até o meio – ela não
conseguia decidir se queria terminar de abotoar ou...
— Será que só eu fiquei feliz, Aless?
Ele piscou e, por um instante, ela não conseguia respirar. Ela
balançou a cabeça devagar. Não, ele não a interpretara errado. Não
era só ele que...
— Acho que pode haver algo aqui que...
Uma batida suave na madeira soou do outro lado da porta.
A boca de Veron se curvou enquanto ele estudava os olhos
dela.
— É hora de conhecer a duquesa.
Tinha chegado o momento, e a conversa deles fora
interrompida, mas não importava – ele sabia.
Ele sabia, e sentia o mesmo.
Capítulo 11
Veron observava Aless nos túneis Dun Mozg, seu olhar, sua
respiração ofegante, sua admiração. Ela estava impressionada, e
ficaria ainda mais impressionada quando chegasse em Nozva
Rozkveta.
Perfeitamente circulares, os túneis ondulados se estendiam
por incontáveis quilômetros de rocha sólida, conectando os reinos
dos elfos sombrios. Ninguém além de um elfo sombrio de Dun Mozg
sabia sobre portões diretos entre seu reino e o reino do céu, mas os
túneis eram usados por todos os reinos de seu povo e ele sabia
muito bem como chegar a Dun Mozg através deles, mesmo que até
agora estivesse levando uma hora a cavalo para chegar.
— Eles são enormes — sussurrou Aless, mesmo assim, sua
voz ecoou. — Como você pode ter certeza de que... que os wyrms
escavadores se foram?
Ele riu baixinho. Ela estava certa, os túneis eram imensos e
eles não passavam de formiguinhas ali dentro.
— Embora os escavadores tenham criado nossos túneis e
territórios, sabemos que eles não estão mais aqui porque não há
terremotos.
— Terremotos? — As sobrancelhas escuras de Aless se
uniram antes de subirem. — Aha. Escavadores.
Pouco tempo depois, os túneis começaram a brilhar à luz de
suas tochas e lanternas, e ela cerrou os olhos.
— O que são...?
— Pedras preciosas — respondeu ele, e arfou. — Arcanir não
é o único material encontrado aqui, embora seja um dos poucos
úteis.
— Mas pedras preciosas são... — disse ela, sua boca se
escancarando.
— Muito valiosas para os humanos. — Ele sorriu para ela. —
Eles nos fornecem madeira, couro, colheitas, gado e outros itens
valiosos e, em troca, querem pedras brilhantes.
Ela inclinou a cabeça.
— Quando você coloca assim, todos nós parecemos idiotas.
— Nem todos vocês, mas se as joias serviram... — disse ele,
dando de ombros, feliz.
Ela passou os dedos sobre suas pérolas.
— Sabe, não é apenas o aspecto brilhante da coisa. Raridade
também tem um grande significado. Significa que tivemos que nos
sacrificar para obter algo. Quando uma cidade inteira constrói uma
imagem de Terra a partir do ouro significa que sacrificaram muito
pela Sagrada Mãe.
Aquilo foi um pouco defensivo. Ele abaixou a cabeça,
escondendo um sorriso.
— Açafrão é raro, não é?
— Pode ser que uma estátua feita de açafrão não dure muito,
Veron — rebateu, apertando os lábios. Apesar de seu tom irritado,
os olhos dela brilhavam.
Aquele brilho fez que toda a provocação valesse a pena. Havia
algo nela que iluminava o coração dele, fazia com que se sentisse
leve. A maneira como ela o fazia se sentir... não seria possível se
fosse maligna, alguém que trairia uma afeição sincera. Talvez ele
tivesse a julgado mal.
As pessoas sempre foram difíceis para ele entender, desde
Ata. Como ele podia ter se enganado tanto com o próprio pai? E
outros volodari, kuvari e ex-amantes.
Ele se importava com Aless. Talvez até confiasse nela, mas
não confiava em si mesmo, nem na sua capacidade de entendê-la
bem o suficiente para prever quando as coisas poderiam dar errado
e impedir que isso acontecesse.
— Então o Bosque Noturno recebe arcanir daqui? — quis
saber Aless.
Ele respirou fundo.
— Dun Mozg nos fornece armas de arcanir, sim. Em troca, nós
fornecemos comida e especiarias, já que são escassos aqui —
explicou. — Eles tiveram que caçar muito mais do que nós e
perderam muitos volodari para a Irmandade. Quando despertamos
da Ruptura, todas as nossas fazendas tinham murchado ou foram
cobertas pelo mato, então não pudemos nos abastecer ainda, muito
menos fornecer para Dun Mozg. Enquanto restabelecemos os
nossos plantios e as caravanas de especiarias, precisamos do
comércio que Silen pode fornecer.
Nozva Rozkveta estava faminta, mas Dun Mozg tinha sofrido
uma escassez alimentar ainda maior; eles tinham enviado mais
volodari para lidar com isso, e perderam muitos para a Irmandade.
Aquilo os deixaria mais felizes com o tratado ou mais amargurados
com os humanos em geral. Com sorte, seria o primeiro.
— Vocês ajudam contra os outros Immortali em troca da nossa
comida — sussurrou ela. — E então fornecem comida e especiarias
para a Fortaleza Central em troca de armas...
Ele assentiu. Agora ela entendia o básico do comércio com a
rainha Nendra.
Em pouco tempo, eles se depararam com o conjunto circular
das portas de pedra de Dun Mozg, onde Riza desmontou, pegou um
dos martelos que estavam por perto e bateu no ritmo de Nozva
Rozkveta. Ela devolveu o martelo e recuou.
— Esse som era... — sussurrou Aless para ele, com a cabeça
inclinada.
Ele pediu que Noc se aproximasse dela.
— Cada reino de elfo sombrio tem a própria batida. É como
nos identificamos um para o outro.
Ela bateu os dedos contra a coxa, o mesmo ritmo que Riza
havia batido. O ritmo de Nozva Rozkveta. De novo e de novo, como
se estivesse praticando.
Ele se inclinou para a frente, observando o movimento
daqueles dedos elegantes e afilados enquanto soavam como lar, o
seu lar, o lar deles, e quando as portas se abriram, minutos devem
ter se passado... ou segundos. Pigarreando, endireitou-se.
Zoran, Noc pensou para ele, com um balanço de sua cauda e
uma bufada longa e forte.
Nós o veremos em breve. Veron deu um tapinha em Noc.
Zoran visitava os estábulos todos os dias em Nozva Rozkveta, antes
de se tornar rei-consorte de Nendra, e tinha se apegado a Noc, em
particular.
Quando as portas se abriram, duas kuvari surgiram usando
armaduras leves de arcanir e carregando alabardas.
Riza deu um passo à frente.
— Salve, povo de Dun Mozg, abençoados pelo Profundo, pela
Escuridão e pelo Sagrado Ulsinael — gritou ela, e todos os elfos
sombrios da comitiva saudaram. — Nós de Nozva Rozkveta viemos
como família, a serviço de Sua Alteza, príncipe Veron u Zara u
Avrora u Roza, Valaz u Nozva Rozkveta, Zpevan Kamena, Volodar
T’my, e Sua Alteza, princesa Alessandra u Aldona u Noor u Elise,
Valazi u Nozva Rozkveta, Valazi u Silen.
Aless se inclinou em direção a ele.
— Esses são os nomes da minha mãe, da minha avó e da
minha bisavó — sussurrou ela, com a voz aguda.
Ficara surpresa?
— Minha mãe queria saber tudo sobre você — sussurrou ele
de volta. E eu queria saber tudo sobre você...
— Dun Mozg oferece a vocês as boas-vindas — veio a
resposta da kuvari de Dun Mozg. — Que o Profundo, a Escuridão e
o Sagrado Ulsinael os guiem em nosso reino. — As duas se
afastaram, permanecendo em alerta enquanto a comitiva passava
pelas portas abertas. — Sua Majestade, rainha Nendra, espera por
vocês no salão nobre. Aproveitem os Jogos.
— Jogos? — perguntou Aless a ele. — Como os que você
mencionou em nosso casamento?
Ele assentiu.
— Nossas festividades incluem jogos, onde qualquer um pode
desafiar qualquer um no ringue para uma luta leve corpo a corpo.
— Qualquer um? — A voz dela falhou.
Fechando os olhos, ele colocou a mão no rosto. Era uma
tradição tão comum entre seu povo que nem sequer tinha pensado
nisso.
Mas ele deveria.
Ele deu um leve pigarro.
— Sim. Qualquer um.
*
Aless se levantou do banco de pedra do aposento que
compartilhava com Veron. Decorado em pedra lisa e metal, as
superfícies eram duras, afiadas, suavizadas apenas pelo que
parecia ser seda sem tingimento, de um branco macio como
algodão. Roupas de cama, almofadas e cortinas de seda. Até
mesmo um tapete de seda, tecido em tons de branco e marrom. O
quarto era um casamento entre o suave e o rijo.
No espelho, ela usava seu vestido de cetim azul-escuro – um
dos seus melhores –, bem ajustado ao seu corpo pelo corpete
ricamente bordado, com botas por baixo e o colar de pérolas de
Mamma em volta do pescoço.
Ela não sabia lutar, era verdade, mas ainda era uma princesa
de Silen. E todos que olhassem para ela naquela noite saberiam
disso, e saberiam que, com a sua posição, vinha a ajuda de que
todos desfrutavam. E que, se algum mal lhe acontecesse, ficariam
sem esse auxílio.
Gabriella apertou a trança enrolada em sua nuca.
— Pronto, perfeito.
— Eu aprovo — comentou Gavri da sua posição de vigia na
porta, girando a ponta de sua própria trança em torno dos dedos. —
Tem algo sobre esse penteado que eu amo, só não consigo dizer o
quê.
Por mais casual que Gavri parecesse naquele momento, seu
encontro com Zoran a tinha deixado abalada. Afinal, ela
praticamente fugira correndo do estábulo.
— Engraçadinha.
Tanto Gavri quanto Zoran tinham coisas que precisavam dizer
um ao outro, ao que parecia, perguntas que precisavam de
respostas, feridas que precisavam ser curadas. Talvez fosse melhor
se desabafassem em vez de manter tudo preso dentro deles. Seria
mais fácil para seguirem em frente.
Aless caminhou até Gavri e apontou um dedo para ela.
— Você vai se encontrar com ele nos estábulos mais tarde.
— Vou? — Gavri olhou para o dedo dela. — Não posso. E meu
dever de guardiã...?
— Você precisa ouvir o que quer que seja que ele tem a lhe
dizer. Vocês dois têm assuntos pendentes — rebateu Aless,
balançando a cabeça.
Suspirando, Gavri apoiou a cabeça contra a porta.
— Se a rainha Nendra souber disso, mesmo que nada acont...
— Você não pode fazer nada se eu precisar tomar um pouco
de ar mais tarde e exigir que a minha guardiã me acompanhe, não
é? — Com um sorriso, ela passou devagar pela porta.
— Bom plano — disse Gavri, com uma voz aguda,
aproximando-se dela. — Gostei.
No corredor, Veron caminhou na direção delas, com seus
quase dois metros de puro músculo vestido de couro preto, os
ângulos duros de seu rosto assustadoramente bonito estavam
tensos, as sobrancelhas, franzidas, e os olhos dourados, duros.
Riza o seguia com uma carranca.
Então ele falara com Yelena?
Mas quando ele olhou para cima e encontrou o olhar dela,
aqueles ângulos duros deram lugar a um sorriso suave. Um que ela
colocara lá.
Ele a olhou da cabeça aos pés e a curva daquele sorriso era
inconfundível enquanto pegava suas mãos.
— Você está linda.
— O mérito é todo de Gabriella — disse ela, esfregando o
polegar na mão dele.
Ele deu um aceno amigável para Gabriella, que fez uma
reverência. Quando o olhar dele vagou para Gavri, ela inclinou a
cabeça e desviou o olhar.
Aquela desavença entre eles teria que acabar. Talvez
pudessem discutir isso mais tarde.
— Como foi a sua conversa? — perguntou ela, enquanto ele
passava a mão dela em volta do braço e a conduzia pelo corredor.
— Às mil maravilhas — cuspiu Riza, balançando a cabeça.
Veron sibilou para Riza, depois se virou para ela, esfregando a
mão dela para esquentá-la.
— Ela está ansiosa para governar...
— Essa é uma maneira de dizer isso — murmurou Riza.
— Mas está frustrada por estar sempre na sombra da mãe.
— Ela está frustrada, mas não é estúpida — disse Gavri,
apesar do olhar duro que Veron lhe lançou. — Se ela envergonhar
Sua Alteza e a rainha Zara souber disso, isso poderá afetar as
relações com Dun Mozg. Ela não colocaria a aliança em perigo.
— Você não a conhece tão bem quanto eu — retrucou ele.
— Ninguém a conhece tão bem quanto você — revidou Gavri,
então seus olhos se arregalaram enquanto ela engolia em seco.
Veron ficou rígido, mas Aless interveio:
— Como funcionam os jogos? — perguntou, enquanto
atravessavam um corredor no palácio de cristal preto, as batidas de
suas botas ecoando pelo chão.
— O primeiro guerreiro pode desafiar até que ela ou ele perca
— explicou Veron. — Quando o primeiro guerreiro finalmente perde,
é o vencedor quem desafia os próximos participantes até que ele ou
ela perca.
— Como se ganha?
— Tirando o oponente do ringue, ou até que seu oponente
bata duas vezes — informou Gavri e Veron assentiu, mas uma
carranca devagar franziu seu rosto. — Nada de sangue derramado,
é uma tática ruim.
— E quanto ao ringue? Do que é feito?
Veron virou a cabeça para trás.
—Não — sibilou ele, parando perto de um banco de pedra.
— Areia. — Gavri arqueou uma sobrancelha para ele.
Areia... Não doeria muito.
— É um combate leve, certo? — perguntou ela. — E se eu
aceitar o desafio?
— De jeito nenhum — proibiu Veron, com os dentes cerrados.
— Não é uma ideia tão ruim — rebateu Gavri, enquanto Veron
fazia uma careta para ela. — Machucar Sua Alteza destruiria a paz.
Ela não usaria os jogos para realmente ferir Sua Alteza.
— Se ela colocar a paz em perigo, isso pode significar que seu
povo não comerá. — Ela pegou o braço de Veron com as duas
mãos até que ele olhou para ela. — Se ela quer mesmo governar e
for inteligente, o que espero que seja, já que você gostava dela,
então ela não vai deixar que seu povo morra de fome apenas para
fazer com que uma estranha fique com uma imagem ruim.
— Ela é apaixonada por liderança — disse ele, com um
suspiro. — Apenas impaciente demais e, às vezes, míope.
Aquilo soava muito familiar. Com um sorriso fugaz, ela baixou
o olhar enquanto caminhavam por trechos intermináveis de pisos
pretos brilhantes refletindo a luz de cogumelos, vaga-lumes e
tochas.
Yelena – como uma mulher entre os elfos sombrios – tinha
uma chance real, não importava como era pequena, de chegar a ser
uma verdadeira líder. Quando um sonho se tornava tangível, a
tentação de alcançá-lo era quase irresistível. O que Yelena tinha
feito?
Nada de muito repugnante, se ainda estava livre, ainda uma
herdeira do trono daqui. Ela podia até ser impaciente, mas não era
louca.
Logo, o barulho abafado de uma miríade de vozes soou por
trás de duas portas pesadas de pedra.
— Se ela desafiar você — sussurrou Veron —, apenas recuse.
Não há uma boa razão para você correr esse risco.
Duas kuvari, blindadas em armaduras de arcanir com uma cor
verde-sálvia, abriram as portas, revelando um mar de pessoas
aglomeradas em longas mesas de pedra e bancos. Alguns dos que
estavam lá haviam chegado com ela e Veron – o povo dela.
Aquela era razão suficiente para correr esse risco.
— Sua Alteza, príncipe Veron u Zara u Avrora u Roza, Valaz u
Nozva Rozkveta, Zpevan Kamena, Volodar T’my e Sua Alteza,
princesa Alessandra u Aldona u Noor u Elise, Valazi u Nozva
Rozkveta, Valazi u Silen — anunciou um arauto em voz alta, e todas
as vozes no salão se calaram enquanto Veron escoltava ela e
Gabriella para dentro, com Riza, Gavri e dez outras kuvari os
seguindo. Todos os elfos sombrios estavam de pé, suas posturas
eretas e em alerta, com os braços ao lado do corpo.
Os candelabros de chão e os enormes girandoles de cristal
iluminavam o grande salão, refletindo a luz das velas em superfícies
que pareciam vidro preto, com um círculo de areia vazio no centro,
delineado por gravuras brancas. Os passos deles eram o único som
e, quando passaram por vários espaços vazios nos bancos de
pedra, a maior parte de sua comitiva parou, exceto ela, Veron,
Gabriella, Riza e Gavri.
O ar estava denso com o tempero saboroso das salsichas
assadas, limão, azeite, polenta e massa de farinha de arroz. O
aroma das iguarias de Bellanzole – comidas humanas.
Veron as conduziu até a mesa mais distante, onde uma mulher
com um corpo forte e escultural esperava diante de um trono preto
reluzente, seus longos cabelos presos, ladeada por quatro homens,
Zoran entre eles. Ninguém mais no local parecia ter mais do que um
parceiro, mas esta rainha tinha. Ela estava vestida em um couro
preto cromado impecável e armadura sobre os dedos.
— Eu sou a rainha Nendra. Boas-vindas a Dun Mozg, príncipe
Veron, princesa Alessandra. — Com um sorriso comedido, Nendra
inclinou a cabeça, e ela e Veron retornaram o gesto. Nendra
gesticulou para os homens que a cercavam. — Este é meu rei-
consorte, Zoran. — Ele sorriu e acenou com a cabeça. — E meus
concubinos.
Concubinos?
— Kral, Ivo e Cipriano. — Um elfo musculoso de rosto sombrio
usando armadura, um homem pálido e esguio bem elegante em um
casaco preto, e um homem de barba preta, olhos verdes e pele
morena perecida com a de Aless. Um Sileni?
Um humano? Não, Zoran tinha mencionado um amante
lobisomem, não tinha? Mas e quanto a Ivo?
Ela e Veron cumprimentaram cada um deles, então Nendra
gesticulou para uma mulher que era sua cópia exata, com o cabelo
branco trançado como uma coroa sobre a cabeça.
— E esta é a minha primogênita, Yelena.
— Um prazer, Vossa Alteza. — Ela inclinou a cabeça para
Yelena.
Yelena sorriu, mas seus olhos castanhos permaneceram
impassíveis, e cada pedaço de seus couros marrons estava justo
em seu corpo. Um músculo se contraiu na mandíbula cerrada de
Yelena.
— O prazer é todo meu.
Rainha Nendra lançou um olhar fulminante para ela, em
seguida, olhou para uma menina sentada ao lado de Yelena.
— E a minha caçula, Karla.
Karla, com seu cabelo volumoso preso num rabo de cavalo
alto, olhou direto nos olhos de Aless, mesmo enquanto se escondia
parcialmente atrás do quadril de Yelena. Uma menininha corajosa,
que não tinha mais do que 5 ou 6 anos, isso se as crianças de elfos
sombrios envelhecessem como as crianças humanas. No entanto,
mesmo para uma criança, era magra. Quando Veron lhe contara
sobre a fome, ela não quisera acreditar, mas ele estava certo.
— Nossos convidados de honra chegaram — gritou Nendra,
virando-se para seu povo, com os braços erguidos. — Como Kral
salvou dois dos nossos volodari ontem, ele tem a honra do primeiro
desafio. Que os jogos comecem!
Gritos e aplausos irromperam da multidão, que tornaram a se
sentar nos bancos de pedra. Um músico no canto começou uma
batida num tambor grande e ressonante.
Carrancudo, Veron apontou para um espaço próximo, onde ela
se sentou entre ele e Gavri na superfície fria e dura, com Gabriella
logo depois e Riza no final do banco.
— Algum problema? — sussurrou para ele.
— Eu não sabia que alguém teria a honra do primeiro desafio
— disse Veron, balançando a cabeça.
Pelo menos não foi Yelena.
O banquete diante deles era colorido, com pratos fumegantes
de macarrão e salsicha colocados entre pães, verduras, frutas e
bolos de Silen. A mesa inteira estava lotada de comida humana.
— Por favor, me diga que tem manteiga aqui — murmurou
Gavri, dando um tapinha no braço de Gabriella. — Gabriella colocou
um pouco no meu mingau de castanha hoje cedo, e Sagrado
Ulsinael, ela mudou minha vida.
Aless riu e, em frente a ela, Cipriano disfarçava um sorriso
enquanto passava manteiga num pãozinho.
— Algumas coisas valem esperar dois mil anos — comentou
ele, com a voz profunda e grave.
— Eu vou precisar disso. Vou realmente precisar disso —
continuou Gavri, com os olhos fixos no bloco de manteiga.
— Com esta nova aliança, você pode comer toda a manteiga
que quiser. Só não engorde, hein? — disse Nendra, virando a
cabeça para Cipriano.
— Se eu não engordar, não será por falta de tentativas, minha
rainha. — Eles compartilharam um sorriso que teria sido doce se
Zoran não estivesse sentado entre eles, piscando preguiçosamente.
— Você poderia passar o, hã... o pão humano gigante? —
pediu Zoran para Veron, acenando com um garfo, e Veron deslizou
o pão através da mesa até ele, com os olhos semicerrados.
Yelena observou a troca com um olhar distante, seus olhos
passando sobre as montanhas de comida Sileni. Karla se sentou ao
lado dela com as sobrancelhas pálidas franzidas enquanto encarava
os pratos. Yelena colocou um pouco de macarrão e pão em seu
prato, sussurrando palavras em um tom encorajador.
Ao oferecer comida humana à irmã mais nova, Yelena tinha
que saber o que aquele tratado de paz significava. Ela tinha que
saber.
Enquanto Zoran rasgava um pedaço de pão e passava
manteiga sob o olhar avarento de Gavri, Kral se levantou e
caminhou para o ringue vazio. No centro, ele jogou as mãos atrás
das costas e encarou Yelena, que continuava sentada ao lado de
Karla.
Uma série de gritos e baques rítmicos de mãos batendo na
pedra ecoaram, até que Yelena olhou por cima do ombro para ele,
bateu em seu peito duas vezes com o punho e ficou de pé ao som
de uma torcida ensandecida.
— E assim começam os jogos — disse Veron, com um suspiro.
— Por que lutar durante uma celebração? — perguntou Aless,
em voz baixa. — Por que não apenas dançar?
— A luta pode ser como uma espécie de dança — disse Gavri,
com a boca cheia de pão com manteiga. — Quando dois guerreiros
sentem atração um pelo outro e possuem o mesmo nível de
habilidade, é... provavelmente o que vocês humanos chamariam de
sedução.
Engolindo o nó em sua garganta, ela assentiu. Elfos sombrios
escolhiam seus parceiros por sua força, procurando alguém
equivalente.
E nunca em sua vida ela estaria no mesmo nível que Veron em
combate.
Kral e Yelena circularam um ao outro, trocando brincadeirinhas
e façanhas, até que Kral desferiu um soco, e com seu físico maciço
era como se fosse o golpe de um touro. Yelena desviou o braço
dele, fazendo com que ele errasse, depois se esquivou de uma
cotovelada antes de acertar uma joelhada no estômago de Kral, em
seguida outra, no rosto.
Ela se afastou, sorrindo para ele, que esfregou a mandíbula.
Enquanto circulavam, ele a aproximava cada vez mais do círculo
branco, até que ela tentou desviar para a esquerda.
Ele a bloqueou, envolvendo-a em seus braços enormes, mas
ela bateu o topo da testa contra seu rosto. O aperto dele vacilou,
então ela agarrou o braço de Kral e o torceu e, com um pé nas suas
costas, empurrou-o para fora do ringue.
Gritos da torcida explodiram da multidão enquanto Yelena
erguia um punho, sorrindo.
Nada de sangue – Yelena com certeza controlara os socos,
não?
— Ele vai ficar bem? — sussurrou ela para Veron.
— Nada que as fontes termais não curem — murmurou ele.
Tocando em seu rosto, Kral voltou para a mesa, onde um elfo
sombrio em vestes cinzas e colar de osso correu para cuidar dele. O
tempo todo, Ivo e Cipriano e até a própria Nendra deram tapinhas
nas costas dele, enquanto outros gritavam palavras de apoio.
Quando eles se acalmaram, gritinhos ainda soavam através do
mar de mesas e o bater rítmico na pedra recomeçou. No meio do
ringue, Yelena estava de pé, com as mãos entrelaçadas atrás de
suas costas...
Até que olhou direto para ela.
Capítulo 16
Aless estremeceu.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe. Aquilo ia mesmo
acontecer. Na verdade, já estava acontecendo.
Ela só tinha que recusar e...
Ao lado dela, Veron ficou de pé, olhando para Yelena com uma
ferocidade inabalável, e bateu com o punho duas vezes contra seu
peito.
Yelena balançou a cabeça e olhou para ela.
Gavri ficou de pé e bateu no peito.
Ela balançou a cabeça outra vez.
Do outro lado da mesa, Kral se sentou, e, mesmo perdendo,
ele ganhou o respeito de sua família, amigos e súditos. Não havia
desonra em perder. Só em não conseguir encarar o desafio. E ela
não só desapontaria os elfos sombrios do Bosque Noturno, seu
próprio povo, mas também os humilharia na frente de uma rainha
aliada.
— Vossa Majestade — declarou Veron, voltando-se para a
rainha Nendra. — Peço vossa permissão para tomar o lugar da
minha esposa no ringue.
A rainha Nendra se inclinou para trás em seu trono e encarou
Yelena de maneira ameaçadora, que ainda olhava na direção de
Aless. A multidão tinha ficado em completo em silêncio, como se
trezentas pessoas tivessem parado de respirar.
— Os jogos são uma tradição, príncipe Veron — respondeu a
rainha num tom monótono. — O combate deve acontecer por
aqueles que recebem o desafio, ou não acontecer. — A rainha
pousou o olhar nela, abrindo os olhos de uma maneira sutil.
Até a rainha Nendra a convidava a recusar.
— Princesa? — perguntou a rainha Nendra. — Você deve
aceitar ou recusar — disse ela, lentamente. — A menos que você
tenha sido abençoada pelo Sagrado Ulsinael.
Abençoada?
O olhar da rainha baixou para sua barriga.
Ah.
Aquela era uma saída? Seria fácil mentir, a coisa mais fácil do
mundo, mas em poucos meses as chances eram de que todos
acabassem descobrindo. Ela poderia perder o respeito deles de
qualquer maneira.
No entanto, com todos aqueles elfos sombrios sentados em
torno de tantas mesas repletas de comida humana e sua rainha
celebrando um casamento entre uma humana e um elfo sombrio,
Yelena precisaria ser louca para machucá-la. E uma pessoa insana
não tentaria dar comida à sua irmãzinha de um jeito tão gentil.
Enquanto Veron continuava de pé, os punhos cerrados, seus
olhos se encontraram com os dela, intensos, cheios de dor, e,
mesmo sendo tão comprometido quanto sempre foi com a verdade,
aquela intensidade agora sugeria o oposto.
Mas e as consequências? Como isso refletiria em Veron, na
mãe dele, no povo do Bosque Noturno? E a mãe dele retaliaria pelo
constrangimento, como Gavri havia sugerido?
Mesmo que Yelena estivesse disposta a arriscar o bem-estar
de seu povo, o bem-estar de Karla, ela não estava. Não estava
disposta a arriscar o bem-estar de ninguém só para manter seu
próprio traseiro intacto, ainda mais quando Yelena tinha todos os
motivos para não machucá-la.
Engolindo o nó em sua garganta, ficou de pé.
— Vossa Majestade, não estou em um estado sagrado.
Uma onda de suspiros se espalhou pelo salão.
— Aless, não — sussurrou Veron, pegando a mão dela. — Por
favor.
Ela enrolou os dedos em punho e bateu duas vezes no peito,
mas o silêncio permaneceu.
— Vossa Majestade — gritou Veron, virando-se para a rainha
Nendra. — Eu não vou...
A rainha Nendra ergueu a mão.
— O desafio foi aceito.
Yelena fez uma reverência elaborada.
— Yelena — rosnou Veron. — Que Ulsinael me ajude, se
você...
Riza e Danika se levantaram para agarrar os braços de Veron
e o forçaram a se sentar enquanto ele se debatia. Até Zoran se
aproximou para ajudar e finalmente conseguiram levar Veron para o
banco, enquanto Zoran murmurava algo, garantindo a ele que tudo
ficaria bem.
Duas batidas. Um passo para fora do ringue. Isso era tudo o
que precisava.
Ela pegou a mão de Veron e lhe ofereceu um olhar que
esperava que fosse tranquilizador.
— Por favor. Eu tenho que fazer isso.
Seus olhos se fixaram nos dela, ardentes e furiosos, enquanto
ele arfava.
— Se ela tocar em você, Aless, eu... — Uma loucura dominou
suas feições antes que ele balançasse a cabeça.
Mas ela havia pensado bem nisso.
Yelena não era louca, e se um dia quisesse governar seu
povo, destruir essa paz e deixá-los passar fome não a ajudaria em
nada. O que eram armas nas mãos de soldados desnutridos?
Ela queria envergonhar a humana. Talvez até frustrar Veron.
Mas ela pagaria para ver, e com duas batidas ou apenas alguns
passos, tudo isso estaria acabado.
— Confie em mim dessa vez, Veron, tudo bem? — disse ela,
pousando uma mão no rosto dele.
Enquanto ele a encarava, ela acariciou seu rosto suavemente
antes de beijá-lo. Então, com um aceno para ele e outro para Gavri,
passou por cima do banco e se dirigiu ao ringue.
No centro, Yelena a esperava com um sorriso amargo, as
sobrancelhas arqueadas.
— Isso foi tolo de sua parte, humana.
Aless entrou no ringue, mas ficou à margem, perto o suficiente
para sair rápido, se precisasse.
— Eu me casei com um elfo sombrio e isso faz parte das
tradições do povo dele. Quero que eles sejam o nosso povo, e isso
significa me envolver. Participar.
— Palavras corajosas, humana. — Yelena assumiu uma
posição de luta, estreitando os olhos. — Mas o quanto você é
corajosa?
Dentro dela, tudo tremia, mas Aless manteve as mãos em
punhos e ficou firme. Ela não sabia lutar, de modo algum, mas isso
não se tratava de ganhar uma luta.
Ela faria o seu melhor para aguentar como Kral fizera, depois
se sentar e ser bem recebida de volta à mesa. Evitar um incidente
que pudesse afetar muitas pessoas.
Yelena a circulou, fingindo que atacaria algumas vezes, rindo,
mas Aless não se moveu. Não conseguia se mover. Fosse por medo
ou determinação, desde que a mantivesse de pé, ela não se
importava.
Um chute passou perto de seu rosto, apenas uns centímetros
distantes de seu nariz.
Seu coração ameaçava explodir em seu peito enquanto a
multidão vaiava Yelena, gritando seu nome em tons decepcionados.
Yelena andava em volta dela, rosnando, grunhindo e sibilando
algumas palavras. O golpe poderia vir de qualquer direção – por
trás, pelo lado, por cima, por baixo. Poderia atingi-la em qualquer
lugar, porém, mesmo que custasse sua vida, ela não conseguia se
mover.
Yelena deu a volta e parou em sua frente, seu rosto contorcido,
e Aless olhou rápido na direção de Veron, que se inclinou para a
mesa, ambas as mãos sobre ela, com Gavri, Riza e Zoran o
segurando pelos ombros. A intensidade de seu olhar a perfurou...
Com um golpe, Yelena tirou os pés dela do chão.
Aless caiu de costas na areia.
O ar fugiu de seus pulmões.
—Yelena! — gritou Veron do outro lado do salão, sua voz
ecoando.
Ela gemeu, tentando recuperar o fôlego, enquanto Yelena a
prendeu, segurando seus dois pulsos com uma mão, os dedos com
garras de sua outra mão prontos para um golpe.
— Não vai nem tentar lutar comigo? — rosnou Yelena,
tensionando aqueles dedos.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, ela não podia se me mover
nem se tentasse. Mas se Yelena a quisesse morta, então já estaria.
Aquilo se tratava de outra coisa.
— Eu não vim aqui para lutar com você — disse ela,
sustentando o olhar de Yelena.
— Então este pode ser o seu fim — provocou Yelena,
mostrando os dentes.
Estudando os olhos de Yelena, Aless balançou a cabeça de
leve. Se fosse assim, seu fim teria vindo assim que entrasse no
ringue, mas Yelena fingiu todos os seus golpes, tentando irritá-la.
Recusar o desafio teria demonstrado medo. E ter se encolhido no
ringue também teria. Talvez esse fosse o objetivo de Yelena. O
medo. E com isso ela poderia afirmar, por associação, que todos os
humanos eram covardes.
— Não — disse Aless, em voz baixa. — Sou sua aliada e
confio em você.
No entanto, mesmo dizendo essas palavras e fechando os
olhos, um frio a dominando, reivindicando-a, arrepiando todos os
pelos do seu corpo.
Talvez aquilo não fosse bravura, mas sim bravata. Talvez ela
tivesse calculado mal, fatalmente, e Yelena a mataria.
Ela não faria isso.
Um chiado cortou o ar, e um golpe soou, ela sentiu o impacto
ondulante através da areia e do chão sob sua cabeça.
Ela respirou fundo, tremendo, querendo que suas mãos se
movessem, mas Yelena segurava firme os seus pulsos.
A sombra sobre ela se moveu e o aperto de Yelena vacilou,
permitindo que se movesse um pouco.
Aless bateu o pé duas vezes na areia.
Quando abriu os olhos, Yelena ainda estava em cima dela, os
olhos estreitos, a testa franzida.
— Você... você não deveria estar aqui — rosnou Yelena, em
seguida, com uma respiração profunda, ela se afastou.
Minutos se passaram, ou horas, enquanto ela olhava para o
teto de pedra preta, esperando seus batimentos diminuírem e que
sua respiração voltasse ao normal. A luz do fogo cintilou reflexos na
superfície espelhada e as vozes começaram a se infiltrar. A multidão
comemorava.
Ela se apoiou nos cotovelos, seu cóccix e as costas doeram
enquanto limpava a areia, e havia um mar de rostos sorridentes e
gritos de encorajamento. Enquanto se levantava, ela conseguiu ver
Veron entre as outras pessoas, ainda sendo contido, seus olhos
selvagens enquanto olhava nos dela.
Yelena já estava no centro, sem sequer ligar para ela, então
Aless voltou para seu lugar na mesa, acenando em reconhecimento
enquanto outros lhe davam tapinhas nas costas e ofereciam
palavras gentis, e uma elfa sombria ofereceu para tratar de seus
machucados, mas ela recusou. Estava um pouco dolorida, só isso.
Gavri deu uma piscadela para ela, então ela, Riza e Zoran
libertaram Veron, que deu um pulo do assento.
Ele a pegou em seus braços, segurando-a firme, respirando
fundo sobre sua cabeça antes de baixar a boca para a dela. Seu
coração se acelerou de novo enquanto os lábios dele se
pressionavam fortemente contra os seus, o beijo apaixonado e
profundo, seu corpo tenso e inclinando-se para o dela.
Ele se afastou, rápido demais, e segurou seu rosto nas mãos,
estudando os olhos dela com os próprios, seu peito subindo e
descendo em respirações rápidas e ofegantes.
— Aless, isso foi...
— Um sucesso? — sugeriu ela.
— Perigoso — concluiu, calmamente, antes de puxá-la para
perto mais uma vez. — E um sucesso — acrescentou, e ela podia
ouvir o sorriso em sua voz.
Seus braços em volta dela não eram apenas quentes e
seguros, mas despertavam uma familiaridade amorosa nela, um
sentimento com o qual ela queria se envolver e nunca sair, dormir e
acordar, senti-lo todos os dias e todas as noites, pelo tempo que
quisesse, quando quisesse. Ela fechou os olhos e respirou nele, o
cheiro de couro e aquele riacho da floresta, e algo mais profundo,
primitivo, do qual ela não se cansava.
Logo os baques rítmicos e gritos soaram mais uma vez e,
quando ela se virou para o ringue, Yelena estava no centro, os
braços entrelaçados atrás das costas, encarando Veron.
— Ela escolheu o dia errado — rosnou ele sob a respiração,
em seguida, deu um passo para o lado e bateu com o punho no
peito. Com um último olhar para ela, deu a volta na mesa, estalando
os dedos enquanto caminhava para o ringue.
— Eles sempre lutaram em pé de igualdade, mas hoje,
escreva o que estou dizendo, quando ele terminar com ela, ela não
vai passar de um esfregão glorificado — comentou Gavri, com a voz
baixa em meio ao barulho ensurdecedor.
Ela se sentou, seu traseiro se rebelando, mas lhe daria um
banho quente mais tarde, como uma oferta de paz. Gavri deu um
tapinha em seu cabelo, sacudindo a areia, e ela sorriu em
agradecimento.
Enquanto Yelena e Veron circulavam um ao outro no ringue, os
olhares fixos um no outro, seus movimentos perfeitamente
sincronizados, aquilo era mesmo como uma dança. Yelena
respondia à ferocidade dele com uma sobrancelha arqueada e um
olhar travesso, e ele contra-atacava cada ataque dela, seus corpos
reagindo aos caprichos um do outro sem nem sequer se tocar.
Era como se tivessem feito isso centenas de vezes antes, mil
vezes, e soubessem tudo um sobre o outro, uma espécie de
intimidade natural que levava anos para ser construída, ou mais.
Yelena deu um soco e ele girou com um chute, do qual ela
desviou. Ela rebateu e ele pegou o pé dela, em seguida, deu uma
rasteira.
Mas as pernas de Yelena se fecharam ao redor dele e ela
arqueou as costas, as palmas batendo no chão enquanto ela
tentava derrubá-lo. Ele girou para o lado, apoiou uma mão no chão
e tentou passar outra rasteira baixa, mas ela pulou para desviar.
Eles conheciam os movimentos um do outro, cada um deles, e
fluíam um ao redor do outro como ventos em um ciclone.
Eram compatíveis.
Ela entrou em pânico, baixando o olhar para a mesa e seu
prato de comida meio consumido. Não, Veron não se importava com
isso, não com Yelena, mas cada instante que ela observava os dois
juntos apenas reforçava como pareciam perfeitos, que tipo de casal
ideal eram, e como ela nunca poderia ser igual a ele, como Yelena.
Nunca tão forte ou hábil. Nunca uma guerreira dos elfos sombrios. E
aquela dança, aquela sedução, seria algo que nunca poderia fazer.
Quanto ao que ele via nela... poderia ser suficiente? Poderia
mesmo bastar?
Ele a perdoara pela mentira?
Alguém passou por ela, era Zoran saindo do salão nobre. No
ringue, Veron e Yelena lutavam golpe por golpe, com o rosto de
Yelena iluminado num sorriso largo.
Yelena parecia confiante, mas Veron conseguiria lidar com ela.
Ele conseguiu dar pequenos golpes e, pouco a pouco, ele a
enfraqueceu.
Com Zoran no estábulo, tudo o que restava era levar Gavri até
lá, mas não sozinha, para que a rainha Nendra não suspeitasse de
nada. E nada aconteceria... Gavri sabia disso, mas ao menos eles
finalmente teriam a chance de conversar.
Ela se levantou.
— Acho que vou tomar um pouco de ar — disse ela por cima
da cabeça de Gavri para Gabriella e Riza. — Poderia dizer a Veron
que logo estarei de volta?
— Vossa Alteza — disse Riza, levantando-se. — Vou
acompanhá-la.
— Não precisa — afirmou ela, com um encolher de ombros
alegre. — Vou com Gavri. Estaremos de volta em breve. — Ela
acenou com a cabeça para Gavri, que se levantou também.
Riza olhou para as duas, em seguida, de volta para o ringue.
— Muito bem. Vou informar Sua Alteza.
Riza inclinou a cabeça e esperou. Veron e Yelena ainda
estavam lutando quando Gavri a acompanhou para fora do salão
nobre, para a ampla luz verde brilhante dos cogumelos
bioluminescentes.
— Obrigada por isso — sussurrou Gavri para ela, enquanto se
dirigiam para os estábulos, atravessando as calçadas pretas sobre
cachoeiras e profundezas escuras.
— Vocês não se veem há dois mil anos — respondeu ela,
baixinho. — Acredito que uma conversa privada é o mínimo que
merecem.
Gavri assentiu, passando devagar a ponta de um dedo no
lábio.
— A propósito, o que você fez lá...
Com um encolher de ombros, ela balançou a cabeça.
— Agora ninguém mais vai duvidar que meus punhos são
inúteis.
Gavri agarrou o pulso dela.
— A força não está apenas em seus punhos. A força depende
do seu conhecimento diante do perigo. É enfrentar um desafio com
coragem e dignidade. Sem fugir.
Ela queria fazer o que era certo pelo povo de Veron – agora
também o seu povo. Se Veron ainda duvidasse de seu compromisso
com ele ou seu povo, agora poderia deixar isso de lado. Ela faria o
que fosse preciso para protegê-los, para mantê-los seguros e para
manter a paz. O que quer que fosse preciso
— Na verdade, era algo de que eu precisava ser lembrada —
disse Gavri, baixando o olhar.
Aless inclinou a cabeça em direção aos estábulos.
— Então vamos encontrar Zoran.
Com um sorriso, Gavri a acompanhou até lá, onde um
relinchar baixo soou pelas portas abertas. Em uma baia próxima,
Zoran, forte, alimentava Noc com uma maçã.
— Estamos todos festejando com alimentos humanos — disse
Zoran, em voz baixa. — Então por que ele deveria ser deixado de
fora? — Ele olhou por cima do ombro com um sorriso pensativo,
lançando um olhar suave para Gavri.
Gavri ficou parada, mordendo o lábio por um longo momento
antes de expirar bruscamente, correr e jogar os braços em volta
dele. Ele a pegou em seu abraço, segurando-a perto.
— Sinto muito por nunca ter dito adeus — sussurrou ele,
descansando a bochecha na cabeça de Gavri. — Tinha tanta coisa
que eu queria dizer, mas...
Pigarreando, Aless caminhou até a baia de Noc e a abriu.
— Acho que vou levar Noc para uma caminhada e dar um
tempo para vocês dois.
Gavri olhou por cima do ombro com os olhos marejados e
assentiu.
— Vou encontrá-la daqui a pouco. Fique por perto, Vossa
Alteza.
— Ficarei — disse ela, sorrindo.
Enquanto Zoran e Gavri sussurravam um para o outro, ela
amarrou um arreio em Noc e colocou uma guia.
— Caminhar um pouco seria bom, não é? — sussurrou ela,
esfregando o nariz dele. — Vamos.
Noc bufou baixinho e a cutucou com o nariz antes de seguir
para as portas abertas. Do lado de fora, alguns cavalos estavam
encurralados em cercados cheios de terra, agrupados em torno de
cochos de água e ração, mas Noc a guiou para além deles... apesar
de ser ela segurando a guia dele.
Talvez uma mensagem não tão sutil de que ele não precisava
de uma.
Um túnel fazia fronteira com a área do cercado, não era tão
grande quanto o que eles tinham usado para entrar na Fortaleza
Central – não, Dun Mozg. Por que os Sileni o chamavam de
Fortaleza Central quando os elfos sombrios o chamavam de Dun
Mozg?
Ou Bosque Noturno, por falar nisso? Era Nozva Rozkveta.
Candelabros de chão esparsos iluminavam o túnel enquanto
eles entravam, lançando fogo em um milhão de cores brilhantes.
Ela suspirou.
Cada superfície estava incrustrada com veios de pedras
preciosas, brilhando em um caleidoscópio de cores, refletindo sua
cor vibrante uma sobre a outra, e sobre ela e Noc.
— Você é um romântico de coração, não é? — brincou ela,
baixinho, e ele lhe bateu com o rabo.
Ela acariciou seu pescoço, olhando para a beleza ao seu
redor, incapaz de decidir em que direção olhar. O túnel cravejado de
joias continuava em uma inclinação ascendente, e ela se aproximou
da borda para passar os dedos sobre os muitos tesouros.
Era estranho. Os elfos sombrios alegavam não valorizar essas
coisas e, ainda assim, se isso fosse verdade, com certeza já teriam
comercializado todas aquelas joias naquela altura, não é? Mas aqui
estavam, preservadas em sua beleza natural, uma alegria para
todos verem.
Noc balançou a cabeça. Ela agarrou seu arreio enquanto ele a
puxava para trás.
— O que foi?
O chão sob seus pés estremeceu. A poeira choveu de cima e
pedaços de escombros bateram no chão enquanto algo pesado caía
atrás deles. Gritos distantes soaram.
Noc a arrastou até a inclinação...
Veron.
— Aonde você está indo? — Ela puxou o arreio de Noc, sem
sucesso. — Você sabe uma saída? Precisamos voltar. Veron...
Seguro.
A palavra apareceu em sua mente, mais como uma sensação
do que uma voz, e o mundo desacelerou ao seu redor enquanto ela
olhava para Noc, realmente olhava. Ele olhava de volta para ela
enquanto a guiava, e aqueles olhos escuros... havia algo
reconfortante lá, naquele olhar deliberado, naquele piscar lento.
Sem dúvida ele não era apenas um cavalo.
Com um aceno resoluto, ela o acompanhou, o cheiro de ar
fresco da floresta se infiltrando enquanto as rachaduras e o colapso
das pedras ressoavam atrás deles.
Pela misericórdia da Sagrada Mãe, aquele túnel estava
desabando.
Noc parou e ela estendeu a mão, suas palmas encontrando
uma barra. Um conjunto de portas trancadas!
Grunhido com o esforço, ela puxou a barra, tentando levantá-
la, e ela subiu...
Um pouco mais, um pouco mais...
Finalmente fora dos ganchos, a barra caiu no chão. Ela
empurrou a pedra sólida diante dela enquanto o chão tremia, então
Noc também se inclinou contra a porta até que ela enfim começou a
se abrir.
Eles abriram caminho através da vegetação frondosa até um
bosque escuro de carvalhos altos, com a lua crescente lançando
seu brilho do alto. Um estrondo parecido com o anterior ecoou do
túnel, enquanto Noc os levava a uma clareira gramada.
Veron – ele estaria bem? E quanto a Gavri, Zoran, Gabriella e
Riza? Todos os outros? Veron ainda estava no palácio, ainda na
cidade, aonde ela não podia ir.
Ela agarrou o cetim sobre o peito, tentando recuperar o fôlego.
Os elfos sombrios viviam no subterrâneo há muito tempo e tinham
que ter algum tipo de abrigo.
— O que foi aquilo? — perguntou, e Noc apoiou a cabeça nela.
Um terremoto? Veron dissera que não havia terremotos, então
os escavadores tinham desaparecido. Mas se houve um terremoto
agora, o que isso significava?
— Pela misericórdia da Sagrada Mãe — sussurrou ela,
segurando a crina de Noc.
Ele relinchou, um som perturbador, e começou a recuar.
— Temos que voltar. — Ela foi em direção às portas, faria o
que fosse preciso...
Figuras escuras surgiram entre as árvores. Três delas, em
casacos longos, com espadas nos quadris e bestas nas mãos.
Com o pulso se acelerando, ela recuou e se pressionou contra
Noc.
Quando as três figuras entraram na clareira, a luz da lua
revelou que eram três homens. Homens Sileni.
— Ora, ora... Olha o que nosso geomante afugentou da toca
— disse um deles com um sorriso torto, um homem com uma
cabeça cheia de cachos pretos.
— Vossa Alteza — zombou o segundo, com uma reverência
exagerada. — O general ficará feliz em vê-la inteira.
O general. Tarquin Belmonte.
Eles se aproximaram, mas Noc deu um coice na direção deles.
Capítulo 17
Eu te amo.
Eu te amo.
Com carinho,
Miri
LUAR RESPLANDECENTE