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Jq6D
cllf'\•e\6\-\01tGJo
ASSIS
2003
PAULO FERNANDO DE SOUZA CAMPOS
ASSIS
2003
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. - Assis - UNESP
1920
COMISSÃO JULGADORA
Este trabalho não poderia ter sido realizado sem a participação de algumas pessoas ,
quais. eu quero 1em b rar agra d e_cen do co,m .sinceridade.
· · as
Sem dúvida essa lista deve , ser
~nc!lbeçad_a por duas ~ulheres 1mportant1ss1mas nes,s~ trajetória: Jacinta e Elizete, minhas
1rmas.. q~eridas as quais. agradeço pelo ª~?r necessario que me fez continuar na pesquisa
ª??~em,ca. Amb~s .apo,aram_-~e incond1c1onalmente no final do mestrado, um momento
d1f1c1I de superaçoes e de dec,soes que transformaram minha vida.
Aos funcionários dos Arquivos e Bibliotecas por onde passei coletando os sinais e os
indícios que me levaram aos eventos trágicos da passagem de 1926 para 1927. Em
especial ao historiador do Museu do Crime da Academia de Polícia de São Paulo, Sérgio
Carrara, que me apresentou o processo crime de José Augusto do Amaral.
A Alessandra Rosa Carrijo quero agradecer pela força amiga e crítica que me fortificou e me
faz enfrentar as agruras da vida em São Paulo. A Helani Morbin e lsabela Campoi por
acreditarem em mim, permanecendo sempre presentes mesmo nos momentos. de
Isolamento e de falta de glamour. A Sandra Castanho por sua amizade eterna. Aos amigos
de Maringá e de Assis quero agradecer pela paciência que tiveram comigo durante esses
longos anos da pós-graduação, relevando minhas interrupções e solicitações que nunca
serio pagas, pois nem tudo tem um preço.
Sobretudo, agradeço a Zélia Lopes da Silva por ter confiado em mim, orientando-me não
apenas para o trabalho de pesquisa mas também para a vida. Seu olhar atento de mulher
dirigiu-me com a agudez de uma historiadora brilhante,. sensata, exigente. A ela devo boa
parte do que sei, do que sou e do que penso sobre as coisas desse mundo.
...pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos.
(Gilberto Gil e Caetano Veloso)
SUMÁRIO
LISTA DE FOTOGRAFIAS
Resumo
INTRODUÇÃO
Parte 1
OS NEGROS NA CIDADE DE SÃO PAULO
Parte li
REPRESENTAÇÕES DA DEGENERESCÊNCIA
Fotografia 1 A doente em trajes femininos. A mesma doente envergando roupas masculinas (legenda
original). Conjunto de fotografias publicadas no Manual de Psiquiatria Clínica e Forense
escrito por Antonio Carlos Pacheco e Silva. p. 144
Fotografia 2 Perfil de José Augusto do Amaral em fotografia judicial anexada ao Processo Crime nº. 1670.
Acervo do Museu do Crime da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. p.197
Fotografia 3 José Augusto do Amaral, Processo Crime nº·. 1670. Acervo do Museu do Crime da Academia
de Polícia do Estado de São Paulo. p. 198
Fotografia 4 "Photographia mostrando o tamanho desproporcionado dos órgãos genitaes" (legenda
original). Archivos da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo, vol. li , ano
li, fase. 1º., nov. 1927, p. 101. Acervo da Biblioteca do Instituto Oscar Freire de Medicina
Legal e Criminologia da Universidade de São Paulo. p. 220
Fotografia 5 Antonio Sanches, primeira vítima. Processo Crime nº. 1670. Acervo do Museu do Crime da
Academia de Polícia do Estado de São Paulo. p.235
Fotografia 6 Ossada de Antonio Sanches. Processo Crime nº. 1670. Acervo do Museu do Crime da
Academia de Polícia do Estado de São Paulo. p. 236
Fotografia 7 José Felippe de Carvalho, segunda vítima. Processo Crime nº. 1670. Acervo do Museu do
Crime da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. p. 244
Fotografia 8 Conjunto de fotografias do cadáver em decomposição da segunda vítima, José Felippe de
Carvalho anexada ao Processo Crime nº. 1670. Acervo do Museu do Crim e da Academia de
Polícia do Estado de São Paulo. p. 245
Fotografia 9 Fotografia pericial de Antonio Lemos, a terceira vítima. Processo Crime nº. 1670. Acervo do
Museu do Crime da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. p. 262
Fotografia 10 Conjunto de imagens do corpo de Antonio Lemos no local do crime. Processo Crime nº. 1670.
Acervo do Museu do Crime da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. p. 263
Fotografia 11 Documento pericial anexado ao exame cadavérico de Antonio Lemos Processo Crime nº.
1670. Acervo do Museu do Crime da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. p. 264
Fotografia 12 "Cefalometria (Instituto de Identificação)" (legenda original). Publicada por W. Berardinelle e
João 1. de Mendonça em Biotipologia Criminal. Acervo da Biblioteca do Instituto Oscar Freire
de Medicina Legal e Criminologia da Universidade de São Paulo. p. 278
Fotografia 13 "lsaltino Francisco, de perfil. Biotipograma criminal do Instituto de Identificação" (legenda
original). Publicada por W. Berardinelle e João 1. de Mendonça em Biotipologia Criminal.
Acervo da Biblioteca do Instituto Oscar Freire de Medicina Legal e Criminologia da
Universidade de São Paulo. p. 279
Fotografia 14 "lsaltino Francisco, de frente. Biotipograma criminal do instituto de Identificação" (legenda
original). Publicada por W. Berardinelle e João 1. de Mendonça em Biotipologia Criminal.
Acervo da Biblioteca do Instituto Oscar Freire de Medicina Legal e Criminologia da
Universidade de São Paulo. p. 280
Fotografia 15 -romada dos diâmetros transversos e antero-posteriores com o compasso de espessura e
fitas metricas (Instituto de Identificação)" (legenda original). Publicada por W. Berardinelle e
João 1. de Mendonça em Biotipologia Criminal. Acervo da Biblioteca do Instituto Oscar Freire
de Medicina Legal e Criminologia da Universidade de São Paulo. p. 281
Fotografia 16 -romada das medidas longitudinais no antropometro de Viola do Instituto de Identificação"
(legenda original). Publicada por W. Berardinelle e João 1. de Mendonça em Biotipologia
Criminal. Acervo da Biblioteca do Instituto Oscar Freire de Medicina Legal e Criminologia da
Universidade de São Paulo. p. 282
RESUMO
O núcleo central da tese propõe uma reflexão em torno das representações da degeneração da
raça no início do século XX, em específico as produzidas pela psiquiatria forense . o estudo aborda
uma série de crimes ocorridos na passagem de 1926 para 1927 e investiga como as imagens
decorrentes das representações dos eventos trágicos que marcaram a vida de um homem comum
negro, filho de escravos e nascido livre incidiam negativamente sobre os negros pobres ~
despossuídos no processo de integração na sociedade de classes , estereotipando-os como
indivíduos violentos, criminosos e inferiores na escala da "evolução humana". As conclusões desse
trabalho foram alcançadas a partir da interpretação de um conjunto documental específico,
produzido por médicos e advogados em torno do processo crime impetrado em 1927 contra José
Augusto do Amaral, indiciado como autor dos crimes hediondos que levaram à morte três pessoas
do sexo masculino e que foram caracterizados pelo sadismo e necrofilia. A documentação utilizada
na investigação recuperou laudos médicos, perícias policiais, depoimentos, fotografias , artigos
publicados na imprensa e revistas especializadas da época sobre os crimes de Amaral. Pautado
nas propostas teórico-metodológicas da microanalítica o estudo possibilitou analisar as relações de
poder e as estratégias de dominação nas quais os discursos se estabelecem e muitas vezes
funcionam. Nessa perspectiva, o exame dos eventos trágicos que marcaram a vida de Amaral
permitiu entender como fenômenos isolados se relacionam com os elementos mais gerais e como
estes fenômenos contribuem para organizar as redes de sociabilidades. Os resultados
demonstraram que os efeitos de real atribuídos às representações da degenerescência
pretenderam legitimar a exclusão e a discriminação dos negros, impondo-lhes uma tara hereditária
que os desclassificavam. A tese defende a idéia de que a persistência da identificação do negro
como criminoso, sedicioso e vagabundo vincula-se às características específicas das relações de
poder no Brasil.
Embora diferente das imagens sugeridas durante o século XIX, o Brasil ainda era
observado pelos estrangeiros como um local de pessoas e modos de vida distantes dos
padrões editados pelo mundo europeu, mesmo que murros destes estrangeiros se
• _,.,.,,.... ,... eL aL Zoas Hla'nlllr•. Paris: La DécouVerte, 2002. A obra citada rastreia exposições que fo~ ~ucesso
, . . _ _tDda a E&npa no 8écuo XIX que reuniam em parques e cabarés os povos exóticos das col~nias. Em
• ._......,.,.. o aulDr, Ptofelaol na Universidade de Paris 11, afirmou que: "... con:i a !deologia da_ desigualdade
....._ dfflnlda pela ■lbOpOlogia ffsica e usada como justificativa da conquista colonial, ,r ao zo~lógt~ para ver~
omo, o nlO anpeu 818 1.111 meio de se convencer de sua própria superioridade". BANCEL, N. Históna e~ cloufhe0
up. • Pauk,, Malll, Slo Paulo, n. 544, 14 jul. 2002. p. 16-17. Entrevista concedida a Jean Marcel arva
Alln9&
No final da década de 1920, a cidade de São Paulo apresentava ares de um
Embora diferente das imagens sugeridas durante o século-XIX, o Brasil ainda era
observado pelos estrangeiros como um local de pessoas e modos de vida distantes dos
padrões editados pelo mundo europeu, mesmo que muitos destes estrangeiros se
surpreendessem com a realidade das cidades brasileiras. Desde o século XIX o olhar
europeu construía a imagem do outro, sua representação social. No caso dos negros, as
.. . Huffllll,w, Paris: La l)écoUV8rte, 2002, A obra citada rastreia e,cposições que toram sucesso
llfl!llinpa no aéculo XIX que reuniam em parques e cabarés os povos exóticos das colônias. Em
r, PrlllaaaOr na Universidade de Paris 11, afirmou que: •... com a ideologia da desigualdade
llrlll9IJOlo9la flaica a usada como Justificativa da conquista colonial, ir ao zoológico para ver o
ia um maio da se convencer de sua própria superioridade". BANCEL, N. Hist6ria em clouse-
, .Mu,I, 8111 PaulO. n. 544, 14 jul. 2002, p. 16-17. Entrevista concedida a Jean Marcel carvalho
4
Mesmo que as imagens exóticas atribuídas aos negros não fossem mais
trabalho encontradas nas fazendas de café. os filhos dos escravos. homens e mulheres
encontrar na cidade um emprego fixo, progredir, bem como os novos imigrarites que
Em São Paulo, no período estudado, havia uma forte distinção entre as oessoas
justamente pela cidade ter sido considerada como um local habitado, em larga escala,
europeizada, voltada para os padrões de vida, trabalho e organização social ditados oelo
2• Aaçs P que 1811181B à ml6rnia civlizada{lnciv, na qual a sociedade paufistana pautava-se para estaoeieC8
a&:a:;aa 11DCi11is e relacionais entre as pessoas, figura repetidamente nas crônicaS do memonallsta oa ddaoe oe
111D..., que l8giBlla dfaenles aspeclDS da vida puis1ana. evideflciandO práticas singUlareS no relac;ionamero>
. ., . _ . . que vivaam o perfodo. Embora eualtecelldo as eiteS e as fertoS das dasSeS soeíaiS aoasaoas o
. . . . . . . - en1nNar as piri10111Bg811S anõnimas da história. constm,Jindo-Se num vaJioSO regstro para o rasgara
dlllla nan6ria. dalBe tar..,o e espaço social. At.ERICANO, J. São Paulo nesse tempa (191~1935). São Paulo:
lllluam... 1982. A pacepção da diferenÇa racial pode ser ampiada consuttandO FREYRE. G. mte,pretação
•■ E AIIBiDs da tonnaçlo social brasileira como processo de amalgamentD de raças e cutnJraS. São Pauk>:
OU..4&•E JaB l8lras. 2001. Conular anta: KOSSOY, 8. ; CARNEIRO, M. L T. O Olhar europeu. O neg,
W W-4ia bralllBn. do sêcUo XIX. São Paulo: EOJsp, 1994. Ver também: SCHWARCZ. L M. ; REIS, L V. oe S.
. . . . . . EnaaioB sobre cdura e escravidãO no Brasi. São Paulo: Estação Qência/Eck,sp, 1996.
5
uma perspectiva desqualificadora que atingia não o ser individual mas a "raça" - noção
negros foram sendo cooptados pelos discursos normativos que passaram a reorganizar
o mundo social.
novas percepções do real, nas quais os negros, sobretudo os negros comuns, da plebe,
eram vistos como "gente sem importância". Os negros, desde os tempos da Colônia,
eram temidos pelas famílias brancas por assumirem, no imaginário coletivo, as formas
uma sociedade que buscava branquear-se, tais imagens acabaram por cristalizar
3
~1,..eratações danosas aos negros que ainda perduram na sociedade brasileira.
J.ean CLAUDE-SCHIMITT sobre os marginais permite observar que um dos aspectos da "nova
1n!la enfrentar um dos grandes problemas identificados pela tradição dos Annales, qual seja, dar
r •lm, rompendo com o paradigma que firmava a história total, autentica, identificada como
11;:;cdoa rela e da Igreja. Para o autor, o que escapava do "centro da história", compreendida
1
tempo pela escrita da história e ignorados pelos historiadores da tradição que optavam
voz dos homens e mulheres comuns não interessavam ao tipo de história que se
4
pretendia perpetuar, negando o microcosmo da história.
ül'.l1 rótulo que nega as "noções gerais" da história, fragmentando-a por interessar-se
e praticar o ofício. De acordo com o autor, ainda vigora uma escrita da história pautada
sem considerar que as "provas testemunhais" não falam por si mesmas mas permitem
falar, dão de falar.
4
· A panlp8Clilrd de &a'llll hilll6rta aodal, ortginéria da França do início do séa.llo XX, produzida pela tradição dos Annales
nova esquerda inglesa, sobretudo a obra de Edward Palmer THOMPSON, e a
corno esta é entendida por Roger CHARTIER, permitiram aos historiadores ampliar
111111111P1•el&clu.._..., do tampo passado. As novas abordagens, problemas e objetos da terceira geração
1n&
babu' propoala pela história social inglesa e a categoria de representação que dos
pma o alcance das abordagens do que se convencionou chamar de m1ero-
órlca, da cosmologia, da ego-história ou da história das mentalidades o que
• ~ que privilegiasse os recortes sempre minúsculos, como a hlStóna dos
~. •...pequenos enredos construídos a partir de tramas aparentemente
da década de 1970 e nos anos de 1980, um pequeno grupo de
e artigos sobre a experiência da microanálise. O debate em
Slorici e pela série italiana Microstorie, entretanto, as obras de
~ . . . . ..U. PI 1 1,. ..., 8llldD oa taxlD8 h.ndador8s do que se convencionou chamar de micro-
L v~~~Ullcr I 3 ••11moe ela hlsl6rla. Micro-história. Rio de Janeiro: campus, 2002. p.
ro: Francisco Alves, 1995. THOMPSON, E. P.
181. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
...~ . Lisboa: Difel, 1985.
'7
G r'"'1~e e s sas e
'i<i:
Pessoal de São Paulo, por um negro conhecido como -oreto etem para
tempo no qual a idéia corrente era a de que a grande maioria dos brasileiros não
a essa interpretação dominante, os crimes de que preto Amaral foi acusado remetem
para Lili tempo no qual se consolida o final de um sistema político, econômico e social
~ C. . . . . a,.._,_ .t sinais. Morfologia e história. São Paulo: Companhia ~ Letras, 1987. Obra na
o ...,tnlla a quaallD do mémdo, inclcado como "paralW'lff\<:I inálciário· . . A Micro-história e outros
!it-" ··· 1 L Lilbaa: Dlal, 1989. Corno pratica do oficio _ _. O~~ e os vermes. O coticiano e as idéias de um
~,\fllJII la:p111rgaállo pala inlJliiçio. São Pauo: Con1Jamia das Letras, 1897. Sobre a noção de representação _ _.
,. ~..-dl1,n11 7 7a NDv9 111p11tsenlações sabre a dstAncia. São Paulo: Companhia~ Letras, 2001 . Para esse
1
-~
~-~,Jllb .t lf E. Mi. . . "RlpiW111a9ões- A palavra, a idéia, a coisa".
... ........__.._décadas, Quto Ginzburg retomou ao Brasil em 2002 quando participou de seminários e
• •· 1 •;.m;:sa•tdD dabalaa, co11farê11cias e palestras em tomo das questões que envolvem a história da cultura e
. . 1.·. . 1T ün pauao do que foi ca, pelo hislDriador italiano pode ser observado em: GINZBURG, e. A história
• • • FtllLAIIIII.-.S. Paulo. Maisl 01 set. 2002. p. 4--8. Entrevista concedida a Jean Marcel carvalho França
8
explorado pelos historiadores, qual seja, o processo crime. Esse conjunto documental
partilha sinais e vestígios que permitem aos historiadores dar voz aos homens comuns
processado como o autor da série de crimes ocorridos no final dos anos 1920 na cidade
de São Paulo, crimes estes cometidos contra crianças, rapazes ou ainda, como
no início de 1'R7 contra José Augusto do Amaral mas que nunca foi
... incluso três vezes no artigo 294 do Código Penal, e uma vez no artigo 294,
combinado com os artigos 13 e 63 do mesmo Estatuto, denuncio a V. Excia.
José Augusto do Amaral, qualificado às fls. 26 do incluso inquérito policial, pelos
fatos delituosos que passo a expôr: Em 7 de dezembro der 1926, levou o
denunciado em sua companhia até ao Campo de Marte, nesta Capital, o moço
Antonio Sanches, de 27 annos de idade, operário residente na Lapa. No Campo
de Marte, em lugar ermo, mata a sua vítima, estrangulando-a, e, quente ainda o
corpo do infortunado moço, pratica no cadáver actos de pederastia. (confissão
do den., tis. 29 v.; reconhecimento de roupas, fls. 87; exame de ossada tis. 91;
4ª test., tis. 107). Volvidas pouco mais de duas semanas, na véspera do natal,
às 4 horas da tarde, dentro de um mato nas immediações da Ponte Pequena,
nesta Capital, depois de para lá ter atrahido um menor de dez anos de idade, o
colegial José Felippe de Carvalho, filho único da viúva Georgina Silveira, o
denunciado friamente o mata. Estrangula-o, e sacia seus instinctos libidinosos
do cadáver, abandonado ao depois ao relento. (auto de exame cadavérico de tis.
82). Sete dias após, em 1º deste anno, às 11 horas da manhã, encontra-se o
denunciado com Antonio Lemes, menor de 15 para 16 annos de idade, obriga-o
a almoçar em sua companhia num botequim nas proximidaes do Mercado
Central e leva-o em boa camaradagem até a estrada velha de S. Miguel. Num
atalho, à direita, numa pequena moita, mata-o, esganando-o, e violentamente
pratica no cadáver actos libidinosos. Ao descobrirem o cadáver, encontram em
volta ao pescoço um laço que sobre o mesmo exercia pressão, que o comprimia
fortemente e terminava em um nó bastante apertado. A morte deu-se em
consequencia de asphyxia por estrangulamento (auto de exame cadavérico de
fls., e de autopsia de fls. ). Os médicos legistas que detidamente examinaram a
victima, concluíram que ella foi estuprada (fls.) Entre esse último assassinato e
o penúltimo, no intervalo de uma semana esta a tentativa de morte contra uma
creança de dispensas nove annos de idade. Roque Piccili. O denunciado o
encontrara com sua caixa de pequeno engraxate nas immediações da praça da
Concórdia, não muito longe do theatro Colombo, no Braz, nesta Capital.
Offerece-lhe dinheiro, quer o seu auxílio, que o ajude a carregar uma caixa com
roupas. Leva-o a ponte da rua João Theodoro, que atravessa o Tamanduatehy.
Agarra-o, domina-o, procura esgana-lo, julga-o morto. E quando se dispunha a
saciar seus instinctos carnaes, rumor de passos nas proximidades levam-no a
abandonar a pobre victima, que populares socorreram. Pederasta e necrófilo,
segundo apurado ficou, o denunciado matava primeiro as suas victimas,
8
estrangulando-as, para se saciar nos cadáveres ainda quentes.
Impactos dos processos globais no microcosmo e não o fragmento por ele mesmo. Tal
abordagem permite afirmar que as representações sociais registradas nas fontes
provenientes dos órgãos do poder judiciário, das quais este estudo faz uso, possibilitam
não só a Identificação de como uma realidade social é construída, pensada, dada a ler
buscou ·Prôtiíêmatizar comportamentos que ainda hoje atuam como limites segregadores
8
• Proceaao Crime n. 1870. Denuncia de José Augusto do Amaral.
10
potencialmente violenta. 9
pessoas ainda atreladas às representações da "'corte no exílio- ou por aquilo que Mar.a
Otlla Leite da Silva DIAS considerou como sendo a exploração ae ·cteal. ae ;10\-as
mudanças impunham, por sua vez, novas condições de vida material. ~âbitos e
que se pretendeu enfatizar nesse trabalho foram os prováveis significados das ações
nas quais os negros eram tomados como casos exemplares. representativos. por ass·
•. Da IIDdD cam GiNami LEVI. -J'ara a 11mo-.'àtólia. a remJÇAo da escala é Lm procedimento analitico. que pooe se·
aplamoem ....... luglr, nlapalla.B1&à das clrnelas6es do objeto(...) O princípio unificador de toda P8SQl.liSa
H&acrhlaMllaa•a....,an qua a abaaM1ção microscópica reY81ará fatores previamente não obsefVadOS". LEVl. G.
Sabla•aa......... ln: BUR1CE. P. Awrlll da hlsl6ria. Novas perspectivas. São Paulo: E<illesp. 1992. p. 136.
'º. DIAS. li. O. L da S. Haanalllaa e nanalMl ln: SEVCENKO, N. O Olfeu exllitico na naetrópo6e. São Pa
_,...eaa..-...,a-.arms20. Silo Paulo: em.,.~ das letras. 1992. p. XJ'ii. A noção "corte no e.x11,_..
.._.PIJl'....... IMl.ERBAao apnlS8nlaias '1>ulburinhosª provocados pelas manifestações que moveram o Rio
da.Jlnalloa...-a a••• da famlia nllll no ena. simbolza as alterações na forma de exbçâo d8S cosas
• - - . . - o llpla6dQ qua o ...,ewidancia. MALERBA, J. A Corte no exillo. CMização e poder no Brsssl às
,,..._dallllllip&. .da (1808-1821). Silo Paulo: eoo.,_na das letras. 2000. p. 35.
11
Entretanto, as relações sociais travadas nos turbulentos anos vinte provocaram uma
dos brancos, negando sua própria identidade; sentimento que produzia diferentes
negra, cujos desdobramentos permitem recuos ainda maiores, anteriores mesmo que os
tio nos anos 1920 partem do princípio de que as imagens projetadas pelas falas
:1Pft0 nlo 6 possrvel negar o racismo( ...) também não se pode abrir mão de
mlluada (...) é talvez pela especificidade da mistura que se possa pensar
que 6 hora de priorizar especificidades, e não um conjunto que caminha
Nr feito um s61.•. SCHWARCZ, L. M. As teorias raciais, uma construção
. . . . . braallelro ln: _ _. ; QUEIROZ, R. da S. Raça e diversidade. São
13
cozinheiras, amas de leite e babás. Porém, tal situação não as eximia das constantes
umas as outras e como os negros eram vistos e exibidos pelos bmcos. A tradição oral
evoca alguns enredos por intermédio dos quais se pode observar as percepções que os
brancos tinham dos negros, como as que diziam: "Lá em cima daquele morro,/ tem um
pé de samambaia;/ Negra só casa com negro;/ São gente da mesma laia", ou ainda,
"Marmelo é fruta gostosa,/Que dá na ponta da vara;/Branca que casa com preto/ Não
15
tem vergonha na cara".
lmJnam como focos originais os discursos de intelectuais e suas teses fundadas nas
las por Ecléa BOSI são significativas para o desvendamento de práticas discursivas
a para os negros no início do século XX. As lembranças da filha de escravos, que desde
ã de famnla" pennite localizar a extensão das representações forjadas no contexto
\126 com um amigo de infância, ele era bonito e não era preto, de preto chega eu.". Ou
~ vivida pelas mulheres negras. BOSI, E. Memória e sociedade. Lembranças de
Quelroz/Edusp, 1987. p. 300-314.
rasentações coletivas sobre o negro: o negro na tradição oral. ln: _ _. O negro
lo;. Dtfel, 1972. p. 209. Outros aspectos da desigualdade costumeira podem ser
li mulheres brancas que viviam em São Paulo: "-Ahl O pessoal agora anda todo de
uma grande senhora. É só meia de seda, o diabol - Pois é. Você vê como elas se
.dizer uma história não se de que, que a D. Zelinda, e era só D. Zelinda pra cá, D.
ullo, nlo sei o que mais. Você sabe quem era a D. Zelinda? Uma negrona retinta! -
IGU eu sól (•.. ) Agora já deram até na elegância de ter neurastenia. Negra com
, parar?". AMERICANO, J. Slo Paulo nesse tempo (1915-1935). São Paulo:
il,
14
protocolos como única forma capaz de alcançar uma das premissas que o "projeto
reconhecer como as verdades produzidas pela medicina e pelo direito foram fabricadas
e intemalizadas pela sociedade mais ampla. Nesse sentido, buscou-se saber quais os
~ . :,, ;•
vasta rede institucional que visava conter os atos desviantes e manter a ordem de uma
popu 1açao
- sempre crescen te. 17
doenças produziam um certo desprezo por parte das elites paulistanas que viam no
miasmas, representação que funcionava como uma barreira às relações sociais entre
brancos e negros, ampliando as imagens do perigo. "Não é, portanto, mero acaso que
instituições com caráter e finalidades diversas tenham sido criadas, em São Paulo, com
o objetivo de, cada qual na sua área, estudar, conhecer, identificar e propor soluções às
,~alâlblU\Aarla Stella Martins BRESCIANI, o debate político que se desenvolve no Brasil em tomo de um
~~~ o combate à criminalidade como um dos eixos para alcançar o mundo civilizado. Porém, a
., ... · .;~ 1 ' • ·Repllblica, diferentemente da Monarquia, possibilita a "interferência dos homens pensantes do
- , .\f!m~.eíà_t'-Um processo cujo sentido se encontra já inscrito no tempo". BRESCIANI, M. S. M., O Cidadão
10 versus positivismo. Brasil: 1870-1900 ln: Revista da USP, n. 23, 1993. p. 124.
,:,;foi apontado por Boris FAUSTO em um livro recente - no qual o autor narra a sua história
,nta que em 1924 "São Paulo tinha cerca de 580 mil habitantes, dos quais em tomo de 35%
er:-prussegue afirmando que esse índice teria sido "muito maior se fossem somados aos
ilhos nascidos no Brasil". De acordo com o autor, "sem o mesmo ímpeto das últimas décadas do
Imigrantes chegaram a São Paulo, após a interrupção provocada pela Primeira Guerra
;menor número que no passado, espanhóis, japoneses, sírio-libaneses e, pouco a pouc?,
,ntra1,:e orientar. FAUSTO, B. Negócios e ócios. Histórias da imigração. São Paulo: Companhia
,.,
16
instituições de controle social mantidas pelo estado procuravam tornar suas ações cada
criminalidade e outros delitos "proliferavam" na cidade e faziam crer que somente por
intermédio do estudo interdisciplinar dos criminosos e não mais dos crimes e das
19
trabalho e controlar as populações.
das instituições públicas de controle social de São Paulo visavam imprimir "ares de uma
centR:> -radiador da modem idade e da civilidade para o país e por intermédio das ações
, .são criados o Departamento Estadual do Trabalho (1911 ), Faculdade de Medicina e Cirurgia (1913),
r (1916) Instituto de Engenharia (1917), Instituto de Higiene (1918), Hospital de Juquery, Penitenciária
a<>), Manicõmio Judiciário (1930). Existiam na cidade o Hospital de Isolamento (1880), Instituto
(1892), Instituto Vacinogênico (1892), Desinfectório Central (1893), Escola Politécnica (1893).
1, M. da P. C. (Coord.) Memória da saúde pública. A fotografia como testemunha. São Paulo/Rio
~rasco, 1995. p. 28. Consultar também: SILVA, J. R. De aspecto quase florido. Fotografias em
Pi.w,llstas, 1898-1920 Revista Brasileira de História, v. 21, n. 41, p. 201-216, 2001.
g• "üm espaço social diferente, Sidney CHALHOUB aponta para uma questão significativa ao
. ~~es controladoras do social no período delimitado. Para o autor, "... o problema do contro~e
.. _ ....·. :rííbãlhadora compreende todas as esferas da vida, todas as situações possíveis do cotidiano, pois
•
até•
. ·.,·G Jl
.· ••·.·-::·1.,:.· :.......·...•. •xeroe
".·. :··l·. r.·.t •.··.•··.·· ...·.·..da desde a tentativa
nonnatização de disciplinarização
das relações rígida dodos
pessoais ou familiares tempo e do espaçopassando,
trabalhadores, na situação de trabalho
também, pela
vlglí~ :,::·. Jffo,ua do botequim eda rua, espaços consagrados ao lazt:r popular.". CHALHOUB: Trabalho, lar e
31
_s.
boleqílfm,~~ t mtldlano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Epoque. São Paulo: Bras,hense, 1986. P· ·
Para O éuõf98ullsta ver: ANTONACCI, M. A. M. A Vitória da razão (?). São Paulo: Marco Zero, 1990.
17
exemplares de sua elite prodigiosa a cidade de São Paulo impunha práticas identificadas
nação deveriam estar pautados na reeducação dos sentidos. A cidade se torna O lugar
não mais identificado como um "burgo de estudantes" mas como centro radiador de uma
21
do século XX.
M., O Cidadão da República. Liberalismo versus positivismo. Brasil: 1870-1900. ln: Revista da
p. 123. As novas sociabilidades que o período remonta também podem ser avaliadas em
,leu exlátlco na metrópole. São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo:
as, 1992. FERREIRA, A. C.; LUCA, T. R. de.; IOKOI, Z. G. (orgs.) Encontros com a história.
e historiográficos de São Paulo. São Paulo: Edunesp, 1999.
18
Contudo, a miscigenação era avaliada positivamente por alguns teóricos que postulavam
ser a mistura das raças o caminho que levaria à extinção gradativa da população negra
classes. Se antes o país era pensado pelos símbolos do degredo, pela idéia do paraíso
enquanto espaço e memória, Maria Stella Martins BRESCIANI indica que uma das
l"O'debate em tomo da questão urbana é aquela que toma o espaço urbano como lugar de
.pedem para serem desvendados. A autora Indica que esses sinais passam a ser
mado de conceitos que classificam em quadros compreensivos tudo o que vê, definindo
lraundantaa. BRESCIANI, M. S. M. Cidades: espaço e memória. ln: São Paulo .
1l~ Hlatdrl00. O direito à memória. Patrimônio Histórico e Cidadania. São Paulo: DPH,
..e
,Ulo claa raçaa. Cientistas, Instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São
, 1183.
19
no decorrer do texto não só por expressar os termos próprios da época mas por
homens e mulheres afro-brasileiros que sofreram, ao longo do processo histórico,
rprtmlu durante boa parte da história cultural do Brasil, explicitando a desigualdade
para uma estrutura ambígua e indefinida, porém, revestida de um caráter
uma avaliação mais precisa das ambigüidades que o termo e~oca ~-~sult~r.
J11a9a como retórica. A construção da diferença. Rio de Janerro: Crvrlrzaçao
20
sobretudo pela medicina e pela ciência jurídica, permite afirmar que as estratégias de
por Nina Rodrigues, médico baiano considerado como o fundador da Medicina Legal
ileira, ampliavam o debate em torno das preocupações intelectuais sobre "a nossa
... q enquanto povo e a deste país como nação" escoimando, para usar um termo
estabelecido a partir dos traços morfológicos das pessoas levadas ao crime, isto é,
os biótipos classificados a partir da medição dos corpos que sucumbiram ao crime. Por
mundo do crime mas a sua geração. Logo, no pensar e agir dos controladores da ordem,
Nina, Aodrlguea é apresentada no trabalho produzido por Mariza CORA~ publicado pela
ltora permite reconhecer questões como a da relação entre os intelectuais médicos com o
Nla,;10 entre saber e blo-poder na sociedade brasileira. CORA~. M. As Ilusões da
rlQUN e a Antropologia no Brasil. 21 • ed. rev. Bragança Paulista: Editora da Universidade
22
raciocínio", necessitando, para tanto, ser guiada pela razão de quem sabia raciocinar. 25
pressuposto de que estes não existiam. Operadas pela idéia da seleção natural, as
medida em que acarretava supor como verdade a existência de uma pureza racial no
"zação dos espaços permitiria uma gradual mudança biológica, psíquica e social
uai seja, "... uma ação regeneradora para um país ainda atado aos seus
· · · -o do
Imagem do cidadão brasileiro proposto por Alberto Salles, "um dos intelectuais de maior proJeça ento
O
Maria Stella M. BRESCIANI pennite localizar os argumentos que confi_guravam pen~ Cf
M8 dêcadas de 1910 1920 e 1930 estaria assumindo sua confi~uraçao plena n_o B~s~ ~
41. M. O Cidadão da Àepública. Liberalismo versus positivismo. Brasil: 1870-1900. ln. ReVJs
p.135.
23
sociedade .. ", isto é, a uma sociedade organizada por valores tipicamente burgueses,
voltados exclusivamente para o mundo dos bancos, a quem caberia a cidadania plena,
26
isto é, a inclusão e a afirmação dos direitos propostos pela República.
da medicina devia explicar as doenças e os desvios não mais pela via única e exclusiva
do tratamento moral, que atravessou incólume o século XIX, mas pela identificação das
da neuropsiquiatria e biotipologia.
subsídios preciosos à justiça penal que não dispunha de meios para elucidar
os crimes confessados por José Augusto do Amaral ao ser preso e interrogado pelo
penal dos determinismos raciais e por parte da medicina a busca pela ampliação de sua
jurídica, dado que permite remontar as origens da psiquiatria forense como uma
sa'.1:Jer médico que estabelecia regras à conduta humana por intermédio da "biologia
r., que lhe dá origem, fazendo do ofício da medicina uma prática essencialmente
df Or:iàllna Rauter PEREIRA indica que as questões daí decorrentes evocam uma complexa rede de
cme se sobrepõem visando controlar o social. "Não se trata, como ainda hoje se confunde, de
e.o, dispensando-lhe um tratamento mais humano. O que ocorre é apenas a substituição de um
utro, mais eficaz e abrangente". PEREIRA, e. R. Os carreiristas da indisciplina. Um estudo so~re
ªanti-sociais" ln: SERRA, A. A. A psiquiatria como discurso político. Rio de Janeiro:
. 41 .
ile originalmente a psiquiatria gravitava em tomo da determinação dos lugares dos fenômenos
do circunscreve-los definindo o que seria da ordem do corpo e o que seria d~ ordem das
Ci9mpos de interesse: o epistemológico e o curativo. No primeiro campo, o interesse d~
campo de comportamentos sociais absolutamente novos para ela, procurando constru,~r
ffl;,al delimitasse as suas empiricidades e as regiões de validade para os seus métodos. ·
a como discurso da moralidade. Rio de Janeiro: Graal, 1978. p. 41.
25
Estado republicano. O conjunto dos discursos e das práticas médicas funcionava, nessa
medida, como correlatos de ordem política, saber julgado imperioso para a construção
da nova ordem social. Como afinnou Madel LUZ, o aperfeiçoamento intelectual era na
República Velha o critério por excelência que capacitava os homens para o ato de
hábitos alimentares, sexuais, morais, a raça, o estilo de vida, o crescimento urbano sem
•. A obra de Madel LUZ trata das tendências divergentes que marcaram as origens da organização da ordem
repl.mllcana e o conjunto de estratégias institucionais, sobretudo as médicas. De acordo com a autora, a medicina é
ulllizada pelos apar9lhos estatais para responder aos problemas sociais que assolaram a primeira República cujos
rallmcDB apontam para as "amargas condições de vida das classes subalternas". LUZ, M. Medicina e ordem política
bnlllllalra. Polfticas e Instituições de Saúde (1850-1930). Rio de Janeiro: Graal, 1982. p. 16.
•. lbld. p. 20.
26
a vida social era regida por carências, sentimentos e instintos legados pela
conduta. Interpretações como essas eram comuns nos escritos de Antonio Carlos
Pacheco e Silva cuja obra esteve centrada na profilaxia das doenças mentais
Brasileiro, filho de pais escravos, nascido na Lei do Ventre Livre (1871) José
lQli>ntecimentos funestos de que era suspeito, Amaral confessa ser o autor dos destinos
ento em diante, o homem comum deixou de ser um anônimo. Sua imagem passou
ser retratada nos jornais da imprensa paulistana como "o monstro negro", "papão de
arte, entre outros vestígios, tomam os crimes um dos casos mais complexos
lad.o ,por Antonio Carlos Pacheco e Silva, ilustre psiquiatra paulistano, cátedra de
d.êle;~l!Da& :de Amaral serve de exemplo para um tipo específico de psicopatia degenerativa, o sadismo e a
~ -~,i• r p ~ téailca dos acontecimentos trágicos que fizeram de Amaral um dos criminosos ilustres de
~ ·~bllbada em diferentes veículos de informação que serão apresentados no decorrer do exa~e
~ 1J,~l11,rvale daatacar que os crimes que dão relevo à história trágica de "preto Amaral'' também estao
--~QOMUseu do Crime da Academia de Policia de São Paulo "Dr. Coriolano Nogueira Cobra".
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28
como indesejáveis, atributo, no pensar das elites, que encontrava nos negros sua forma
inantes uma solução que inserisse a questão racial no cerne dos debates que
do, os que possuíam uma outra cor de pele que não fosse branca.
estabelecidos como ideais tipificavam as ações dos que viveram as mudanças impostas
lação brasileira, tomando-a mais homogenia do ponto de vista racial, vale dizer,
34
• Peaqulaaa ~ . , _ PRXJUZIC118 tem permitido uma avaliação mais ponnenorizada da condição dos negros na
80Cledaclf :-.~ - i ' , . _iJern ravelado uma leitura à contrapelo d~ tradicionais enfoques que
ldentlftcavam OII ~r~ corno paaaívels diante das transfonnações ocomdas na passagem do trabalho
escravo para o ~ llvnt, • .ti,_aorno se oe negros não tivessem criado fonnas de resistências, mesmo que
--=•
mllldaa, aos -lm••· .._._· ~ ~ ;~•-•_ ·•_,•_.•. ídlllm anular suas existências, tradições e culturas. Entre e~t~s estud~
encontnun-ee: D0MII • _·. li, P. J~.Jllpia hlat6rta nlo contada. Negro, racismo e trabalho no pós-abolrçao em São
Paulo (1889-1930). • -:.Paulo, • ··370 f. Dlaaertaçlo (Mestrado em História) Faculdade de Filosofia, Letras e
Clênctu Humanu.,M~ - Paulo. LOPES, M. A. de o. Beleza e aacensão social na Imprensa neg!8
P8Ullellna f, Dlaaerlaçllo (Meelrado em História) - Programa de Pós-Graduaçao
em Hlltórta,
9111 .... , · , ,- _.-. . · laa-,de 8lo Paulo. HOLFBAUER, A. Uma história de branqueamento o~ o
negn, -qUnlva ·_·. ·::· · · ·
Humanu ·& • _· _.·_t . T- (Doutorado em História) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
~.
30
1 que deveriam cuidar de suas próprias vidas como, arrumar um ofício, ter uma
pação, um espaço para viver e abrigar os próximos, ter o que comer e o que vestir.
1
0RNO, "Os anos 20 experimentaram uma sorte de proliferação discursiva que condenava os
,as de etnias diferentes como fonte de degeneração racial e de degradação moral. Impunha-se,
ajustes conjugais em beneficio da própria prole". ADORNO, s. Prefácio ln: MARQUES, V. R. B.
fla98. Médicos, educadores e discurso eugênico. Campinas: Ed. UNICAMP, 1994. p. 15.
31
sustentavam os discursos médicos nos quais a tipologia das raças consolidava a noção
O contexto histórico demarcado por esse estudo, mesmo que em sua brevidade,
psiquiatria forense como parte da medicina dedicada ao estudo dos criminosos e das
e referências pessoais. 37
que, de toda a forma, não correspondia com a realidade dos fatos. Os negros
novos significados às imagens produtoras de verdade " ... que considera os signos
visíveis como índices seguros de uma realidade que não o é.". Permitindo uma
século XX, usado para coibir as relações tidas como impróprias e criminalizaveis, incide
:assumia como tarefa realizar o que os bacharéis de direito ou, "os eleitos da
~ ' nesse sentido, visa fazer com que a coisa não tenha existência a não ser na imagem que
a realidade ou "...que faz com que se tome o engodo pela cerdade, que considera os signos
seguros de uma realidade que não é. Assim desviada, a representação transforma-se em
raapellD e submissão, num instrumento que produz uma exigência interirorizada..." CHARTIER,
~ ln: Estudoa Avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, 173-193, jan./abr. 1991. p.185.
34
larga escala européia, o espaço urbano da cidade de São Paulo impunha ao antigo
que a elite paulistana se via e pensava o país. Entretanto, viver em São Paulo
• trabalhar, ter um ofício e estar a serviço mas também pertencer, ser parte,
para a cidade, tomando-a, deste modo, em um espaço singular para apreender não só
A novidade das multidões e do povo nas ruas, entretanto, faz ruir a antiga tese da
icas, não bastavam para controlar as multidões. Era preciso criar instituições
preconceito próprios da escravidão, o que permite afirmar ser a questão étnica parte
os negros eram naturalmente segregados num sistema social que lhes oferecia poucas
foram sendo forçados a uma vida muito aquém da valorizada pela estética
imigrantes despossuídos, mendigos, indivíduos que viviam da mão para a boca, sem
impostas pelo trabalho livre e europeização da cidade de São Paulo impunham uma
'0-:--~
"'~~
-~ ~
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38
anterior, sendo o segundo sp cto mais drástico abrangente que O primeiro, até
margens do "monstro urbanoº que se converteu a cidade de São Paulo, local por
uma população que se desejava substituir e cuja integração na sociedade mais ampla
Amaral", figura emblemática que na passagem de 1926 para 1927 cometeu crimes em
rie tipificados pelo código penal como hediondos e classificados pela psiquiatria como
cio aumento das vagas ocupadas por negros nas Industrias de São Paulo pode ser avalla~a ~~
George Reld Andrews, porém, o autor avalia o crescimento das vagas para negros. r:N;~~~ G.
em duu Mbr1cas de São Paulo, a São Paulo Llgth e a fábrica têxtil Jafet. Consultar. to cons~ltar
~ branooa em 810 Paulo (1888-1988). Bauru: Edusc, P199b8 · P-(~:~-~~~; ;~~ ;:~:: A'nnablume,
~NTCm, J. C. F. doa. Nem tudo era ltallano. São Paulo e o reza ·
39
repressão e o controle das contravenções passaram a ser praticadas pela polícia por
dos nos Autos do Processo Crime n. 1670 impetrado pelo delegado Juvenal Piza
representações da psiquiatria forense bem como o lugar dos negros nesse campo
acabavam por assumir um protocolo que se sobrepunha à voz do depoente, falando por
aablananeira o trabalho do historiador, não por revelarem uma suposta realidade mas
que se instaura para produzir a verdade que, por sua vez, revela o seu avesso,
ue é perfeitamente
..... G0IES •A historiografia recente, no entanto, vem nos mostran d o q " S P F
' • • fato 'real' da sua passagem para o papel · GO~E ' · :
dllllaa8~-~~no
• .
1817. p. 17. _ T a l ~ fundam
enta
r
condenado pela lnquisi~o (1_6860~1744ta)d.amSã~:aa~:~
negro preso como criminoso, um assassino sádico e necrófilo mas as falas de médicos,
a autora, •A morte de uma pessoa pela outra em nossa sociedade é processada através de um
~ -jarfdlco que serve de mediador entre os acontecimentos, os atos iniciais de violação da lei, e os
1\:18 mm acesso à escolha dos elementos que serão incluídos ou excluídos nas várias versões
. Esta escolha é detenninada por uma série de regras próprias do funcionamento desse
que ele nos diz, através dos processos, nos ajuda a conhecer melhor a sua natureza, do que a
QS,quais se debruça". CORRÊA, M. Morte em Família. Representações jurídicas de papéis
ilG~ GIB&I, 1983. p. 23. Ver também: CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos
cie,danelro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986. FAUSTO, B. Crime e cotidiano. A
1-Raulo (1880-1924). 2 ed. São Paulo: Edusp, 2001.
micro-história não rejeita portanto a história geral, mas introduz a ela, tomando o cuidado de
Interpretação: o da situação vivida pelos atores, o das imagens e símbolos que eles acionam,
nlD, para se explicar e se justificar, o das contradições históricas da existência dessas pessoas
1
US discursos e seus comportamentos foram observados.". O artigo de Alban Bensa é resultado
·:do seminério realizado com o incentivo do Ministério da Pesquisa e Tecnologia francês que
iC!JS,·e,1hlstDriadores em 1991. BENSA, A. Da micro-história e uma antropologia crítica. ln: REVEL, J.
aacal•. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 45.
42
sociedade ou sua representação social, o seu vir a ser, seus modos de exibição. o que
se pretende é encontrar na especificidade de um caso-limite o elo que une o particular
mo aqui delimitado pela história trágica de preto Amaral. Como afirmou Jacques
~ escolha do individual não é vista aqui como contraditória à do social: ela deve
Emilia VIOtti da COSTA, "nem a história é o resultado de uma 'ação humana' misteriosa e
1
como querem uns, nem os homens e as mulheres são fantoches de 'forças históricas', como querem
portanto, é impossível compreender a macro-história sem a micro-história. COSTA, E. v_. da. Coroas
de sangue. A rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras,
êla eacalaa. A e>eperiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 21. Para o aut~r a micro-
lla a anélise de um único caso para se entender uma rede maior e mais complexa de relaçoes, ~mo
por este estudo. Na verdade, a abordagem do itinerário ind~vidual pro~sta pela _m1cro-
a anéllse da e>eperiência coletiva por entender que as estratégias pess~a1s e modalidades
, codificadas e representadas de forma a emitirem significados própn~s porém comuns,
. Para uma avaliação mais detida sobre os suportes teórico-metodológicos de~e estudo
àbras já ciladas, as seguintes: DARTON, R. O grande massacre de gatos. São Paulo:
1986. DAVIS, N. Z. O retomo de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, _1987. Da
, N. Z Hlslórlas de perdão e seus narradores na França do século XVI. _s ao P9:~1o:
't..àbas. 2001. A pesquisa histórica brasileira produzida em tomo d~ ~i~ili~ades da m1croanallti~
em: SOUZA. L M. O diabo e a terra de Santa Cruz. Feitiçana e rehg1os1dade popul~r no Brasil
: Companhia das Letras, 1986; SILVA. E. Dom Oba li D'África, o Príncipe de povo: vida, temp~
dê um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; GOMES, P. F. Um he~e vai
. Casmologia de um ex-colono condenado pela inquisição (1680-1744). São Paulo: Companhia das
L.81:ftíii. 1117.
43
como os negros viviam no espaço urbano da cidade de São Paulo por intermédio dos
o inseridos.
apreaamilálms discursos produzidos por uma elite intelectual atuante, preocupada com a
descortinada, nesta primeira parte, por intermédio das representações produzidas sobre
preto Amaral assinado por Antonio Carlos Pacheco e Silva. Acompanhando os métodos
:ctassa tese pretende ainda uma reflexão em torno das associações e das projeções
ridas aos crimes de José Augusto do Amaral por intermédio das fotografias judiciais
das nos autos do processo, interpretadas como sendo parte de um amplo projeto
entre O discurso médico e jurídico foi decisivo para a construção e disseminação de uma
Cosmopolitismo estigmatizado
Doutrinas racistas e sociedade paulistana
anos de 1920.
trazida pelos filhos das elites que regressavam de seus cursos no exterior ou absorvidas
as asbatégias das instituições de controle social em São Paulo nos anos iniciais da
República, por sua vez estabelecidas para organizar os espaços, as relações sociais e,
pn,duzida em tomo do oontrole social permitia supor que, para além do racismo
• . 0adDnnB aponlB Maria Isaura Pereira de QUEIROZ, o debate em tomo da integração atingida por negros em
. . . . . CBl&ias da sociedade brasileira permite afirmar que "havia um reforço da adoção dos valores dos
blaRCa8 palas nas,as que ascendam, e uma ciligência em se mostrarem, mais do que os brancos, os cultores dos
IIIIIIIIIIDSWIIDnls; e&IIBS comportamentos iam na mesma linha do abandono de traços cuiturais africanos, isto é, na
l:illBllldaapagaraorigem permanecendO apenas como elemento de distinção a cor da pele". QUEIROZ, M. 1. P de .
8a- Ji1PBB . . . - . A ascensão s6cio-ec00Õmica dos negros no Brasil e em São Paulo. ln: Ciência e Cuttura, v. 6,
n.91. :1877. P. 654,,865. Sobre este aspecto, consultar também: LOPES, M. A. de o. Beleza e ascensão social na
. . . . . . . . . . . pai 5 Ir • 1~1940. São Paulo, 2002. 209 f. Dissertação (Mestrado em História) Programa de
~ em Hslória- Ponliffcia Universidade Católica de São Paulo.
47
costumeiro, São Paulo também se apresentava como o centro radiador dos valores de
uma "raça nova de homens disciplinados", produtores de uma nova identidade brasileira,
República Velha era de um gênero peculiar. Impôs aos negros e mulatos múltiplas
resposta dos brancos nacionais à ameaça simbólica que os negros representavam com
Jte, sadio, belo, limpo e forte. Já a raça negra, seria decadente, com seu ciclo
pelos liberais republicanos nos anos iniciais do século XX, as quais dotavam os brancos
da uma natural supremacia, fundaram uma legitimidade que pretendia eliminar não só
154
• DIAS, M. O. L. da S. Hennenêutlca e narrativa. ln: SEVCENKO, N. O Orfeu extático na metrópole. São Paulo
sociedade e cultura nas frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. xiii.
55
• De acordo com o autor, tal situação gerava um branqueamento de ordem moral na medida em que "... uma fração de
negroa que viviam em São Paulo aceitou conceber-se nos moldes impostos pela ideologia racial do branco, uma vez
que avaliavam o proceeso de branqueamento natural e Inevitável". DOMINGUES, P. J. Uma história não contada.
Negro, racismo e trabalho no pós-abolição em São Paulo (1889-1930). São Paulo, 2000. 370 f. Dissertação
(Mestrado em História) Faculdade de FIiosofia, Letras e Ciências Sociais - Universidade de São Paulo. P· 144.
48
moral e dos costumes impostos como sendo ideal social. Conforme salienta Clóvis
MOURA:
• --- ismo, concluíam que a raça negra era carente de qualidades civilizadoras.
r. lnJuallçaa de Cllo. O negro na historiografia brasileira. São Paulo: Nossa Terra, 1988. p. 185.
em destaque foi utilizada por Michel de CERTEAU para designar aquilo que o autor considera como as
;.fazer, corno a percepção anõnlma da cultura ordinária e criativa que desvendam a lógica operatória das
culturais. das quais resultam a sobrevivência mesma das pessoas comuns. Para um aprofundamento
~-C&RTEAU, M. A lnvançlo do cotidiano. Artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
49
como cidadão, como um igual. Tratava-se, portanto, de uma decisão política, cuja opção
"redenção" seria dada pelo trabalho e tutela de um patrão e, mesmo assim, a pobreza
em que viviam os negros e sua "condição racial" era fonte constante de preconceitos
pois, diretamente associada aos perigos, aos vícios, ao crime, a maldade, a escravidão,
~ffl"~-ns e situações que a nova ordem buscava anular das redes de sociabilidades,
CI. F1. Negros e brancoa em São Paulo (1888-1988). Bauru: Edusc, 1998.
, P. J. op. clt. p. 97. Interessante retomar, como o autor mesmo o faz, o depoimento de D. Risoleta
do preconceito e segregacionismo exercido sobre os negros. ''Todo o domingo ia passear no
, OI pl'8toa passeavam para fora e os brancos para dentro do jardim. Eu dizia assim: 'Por que é que
108 é que se separaram? Preto não tem vez dentro do jardim?' 'Não ... a gente acostumou assim .. .'
1uando a gente cansava devia entrar no jardim e sentar no banco. Nunca aprovei isso, achava que
'· Conaultar: BOSI, E. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: Edusp, 1987. p. 307.
50
imoralidade e ociosidade nas quais os negros conduziam suas vidas, como observavam
interétnicos que sem dúvida existiram mas que foram sufocados e negligenciados.
dos negros, o racismo tomava implícita a violência e o assédio moral mascarados pela
...00> de noções como harmonia e liberdade. Articulando-se em meio ao debate
,m~e0&$Sário, por isso, que o homem negro se firmasse primeiro como ocioso, para
51
No decorrer das décadas de 191 O e 1920, a cidade de São Paulo passa por
requerida, qual seja, de uma sociedade livre e harmoniosa, na qual cada classe
cumprisse sua função no grande "corpo nacional" regido pelas instituições republicanas,
Nesse processo, a imensa maioria dos negros foi alijada sem, contudo, se perverter ou
üir. Como poderá ser observado, esta era a imagem projetada mas nem sempre
nculavam os negros a tipos humanos inferiores não era mais algo inovador,
sua experiência nacional estava, primeiro sob a Monarquia e depois sob a República, em
total desacordo com as realidades sociais e políticas que esses princípios procuravam
republicana.
80 • CARDOSO, F. H. Capitalismo e escravidão no Brasll Meridional. São Paulo: Difel, 1962. p. 279. Em uma ve~ão
diametralmente oposta a Imprensa negra paulistana: "... ser preto em nossa famosa capital, constitue ~m grave cnme
perante certos elementos, sendo mesmo isso motivo bastante para os representantes da nossa heroica raça serem
alll vlctlmas deserto repudio e constantes vexames. (...) e que por ser preto não encontra emprego em parte ~lgumal
Vae és fabricas e não lhe dão serviço, muitas vezes nem lhe deixam falar com os gerentes. Procura annuncios nos
jomaes, acorre pressuros aonde precisam de empregados e embora chegue primeiro do _que outro qualq~e;
candidato, por ser de cor é posto á margem e recusado (...) Que homens pretos da cidade estao soffrendo de u
º·
guerra muda e odiosa, é coisa multo sabida e amplamente vulgarizada". O Kosmos. São Paulo, 19.1 1924
52
estudado, uma crítica frontal aos ''vícios do regime democrático", impondo uma
tennos, deveria ter sua cidadania tutelada pelo Estado pois, considerados
um grupo anacrõnico, onde o trabalho manual aviltara os que a ele tivessem sido
dessa natureza teciam os "...poderosos fios da trama que ligou a posição republicana
projeto civilizador positivado pelo trabalho urbano. Contudo, as imagens que projetavam
11, BRl!SCIANI, M. S. M., O cidadão da Repllbllca: Liberalismo versus positivismo. Brasil: 1870-1900. Revista da USP,
Slo Paulo, n. 2S, 1993. p. 136.
83 • 0a Jomala permitem evidenciar alguns aspectos significativos à reflexão em tomo da representação dos negros na
cidade modemL Aa lnformll9ÕN Indicam que a desvantagem do negro em relação ao branco era abissal. O jornal O
Clartm da Alvorada. ainda que em 1930, afirmava: "... Todos se colocam contra o preto. Elle é despresado, humilhado
em toda a parte. O extrangeiro maltrata-o e nlnguem vem em seu auxilio, nem mesmo os brasileiros. Todos querem
exlermlnar o negro. Na casa do estrangeiro elle é sempre repudiado, não lhe concedem nem um emprego, a não ser
em mlsterea lnferlo198. Não se cogita alll conhecer as suas aptidões.". Citado por DOMINGUES, J. P. op. cit. P· 87.
~ 54
""
)
No caso específico da cidade de São Paulo tal processo tornou-se ímpar. As
• Durante toda a década de 1920, até mesmo depois, as ofertas para o serviço
recia legitimar a perversa exclusão sofrida pelos negros. Porém, ainda que
revelados nas fotografias da época fora do foco central das imagens que pretendiam
na cidade de Slo Paulo. p. 17. Para a autora, "... a proximidade com as linhas férreas que
de grandes annazéns possibilitava a emergência de empregos aos negros. Para os homens,
........,1'88 e canagado1'88, para as mulheres, a proximidade do bairro Campos Elíseos, oferecia
·1'al:Nllbo domésllco nas luxuosas residências. Entre estes, muitos moravam nas proximidades da
~ • llnha fel'IT88. Eram chamados de os 'negros da Glette', 'os bambas' da Barra Funda,
afDl9affalca e valentia, havendo entre eles bons jogadores de Mebol, pertencentes ao Clube São
.Confanlll,._t...._
98
._ ~.lbld.
.·.•.·.:-?""'º
•. .cabe ponderar que a
cio 1lpo....,., CJ011llclerado pesado,
desvalorização de certas ocupações não ocorria apenas por causa
grosseiro, sujo e mal remunerado. Possivelmente, havia uma estreita relação
entre . ........,. que -:aoatumelramente os exerciam, geralmente apontadas como brutas, feias, perigosas,
lgno11U1188,.•IIOIIIUll'Kkn:11,a maneira cio viver bérbara, expressa por suas vestimentas e comportamentos, assim como
pela daaquallllaal;lo ·delllas allvldades. Em outras palavras, se as pessoas eram julgadas pelas ocupações que
poaeufam,"O·lnv&nlO 1ambém ocon1a: as ocupações eram qualificadas pelas pessoas que as desempenhavam.".
SANTOS,.J ;..G. F. das. op. clt. p. 171.
56
A população negra acabava por desfazer o jogo das elites políticas e intelectuais
século XX, porém, de forma inusitada e menos visível. A rapidez com que São Paulo
endêmicas e epidêmicas seriam maior e mais constantes, tanto para preservar a saúde
da população quanto para apagar a péssima imagem do país no exterior, ainda visto
pelas lentes dos viajantes como um local identrficado pela mistura indesejável da raça,
de viajantes europeus que conheceram cidades como São Paulo, cujos comportamentos
Marcado por pequenos furtos, assaltos, pela prática do sexo venal, ações
desviantes muitas vezes levadas a termo pela condição inóspita em que viviam os
87 .Todavia, como acentuou Maria lnez Borges PINTO, as estratégias de controle não eram exclusivas das
popul&QÕ88 de negros. A questão da falta de trabalho atingia outros sujeitos que viviam condições
sinilares para quem a autora chamou de "... homens sem qualificação profissional, ex-desocupados, operários
eapeclalizados que não encontravam emprego fixo pennanente, imigrantes italianos, portugueses, espanhóis,
alemlae, p191Da, mulatos, brancos e brasileiros de origem humilde valiam-se de sua força física, boa saúde e
Jwenlude, para ealabelecer-se por conta própria como carroceiros e carreteiros (...) Traziam materiais da zona rural
que clruundava Slo Paulo - dos rios, pedreiras, florestas e matagais - essenciais à construção da cidade. Areia e
pedi& que tiravam das margens dos rios Tamanduateí, Tiête, Pinheiros, etc., madeira e tijolos, eram por eles
~ "plPÍl ·• casas da classe média, do operariado e para os palacetes em construção nos bairros
~ '.-,d-.;,~µeala 'com suas ruas calçadas de paralelepípedos, como a Av. Paulista' (... ) Muitos deles,
~~ matertals para possuir animais de tração, puxavam, eles próprios, as suas pesadas ~rretas,
ex.,1,.~MP•t~ho extenuante, com conseqüências dramáticas para a saúde". PINTO, M. 1. B. Cotidiano e
~ . ( ~ do trabalhador pobre na cidade de São Paulo. 1890-1914. São Paulo: Edusp, 1994. p. 142.
57
mundo do trabalho urbano, emergiu como questão central a ser enfrentada pelos
controladores da ordem.
disciplinar. Isto é, ao desocupado, aquele que não dispunha do trabalho formal como um
meio de subsistência e endereço fixo recaiam as preocupações dos vários agentes que
88 . ~ ~ ._ _ ,, pelos anos 1890 a 1915, o estudo de Heloísa Faria da Cruz pennite compreender o significado
-~•ri:JJ-..da polícia em relação ao contingente de desocupados da população de São Paulo, abrindo
,1,.,.._ 8'm tomo do lugar da repressão policial na constituição das relações de dominação no período, o
qlf~ fli'J'f~daoJda,,pennelarn as relações e as estratégias de repressão praticadas seguramente até o final da década
d•ii1 -ICS.P1Wli,H. de F., Mercado e Polícia- São Paulo, 1890/1915, p. 118.
58
Desse modo, a característica maior do vadio não era a vida errante mas a
fixo simbolizava uma condição diferenciada à polícia e aos institutos criados para o
policial optava por uma noção diferenciada do cumprimento do dever, isto é, prender
para prevenir, definir o encaminhamento do possível delito ou dispensá-los, "... não antes
O aumento da criminalidade na cidade de São Paulo tornava cada vez mais forte
a idéia de que a delinqüência era fruto da pobreza visível entre os despossuídos, sempre
:ificados como pertencentes ao universo aviltado da prostituição, como disseminador
social e a conseqüente reação repressiva da polícia Nicolau Sevcenko desvela este tipo de
•~•• •por vezes, dentre as vítimas que a polícia arrebanhava pelas ruas, alguns eram
ido os mais fortes ou aqueles que porventura despertassem o instinto de vingança dos policiais, e
1Adldos a agentes encarregados de recrutar mão-de-obra de qualquer tipo para os pesadíssimos
. dos prolongamentos da Estrada de Ferro Mogiana, em pleno sertão interior de São Paulo."
•Olfau extétlco na metrópole. São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo:
, 1992. p. 147. Mesmo tratando de um período imediatamente anterior, Sidnei Munhoz
os alo& de brutalidade que a polícia da cidade de São Paulo costumeiramente mantinha em
moa. MUNHOZ, S. Cidade ao avesso: desordem e progresso em São Paulo, no limiar do século
197, 290 f. Tese (Doutorado em História) Programa de Pós-Graduação em História - Faculdade de
·Olênclas Humanas da Universidade de São Paulo.
,1'c,r debabcD dos panos - a máquina policial e o problema da infância desvalida na cidade de São
■11)., Rtwlala Braallelrade História, São Paulo, v. 9, n. 17, set. 1988/fev. 1989. p. 135.
59
negros, eram vistos sempre como suspeitas. A historiografia que recobre o período,
situações vividas pela grande maioria dos negros, era entendida como embrião da
a modernidade das relações produziriam o crescimento da loucura, das taras, dos vícios
71
e dos crimes.
71
• Para MARQUES, "A eugenia, remodelando os corpos físicos (re)modelaria o corpo social, pelo 'revigoramento'
orglnlco e pela 'construção' da consciência do cidadão. Estabeleceria o lugar dos diferentes grupos na sociedade
acaA&ndo-lhea porém com a possibilidade de outras posições assim que atingissem o branqueamento, a disciplina e a
normallZ8flo. Se a cultura Jurfdlca e o direito político já se encontravam colocados, o fracasso decorria das agruras da
viGla·lndlvidual, dos 'rnystertos da geração humana' que se realizava sem os controles da ciência, sem o olhar atento
para'& ,'sementeira da nação'. Desta 'missão' encarregar-se-iam os médicos, os higienistas dotados do "'.MARQUES,
V. A. B. A medlcaliza91o daa raças. Médicos, educadores e discurso eugênico. Campinas: Unicamp, 1994. p. 44.
60
A população negra era nos anos iniciais da República assimiladas pelas leis
~\~ 1111 8lo Paulo 1822-1940. São Paulo: Annablume, 1999. p. 146. Interessante, s~': o
llllllíl.•o~ de Luiz Cartas Rocha no qual se pode perceber como as origens destas instrtuiçoes
rltlka do trabalho nas sociedades de classe com as famosas "wOrid'lauses", consideradas
·~•primeiras prtaDes, construídas para controlar as pessoas pobres e c:tespssuídas que viviam
.. ·. . formal. ROCHA. L e. A prtalo doa pobres. São Paulo, 1994, .., f. Tese (Doutorado em
, . . . . .:Pelaologla- Universidade de São Paulo.
61
tempo na sociedade paulistana como, "Cada macaco no seu galho", "preto que nem um
carvão", "negro não é gente", "feder que nem negro", ''frango de macumba", ''tição",
lançados aos negros indicam a tentativa, numa sociedade plural, de colocar o negro em
seu lugar, ou seja, próximo da natureza; posição que ocupava no período escravocrata,
negros foram rechaçados da sociedade pelas elites republicanas que viam neles a
71 • SILVA. J. C. G. da. 0a sub urbanos e a outra face da cidade. Negros em São Paulo (1900-1930). Campinas,
1980, Dlalertaçlo (Mestrado em História) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - Universidade Estadual de
74',
Qall'lpln•·
~UIR, A. Uma hlatórla de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo, 1999, 375 f. Tese
.~ tl,dp,em Hlatórla) Faculdade de FIiosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo.
62
afirmar que a anulação das culturas africanas nas manifestações da identidade nacional
era algo almejado pelas elites políticas e dominantes pois, a população negra e suas
cidades mas o Estado republicano. Renato ORTIZ permite observar como o debate
sobre a identidade nacional está ligado à construção do próprio Estado brasileiro, bem
como perceber as matrizes teóricas pelas quais a cultura local assimilava a idéia do
com seus valores inquestionáveis, quase sempre eram sufocadas ou minadas pela idéia
Mas elas existiram, como revela um dos artigos publicados pela imprensa negra
amanhã será a de um verdadeiro condenado social( ... ) Quem cala consente, e por isso
é que precisamos agir com segurança." Neste sentido, os conflitos entre brancos e
~,~:
ri,-gr.os na cidade, provocados pela desigualdade costumeira, ao mesmo tempo
r.~,..~:,:._~j ~:·_-\
:Q,11111'11 bl8811elra & Identidade nacional. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Paulo, 21.11.1924. p. 2.
63
controle social apresentavam o Estado como legítimo defensor dos interesses públicos,
desejada era a de uma sociedade que caminhasse para o progresso, isto é, que
classes.
físico, Isto é, as marcas e traços fisionômicos dos homens e mulheres, identificados num
.,.,. ROMERO, M. Aa nonnu rn6dlcu em Slo Paulo, 1889-1930. Projeto Hlatórta, São Paulo, n. 13, 1996. p. 170.
63
controle social apresentavam o Estado como legítimo defensor dos interesses públicos,
desejada era a de uma sociedade que caminhasse para o progresso, isto é, que
classes.
• M;i. M 'nonnas médicas em São Paulo, 1889-1930. Projeto História, São Paulo, n. 13, 1996. p. 170.
..
localização e captura dos criminosos, já que expostos às técnicas da quantificação
racial era considerada um dano. "O mestiço, enquanto produto do cruzamento entre
raçaa desiguais encerra, para os autores da época, os defeitos e taras cometidos pela
herança biológica. A apatia, a imprevidência, o desequilíbrio moral e intelectual, a
aeriam, desta forma, qualidades naturais do elemento brasileiro". 79
Bem ant8I de 1930, marco que alguns historiadores oonsideraram como inicial da
no Brasil, a sociedade paulistana já vivenciava o cotidiano do trabalho
' .,: ' ..-no que e1n cond19õa1 desfavoráveis a sua organização, a pobreza vivida
..,.
,,_
. ., "
~
·º · parcela doa nacionais e negros libertos impunha-lhes a situação de
na Oldern 1ccl1I 1'8JX.lblicana, aumentando as distâncias entre ricos e
·· · · ·s• 1111 doe m6dlcaa mais ilustres da cena paulistana, dr. Antonio
,.,J''.( ' cllc
,,_..J.-"{~ ,f
- "1\
.,...
...
J
.,...
... 65
,J'
...
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_,...
Para MOAEL, a degeneração seria um desvio mórbido que reconduziria o
...
..;
,
homem a um tipo primitivo, como o característico essencial de se transmitir por
.., herança. As idéias do criador da doutrina da degeneração encontraram em
.., MAGNAN um verdadeiro paladino e em MAX NORDAU um vulgarizador, os
- ....
....
..,;'
quais muito contribuíram para a generalização da teoria, que não tardou a
invadir todos os campos da medicina, sobretudo mental, refletindo-se sôbre a
criminologia e o direito, para constituir depois tema predileto dos literatos. Para
""I
_, os propugnadores dessa doutrina, a degeneração não seria mero acidente
ocorrido na esfera psíquica do doente, mas traduziria a existência de pesadas
.,,,""\ taras primitivas, originais, atingindo não só a família mas também a raça.
....•
J MOAEL chamava a atenção para os numerosos sinais físicos conseqüentes aos
""'\
. desvios embriogênicos ou malformações, constituindo o que êle denominava
4'
estigmas de degeneração. A tais estigmas físicos juntou êle outros intelectuais e
..... morais, com os quais estabeleceu encadeamento e dependências recíprocas. 80
J
.....
.~
centro os nacionais pobres ou os que viviam nas margens, se esgueirando nas fronteiras
vivendo e morando com outras pessoas em cortiços, dividindo quartos ou mesmo nos
80 • PACHECO e SILVA, A. C. Psiquiatria Clínica e Forense. São Paulo: Renascença, 1951. p. 421. A obra em
referencia faz parte do acervo documental utilizado nesse estudo como fonte de pesquisa pois, registra os crimes de
preto Amaral. Todavia, o debate em tomo da obra citada - um compendio de psiquiatria forense publicado pelo
médico que assina o relatório sobre o caso dos crimes de 1926/1927 - explora o cruzamento das concepções
médico-legais da criminalidade. Cabe destacar, entretanto, que o compendio apresenta um conjunto documental de
cinqüenta casos analisados não só pelo psiquiatra forense mas por Franco da Rocha, Vieira Marcondes, Rebello
Neto, Olinto Matos, Virgilio de Camargo Pacheco, entre outros médicos psiquiatras e peritos que atuavam na cidade
de São Paulo juntos aos institutos criados pela Administração Pública nas décadas de 191 O e 1920.
.
66
...
...
- encaradas pelas políticas médicas como propiciadoras do contágio e da proliferação das
-
- doenças, dos vícios, da superstição e do desvio sexual. No decorrer da década de 1920,
- os organizadores da cidade buscavam alterar, redefinindo, as formas de agir, de pensar
-
....
...,. e de sentir do conjunto da população pretendendo impor um novo modelo de
'"'
- comportamento social, erradicando tudo o que fosse contrário à ordem hierarquicamente
costumes.
""'
--
Hierarquias da exclusão:
....
j
........
cidades. Com tecnologias singulares, a modernidade expressa nos anos vinte enfatizava
81 • o como citou NicOlau SEVCENKO, "A preocupação de governantes e governados é derrubar para fazer maior e mas
bOnito. O que é muito louvável sem dúvida. A questão porém é que esse bonito é sempre importado. Daí o desastre
estéticO-urbano. Lembram-se de construir uma catedral. Está certo. Mas a quem encomendam o projeto? A um
alemão. E o alemão já sabe surge com uma coisa em estilo gótico. E essa coisa é aceita e está sendo feita.".
MACHADO, A. A. apud. SEVECENKO, N. Orfeu extático na metrópole. São Paulo sociedade e cultura nos
trementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 119. Ourante a década de 191 O, o centro de São
Paulo passou por uma remodelação em seu espaço urbano, sobretudo a região central e as várzeas como a várzea
do Carmo, tradicionalmente habitados por negros despossuídos. lbid. p. 141.
•
67
.....
-. Identificada por intermédio de um crescimento econômico intenso, a população
'"':i
.., da cidade de São Paulo, durante as duas primeiras décadas do século XX, aumentava
..,
-., significativamente o seu contingente causando um movimento de expansão da malha
"-1
.J urbana que, sem uma correspondente organização administrativa, passou a abrigar as
---.,,
pessoas pobres, trabalhadoras, no melhor do termo, operárias. Ao mesmo tempo em
"""I
que a cidade se expandia, anexando novas áreas de ocupação, o núcleo original de São
~
""_, Paulo passava por uma vasta remodelação de suas praças, ruas, avenidas e arquitetura
~
que, por sua vez, contribuía para o processo de alteração dos espaços e das
~
sensibilidades urbanas na medida em que o local habitado representava a condição
~
inferiores.
Maria Stella M. BRESCIANI explica que desde o século XIX as grandes cidades
vagando por elas recusando-se a subordinar suas vidas aos imperativos exteriores que
82 • BRESCIANI, M. S. M. Metrópoles: as faces do monstro urbano (as cidades no século XIX}. Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 5, n. 8/9, set. 1984/abr. 1985. p. 39.
•
68
aos imperativos exteriores era levada às últimas conseqüências. Espaço por excelência
negros como reveladoras da diferença mas que esta também existia entre eles.
cidade. 83
brancos como mecanismo de ascensão social. Assinado por Moyses Cintra e com o
83. FERNANDES, F. A lntegraçlo das negros na sociedade de classes. São Paulo: Dominus Editora/Editora da
USP, 1965. p. 4.
,
69
Hoje, infelizmente, ainda se vêem passar, pelos arredores, mesmo no coração da cidade,
muitos patrícios que são escravos, não daquelles senhores carrascos, mas dos vícios que
os tomam incapazes para tudo: principalmente ao trabalho, que é a base essencial da
nossa vida material. Merecem compaixão,causam-nos dó! Quais os motivos que os
obrigam a andar maltrapilhos, cobertos de chagas nos bancos públicos e sendo muitas
vezes pensionistas de polícia? E porque se deixaram dominar pelos vícios. Pela
embriagues constantemente, vemos chefes de família abandonarem seus lares: jovens
que poderiam gozar de uma velhice feliz, hoje, porém como andaml. .. tomando-nos
inúteis à Pátria....84
da cidade uma forte divisão e não um bloco homogêneo. Conhecidos como negros de
endereço fixo como inúteis, incapazes. Nesse sentido, é possível dizer que as mudanças
consumo era restritivo, inalcançável para a imensa maioria dos negros que viviam na
cidade. Tal aspecto pode ser observado por intermédio da análise dos registros que
Uma invenção maravilhosa! ... "O cabelisador." Alisa o cabello mais crespo sem dôr. Uma
causa que até agora parecia impossível e que constituía o sonho dourado de milhares de
pessoas, já é hoje uma realidade irrefutavel. Quem teria jamais imaginado que seria
possivel alisar o cabello, por mais crespo que fosse, tomando-o comprido e sedoso?
Graças a maravilhosa invenção do nosso 'CABELISADOA', consegue-se, em conjuncto
com duas 'Pastas Magicas', alisar todo e qualquer cabello, por muito crespo que seja.
Com o uso desse maravilhoso instrumento, os cabellos não só ficam infallivelmente lisos,
mas também mais compridos. Quem não prefere ter uma cabelleira lisa, sedosa e bonita
em vez de cabellos curtos e crespos? Qual a pessoa que não quer ser 85
elegante e
moderna? Pois o nosso 'Csbelisador' alisa o cabello o mais crespo sem dor.
70
no conjunto da sociedade paulistana, mesmo que para isso tivessem que assumir
buscava, constantemente, uma negociação com o universo e cultura dos brancos cujo
Se houve perdas e se essas não podem ser generalizadas tampouco devem ser
condição de cidadão, bem como a identificação dos significados dessa condição para o
segregacionismo e uma evidente perseguição aos negros, como permite entrever José
A gente vivia ali na Barra Funda, mas ali havia um delegado, chamava dr. Carlos Pimenta,
o pai dele tinha sido morto por escravos. ( ...) Então, nós da Barra Funda, nós não podia
ficar parado, três quatro parado numa esquina, parado num portão que a polícia vinha e
pegava nós, e o pior é aue depois não achava não, porque levava, deportava, mandando
8
para qualquer lugar ai.
negros de elite e a plebe negra, da qual seguramente Amaral fazia parte. Tal divisão
71
Frente Negra Brasileira que reconhecia nos negros da plebe os entraves que os
impediam de ingressar no mundo dos brancos, impondo-lhes a culpa por não serem
evitado. Tal recusa fundamentava-se nos prejuízos morais que seriam acarretados não
só ao casal mas aos familiares e aos filhos das uniões inter-raciais, os quais viriam ao
Na rua Onze de Agosto o proprietário da Officina de encanador, sabbado ultimo, não teve
em colocar a porta da sua casa, um cartaz espalhafatoso, impresso em letras garrafaes
com os seguintes dizeres: luto pela morte de meu filho fulano que se casou com uma
negra. E dessa forma pretende o homem humilhar o próprio filho que, nascendo no Brasil,
é brasileiro, fechando a sua officina, pelo fato de ter o rapaz casado com uma jovem que é
87
uma moça distincta e educada, um perfeito typo de brasileira morena.
De certo que havia em São Paulo casamentos inter-raciais, porém, esses eram
rechaçados pela sociedade mais ampla que encaravam com desprezo as uniões entre
brancos e negros, considerada, por muitos, uma aberração, uma atitude de péssimo
gosto pois, os frutos dessas uniões acarretariam trazer ao mundo pequenos infelizes
um status social capaz de lhes oferecer uma vida sem os sofrimentos da discriminação,
dos insultos e das restrições comuns aos que não conseguiam disfarçar a mistura racial.
88 •SILVA, J . C. G. da. Os eub-urbanoe e• outra face da cidade. Negros em São Paulo (1900-1930}. Cotidiano, lazer
e cldadal'lla. C&mpinas, 1990, f. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas -
Universidade Estadual de campinas. p. 93. Depoimento do Sr. Zezinho da Casa Verde, 71 anos.
87 • Pragreeeo. São Paulo, 31 .12.1929. p. 1. Um mês depois o mesmo jornal publicava: "...há dias, na Metrópole
paulistana, um negociante, em slgnal de nojo, cerrou as portas do seu estabelecimento commercial. Um cartaz
colloao com letras martinellias, explicava aquelle acto, o casamento de seu filho com uma negra.". Idem. 31.01 .1930.
p. 1.
,
72
um relacionamento amoroso com pessoas negras, a vida que se seguia era marcada
ordem moral e social da cidade de São Paulo nos anos da década de 1920. Havia um
controle persecutório sobre os negros que, para tanto, tinham que se organizar de
maneira diferente daquelas ditadas pelo modelo de organização social dos brancos.,
incapazes de serem absorvidos pela 'cidade moderna' ... ", como aponta Mônica Pimenta
88
VELLOSO.
que deveriam ser alterados, substituídos. Entretanto, uma fração dos negros que viviam
cultural dos brancos até por perceberem nesta brecha uma possibilidade de conquistar o
aflnnar que alguns negros atuavam como delatores, trabalhando para a polícia na
• . VELLOSO, M. P. As tias baianas tomam conta do pedaço. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. N. 6, v. 3, p. 207-
228, 1880. p. 208. Mesmo batando da cidade do Rio de Janeiro, a autora permite entrever um dado importante para
• pen1ar a quaalAo da organização social dos negros que, como evidenciado no texto em referência, era tarefa das
'11.alheNB amrno• pois oa homens eram "estradeiros". Para tanto, autora considera que foram as mulheres
b&iluionaln,enla que Incorporaram o poder da construção das redes de sociabilidade criando canais de comunicação
e6clo pollllca. 'A figura do pai, quando não era desconhecida, tinha pouca expressividade. Neste contexto, cabiam
eempr9 à mulher • maloraa responsabilidades e encargos. Geralmente, era ela que assegurava a teria de relações
do cual, cu)o rompimento põe em rlaco a própria sobrevivência do homem.". lbid. p. 211.
,
73
Augusto do Amaral. Nesse tempo, essa função era praticada pelos chamados
dos negros ou da atuação dos "secretas". Se observada, quase não há distinção entre o
investigador Philadelpho que se veste, se posiciona, se faz ver e notar de forma tal a
,pa.racer como seu "superior" nos hábitos, nos usos, na pose, assim como no valor
1
• : ba:s d1baldoe por Jorge AMERICANO, permitem um olhar mais acurado sobre os chamados "secretas". De
• • aamo o memorlallata, "o8 'aecretas' pertenciam à polícia secreta e eram incumbidos de fiscalizar as estações
clD """°
c19;Jats• de feno• oe lugares de ajuntamento, à procura dos vadios, batedores de carteira, passadores do conto
e outras chantaglstall. Tais as funções oficiais do 'secreta' era mais ou menos o que hoje se chama de
i •it,1rhr'. O que o caracterlzaVB era a maneira de se vestir, uma gravata vistosa, muitas vezes flor na lapela,
. . . , diado a um lado da a;tnça e uma grossa bengala na mão(...) outra função de relêvo era acompanhar
..641dldn pololall a lugarea onde poderiam encontrar má atmosfera, como a penetração na casa onde se
L af llllMI uclnr o crtmlnoao, ou no pétlo elas tétricas onde se encontravam os grevistas. Outra função dos ''secretas"
lirà • de guana-ooalll8 de alguém que precisasse dêsse serviço, e estivesse nas boas graças da polícia."
AMIPUCANO, J. op. c1t. p. 148.
90• e» CPUMES de pMID Amalal. 1927, p. 28.
74
período, uma forte distinção provocada pela moda fazendo das roupas critérios de
identificação das pessoas, como uma categoria distintiva entre os homens de bom tom e
sapatos, buscavam uma certa equiparação ao mundo e valores sociais dos homens e
em São Paulo poderia estar na distinção assinalada por Florestan FERNANDES, que
1,
,~,anor. 91
rnuc:llnçaa na vida eocial dos negros que se projetavam no mundo dos brancos sem,
92
CC/1'111::k», u1.ue::rae brancos em seus costumes e valores, apenas misturando-se.
• . . .W!DEI, fl. A 11111.-,.VID • Negra na aocl1dllde de cla1111. São Paulo. vol. 1. São Paulo: Atica, 1978
11
• . MsafflD tt lE 41D 1npucllcllT1i nl8 a. 800i1t8ClmefflO outro6, o esrudo de Eduardo Silva permite ooservar outras
aocl■I r-r■
í,I o t 1 1 tn a 1e n 11i;to oe negroa que sobreviveram aos horTOres das guerras como, a exemplo de
D'Mta■•
01:111 li ciljallO de NL 111UdO, eot,revtvente da Guerra do Paraguai (1864-1870). SILVA, E Dom Oba li
D'Mlna, ,., Plt•lpe d&. Po"JO.Vld■, 11"1)0 • pensan,ento de um homem livre de cor. São Paulo: eompanhra das
L lll , 1117, eor.-,~: AZEVEDO, E. Ort.u de caraplnhll. A trajetória de Luiz Gama da imperial cidade
dl llD Pw!L cu,_,,,. Uo"I c1■ \J111C8fflP, 1999.
.
75
••=C►:la,
O
• Ç
•Õ•e
:.sc que faziam dos pobres e marginais os disseminadores das doenças.
94
GQIIIIGUES. -1. P. ap. clt. p. 164. É interesaante notar que. para o autor, a elite negra era proveniente dos estratos
lnflmlldllllD8 da eltNILlr& de clarn:s, como jornalistas, funcionános públicos que assumiam cargos nos útbmos
. .~•zrsz, ltn:llcal. wl1lga8 ffl0908 d& rec;ado em casas de família, apadrinhados por gente branca e que não mediam
~ pall. l?llkdtilem a. cornp0f18n41rtns dessa mesma população e cultura Para o autor, a elite negra não
~ ~ uma nllnorla qua datirhl oa meioe de produção material. O termo "elite negra" deve ser entendido por
d9 tlta sutAkloa ssp1clflcoa. "...primeiro; político, porque este grupo se configurou como dirigentes
• canuidsc'e e eram aceitos como tal pelos brancos; segundo, formal-cuttural, porque este grupo era
alfFi'.:ado; tel'091ro, ldeotógico, porque este grupo reproduzia muitos dos valores 1deol6g1cos da
~
~
. . . . .~r .,,-_1c1sm. p. 183.eoon6lnlcO • evc,luçlo. São Paulo: Nacional, 19n. Sobre o aspecto da ampliação
. I\ Dzsrrratlllffltt".ID
1►- .nwr. llll cldst':, NicalaP $eVCenko acrescer,ta que "Desde a cnse da abOlíção e o advento da República,
nt
li• r Ufflk pi._ eottenl9 oa c:tonoe de terrenos e chácaras na área urbana lotearem, arruarem ou venderem
,.-. 221• 1m nus popt1cl1 cl11. A11im, foram se actensandO bairros jé existentes, se formando outros novos e
'~
. rúllla& aalor,lsh ma'■ 111 11..:1111 - Santana. Glória. São Bernardo e São Caetano. Pelas várzeas.
aw 411nt1:ro • llnhss 1ie......, ee in1181aV8m as indústrias e se formavam os bairros operários - Brás, Pari,
llt 1 m, ....,.. 8am Rlillro, Bana Funda. Agua Branca. Pelas colinas ad1acentes ao centro se expandiam os
- - •1:1111121 mtlln. •t11ern1adce de bo!IÕ■I mais antigos de casebre e gente humilde, enquanto, em tomo do
• ,_... 81nlalD. ~,-1rida Ang6lica • Avenida Paulista, se localizavam os loteamentos mais abastados.
_ _ . tlrd .ae p.::J1?1(oe lie grandes eobradO& e mansões, como campos Elíseos, H1gien6polis e Cerqueira
a1,1r·N. EVCENK(). ap. c1t. p. 123.
76
Esse tipo de raciocínio se impunha como a saída para um país que buscava
construir uma identidade a partir de uma outra representação de Brasil, agora, como um
1-I P•a. ;•o• ,,aodemo e em consonância com os ditames científicos que regulavam a vida
clvllzeda, racionalizada e disciplinada. A histo riografia que recobre o período indica que
' ,. ·,
• , . . ...,_. PUI IWIDIB. •fl.11;,1111;10. oa p6d1N1 p1'Nco8 e oa círculoS politicamente aliVos da SOCtedade
., ......... e lns!ll 1 1111 li • "'" drama material e moral que sempre fOra claramente reconhecido e
· • nazo • p1na10 d1 1tlo que lle NlllYB em condiçõeS de criar por s1 e para SI mesmo"
P.AL Ili ZJIY '.Dh&ON N .ala C:1:ch ...._ c:111111. São Paulo: Dominus/EDUSP, 1965. p. 3 .
,
77
.....
~
-· . Para proteger-se das chacotas e segregacionismos os negros também nutriam as
~
~
-""'
divisões pois, com a importação de mão-de-obra européia, o negro passou a ser
~ dispensado, substituído e trocado pelo imigrante branco. Mário LAGO aponta em suas
~
..-
- :"'\
memórias que "...a turma não gostava de muito corpo estranho naquilo que representa
seus domínios por uma noite. (... ) não era nada cordial a voz de um crioulo da roda ao
lado, justamente o que tinha um par de ombros que ia de uma calçada à outra,
intimidando: - Só queria saber o que esses bichos de goiaba vieram fazer no lugar da
gente." 96
um sentido de unidade para o Brasil. Tal preocupação visava imprimir a idéia de uma
pennltiu observar que as elites políticas e dominantes pretendiam eliminar a idéia ainda
corrompidos e bestiais.
11 • I.Atid;~íf\ -~-"!' • • d9 b1l1■ 11b-ta. Rio de Janeiro: CMlização Brasileira, 19n. p. 23.
.,
78
para Nicola Biancho no bairro da Lapa. Identificado como sendo um homem de hábitos
psiquiatra que relatou o seu exame apontava: "na verdade o obreiro não era mao, mas
Itália, Paschoal tinha 32 anos quando foi preso e enviado para o Hospital de Juqueri, no
Judiciário - tema q.u e será abordado adiante - com "Sgnaes clinicas de syphilis
Italiano egresso da "guerra européia" indicavam que o mesmo tinha uma vida
dearegrada, ausência do senso moral, hábitos irregulares. "Assim, é que dormia certas
noltae na alfaiataria, outras num quarto que alugara e freqüentemente não se recolhia,
p&l'afflbulando pelas ruas, accompanhado por meretrizes de baixa classe (... ) essa
61Uma asserção parece ser verdadeira, segundo apurou a policia, a qual encontrou no
quarto de Paschoal photographias em que elle se fazia acompanhar por pretas de
17• PACHECO• SILVA, A C. Imigração e hygiene mental. ln: Archivos Brasilelros de Hygiene Mental. São Paulo,
1821, p. 27-36, Confonne aponta o rasumo do artigo em questão: "O autor, Director do Hospital de Juquery, em S.
Paulo, dlpola de ae referir a dois outros trabalhos publicados no 1° número dos "Archivos" sobre o mesmo thema,
lnllD na nec1111dade de se estabelecerem medidas rigorosas, impedindo o ingresso de indivíduos perigosos ao
melo aactlll blulleiro". Idem. p. 35.
•
79
.
"" prostíbulo.". Mas porque o italiano Paschoal mesmo tendo matado duas pessoas na
m igravam para o Brasil dirigia-se para a capital paulista. Tomada um local do perigo
entendiam que a solução seria a de extirpar o mal pela raiz. A questão da pobreza e da
sublevadores e comunistas.
Paschoal, desterrado, marcado pelos horro res da guerra, vivendo quem sabe as
lembranças de sua província entregava-se ao álcool talvez para apagar suas amarguras,
o sentir-se estrangeiro em terra estranha. O médico, em seu diagnóstico, afirma ser o ex-
,,.,,,,. ,,. favoravelmente à adoção de medidas mais acauteladoras em relação aos imigrantes.
~~·· ,, ' '·' ii,,í, ,,, ;
~.'11,ilcC:,,', 1,, ..,:~ ~~
... _
,....
11501 tD • pa11t 1II perDltler que pera as elites a cl~ baixa das prostrtutas era a das "pretas". Sobre este
,<'•&· '!:'- '~.....-, MI gsmth '"IA00 ..,,._,.. um quadro tlpológicO no qual a medicina do 1nlc10 do sécUlo XX catalogava as
p■11r
,ce .... ,," . . . . . . . a p;dl■
de dai• abm: a prontulçAo pl:t>ica e a clandeStína. Na categona das prostitutas públicas
1
clan■e
. . . . . . " 1 IIClffl oamo p1111nc1n111 à das tacRlmas, quais sejam, as ,nfenores, refonnadas ou gastas, de
1111r r:a1t1d11. Na proatitulçlO clandeatlna, elas aparecem no rol das de baixas condições, vale dizer, livres,
tl 111,,c»al 'RABO, ~ . Do c1t1N • •· A utopia da cidade disciplinar. Brasil 1890-1930 Rio de Janeiro:
,_.,..,-. 111ap.ll.
•
80
recém chegado do interior do estado, para onde se dirigiu assim que chegou ao Brasil
após ter participado da Primeira Guerra Mundial "como praça do exercito italiano que
combatia na frente francesa", naquela mesma noite de janeiro em que matou Américo
com uma facada, Paschoal faria mais uma vítima. Prosseguindo, o relato do médico
psiquiatra informava:
Nessa mesma madrugada, pouco depois do crime da rua Tenente Penna, éra a
policia prevenida que, na Praça do Correio, um homem, por motivos frívolos,
esfaqueara o empregado de um café e resistira ferozmente á prisão, ameaçando
ainda, de faca em punho, a todos que delle tentavam aproximar-se. Subjulgado
finalmente, a muito custo, o criminoso confessou ter assassinado, poucos
momentos antes, o pintor Americo, allegando ter praticado as duas agressões
· 1<11
em d ef esa propna.
novo tempo.
100
. Idem. p. 30. e SLVA, A. C. op. cit. p. 30. O resultado final da prisão de Paschoal, qual seja, seu encaminhamento
PACHECO
101 •
para o Hoepital de Juqueri, servia como prova aos legisladores da falência das leis sobre a imigraçáo que, além de
serem identificadas pelo médico como deficientes são descritas como não cumpridas com o necessário rigor. Para o
médico "O Brasil carece de muito de braços para sua expansão, mas de gente sadia, que venha melhorar nossas
condições de vida e que seja ao mesmo tempo um factor eugenetico. Não é justo que estejamos a recolher a
escuma resultante do fervedoiro que agitou a Europa." lbid. p. 34.
•
81
provocadas por atropelamentos, do sumiço de pessoas que nunca mais apareciam, das
mulheres que viviam da noite, "mariposas" que amanheciam mortas. De acordo com
llaferlor aoa homens e mulheres pobres, comuns, negros. A fala polida do estrangeiro e o
111111: ••cnlD de superioridade em relação aos nacionais serviam como distinção entre os
•. Mrll :!dr AI o a11e1, ••••• que: "Três me1e1 depois essa mesma autondade [dr Franklin de Toledo Piza] recebeu
t l l li w■c pcrlF em que A111edo de castro. tJaíado com esmero, aparecia ding,ndO uma bela aeronave 'Blénot
Tt ; • , i a■,o,. :a1aq11•10 montagens fotográficas, mas, o retrato era de Alfredo de Castro. O cartão vinha da
IIPr ~ 11 JJin iw 4 de l',0\/•tlbrO de 1912 e com essas palavras onde o esplnto zombeteiro do refinado marginal,
mzr ' i,ma vai. •=
111awe 9'illts 'Dr. Piza, Sa1edeçi)es. De um elegante 'Blénot' enV10 a V. S. as mais ca!O~
lsPaR1 ti 'l 2,000 mabm acima do mar. Quer V.S. maior atestado do meu:_~re5!°~º d1~0 P~;:'' ~ oª~e
11
• dlf para Lat,d:ss de onde 11c,e_.rei a V .S. Rea)m8ndaÇões ao Cap o os a. crea ,
e, 1o.•. flailK~ G. ertm11, catmlrlOPll'I • crtmlnalldade -m S6o Paulo (1870-1950) São P~ulo R~nha
TtlkuPlta. 1811 p. 320. e,ea '11Nffl8 narra1IVa foi pubhcada por um 1omal pauhstano. Ver. Correio Paulistano
1l,Cll.1911.
...,
82
.....
denunciadores da vida desregrada o mesmo acontecia com a boa aparência, a boa
...., tomavam o tratamento mais brando. Um caso que se tomou conhecido to, o de G1no
"""I
Amleto Meneghetti, figura nostálgica do mundo do cnme paulistano, uma espécie de
estatísticas que temos em mão precisam ser d ivulgadas para poderem ser devidamente
qua a pamala da população tipificada como "inválidos", ou seJa, que vivia ··o triste estado
de mi&éwia physica, moral, mental e política" devena ser esterilizada. Para muitos
• . 9EAIIM'DI. C. O· 1- dltl> ll1mghalll. Imprensa, memóna e poder. São Paulo: Annablume, 2000.
• ■ E tdDbfl JlanClaa e q1,estionam&11tos o médicO apresenta um quadro no qual são indlC800S os
TE P r a.11&
iáll n ••• , oa puxu1:11h da eabarigairos e nacionais que toram recolhidOS no Hospital de Juquerí entre os
■aa 11121 a 111M. como 11p:
Pet(MI cagam oa
.... -
- DI li t7 p .,,._ qlllina80
• Ctwbl
..rva
luc: ,-,s 11 allenadOS
81 ,baôOS
a■, wnosos IPe, ceutagam de
Ali_a ,ado6
hQmnoeOS--"
- - -:i-Jt,S
Aje,\aOC)S
c,m,nosos
..,...,..,...
PM»ECO••VA. A. C. lmlgraçln • hygiell8 rrallal ArchlvoS Btaalleiros de Hygiene Mental. São Paulo. p. 2i'·
•
..
...
... 83
... ,
....
-,. surgimento de uma sociedade sem as mazelas, as doenças, os problemas crônicos nos
...,
~
-. quais vivia a imensa maioria das pessoas pobres e dos negros despossuídos de São
...,
-_,
...,
Paulo. Nesses termos, é factível afirmar que estes homens e mulheres, velhos e
,
;) proferida no Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado no Rio de Janeiro em
,
~· de novo quando se affirma "que não existe interesse ou bem estar da sociedade
distincto do interesse e bem estar de seus membros". O nosso stock de homens,
physica e mentalmente superiores, é diminuto(.. .) Pergunto a mim mesmo: será
- isso conseqüência da mistura das raças, será isso o que pintou Paulo Prado no
"Retrato do Brasil"? Será um mal insanável? (sic).
105
delinqüência congênita. Para tanto, seria necessário "por moldura digna" no Brasil e nos
AtJl•nlll -.o Br11!I: 11b:Dç0 histórico e blbllográflco. Rio de Janeiro: Sodré & Cia., 1929. p. 11 .
,
...
- 84
-
....
-. Eles insistiam nos graves danos sociais acarretados por hábitos e doenças que
- comprometeriam não apenas a existência dos indivíduos, tornando-os muitas
vezes inaptos para o trabalho e um perigo para a coletividade, mas também sua
- descendência. O futuro da nação novamente parecia ameaçado na medida em
que parcela significativa de seus habitantes, em vez de se tornarem cidadãos
produtivos, acabariam seus dias, por força das taras herdadas, em hospícios,
prisões ou hospitais. Criminalidade, delinqüência, prostituição, doenças mentais,
vícios, pobreza iam sendo associados ao patrimônio genético, numa
identificação que mal disfarçava a visão extremamente preconceituosa desta
106
intelectualidade.
idéia da corrupção, da má índole e da inferioridade racial. Ser negro era muitas vezes ter
que sofrer, ser apontado, negligenciado e intimidado. Não que o negro fosse submisso
as torturas morais mas por atingirem "o espírito", "a alma" dos negros, as exclusões e
mesmos, ou seja, a vida dos negros em São Paulo era permeada por perseguições que
recorrente indica que a condução política da cidade, pautada nos princípios da ideologia,
maioria de pessoas que viviam e trabalhavam em São Paulo pois, os vícios, as doenças,
Justamente os sintomas dos males provocados pela vida moderna. Para os negros
1°'. LUCCA. T . R. de. A Rwlata do S...11: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Edunesp, 1999. p. 226.
,
como o avesso das ordens médicas. Como afirmou Maria Clementina P. CUNHA, desde
~
o final do século XIX " ... a configuração espacial da cidade - lugar por excelência das
periférica. Tal divisão, acentuada por pressupostos da gestão higiênica das populações,
PICCINI, "é justamente em 1920, quando a cidade já alcançava 580 mil habitantes, que
a cidade tem remodelada toda a área central, o vale do Anhagabaú, Parque D. Pedro 11
aarmole desse novo espaço permitem entrever relações sociais que não só empurravam
'-" u margens da cidade as populações de negros que viviam em São Paulo mas que
c.c c •....
10
a -.nr,adla de avançar nos limites sempre tênues desse novo centro. ª
,
0a grupos minoritários dos negros de elite, quais sejam, aqueles que possu1am
~ tipo de recurso material, educacional ou profissional, ao assumir os padrões e as
M. C. P. C 11p1ltlo cio Mundo, Juquery a história de um asllo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. P· 32·
,
"
.... 86
....
regras de conduta dos brancos buscavam desviar-se dos negros pobres, da plebe,
.....
"'\
procurando com isso associarem-se à representação dominante e à ordem simbólica
...,,
que, nesses termos, atribuiria sentido de pertencimento e igualdade. Tais posturas
procu ravam dar visibilidade ao desejo aos seus desejos de inclusão e inserção na vida
religiosas e lúdicas que diferenciavam os negros dos brancos. Vale dizer, os negros não
estavam à mercê dos brancos e tampouco abdicaram dos elementos de sua cultura e
possibilidades de vida e trabalho da imensa maioria dos negros pobres que viviam na
"Jê. '"QCINI, A. Cortll;o8 na cidade. Conceito e preconceito na reestruturação do centro urt>ano de São Paulo. São
• Feulo: Annablume, 1999. p. 48.
1 · • REIS FILHO, N. G . Algumas e,cperiências urbanísticas no inicio da República: 1890-1920. Cad emos de Pesquisa
dD LAP, Slo Paulo, n. 1, p. 5-61 , julJago. 1994. p. 07. (série urt>anização e urt>anismo)
•
..
87
...
~..,.
.....
- mas, significativamente, as pessoas que não se enquadravam nos rígidos padrões
pela medicina e pelo direito. As pessoas que pretendiam ser incorporadas como
aociedade de classes era justificada pela incapacidade natural de adequação a uma vida
~roa que compunham a "elite de cor", como eram chamados os negros que se
~✓
_. .
• - ••
hébttos e comportamentos dos brancos. Neste processo, os negros eram aceitos apenas
na condição de "cria da família", exercendo as funções domésticas do cuidado com a
•
... 88
.,,,
-.., casa, caso contrário, viver na cidade pressupunha condenar-se a uma existência
ambígua e marginal.
.....
.,J
.,l
Os negros despossuídos passam a configurar uma "ameaça urbana" permitindo
'
"'ri
ao saber médico-legal a aplicação de teorias e tratamentos considerados profiláticos, ou
doença, possibilitando ao médico um novo campo de atuação. Assegurado por seu "bio-
pela instalação das primeiras redes de infra-estrutura urbana que ao mesmo tempo
as pessoas no espaço social. Conforme indica Maria Alice Rosa RIBEIRO, "Não havia
casa para abrigar a população pobre, que foi, então, formar novos cortiços, novas
110 como pr'ti'ICfplos de civilidade, as ordens médicas que ditavam os códigos do bom tom, as etiquetas
n ll la e• fuinllllldads• m. educação burguesa atingiam, sobremaneira, as associações de negros como a ~rente
te;• BnnPeha • FNB que por sua vez disseminava os conteúdos médicos_normativos entre_os seus associados.
Ellllll:JillO • normas &4;:bnlecidas acabavam por gerar um forte preconceito entre negros ncos e negros pobres
que, nua•; rn■llda, se viam alijados de freqüentar os mesmos espaços ou usufruir os serviços prestados 15_pelas
• 1d ;a na medida em que os Inimigos destas comunidades negras eram os própnos negros, t~ é,
-U:tllsl
- ·oos rosdaelh
aa n■11• pabnla. A FNB, por 8>C8fflplo, não atendia negros pobres apenas seus 8SSOCla , os neg do e~
jlalllharm a potnza e o Insucesso como um problema pessoal e não social u •••já que ser pobre ou fraca~
••ddo como conaeqOêncla da falta de empenho ou da falta de talento para buscar alternativas que os retirassem
dll pobi-. dll dllcrlmlnaçlio, ale.■• Sobre as práticas discriminatórias entre os negros consultar. LOPES, M. A. de
111•
=.:p,21. , M. A. R. Fébrlca a cidade. Tt■-,.lhadorN, Campinas, n. 4, p. 2-22, 1989. p. 17.
•
...
.... 89
pensões, zungus, antros, tugúrios da cidade, cortiços, quintal de periferia, entre outras
sem ter para onde ir. No início do século, os espaços tradicionalmente ocupados pela
parcela pobre da sociedade paulistana como as ruas, becos e praças do Sul da Sé,
São Paulo dado à proximidade deste com os bairros Campos Elíseos e Higienópolis, os
mulheres. Com a abertura da Avenida Paulista, que põe abaixo as habitações coletivas
do centro, o bairro Bexiga também passa a abrigar parte da população de negros que
112
Bosque da Saúde.
negra do centro de São Paulo. Trata-se do espaço conhecido como Largo e Igreja da
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, atual praça Antonio Prado, local
tradicionalmente habitado por negros. Fundada em 171 1, a Igreja era circundada pelos
- · ári s escritórios
111. A pel1ll'•lzaçlo da comunidade negra inaugura os grandes loteamentos e construçoes_nos quais v ~ pobres do
de arqul181U18 e urbanismo alcançaram lucros extraordinários, indicando que a expulsao dos nacionais. . Ver.
wtbo da cidade mantinha uma estreita relação com o mercado financeiro das especulações imobiliá(~as.t d0·
BARBOSA, R. M. A pni■■nça negra numa Instituição modelar. São Paulo, 1992. 142 f. Dissertação 1 es ra
em Boclalogla) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo;
lllllbll na cld■de de 8lo Paulo (1900-1930). Contribuição para o estudo da resistência e da repres
!3:O
T~11~~-
c ·
Blo Paulo: FFLCHIUSP, 1981.
,
90
início da década de 1870, foram demolidas e substituídas por casas de comércio que
vendiam produtos importados. O mesmo acontece com o prédio da Igreja que, em 1903,
sensibilidades à cena urbana. Além de criar uma rede diversificada de produtos e bens
91
Maria Luiza Tucci CARNEIRO reitera que: "Múltiplas são as dimensões do significado
deste mundo marginal onde a marca dos estigmas se entrecruzam envolvendo, numa só
sociedade (... ) o indivíduo passa a ser rotulado como portador de desvios inaceitáveis
'
não condizendo com o modelo imposto pelo grupo dirigente responsável pela
115
manutenção da ordem.".
brancos para reforçar a idéia da incapacidade natural, do atraso físico e moral presentes
146
111• CAFINEIFIO, M. L T. Negros, loucos negros. Revista USP, São Paulo, n. 18, p. 144-151, jun.~ul./ago. 1993. P- ·
B'l'QJ;FI ES, tJI. G. O. mendigos na cidade da Sio Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 19n.
92
toda a espécie que sobrecarregam a sociedade com um enorme peso morto". 11s
encerrada nas normas médicas e nas posturas jurídicas definiam os "desviantes sociais"
profilátioo no âmbito do direito penal. A ciência jurídica, nesse sentido, não poderia dar
conta dos problemas da saúde pública ou das defesas sanitárias do país, ainda visto
pelas elites como um corpo doente, enfraquecido pelos vícios e corrupções da carne,
e SILVA, AC. Novas diretrizes da psiquiatria. Archlvos Brasileiro de Higiene Mental, Rio de Janeiro,
p. 2745, 1925. p. 34. .
a M. d b · lgado e depreciado. Para
SCHAWARCZ destaca que desde o final do século XIX o negro vinha sen o su ·JU tid de "separar" o mais
,_,..., "no lnl8rlor dasta processro, várias. instituições vão send0 re~tnrt~~~a ~~~:~o, ~ hospital da cidade é
!W'.,,<,..""11@ :D poasfvel 08 "doentes" do oonvívio com a populaçã~ urbana, ':mio de Franco da Rocha, experiência-
,.,,.,_~., aílollt aih, a cadeia em 1887 é ~~a e em 1897 surg1~1 o ma~, m locais distantes do centro, submetia-os
IIIOd1lo que, ao mesmo tef11)0 que marg1nal1zava e separava os oucos e Jornais escravos e cidadãos em São
•, ·-o•~~ ld1alagla do trabalho.ª SCHWARCZ, L. M. Rebato em branco e negro. ,
IIIIIIIJlo no tlnlll do NCUk>XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 47.
'
93
caracterizava uma insanidade, uma anomalia mental. Assim , caberia à medicina sanar
entender os dilemas materiais e morais vividos pelas classes subalternas, bem como a
período colonial, caracterizando o que Emília VIOTTI da COSTA considerou como sendo
urna sociedade calcada em moldes capitalistas e no trabalho livre foi, para as elites, uma
ouda.l contrária à natureza humana: " ...aceitar o trabalho livre era abdicar de uma
• nas mãos do trabalhador. Era ter que ouvir suas pretensões e cedo ou tarde medir-se
COI•• ele, quem sabe até numa situação de inferioridade. Isso seria para o senhor uma
118
lnveraio da 'ordem natural"'.
111 • COSTA, E. V. da. Da Monarquia a República. Momentos decisivos. São Paulo: Edunesp, 1999. P· 379.
,
94
dia foram seus cativos. Considerados inferiores, os negros foram situados num estágio
Brasil caracterizavam os ex-escravos como sendo inferiores por uma "ordem natural".
humanos que, por sua vez, era encarada como resultado imediato de leis biológicas.
nd
111 • A autora emende que as representações têm efeito de real e produzem sua própria realidade, substituindo o mu º
aoclal allnnando que "numa certa medida, este mundo que parece pode ser tão real ou verdadeiro, e até mais
convlncenl8, que o mundo da representação, porque esse se realiza no plano do simbólico, onde se ope": a magi~
doe llgnlllcados". PESAVENTO, S. J. Uma outra cidade: o mundo doS excluídos no final do século XIX. Sao Paulo.
Companhia Editora Nacional, 2001 . p. 8 .
,
95
aos que levaram Amaral à prisão e à morte. Os argumentos do universo jurídico para
tais crimes encontravam nas teorias lombrosianas as explicações, ainda que refutadas,
poderia ser objetivamente detectável nas diferentes sociedades cujo expoente e mentor
humana era um fenômeno f ísico e hereditário provocado pela degeneração da raça, isto
considerado como criminoso nato, isto é, de pessoas que por defeito congênito e
96
...
Prevalecentes, as propostas da antropologia italiana estabeleciam um quadro
.... tipológico das estruturas físicas e das formas de vida criminal, definindo tipos específicos
intelectual da imensa maioria dos psiquiatras forenses era encorajado pela adoção
Este tipo de raciocínio classificava a humanidade num gradiente que iria do mais
mesmo que estes viessem a delinqüir. Encontrava-se, assim, uma justificativa científica à
pennitindo costurar a série das categorias jurídicas que definiam o desviante. O tema da
rimentaçã.0 1
porém, quase sempre voltados à biotipologia. A questão da
....
.... 97
...
judiciário que se instalariam até os anos 1930, desvela tanto a preocupação em relação
cidade de São Paulo eram dadas pela real ampliação da população que vivia nos limites
prostitutas, agitadores e outros tantos marginais faziam de São Paulo um local violento,
das fábricas, era penetrado por práticas controladoras que, de acordo com as elites,
1• . A ldl1111açl'> da autDra fundamenta-se em pesquisa realizada sobre a p~ução teórica e a atuação concre:i:~~n:
gNpO de méclco8 misto de cientistas sociais que se designavam a s1 mesmos como mem~ros da Escrd de A
8
Aodr',gu11 una aapécle de mito de origem da Medicina Legal brasileira. CORRêA, M. As llusoes da llbe , ·
aacola ~ Rodrigues e a Antropologia no Brasil. 2•. ed. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco,
2001 . p. 43. 934 1987 Sobre as
,., . ~ M. A. G. A vicia fora das Mbrtcas. Cotidiano operário em São Paulo 1920· 1 . . 1987
lllll~•• talala, ver: GOFFMAN, E. Manlc6mlos, p~a• e conventos. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, ·
•
....
98
desviantes sociais mas, muito mais, de sua identificação e reconhecimento a partir das
da Europa no final ~o século XIX nas pessoas que sucumbiam ao mundo do crime. É
nesse contexto que a criminalística surge como ciência penal que opera no sentido da
identificação não só de crimes mas, muito mais, de criminosos. Para tanto, essa nova
dos desviantes para o campo do saber médico como também assegurava o seu lugar de
primazia no direito pois somente o méd ico poderia estudar a constituição biológica dos
criminosos.122
A nova perspectiva analítica, assumida pela ordenação jurídica social vigente até
matéria penal criava uma "sociologia criminal". Porém, as idéias não foram aceitas de
forma passiva por todos os advogados penalistas, que viam seu campo de atuação e
!freio sendo drenado pela medicina psiquiátrica. Como afim,ava Clóvis BEVlLAQUA,
ponc:luçlo jurídica das pessoas ou "indivíduos", isto é, ao direito caberia o veredicto final,
ptmambucana,
111. Sem OI" •apectoa mencionados sobretudo as q uestões vinculadas ao tratamento biotip~lógico da antropologia
11811•- conailtar: DARMON P. Médicos e ••••sinos na " Belle Époque". Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986·
Vele - ICl'leceuta,,
- '
ainda: GINZBURG, e. Sinais: raízes de um parad'1gma 1nd'1c1'áno· 1n... · Mitos, emblemas e
11n•. Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 176-77.
•
99
o crime a partir dos impulsos instintivos inconscientes, com destaque para os sexuais e a
controle das populações e dos problemas das margens exigiam a utilização de técnicas
renovadora da autuação penal sobre os desviantes das normas médicas e das ordens
novo rumo aos estudos dos atos criminais, sobretudo os afetos ao campo do direito
penal. O crime, para a escola positiva, não era mais entendido como uma entidade mas
123
• BEVILAQUA, C. Crlmlnologlll e Direito. Salvador: Livraria Magalhães, 1896. p. 10-1.
•
100
aquele que cometeu algum tipo de ação considerada anormal e dolosa. Sua obra
para que definisse o delinqüente, o criminoso, o desviante social. Para tanto, dividiu os
124
tipos criminais em quatro categorias.
A primeira das categorias, a dos "criminosos natos", era distinguida pela falta
pracüpostos hereditariamente são os que oscilam entre vicio e virtude, dotados de uma
illCf1111Í1010& passiQnais", quais sejam, aqueles que movidos pela paixão são tomados
tamanha no Ambito das ciências jurídicas que Enrico FERRI, ilustre doutrinador jurídico
da •cola italiana, incluiu mais um tipo ao rol dos insensatos, os "criminosos habituais",
114
• LOMBR080, e_Luomct d1UnqL1enle. Roma. [s.n.J, 1876.
•
101
Paulo. 125
Considerada como uma vitória das ciências positivas, a orientação dada pela doutrina do
degenerados antes mesmo que estes sucumbissem ao seu "desvio mórbido", a sua
126
• Deacoláo oom um comentarista da obra ele Lombroso, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Criminologia, o
tipo crlmlnaeo nato por ele daacrtto apresentava as seguintes características: " .. .índice craniano conforme em regra
ao atnlco, porém, mala exagerado, assimetrias cefálicas e faciais freqüentes, sub-microcefalia não rara, ateroma das
art6rlas temporala, Implantação anormal das orelhas, escassez de barba, nistagmo, prognatismo, desigualdade das
pupila, dNvlae n•••• fronte fugidia1 exagerado crescimento das regiões zigomaticas e das mandíbulas, bem
como a freqüente cõr eecura noa olhos e nos cabelos." SILVA, J. p da. Novos rumos da c riminologia. 2 ed. Rio de
Janeiro: Cia. Braall Editora, 1939. p. 48-9. FERRI, E. Soclología Crlmlnal. Madrid: Centro Editorial de Górgora,
[189-)
,
102
a sociedade dos vícios da imigração estrangeira, dos riscos que a degeneração da raça
poderia causar população nacional branca, da elite. Entretanto, é preciso salientar que a
discursos que visavam controlar o social, compunha uma pequena parcela dos
128
segmentos sociais considerados desviantes.
~ pelo tráfico prostitucional que ainda em 1927 fazia de São Paulo a rota da
lçlo européia para a Argentina pois, como indica João Batista MAZZIEIRO "...a
....
.... ,
103
"'
... das décadas de 1O e 20 só podia ser explicada pelo tráfico, pois praticamente não houve
""
... imigração daquelas nacionalidades para o Brasil.", além de revelar uma participação
.., 129
diminuta de negras na clandestinidade e prostituição.
-
"°'I
.......
Os criminalistas e suas orientações técnicas, de aprendizagem policial,
destaca José Leopoldo Ferreira ANTUNES, " ... com o tempo, essas técnicas avançaram
mais apurados, mais precisos e de mais fácil aplicação, o que propiciou sua transposição
do direito penal para o direito civil, do controle social sobre os criminosos para o controle
130
social sobre os cidadãos em geral."
1• . O autor acompanha debates de criminólogos, juristas, médicos e outros profissionais sobre a sexualidade julgada
crlmlnallável e doentia, sempre associada às classes pobres na cidade de São Paulo, evidenciando práticas de
eaquadrlnhamento da cidade e da população não-proletarizada por agentes e instituições como estratégia_ de
dominação em nome das nonnas burguesas. MAZZIEIRO, J. B. Sexualidade criminalizada: prostituição, lenocínio e
oubo8 delltoa- S1o Paulo 1870/1920. Revista Brasllelra de História, São Paulo, v. 18, n. 35, p. 247-286. p. 267.
Sabre a pt08llb.ilção em São Paulo, consultar: FONSECA, G. História da prostituição em São Paulo. São Paulo:
Editora Ra1enha Universitária, 1982. RAGO, M. Do cabaré ao lar. A utopia da Cidade Disciplinar. Brasil 1890-1930.
2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. . ~
180• ANTUNES, J . L. F. Medicina, leis e moral. Pensamento médico e comportamento no Brasil (1870-1930). Sao
Paulo: Ecluneap, 1999. p.147.
,
...
104
""'I
""
...
.. a ser evitado, pois a multiplicação dos brancos, a partir da imigração européia, é que
.. formaria a verdadeira nacionalidade e que construiria a nação brasileira. Logo, era
..
· t
-. -
preciso controlar as re1açoes 1n ere, tnicas.
· 131
.. '
~
O intrincado processo de apropriação dos bens culturais e de espoliação das
-..
...., diferentes tradições negras, marginalizavam os negros dentro de seu próprio mundo e
--- cultura. Os reflexos das distinções étnicas interferiam poderosamente na vida dos
""'I
..... negros. Vincu lada ao processo das técnicas e do desenvolvimento das forças produtivas
superior, o branco, assim, ser negro era sempre sinônimo de inadaptação e inferioridade.
132
Marcada por uma individualização, a vida moderna fazia das pessoas figuras
sempre negativos. Caracterizado e legitim ado por uma ordem médica e norma jurídica
t~~:ecHWAACZ, L. M. O 11pwt6culo da• raça•. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São
,■ Paulo: COmpanhla dM Letras, 1993.
.~ .~ ennver o Ilustre memorialista da cidade, "Gente 'de cor' que sala do futebol e ai para casa, tendo
qtM•.,.•■ar o centro, e gente 'de cor' que ficava de dia em casa pelo seu bairro, vinha para o triangulo ver as
vlblnu UumlnadM , caminhando para cima e para baixo a comentar os preços (...) gente que não era 'de cor' ia ao
~ ulo por ourlolldade, para ver aquele 'Harlem' Improvisado. Mas ultimamente faltou fôrça elétrica, foi
ragullmentadl a llumlnaçlo dai vitrinas e acabou a festa.". AMERICANO, J. Slo Paulo nesse tempo (1915-1935)
, . llo l'lulo: Melhorarnentm, 1982. p. 130.
CUNHA. M, C. P. O lapellto do Mundo. Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Term. 1986. p. 34
~
... 105
...
...
~ -
Aqueles que fossem pegos em subversões, desviando-se dos padrões de
...
... comportamentos desejáveis, eram considerados como comprometedores do grande
-,
projeto nacional que buscava imprimir não só uma "identidade nacional" mas uma
-
""'I imagem sadia e unidirecional a nação brasileira. Para tanto, criminólogos, juristas,
.,.. ""'
'"\
'
médicos e outros profissionais, atuavam no sentido de esquadrinhar a cidade e os
de "pecados capitais" pois, como afirmou Marie-Ghislaine STOFFLES, " ...a manutenção
mais ampla pela miséria endêmica que, de acordo com a interpretação das elites, os
com suas chagas físicas e morais. Por intermédio desta lógica, os que não possuíam
134
- STOFFLES, M. G. O. mllldlgaa na c:!d1de de Slo Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 99.
'
....
106
"'
'
""\,
como um processo regressivo, em que o ancestral racial europeu era enfraquecido e
""" diluído ao ser misturado com o das pessoas não brancas.
)
""'\
cidade cujas suspeitas quase sempre recaíam sobre os negros. Voltadas a não mais
....
107
"""· da cidade justificando, assim, suas próprias atuações como mentores das ações e
políticas públicas.
~
....
'"'I
.. y
A biologização da sociedade, como demonstrado, servia para explicar o atraso
~
social, político e cultural da imensa maioria da população nacional pobre, não
histórico que as elites políticas e dominantes propunham como modelo de vida social a.
ser seguido não só para os paulistanos mas para os demais estados na nação.
destinavam aos tipos criminosos situações específicas na escala evolutiva. Desta forma,
crin)e mas do lugar social destes protagonistas anônimos. Esses estudos identificavam
de 1920.
•
108
Os assassinos, têm, quase sempre, o olhar vítreo, frio, imovel, algumas vezes sangu1neo,
olhos injetados; o nariz frequentemente aquilino, adunco, volumoso; as mandíbulas fortes,
as orelhas compridas, os zigomas largos, os cabelos abundantes e escuros, a barba rara,
os labios finos (... ) Nos ladrões, ao contrário, nota-se a pequenez e a vivacidade e
mobilidade dos olhos, a imobilidade da face, os supercílios espêssos e unidos, o nariz
desviado, achatado ou curvo, a fronte pequena e fugidia e a palidez do rosto incapaz de
_ 135
1
cooraçao ...
era colocada de forma remota, enquanto para os pobres a transmissão seria inevitável
não só pelas condições em que viviam mas por serem naturalmente involuídos e
branqueamento também eram acentuadas nos discursos das elites negras, sobretudo
1• . SILVA, J. P da. Novos rumos da crlmlnologla. 2 ed. Rio de Janeiro: Cia. Brasil Editora, 1939. p. 52-3. De acordo
com Afrlnlo PEIXOTO, •...qualquer classificação será artificio didatico, ensaio intelectual, arranjo ou arrumação de
oo'J11 ~llas. para mera satisfação !iteraria de seu autor (...) As classificações arrumam factos e coisas da
~~ Isto nlo obriga a natureza a subm eter-se a tais arrumações...". PEIXOTO, A. Crim inologia. Rio de janeiro:
• <1t• 1zcaraKoogan, 1933. p. 102. .
1 C) qi• cw ababcn, origlnalmeute publicado no livro Clima e Saúde de Afrânio Peixoto, apresentado por Manza
QORRêA. pe.:aiblt observar a porcentagem dessa "absorção", encarada como uma evolução da composição étnica
da populaçlo brasileira. Mesmo supondo a manipulação dos números, os índices são significativos à reflexão em
1Dmo dai rapreaantações do negro na sociedade de classes, assim como as intenções branqueadoras do país.
109
Como esta surge como força negativa e anarchica, como a collaboração negra é
considerada deprimente, o negro se isola, se individualiza e cria uma civilização
sua, dentro da civilização alheia. E por isso, o problema negro é considerado o
""' problema mais sério da América do Norte. O Brasil, abrindo-se para todas as
""'I
raças e acceitando o negro como acceitou, resolveu com muito mais
simplicidade o problema racial. O negro está desaparecendo, está fundido no
caminho dessa fusão, tem elle intensamente collaborado para a grandeza
material e moral do Brasil. Portanto, neste ponto, não invejamos a civilização
.
yankee, por que, neste ponto, o b tivemos vantagens... 1U
representando-os como os piores tipos, mesmo entre a variada gama tipológica que o
presentes nas aglomerações humanas eram explicados pela miscigenação racial, logo,
atribuídos à fraqueza moral e biológica do negro. Logo, era imperioso que a moderna
138
pretendiam alguns cientistas jurídicos.
117
, O Aur1'81'de. São Paulo, 29.04.1928. p. 3. Ao analisar as complexas relações que compõe o debate em tomo do
branqueamento Petrõnio José DOMINGUES revela que a imprensa negra e parte das agremiações de negros eram
fllvar6wie ao 'branqueamento da raçaª. Emblematicamente, o autor apresenta um artigo publicado no jornal
pw·s,a.i-o da imprensa negra, O Clarim D'Alvorada, no dia 29 de setembro de 1929 repleto de contradições e
■Jgrllladaa. Sob o tftulo "O Sentimentalismo brasileiro" o articulista do jornal dizia: "Nós, brasileiros costumamos
orgulhaHm da noaaa bondade de coração, da nossa piedade e sentimentos generosos. Convictamente affirmamos
lffl da•• mala elevada que os outros povos. Pretendendo ser mais humanos que os americanos, nós não
l!Pr,ct1!M8oa negroa, m• fizemos(sic) a extinguirmos completamente a raça negra, abandonando-a á ignorância, á
1 ;►ID•, ao anallpl,atiie .,,,.,,., é promiscuidade, á cachaça, á syphillis, a ociosidade. Qual é o preferível - é o
1111
r:I
·
•••·►
• r:I
·
,..,mo brasllairo ou a brutalidade americana? O nosso sentimentalismo não é homicida? Daqui a trinta ou
llll&u•ma ~ a raça negra esté B>dinta no Brasil graças 1;10 nosso sentimentalismo." Cf. DOMINGUES, P. J. Uma
• l i 151111 nlo COldlrda Negro, racismo e trabalho no pós-abolição em São Paulo (1889-1930). São Paulo, 2000. 370
J,..ll1ta...,1o (M,ataclo em História) FaaJldade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
1•~h .
, •A szza, cl·•· ;•lo· praeante etllie pobreza e criminalidade, indiferenciando bandido de trabalhador pobre, revela a
pnl.ancla dsl 1lloria8 8Clbre perlculosidade, que ditaram moda na Europa no século XIX e ganharam destaque nos
m1laajudlcl•• no Braal, vinculando a figura do pobre à do criminoso em potencial". MARTINS, S. H. Z. Pobreza e
ª ' •Nkll.de: a consb'lJçlo de uma lógica. Revista de Hlstórta, São Paulo, n. 132, p. 119-132, jan./jul., 1995. Sobre
z• ZIP• IC►:ID
" ~ a-lALHOUB, s. C1MSRQ perigosas, Trabalhadores, Campinas, n, 6, p. 2-22, 1990.
•
110
""
Deste modo, é perfeitamente factível indicar que na década de 1920, o conjunto
Criminologia de São Paulo, uma associação que tinha como destinação o estudo de
bem como fazer valer os rigores no tratamento da perícia médica que, de acordo com a
imensa maioria dos sócios deveria ser regulamentada e o ofício do perito preenchido por
inscritos nos últimos anos dos referidos cursos ou aqueles que se dedicassem
aaaociaram como correspondentes, desde que fossem aprovados pela maioria dos
teriam, por assim dizer, a missão cívica de controlar o social. Para tanto, deveriam
pelas resistências da classe operária que, por sua vez, deveria ser disciplinada e
protegida dos desvios e corrupções viciosas daqueles avessos aos regramentos sociais
impostos hierarquicamente.
seus remédios" com o objetivo precípuo da defesa social, da prevenção e repressão dos
112
São Paulo, o combate a criminalidade no Brasil se travava "ás cegas, ás tontas, ás upas,
sem plano preconcebido, sem conhecimento de terreno e das forças inimigas e com
e exigindo uma reforma completa do código penal de 1890, Alcântara Machado afirmava
criminalidade. De acordo com as propostas do autor, o delito não mais poderia ser
140
1•. O convite essinado por Alcântara Machado, Oscar Freire, Franco da Rocha, Plínio Barreto, Roberto Moreira e
Ãll:t!Mdo Rodrigues, médicos e juristas de São Paulo , foi enviado a um grupo de médicos e juristas da cidade para
qul. na O• c
..a.1. 11o
. • , ciacutissem a fundação e o estatuto da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo.
' - dia 28 de outubro de 1921 , ás 8 horas da noite, realizou-se a sessão com presença dos snrs.: Drs.: Alcantara
Ullaliub, Robel'IO Moreira, Emesto Pujai, Renato de Toledo e Silva, João Passos, Ayres Netto, Julio de Mesquita
fll•d Vieira de Cervalho, Oswaldo Portugal, Elpidio Veiga, Virgilio do Nascimento, Carlos de Carvalho
nany, Aluandrino Pedroso, Álvaro Britto, João Baptista de Souza, Paulo Amarico Passalacqua, Mareio P.
_,f. Dall'Ape, O. Pil'86 de Cempos, Cenditio de Moura Campos, Francisco Lyra, Potyguar Medeiros, Adolpho
'Altarlco
0 Brazllanae, Bueno de Miranda, Franklin Piza, Maria Rennotte, A. de Paula Santos, Everardo
• Mllo, Accacic Nogueira, Francisco de Resende, Pedro de Oliveira Ribeiro, A rmando F. Soares Caiuby,
,._ Emnundo xavier, Eduardo Maia Filho, J . Pereira Gomes, W . Belford Mattos, Domingos Define, F.
.,. . M1101do Forjaz. EmiHo Ribas, Synesio Pestana, J . Borges Filho, Franklin Moura Campos, Flaminio
~- Fral19, Armando Rodrigues, Plínio Barreto, por si e pelo Dr. Brito Bastos, W ashington Osorio de
Verguelro Clllaar e Moysés Marx. Mandaram adhesão, desculpando-se de não poder comparecer
,: f'l;a.,co dll Rocha- representado pelo dr. O . Freire, E. Vampré, Candido Motta, Amâncio de Carvalho,
,, Sylvlo Portugal, lbrahim Nobre, Brito Bastos, Deodato W ertheimer, Renato Granadeiro
~llianlo Penllra Uma, Rebouças de carvalho, Marrey Junior, Oscar Klotz. ". FUNDAÇÃO da Sociedade.
, , ,. ,. 8DCIIIII dl • M1lllclna Legal e Crtmlnologla de S1o Paulo, São Paulo, v 1, n.1, p. 01-275, fev.
'1'•'1-1. Nata 11 a praaença de uma mulher, Maria Rennotte, entre os médicos e juristas da cidade; o que
- ~•ll•llldo um avanço para a época. . . . _
A. DllaulllO ptafarldo na aasslo de instalação da Sociedade de Medicina Legal e Cnm1nolog1a de Sao
• 8oal■1d■d1 de M1dlclna Lege• • Crtmlnologla de São Paulo, São Paulo, v. 1, n.1 , fev. 1922.
•
113
eslariam_,
· em "definir as causas geradoras do crime. os caracteres do delinqüente e os
sociar. O saber jurídico apenas não bastava, sendo necessário recorrer às conclusões
pri •is em Nl&YO atuavam distanciadas umas das outras. sem haver um
14
'.AJ't ;la."6 ••ai hdaAladaS111lo de,,,.. bçh da Sociaàade de Medicina legal e Cnm1nologia de São Paulo.
'lmblm puh!c I h ,_ AR:hlwa da Soci1~1cie de Medicina legal e Criminologia Cf. MACHADO. A op. crt. P 16
•
114
compromissos que ambos deveriam assumir ao coordenar os seus ofícios para um.
Paulo e, até mesmo, permanecer entre eles já que muitos eram parentes e amigos,
pertencentes dos mesmos núcleos sociais e filhos das elites paulistanas. O discurso
proferido pelo advogado no ato solene que reuniu médicos e advogados na fundação da
Lavramos aqui campos convizinhos; mas do vosso é que correm para nós as
fontes de vida, á cuja mingua o trabalho do jurista, como terra pobre, dá apenas
creações improductivas e mesquinhas. Encontrais, de outro lado, no direito a
finalidade dos vossos esforços. Quando tiverdes definido as causas geradoras
do crime, os caracteres do delinquente, e os graus de sua temibilidade, as
medidas preventivas e as instituições necessarias á defesa social, necessitareis
do concurso da norma juridica para a realização dos vossos desígnios
generosos (sic). 142
141
- BAYMA, H. Dl1curao proferido na sassl o de instalação da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São
Pauo. An:hlvae da Se , c~l1 ~.1d·• de Medicina Legal e Crlmlnologla de São Paulo, São Paulo, v 1, n.1, p. 18-21 ,
- ·a
115
Medicina Legal e Criminologia de São Paulo, entretanto, não era a primeira do gênero a
ser efetivada nos domínios da medicina nacional. Neste mesmo período, como atesta
nacional. Para a autora, " ... o racismo enquanto crença na superioridade de determinada
período do final do século XIX e início do século XX, sendo ponto central de suas
143
análises a respeito de nossa definição como povo e como nação."
Nina Rodrigues o precursor do que foi percebido como algo mais do que a arte de curar,
algo capaz de habilitar o juiz na avaliação dos atos criminais, pois somente a perícia
Vae para muitos annos que Nina Rodrigues, o espirita original da medicina legal
brasileira, conseguiu junto á cathedra que illustrava na velha Faculdade nortista,
criar a primeira sociedade dessa natureza no Brasil, reunindo pela primeira vez,
entre nós, no mesmo grêmio scientifico os cultores das sciencias medicas e os
das sciencias jurídicas. Não tardou que lhe respondesse a iniciativa fecunda
aquelle pujante nucleo intellectual que já era na época São Paulo, fundando
tambem uma Sociedade de Anthropologia Criminal, Psyquiatria e Medicina
Legal. 144
1
'3. Nº1na Roeirigues e Oscar Freire são, para a autora, expoentes e divulgadores da medicina-legal no Brasil. Como tais,
propunham uma depuração do tipo antropológico brasileiro por intermédio da fusão das raças e, conseqüentemente,
de sua eliminação gradativa. Como afirma a autora, "Essa exclusão parece ter sido também o resultado de uma
&biação coerente, apoiada por um racismo 'cientifico', que legitimou iniciativas políticas seja no nível nacional -
como no caso dos privilégios concedidos a imigração que tiveram como conseqüência uma entrada maciça de
brancos no pais - seja em nlvel regional, com políticas específicas de repressão das atividades religiosas e culturais
dos negros...•. Em tampo, a autora aborda a passagem do século XIX para o século XX. CORRÊÃ, M. As Ilusões
da Clberclade. A Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista: Editora da Universidade São
144•
Franciaco: 2001 . p. 43.
PAULA SOUZA, G. de. Oisc:ulSO pronunciado pelo Dr. Geraldo de Paula Souza. Archivos da Sociedade de
Medicina I egal • Criminologia de Sio Paulo, São Paulo, v 1, n.1, p. 22-26, fev. 1922. p. 23.
,
116
"... incontestavel que a Sociedade de Medicina Legal vem satisfazer a uma verdadeira
imposição do nosso presente envolver. Mas não é só, perdoarão os presentes juristas
medicina legal, uma parcela de responsabilidade no admiravel surto que tem tido em
145
nossos dias os estudos criminaes (sic)".
nas relações sociais forjadas no mundo do trabalho urbano, como estratégias para
existentes no combate aos infratores sociais, dotando seus agentes das modernas
117
remodelação do se rviço policial visava, conforme atestam os autores, " ... premunir a
sociedade de novos assaltos dessa natureza (... ) embora o sigilo mantido em tômo do
147
assunto houvesse deixado a população longe dessa realidade intranqüilizadora".
Obtida essa reforma, que foi, inegavelmente, das mais significativas que a polícia civil do
Estado realizou em toda a sua existência, ficou a Capital paulista, principalmente, bem
aparelhada no tocante ao policiamento urbano, sem falarmos, está claro, na distensão do
benefício que foi alcançar os mais longínquos pontos do território bandeirante (...)
Contudo, São Paulo, continuou sua marcha progressiva. Continuou a desenvolver-se, a
ampliar-se, a ganhar nova expressão social, a afirmar-se na indústria, a elevar seus
índices de produção, a construir novos bairros, a instalar novas cidades, a multiplicar suas
atividades, a atrair maiores levas de imigrantes, a aumentar sua natalidade, a crescer, a
148
prosperar, enfim.
delinquentes de várias ordens ..." ou " ... impedindo a ação nefasta dos indivíduos
141• "Como afinnou -,_... Roberto SILVA, "lançando mão de projetos urbanísticos segregadores, como a normat1zaçao . .
do uao da cidade, a elite, n,prasentada pelo Estado, procurava gerenciar através da intervenção técnica problemas e
tensões cujas raízes tinham origem nos atritos sociais e de classe." SILVA, J. R. De aspecto quase florido.
Fotografias em l8llistas médicas paulistas, 1898-1 920. Revista Brasileira de História, v. 21, n. 41 , p. 201-216,
147 2001. p. 202-3.
• Panl oa autoras, a pollcia passou no período, "... a bem da observância das garantias de tranqülidade e boa ordem
p(lblica...", por um completo reaparelhamento técnico-administrativo que dotou a polícia paulista e paulistana de
novas delegacias, desdobrando as existentes e ampliando o número de servidores, sobretudo, os Chefes e
Comlsaérioa de Polícia, além de instituir a função de médico-legista. VIEIRA, H. ; SILVA, O. História da Polícia Civil
de Slo Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. p. 238-39.
141
, lbld. p. 241 .
'
118
tanto, peças recolhidas do cotidiano policial eram expostas em amiários nas próprias
policiais. 150
Porém, como reiterou Sidnei MUNHOZ, a polícia paulistana era, desde o início do
século, reconhecida por agir com brutalidade e abusos de po.der. Um dos aspectos
retratados pelo autor ao interpretar a cidade de São Paulo identifica que, no período, o
abuso sexual por parte de policiais era algo relativamente corriqueiro. A regularidade
dessa prática é apontada pelo autor que, analisando inquéritos policiais e relatórios de
Chetes de Polícia, permite observar abusos sexuais contra os populares como sendo
148• Em 1927, urna nova lei a de n.2231, de 20 de dezembro, definiu "... os motivos cabíveis em processos policiais,
quais foaaem, em primeiro lugar, os que tivessem por objeto os crimes previstos no Código Penal, nos artigos
allnemes a motim e desordem perante a Justiça, ajuntamento para cometer crime, desobediência à autoridade;
Imprudência, negllgêncla ou imperícia na arte ou profissão ou que causassem desastre em Estrada de Ferro, o
como danificação de linhas, postes, etc.; aos que trouxessem armas em eleição, promovessem ameaças, ultrajes ao
cullD e vlolMnm aegl9dos e domicílios; aos que atentassem contra a liberdade de trabalho, o ultraje público ao
pudor, a ocuttaçlo 01 1 abal"ldono de menores, a lesão corporal por imprudência, negligencia e imperícia, o duelo, a
ln)llria, o dano, o furto. Em segundo lugar, os que versassem sobre contravenções previstas no mesmo Código,
camo viciação das leis contra lnhumação e profanação de túmulos e cemitérios, loterias e rifas, jogo e apostas; de
CFIM de penho198, fabrico e uso de armas; sobre contravenções de perigo comum, nomes supostos e outros
dllfarce■; aobr8 aocledades secratas, uso ilegal da arte tipográfica, omissões de declarações no registro civil e dano
U C0UIM p.lblk:•a; eobnt mendigos e ébrios, vadios e capoeiras...", além de delegar os profissionais competentes
paraCHgllrllzarprocaa■ae policiais. VIEIRA, H.; SILVA, O. op. cit. p. 245-46.
111. .k:sd1mla de Polícia "Dr. Coriolano Nogueira Cobra". Museu do Crime. 70 anos (1930-2000). São Paulo, 2000.
QlljJogo. Vale daatacar que entre as peças que o histórico do Museu do Crime sugere estão as que compõem o
pn,a1110 cr'.me n. 1870 IMtaurado em janeiro de 1927 e que apontam José Augusto do Amaral como sendo o
01,111r.010 que malou e manteve "cópula anal" com os cadáveres de suas vítimas - acontecimentos que serão
r:...
:nclsa na ■egunda parte deste trabalho. Na verdade, há uma sala especial, dedicada aos crimes de Amaral.
119
uma prática levada a cabo pela polícia de São Paulo. Para o autor, " ... os homens que
alguns casos, utilizavam-se do sadismo ( ...) Isso tudo indica que uma parcela não muito
pequena dos membros das forças policiais era composta por delinqüentes dotados do
'
poder de autoridade concedido pelo estado. Assim, quem deveria garantir a segurança
151
do cidadão constituía-se, freqüentemente, em uma ameaça à comunidade."
Criminologia de São Pa ulo, por exemplo, eram unânimes em criticar o Código Penal em
intelectual da cidade", o crime não poderia mais ser interpretado como uma ação
tarefa a ser cumprida pois, a afirmação dos novos conceitos adotados pela criminologia
111 • O autor evidencia a denúncia de violência sexual praticada em 08 de janeiro de 1904 por Luiz Forenti, soldado do
Coipo ela Cevalarla, contra um garoto italiano de nove anos de idade, que havia sido contratado pelo soldado para
levar-lhe, dlal1amante, o almoço e jantar: "...quando foi levar o jantar, ás · quatro da tarde, mais ou menos, foi
agarrado pelo dito soldado Forenti, o qual tirando as calças do declarante, violentou-o e comsigo teve relações
sexuaea, offendendo-lhe o anua visto como sente muitas dõres; que ninguém viu esse facto por ter elle se passado
na cavallalça, onde nlo tinha pessõa alguma...". MUNHOZ, S. Cidade ao avesso : desordem e progresso em São
Paulo, no llmlar do século XX. São Paulo, 1997, 290 f. Tese (Doutorado em História) Programa de Pós-Graduação
em História - Faculdade de FIiosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. p. 201 -3.
'
120
da vida em sociedade. Neste sentido, os criminosos deveriam ser julgados como "um
Para tanto, era preciso regulamentar o exercício da medicina-legal em São Paulo ju_nto
que medidas fundamentais deveriam ser propostas ao Governo do Estado, entre elas, a
1111. RODRIGUES, A. Dlacurso do Dr. Armando Rodrigues. Archlvos da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia
da llo Paulo, São Paulo, v 1, n.1, p . 22-26, fev. 1922. p., p. 29.
salientou Boris FAUSTO, o avanço do saber médico no que concerne a conduta criminosa encontrava
111• Confonne
noe crimes le>cUals o desvio patológico, seja por razões endócrinas ou psíquicas. Tratando especificamente os
cltmee sexuais p•atlcados contra mulhe1'88 o autor permite entrever como a representação da inferioridade negra ao
11\dcar que, para u mulheres negras, a reparação do dano era algo longínquo dada a tripla condição: preta, pobre e
mulher. As all'gaç-'le1 doe indiciados eram que afinal de contas as negras não tinham honra a preservar por serem
naluraknente inferiorae. FAUSTO, B. Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2 ed. São
Paulo: Eduap, 2001 . p. 219.
•
121
conflituosas.
defendida no Código Penal não fazia mais sentido aos intelectuais engajados em
reorganizar o caos social pelo qual passava a cidade de São Paulo no início da década
exclusão dos negros do mercado de trabalho urbano persistia, esta não era sua única
revela outras dimensões nas quais o negro aparece não somente como o vagabundo, o
vadio ou corno eram chamados na época, os gatunos mas como inferior nato, um
114• CARRARA, S. Crime e Loucuia. São PaulolRio de Janeiro: Edusp/ Edue~, 1998. p. 65.
'
.....
122
""'""I
De acordo com Manuela Carneiro da CUNHA, no contexto histórico em questão,
o Brasil era liberal e racista ao mesmo tempo, sorvido de manuais que vulgarizavam as
teorias balizadas pelo saber médico e jurídico, em sua maioria importados das escolas
moreliana, o degenerado possuía, por assim dizer, uma anomalia de perversão instintiva
base moreliana encontra-se as ditadas por Dupré que, por sua vez, distribui as
158
prtmeiros.
111 • CUNHA, M. C. da. Negroa e1bangelroa. Os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985.
111• 8obnl 1118 upecto, vale c:le8taCar que os manuais pesquisados apresentam uma infinidade de classificações que
fol"lffl variando de autor para autor porém todas seguindo os princípios de que as perversões sexuais eram
provocadas pela deearmonla entre a "evolução psíquica e somática". O rol dos perversos do instinto de conservação
Incluía 08 toJClcõman08, 08 pródlg08, os avarentos, os jogadores e suicidas. Entre os tipos classificados como
perver■oe eexuala lnclulam-ae os sádicos, os mazoquistas, os necrófilos, os fetichistas, os exibicionistas, os
homolNxuale, 08 frigldoa, 08 ninfomaníacos, os onanistas. PACHECO e SILVA, A. e. Psiquiatria Clínica e
Porenee. 8lo Paulo: Editora Renascel'IÇB, 1951 . p. 426.
•
123
sendo um critério objetivo ao controle social na cidade de São Paulo. A dimensão dada
.....
pode ser observada nas publicações de Antonio Carlos Pacheco e Silva, um dos
"'\
......,,
-::,
.....
""\
médicos mais influentes da elite política paulistana do período e pertencente ao restrito
pela grande maioria das pessoas que habitavam a cidade. Já médico, interessado nas
teorias que aliavam a psiquiatria ao direito e estimulado pelo concurso Oscar Freire de
São Paulo, Pacheco e Silva escreveu um compêndio sobre as relações entre crime e
loucura que se tomou referência aos estudos da psiquiatria forense nacional. Sustentado
por sua "experiência de vida profissional", por seus escritos e estudos realizados ao
longo de sua formação intelectual e por documentos de seu acervo pessoal, o jovem
..-rtpendio escrito por Pacheco e Silva é uma bricolagem dos manuais já existentes,
conte(ldo é retirado das publicações anteriores, discursos e conferências proferidos
~ • ao recuperar as memórias da cidade de São Paulo entre 1915 e 1935 permite observar que,
na;o, Antonio Cel1os Pacheco e Silva foi um dos jovens membros do Clube Harmonia, que ocupou o lugar do
Cl!n Concórdia, o qual promovia encontros, jantares e bailes à elite paulistana, reunindo as famílias
111a da cidade De acordo com o memorialista, o Clube Harmonia teve seu primeiro impulso em 1916 com o
_do Trlllnon, organizado por D. EMra de Paula Machado Cerdoso e D. Hermfnia Pereira de Queirós e outras
~s da ell'e. Na ate mesmo perfodo, o memorialista indica que o jovem Pacheco e Silva, prestes a se entregar
!:.,., ■ 'IL.Joe da medicina, freqüentava as concorridas aulas de dança de salão do curso Mme. Possas Leitão.
~ . J. llo Paulo n111e tampo (1915-1935). São Paulo: Melhoramentos, 1962. p. 108.
•
.
... 12A
..
.
...... Por ter alcançado o primeiro lugar, Pacheco e Silva publica O compêndio
...
...... Psiquiatria Clínica e Forense objetivando "render à justiça os elementos que tanto
carecem seus leais servidores na espinhosa missão que lhes assiste, quer quando lhes
cumpre realizar uma perícia, defender uma causa ou ainda lavrar uma sentença que
perícias psiquiátricas, testes, fotografias, entre outros registros que faziam parte de seu
Pacheco e Silva apresenta casos concretos que serviam para ilustrar as proposições
111
• PAaiEco e SILVA, A. C. Pa•labla Cllnlca e Forense. 2 ed. São Paulo: Editora Renascença, 1951. p. 39.
,
"'· 125
"'
somente a memória e a história das elites, ou ainda, como afirmou Maria Luiza Tucci
advogados quando estes, nas palavras do autor, "se vêem a braços com os mais
bem fundamentarem as suas razões, para reunirem elementos sôbre os quais apóiem a
identificação dos fronteiriços bem como o justo encaminhamento judicial dos criminosos
responsável por esse encaminham ento, o que acirrava ainda mais o debate entre
ânegro como involuído, atrasado, violento, identificando estes atributos à fatores que
,,•c;,,,, ._dllltuoaos que, para os médicos, exprimiam as suas próprias tendências mórbidas,
- -~ , como eram classificados, eram vistos como verdadeiros inimigos da
1
• . "OI Nlp.'11118, • penit8nclérlas, oa orfanatos, as instituições religiosas e escolares oferecem um arsenal excepcional
para• l:it 11,g,a;•lo· hlllórlca preocupada em analisar o exercício da repressão e a prática do racismo (...) A análise
daa tlllanulhaa__ 8Xprll88MJ8 do cotidiano dos asilos de alienados ou dos hospitais deve ser considerada pelo
hlalc.1 1dor como o eatudo da projeção coletiva das contradições que caracterizam a história do homem e da
w 11111.-. ,.,,. . aenlldo, PBl8C8 óbvia a inclusão dos registros emanados da repressão policial e do aparato
Jur(cloc» como 08 procaal08 penais. CARNEIRO, M. L. T. Negros, loucos negros. Revista USP, São Paulo, n. 18, p.
180 1*151, jun.ljul.lBg(l 1993. p.151 .
. PAa-ECOeSILVA,A e. op. c1t. p. 441 .
~
-""'
~
126
~
'"' considerado um dos maiores flagelos, "... não só para o indivíduo que a êle se entrega
.~ ,
Nos anos 20, especificamente, havia, da mesma fonna, uma proliferação
..
"""
f
;., discursiva no campo das práticas médicas que condenava a união entre as pessoas de
O saber científico que lidava com a teoria da degenerescência propunha como prática
inoonteste. Para Pacheco e Silva, caberia ao médico separar os são dos doentes,
;fBS. Para o médico, " ...a maioria dêsses delinqüentes (... ) demonstram que,
ao alcoolismo cerebral, uma estatística por nós recolhida no Hospital de Juqueri, em 1928, forneceu os
dadoa: em 348 homens entrados naquele hospital, 130 abusavam do álcool e apresentavam distúrbios
. em conaaqotncla dos seus efeitos; em 156 mulheres, 13 eram alcoolistas habituais. Temos portanto, em
Jndlv(duoa recolhidos a um hospital psicopático, 143 alcoolistas, o que nos dá uma percentagem de 28,95% de
.. . comando o alcoolismo nos seus antecedentes.. ." e prossegue afirmando que "... Entre nós o alcoolismo é,
~ . o raeullado do analfabetismo, da falta de educação das massas, que desconhecem os efeitos prejudiciais
.,. .aoool, da falsificação das bebidas alcoólicas e de múltiplos outros fatôres, aos quais, infelizmente, não são
,. ~ • nu grandaa cidades, a civilização e o progresso". lbid. p. 242-3. · . .
• ~ dÍl819rtÇB8 raciais da população vinham, assim, determinar as desigualdades sociais como 'naturais' - física e
... ; , NIIFIIR - a justificar a dominação dos homens brancos sobre o conjunto de mestiços como uma questão
t,IWillqulca- a rapllbllca dos mais aptos não excluíam os não brancos, mas os mantinha sob o julgo da tutela, sob a
vlgllncla de um aem-nClmero de Instituições que saberiam intervir quando solicitadas". MARQUES, V. R. B. A
m1dlcalll89lo d• "'911■ ~ lcos, educadores e discurso eugênico. Campinas: Unicamp, 1994. p. 38.
,
....
127
""I
como preto Amaral, cometessem crimes classificados como hediondos. A função social
do criminoso, tema que levantou acirrados debates sobre a supremacia dos saberes: a
163
quem caberia o veredicto final?
[de sua obra elaborar um guia capaz de auxiliar os interessados no "estudo da psique
1
seus desvios e dos meios de libertá-la". Porém, os registros de Pacheco e
•. Um pouco antes o médico esclarecia em seu compêndio que "Se por um lado não _seria justo :e:oc~~:S:ºn~~
pode ficar exposta às reaçõaa mórbidas de degenerados incapazes de se a ap ª":'.~
PZ~
il'qúllallvo fazer recair sõbre Ales pena condenatória, equipa~do-os às pessoasdno7a1s,
o~~% em que vivem,
. dade e a
;,;IIIDa que aatao a reações violentas e Intempestivas, comprometendo a tranquilidade, a propne
,
128
devem ser privilegiados pois, para o autor, tal procedimento possibilita interpretar como o
164
passado opera subterraneamente no presente.
Paulo, que oferecia "direitos e regalias para a edição de obras e livros didáticos", a
psiquiatria forense, fato que levava a utilização intensiva da literatura estrangeira acerca
: g,t; cfe ffelca doe seus semelhantSS". PACHECO e SILVA, A. C. Ps iquiatria Clín ica e Forense. São Paulo:
;A lba Renss--.nça,
DARl'CN, 1951 . p. 432-3.
R. O beijo de Lamou,191111. Mldia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Nesta
_.,,ma lnha de ,adndnio, vale d aatacar as considerações de Edward Palmer THOMPSON em relação à "ótica da
l'M'lhocaª, 111D 6, a história vista de baixo, perspectiva que atraiu historiadores interessados em ampliar os limites da
d■ ~ • abitr novas "'8az de pesquisa que explorassem as experiências históricas dos homens e mulheres cuja
•d11trlcia 6 flequentemente ignOnlda ou taxada como sem importância por não constituir, de acordo com os
íiiiClcloi1all,,_ eaquemético, um problema histórico. Citado por SHAPE, J. A história vista de baixo. ln: BURKE, P.
11
A ■•w• da hlll6i'la, Novas perspectivaS. São Paulo: Edunesp, 1992. p. 40.
,
..._,
..... 129
Psiquiatria residindo em clinicas na Europa visando incorporar, como ele mesmo aponta,
mesmo ano. Dois anos depois, com 25 anos de idade, é nomeado por indicação de
Não foi somente a publicação do compêndio Psiquiatria Clinica e Forense que fez
Pacheco e Silva se destacar nos meios acadêmicos e nas sociedades de classe mas por
sempre projetar-se enquanto "um estudioso, esforçado no trabalho e com grande desejo
d9 aparecer no mundo científico". Durante sua vida, Antonio Carlos Pacheco e Silva
com o ideal de modernidade projetado e requerido pela capital paulista, isto é, jovem,
""'
... 130
"'
""I
Ao assumir a direção do Hospital de Juquery, Pacheco e Silva concluiu a
construção do novo pavilhão para mulheres, "cuja construção se encontrava parada por
Pacheco e Silva e evidenciam sua inserção nos meios políticos e empresarias que, de
hospital, " ... buscando sempre conciliar a situação econômica do Estado com o confôrto
Vae para 30 anos que o fundador desta casa, o nosso mestre o Prof. Franco da·
Rocha, traçou por incumbencia do Governo do Estado, o plano de assistencia
médica aos alienados de S. Paulo. Vencidas as primeiras difficuldades,
construído que foi o grande asylo, amplo e aberto, obedecendo aos preceitos da
moderna psychiatria, com as suas colonias e fazendas, creada a assistencia
familiar, fçiltava para completar o plano grandioso, a instalação do laboratório de
anatomia pathologica das moléstias mentaes, para que, tambem nos fosse dado
contribuir, com nossas pesquizas, para o desenvolvimento da psychiatria. Em
1896, já o espírito clarividente do fundador d'esta casa escrevia nas 'Estatísticas
e Apontamentos do Hospício de S.Paulo' - 'Para não continuarmos na pouco
louvavel ignorância, como até aqui, certas despesas são inadiáveis neste novo
hopsicio: - tal é a creação de um Laboratório Histo-Chimico para o estudo da
anatomia pathologica e da pathologia experimental. Um hospício sem essa
dependência não é um estabelecimento guiado por idéas scientificas; será,
quando muito, uma gaiola de loucos. Isso não quadra com o progresso e bom
nome de S. Paulo entre os Estados do Brasil. A anatomia pathologica da loucura
tem um campo vastíssimo para ser explorado; mas, esse trabalho, só é possível
mediante os methodos e instrumentos modernos que a sciencia tem fornecido.
167
direção de Pacheco e Silva no Hospital estreitavam ainda mais as conexões entre crime
,.. ,
• A obra em questão foi Identificada pelo médico como sendo uma "breve resenha" dos trabalhos desenvolvidos
.
durante sua gestão como diretor do Hospital de Juqueri, realizado logo após sua decisão em assumir a cadeira de
clinica psiquiátrica da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, em 1936. PACHECO e SILVA, A. C. A
M■lalincla • pelcopataa no Estado de São Paulo. São Paulo: Gráfica do Juqueri, 1945. p. 12.
117
. lbld. p. XI.
,
131
tratamento das "moléstias mentais" no país, ao mesmo tempo que o projetava nos meios
jurídicos.
brasileira. Suas propostas, voltadas para os "serviços sociais", afirmavam ser necessário
rever o emprego das estratégias adotadas para o atendimento dos homens e mulheres
despossuídos, "resíduos sociais" que, por suas características psíquicas, deveriam ser
negros.
menos idealizada sobre as reais condições de vida dos negros em São Paulo na curta
sem questionamentos.
~ -~ . J. C. F. dos. Nem tudo era ttallano. São Paulo e Pobreza (1890-1915). São Paulo: Annablume, 1998. p.
-
'
132
satisfação das necessidades imediatas dos desvalidos e o socorro através das esmolas
os tributos que a parte sã da sociedade, que se via forçada a contribuir para manter os
169
doentes e incapazes de prover sua própria subsistência e a de suas famílias.
vinculava a nação a um passado que as elites procuravam rejeitar por entende-lo como
conjunto destas questões, Pacheco e Silva entendia que as experiências adquiridas pelo
como favorecia a permanência dos homens e mulheres pobres na ociosidade, fator que
como tal, oorruptora da dignidade pois desestimulava aqueles que recorriam ao auxílio
1• . O traballo de Sllvla Helena Zanirato MARTINS indica que na década de 1930 Antonio Carlos Pacheco e Silva
mkllltlava conferências promovidas pela Escola de Sociologia e Política para o curso de Assistência Social e que
•...a al11a;lo doe primeiros assistentes sociais formados por essa escola contestava as formas de beneficência
pra1181aoetd88 até aatAo e lnflula na linha de racionalização e organização do trabalho prestado pelas entidades
aoclall" c:ujaa atrtbui911aa foram motivadas pelas palestras de Pacheco e Silva. "Iniciando sua exposição, logo na
prlmaka aula, Pacheco e SIiva argumentou no sentido de distinguir a ação da filantropia da ação do moderno serviço
aoclal, enfatizando as dferenças entre a caridade e a racionalidade". Parafraseando o autor, MARTINS acrescenta
que a caridade só deveria ser praticada quando fosse absolutamente necessário, pois a adoção feita sem
dlCBffllmenlD favorecia o vfclo da mendicência e assim a continuação na miséria. Seu trabalho permite observar a
mdlln■lo m lntarfaftncia do médico na organizaçãn social da cidade. MARINS, S. H. Z. Artífices do ócio:
mendlgoa e wdlo8 em São Paulo (1933-1942). Assis, 1996. 409 f. Tese (Doutorado em História) - Programa de
Pd1 Gradl.1açln .im História, Universidade Estadual Paulista.
'
133
cujas bases conduzissem a vida dos homens e mulheres pobres que se espalhavam,
sociedade brasileira a partir dos ideais progressistas, matizados pelo positivismo e pelo
afirmar que suas propostas mantinham estreitos limites com as práticas políticas de
que se buscavam imprimir para São Paulo deveriam ser prontamente combatidas ou
, ..
.•
COl1k> sugerido pelo médico psiquiatra eliminada do meio social.
1711
LUCCA, T. R. de. A Revlata cio Brall: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Edunesp, 1999. p. 156. Contudo,
a aulora pouco explora as evidencias do periódico por ela analisado quando à questão do negro e às políticas de
bnlnqueamento da população, remetendo a questão para o que considera de mestiçagem, abrandando um
pnic1110 mcbamamente violento, seguramente inscrito nas páginas d'A Revista do Brasil. Para um aprofundamento
da prablernéllca, ver: DOMINGUES, J . P. Uma história não contada. Negro, racismo e trabalho no pós-abolição
em 8lo Paulo (1889 1930). São Paulo, 2000. 370 f. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Filosofia,
La I e Cllnclae t IU'Nln8S, Universidade de São Paulo. p. 208.
,
134
elaborados pelas elites dominantes no poder. Tal situação se agravava ainda mais em
São Paulo, cidade projetada no cenário nacional como a mais europeizada, portanto, a
mais civilizada por comportar o maior número de estrangeiros em sua malha urbana. Ao
fazer valer os ideais de civilização erigidos pelo modelo europeu de vida e trabalho, as
nas mais variados setores da psiquiatria clínica, didática, forense e social" o compêndio
IIN,lbllcado por Pacheco e Silva acaba por evidenciar não só as bases teóricas que
Jurfdlcaa mas, também, as interpretações que estes saberes produziam sobre os negros
do antigo regime.
135
Contudo, a escrita do compêndio procurava atingir seus propósitos finais, qual seja, o de
atingiam não só a família como, os filhos e netos mas a raça. Essa constatação permite
supor que o ideário do atavismo não tinha sido de todo abandonado em São Paulo.
Paaheoo ·• SIiva. Quatro dos exames periciais evidenciam crimes cometidos por
hornenai.trta,negros e um imigrante italiano. O quinto caso recupera os acontecimentos
vlvldoa ,por urna mulher, também negra, caracterizada como degenerada por sua
produção da criminalidade argumentando que "...O indivíduo que nasceu com o cérebro
136
agravada ao demais pelo abuso do álcool, deve ser seqüestrado da sociedade, que têm
·
inofensivo, com a con d'1çao
- d e o t ratar h umanamente ..
" 171
ser ilustrado em sua maioria por negros é indicativo de uma prática psiquiátrica
perversões. Para Pacheco e Silva, a repressão a estes tipos deveria ser mais severa,
senão para intimidar o criminoso, pelo menos para eliminá-lo da sociedade por um longo
O primeiro caso apresentado por Pacheco e Silva em seu compêndio não foi
examinado por ele mas por Franco da Rocha, seu mestre e antecessor nos domínios da
_t.:. '
'. i.:e';.' .
de Giuseppe indica que o mesmo havia praticado uma série de crimes que
!:•PACHECO• SILVA, A. C. Palqulatrta Clínica e Foren••· São Paulo: Editora Renascença, 1951. p. 454.
Oeeo .,, 24. Loucura moral. lntlmeros crimes culmlnando em homicídio. lbid. p. 435.
·'
137
imigrante italiano não foram de todo aceitas pelos médicos que o analisaram, os quais
refutaram parte do que fora dito por Giuseppe pois como descrito, "não mereciam muita
fé", exceto quando este afirma que seus pais faziam uso contínuo de bebidas alcoólicas
médicos relatam: "Esta informação é de grande valor e nos traz muita luz sôbre o seu
grande demais para o seu tamanho. Os diâmetros da cabeça foram assim identificados:
Giuseppe eram "...a assimetria das orelhas; implantação viciosa dos dentes e dentes
. .'
'9:'Pr&numerários; abobada palatina disforme; tremores fibrilares na língua; reflexos
. ..
' ~
171• Conforme dellnlçlo encontrada no mesmo compêndio, "...o têrmo onanismo foi empregado por TISSOT e provém
de Onanla, palavra empregada por um autor inglês, em virtude do pecado de Onan, de que falam as sagradas
eecrlluraa. Onan, filho de Judas, casou-se com Thamar, viúva de seu irmão Her, e não desejando ter filhos, para não
W obrigado a dar o nome do irmão, de acõrcto com o rito da antiga lei egípcia, lançava fora o sêmen. Hoje se
denomina onanismo ou masturbação ( de manus, mão, estupro, eu corrompo} a prática que consiste em provocar
ejaculaçlo por melo de manobras manuais. Freqüentemente nos adolescentes, o onanismo se transforma por vêzes
em anomalia Incorrigível, peculiar a certos degenerados, que só se satisfazem recorrendo ao vício solitário, de que
uumeabueam". PACHECO e SILVA, A. e. p. 431.
,
138
diversas cicatrizes de antigos ferimentos que se lhe notam no couro cabeludo". 114
Quanto ao exame psíquico os médicos afirmam que nada podiam saber sobre os
primeiros vinte anos de existência do imigrante e que, muitos fatos dessa fase teriam
para o exame " ... não pequena importância... " mas eram quase inteiramente ignorados.
Para tanto, Franco da Rocha e Marcondes Vieira recorreram aos documentos anexados
aos sete processos de Giuseppe, encontrando ai " ... elementos que já nos permitem
A conclusão dos médicos, descrita por Antonio Carlos Pacheco e Silva em seu
. , . ,
compêndio, é bastante taxativa. Param ambos, " ...os estigmas somat1cos e ps1qu1cos
afirma tratar-se de um degenerado, um caso de " ... moral insanity (... ) um homem
. • - · O ai "
perigosfsssimo, que deve ser mantido em cond1çoes de nunca poder praticar m ··
.
174 . Confonne destacado por Antonio Csr1os Pacheco e Silva, "...os anômalos morais, os
·
apreaentando estados atípiooS de degeneração são freqüentemente apontados como a ores ª.
Jerversos os indivíduos
d ~tos delituosos
ê s ce~
que exprimem as suas próprias tendências ~ó~idas. Tais pacientes, entretanto, r~vel~m :u:;a~ ;;irantes.
Agl"iaza de Inteligência e não apresentam disturb1os psíquicos caractenzados_ por aluc1naçoes arecem arante a
Daí é fllcll de ae avaliarem as discussões infindáveis suscitadas quando trus indivíduos comp P
JUlllça...•. lbld. p. 432.
,
....
139
"
Entretanto, as descrições projetadas não parecem esboçar o perfil de uma pessoa
Por esse motivo, o mesmo não será avaliado neste momento, passando-se para o
terceiro caso que evidencia, da mesma forma, um evento de sadismo e necrofilia. Trata-
se do acusado Joaquim A. T., brasileiro, 32 anos de idade, " ... de côr parda...", solteiro,
jornaleiro, natural de Pilar mas que, no período, residia na cidade de Sorocaba, cidade
Juiz de Direito da 3ª. Vara Criminal da Comarca da Capital, "... a quem fôra expedida
Joaquim respondia a processo como incurso no artigo 266 do Código Penal por ter
1711
171' PACHECO e SILVA, A. C. op. clt. p. 436.
• lbld. p. 437.
177
, Ca-., n. 26. Sadismo e necrofilia PACHECO e SILVA, A. e. Psiquiatria Clínica e Forense. 2 ed. São Paulo:
Edltota Renacença. 1951. p. 447.
'
... 140
...,,
....'
..-
~
Como atestam os médicos que assinaram o laudo referente ao crime que indiciou
também foram retirados dos autos do processo servindo de base para as conclusões do
exame psiquiátrico .a que foi submetido. As informações ali contidas, tomadas como
verdade inconteste, afirmavam que o mesmo não tinha profissão certa e que nunca
havia freqüentado a escola, como que reiterando ser as ações desviantes, hediondas e
indicam que o mesmo era um homem de baixa estatura, medindo 1m55 mas com
1Dlal ausência de pelos nos membros superiores, também escassos nos membros
o 8JC8l118 apontava que o indiciado possuía uma visível deformação na perna direita,
mais c:urta que a oposta, devido a uma artopratia adquirida na infância e uma
~ tipo perigoso, violento, forte o suficiente para estrangular uma pessoa também não se
~ .
·:;
.
' ~
178
-Como aalentou Jean-Claude SCHMITT, a noção de marginal sinaliza uma ruptura dos valores sócio-culturais e das
.-ieçt111 econ&nlcas vigentes em cada época e lugar, pautando-se na recusa em assumir valores hierarquicamente
lmpaatoe de cima para bai>co, passando a viver formas de exploração, de dominação e de exclusão que estão na
t-eaa da. niprioduçlo da ordem social em diferentes contextos históricos. SCHMITT, J-C. A história dos marginais. ln:
178 La GOFF, J. A nova hlat6rta. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 267-268.
. PACHECO e SILVA, A C. op.clt. p. 448.
'
141
Joaquim não possuía o perfil comumente associado aos criminosos bárbaros, dado que
servia para alargar ainda mais a idéia de que qualquer pessoa, sobretudo os negros da
para aumentar o peso dos segregacionismos costumeiros vividos pelos negros pobres
permitem observar que nada do que o Joaquim dissesse seria acatado. O fato da justiça
tê-lo incriminado já era o suficiente para anular toda e qualquer tentativa de defesa ou
.,-
A psiquiatria, nos termos próprios do período, buscava ser reconhecida como o
·-,.- .
a condição mental dos criminosos. De acordo com o laudo emitido conforme solicitação
1111
• kld. p. 448. Aa iaapoatas emitidas ao promotor público afirmavam que Joaquim A. T. era um psicodegenerado, que
O glnetoiantlnde sua anormalidade indicava, para além de sua anomalia do instinto sexual, uma "... hipoevolução do
111111tnento Mico, hipe181T1otlvidade, Impulsividade e incapacidade intelectual..." e que esta influía diretamente sobre o
_, carétar, dominando-lhe a vontade e os atos.
'
142
""\ do poder judiciário concluía que os fatos delituosos imputados a Joaquim eram
de que Joaquim não fosse de fato o assassino do menor que vivia no bairro Água
quase que exclusivamente nos registros anexados aos autos do processo, Joaquim foi
dias nas celas do mais recente espaço construído para contenção do inumano em São
O último caso, descrito por Pacheco e Silva para ilustrar o capítulo do compêndio
solteira" com vinte cinco anos de idade, "... de estatura mediana, tipo nomiosplâncnico
lino.•.", esboçando bigodes e barba que, na ocasião, exercia "... sem grande
111 • Confom,e salientado por Antonio Carlos Pacheco e Silva, E. R. "...esteve em tratamento na Santa Casa, mas de lá
foi expulsa pelas lrmls, às quais foi denunciada por uma companheira de enfemiaria, que não quis prestar-se às
IUIII llblclnagens. Vem agora à consulta do Ambulatório da Clínica Psiquiátrica espontaneamente, pois está
aonvenolda de que não é como as demais mulheres e talvez encontre tratamento para seus males". PACHECO e
SILVA, A. C. Palqulatrlll cHnlca • forenae. 21 ed. São Paulo: Renascença, 1945. p. 454.
'
.-
- -
..
...
.,_....... 143
.....
-
"
.... Conforme o relato médico, E. R. teria vindo do interior do estado onde vivia com
sua família. O pai, falecido "...com suas faculdades mentais perturbadas ...", deixou viúva
.., a mãe com os filhos que ainda viviam, os quais não seriam poucos. A história registrada
no compêndio indica que, desde c riança, E. R. sentia atração pelas de seu sexo e
força, procurando brincadeiras nas quais poderia assumir o papel de homem, buscando
primárias, "... tendo estado matriculada em escolas nacionais e numa alemã (...)
,, 182
sabendo 1er e escrever.
Aos 20 anos, após atritos com os familiares, provocados pela "exaltação" de sua
"anormalidade", E. R. " .. .fugiu de sua casa para melhor se entregar às suas tendências,
levando vida irregular...", morando com outras mulheres em quartos de aluguel e hotéis
pregando tõda sorte de manobras ..." para excitá-las e que, assim procedendo,
desejá-lo para o carnaval, mas com êle se veste e logra imiscuir-se em roda de
• ™•
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com os quais percorre conventrilhos, bebendo em companhia de mulheres,
euapelta de seu verdadeiro sexo...". Mesmo assim, a "paciente" foi considerada como
1• . PACHECO e SILVA, A. C . Pelqulatrla Clínica e Forense. 2 ed. São Paulo: Editora Renascença, 1951. p. 455.
•
144
descrição médica, como "... uma débil mental", ainda que mitigada". 183
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Fotografia 1. "A doente em trajes femininos. A mesma doente envergando roupas masculinas" {legenda
original). Conjunto de fotografias publicadas em PACHECO e SILVA, A. C. Manual de Psiquiatria Clinica e
ForanN. 2 ecl. São Paulo: Renascença, 1945. p. 454. Acervo Instituto Oscar Freire de Medicina Legal e
Criminologia da Universidade de São Paulo.
183• "Embora se empregue como cozinheira, é inconstante nos empregos, mas diz não passar privações, pois que
percorre ardilosamente a vários subterfúgios, sobretudo escrevendo a sua progenitora, que mora no interior,
narrando situações desesperadoras e conseguindo assim extorquir tudo quanto a mesma aufere em trabalhos
árduos. No Ambulatório a paciente se mostra extremamente confiada, perfeitamente à vontade, tratando a todos
com intimidade, não tendo dúvidas em aceder aos pedidos que lhes são feitos pelos médicos, propondo mesmo
novas experiências e exibições para que fique perfeitamente comprovada a sua capacidade sexual masculina.
Todavia, conserva ainda um certo contrôle sôbre suas ações, pois diz ela que o único freio que a impede de agir
mais desembaraçadamente é o medo de se ver envolvida em casos policiais, pois tem certeza de que muitas de
suas vítimas perderam a virgindade. Concorda com sua situação anômala e pede aos médicos que, se houver um
processo capaz de lhe definir um sexo, opta sem hesitação pelo masculino.". lbid. p. 457-8.
•
145
forense pois, diferentemente, a imagem projetada pelos médicos que analisam o caso e
que a identifica como uma pessoa doente e pouco inteligente não se coaduna com as
de E. A. como uma "débil mental" visava identificá-la como uma degenerada, uma
perversa, uma invertida e não como uma mulher capaz de criar estrategicamente meios
fatores que levariam as pessoas não só à loucura mas, sobretudo, à criminalidade. Para
o caso e E. A., estudado por Pacheco e Silva e pelo dr. Olinto Matos, os sinais estariam
centrados no tamanho das mãos, dos pés e nas "feições masculinas", sobretudo, pelo
história trágica de José Augusto do Amaral, sua exposição ilustrativa como degenerado
....
....
146
...,
As imagens de E. R. que ilustram o manual premiado pela Sociedade de
Medicina Legal e Criminologia de São Paulo, como os demais casos apresentados por
Antonio Carlos Pacheco e Silva informava, ensinando, aos advogados criminalistas que
sobretudo, o lastro familiar, suas hereditariedades, sua vida pregressa mas sempre de
.
Na virada do século, a psiquiatria estava fortemente centrada no macro-hospital
A111Dtllo SERRA, a loucura permite duas decorrências imediatas: a incapacidade jurídica e sua potencialidade
• 01111:, lnstênclas é a que a loucura passa a significar o foco recorrente da racionalidade de um sistema
,, Para o IIUIDr, a partir da clentlflclzação da loucura " ...as sociedades burguesas poderão pautar os critérios de
, tolerlncla • e,cclualo dos desvios em geral.". Ponto nevrálgico à atuação da medicina no "corpo social",
..-lll'ldo
lllltMl 111, hlglMllzando, controlando sua população. SERRA, A. A psiquiatria como discurso polítlco. Rio de
Aal'lllrnl/lOCII, 1979, p. 24.
,
...
.....
147
....
de controle social em São Paulo tais conclusões demonstravam "o êrro e O perigo da
grandes centros urbanos como a cidade de São Paulo, cumpriria à psiquiatria moderna
diretrizes para um efetivo controle social dos que se comprimiam na base da pirâmide
época.
433·
ed Sã P 1 • Editora Renascença, 1951. P·
1• . PACHECO e SILVA, A. C. Psiquiatria Cllnlca e Forense. 2 · o au o.
I
...
~
... 148
'"" que poderia ser observada e classificada em quadros tipológicos determinados, fixados
...
.... sobretudo pela biotipologia. Assim, imprimindo uma lógica classificatória à degeneração,
...,
os intelectuais políticos ligados ao direito e a medicina estabeleciam uma similaridade
""I
crime.
_.r sob constante vigilância, confinados em espaços exclusivos para o seu tratamento,
o manicõmio judiciário.
z:: mentalidade do indivíduo na sua própria constituição e não somente na sua atividade ... ",
,
..,
~
149
.
... isto é, a pessoa já nascia degenerada, dado que aproximava as interpretações do ilustre
...
.... psiquiatra paulistano àquelas propostas pelas matrizes lombrosianas, reafirmando a
.... . d o cnm,noso
existência . . nato. ,as
....
~
a construção de um hospício para alienados pois " ... os doentes mentais eram
Paulo, ou encarce rados na prisão comum com criminosos vulgares". Construído na rua
São João, nas proximidades da rua lpiranga, o primeiro espaço destinado à loucura em
Pires da Motta. "Êsse estabelecimento, que funcionou naquele mesmo local até 1864, foi
inaugurado apenas com g doentes, na sua maioria criminosos e alguns agitados, tidos
.
como pengosos à comun1.dade.,, 1a1
111· ~ - P• 423. ~ adotando a _orientação oferecida por Dupré, Pacheco e Silva também apresentava as
:•li 11 • ;•li• pr8001tiZllriaS por Régas para quem as psicoses degenerativas seriam doenças da função e estanam
rei li ld·•••· C
•ad· •· : •... 1) Desequilibrados (degenerados superiores). compreendendo os desarmõnicOS, os ong1nais.
• 111el11lricD8. 2) Degenerados propriamente ditos (degenerados médios), abrangendo as degenerações simples e
• prloa■•• doa d1generadoe. 3) MonstruosidadeS (degenerados infenores), englobando a imbecilidade e a 1d1oba.".
M a-11-•Nlc• oferecldaS por Kraepelin que incluía todos os casos descritos pro Rég1S no grupo das
;•li•
pr..,rTt1d•• pelcbp61i'"as que, por sua vez, se subdividiam em " ...a) os neuropatas; b) os neuróticos obsessivos;
:'IIJ • uMw:1•11; d) 08 fnstjvels; e) os débeis da vontade; f) os impulsivos, com exacerbação dos impulsos normais
lpllpâ ar.ava; g) 08 impulsivos patológicoS; h) os perversos sexuais (homossexuais, sad1stas, mazoquistas,
'11at1Uue, lld,lclc.,,iltas); i) os diecUtid<>res; j) os extravagantes; k) os mendazes; 1) as personalidades histéncas; m)
• arnr,rrlll I a; n) oa ■■aocials oa mesma fonna, as preconizadas por Afrânio Peixoto que subdividia os "estigmas"
dad1g•nwaçlo "'lffl: • ...1) anormalidades da inteligê ncia, da attV1dade e da vontade. 2) Filias, fobias, obsessões e
• 111+1.IIID••·
111111 ••r•*
1) Petwl'l6ss ae:xuals.
foi batam por . de
AntoniO carlos Pacheco e Silva quando, ao entregar a administração do Hosprtal
Jl,qi11II. dsdlcrda 1s a docOnCia na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, escreveu sua breve
li •••'lha doa trabalhoS realizados durante o período de 1923-1937 na qual apresenta suas realizaçõeS como
••••••:rdor.
__,lffl oa llillffl08, a CiiaçlO
1911dand0, punaenorizadamente, seus feitoS como, a ampliação estrutural dos pavilhões que
tte noYOll laboratóriOS, a criação da Escola Pacheco e Silva para cnanças anormais,
• • - ra••zepl"II PACHECO e SILVA. A. C. A aulatincla a psicopatas do Estado de Slo Paulo. São
Pw+r GIMa do Holpltal de Juqueri, 1945. p . 35. •
'
.... 150
"
"'\
...... assistência médica voltada para a saúde mental em São Paulo esteve, desde sua
dados interessantes como os que indicavam que os escravos enviados para o Hospício
loucura " ... o senhor não tardava em lhe conceder carta de alforria, dando-lhe plena
liberdade ( ... ) muitos escravos conseguiam assim, mercê da loucura, a sua liberdade,
188
pois que, em se restabelecendo, encontravam-se forros.".
Rua São João. Este novo espaço ficou conhecido como o Hospício da Várzea do
Canno, que em pouco tempo também teve sua capacidade de internação tomada, fator
que deu início a uma nova demanda política à construção de um espaço capaz de
•xen::idos pelos drs. Xavier de Mesquita e João Cesar Rudge Claro Homem de Mello.
1•· lbld., p. 54. Devido 806 constantes internamentos e remodelações no serviço de assistência aos psicopatas, o
médico e pRJfaaaor Francisco Franco da Rocha é chamado para assessorar a reformulação daquele serviço no
E""8do de Slo Paulo pois, antes deste, a administração do hospício era feita por leigos funcionários do estado. O
PllrnelR> adlnll'llstraclor da assistência a psicopatas do Estado de São Paulo foi Thomé de Alvarenga, que exerceu a
lunçlo até 1888, época em que foi sucedido por seu filho, Frederico de Alvarenga, que ocupou o cargo até março de
1898, ctata de seu falecimento.
.,
....
151
'·
-.
.._ Com uma demanda sempre crescente o problema d t t .
, o ra amento dos anormais
... na cidade de São Paulo passou a ser presença constante nas t .
"" pau as governamentais
""'
.,; exigindo uma rápida remodelação do serviço que, ademais, projetava-se como lucrativo
""\
e controlador das massas. No ano de 1896, Francisco Franco da Rocha, ilustre médico
1889. Sua proposta implicava que o tratamento dispensado à loucura deveria estar
1lõnia de Alienados Juquery cujo projeto, assinado por Ramos de Azevedo, esboçava
.
8Bp890 hospitalar com capacidade para 01tocen tos 1e,'tos. 189
de São Paulo, Franco da Rocha viu suas idéias aceitas e no dia 18 de maio de
l.lna avallaçlo, específica sobre a história do hospital, consultar. CUNHA, M. C. P,. O espelho do mundo.
, a hlelórla de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. SÁ, E. N. C. Análise de uma instituição pública
lia no 181Dr de uúde. O conjunto Juquery, no Estado de São Paulo. São Paulo, 1983, 450 f. Tese
• . • . llldo em SaOde P(lbllca) Faculdade de Saúde Pública - Universidade de São Paulo. BARBOSA, A. M. A
1
JllllllJ:_,a nagra numa lnatltulçlo modelar: o hospício do Juquery. São Paulo, 1992. 142 f. Dissertação (Mestrado
D BDClalogla) Faculdade de Rloaofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo.
....
'"' 152
....
~ de assistência aos psicopatas do Estado de São Paulo compreendia um espaço asilar
"" fechado, formado por colônias agrícolas anexas ao asilo central e com assistência
....
familiar, dentro e fora dos limites do hospício. Conforme afirmava em sua "breve
Rápido foi o desenvolvimento dos serviços de assistência após a inauguração das novas
dependências erguidas em Juquerí (...) Em 1907 o asilo central e a colônia abrigavam 900
insanos e já se começava a sentir a necessidade de se ampliarem as suas instalações, o
que levou o Govêmo a adquirir duas fazendas vizinhas ao Hospício, situadas à margem
do Rio Juquerí, pertencentes a José Henrique de Carvalho e aos herdeiros de D.
Francisca Pereira. Em abril de 1908, dispondo de novas áreas, Franco da Rocha instalou
o sistema de assistência familiar no Estado de São Paulo, o primeiro que se estabeleceu
190
na América do Sul.
Construído fora dos limites da cidade mas com acesso facilitado pela estrada de
limites internos do hospício, quanto por intermédio de uma profilaxia preservadora, pela
O novo hospício, situado sobre "uma colina belíssima, rodeada por 170 hectares
destinado a triagem dos ingressantes e ao tratamento dos casos agudos e uma segunda
180, PACHECO e SILVA, A. e. A anlstêncla a psicopatas do Estado de São Paulo. São Paulo: Hospital de Juqueri,
111
SÁ, E.p.N.10.
•1945. de C. An611N de uma lnatltulçlo pública complexa no setor de saúde. O conjunto Juquery, no Estado
de SI.o Paulo. São Paulo, 1983, 450 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) Faculdade de Saúde Pública -
Unlveraldade de São Paulo. p. 129.
,
153
"
..
... Sob essa forma híbrida, o Hospício do Juquery vem para equacionar, pela via
científica e sob o signo reconciliado da "cura" e a da "assistência", uma questão
política fundamental: conferir legitimidade à exclusão de indivíduos ou setores
sociais não totalmente enquadráveis nos dispositivos penais; permitir a guarda, e
quiçá a regeneração ou disciplinarização de indivíduos resistentes às disciplinas
~
do trabalho, da família e da vida urbana; reforçar papéis socialmente importantes
~ para o resguardo da ordem e da disciplina, medicalizando comportamentos
~
desviantes - como as perversões sexuais ou a vadiagem - e permitindo ~ue sua
reclusão possa ser lida como um ato a favor do louco, e não contra ele. 19
Antonio Carlos Pacheco e Silva. Em 1923 o médico alienista escreveu uma carta ao
jovem médico recém chegado de Paris, local em que permaneceu durante um ano
dizia:
1■ . ..
• CUNHA, M. C.
..
P. O 11p1lho do mundo. Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 80.
111
, PACHECO• SILVA, A. C. op. c1t. p. 23.
'
154
"
""·
Ao assumir a administração do antigo Hospital de Juquery, Antonio Carlos
pedagógico que pretendia dar instrução disciplinar às crianças que eram enviadas para o
Juquerí.
1, tempos de Franco a Rocha, o qual fez construir um pavilhão destinado aos menores
l' ·~
~ Nesta época, dada a necessidade de ampliar e modernizar o serviço de menores e
adotando uma série de medidas que propusemos ao Govêmo do Estado, em relatório
~
::=.)
apresentado após a nossa viagem aos Estados Unidos e à Europa, fizemos construir um
novo edifício destinado à Escola para Menores Anormais. Nesta, ao par do tratamento
médico, que já era dispensado, os menores iriam receber também instrução adequada.
~ Inaugurado em 29 de maio de 1929, o novo departamento recebeu, por iniciativa do
Secretário do Interior, Dr. Fábio de Sá Barreto, o nome de Escola Pacheco e Silva. 194
menores anormais foram confiadas ao engenheiro dr. Ralph Pompêo de Camargo, chefe
e as mesas recobertas com pedra mármore, " ... que melhor atendem aos reclamos da
higiene.". O antigo pavilhão de menores, que passou a ser denominado "pavilhão asilo",
também recebeu reformas e ampliações " ... de forma a poder atender ao número cada
om6dico:
• SILVA, A. C. A mlatêncla a paleupatas do Estado de São Paulo. São Paulo: Gráfica do Hospital
1 1846. p. 38,
••
,
156
procurou atuar junto aos poderes públicos demonstrando "... a urgência da instalação de
, . ~.&,..u.,,...... .
111 ~ e SILVA, A. C. op. cit. p. 39.
• Confo.11• deam.ca o médco, "Em março de 1923 se aposentava o insigne fundador da Assistência a Psicopatas do
fal-10 da São Paulo, debcando à sua tena um hospital-colônia modêlo, que é o Juquerí, sem lograr entretanto
complà'a aua obra com a construção do Manicômio Judiciário. Sucedendo-o no cargo de Diretor de Assistência a
Palcopaje a, aaguindo a trilha do Mestre, procurámos atuar junto aos poderes públicos, fazendo ver a urgência da
lrelelra;lo da um eatabelecimento à altura do progresso do Estado. Atendendo aos nossos constantes apelos,
COiÍkllHIOB o Govêmo, em 1926, a incumbência de estudar nos Estados Unidos e na Europa as mais importantes
Olglllllzaçtlaa e>dalontes no gênero, reunindo planos e sugestões para solver tão amargo problema [a
c:n,lk-tl'1ste].• lbkl. p. 34.
'
157
'"'·
"'I
forense do início do século XX acentuavam ainda mais a noção da criminologia como
pois os elementos provocadores das práticas ilegais estariam, nestes termos, " ... adstritos
sobretudo ao campo das doenças mentais ...", situação que impunha não só a
além dos inerentes à medicina mental, para assim poder apreciar devidamente os
198
problemas da delinqüência".
Auxiliado por Pacheco e Silva, que retorna de sua pesquisa nos Estados Unidos e
cidade do Rio de Janeiro - e que São Paulo não poderia deixar de ter o seu próprio. O
projeto foi aprovado por unanimidade pelo congresso, transformando-se na Lei nº 2.245
1• . PACHECO e SILVA, A. C. Aspectos da psiquiatria social: o homem, a sociedade e a saúde mental. São Paulo:
Edlgraf, 1957. p. 236.
,
158
Tenho aqui, Senhor Presidente, um quadro organizado pelo Dr. Pacheco e Silva,
demonstrando que, em dezembro do ano passado (1926) existiam no Hospital
de Juqueri nada menos que 165 delinquentes. Desses, 95 nacionais e 70
estrangeiros, 65 condenados, 92 sujeitos a processo e 8 absolvidos, mas
recolhidos àquele estabelecimento de direito em obediência ao artigo 29 do
Código Penal. Da situação dos psicopatas encarcerados nos xadrezes do
Estado, não é preciso falar. Ainda ante-ontem, em artigo publicado no "Diário
Nacional" o dr. Marcondes Vieira calculava em cerca de 1.500 os alienados
existentes nas cadeias públicas e no Recolhimento das Perdizes, abandonados
ao seu destino trágico, sem assistência médica, em condições que visivelmente
não se compadecem com o seu estado de saúde, certo que o mesmo não se
poderá dizer199
dos que tiveram a felicidade relativa de ser internados no Hospital
do Juqueri.
criminosos refletem não a realidade dos fatos mas o que se buscava imprimir aos fatos.
representação da criminalidade em São Paulo um efeito de real que, por sua vez, dava
dba anos 1920, mesmo que este tenha sido inaugurado somente em 1933, acentuava o
problema da criminalidade em São Paulo ao mesmo tempo em que representava o
,. .
· MACHADO, A. Apud. SÁ, E. N. de C. Anéllse de uma Instituição pública complexa no setor de saúde. O
OO~untoJuquery, no Estado de São Paulo. São Paulo, 1983, 450 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) Faculdade
a •de Sm:lde Pllbllca
PACHECO - Universidade
e SILVA, de São Paulo.
A. e. A ...iat1ncla p. 67. no Estado de São Paulo. São Paulo: Oficinas Gráficas do
a psicopatas
Holptal de Juquerl, 1957. p. 34.
•
159
conduziam o tema para um campo específico da psiquiatria que, neste processo, deixou
ciênCia de aplicação coletiva na qual a psiquiatria forense passou a ter papel pnoritário.
I01
.
. . . ''8Cl\àva seus discípulos pennitindo que os mesmos estagiassem no hospital
tllil;. llllldanlas. André Teixeira Lima, primeiro Diretor do Manicômio Judiciário, foi um
- .,-----------
• li D Ih lt 1\GS?T 1118 o Cwal6rio Técnico do I lospilal de Juqueri elaborOU o projeto do ManicômiO JUO!Cl8.no,
mi li DN p- uma tclat;llo de 158 presos, tendo como fundamento o mapeamento realizado em 1926 por
~Jdcsafw:111cce SIMljlno.,. esW:nlecim&:lloS congêneres dos Estados UOldos. entre as quais figuram
• ~ P r, ·;· \a da. Rac-lA<rs 0Mt de Dtatror., Michigan; o Cook Country Psychopathlc Hospt.a , da
~•Qtrgzr •oS. ê.b-nalttl losplal. Cf. sA. e. N. de e. op. crt.. p. 66.
.
160
administração no Hospital de Juqueri mas em toda sua vida pública pois sempre se fazia
nomear para os cargos de chefia e comando sobre tudo o que fosse relacionado ao
problemas criminológicos não só da cidade mas do Estado de São Paulo. Sob a direção
diz respeito às mudanças processadas nos anos iniciais da República. Conforme aponta
criminosos degenerados. Agindo com tal rigor, o Estado estaria reforçando as formas de
controle sobre os são e introjetando a idéia de defesa. "O hospício não foi uma criação
-
-. PACHECO e SILVA, A. e. op.clt. p. 12.
, lbld. p. 13.
161
destacava
ron,per com a tutela jurídico-administrativa a que estava sujeita. A medicina trataria não
16 do corpo doente mas das cidades, processo no qual a pobreza passou a ter status de
e as grandes cidades passaram a representar um corpo que deveria ser
~ '0 11p1lho cio mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 57.
162
os autos do processo que indiciou José Augusto do Amaral como o "monstro negro" que
aterrorizou a cidade de São Paulo, bem como as demais fontes que recuperam a história
igualdade de uma população que, neste sentido, iludia-se com a liberdade e igualdade
de direitos.
.· • SILVA. A. C. Aap•~ da palqulatrta social. O homem, a sociedade e a saúde mental. São Paulo:
"7.p.11-12.
WICB da população ele negros do Juquery foram coletados e sistematizados por Rosana Machin
'"j. para qumn, as teorias racistaS propagadas pela ciência do final do século XIX e início do século XX,
"'··· . · qualll oa negroa eram uma raça inferior, levaram um tratamento "especiar· destes nas instituições
1 da~- Em aau trabalho, a pesquisadora indica que entre 1898, quando foi criado, e 1920, o índice
. que a6 saiam quando morriam era, em média, de 60%. Para os negros, esse índice subia para 70,9%
• 10% em datermlnados perfodoS. Nessa época, os negros, identificados pela degeneração da raça,
. . . . . . 1% da população da capital paulista mas, no Juquery, eles eram 12% da população interna, que variou
~~-000 padenlla. BARBOSA, A. M. A preeenç& negra numa Instituição modelar: o Hospício de Juquery.
142 f. D111er18Çlo (MeStrBdo em Sociologia) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas -
l'1ICle de Slo Paulo.
PAR1EII
- ...
REPRESENTAÇOES DA DEGENERESCENCIA
163
Criminosos natos:
Policiamento urbano e imprensa paulistana
c:u,o 1arefa formar a opinião pública. Intérpretes e porta-vozes dos setores políticos, a
mpranaa paulistana transformou-se numa força poderosa de divulgação dos valores que
• p;etendiam imprimir à população urbana, cujas relações de interesse, coordenadas
• realidade brasileira interpretada como atrasada e inculta diante dos padrões impostos a
administração pública de São Paulo percebiam o mundo europeu como sendo ideal de
institucional da cidade de São Pa ulo, viajarem várias vezes ao ano para a Europa, de
aspectos, inclusive, para revende-las para as famílias que buscavam, a todo custo,
. d t· t 20a
manter o élan da vida das grandes cidades o con 1nen e europeu.
- A-
.· _ . _.... .po,llada pela autora, adotada por esse estudo, indica que " ...os jornais serão entendidos e
nn::p118doa, '11'1110, nlo enquanto situações que 'realmente' aconteceram e cuja veracidade iremos comprovar, ma
.~, . MIII anquanto eilull9Õ8S plenas de significação (...) reconstitUindo não a condição negra em si mas, antes, os
,,1,.,_mocloe como bnlnOOB falavam sobre o negro e o representavam num momento de mudanças e transformações...".
8CI MIAPCZ., L M. Ret111m em branco e negro. Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX.
• . 8lo Paulo: Companhia
AMERICANO, das Letras,
J. Sl o Paulo 1987. p. 16.
n1111 nn,po (1915-1935). São Paulo: Melhoramentos, 1962. p. 108.
165
descritos por "maus hábitos" e "costumes imorais", os negros surgem nas páginas dos
jornais, nas colunas policiais como, "bestas feras", "monstros", ''violentos", entre outros
adjetivos que reforçavam as imagens produzidas por outras falas. Nesse tempo, os
dlstaneiavam dos padrões requeridos pelas elites políticas e dominantes. Ávida por uma
I'
pelas cenas de sangue que, não raro, aconteciam na cidade. Manchetes, as notícias
fâpórlares dos jornais que noticiaram os crimes imputados a José Augusto do Amaral
ffllll'i1aia jornais emprestavam cópias das fotografias, laudos e demais registros que
ôli,-.~ é
s. t.tau,I.
A I\Ollfk:açio reportada pela Delegacia de Segurança Pessoal, na portaria
as narrativas que evocavam os crimes imputados a Amaral vão ganhando cada vez
adquirindo com o desenrolar dos fatos, foi um dos jornais que de início divulgou uma
pequena nota que dizia: "Na estrada de São Miguel, próximo á primeira bomba de
23 horas para o local, o delegado de Thechinica Policial e o legista dr. Azambuja Neves
(sic)•, para, dias depois, projetar a notícia como manchete do jornal, dedicando um
210
espaço significativo da página aos eventos trágicos que enredaram preto Amaral.
• elitas políticas e dominantes de que a cidade de São Paulo se transformava num local
PJupído para o crime, cuja população necessitava ser estreitamente vigiada. Os
8'11,1m8ntos das matérias publicadas na imprensa paulistana, mesmo que em sua
bravldade, faziam valer as reais intenções dos aparelhos ideológicos do Estado, quais
sejam, eliminar toda e qualquer forma de ameaça ao projeto civilizador proposto para o
..• Plt ;1110 Ct1me ~ 1670. Museu do Crime. Academia de Polícia de São Paulo.
..
167
fazer cumprir as metas propostas, vale dizer, varrer da cidade tipos condenados pelas
moralidades urbanas.
moderna eram adotadas como fontes seguras, inclusive, utilizadas como recursos
diagnosticadores dos estados patológicos dos internos que, não raro, tinham suas
dos atos delituosos, por expressarem, nesta medida, a verdade dos fatos.
reportagens localizadas. O texto das crônicas policiais qualificava a ação policial que, por
sua vez, não media esforços para ver suas apreensões e diligencias sempre noticiadas
210 OEs
211 • 1lldo de S. Paulo. 02.01.1927. p. 5.
· A utilização cios jornais como balizador dos diagnósticos médicos residem nas implicações ideológicas que
Pretendiam separar o mais rapidamente possível as pessoas consideradas indesejáveis do convívio com a
população mais ampla da cidade, implicação esta que dotava não só a visão de mundo produzida pelos jornais
como orientava préti0as sociais aceitas unidirecionalmente. PACHECO e SILVA, A. C. A assistência a psicopatas
no E.atado de' Slo Paulo. São Paulo: Edgraf, 1945. p. 35.
168
com glória. Ao jornalismo era conferido uma similaridade com o real tornando a
nos jornais de São Paulo, assumia tamanho relevo que, além de fazer vender ainda
registravam os crimes atribuídos a preto Amaral, criminoso que ficou conhecido como
uma das figuras mais sinistras de toda a crônica policial paulista pois, como observou
próximo"'. 212
polícia paulistana, assim como os demais agentes do controle social na cidade de São
Paulo, as pessoas que viviam na pobreza, que não tinham uma vida "adequada" aos
suspeição generalizada recaía sobre os negros, sobretudo os da plebe. Este fato denota
como a polícia representava os negros pobres que viviam na cidade de São Paulo,
2 • BERNARD!, C.
212 O lendário Menaghettl: imprensa, memória e poder. São Paulo: Annablume, 2000. p. 75.
18
· Folha da Manhl. 04.01.1927. p. 4.
170
cometido o crime da estrada S. Miguel. Associada a notícia veiculada no mesmo dia pelo
cn·me. 214
negros.
214 · Como ra1terou Sidney CHALHOUB, •...a 'teOria' da suspeição generalizada passou a fundamentar a invenção de
uma eabaléglli de raprassão continua fora do6 limites da unidade produtiva..." pela qual os negros, não mais
ICOnW4ado8 ao local de trabalho, se tomaram suspeitos preferenciais cujos defeitos "insuperáveis" os coJocavam na
cordçlo permanente de ctassrs pengosas.". CHALHOUB, S. Cidade febril. Cortiços e epidemias na Corte imperial.
21
11
E Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 24-5.
Slo
· 0 etlldo da S. Paulo. 04.01 .19'Zl. p. 5.
171
permite observar que o local do crime era um espaço comum, de passagem, utilizado
por trabalhadores que iam longe para ganhar o seu sustento, pessoas pobres e,
significativamente, negras, como o homem que foi detido pela Delegacia de Segurança
Pessoal sob suspeita de ter sido o autor do crime por se encontrar nas proximidades em
que O corpo do menor estrangulado foi encontrado. Todavia, à medida que os corpos
solução para os casos de homicídio noticiados com regularidade diária nos jornais
216
paulistanos.
O caso das mortes ocorridas na passagem de 1926 para 1927 adquire contornos
"monstro negro", "besta fera" que estrangulava menores do sexo masculino para, em
.,. · Como l&lienta Borla FAUSTO ao especificar os desfechos de processos segundo a cor dos acusados, "...não se
trata de apenas de preconceito generalizado contra o preto; o que se tem diante dos olhos, cabisbaíxo diante da
lmpo!Ancla da 181a de sessões, é um ser inferior - preto e pobre -, acusado de um delíto com relação ao qual há má
__doa Julgadores leigos ou togados, defendidos apenas formalmente por um advogado de círcunstância."
vontade
FAUSTO, d . Crime• cotidiano. A c riminalidade em São Paulo (1880-1924). 2 ed. São Paulo: Edusp, 2001 . p. 259.
172
esquadrinhados pela medicina que passou a ditar regras à conduta sexual dos homens
destaca Jurandir Freire COSTA, já vinha sendo processada bem antes da década de
Essa hipertrofia da consciência individual no tocante a seu corpo e aos afetos fazia parte
do plano de formação da consciência de classe e raça necessária ao progresso do Estado
nacional (...) No mesmo momento, criava-se a consciência de raça ou racismo. O corpo
forte, sexual e moralmente regrado, foi medicamente identificado ao corpo branco. Para
isso utilizou-se, ordinariamente, a figura do escravo como exemplo de corrupção física e
moral. No entanto, outras "raças" foram episodicamente contrastadas aos brancos para
217
mostrar a superioridade destes últimos.
interdição médica e jurídica no corpo social por corresponderem ao grande eixo das
brasileiros com desprezo pois, " ... a maioria dos brasileiros não passava de gente
173
acomodada(... ) Os mais radicais assumiam, talvez até sem saber, uma noção presente
em alguns escritos que vinculava os 'males do Brasil' à degenerescência racial (...) tal
Nas primeiras décadas do século XX, a conduta sexual era tomada como objeto
geração de novos desviantes sendo esta uma das estratégias encontradas para depurar
os males que, por seu turno, poderia inviabilizar o projeto elaborado para o país.
fazer seria manter a pureza racial ao máximo, evitando conjunções interétnicas. Para
muitos os casamentos entre brancos e negros constitu ía-se em uma vergonha familiar
pois, desde os tempos coloniais, os negros eram representados como fonte de doenças,
muito libidinoso, são neste estado lançados no seio de nossas famílias como
81T ·- - - - - -- --
.,•• COSTA, J. F. Ordem m6dlca e norma tamlllar. 4 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p. 208-9.
· PAU810, 8 . Neg6cloe e 6clae. Histórias da Imigração. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 67.
. ---~.,.
--
174
A leitura das crônicas policiais que noticiam o caso de preto Amaral permite
travadas nos fortuitos da vida. Como poderá ser observado, as contingências que
levaram aos assassinatos ocorridos no final dos anos 1920 trazem a tona um cotidiano
marcado pela pobreza das vítimas, cujas famílias, muitas vezes dilaceradas,
seguirem o seu algoz na medida em que sempre havia uma recompensa financeira caso
movimentos fizeram subir o índice de pessoas sem ocupação, acirrando ainda mais os
prestando pequenos favores a quem quer que fosse. Suas funções, reveladoras das
condições de vida que levavam , são identificadas como engraxates, filhos de operários e
imigrantes, meninos, rapazes, vitimas de uma morte brutal, eles surgem solitários,
caminhando pela cidade, sentados nos bancos que se estendiam pela Avenida
Tiradentes, perdidos pelas ruas de São Paulo ou simplesmente brincando, como o caso
José Augusto do Amaral confessou ter assassinado. As atrocidades que davam relevo à
divulgação dos crimes da estrada velha de São Miguel permitem perceber os lugares
que as vítimas de preto Amaral viviam, onde moravam, como se vestiam, quais eram as
suas origens, como explicita a Folha da Manhã ao divulgar o encontro da mãe de uma
das vítimas:
221
· AD avaliar a conjuntura 1917-1920, Boris FAUSTO informa que, o Brasil realiza mais um oneroso acordo para
COneollclar suas <tMdas extemas. Para o autor, "no plano interno, as conseqüências mais penosas da recessão se
abalam aobre as classes populares, que sofrem os efeitos do desemprego, da redução dos salários, da perda de
peq'--nu conquistas..." FAUSTO, B. Trabalho urbano e conflito social. 5 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2000. p. 157.
176
cidade matizada pela constante mobilidade de pessoas. Não por acaso, as palavras
vftlma destacada pelas lentes do trabalho, vale dizer, a vítima aparece envolta em
aua honestidade por se tratar de um trabalhador ou, pelo menos, de uma pessoa "á
1112
· Palha cla Manhl. 05.01.1927. p. 5.
177
Neste ponto, cabe relembrar que José Augusto do Amaral, mesmo tendo sido
Mesmo que tenha dissertado na maioria das vezes, Amaral não poderia ser
considerado uma pessoa desafeta ao trabalho até porque como poderia arranjar um
Maria Auxiliadora Guzzo DECCA, que o trabalho de menores era uma prática
período, como as famílias de imigrantes operários, cujos filhos tinham que contribuir
para o sustento e provisões do lar, mesmo que tal prática fosse considerada ilegal.
As crianças menores de doze anos, impedidas por lei nos fins da década de
10 e inícios da década de 20 (Código Sanitário) de exercerem trabalho
remunerado em qualquer estabelecimento, ocupavam-se em geral de
biscates, pequenos serviços que completavam os ganhos das famílias. No
decorrer da década de 20, no entanto, inúmeros estabelecimentos
industriais onde não existia assistência médica organizada burlavam a
legislação existente, o que permite supor que, sempre que possível, mesmo
menores de doze anos trabalhavam regularmente (... ) sempre que possível,
meninos e meninas, por volta dos doze, treze, quatorze anos, começavam a
trabalhar fora de casa, contribuindo decisivamente para o orçamento
familiar. Segundo alguns, mesmo nas "classes médias" o trabalho dos
garotos não podiam ser dispensado, estes muitas vezes ajudando suas
223
mães no pagamento de aluguel da casa.
223
• DECCA, M. A. G. A vida fora du Mbrtcae. Cotidiano operário em São Paulo 1920-1934. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987. p. 24. Sobre este aspecto, Zélia Lopes da SILVA acrescenta: "...com relação ao Código de Menores
._.
~ (Decreto 17.943-A, de 12/12/1927) a objeção da burguesia diz respeito à jornada de trabalho de seis horas definida
para este trabalhador. O art. 108, do referido decreto, estabelece que o trabalho de menores, abaixo de 18 anos, não
P0clefé 8>ecedw( aquele período, Interrompido por um ou vários repousos, cuja duração não poderá ser inferior a uma
hora. A rejelçlo por parte dos Industriais, da Jornada de trabalho de seis horas, baseia-se no entendimento de que
:ua Implantação desorganizaria a produção na indústria do algodão, dado que 80% dos operários, nas seções de
ação, alo menores de 14 a 18 anos.". SILVA, Z. L. da. A domesticação dos trabalhadores nos anos 30. São
Paulo: Ma100 Z8rolCNPq, 1991 . Sobretudo a parte intitulada "A experiência da década de 20".
178
"um momentoso problema", como afirmava Antonio Carlos Pacheco e Silva, exigindo
latente.
palestras, encontros, cursos, entre outros canais de informação, deveria ser promovida
miasão civil a ser cumprida. Para o médico, a pedagogia teria um papel crucial na
114. PACHECO e ·- --
SILVA, -AaperAoe
A. C. -- de pelqulatrla aoclal. São Paulo: Edigraf, 1957. p. 109.
,_)
1711
◄[-~:,
,. ......---
~~
intervenção disciplinar, discriminando as crianças normais dae anormais ou
degeneradas, as quais deveriam ser excluídas das escolas para os normais como
-~
medida profilática. "Nesse horizonte, critérios raciais, nem sempre e,cplicltados, traçavam
hereditariedade (leia-se, sobretudo, 'raça') era marca de um destino que a educação era
225
incapaz de alterar.".
1 ~• imprensa paulistana sobre os crimes processados trazem à tona lugares da cidade nos
'-
quais Amaral, o suposto assassino, teria passado com suas vítimas, recuperando os
•
momentos que antecederam as mortes dos garotos encontrados estrangulados e
da rua João Theodoro, o Restaurante Meio Dia, os botequins da rua Lourenço Gnecco, o
l S ::,
Mercado Municipal, os bondes que levavam à Lapa, as blanquetas do rio Tamanduateí
surgem nas páginas dos jornais identificando os locais freqüentados por "preto Amaral".
de Segurança Pessoal de São Paulo como "jovens neófitos", crianças que vivenciavam
uma trajetória inexorável, marcada por uma pobreza extrema e por uma crescente
225
- CARVALHO, M. M. C. de. Quando a história da educação é a história da disciplina e da higienização das pessoas
ln: FREITAS, M. C. (Org.) História Social da Infância no Brasil. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997. p. 298.
180
...J~
produtores de verdade eram outros, como é possível observar decodificando a retórica
_)
~ de Antonio Carlos Pacheco e Silva:
~ crime.
::) Nesse sentido, os locais que congregavam os populares, como ba1'8S, cafés,
pequenas salas de teatro, os quais atraiam as pessoas que passavam a procura de
->
• :-:> sanitária, os imigrantes pobres, os nacionais despossuídos e especificamente os negros,
---~
~ ........
eram instruídos não só a adotarem medidas higiênicas mas a reproduzirem os disaJrsos
~--
-- elaborados pelos controladores da ordem, os "delegados da saúde saciar• que viam a
permanência das crianças nas ruas, com seus vícios e contravenções, não só uma
...-
.
Este diagnóstico agravava-se na medida em que os controladores da ordem
~
revalorizavam a infância, reiterando de diversas maneiras imagens e representações da
importante da história de São Paulo, qual seja, o da passagem do século XIX para o
século XX, confrontando a situação vivida por crianças e adolescentes das camadas
226
. PACHECO e SILVA. Op.cit. p. 112.
...
4-4dif""""'-~
[~
Antonio Carlos Pacheco e Silva escreveu uma série de artigos que versavam sobre
criminalidade infanta-juvenil, questão que parecia ocupar boa parte do esforço intelectual
227
- MOURA, E. B. B. de. Meninos e meninas de rua: impasse e dissonância na construção da identidade da criança e
do adolescente na República Velha. Revista Brasileira de Histó ria, São Paulo, v. 9., n.17, set. 88/fev. 89. p. 139.
Consultar também: _ _. Crianças operárias na recém-industrializada São Paulo ln: Dei PRIORI, M. (org.) História
das crianças no Brasil . São Paulo: Contexto, 2000. p. 259-258.
Outro ponto de reflexão do autor era a questão da sexualidade crtminoaa, tema
sobre O qual se dedicou em estudar e para o qual preto Amaral tornou-se o exemplo
se auto-denominava " ...tanto por sua formação biológica, psicológica, como soclol6glall".,
.
indicado para coordenar os esforços dos diferentes especialistas que se ocupavam
só da delinqüência infantil mas da assistência a todos os psicopatas de Slcl
'°f';,'lfl~
228
. PACHECO e SILVA, A. e. As ecto . .
Edgraf, 1957. p.11a. p s da psiquiatria social: o homem, a sociedade e a saúde mental. São Paulo:
espaços habitados e freqüentados pelas classes pobres e perigosas, como eram
s comuns e despossuídas no início do século XX.
comumente identificas as pessoa
. d d não tem maior número de criminosos do que merace, poiqLNI a,
:,::~teªé ~ caldo de cultura da criminalidade. O micróbio, que seria no
d l'nquente é um elemento sem valor enquanto não encontra o maio prap
1
a~ seu de~envolvimento. Não há a menor dúvida que a aocledade
desgraçadamente, um excelente caldo de cu~_ra, em cujo aalo ge
tàcilmente e em grande número jovens delinquentes, cuja vida -
destino, se outras tossem as .condições do ambiente em que
amparo recebido e assistência a êles prestada. O maio saciai
particularmente em virtude da sua desorganização polftlco-aoclal-acOn
rápido crescimento da população e, sobretu~, da co~pção que lm,np1•11•a dli
a baixo da demagogia sem peias que domina os melOS 229 polftlcoa, 6
propíci~ ao desenvolvimento da delinqüência infantil.
230
consciências a partir das propostas emanados do centro.
229
230'
lb'd
1 . p. 111 .
. CAPELATO M· H· A • O controle da opiniã
8 ras1le1ra de História, São Paulo v 12 23/o e os rimites
. . ' • da liberdade:
. Imprensa Paulista (1920-1945) Revista
período demarca um momento e~p~cífic~ d ~4, set. ~1/ago. 92. p. 62-3. Sobretudo, como acentuado pela· autora, o
~~=~~uí~ue passavam de 'experiências !o~a:~ça~v~~tgrande 1mpren:x1 ~acional, isto é, "da transformação de
socied as e mantidas através de verbas de ru ' ~~s passa~eiras , a grandes e estáveis empresas
O
ade que se organizavam, veiculando reilet~ds, sem duv!da envolvidos nesse debate enquanto segmentos da
' 1 o e produzindo novas representações".
~
114
impreterivelmente, trabalhador.
J Sempre rudes, os negros figuravam nas páginas dos jornais até o final da década
desafeto ao trabalho, inversões tributárias das teorias raciais que estigmatizaram os afro-
- -.)
- -.) brasileiros ao longo da história do Brasil. O s negros compunham o universo dos mito& dQ
-i,-., •
-,-=> terror urbano, representante legítimo dos tarados estupradores, do erotismo ordinário, da
- e
....
".::]
:)
vulgaridade promíscua, sádica.
.. _,
_, _j •
pelas sensacionaes revelações feitas na Delegacia de Segurança Pessoal pelo
preto José Augusto do Amaral que, com uma naturalidade impressionante, após
haver confessado a autoria do crime da estrada de São Miguel, contou, de uma
• .-? vez, como que num desabafo consolado r, mais três assassínios idênticos
aquelle e que dizia praticados, todos, no curto espaço de 15 dias. Quem o
~ --") ouvisse, então, a narrar, espontaneamente, sem qualquer interrogatório, taes
... - :,
crimes horripilantes, diria, fatalmente, no primeiro momento, que aquelle homem
era um louco que estivesse a fantasiar os c rimes mais infames para legiar
~ :, celebridade. Mas tal foi a firmeza com que Amaral persistiu em repetir os seus
crimes, circunstanciando factos sem cahir na menor contradicção, que para logo
J ,:, quasi se dissiparam as duvidas que porventura alguém ainda tivesse sobre a
11:"i- j_
~ veracidade das assombrosas revelações. E assim, depois de pesquisas
infructiferas, feitas ante-hontem á noite, nos pontos ind icados pela facínora,
11.;l. :,
- como sendo os em que perpetrara os seus crimes, o dr. T oledo Piza, delegado
a;i de Segurança Pessoal, acompanhado de inspectores e outros auxiliares, (?)
hontem cedo as suas diligencias que tiveram êxito completo. No campo de
Marte, foram encontrados os corpos das duas victmas a que se referira Amaral,
~ conforme noticiamos hontem. Igualmente não era fantasia o caso, da ponte da
Cantareira, verificando-se entretanto, que o menino que o preto, dizia ter morto,
- -
,.-it
:-,_
-,
ainda vive, como abaixo veremos. E assim, confirmadas com o resultado das
diligencias, as revelações espontâneas do preto sádico, parece que apenas
resta á policia estabelecer a identidade de uma das victimas. Isso feito, a
Delegacia de Segurança Pessoal terá, possivelmente, ultimado as suas
diligencias em torno dos crimes mais monstruosos de que há notícia nestes
últimos tempos. 231
A chamada loucura erótica fixava ainda mais a idéia das manifestações que,
231
• Folha da Manhã. 07.01 .1927. p. 5.
'
c0 1•
(--,)
t--
•
~ --..)
loucura erótica pareciam fomentar, ainda mais, o empenho profilático das instituições de
"---v
- .j
·. controle cujas práticas segregavam e discriminavam os negros de forma avassaladora,
·~
além de estimular a publicação dos crimes de Amaral nos jornais paulistanos, como a
matéria de capa publicada no jornal A Platéa sob o título "Monstruoso e repugnante", na
qual dizia-se:
~
Portanto, pode-se dizer que a popularização da imagem degenerada, criminosa e
::; -~
..J. :')
,
~
~
sediciosa atribuída a Amaral eram transferidas aos negros cujas histórias de vida eram
-- 'j ~
semelhantes à trajetória de Amaral. O tratamento recebido e a ampla divulgação na
• -- ? brancos. Representados na maioria dos artigos veiculados pela grande imprensa pelo
~-~
~~ desvio e pela desqualificação comumente associados à "raça", os negros eram
"'- -- ? identificados a partir de elementos instáveis e ilegais provocados pela vida desregrada e
-1
acentuadamente marcadas por uma moral sediciosa, criminosa e corruptora.
232
. A Platéa. 06.01 .1927. p. 4.
'
l-...J
,-....)
..
• i:~
- -í-~
para fixar tipos criminais vinculando-os, explicitamente, aos negros. Lemos 81111,(O
_)
t"....~ realizou um mapeamento de obras literárias "sem distinguir autol'8S cléssica■ ·•
...'-0
modernos, consagrados de obscuros, cultos e célebres de modestos e
evidenciavam "os lábios delgados, a testa estreita, os cabelos crespos, o nariz vol1
• \
e as sombrancelhas cerradas", características marcantes entre os negros, como sinais
característicos dos tipos degenerados, "nos quais se observa uma regressão atávica ao
criminalidade nata, vale dizer, os negros. Não raro, os gestos, sentimentos e fisionomia,
233
• Em COOSOnãnoa com ditames cientff1COS característicos da época, o autor argumentava: "Os nume~
derinqüentes que levantamos das páginas da literatura brasileira refletem a gama infinita dos temperamentos, o meio
amb4ente, as influências de tõda ordem, orgânicas, educacionais, de hábito, através da subordinação de cad~ qual
às iecs da necessidade econômica, da acomOdação, da imitação. Tudo isso manifestando-se conforme a região, o
ama,°. ~ento, o grau de cultura, a proXimidade ou afastamento dos meios civilizados ...". BRITTO, L. Os crimes
e os cnm1nOSOs na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1946. p. 8.
~~
........... _0 -
~ 'v
-~
Enquanto a ciência médica tudo classificava e explicava, a imprensa velcullNa •
'~~
~....~ representações das classificações médicas, transformando-aS cada vez l'l'IIJlj;
~
-- ~ .....
rapidamente em consensos coletivamente aceitos e socialmente assumidos.. t..,,,,-...~.;11
~
' '
termos, caracterizar o negro como degenerado significava, sobretudo, dellmllar '-lí _; •••f,.,_;
~ _::,
__
A narrativa policial encontrada nos jornais que cobriram os crimes di
e_✓
D 1 ✓ visava uma reconstrução dos eventos por intermédio de técnicas avançadas da
✓
perícia policial, fotografando os locais e colhendo depoimentos das pessoas
::,
-::, nos crimes de 1926 e 1927 na tentativa de imprimir a ''verdade dos fatos". Oi
da fotografia traduzia a realidade, tal qual acontecera no passado, servindo como prova
cabal para incriminar quem quer que fosse. Porém, os negros eram assumidamente
-,
234
. A Gazeta. 05.01.1927. p. 6.
235
- CUNHA, M. C. P. O espelho do mundo. Juquery, a história de um aslio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. P· 31 .
236
- "A repressão aos sem-trabalho era um dos temas freqüentes do noticiário no primeiro quartel deste século. O jornal
Fanful?a, por exemplo, considerava a indústria da mendicância o primeiro grau da escala da delinqüência (...)
Postenormente, o Diário da Noite manifestou-se a favor da limpeza feita pela Delegacia de Vigilância e Capturas ao
recolher os mendigos, inicialmente, nas prisões do Gabinete de Investigações, uma vez que o aumento dos
desocupados infestava as ruas." BERNARD!, e. o lendário Meneghetti: Imprensa, memória e poder. São Paulo:
Annablume, 2000. p. 23.
'
1•
·~
emanado das elites políticas e dominantes sobre os pobres e perlgo808, nllcleo 01ntral
de toda a sorte de ilegalidades, eram literalmente expulsos dos limites da cidade, .. ....
.MI - -~- - ~-~ .•,
deportados.
por este estudo evidenciam dados adversos, contrariando as projeções que anunciavam
t"'-
Em 1916 ocorreram 8.9n prisões na Capital. Eram brasileiros 4. 538 e ci, líll■biM
distribuía-se por diversas nacionalidades._ ~ italianos e os portugueees somavam a
1.733 e 1.580, respectivamente. A segu_1r vinham os espan_hóls _com 486 P•, 1-0• !-•·
presas e as demais represe~tavam diversas outras naetonalidades. A li ala,•
constituía-se de brancos ou seJa, 6.782. Os pretos eram reeponaáYels por 1.307 a
os pardos por 888 presos. Quanto ao sexo, 644 eram mulheres. ~ manara~ da
quatorze anos totalizavam 413. De 14 a 20 anos foram presas 1.775 mclvfduaa, de
21 a 25 registraram-se 2.1 45 prisões; de 26 a 30, 1.413; de 31 a 35, 814; de 38 a
40 695· de 41 a 50, 999 e de 51 a 55, 268 pessoas presas- Com mais de 66 anaa
' detidas
foram ' 419 e os de idade ignorada somaram 15. o nooao , _an.,.._.
de . ...
atingia 3.573. A profissão que mais contribuiu para alcançar essa soma foi a dl
"jornaleiros" com 2.308 presos, embora os catalogados sob a mcpreasio. -.eu,
ocupação" atingissem a 3.084. A seguir, vinham as que exerciam • "arlllll e .
offícios" com 974; os comerciantes com 563; os "empregadas no oam61cio" CXl11
528; Os "serviços domésticos" com 482; os operários com 431 e os - __.
com 286. Na seqüência, com um número bem inferior d e ~ . apareci■:j
237
"profissões liberais", os funcionários públicos, os militares etc.
que a construção mítica em tomo do negro perverso foi forjada por intelectuais que
•■ _ .,J
Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo. Acompanhando o
a e
•.. _:,::,
_j movimento da criminalidade na cidade de São Paulo recuperado por Guido FONSECA,
é possível detectar um alto índice de pessoas "sem ocupação", situação que por si só já
:, ::,
-
;J_ ~
seria o bastante para enquadrá-las como alvo das ações controladoras do social pois,
.J_.:, para a Delegacia de Capturas ou mesmo para a Delegacia de Segurança Pessoal, era
-
:,
·-~
-, ~
dessa "inércia" que brotavam as aptidões criminosas. Para o autor,
237
FONSECA,
• 317. G. Crimes, criminosos e criminalidade em São Paulo. São Paulo: Resenha Universitária, 1988. p.
238
. lbid. p. 28.
f
111
por Guido FONSECA possibilitam entrever que a vadiagem era a contravenção ele maior
incidência nos anos iniciais do século XX. Tal condição era totalmente adversa à idéia da
não reincidentes, cujo total somava 2.716 pessoas. Os dados revelados permitem
~
-./) identificar quais as contravenções e as situações que levavam as pessoas a delinqüir,
projetando-se no mundo do crime.
~"")
t--0 192
........~
Elas foram identificadas pelas seguintes razões: vadiagem, 422: laaõee
corporais leves, 131; desordens, 129; furto, 72; embriaguez, 69; laa6as corporais
.~
graves, 65; defloramento, 32; homicídios, 29; estelionato, 22; leaõaa corporais
culposas, 20; roubo, 18; homicídio culposo, 14; tentativa da homicídio, 11;
estupro, 7; meda falsa, 3; tentativa de furto, 1 a por outros crimes, 19. ( ...) Daaaa
universo de 2.716, os brancos somavam a 2.157, vindo os pardo. COIII 318 a 08
pretos com 243. Apenas 173 eram do sexo feminino. Quanto às nacionalidadas,
~ .:J os brasileiros apareciam com mais da matada ou seja, 1.455 lnclvídu08
identificados. Entre os estrangeiros, os portuguesas ocupavam a lldalança com
405 indivíduos. No seguimento, estavam os italianos com 368; 08 aapanh6is
com 178; os "turcos-sírios" com 85; os hispano-arnericanos com 37; oa alamlaa
com 20; os franceses com 17; os russos com 16; 08 austrfacoa COIII 15; 08
anglo-americanos com 11 ; os ingleses com 7; os japoneses com 5; 08 belgas
com 4; os suíços com 3 e outras 92 pessoas de diversas nacionalidad■a. 0a
~ analfabetos eram em número da 910. Os solteiros somavam a 1.702, os
casados 896 e os viúvos a 118. Segundo a idada, esses 2.716 ldenllllcadoa
dividiam-se em: menores de até 14 anos, com 53; de 15 a 21 anos, 628JJ8 22 a
30 anos, 1.039; de 31 a 40, 539; de 41 a 50, 283; de 51 em diante, 174.
a r✓
Os números dos que foram presos na Cadeia Pública de São Paulo, que atestam
•- :, Secretaria de Justiça e Segurança Pública de São Paulo, atestam que a presença dos
:,
~ negros era inferior se comparadas ao universo da população contraventora, constituída
'
~
:t
basicamente por brancos imigrantes. A análise realizada por Guido FONSECA avança
2
'.jQ . lbid . p. 318.
... ... .
193
e::....
Nesse mesmo ano de 1920, foram identificados 1.811 incivfduoa j6 com
antecedentes criminais. Ainda aqui a vadiagem apresentava o maior índice da
reincidentes: 881. A desordem e o furto ocupavam a segunda. poek;lo 00111 um
mesmo número, 67. Pela prática de lesões corporais levas foram ldunlilibadaa
60 pessoas. Na ordem apareciam a embriaguez com 52 C8808, o roubo 00111 19,
as lesões corporais graves com 16, o defloramento com 1O, o a11811onato oom 5,
~ o homicídio doloso com 3 e o homicídio culposo com 3. Encenando a relação
estavam a tentativa de homicídio, a lesão corporal culposa e o ~ cxim uma
reincidência apenas. As outras contravenções seriam raap0l'lll\vêla por 73
identificações. Para legitimação, registraram-se 545 caaoe. Aa m!Jl•raa
reincidentes somavam a 81. Do total de 1.811 identificadoa com anbb1dinlla1,
1.298 eram brancos, 279 pretos e 234 pardos. Os solteiros aariam r11~ifNela
por 1.282 identificações, os casados por 451 e os viúvos por apenu 78,;Qulnto
a idade, o maior grupo de reincidentes estava na faixa etária de 21 a 30 anaa
com 76~_ind_ivíd~os. Em_ segundo lugar, apareciam os de 31 a 40 llnCl!I .qp.P.2~
•·
Na sequencia vinham ainda os de 14 a 20 anos com 344; de 41 a ao·mr1 170;
os maiores de 50 anos com 137 e os menores de 14 anoe mn 14
reincidências.Os brasileiros destacavam-se bastante dos clemaia. Bclla WII' que
dos 1.811, 1.193 eram nacionais. Os italianos, os portuguesas o oa aipinhdla
ocupavam as outras posições com 240, 178 e 100 ida&,ida.
e respectivamente. Os "turcos e sírios" eram em número de 37 e oa ~
americanos com 20. As demais nacionalidades aparaciam bem abí:ltO~ 'AS
profissões que mais reincidentes apresentam foram os "jornaleiros" oom 1.104,
os "empregados" com 239, os lavradores com 78, os "artistas" com 59, u
profissões liberais com 52 e os negociantes com 25 casos. R ~ con10.
"outras profissões" havia 227 reincidentes e como "sem profissão", 33. Entra
esse total de 1.811 identificados podiam ser encontradas pessoas que tinham
:) sido presas pela Polícia de 2 a mais de 12 vezes. Neste último caso, ou seja,
pll '_.j
-
- ., indivíduos com mais de 12 prisões havia nada mais que 112. 240
~
~, científicos do início do século, eram próprios dos degenerados, equivalendo dizer que 88
-_ _~-_./)
,/)
Se na virada do século XIX a questão das perversões sexuais era largamente
~ - discutida e analisada sob o ponto de vista psiquiátrico, no início do século XX, para os
240
. FONSECA, G. op. cit .. p. 319.
- 1N
H' , ~
em que a criança é o objeto especial e exclusivo da disposição patológica (...)
·~
Para Pacheco e Silva, que relata e assina o exame psiquiátrico solicitado pela
para o tamanho de seu pênis, eram suficientemente cabais para classificá-lo como um
degenerativa, Amaral assume seu lugar no museu do crime como o assassino que
241
• PACHECO e SILVA, A. c. Psiquiatria Clínica e Forense. 2 ed. São Paulo: Renascença, 1945. p. 444-
J 1M
-~
... ,,~ ....
..,. V
-
-~ ~
-.
Sadismo e necrofilia:
Os crimes do "monstro negro"
- ~
.~
~ Como indicado anteriormente, o início do século XX marca um perfodo'11i
-✓
-,,....,:) do Brasil em que a psiquiatria adquiriu notoriedade nos meios jurfdlcoa,
., r ..:;~·;
~ """"" magistrados e advogados na emissão de sentenças às pessoas envolvid•·,e
:r~
. ~j questão judicial, bem como o direcionamento institucional, isto é, a reclusão do lndtclâcl
• _._J
1 ~J em uma prisão comum ou em um manicômio judiciário. O período, referenciado pela
. ~ "')
.. __'.) historiografia recorrente como sendo de extrema comoção social, como demonstrado, foi
•
~ marcado por práticas autoritárias e elitistas que influíam no cotidiano da população pobre
1 de forma insidiosa. •
l
1
i. Das políticas de saúde às praticas urbanísticas remodeladoras das cidades, as
l recentes,
L-,
1~ -,
...-
~
elites orquestravam as ordens da exclusão. De acordo com as pesquisas mas
l ordem social.
•
1N
...
A fotografia judicial de José Augusto do Amaral, tornadas de perfil e de frente
foram publicadas nos jornais que divulgaram os crimes ocorridos, em revistas
serviam, do mesmo modo, como documento ao diagnóstico relatado por P- .,.,.~ .,,
' '.'-,,_;;ii,J
r•
Silva, tomando público e exemplar a imagem de tipos classificados pela palqul · :,.,:,~;~:,,r,,,,., ,
São Paulo, hoje parte do Acervo Histórico do Museu do Crime da Academia (W'.1 , , • · • ·/ ,.e .....!"'"""
:.
,. · ;"':t
. ,._ef
-· 1 i -t..., f ,., . •
. ·-V'~,. it • -·
como ficou conhecido mas vinculavam, reforçando, a idéia dos negros como sujab a
::>
~ O uso da fotografia como "puros testemunhos empíricos" ou "auto-evidentes por
~:,
~ :, conterem em si sua própria identidade" era mais do que recorrente nas décadas iniciais
.., do século XX. A imagem, no período, destinava-se a "ilustrar, corroborar, completar ou,
~
~ eventualmente, matizar enunciados" que outras fontes pretendiam evidenciar ou fazer
~
conhecer. A fotografia, no período recoberto por este estudo, equivalia a uma verdade
~
,-. '
~ ~
..
visível, a uma realidade passível de ser aprendida pela apreensão da própria imagem,
'"'"'-~
- -~ ~
isto é, como um "receptáculo de informações empíricas do referido externo".
242
~
-_.,~ . . .,
/")
2
~ · LIMA, S. F. de ; CARVALHO, V. C. de. Fotografia e cidade. Da razão urbana à lógica de consumo. Albuns de São
Paulo (1887-1954) Campinas: Mercado das Letras, 1997. p. 14.
,
L81,
·01ned o-gs ap OPBlS3 op B!OJlºd ap e1w apeov
ep awµ::, op nasn~ op 011Jaov ·oL9 ~ ·au awµ::, ossaooJd ·1e101pn! -e1~eJ6oio:1 ·ieJewv op oisn6nv 5'sor ·e eipu6olo:1
V'
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e •
e- •
•
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...
1•
reproduções na imprensa, até então, eram raras e artesanais. Conforme indicado por
Gisàle FREUND, em 1880 publica-se pela primeira vez uma fotografia reproduzida por
denominada pela autora como uma "revolução para a transmissão dos acontecimentos",
funda uma outra percepção das coisas e dos fatos. A fotografia passou a emitir
outro.
':>
~ a partir de sua multiplicação massiva nos meios de divulgação e informação, como os
•• Para
:, autora, o material fotográfico, sobretudo em sua utilização pela imprensa, freqüentemente subverte .as
mtençoes que o fotógrafo quis imprimir à imagem captada pelo instantâneo da fotografia, imprimindo um sentido
diametralmente oposto à intenção inicial e acrescenta: "A objectividade da imagem é apenas uma ilusão, e as
legendas que a comentam podem alterar totalmente sua significação". FREUND, G. Fotografia e sociedade.
Lisboa: Vega, 1989. p. 107. p. 154.
/>
•
-
de partida, a pista para tentarmos desvendar o passado". Nestes termos, os documentoe
fotográficos, assim como as demais fontes para a pesquisa em história, nlo podem aer
aceitos de forma unidirecional, "como espelhos fiéis dos fatos" mas "contextuallzadoa na
244
trama histórica em seus múltiplos desdobramentos".
ri, não correspondessem ao tipo fisionômico que outras falas faziam recair sobre oe,,,..._i
CJ 245 •
_.:) A força metafórica das imagens levou Maria Luiza Tucci CARNEIRO a considerar
~.,
:)
que algumas fontes históricas, como a fotografia, partem de um sistema simbólico que
_:, acionados, o consenso atribuído pela imagem, fazem surgir imagens interiores que
•li ., ~
244
• "Assim como os demais documentos elas [as fotografias) são plenas de ambigüidades portadoras de significados
~ não explícitos e de omissões pensadas, calculadas...". Logo, é possível dizer que o registro fotográfico, como o autor
.. ') reitera, é uma "representação do real" e não o real, algo que se quis imprimir como verdade, muitas vezes,
subvertendo seus propósitos originais, conferindo à imagem um outro propósito, invariavelmente ligado à dominação
e ao controle, isto é, ao poder. KOSSOY, B. Realidades e f icções na trama fotográfica. 2 ed. Cotia: Ateliê
~ ')
245
Editorial, 2000. p. 20.
~ -~'J . Lemos BRITO, ao recuperar os criminosos na literatura brasileira, referencia diferentes histórias sobre a loucura
erótica na qual o negro aparece não como o louco mas como o erótico tarado, cuja falta de pudores e moral não lhe
..., _.J) impede o desejo pelo sexo. Recuperando a literatura brasileira o autor narra a seguinte passagem: " ... Leonor sai, por
uma tarde ameaçadora de tormenta, pela estrada que parte da casa-grande. Vai febril, excitada pelo calor e pela
"1 -,-~
..-~_/)
_/)
solidão, com seu erotismo a latejar-lhe o sangue. Dados alguns passos, a moça avistou um vulto que se dirigia para
a fazenda. Mais de perto, pôde ver que se tratava de um negro. Era um antigo escravo, já velho, mas ainda robusto.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Leonor teve uma resolução louca. Sem uma palavra, decidida e brusca,
avançou para o negro, fê-lo parar e com movimento frenético abriu, desabotoando, desatando, rasgando, as roupas
•
de_ qu~ estava vestida. Num instante ficou aos olhos espantados do negro quase inteiramente nua. Viam-se-lhe os
seios firmes, o ventre liso, as pernas de estátua. Com o mesmo frenesi atirou-se a despir o preto. Era já agora um
furor alucinado: puxava, rasgava as calças dêle ... O negro, um momento espantado, sentiu diante daquele corpo nu
de despertarem-lhe inconsciente, involuntariamente, energias lúbricas de sátiro, todo o calor sensual de sua raça ..."
e prossegue anunciado a morte de Leonor que, como seu marido, ainda em lua de mel, havia morrido fazendo sexo.
BRITTO, L. Os crimes e os criminosos na literatura b rasileira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1946. p. 34-
5.
'
►
..
~"""'I!
humana. Proposto por George Cuvier no final do século XIX, o termo raça inaugura a
•--
--
• -- ")
"') alcançados pela grande maioria das pessoas, quiçá para os não proletarizados ou que
viviam à margem do trabalho. Deste modo, o que fazer com os indivíduos cujo
11---?
l!I _..-, comportamento era incompatível com as normas estabelecidas? De que maneira tratar
~ -~~
~ as pessoas identificadas como negros, "naturalmente eróticos" ou caracterizados por
J.1,.,/2
uma "irracionalidade substancial"? Como registrar socialmente estas pessoas,
~
~
- - assimiladas como perversas, perigosas, anormais?
246
- CARNEIRO, M. L. T. O discurso da intolerância. Fontes para o estudo do racismo. ln: Oi CREDDO, M. do C. S .
(Coor.) Fontes Históricas: abordagens e métodos. Assis: Programa de Pós-Graduação em História, 1996. p.28.
'
,) 1111
...
Este tipo de questionamento encontrou na psiquiatria nascente uma poaaível
... ~
~
resposta, qual seja, que os incapazes deveriam ser tratados isoladamente jé que
portadores de uma doença que atingia justamente sua capacidade civil de Inserção
social. Esta era a lógica para a segregação costumeira reforçada, no contexto, pela ld6la
de que o Estado não só deveria se encarregar de seu tratamento mas lucrar e01n a
prometida reincorporação destas pessoas após a cura, justificando, assim, por ~
Estado moderno.
--,)
A teoria da degenerescência da raça, que sistematicamente presidia as p1
247
.r-1 '.') despossuídos nas primeiras décadas do século XX.
o~
j Autorizada pelo seu caráter científico, a psiquiatria forense paulista promovia o
---· "
"'·l!'I ~
.......
portadores de tais moléstias acabariam por "contaminar todo o corpo social", fator
247
, Como assinala SERRA a origem das rigorosas medidas de enclausuramento dos desviantes sociais encontra seu
marco na aprovação da Lei de 1838 da Assembléia francesa, pois outorgava definitivamente à competência médica
a ident~icação e cuidado com as figuras sociais consideradas desviantes, revelando a natureza política do
conhecimento psiquiátrico em sua perspectiva de controle social. SERRA, A. A. A psiquiatria como discurso
polftlco. Rio de Janeiro: Achiamé/socií, 1979, p. 31.
'
,) -
... ~.
.... ~
=.. .v classificações, vinculando-se cada vez mais ao estudo da criminologia e das ciência
penais. Nesta perspectiva, o discurso proferido por Antonio Carlos Pacheco e SIiva na
·~
._)
-~ aula inaugural de psicopatologia forense do curso de doutorado em direito da Faculdade
Meus senhores (... ) Jamais poderia supor que abraçando carreira tio dlw:11a
das ciências jurídicas, ter algum dia a ventura de falar nessa Faculdliéfl.
respirar um pouco dessa atmosfera vivificante, onde uma mocidade ~~
-~
-~
plasma o espirito no mais são idealismo, aprendendo, desde cedo a · · ·· ' •/'.r. ~
.-.,.)
com entranhado amor, desprendimento e sacrifício as grandes a ~
--- ·'·-' •L, ~1
-~
~ -.,)
que enobrecem os sentimentos humanos (...) Recordo essas palavra .
senhores, porque quer me parecer que hoje, mais do que nunca, um "
direito e de justiça empolga a consciência brasileira, cujas esperanças
na sombra do poder constituído (...) Devemos reconhecer que a meclclna
~,..._:, cada _vez mais a ~ua esfera de a~o, as leis que regem a vida doa aartl
organizados se aplicam ~ada vez mais á composição dos agrupamentos se -- M
.·D• cl ·I•
:J~)
__:, (... ) Compreende-se as~1m o papel. cad!l vez mais saliente da p s ~
• _:)
241
forense, que abre uma via de comun1caçao entre o direito e a medicina...•
! _.. . . . ~ precisa e sem constituir-se numa ciência autônoma, a criminologia, assim considerada,
'- ----") '
era apresentada nos manuais da época como uma ciência pré-jurídica, em cuja matéria
.,-_~
= residiria o estudo do homem, seu viver social, suas ações e sua "evolução" como
248
Como salienta Maria Luiza Tucci CARNEIRO, "...os regimes totalitários e autoritários tiveram plena consciência e
•
domínio dos meios de comunicação de massa. Fazendo uso do cinema, dos posters, das fotografias e das
caricaturas, convocaram convocaram as massas à adoção ativa de certas convicções racistas oferecendo, como
recompensa, uma sociedade pura, liberta dos vírus contaminadores. Não podemos esquecer que, todo projeto (no
caso
0 o ideário racista) se faz em nome de uma causa." CARNEIRO, M. L. T. O discurso da intolerância. Fontes para
estudo do racismo. ln: Di CREDDO, M. do e. s. (Coord.) Fontes Históricas: abordagens e métodos. Assis:
249 Programa de Pós-Graduação em História, 1996. p. 29.
· PA~HECO e SILVA, A. C. Aula inaugural de psicopatologia forense. Archlvos do Instituto Médico Legal e do
Gabinete de Investigações. Rio de Janeiro, n. 5, jul. 1932. p. 117-118.
•
aD4
0
► '-~)
.........r ~
t...'0 espécie e indivíduo, porém, sob o domínio do direito penal, ao qual deveria, como uma
-...~0 ciência pré-jurídica, prestar-lhe esclarecimentos. Neste sentido, o estudo do crime e do
J enviado para uma prisão comum, entregue a esfera restrita da lei. Portanto, o
.)
conhecimento médico produzido em to mo das classificações dos tipos desviantes
,: )
:, estreitava as estratégias de controle da população marginal da cidade de São Paulo,
_:, •
de separá-la dos fenômenos comuns da vida cotidiana, mas levada por uma ordem
~
,.,
..,
.
científica, a psiquiatria moderna buscou estabelecer métodos, planificando e orientando
"1- ~,., a conduta e as atividades comuns dos homens e mulheres, estreitando, sobremaneira,
""' ...-') os laços que uniam penalistas e psiquiatras. Como indicou Michel FOUCAULT, o elo que
1-1 J'.)
une a instituição judiciária com a medicina é dado pelo exame psiquiátrico, documento
Ou seja, "A justiça não pode ter competência sobre o louco, ou melhor, a loucura tem de
•
... '-0
'0
-
·-v
0 se declarar incompetente quanto ao louco, a partir do momento em que o reconhecer
~
como louco: princípio da soltura, no sentido jurídico do termo.". 250
~
li
As orientações oferecidas pela psiquiatria forense indicavam que a "perícia
~
psiquiátrico-criminal" deveria ser efetivada toda a vez que um detendo apresentasse
-~J sinais de perturbação mental antes ou depois da condenação, como previa o artigo 22
-~ do Código Penal Brasileiro: "Artigo 22 - É isento de pena o agente que, por doença
.r- ~ mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da açto 0LI
.
1
r- ~ omissão, inteiramente capaz de entender o caráter criminoso do fato ou de del&lmlla►
_)
, ....... ..) se de acôrdo com esse procedimento.". A orientação representava para os P••·•·• .•1■··.1,u.·,-
forenses, e para a medicina como um todo, uma vitória das ciências posilhnli-f"llft:
:, ,.. ,;,,J-).1,,:,
'
.. .·0
-~ ••
""' \..)
;,..'"'-0 '
das normas regulares e das condutas morais. Contudo, a razão maior do exame doe
~·. delinqüentes estava em apresentar ao juiz um quadro amplo e profundo da
•"-..)
0 personalidade criminosa, do autor de uma infração penal, para que este, a par de um
252
diagnóstico completo, pudesse emitir um veredicto cientificamente comprovado.
Nos anos vinte, o caráter puramente biológico da conduta criminal já não era a
;.-....)
única resposta para os comportamentos desviantes, porém, havia ainda
~
· ---,) permanência da busca dos estigmas criminológicos que, de acordo com as ori
•
- ~ ,) da psicopatologia forense, poderiam revelar a natureza essencialmente criminoea
-,--~ estigmatizados, daí a importância dos métodos da antropometria e da biotipologia,
:i ~:,
,:, mensuravam os corpos das pessoas detidas pela polícia e levadas a julgamento.
__:,
li _:) preconizado por A. Lacassagne, inclusive como crítica aos pressupostos
1 _) metodológicos de Cesare Lombroso, o aspecto social também tinha preponderância à
1 _')
• ,:, conduta criminal. 253
~ ~
J Contudo, como afirma Antonio Carlos Pacheco e Silva, "no que respeita aos
~ - ~
J - :, fronteiriços, justifica-se o princípio de considerá-los sempre perigosos", isto porque ainda
~-- ~
t- ~ permanecia inconcluso a existência ou não do criminoso nato preconizado por
,·~ ,,___
,__,.,
,
Lombroso, os quais, sob influência de elementos exógenos, são levados ao crime. Para
o médico, "... o estado de periculosidade de uma pessoa devia ser, sempre que possível,
~ --J
- revelado a priori e não a posteriori..." o que permite supor que, para a psiquiatria forense,
!
,-~
~ .
a qualidade do "demi-foli' ainda era uma proposição aceita e que, portanto, sua
•
1-~ ID7
....- ·-- ·,
◄. V •
~
1-.--v Outro ponto relevante que a documentação consultada permitiu avaliar foi a
~
percepção da rotina e qualidade de vida das pessoas envolvidas nos crimaa. Os
·,.)
-~ registros possibilitam decifrar como as vítimas se movimentavam na cidade, o que
faziam, de onde vinham, com quem moravam, quais eram os seus anseios e 001no ae
r:.. relacionavam no espaço urbano da cidade de São Paulo no início do século ~ t.Cllllftl
... eram elas e o que pretendiam. Tal percepção, fundamentada por urna
~ historiográfica que perscruta a antinomia dos comportamentos humanos, de au•
,:)
~ e relações sociais, possibilita observar as contingências da vida em
~
J nestes termos, as experiências humanas passam a ser compreendidas como 001
-:,
~
de informações. Como salienta Giovanni LEVI:
:,
...toda ação social é vista como resultado de uma constante •:►= "ª'':
•=· '
:> manipulação, escolhas e decisões do indivíduo, diante de uma i? ·
normativa que, embora difusa, não obstante oferece muitas possibilldadea da
J interpretações e liberdades pessoais. A questão é, portanto, como definir u
j margens - por mais estreitas que possam ser - da liberdade garantida a lffl
indivíduo. pelas brechas e contradições dos sistemas normativos que as
~
~ .., governam (...) Neste tipo de investigação, o historiador não esta simplesmente
preocupado com a interpretação dos significados, mas antes em definir as
Cl ") ambigüidades do mundo simbólico, a pluralidade das possíveis interpretações
desse mundo e a luta ~ue ocorre em tomo dos recursos simbólicos e também
:, dos recursos materiais.
54
~
..,
, Neste sentido, a história trágica de preto Amaral toma-se significativa não apenas
254
- LEVI, G. Sobre a micro-história. ln: BURKE, P. A escrita da história: novas perspectiv.as. São Paulo: Edunesp,
1992. p. 135-6.
255
- REVEL, J . (Org.) Jogos de escalas. A experiência da micro-história. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 21. Ou ainda,
como afirmou Car1o GINZBURG, movendo-se numa escala reduzida, a qual permite uma "... reconstituição do vivido
impensável noutros tipos de historiografia.". GINZBURG, C.; CASTELNUOVO, E.; PONI, C. A micro-história e
outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989. p. 177.
'
'V
~
••
v
v
',
ociosas e vagabundas José Augusto do Amaral sempre buscou viver às suas expensas,
v
trabalhando como soldado em diferentes brigadas policiais nos estados de São Paulo,
Rio de Janeiro, Goiás, Mato Grosso e Rio Grande do Sul. De acordo com a
:i - J
~ -) eram sempre os mesmos. Recuperadas no exame psiquiátrico ao qual é subm~ ' .
- - :,
J mudanças e transferências de Amaral de um lugar para outro trazem a tuna
:)
acontecimentos não menos importantes ou reveladores. Sua passagem pelo Rio Grande
J
.. j do Sul evoca uma dessas memórias. Ao retraçar os antecedentes pessoais de preto
. '.')
~ '.) Amaral, Antonio Carlos Pacheco e Silva registra os seguintes fatos:
..,
..,
~ .
~ "
.,.,
·" )
O hospício no qual preto Amaral teria sido enviado, mesmo que sem um motivo
~ -
aparente, hoje denominado Hospital Psiquiátrico São Pedro, é uma instituição que
C!
".)
'1 centralizou, historicamente, o atendimento em saúde mental no Rio Grande do Sul.
lllil
... Fundado em 29 de junho de 1884, o antigo "asilo de alienados" abrigava os loucos,
256
• PACHECO e SILVA, A. c. Psiquiatria Clinica e Forense. 2 ed. São Paulo: Renascença, 1945. p. 442
•
'0
'0
-
.... e
0
~~ Cadeia Pública, onde eram confinados mesmo sem ter cometido qualquer crime, dado
-~
que permite afirmar que havia uma forte ligação entre o hospício e a prisão.
0
-~ Interessante notar que a grande maioria das pessoas, sobretudo os negros,
!'V também identificados como pardos, pretos e "mixtos", eram levadas ao hoapttal~,pela
0
--✓ polícia sendo que o motivo da saída da imensa maioria dos intemos era dado .. ..... ..l .F .,;,.,,
' ,.·..
• i ",t '"i,-1--<'ri!f
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~ notas de falecimento. Em consulta aos prontuários foi possível observar a
" ..,
~
:,
...que tendo cumprido os sete meses de prisão empreendeu viajem para Porto
:J ~
Alegre como praça no décimo Regimento de Infantaria; e também do décimo
Regimento de Infantaria, sendo por ordem do commandante incluído como
~
li .,
J praça do trinta Batalhão; que nessa occasião havendo um pequeno levante
revolucionário no Batalhão o declarante foi preso como suspeito e como mais
tarde fosse certificado que uma praça de nome Ramos e outra de nome
•-
1
~ Vasconcellos foram as únicas responsáveis nesse levante, foi o declarante posto
em liberdade, sendo excluído do Batalhão a ordem do commando; que nessa
ocasião um jornal de Porto Alegre publicou várias notícias referentes a esse
levante, como também se (?) pelo pagamento de soldo a que o declarante tinha
'--~
,_...,., '
direito em vista de não ter feito parte no movimento revolucionário. 258
=---~ Em alguns casos, foi possível observar que os internos conseguiam fugir do
---li- -~ hospício, perspectiva que alimenta a idéia de que Amaral também tenha seguido o
mesmo caminho, caso tivesse de fato sido internado no referido hospital, como indicou
Antonio Carlos Pacheco e Silva ao examina-lo a pedido das autoridades judiciais de São
Paulo, quando este foi preso e acusado de ter estrangulado e violentado os cadáveres
257
.ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Porto Alegre. Prontuários Clínicos do Hospltal
Psiquiátrico São Pedro.
~
210
~
-~
'
""V dos três "jovens neófitos" encontrados pela Delegacia de Segurança Pessoal de São
v Paulo. 259
v•
tratamento a ele drspensado não era diferente dos vividos por outros de sua etnia.
... --~:.
..
.'...
'
Nascido na cidade de Conquista, Minas Gerais, em 15 de agosto de 1871, filho de·tjt.l
• " . .• r·:..,
~
\ t~-.;.,.:
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•J
1
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.'
•
informaram "de suspensão", o qual continuava informando: ''Tem uma irmã cujo destim
.J ignora". 260
1 J
li j
~. . .., As informações recuperadas por Antonio Carlos Pacheco e Silva revelam que
:.'I. j
Amaral viveu o momento exato da passagem do trabalho escravo para o trabalho livre,
;1 . :,
._., dissonante e costumeiro, tomado natural pelas teorias que explicavam a "evolução
,.,__
~ .-'j inferioridade, da incivilidade e degenerescência humana.
- --./)
., 258
259
Processo Crime 1670. São Paulo. 09.01.1927
.
. Entretanto, conforme indicado por Ney Roberto Váttimo BRUCK, um incêndio, em 1935, queimou parte dos registros
que relatavam os trabalhos desenvolvidos até 1926. Talvez, o registro de José Augusto do Amaral tenha sido
queimado junto com os demais documentos. BRUCK, N. R. V. A pedagogia da exclusão: um estudo sobre a vida
de internados e a ação (des}educativa numa instituição psiquiátrica. Porto Alegre, 1989, 354 f. Dissertação
260 (Mestrado
p em Educação} Curso de Pós-Graduação em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
• .ACHEGO e SILVA, A. C. op. cit. p. 441. Informações como essas são significativas pois acentuam um debate
ª!n_da_pouco analisado e interpretado pela historiografia, qual seja, o encontro dos africanos no Brasil e . as
vicissitudes da luta pela permanência de suas etnias e culturas. GIACOMINI, S. Mulher e escrava . Rio de Janeiro:
Vozes, 1988. WOORTMANN, K. A família das mulheres. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987. FLORENTIN<?,
M. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
·, ) 211
'V
·--~
v '
Solteiro, sem ter declarado possuir filhos, Amaral tinha 56 anos em 1927, quando
v '·
foi preso pelos crimes que confessou ter praticado. Sem manter nenhum tipo de
v
·,
'
'....J relacionamento familiar estável, Amaral era um homem solitário, sem endereço fixo,
~
vivendo como vivia os negros que não constituíam famílias ou que se afastavam do
~
convívio com outros negros, passando a viver em pensões, em quartos de aluguel,
~ dividindo estes mesmos quartos com outras pessoas, muitas vezes desoonhecidaai
:)
pernoitando em albergues públicos, vivendo onde quer que fosse, aventurand~ae . . . .
-...:) ..' ;;·
emoções e paixões da vida moderna, comportamentos que, como •alnaladl:
:>
:> anteriormente, eram condenados pela psiquiatria forense.
~
:, O jornal O Estado de S. Paulo, em matéria intitulada "mais um crime hediondo'\
:,
:::> na qual narrava as atrocidades imputadas a Amaral, dizia que " ...sem residência certa
)
dormindo ora nos bancos dos jardins públicos, ora em camas alugadas a 'r$300', numa
J
:_,
., casa da rua Mauá, nos fundos de um salão de engraxate, o preto Amaral deu expansão
aos seus instinctos bestiaes, praticando, no curto espaço de quinze dias, todos os crimes
J
~ de que se confessa autor... ", estendendo, simbolicamente, para as demais pessoas que,
j
-,
., como Amaral, não tinham onde morar, a representação do indivíduo perigoso, malfeitor,
sexualmente degenerado, isto é, tarado, cujas relações deveriam ser evitadas pelas
,/)
,,, Entramos aqui num terreno de criminalidade vasta, fecundado pelo dinheiro, que
quase sempre impede de prosperar a áção particular ; terreno por conseguinte,
que oferece o maior numero de delinquentes impunes, de velhacos afortunados,
de satiros triunfantes, de gente que seduz, corrompe, desflora e estupra virgens,
que depois atira o monturo da prostituição ; gente sem senso moral! Ou de
"consciencia imunda" que, apesar disso representa com tranqüilidade o seu
papel na grande comédia da honradez. 262
261 OE
262 . stado de S. Paulo. 06.01 .1927. p. 5.
. AGUIAR, A. de. Sexologia forense. Medicina Legal. Lisboa: Empêsa Universidade Editora, 1914.
•
212
~
t:....~
'-"·"'\)
~ A sexualidade criminosa, por essência degenerativa, considerada como resultado
afirmava em seu compêndio que, para o médico francês, os crimes sexuais divic:11.m•
-~ •
em dois grupos. No primeiro grupo estariam agregados formas patológicas , . , . _.
---.) ••.
. "'
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.i -:>
Os sintomas da exaltação indicavam '1emperamento genital. Excitação genNlca
1111 ~
• J tão freqüente em certas afecções: ataxia, raiva, tuberculose. Onanismo maquinal,
■ )
1 :> automático. Satiríase. Ninfomania. Criese genitais momentâneas. Exaltação
~ ~ acompanhando certos atos fisiológicos. Psicose puerperial, psicose da menopausa". No
':, -~
..,
__ .
•
estado de diminuição, os sintomas eram "Frigidez habitual ou momentânea. Impotência.
•---~
• .,___ Ausência congênita do apetite sexual. Erotomania." 264
·-~
--- ~ O segundo grupo das perversidades classificadas por Lacassagne recuperavam
•.. necrofilia, quer dizer, o amor pelo cadáver; 2.º) a bestialidade, isto é, o amor pelo ser vivo
outro que a pessoa humana, pelo animal; 3.º) o niilismo da carne, o amor fetichista, a
azoofilia, etc.". 265
283
28 - PACHECO e SILVA, A. C. Psiquiatria Clinica e Forense. 2 ed. São Paulo : Renascença, 1945. p. 426.
4. Idem.
285
• Idem.
"0
.' V
211
·~ Conforme descrito no manual de psiquiatria clinica e forense que, vale lembrar, foi
'v
escrito para o conhecimento dos advogados sobre as causas dos desvios sociais,
v
~ especificamente àqueles interessados em psicopatologia forense, Antonio Carlos
~
,.) Pacheco e Silva indicava que, para Krafft-Ebing, a classificação clinica das psicopatias
sexuais compreenderiam:
pederastia, pela qual, conforme o diagnóstico do ilustre psiquiatra, sentia-se atraído por
: •<)
pessoas do mesmo sexo. O quadro psicopatológico diagnosticado alterava-se pela
pedofilia, já que as supostas vítimas de Amaral, o "monstro negro", eram crianças, o que
não correspondia com a realidade pois, nem todos eram crianças, como será
Para os médicos, Amaral era um homossexual cuja variação foi considerada uma
ponto de vista físico-psíquico e que estão aptos para a realização do ato sexual
condicionado ao respectivo sexo, mas que são levados à perversão por temor de
266
, PACHECO e SILVA, A. C. op. cit. p. 427.
e
v 21•
.,j '\,)
~ ''-,)
,. ) depravação de costumes, por verdadeira profissão...", tomando o caso mais
~
-~ ,.J
aterrorizante ainda. 267
. ' ~
, 1~..)
assinalava o psiquiatra paulistano, sobretudo entre os homens. Traduzida como .a
satisfação sexual fazendo sofrer a outrem física e moralmente, infligindo maus ba1íillt
, '
•,· ;(-la-
i
desde a injúria até as sevícias mais graves a pessoa que compartilha do ato sexual, ,,,~;;:'·
l~
1--~
,-~ ,_)
O sadismo se manifesta física ou simbolicamente. No primeiro caso, o
satisfação sexual quer vendo o sofrimento estranho em que não tomou
mandando produzir tal sofrimento, quer êle mesmo realizando a hipólaae.
1 simbólica, o insulto atirado sobre a vítima é suficiente para agir (...) O allll■ma
1
.) pequeno e grande. Um ato sádico atenuado quase que pode ser tido à
normalidade: é o que acontece com o beliscão, sucção, mordedura, 8lC. e 1116 li'
.) muitas vezes preparatórios do ato sexual normal. No grande sadismo h6 lat&ed·
:, sérias que vão até a morte da vítima, ao seu espostejamento ou à antropdagla. •
,: ,
:) Já a necrofilia ou ''vampirismo", perversão sexual na qual o pervertido busca •o,
'·,.,
:) gozo sexual profanando cadáveres, sepultos ou insepultos, quer para masturbar•se
)
~ como fetichista, quer para a realização do ato sexual, foi considerada no manual de
~
psiquiatria clínica e forense escrito pelo psiquiatra paulista que relata o caso de Amaral
.,
j
como "uma das formas mais monstruosas e repelentes da degeneração sexual". Assim,
-,
.,
~ a partir das representações projetadas pelas definições e classificações dos perversos, a
~ pavores, exercia um certo fascínio sobre a população ávida por reconhecer as minúcias
-~
~ 267
') Conforme apontava Flamínio FÁVERO, na inversão, modalidade de perversão sexual que se exterioriza por uma
•
variação completa na qualidade do instinto, pode ser considerada na forma adquirida, como a homossexualidade de
Amaral, ou congênita, também chamada de "uranismo". Na forma congênita, "...o indivíduo bem conformado
f) sexualmente, é um doente psíquico; tem êle pendor homossexual, pudor também homossexual, consetênc1a
absoluta do ato sexual invertido mas sendo conduzido a êle por uma verdadeira obsessão. Além disso, entrega-se
preferivelmente ao exercício de profissões do sexo oposto ao seu do qual, ainda, assume certas particularidades ~
carra'ter, atitude, etc. (...) registre-se que os invertidos se reconhecem perfeitamente entre si à distância,
independente de qualquer distintivo.". Cabe destacar que a obra em questão, assim como a de Pacheco e Silva, foi
premiada pela Faculdade de Medicina de da Universidade de São Paulo e pela Sociedade de Medicina Legal e
Criminologia de 2 São Paulo. FÁVERO, F. Medicina Legal. lnfortunística, tanatologia, sexologia, criminologia,
268 psicopatologia. 2 vol. São Paulo: Livraria Martins Editoda, 1945. p. 319-20.
· Idem. p._32~. A~ definir as anomalias sexuais que considerava mais freqüentes, PACHECO e SILVA, curiosamente
esclar~c1a_. D~nva êsse nome do Marquês de Sade, de triste memória, que se celebrizou pelos seus atos
sanguinános visando a satisfação de suas paixões mórbidas (... ) Entre nós se verificou o caso 'Febrônio', do qual
muito s_e ocupa~am os legistas do Rio de Janeiro (...) Ao sadismo podem se associar outras anomalias, como a
necrof~ha postenor (caso do prêto Amaral, por nós relatado no fim dêste capítulo).". PACHECO e SILVA, A. C.
Psiquiatria Clinica e Forense. 2 ed. São Paulo: Renascença, 1945. p. 427.
~ 218
'V
\.)
~ ·.
das mortes processadas na passagem de 1926 para 1927, bem corno ao estudo da
'""\)
-~
-v '
psicopatologia forense, que o celebrizou como um dos criminosos mais temíveis da
--~
• •< ,...,. •
'1 Austregésilo da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, "...o qual satisfaz inteiramente
~ a todos por isso que salvaguarda os interesses da Justiça, regulamentando o exercício
"
~
-.1)
1)
~
269
- Idem. p. 428. Neste ponto, toma-se importante lembrar a leitura de Maria Luiza Tucci CARNEIRO pela qual se pode
concluir que, nas palavras da autora " ... a força das imagens não se encontra na veracidade dos fatos que elas
tentam representar e sim na capacidade que têm de interferir no comportamento humano gerand_? senti~ entos e
atitudes de medo, repulsa, ódio, inveja, submissão, adoração, (... ) [a imagem) tem a força da seduçao: atrai, fascina:
envolve e hipnotiza." CARNEIRO, M. L. T. O discurso da intolerância. Fontes para o estudo do racismo. ln: D,
CREDDO, M. do C. S. (Coord.) Fontes Históricas: abordagens e métodos. Assis: Programa de Pós-Graduação em
História, 1996. p. 28.
•
118
~""'
-~
l'v da funcção de perito ao mesmo tempo que lhe impede o privilégio, que seria odloeoa e
-''"0
~ inconstitucional", enviado a Câmara em 1922.
270
recorrer, "pa.t•
,,
·"')
precedentes que, para as autoridades, " ... demonstravam que elle era capaz de ter
"'.,, prática comum da polícia brasileira até os dias atuais, sobretudo em se tratando de um
270
Apresentado ao Congresso Nacional em 20 de agosto de 1922, o projeto trazia a justificativa de que "O exercício da
.
pericia medico-legal está, em nosso paiz, entregue á sorte de uma escolha as mais das vezes aleatória, onde menos
governa o critério da competencia do que o da sympatia e das relações de amizade. Se os 'dous entendidos e de
bom senso' constituem recurso extremo nos povoados e villarejos longínquos, já nos grandes centros popula~es,
onde os conhecimentos se especializam para tomar-se mais profundos, não se justifica a prática de designar pentos
entre profissionais de medicina clinica absolutamente extranhos á medicina forense ...". Em nítida, discriminação, a
i~st~cati~a
1
apresentada equivalia dizer que somente nas grandes cidades, cujo ajuntamento de popula~es era
1
si~nif cat vo, a perícia deveria ser especializada vinculando, assim, as classes pobres, proletarizadas ou nao, aos
c~m~ nos quais a prática da perícia se fazia presente, reiterando a idéia das classes pobres como sendo perigosas,
cnmi~osas. RIBEIRO FILHO, L. A regulamentação da pericia medica no Brazil. A rchlvo de Med icina Legal, Rio de
271
Janeiro, nov. 1922. p' 92 ·
· PACHECO e SILVA, A. C. Psiquiatria clínica e forense. 2 ed. São Paulo: Renascença, 1945. p. 480.
0 217
P""
- ~ ·,V'
---~v Aliado a sua condição de negro, pobre, desenraizado, sem ender&90 fixo e,
'
~
ainda, apresentando "estigmas" de degeneração, Amaral se encaixava perfeitamente no
v
perfil criminoso que teria levado à morte os jovens neófitos, caso que a polícia paulistana
-~ não podia, de maneira nenhuma, deixar de resolver dado à dimensão e apelo popular
........-- ~
'\
.
--~ ~
provocados pela divulgação "scientífica" que os crimes receberam e por sua expoe19Ao
na imprensa. 272
~
- ~~ Os antecedentes de Amaral, apontados no exame psiquiátrico,
-✓
li! ~ .) contribuíam para sua condenação pois o colocava na condição de desertor,
~ .__)
disciplina e as normas que regulavam os espíritos nobres, que lutavam pela def1
:i ~.:>
l!j - :, país nas fronteiras e campanhas armadas. Sua perícia psiquiátrica apontava-o mma:
:,
•- :)
:)
alheio ao trabalho, viciado, indolente, ampliando ainda mais suas característicae
1 criminais e anti-sociais.
• :>
~ .,., ... em 1908, quando trabalhava com a Comissão de Limites entre Brasil e Bolívia,
.,
. -
.., que estacionava nos arredores de Corumbá, sob a chefia do Almirante
Guilhobel, teve outra fuga, dessa feita pouco duradoura. Levantou-se então
:l ., durante a noite, pegou seu revólver e saiu a correr pela mata a dentro. Depois
~ - ,.., disparou vários tiros a esmo e, acordando com o ruído, voltou cautelosamente
ao acampamento para que a sua saída não fosse pressentida pelos
ai.~ ., companheiros, passando o resto da noite sem incidentes. Ultimamente tem
•-
,___,,.., andado triste, distraído, com vontade de deitar-se e de chorar, tendo ocasião em
que "sai desatinado", ficando as vezes sem se alimentar até por dois dias. Atribui
êsse fato a ter fumado cigarro de maconha. Tendo tido sempre propensão para
.. ___,,
a farda, serviu como soldado em várias localidades do Brasil, mas não se lembra
1 -~ de ter completado em nenhuma delas o tempo de serviço, desertando sempre, a
fim de livrar-se do "excesso de trabalho". 273
..
,~ A imagem do negro viciado, entretanto, apresenta o seu avesso. Guido
~ -~ FONSECA, permite observar, com referência à maconha, que esta, nos primeiros anos
•• do século XX, era vendida livremente como medicamento ou em forma de cigarros nas
família. Como indicado pelo autor, "na praça Antônio Prado e, principalmente na
272
273 , Os CRIMES de preto Amaral. 1927. p. 28.
· PACHECO e SILVA, A. C. ; REBELLO NETO, J. Um sadico-necrophilo. O preto Amaral ln: Archlvos da Sociedade
de Medicina Legal e Crimlnologla de São Paulo, São Paulo, vol. li, anno li, fase. 12 , nov. 1927. p. 99.
'
:111
de bares e clubes de jogos ali funcionando ... ", que prossegue afinnando: "as s:,,. ,_
farmácias desonestas eram importantes pontos de abastecimento dos
de São João, 135 'Paissandú', na mesma rua, n 169, e 'União', à Rua Capitão
57-B entre outras, tiveram problemas com a Polícia por venderem cocaína e
274
drogas a dependentes.".
novembro de 1927 por Antonio Carlos Pacheco e Silva, Diretor do Hospital de Juqueri e
Diferente das outras fotografias, como as anexadas ao Processo Crime nº. 1670
,, paulistanos que noticiaram as mortes das quais preto Amaral era tido como a principal
.-, suspeita, existia um registro fotográfico que mostrava o acusado completamente nu, em
,, pé, cuja imagem frontal servia para demonstrar "... o tamanho desproporcionado dos
órgãos genitaes ...", aspecto que foi considerado como estigma de sua degeneração,
274
. Como o autor observa, não era incomum o uso da maconha, da cocaína e de outras drogas na cidade de São Paulo
nas pnmeiras décadas do século XX. Pautando-se em fontes jornalísticas o Delegado e Professor da Escola de
Polícia de São Paulo permite entrever ainda que o uso de entorpecentes "...tomara-se um 'vicio chid, uma 'moda
elegante' entre a 'jeunesse dorée' que costumava reunir-se em grupos para mais à vontade saciar seus vícios.".
Informações preciosas pois põe abaixo a representação do viciado como sendo pertencente às classes pobres, sem
educação, mal formadas, entre outros adjetivos que inferiorizavam as pessoas comuns, de origem humilde, como o
própno Amaral, cuja possibilidade de ter sido preso inocentemente aparece como hipótese cada vez mais plausível.
FONSECA, G. História da prostituição em São Paulo. São Paulo: Resenha Universitária, 1982. p. 196.
21•
''0
~~
reforçando a importância dos caracteres anatômicos na detenninaçlo dol tlpoa
criminosos. 275
de sua etnia, quase sempre bem dotados, é possível supor que Amaral se viu forçado a
assumir a autoria dos crimes há dias praticados. A malha fina e insidiosa que o enradau
era intransponível: não havia como escapar dos argumentos, cujas imagens, assur"'ldaa
descamados se encontravam?
275
Como salientou Zéha Lopes da SILVA, o trabalho com a fonte iconográfica, com a fonte visual, •...material ínscnto
em um campo de silêncio e de certo desconforto para o historiador ( ...) mais habituado a lidar com o documento
escnto..." apresentam questões como as que envolvem o imagináno versus real. Para a autora, as dificuldades ou
resistências em relação à utilização da imagética como fonte à pesquisa em h1stóna era resultado de 1ndagaÇóes
levadas em conta quando as Imagens passam a ser deballdas em um contexto mais amplo e não mais como mera
ilustração. De acordo com Zéha Lopes da SILVA, "AI apareceria uma fissura entre real e 1mag1náno (ilusóno,
quimera. sonho), colocando dessa maneira obstáculos ao uso dessa fonte pelo h1stonador uma vez que o seu oficio
definia-se em tomo do acontecido e não de elaborações que se inscreviam no campo das representações.". SILVA ,
Z. L da Os dilemas da pesquisa as fontes ofic1a1s e a imagética ln: OI CREDDO, M. do C. S. Fontes Históricas
abordagens e métodos Assis: Programa de Pós-Graduação em História, 1996. p . 43.
''-.) 220
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j
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.,...,
j
..,
~
...-,
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Fotografia 4. "Photographia mostrando o tamanho desproporcionado dos órgãos genitaes" (legenda original). Archivos
da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo, vol. li, ano li, fase. 12., nov. 1927, p. 101. Acervo da
Biblioteca do Instituto Oscar Freire de Medicina Legal e Criminologia da Universidade de São Paulo.
'
221
·....,)
'0
'v
-~
~
A prisão de José Augusto do Amaral, em 12 de fevereiro de 1927 trouxe a tona os
•~ cujos administradores, como visto, não se cansavam em querer vê-lo construído para,
.~
.-~
'
deste modo, melhor aplicar os conhecimentos dominadores da psiquiatria forense.
,-_, .) Assim, os crimes do "preto Amaral" ou "Tucano", como também era conhecido
-,-.) nas ruas, botequins e albergues que freqüentava, permite supor, por exemplo, que a
- ~
:, ampla divulgação recebida servia de suporte a um amplo projeto que justificava a
~ :, •
• :,
)
construção do espaço destinado a personalidades desviantes, indivíduos perigosos e
)
1 ~
• ., criminosos sexuais, os degenerados, como já acontecia no Rio de Janeiro com a colônia
276
\ J Juliano Moreira.
~
' ..,.,
-
A denuncia registrada na Segunda Vara C riminal de São Paulo, preservada como
,_~-,
.
---~~
l --"
parte do acervo do Museu do Crime da Academia de Polícia de São Paulo permite
avaliar a extensão dos delitos confessados por Amaral no dia de sua prisão. Produzindo
276
• CARRARA, S. Crime e Loucura. São Paulo/Rio de Janeiro: Edusp/ Edue1, 1998.
'
0
.... .._
'~
'\,)
_..·--.V\
~~ registros médico-legais, preservados no Museu do Crime, corno já salientado, foram
'--''\.) utilizados como recurso didático para a formação da policia paulistana nos anos 20. m
eventos que marcaram a vida de Amaral, não é demais notar, transfonnam-no eni uma
v '\
comportamentos sexuais atribuídos a José Augusto do Amaral, que chegou a
·, v
...) na campanha de Canudos, além das referências que afinnam seus ali
.... soldado da Força Pública. Assim, paradoxalmente a imagem do negro solto,
_)
CJ
,) ocioso e baderneiro, preto Amaral aparece na documentação sempre t1
CI
:,
:, soldado, servindo nas frentes de batalha, como operário nas construções de
. ~, .)
:, ferro, como na construção da estrada de ferro Mogiana. Sobretudo, Amaral emerge l'IIIÍ
. .
J
~ páginas de seu processo sempre pagando as suas despesas e a de suas Supostas
~
~ - J vítimas, permitindo entender que, de uma forma ou de outra, Amaral era uma pessoa
e :, independente, mantendo sua própria vida a pa rtir se seu esforço individual. 278
._____..,..,
~ --· j
_____
-~ ~
~ -~-'>
,.. 2
~
."'1
,, n. O histórico do Museu do Crime indica que sua origem (1920) foi impulsionada pela formação da Delegacia de
Técnica Policial e da primeira Escola de Polícia, período em que as peças colhidas do cotidiano policial eram
expostas em armários nas próprias salas de aula, servindo como ilustração às matérias ministradas. Em 1930, com
.. I') a consolidação da Escola de Polícia e o aprimoramento do ensino técnico policial, as peças que compunham o
acervo do museu ganham seu próprio espaço, autorizado pelo decreto 4.715, de 23 abril de 1930, que
.. regulamentava a repartição de polícia. No ano de 1952, o acervo é aberto ao público e o espaço passa a ser
denominado "Museu de Criminalística", funcionando junto a Escola de Polícia na rua São Joaquim, 580. Vinte anos
- depois, em 1970, a escola é transferida para as dependências junto a praça Reynaldo Porchat, 219, no Butantã e o
acervo passa a constituir o "Seção Museu de Criminalística". Sua atual denominação ocorreu em 1984, após passar
por uma reestruturação que enriqueceu a área de exposição com fotografias e demais documentos extraídos dos
arqu_
,vos e laudos da polícia técnica. José Augusto do Amaral figura entre os criminosos que agiram na capital
paulista, ao _qual é dedicada uma sala especial com registros fotográficos, documentação judicial e os fragmentos
com os quais, supostamente, estrangulava suas vítimas, como o cordão de pano que ele teria utilizado para matar
um dos a~olescentes vitimados na passagem de 1926 para 1927. Nesta mesma sala, existe uma réplica de sua
cabe~" utilizada nos cursos de antropometria oferecido para a formação da polícia de São Paulo. Academia de
278 Polícia D~ Conolano Nogueira Cobra". Museu do Crime. 70 anos (1930-2000). São Paulo, 2000. Catálogo.
· FUNDAÇAO Casa de Rui Barbosa. Canudos: subsídios para a sua reavaliação histórica, p. 83.
113
J
... 0
0 ' Os documentos encontrados no Museu do Crime da Academia de Polícia de São
0
0 Paulo, reproduzidos pela imprensa e nos artigos de periódicos especializados, escritos
0
~ por Antonio Carlos Pacheco e Silva, os quais divulgaram os crimes hediondos conferidos
..)
., .)
.)
instituições de controle social da capital paulista, Amaral morreu sem ser julgado.
271
::l
;..i
:, Por intermédio dos documentos que apresentam as experiências trágicas vhlllal
:,
11111 na passagem de 1926 para 1927, é possível extrair que até os quatorze anos de Idade
)
:> Jose Augusto do Amaral permaneceu em Conquista, Minas Gerais, sua cidade natal,
)
') iniciando, depois, "constantes viagens pelo país e mesmo pelo exterior, numa verdadeira
~
~
~ .., peregrinação". A trajetória de vida de Amaral, também conhecido como "espigão" devido
::i ~ à anatomia "desproporcionada" de seu pênis, perpassa pelos escritos dos diferentes
,,,,
-~
autores que analisaram o caso, como Guido FONSECA, por exemplo, que cristalizou a
279
• Neste ponto, cabe enfatizar os esclarecimentos oferecidos magistralmente pelo autor que, como afirmado, merece
A menção mais acurada pois, escoimado em um notóri o saber. Para Boris FAUSTO, "O estudo das infrações
.' ) específicas baseia-se fundamentalmente na análise de processos penais, uma fonte cheia de peculiaridades que
merecem uma referência mais detida. Na sua materialidade, cada processo é no período considerado um produto
artesanal, com fisionomia própria, revelada no rosto dos autos, na letra caprichada ou indecifrável do escrivão, na
~ forma de traçar uma linha que inutiliza páginas em branco (...) A peça artesanal contém uma rede de signos que se
"1 impõem à primeira vista, antes mesmo de uma leitura mais cuidadosa do discurso. Distinções espaciais expressam-
se nos erros de grafia, na transcrição em conjunto dos depoimentos de várias testemunhas, indicando que um
11-1 processo foi instaurado em um bairro distante, com marcas fortemente rurais. Pobreza e riqueza deixam por vezes
.. nítidas pegadas distintivas. Em um extremo, a relativa uniformidade resultante da sucessão de declarações, que não
é cortada pela petição de advogados; os requerimentos em letras vacilantes, ou assinados a rogo, em que os
-.. requerentes esclarecem que deixam de selar por falta de recursos. No outro, as transcrições dos diferentes atos
processuais entremeados de petições de advogados, em papel linho timbrado; os memoriais impressos, distribuídos
aos desembargadores; a peça de defesa datilografada, que, sobretudo em épocas mais remotas, revela o prestígio
do próprio defensor. Isoladamente, talvez o texto mais carregado de significações seja o documento de
antecedentes, juntado em regra pelo réu, valendo-se de sua rede de relações - vizinhos, patrões, colegas,
compatnotas, conterrâneos, fregueses (...) Toda uma gradação da eficácia do documento se insinua, segundo
quem o em~e, a força de seu conteúdo verbal, os signos formais de que está revestido. 'Papeluchos de favor',
escritos a mao, em papel ordinário, em que se enfileiram frágeis assinaturas anônimas, contrastam com documentos
na solene expressão do termo, em papel timbrado, datilografado, contendo assinatura de pessoas influentes ou
representantes de grandes empresas. FAUSTO, B. Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-
1924). 2 ed. São Paulo: Edusp, 2001. p 30
~
._) 224
~ e
. .f"'\)
~.....~-0
0 imagem de Amaral como um "tipo de criminoso raro nos anais do crime", na medida em
.... '0
que "aliava ele duas perversões que o faziam distinto dos demais delinqüentes de sua
0
espécie: o sadismo e a necrofilia", eternizando a imagem da crueldade bestial na figura
280
r""\) de Amaral, uma pessoa que abandona, que trânsfuga, deserta.
v
-~ Nos autos do processo crime impetrado contra Amaral, sua trajetória ·errante o
C;i-~
ir.,~~ identificava como um negro solto na vida, indisciplinado para o trabalho e astuto. O que
....)
.,.,
) verdadeira peregrinação, percorrendo a Bahia, Ceará, Amazonas, Pará, Bolívia,
Argentina, Uruguay; que nesse último estado, isto é, província da Rep(íblica
Uruguaya foi a Montevideo, Capital desta e dahi chegou a Buenos-Aires, Capital
~ ., da República Argentina, onde verificou praça; que dahi foi para o Estado do Rio
Grande do Sul depois de algum tempo e neste verificou praça no primeiro
Batalhão da Brigada Policial; que tendo desertado dessa unidade foi se alistar no
CI
~ .,
-, nono Batalhão; que mais tarde como também desertado desse Batalhão alistou-
se como praça do dezoito Grupo de Artilharia Pesada, acantonado em Bagé;
--- ..,
.
que dessa unidade do Exercito Nacional, desertou, tenso sido mais tarde preso
respondendo ao Conselho de Guerra, sendo condenado a sete meses de
~ prisão, pena que cumpriu me prisão de seu quartel. 281
---~ _ ...,
Outros elementos dessa trajetória são arrolados pelo jornal A Gazeta que
"
'1
suspeito dos crimes ocorridos em São Paulo na passagem de 1926 para 1927, o jornal
•.. retraçava a vida do "repugnante indivíduo", do "m iserável" que confessava a série de
crimes hediondos:
-
:ª:.
8 FONSECA, G. História da prostituição em São Paulo. São Paulo: Resenha Universitária, 1982. p. 321.
• Processo Crime 1670. 09.01.1927.
•
0• 211
\)
... ·u '
"" \.) Os inspetores destacados para effectuar a prisão do bandido passaram a manhã
toda nas proximidades do Mercado e, á tarde, afinal, quando ja descoroavam
' '\,) deram com o miserável. Recebendo voz de prisão, o repugnante Indivíduo nlo
llt'"'-J fez o menor movimento de defesa, nem procurou fugir. Nem teve meamo a.n
gesto de surpresa. Parecia esperar aquillo. Conduzido immediatamenta a
-~ presença do dr. Juvenal Pizza, alli foi interrogado pela autoridade, que,
surpreendida, ouviu, então, narrada com uma calma e synismo ravoltantaa, pelo
hediondo monstro, a confissão horrorosa de uma série de crimes que ravoltam a
indignam os mais indiferentes. Começou o miserável a narrar a odyada da sua
vida. Nascera em conquista no Estado de Minas. De lá seguiu para o UNgUay,
onde foi praça do Regimento de Cavallaria Acantonada em Montevid6o. Do palz
...
... -..,~
amigo, regressou ao Brasil, veio para São Paulo, onde se alistou no Regimento
de Cavallaria, depois de ter sido registrado na 41 Região Militar onda, 18.ndo
assentado praça, desertou. Em 1925 desertou da Força Pública pauliala, Indo
para o Rio, onde verificou praça num batalhão patriótico, organizado=~
--~
·--.. )
Geraldo Rocha, sob comando do coronel Paes Leme. Com essa ' _-
seguiu para a Bahia onde fez a campanha contra os revoltosos, tendo pe1DD11jdà
o norte do paiz. Regressou ao Rio, desertando de novo e vindo para Slo _ , .
--~
--~
Aqui foi preso, sendo indultado em 19 de novembro.2
82
~ - .)
O retrato antropo-psicológico de Amaral expunha os imperativos refratários a tudl:'
. . (. "'-·
~
:> propostas pela psiquiatria forense, a qual estabelecia uma vida regrada, centrada no
)
i núcleo familiar eugênico, fortemente adm inistrada. As constantes mudanças e
J
1
~ deserções de Amaral faziam dele um andarilho, uma pessoa sem endereço fixo, vivendo
1
', .., ') uma vida que, de acordo com os valores da época, considerada vulgar e abjeta. Esse
•
~
l ".) aspecto da vida de preto Amaral, qual seja, o da vida errante, pode ser compreendido
i ~ por intermédio das interpretações oferecidas por Mônica Pimenta VELOSO, quando esta
•
• "'" afirma a capacidade organizativa e de liderança entre os negros eram atribuídas às
•- -"
1. - -.,, mulheres que tinham que se virar sozinhas enquanto os homens, companheiros ou não,
•
'l
'
~ 282
. A Gazeta. 06.01 .1927. p 5.
•
283
, A autora considera que as sociabilidades baseadas no que denomina de "improviso" tem sua origem em uma das
decorrências da escravidão, qual seja, a fragmentação da família africana pois, "ao incorporar a mulher negra ao
ciclo reprodutivo da família branca, inviabilizava-se para os escravos a constituição do seu próprio espaço
reprodutivo. Assim, as relações eram precárias e efêmeras, ocorrendo muitas vezes à revelia dos próprios parceiros
(...) Nesse contexto, a mãe acaba assumindo sozinha a responsabilidade da prole, já que os parceiros estão sempre
de
81
passagem.". De acordo com a autora, depois da abolição essa situação pouco se modifica e arremata, "cuidar de
e dos8filhos era uma coisa só, obrigação de mulher". VELOSO, M. P. As tias baianas tomam conta do pedaço.
Espaço identidade cultural no Rio de Janeiro, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.3, n. 6, 1990. p. 207-228.
•
► C,
v
\)
'-~ ,\J
ti-."\.) Na cidade de São Paulo, a questão da permanência dos homens negros junto de
v '
suas mulheres e família era marcada pela instabilidade. Mesmo que as taxas de
0
casamento entre os negros apontassem para ma aumento da permanência dos homens
'-,) junto de suas mulheres e famílias, estas assumiam a forma matriarca! pois, "...o
recursos que conquistavam com seus ofícios, regra geral domésticos. · 'TI
...)
~ - .j instabilidade e a ausência dos homens negros junto de suas famílias não impli
--5
__ ., uma dissociação dos lares negros, pelo contrário, um dos atributos da família
--- :, sua união, invocando laços de solidariedade que superavam as privações atr
Ili5
J uma rede de cooperação mútua que envolvia parentes, vizinhos, amigos e gu1
li
~
1.
~ J
~ - .., Os registros sobre os crimes de Amaral, apresentam vozes dissonantes, filtradas
:J
.l ..,
- -, por juízos de valor que imprimiam significados as coisas de maneira determinista,
11-- ...,
•·-~ pautando-se em hierarquias e classificações impunham um padrão de vida que
• ,.,
-·
11 ..-'°)
pretendia uma sintonia com uma racionalidade definida no âmbito de uma nova
sensibilidade, industrial e moderna, muitas vezes difíceis de serem alcançadas mas nem
'
~ .~
;1
por isso menos desejadas mas re-apropriadas pelas camadas populares. O jornal A
Gazeta, ao apresentar sua interpretação dos fatos, evidencia essas vozes, lacônicas,
••
... 284
. Este debate, bastante controverso, foi analisado por diferentes autores sem contudo alcançar um consenso sobre 0
tema. Entre os autores consultados a noção prevalecente evidencia a mulher negra como provedora do lar dado a
ausência do _marido dado as privações sofridas pelos homens negros que, trocados pelo trabalhador imigrante, se
viam compelidos a trabalhar longe do ambiente familiar. Sobre este aspecto consultar: DOMINGUES, J. P. Uma
história nã~ contada. Negro, racismo e trabalho no pós-abolíção em São Paulo (1889-1930). São Paulo, ~000. 370
f. Dissertaçao (Mestrado em História) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Pau~o: ANDREWS, G. R. Negros e brancos em São Paulo (1888-1 988). Bauru: Edusc, 1998. BASTIDE, R. As
Amencas negras. As civilizações negras no novo mundo. São Paulo: Edusp/Difel, 1974.
-,_.)
►
- .~
t-.....-~J
.... ~
....~v permeadas de silêncios e descompassos mas que fazem emergir pe1
anônimos da história.
• ,~ de idade de cor branca" o qual se aproximou de Amaral pedindo para que este lhe
"'-.,., emprestasse fósforos a fim de acender um cigarro, passando, então, a conversar com o
," , "mocinho" para tomar café no Botequim do Cunha, que ficava nas proximidades da rua
João Teodoro, no Bom Retiro. Neste local tomaram café, comeram pão e também
&l
compraram cigarros que foram pagos por Amaral.
..
Satisfeitos, os dois continuaram a conversa, momento em que "...o preto
presumira manter cópula anal com esse menor'', conforme depoimento prestado ao
285
• A Gazeta. 06.01 .1927. p5.
,j ..
,.--·· v .
t....-~J
0 a conversa, Amaral convida Antonio Sanches para "a passeio", irem até a P01118 Gl8rida1
u local em que haveria um jogo de bola. Aceitando ao convite do desconhecido. a11bo1
0 288
:~ tomaram um bonde que, como as despensas anteriores, foi pago por Amaral.
Minutos depois, como consta nos autos, Amaral chega com Antonio ~ i.""
a:.
... ~
Ponte Grande e, desta vez, o convida para juntos "tomarem um 'chopps' nlo
'
c - --'"' Campo de Marte a fim de "assistirem um pouco de jogo de futebor como con1bt • •
J
~ caminhado em direção da estrada velha de São Miguel, um lugar ermo, para junttD8
~
287
j também observarem "a pesca de diversas pessoas" • Neste instante, a leitura do·
')
processo crime que recria as mortes imputadas a preto Amaral, apresenta o desfecho
':)
~ trágico daquele encontro fortuito, travado ao acaso, afirmando:
~
Cl "')
.,.., ...que o menor, demonstrando vontade de acompanhai-o, o que foi feito,
seguindo ambos pela estrada, passando perto de uns bambus e uma cerca de
tábuas; que dali pararam para ver diversas pessoas que pescavam e dali
,., tomaram o rumo da cerca de arame; que dali entraram para o matto, tendo o
declarante nesta ocasião feito proposta ao menor de manter cópula anal com
elle; que esse menor não aceitando a sua proposta chegando mesmo a ficar
"· Ponderando a possibilidade de não ter sido Amaral o criminoso que estrangulou
'"" os corpos encontrados pelos agentes do mundo jurídico, a narrativa do encontro de
- Amaral com Antonio, emanado do centro, filtrado pelos valores próprios da época,
2
Bfl.
287
Processo Críme 1670.09.01 .1927.
• Idem. Neste ponto é imprescindível lembrar o que Mariza COR RÊA esclareceu quanto a utilização de processos
penais na pesquisa em história. Em conformidade com os argumentos da autora, as fontes provenientes do
judiciário, sobretudo os processos penais, não podem ser apreendidos em sua própria ?efinição ou a pa~ir ?ºs
elementos que evidencia os fatos, pois as informações que este tipo de documento possibilita são co~traditónos,
filtrados. por Juízos de valor que se antepõem à fala original do depoente, traduzindo suas palavras, 1mpnm1ndo
outros significados às descríções colhidas no interrogatório, atribuindo novos sentidos ao que realmente aconteceu.
Geralmente contraditórios, os registros passam a narrar não o de fato aconteceu mas uma fábula. CORRÊA, M.
Morte em família. Representações Jurídicas de Papéis sexuais. Aio de Janeiro: Graal, 1983. p. 23.
..)
►
0
,)
..
,.j
ic-.........,_~
t..""'0 permite a associação com o que Maria Stella Martins BRESCIANI considerou mno
v sendo "a educação dos sentidos na sociedade modema". Conforme sua e>CpOSlçl~•. a
0
cidade aparece como o "lugar de emissão de sinais que pedem a formação de uma nava
,... ·• J'
"... .:)
)
mesma coisa, qual seja, o sentido de pertencimento e não mais um excluído,
289
solitário entre a multidão.
~
- - ,.)
A prova testemunhal colhida por José Neto Leme, escrivão da Dei
--
91 - ..)
Ili :,
.. :) acordo com o depoimento anexado nos autos do processo, após ter praticado o
11111 ..
1 J anal" com o cadáver de Antonio Sanches José Augusto do Amaral abandona o corpo
1 )
• ..,.,
~
J seguindo para o mesmo ponto de bonde no qual descera. Chegando nas proximidades
do Seminário, nos arredores da estação da Luz, os autos relatam que preto Amaral
:i - ~
;i __ .., continuou a andar pela cidade, vagando durante toda a noite sem saber para onde ir.
.,,_____".,
O episódio do encontro de José Augusto do Amaral com Antonio Sanches, sua
-~
•......-,
~
.
primeira vítima, também é apresentado para o grande público da cidade ao ser publicado
~
nas páginas dos jornais paulistanos que noticiaram os crimes e a história trágica das
1111
'.i.
;i apresentava sua versão dos fatos explicitando como preto Amaral atraíra o jovem para
• um local afastado do centro da cidade, local de onde Antonio Sanches não mais sairia
288
. Idem.
289
, BRESCIANI, M. S. M. Cidades: espaço e memória ln: SÃO PAULO (cidade). Secretaria Municipal de Cultura.
Departamento
1992. p. 163 . de Patrimônio Histórico. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH,
~
0 ao
►
- ◄ -.."-1'\
'""---0
'--'~
"-·--~
...José Augusto estava um dia na avenida Tiradentes, sentado a uma banca,
quando alli appareceu um rapaz de uns 16 annos que lhe pediu um cigano.
Entabolaram conversa e aso saber que o mocinho estava com fome, o preto o
levou para uma venda da rua João Theodoro, donde lhe pagou um caM,
0 convidando-o a seguir para juntos irem ao Campo de Marte, assistir a um jogo
de celas. O rapaz acquiesceu e chegados naquelle local, deitaram-88 junto a um
bambual, aproveitando a sombra que o mesmo projectava. Conta, então, o prelo
que ahi começou a sua série de crimes hediondos. Sentiu qualquer colaa
estranha que o impelia para o assassínio. Segurou fortemente o rapaz,
·,.) obrigando-o seguil-o para lugar ermo, onde o estrangulou, depois de uma luta
horrível, em que a victima, nos extertores da agonia, teva prodígios da
r::.--~ resistência. O preto era mais forte e conseguiu matai-o. Depois violentou o
290
~ ca dáver...
~
..:) Residente na Lapa, rua João Pereira, n 2 • 34-A a primeira vítima de José Augualu
" '
,.)
do Amaral, assassinado, de acordo com autos processuais por "asfixia provocada por
,., )
permite observar que os discursos produzidos pretendiam, simbolicamente, valorizar a
~
.,., polemica criada em tomo do caso, fator que provocava deliberadamente juízos de valor
~ da passagem de 1926 para 1927 atingiam não somente a Amaral mas à grande maioria
~
dos negros pobres e despossuídos que, unilateralm ente, e ram vistos como perigosos,
""
--1 suspeitos em potencial dos atos de violência e das ações desviantes, o que permite
,,,, afirmar que as notícias divulgadas pretendiam suscitar, por intermédio da manipulação
"·
'1 ideológica, a aversão a tudo que fosse próximo dos comportamentos representados.
I.L
•-- Sintetizando os conteúdos extraídos dos autos do processo, os jornais imprimiam suas
verdades aos fatos ocorridos na cidade de São Paulo no final da década de 1920.
-
290
• o Estado de S. Paulo. 05.01 .1927. p. 4.
'
'\.)
\) D1
► .· \)
.
~-- \.)
~ "0 Estão finalmente concluídos os trabalhos do dr. Juvanal de Toledo Piza,
'-111-\.) delegado de Segurança Pessoal, sobre os crimes perpetrados neeta capital pelo
preto Amaral. Faltava, apenas, como hontem dissemos por estaa columnu,
0 estabelecer a identidade da victima, cuja ossada fora encontrada no Campo de
Marte, mas, hontem, ás 15 horas, appareceram no Gabinete de lnve-111,g , ag.i,, 1-1
Adolpho Corra e sua esposa Dolores Corra, residentes á rua Joio Pem1lra n.
34-A, no bairro da Lapa, os quaes declararam ao dr. Piza que, no dia 8 ou 7 de
Dezembro próximo findo, desapareceu daquela casa, onde morava, como
~ empregado, o moço Antonio Sanchez, de 20 annos, e que tinha um de_ n.b ca.
ouro no maxilar superior. Era franzino e doente esse rapaz, appal9l'1tanêlo nlo
mais de 16 annos. Exibidas as roupas encontradas ao lado da ONllda, tanlO
·..J Dolores quanto Adolpho reconheceram como sendo as meamaa qUIJ(Vliliílllí
~ Antonio Snachez no dia do seu desaparecimento. 291
-~
e :,
viveram as instabilidades do mundo do trabalho urbano nas primeiras décadas do
~
:, XX. Entretanto, confrontado com o exame de corpo delito, realizado por dois pe1
.. :>J médico-legal dr. José Bresser Monteiro de Barros e José Rebello Netto, este como
)
- ..,~ do Laboratório de Polícia Técnica, a morte de Antonio Sanches é tomada por questões
~
.,., inconclusas pois os restos mortais do identificado constavam apenas de sua ossada.
Logo, como os "manipuladores técnicos" poderiam afirmar que o mesmo havia, de fato,
CI -, 292
g __ .. .., sido violentado?
Ili-- ~
~-
--
Os jornais paulistanos, em algum momento, indicam que o Antonio era
li-
• ·,," efeminado. Essa informação, escamoteada, respondia algumas lacunas que o evento
..._ permite entrever pois, o que faria o jovem sentado em um banco ao longo da avenida
.,
J! Tiradentes sentado em um dos bancos que ficavam ao longo daquela via pública? Quais
uma pessoa desconhecida e com essa pessoa caminhar pela cidade, passeando por
291
292 , O Estado de S. Paulo, 08.01.1927. p. 5.
. O termo "manipuladores técnicos" foi usado por Mariza COR RÊA para designar "... os atores principais de um
processo penal: o advogado, o promotor e o juiz, que detêm o conhecimento dos recursos legais possíveis em cada
~
caso também no âmbito de sua manipulação (...) bem como as agências de extensão do mundo jurídico (pris~o,
~~dicina legal, sanatórios, assistência social, polícia, etc.)". COORÊA, M. Morte em família. Representaçao
1und1cas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p. 25.
,) a•
-~
~...-'V
.,.,) 8
lugares retirados do centro, afastados das demais pessoas, aceitando suas ofertas
0
~
seduções?
lllt,.~
o jornal A Gazeta, em matéria de primeira página, chama atenção para -oa
crimes de um monstro. A questão da identidade das victimas", atraindo a atenção para a
.·U-.
..) forma, tomar os crimes de Amaral os "... mais monstruosos que há notícia nestes
- --:,
....
.__,)
:,
tempos".
- .,:,
1111 ,,
À Segurança Pessoal é da nossa opinião, quando acredita que o monstro alndl
não contou todos os seus crimes. Na verdade deve haver ainda algLliiiil
•1 ,' victimas mais, victimas daqui e de outas cidades, por onde elle andou. Porqb8
não se concebe que essa crise de mortandade tivesse avassalado o :aisenival
sómente nesses ultimas mezes. Hontem, mais uma criança apareceu na
:) Segurança, dizendo-se victima do sadista; e a nossa reportagem conseguiu
1 ,, saber que na travessa Araguaya n.º 9, um outro menino estivera também nas
garras de José Augusto. Com o fito de investigar a Segurança Pessoal collige
li .., agora diversos dados referentes ao desapparecimento de menores. E é áS$im
! .., que está constatado os seguintes: LUIS HIRAH, filho de Adélia Hirah, com 15
annos de edade, brasileiro, telegraphista, vestindo no dia em que desapareceu,
:1 . ., 31 de dezembro, roupa escura, sapatos tennis e bonet de casemira. ANTONIO
g__ ~ RAMALHO FILHO - de 16 annos de edade, portuguez, filho de Antonio
---~
._,.,
Ra~alho. O desapparecido tem cabellos castanhos, apresenta cicatrizes de
va~ola no rosto, tendo se ausentado da casa paterna no dia 23 de dezembro
ultimo. LUIS BICUDO - de 15 annos, brsileiro, encanador, de estatura regular,
olhos e cabelos castanhos, vestindo roupa de brim listado e desapparecido em
1---" 25_ do mez passado. SARKIS DELCLAREI - de 14 annos, armênio, havendo
deixado a sua residencia a 27 desse mez transacto vestindo temo de casemira
azul marinho. VICENTE SCAGELLI - de 17 annos: de cabelos e olhos pretos,
que. desaoareceu tambem em 27 desse mez, vestindo temo de casemira azul
mannho. ~93
imediato da ordem - é mais uma indicação de que possivelmente não fosse José
Augusto do Amaral o verdadeiro criminoso, em último caso, não o único mas que havia
293
. A Gazeta. 07.01.1927. p. 4.
•► 0
·J
Ili
0
"\ .)' mais de um assassino de garotos na cidade de São Paulo. Seja como for, os Jomala
"'--"0 paulistanos continuavam informando outros desaparecimentos. Sob o título •os crimes
0
~ da estrada de S. Bernardo" o jornal O Estado de S. Paulo noticiava, inocentando preto
v Amaral, do crime cuja vítima também era menor de idade, porém, uma menina. Talvez
J esse fosse o motivo de sua absolvição pois, como apresentado, Amaral foi considerado
~
-
t::."-~
....~
um homossexual, um invertido, um sádico pederasta.
'-à.--..J
·._.) ... Pela confissão do preto, entretanto, uma verdade se evidencia, é ~
attribuir a autoria do crime perpetrado em 30 de Abril, na estrada de S. - ·"'
·.j
'-' assassinada a menina Rosalina, de 11 annos, filha do carvoeiro, Amaftlo
Camargo. Embora tal crime se revista de circunstancias bem sernalhar\'111
os assassínios confessados por Amaral, este nega. com aDeg&.9ÕII
.J houvesse perpetrado. Basta referir que o preto foi preso, corno da1er1Dr,
fazendo então poucos dias que se achava em S. Paulo, de ragn1110
r:: ~-? contra os rebeldes. Por outro lado, nos longos interrogatórios a que da1dl
vem sendo quase ininterruptamente submetido, argumenta o crlmlnoeo e
e -~ nada valeria occultar mais algum crime que porventura tivesse cometido,'
~ ·- :, qualquer dos crimes que confessou á suficiente para uma condenação
ainda porque na sua situação teria proveito, para atenuar seu ramorao,
:) desabafo. E, assim, ressalta mais uma desoladora verdade: o autor do
j estupro na estrada de S. Bernardo ainda esta por ser descoberto. 294
:)
O fragmento da notícia veiculada na primeira quinta-feira de 1927 revela algu,.
..Pt ..,.., ~
aspectos que remetem a questões significativas para, de certo modo, atenuar o perfil
.~ .., criminoso de José Augusto do Amaral. Seu "desabafo" impõe uma lógica, qual seja, que
i::J_ ""
~-., a partir daquele momento, não fazia importância alguma negar qualquer outro crime que
--~-., "porventura" tivesse cometido. Como em uma tática de guerra, pela astúcia de quem
•_ ·-___---",, experimentou diversas batalhas e sofrimentos, como das outras vezes em que havia
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f'I-~
sido preso, Amaral esperaria o processo correr, sabedor, inclusive, da lentidão e
desaparecimento, Antonio se achava com sua saúde abalada, inclusive, tendo ido a
Santa Casa de Misericórdia para receber tratamento médico pois se encontrava abatido
294
. O Estado de S. Paulo. 06.01.1927. p. 5.
.)
0 21•
\)
.....~ 0
e:.. \.) e cansado. Seu companheiro de quarto, João Moreira, havia relatado ao filho de
0 austríacos, proprietário da residência onde moravam, que há dias não via Antonio
0
~ Sanches e que pouco conversaram nos últimos tempos já que sempre chegava muito
.,
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..,
1-1
•
2 95
- A pesquisa em referência foi realizada como parte integrante do trabalho organizado por Maria da Penha '?·
Vasconcelos e revelam uma população morando em "... loteamentos populares (...) abertos onde só antes havia
mato e várzeas inundáveis..", pobre e doente devido aos surtos epidêmicos de tuberculose e febre tifóide que e~tre
1~25-1929, chegou a causar mais de mil óbitos por ano. VASCONCELOS, M. da P. (org.) Memórias da saude
publica: a fotografia como testemunha. São Paulo: Rio de Janeiro: Hucitec-ABRASCO, 1995. p. 21 -57.
Fotografia 5. Antonio Sanches, pnme,ra vítima do suposto cnminoso José Augusto do Amaral. Procea10 Crime ri'.
1670 Acervo do Museu do Cnme da Academia de Polícia do Estado de São Paulo.
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....~~·0 Ao ser interpelado por Pacheco e Silva sobre os motivos que levaram a praticar
os crimes, dos quais era acusado, Amaral afirma que nunca teve o menor pendor,pela
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pederastia e acaba apresentando um fato instigante, no mínimo curioso. Ao retrac,-r.e
história de José Augusto do Amaral, o psiquiatra permite entrever o encontro.de Amaal
~
.......~-0
1:. - ,J com uma pessoa chamada Roque, identificado como sendo um companheiro, um11. ,. ~-.:
' 't" o
.~·':&'i't.i,';!;
~ .-~'·
~ negro que durante uma breve conversa em um botequim, ao ver passar um ' ·
~
belas feições, sugere a José Augusto ser fácil atrair, seduzir e conquistar ae&l
·.J
-~ .j
alguns jovens que transitavam pelas ruas da capital e com eles fazer o que qui
... :,
::,
qualquer promessa ou presente V. o engambela e faz dele o que qui
por acaso não consentir por bem ... e completou com um gesto mcpreaalvo
pensamento mau. Desde este momento Amaral não teve mais sossAgo
,.,
:> tranqüilas as suas noites, preocupado com o que lhe dissera o companheiro;
dài
..,., As informações colhidas e publicadas por jornalistas, os depoimentos
.,,"' crimes da passagem de 1926 para 1927. Como consta nos autos do processo, Antonio
,,, Sanches tinha um irmão que também residia em São Paulo mas que não aparece como
·" testemunha e, tampouco, busca saber sobre o falecido. Estaria o jovem identificado
-- como a primeira vítima de preto Amaral com saudades de sua família? Quais seriam as
relações de Antonio com seus parentes? Porque não morava com seu irmão? Quais
seriam os motivos de sua enfermidade? Seria Antonio Sanches mais uma vítima dos
...,.. surtos epidêmicos que grassavam em São Paulo no período ou sua resistência estaria
298
. PACHECO e SILVA, A. C. Psiquiatria Clínica e Forense. 2 ed. São Paulo: Renascença, 1945. p. 442.
0
j
~~\.)
~- ~
"-·~~ As declarações prestadas no Gabinete de Investigações ao delegado por
... 1~
.) Adolpho Corá e João Moreira, seu companheiro de quarto, informavam que a famOla de
e que no dia em que saíra de casa, sem mais voltar, " ...vestia um ''palletot'' de cast.nlra
.
preta com listras brancas, já usado; camisa preta de colete, outra por baixo, de ~
vJ
~ cor branca, calça que o declarante não se lembra e sapatos amarelos, isto é,
~
amarelas, de amarrar, já usados ...", que na ocasião "...devia ter uns 50 mil
~
dinheiro... " e que o mesmo "...era ordeiro, sem vícios de espécie alguma..."; lnfo1
~
.:, que permitem as seguintes indagações: porque Antonio Sanches pediria os
-i:: - _,
., para acender um cigarro quando encontra o seu suposto algoz, um negro
.. :,
:,
desconhecido? E se tinha dinheiro, porque permitiu que tudo o que fizesse lhe
pago? 297
• J
, :>
" -.,.., As notícias trazidas a conhecimento público declaram que Antonio Sanches,
depois de morar em Barra Bonita, estado de Minas Gerais, mudou-se com sua família
e ·~
para Pederneiras, próximo a cidade São Paulo, representado nas páginas dos jornais
~
1.- - -"'.)
paulistanos como filho de espanhóis, oscilando entre os 20 e 27 anos de idade e que
• -·1'
JI.-" havia se mudado para capital paulista afim de "ganhar a sua vida", passando, desde
- _,, casa. Moreira Comunicou o caso ao sr. Corá. Este admirou-se do moço ter
ausentado sem nada dizer, pois, sempre fôra de um comportamento exemplar.
Quando da prisão do monstro negro, tendo tido o sr. Corá, noticia do
apparecimento de uma ossada no Campo de Marte, compareceu na Delegacia
de Segurança Pessoal, e, devido a um dente de ouro no maxilar da vítima e ás
roupas a identificou ( ...) Com esses indícios, temos a certeza que o dr. Juvenal
Piza, esforçado delegado de segurança pessoal e seu commissario dr. Ramiro
Garcia, que com grande brilho e habilidade, dirigiam sem espalhafato, as
diligencias de todo esse caso, encontrando a família do infeliz Sanches,
tenninando as suas diligencias, merecedoras de todos os seus elogios. 298
297
298 • Processo Cnme 1670. 09.01 .1927.
. A Platéa. 06.01 .1927. p. 4.
~
~
\) ..
....◄: ~
.
.-...-,
-. . .~
~ A pressão popular em ver resolvido os casos de assassinato na cidade de Slo
'~
...i'·-.) Paulo, fomentada por notícias espetaculares sobre os bárbaros e freqüentas Cl'lrRlí1',
poderia ter forçado os controladores da ordem, os quais já estavam cientes das ~
.,., nº 221, Amaral se deixou levar, andando a esmo, " ...tomando rumo de diversas ruas,
•• .., andando vagamente ... ", sem saber o que fazer, tendo ficado assim até o amanhecer.
Era véspera de natal, dia chuvoso de dezembro de 1926. Amaral, nesta ocasião vendia
" ... bolas de borrachas cheias de gás ..." nas proximidades do Canindé, quando encontrou
um garoto " ... aparentando uns dez anos de edade, de cor morena ... " que "...caçava
passarinhos..." com um "estiling" cujo nome era José Fellipe de Carvalho. O menor,
aproximando-se, pediu umas das bolas para Amaral que "...imediatamente satisfez o
pedido do pequeno ..." iniciando com ele uma conversa, por intermédio da qual o
criminoso passou a saber onde o garoto morava e o que fazia ali, sozinho. 299
299
. Processo Crime 1670. 09.01 .1927.
~
0
-
~
"\ .) Depois de alguns minutos, tendo estourado sua bola, o menor pads,- ~ tl.
. ..
\.) ~~
i~ ; •:.
•v vendedor de bexigas que novamente lhe concede o pedido. Assim, "'... COI,, o r,t. . . ..
-~
,
disse ao menor que fosse com ele até um matto próximo, já que estava meam~ ca.
. tr.itr'1. . .
~ pois alli havia mais pássaros ... ". Aceitando o convite, José Fellipe acompanha ...•·
•
•'"V rumo a Ponte Pequena, que cruzava o rio Tamanduateí na altura da rua Joio
,-~ bairro do Brás. Chegando ao local do crime ha dias praticado e "'...uma V8Z'
, -..) matto, tendo tomado a precaução de verificar que não havia ninguém nas p1
1
.,
- •. )
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.
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ca d aver....
,..,
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Havia chovido nos dias anteriores às descobertas dos corpos e ossadas
., encontrados no Campo de Marte. O chão ainda continuava úmido nos dias que se
.,
~
seguiram, conservando o clima inconstante, como no dia em que José Felippe saiu de
'" casa. Por intermédio da consulta juntos aos autos do processo, especificamente, o termo
de declarações da mãe de Felippe, uma mulher pobre, com 37 anos, aflita pelo
desaparecimento de seu único filho cujos últimos momentos junto a ele foram assim
descritos: " ... que passando cerca de tres horas da tarde, o meno r disse a declarante si
dava consentimento para que fosse até a Igreja de Santo Antonio assistir uma cerimônia
" religiosa em homenagem à vespera do dia de natal. ..". A referida igreja ficava "pouco
retirada" de onde residiam e como fosse religiosa, permitiu que ele realizasse seu
intento. Assim, " ...que depois de tomar banho, vestiu-se, sahindo com rumo a aludida
casa de oração... " vestindo " ... paletot de brim escuro, com listas brancas, camisa de [?]
.... -~ M1
J
v
\.) com listas azues, calça de brim 'kaki', meias colegial, de côr marron e sapatos de 'thenls'
~ 300
-~ côr marron ...", sem nunca mais ter voltado.
~
Doze dias foram necessários para que d. Georgina pusesse fim ao seu tormento.
'
"'\.)
Naquela noite, às vésperas de natal, como seu filho demorava a chegar a -~ .... de
Felippe saiu a sua procura percorrendo igrejas, levando com isso quase toda · ·- -~tv.
.. ., j
O drama de d. Georgina chegou ao fim apenas no início de janeiro, quando-•
':1 ., ~
das notícias dos jornais, as quais se referiam ao encontro de um cadáver na estrada de
Nesse dia, d. Georgina voltou para sua casa sabendo que seu filho, José Felippe, estava
morto.
~
-~ ~
...A polícia estava empenhada na descoberta da Identidade do cadévltr do
menino de 1o annos, quando compareceu no Gabinete de Investi~•• da Na
Gusmões, d. Georgina Silveira dos Santos, viúva de um ex-soldado da Força
Pública e moradora à travessa Araguaya, 17. Essa senhora ignorava o paradeiro
~ de seu filho José Felippe de Carvalho, de 1O annos, desde o dia 24 de
~ dezembro, tendo sido feita a communicação desse desapperecimento é poHala;
no dia 2 desde anno. D. Georgina vendo as vestes encontradas no Caril~1 de
~
-~ Marte, reconheceu, infelizmente, que se tratava de seu filho José Felippa. . ~
polícia estava empenhada na descoberta da identidade do cadéver do rnenfnO
de 1O annos, quando compareceu no Gabinete de Investigações da ·""-
Gusmões, d. Georgina Silveira dos Santos, viúva de um ex-soldado da Fo._,
~ Pública e moradora à travessa Araguaya, 17. Essa senhora ignorava o ~
de seu filho José_ Feli~pe de Carv~lho, _de 1O annos, desde o dia 24, . ;
~ dezembro, tendo sido feita a commun1caçao desse desapparecimento é pel! · "
1-~ no dia 2 desde anno. D. Georgina vendo as vestes encontradas no Camna
Marte, reconheceu, infelizmente, que se tratava de seu filho José Fellppe.•-
.,
1 --.J
O corpo do menor, encontrado treze dias após sua morte em adiantado
~
.:, putrefação em uma pequena clareira no Campo de Marte, foi levado pela polícia -~
.)
1 :, necrotério do Cemitério de São Paulo no dia seis de janeiro de 1927. Naquele mesmo
l :,
1 :, dia, na presença do dr. Juvenal Piza, Delegado de Segurança Pessoal, os restos mortais·
l j
de Felipe foram examinados pelo médico legista dr. José Bresser Monteiro de Barros e
1 ~
,. .,
l ., José Rebelo Neto, do Laboratório de Polícia Technica de São Paulo, cujo exame
do processo, após ter praticado o coito, Amaral se dirigiu para o bairro do Brás,
que previamente havia contatado sem, contudo, pennanecer por muito tempo, saindo
•
~
,- ~ suas vitimas, como em outros jornais, delineava o perfil do criminoso, evocando na
memória dos leitores, cada vez mais interessados nas atrocidades notlclac:IM COI,~
""\.}
freqüência diária, os crimes descobertos pela polícia.
., individuo. Crimes como os que elle contou com os olhos baixos mas sem
~ denotar a mais leve perturbação physionomica, como se estivesse a dizer as
~.
coisas mais communs, definem perfeitamente a sua tendência para os actos
~ mais execráveis, e repugnantes que talvez a imaginação fecunda do romancista,
affeito aos aspectos mais emocionantes das criações trágicas, fosse incapaz de
~ fixai-os.
304
111---" "'-1' Representado como "o terrível matador", "papão negro", "besta fera", "mais animal
do que homem" Amaral celebrizava-se como um dos mais temíveis criminosos que a
que o local onde os corpos foram encontrados não era desconhecido por uma parte da
população, que utilizava a velha estrada de S. Miguel como caminho, atalho, espaço de
304
. o Estado de S. Paulo. 05.01 .1927. p. 8.
1
Fotografia 7. José Felippe de Carvalho, segunda víbma do "tucano". Processo Cnme nº. 1670. Acervo do Museu do
Crime da Academia de Polícia do Estado de São Paulo.
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~
v
\.) A segunda victima, confessou José Augusto, o terrível malador, anc0111ru:ia a
dias depois, no Caninclé. Era um rapaz de 12 annos, mais ou manae, da car
~ morena. Residia à travessa Araguaya, 17. No dia 24 do mez pttnaado, . . ,r4e
v havia comunicado à policia o seu desapareceimento. Das quatro vlcllma do
terrível "papão" negro, só falta ser estabelecida a identidade da lA'T1& ( ...) l'lt■ID
sentido, a Delegacia de Segurança Pessoal vem trabalhando activalnanla. íJJ■tl
Augusto do Amaral, incontestavelmente está fadado a figurar nas·_ . . .
policiaes como um typos mais singulares apparecidos nio a6 na na11w • •
\,,) ~~ t?da a parte ~o Glo~. Porque, na verdade, . ~ão hé Iam~ ~
1dent1co, que tanto 1mpress1onasse, revoltando a opnião popular. • ··
-..J
1~"
v
portadores das idéias vigentes de organização e intervenção social,
,.
natal, andando sem destino, Amaral volta ao local do crime, passando antes•...
Ili :,
1 :, em que havia assassinado o primeiro menino (... ) não sabendo o motivo dessa
1 :,
curiosidade, pois, que mantém somente copula em cadaver que ainda conserva certa
1 ~
~ ..,
~ ., quentura, pois, tem repugnação quando os mesmos já contam movimentos de rigidez,
corpo frio e a rigidez do cadáver, dado este que aparece nos jornais de forma
305
• Folha da Manhã. 06.01 .1927. p. 9.
~. Process o Crime 1670. 09.01 .1927.
'0
·J
\)
v
v Em nossas edições de hontem e ante-hontem, em detalhada
acompanhada de photographias contámos os · repugnantaa
~ famigerado bandido José Augusto do Amaral, que matou quatro
depois de mortas satisfazer os instinctos bestiais. A fera
~ estrangulado as suas victimas, pois, só assim podia saciar oa ■lla
instinctos. A carne gelada de cadáver era para o bandeio '-"•• '
Interrogado por alguns de nossos companheiros declarou não tar
~ seus crimes. José Augusto que tem uma memória prodigiosa tudo
-~ numerosos detalhes. Hontem, em companhia do esforçado
segurança pessoal dr. Juvenal Piza, o monstro foi ao Campo
acompanhando todas as dili~ncias policiaes sem se perturbar
30
cadáveres de suas victimas.
~
-~ A identificação da segunda vitima levou o delegado Juvenal de Toladcí
~
supor que os crimes confessados por José Augusto do Amaral não seri~ oe
--"
-- ,J Como atesta a historiografia mais recente, produzida em tomo das experi11
.,-
.)
homens e mulheres pobres do início do século XX, o período foi marcado por
'! .......
·"
~
Haviam outros crimes cometidos nas mesmas circunstâncias que os identificados como
sendo cometidos por José Augusto do Amaral, como informa o jornal A Gazeta
.~
307
308
• A Platéa. 06.01.1927. capa.
. A Gazeta. 07.01.1927. p. 8.
241
-~
~ ' \)
..., 0
''\,)
' Ainda em 1926, supostamente no dia 13 de dezembro, nas imediações da Praça
na imprensa paulistana, conduzia uma caixa de engraxate. A versão dos fatos publicada
i~
liir· nos jornais que noticiaram os crimes ocorridos, afirmam que Amaral, abordando
sedutoramente o menor, sugerindo a este que " ...si queria ganhar dinheiro, que fosse
-.J com ele até a ponte da rua João Theodoro...", ponte essa que atravessa o rio
.J
~ Thamanduathy para que, com ele, carregasse uma pequena caixa com roupas.
j
- - ..) Aceitando a proposta, o menor, identificado como Roque Peccili acompanha Amaral,
.:,· rumando em direção à rua João Theodoro na esperança de receber, como prometido, a
:,
.. :,
:,
quantia de quatro mil reis. Os registros provenientes do judiciário, especificamente o
Roque Peccili:
~ ..,
~
.., ... que alli chegados, descendo primeiramente, chamou o menor para que fosse
~
~ ., ter junto de si; para que ambos tirassem a caixa que alli debaixo se achava; que,
tendo o menor chegado até o ponto em que o declarante se achava, acto
contínuo, agarrou o mesmo pela garganta procurando esganai-o; que depois de
__ ___,
_ ___..,
..i
~
.
alguns minutos notou que dito menor se achava morto, pois assim julgava, e
quando se dispunha a saciar seus instinctos camaes, um ruído de passos veio
perturbar o desenrolar da scena que ia mais uma vez por em prática.... 309
A leitura dos autos do processo, instaurado nos dias que seguiram a prisão de
J!--- São Paulo no final da década de 1920. Roque era um garoto de nove anos, filho de
imigrantes italianos que vieram para o Brasil tentar a sorte, trabalhar, "fazer a América".
li- Como muitos outros, seu pai, Carmine Peccili era um imigrante empobrecido que
vivendo com sua família na casa da Rua Marcolina nº. 70, no bairro do Brás, próximo a
.
Praça da Concórdia. Assim como a imensa maioria das pessoas naquela situação, sr.
'
.. \,) 1,1
~ -'-
-..... \)?
~ Carmine também necessitava que seus filhos, mesmo os menores, contribuíssem com a
-~ renda familiar, conforme assinalado anteriormente, na primeira parte desse trabalho.
\.)
~
O clima chuvoso dos últimos dias de dezembro de 1926 favorecia o trabalho de
engraxates que viam aumentado o número de seus clientes podendo, assim, aumentar
sua caixa de engraxate. Porém, naquele treze de dezembro, Roque Pecclll dei
..J chegar, deixando seus familiares ansiosos, quando, finalmente, um carro estacl1
..j
e ~·
frente à casa humilde dos Peccili de onde o pequeno Roque se faz acompan
:J· um policial e pelo "choffeur" que dirigia o automóvel, já tarde da noite. Para o
:,
.. J i :, seus pais, Roque estava ferido, sujo de lama e assustado.
• ,, O "choffeur'', " ... Basílio Patti, casado, 29 annos de edade, de cõr banca, filho de
.,., Raphael Patti, nascido em Botucatu, residente à rua Sallete, em Sant'anna...", ha quatro
.. ..,
.. anos fazia ponto com seu automóvel de aluguel no Largo General Osório. Em seu
~ ·
depoimento, o taxista refere-se que naquela noite, ao sair para trabalhar, passando pela
.,,
·~
ponte da rua João Theodoro, que atravessava o rio Tamanduateí, foi parado por um
soldado que lhe pediu para levar um menor "... que havia sido agredido por um preto
desconhecido, embaixo da ponte alludida... ". Realizado o que lhe havia sido solicitado,
estando o pequeno Roque já na casa de seus pais, o taxista retomou suas atividades
J!
.., cotidianas. 310
ta
Estando entre seus familiares, reconfortado, Roque passa a relatar ao seu pai os
----- ' Colombo quando foi abordado por um preto desconhecido vestindo temo de b,il,r 111i
---~
- ~~
-
que lhe disse o seguinte: você quer ganhar quantos mil réis para carregar uma
-~ ~
de roupas?".
~--.,j
-- :5 - ...)
Prosseguindo a leitura dos autos do processo, observa-se que no rnorn,
- :,
Ili :)'
ambos se dirigiam à ponte da rua João Theodoro, uma garoa fina caia sobra a
fazendo com que poucas pessoas prestasse atenção nos transeuntes, os qveh:';
li j '
desse dado,
■ , achavam apressados devido ao clima que anunciava chover. Diante
.. .,.,
~
~ possível supor que os personagens, até então anônimos, tivessem demorado um pouco
para chegar ao local referido, onde estaria a tal caixa com roupas, pois o trajeto havia
~ · ~
sido feito todo a pé.
Q. ~
---Ili-- ·~
.,, Decodificado os fatos narrados por seu filho, o sr. Carmine Pecilli relatou ao
IL comissário, dr. Ramiro Garcia, os fatos acontecidos, que por sua vez foram filtrados pelo
,,, escrivão José Netto Lemes, resultando no registro que segue: "... quando ambos já se
achavam debaixo da ponte, foi o mesmo agarrado violentamente pela garganta; que
..,
., após alguns minutos o menino deve ter desmaiado, voltando a si, procurou com grande
custo, chegar até a rua, onde foi accudido por duas moças que passavam nessa
310 p
3 11 rocesso Crime 1670. Testemunho de Basílio Patti.
• Processo Crime. Testemunho de Camiine Pecilli.
.)
291
·J
'--\)
-0
..) A continuidade da leitura dos diferentes testemunhos acerca do caso de Roque
~ Pecilli indica que, tomado pelo medo de ser reconhecido, Amaral abandona a vítima se
' ~
que caia sobre a cidade. Passado um tempo, Amaral decide sair do local em que estava,
"'-,)
abandonando sua vítima, passando a vagar "... por toda a noite nas ruas desta Capital e
quando já pela madrugada chegou até dita ponte afim de ver o menor na noite anterior
-.J havia deixado notando que alli não mais se achava". O testemunho, acompanhado pelas
~
,.... autoridades, continuava explicando como teria ocorrido a tentativa fracassada
312
do que
garotos e seu personagem principal, José Augusto do Amara l alvos das atenções da
-~
imprensa paulistana, que não media esforços para deixar os crimes ocorridos ainda mais
&---,
" -~
~ ., -
tenebrosos, apresentando, inclusive, fotografias que haviam sido anexadas ao processo
' -- ~ instaurado, possibilidade bastante remota e dispendiosa para os jornais da época, além
• ..,, de divulgarem documentos que não poderiam ser retirados dos autos .
S. Miguel é possível localizar documentos que não poderiam ser veiculados, sobretudo
de São Paulo, que realizou as perícias técnicas nos cadáveres encontrados, até porque
os crimes imputados a José Augusto do Amaral ainda não haviam sido julgados. Mesmo
312
• Idem.
'
v
\)
·J
~ As notícias veiculadas pela imprensa reproduziam detalhes ou informações
,,.)
discordantes, as quais iam, ao sabor da crônica policial, forjando a realidade que levou
\,)
··~ Amaral à prisão; como se pode observar na reportagem do jomal O Estado de São
c ~ .J "'
,.)
interrompe a narração, responde ao interlocutor, e, quando esta • êàíía
satisfeito, continua a falar sobre o primitivo assumpto, com o ma■ltJ
desembaraço de linguagem e com a nitidez com que frisa os ....i.,,,.,.,_ da .;.-.
'd
:, vi a. 313 V~ -
:,
:,· o exame do caso de preto Amaral levou Antonio Carlos PACHECO e SILVA, ari,
,
J co-autoria com o "chefe do Laboratório de Polícia Technica", dr. José REBELLO NETO a
imprimirem suas interpretações acerca dos fatos que levaram à tentativa de assassinato
~
~ do pequeno Roque, publicadas nos "Archivos da Sociedade de Medicina Legal e
~
e
..,
~ Criminologia de São Paulo". Parte do exame psiquiátrico realizado a pedido das
___,,
lit- · ~ autoridades judiciais, o laudo técnico revelava que preto Amaral "...encontrara o menor,
·"" agarrada pelo pescoço, cahindo desfallecida. Nesse momento, alguem que passava
"".., pela ponte ahi estacionou. Receoso de ser surprehendido, abandonou a sua victima e
fugiu. No dia seguinte, voltando ao local, já não mais encontrára o cadaver.". 314
'1
313
• o Estado de S. Paulo. 06.01 .1927. p.
'
~
t~~
\) -
'--'·-~ O exame efetuado prosseguia dizendo que "... nesse mesmo dia, porá111
\.,)
\J comparecia á policia o carregador Carmina P ., que tendo lido nos jomaes as noticias doa
0
crimes do preto Amaral, desejava communicar á policia que uma as victimas havia sido o
~
v seu filho Rocco, de 9 annos de edade ...". O relato do psiquiatra forense e do pertlD
t._·~~ continuava revelando os momentos finais desse encontro com o pequeno engraxa-,:
5-- ,J
"J
~
afirmando:
... precisamente nessa occasião, uma pessoa que passava estacionou na
Receioso de ser surprehendido, o preto fugiu, abandonando a aua
.,.
·~
Momentos depois, o pequeno voltou a si e poz-se a gemer, :911Ji 181'
comprehensão do que se passára. Os gemidos da creança foram
J um 'chaufeur' que, em companhia de outras pessoas, levou o pequeno
,.J de seus Paes. A autoridade fez conduzir o pequeno até ao --L•.
Investigações. Este reconheceu no preto Amaral o incividuo qua
c-· 3 estrangulai-o, e o criminoso, por sua vez, reconheceu no menor o
~
,., No descompasso das trágicas notícias que narravam os acontecimentos funestos
sobre as mortes dos garotos na cidade de São Paulo, como foi sinalizado, teve grande
"e .,.., repercussão na sociedade paulistana do final dos anos vinte. Com a notificação de que
Q _ ..,
.._-, uma das vitimas havia conseguido escapar da morte anunciada, a população passa a
-~
Jl
-" ' denunciar outros casos. Alarmada, a sociedade paulistana passa a precaver-se dos tipos
que, como Amaral, viviam na cidade organizada pelas utopias disciplinares. Com o
desenrolar das histórias trágicas, pouco a pouco foram surgindo novos garotos que,
314
v
v De alguma forma, os depoimentos colhidos e repassados aos jomals paulistanos
~ •I,.:~
.,~ '1.-
que noticiavam os dramas e os horrores vividos pelos familiares das vitimas, sob~
~ ,;· '\.:i:.,;,,;..;
. •:>'r·;\ -~
.-.)
·"·
.. 1.tt..v
das encontradas mortas no Campo de Marte, pareciam propor ao grande pllbllco .. ·
..J .
- .:,
■ :,
eram, de fato, verdades incontestes. A cada publicação, cada fotografia dlvul
peso e a carga hereditária imposta aos negros parecia diminuir, sufocando, ain1
~
1 as possibilidades de ascensão social dessa parcela significativa da população.
:5
1
1
li!
,
J
.,
O jornal A Gazeta publicou a passagem relatada nos autos do processo em
'! .., matéria de primeira página que trazia o título "Os crimes de um monstro. Mais uma
:, ~ ·
victima que escapou" que foi assim retratado:
~ - -J!),
•-- ..., ... Como hontem noticiamos, na rua Araguaya existia ainda outra victima que
i --- ~ conseguira escapar á sanha assassina de José Augusto. Hontem, a nova
316
317 • Processo Crime 1670. Auto de reconhecimento.
. A Gazeta. 08.01 .1927. p.
\.)
\)
-
v
\o) Esses dados reproduziam, inclusive entre os próprios negros um
\,)
\,) segregacionismo a tudo o que pudesse ser associado à desorganização (aettll"41, -
familiar, profissional), ao não trabalho, aos vícios e desregramentos doa que, de tio
'
'
"'.,,
A
·,
obrigatória aos diferentes segmentos da sociedade, mesmo que não informassem as
jurídico do estado.
318
• Trabalhando com a imprensa negra paulistana como os íomais O Clanm d'Alvorada, A Voz da Raça, O Kosmos,
entre outros, a autora destaca que "'os negros' só conheciam 'da liberal-democracia, da tal igualdade' o nome. Ta~o
isto era verdade que Já ia constituindo-se 'aos olhos dos habitantes' daquela 'urbis plutocrata e cosmopolita,
verdadeiro escândalo ou pelo menos, admiração, o uso do chapéu por uma negra, a audácia de uma patrlcia fazer-
se normahsta, (vêde a igualdade)'. Igual celeuma fana um rapaz negro se levasse 'a sério a constituição', se se
tornasse estudante e saísse nas ruas com o livro a mostra. 'Qualquer desses desaforados' por pouco fariam os
negros serem apedreJados e comdos 'da cidade, da sua própria terra', que se supunha 'a ma,s crvilizada do País'(...)
O direito de ser chie rimava com o dever de trabalhar (-..) Era direito dos negros produtores da paulicéia desfrutar
das novidades oferecidas. O negro que se contrapunha a esse estilo, era considerado no mínimo adepto da
ªcomodação, era o freqüentador das feiras e das quermesses, morador dos baJrros pobres e penféricos da cidade e,
sobr~tudo, excluído do meio negro 'nobre'. LOPES, M. A. de O. Beleza e ascensão social na Imprensa negra
~uh~na 1~1940. São Paulo, 209 f. Dissertação (Mestrado em H1stóna) Programa de Pós- Graduação em
Históna - Pontifícia Universidade Catóhca de São Paulo. p. 103-105.
\,) Ili
t.._~
-~
\..) Como indicado, o período remonta um contexto histórico no qual aa alltae
~ políticas e dominantes, sobretudo aquelas que formariam, em um contexto
\,)
~ imediatamente após o final da chamada "República Velha", a "bancada da chapa llnlca"
cujos projetos visavam um Estado de São Paulo unido e classista, como atesta Z6lla
~
~~~
,.., Lopes da SILVA. Preocupada em "demarcar os anseios e movimenta9ê>es de hornena
' daquela época, no enfretamento das grandes questões que envolviam o país e, ele qtat.
.....,...
tempo, a hipótese de que desde o final dos anos vinte os "deputados classistas",
de mudanças que se pretendia para o país, o qual forjava uma nova realidade à vida
moderna. 319
lf
A pretensão do branqueamento, ideologicamente possibilitada pela
:,
homogeneidade de uma população "chie", elegante, cujos lastros culturais e familiares
desordem do mundo superior dos brancos. A presença destes entre os brancos, além de
319
• Para a autora, "...a rede de poderes que se engendra aí incorpora outros temas e questões: a saúde, a questão
racial, a família, a cultura, a educação, a moral e a higiene social. o viés técnico como solução permite ao Esta~o
aparecer definido as diversas estratégias viabilizadoras dessa dominação que se apresenta para todo o corpo social
como necessária e inquestionável(...) São por essas razões que nos anos 30, esse discurso da competência técnica
passa a ser peça importante no imaginário burguês e se constitui no instrumento que toma possível a recriação de
~ua dominação.". SILVA, Z. L. da. A República dos anos 30. A sedução do moderno. Novos atores em cena:
industna1s e trabalhadores na constituinte de 1933 - 1934. Londrina: Eduel, 1999. p 32.
~
~
.... 297
~
._,v
\,) Na cidade de São Paulo, era notório a exclusão e o "segregaclonismo
~
costumeiro" aplicado aos negros, mesmo aos que pertencessem àqueles grupos
-~
'-1 minoritários considerados e muita vezes auto-denominados negros nobres, negos de
elite, possuidores de bens materiais como casa, roupas da moda, produtos de higiene e
~
beleza, instrução letrada ou relações de conhecimento e de favores com os brancos, os
quais dirigiam as instituições de controle social como, por exemplo, o negro Philadelpho
~
que trabalhava, mesmo que à margem, para os manipuladores e controladores da nova
·.J
ordem social e sensibilidade estética preteridas para a cidade. Como salientou Jurandir
- ,.)
~ Freire COSTA, "o corpo forte, sexual e moralmente regrado, foi medicamente
~
e ~ identificado ao corpo branco.".
320
-: ,
:, Considerando os valores próprios do período, não seria difícil que um negro fosse
--
•..
:,
~
indiciado como suspeito dos misteriosos assassinatos, passando a ser representado
.,.,
~ como o "monstro", a "besta fera" "repugnante" que teria levado à morte os meninos cujos
despojos foram encontrados próximo à estrada velha de S. Miguel, caminho para muitos
I:! - ~
.., trabalhadores pobres como Carmelino José dos Passos, brasileiro, solteiro, com 19
-- ~
~ ·
anos, servente de pedreiro, de cor morena, filho de Caetano José dos Passos, que:
320
O autor continua esclarecendo que "para isso utilizou-se, ordinariamente, a figura do escravo como exemplo de
•
corrupção física e moral." . Para o autor, a consciência de raça e racismo, criada no momento que considerou como
caracterfstico de uma "hipertrofia da consciência individual" referindo-se ao corpo e a aos afetos, como indicado,
"plano de !º,:mação da consciência de classe e raça necessária ao progresso do Estado nacional". COSTA, J. F.
321 Ordem médica e norma familiar. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p. 208 .
. Processo cnme 1670. Testemunho de Carmelino José dos Passos.
•
~
)
211
~~
"-· ·; J
-~ O testemunho de Carmelino toma-se significativo pois evidencia que, de fato, as
\)
pessoas transitavam e moravam na velha estrada de S. Miguel ou utilizando-na como
~
atalho em incursões diversas. A informação prestada, capturada pelos filtros
inferiorizavam os negros, reitera que o local era freqüentado por outras pessoas como,
....
.J.
- -~
..:,
quem sabe José Augusto do Amaral, as quais andavam com freqüência nas veredas,
cortando caminho, encurtando as distâncias que levavam para cada vez mais longe do
,J '
.. :J':, informação à polícia? Qual seria a reação das autoridades pois, como interpretado
•• ,J anteriormente, viam as classes pobres como classes perigosas? Talvez, para muitos
~
,..,
-
daqueles homens e mulheres, o melhor a fazer era calar-se, mantendo-se isento de
la----" ocorridos na passagem de 1926 para 1927, os registros revelam que no começo do mês
--~· de janeiro, " ...parecendo ser dia primeiro, dia santificado ... ", próximo das dez horas da
.,,, manhã, José Augusto do Amaral se achava nas proximidades do mercado da rua 25 de
jogo, o qual não demorou a acabar, pois " ... que foram as pessoas que alli se
encontravam se retirando". Todavia, um menor, vestindo " ... palletot amarelo claro, calças
de brim escuro, apparentando uns quinze anos..." e um outro pouco mais velho
•
~
e)
~ \.)
2•
◄ '
~ - \J
~ ·,~
~ pelo escrivão, o que não acontecerá com a identificação da bebida, aumentando ainda
0
~ mais aquela possibilidade.
~
" __:,
'~'-" '
Aceitando ao convite, os três foram até o botequim. Todavia, o garoto mais velho
e..-~
.
permanecia afastado, ao passo que o mais novo se mostrava mais satisfeito CCNtl a
..._,
- ""
I:::.;-,..,._ '
companhia de Amaral, de quem aceitou a comida e com quem tomou vinho, •m
~
J
., contudo, aceitar o café, tomado apenas pelo negro desconhecido, identificado ..,.,
~.,.· ..
~ ·
J polícia como sendo o preto Amaral. Satisfeitos, já estando na porta que dava para a
p.--J ' Antonio Lemos, o menino mais moço, perguntou ao desconhecido que lhe pagai
c -J
e; :)i comida onde o mesmo queria chegar, para que lugar estaria indo. Em resposta,
-- - ..... :5'
- .:,
,, disse que pretendia dar uma chegada no bairro da Penha "...que tendo
-·- ·- • J,.'
.
..,; respondido, esse menor disse que também chegaria a esse local..." a fim de lavar urna
..PI .., casa de uma senhora, como havia combinado uns dias antes, assim que as chuvas
cessassem. As pretensões deste menor, de acordo com os autos, fizeram com que o
7
-~·· .ri! 61 companheiro, o mais velho, se retirasse. A narrativa a partir de então não difere do
e ~
•- _,.,;, O termo de declarações prestadas por "... Maria Claudina de Vasoncellos, casada,
• doméstica, de côr branca, filha de Antonio Domingos de Vasconcellos, com quarenta e
li quatro annos de edade, de nacionalidade brasileira, natural de S. José dos Campos,
I!
J' residente á 'Villa Maria', A. Af-. Maria, número a...", mãe de Antonio Lemos, recuam
~
apresentando novos detalhes à sua história trágica, denunciada pelo mulato Carmelino
6t
•-- que cruzava o atalho da estrada velha de S. Miguel. De acordo com os registros, a mãe
• de Antonio Lemos indicava que o seu filho havia saído no sábado, cerca de sete horas
da manhã do dia primeiro de 1927 avisando que iria lavar uma casa no bairro da Penha.
~
~ 210
\)
'-- ·~
._, \a)
...que dito isso, Antonio vestiu uma calça de brim escuro, nova, por cima de
-~ outra da mesma qualidade, porém, velha (...) como se achava com o pé um
~ pouco machucado e também devido ao barreiro existente nas ruas da villa onda
moravam, tomou a deliberação de lavar somente uma botina, afim de calçai-a
~ logo que se aproximasse da linha dos bondes da Avenida que, no &Iludido
bairro, é denominada 'central'; que Antonio vestia duas calças, confonne já
disse, camisa branca listada de chita de ziphir, palletot de brim amanllo, tippo
'kaki', e levava um só pé de botina, sendo que esta era de couro preto com
322 '
cordão, bastante usada....
sob o título "Crime repugnante. Será Jose Lemes a victima?" informando as diligências
-.J
- -~
·..J
policiais levadas a cabo pelos controladores da ordem. Pautado nos exames do Serviço
...., Medico Legal, nos depoimentos e demais evidencias que Delegacia de Segurança
--~..:, Pública não impunha restrição à consulta, permitindo, inclusive a permanência de
e -J:,1 policiais nas sessões de depoimentos processados pelo delegado de Segurança
.. :,,:,
Pessoal, o artigo dizia:
•• .,~··
.,, Sabbado ultimo, na estrada de S. Miguel, proximo á bomba de gazolina,
conforme detalhadamente noticiamos, foi encontrado um menor victima de um
crime repugnante. O menor foi agarrado por um indivíduo que com elle
l!l. ~ empenhou em renhida lucta corporal, enforcando-o com um cinto de brim. Não
contente com isso, o infame abusou da infeliz criança, maltratando-a
li!! . ~ ' horrivelmente e estuprando-a. Dado o alarme, foi o caso entregue á Delegacia
de Segurança Pessoal. 323
--=-- "''
~ '
~ Com os estreitamentos das relações sociais e profissionais entre médicos e
--~i advogados cada vez mais consolidados e pela indicação de Boris FAUSTO, de que para
lucrativos na cidade de São Paulo, "a maioria dos brasileiros não passava de uma gente
valendo-se das conexões de parentes e amigos... ", não é difícil supor que o caso dos
forenses que assumiam o controle das instituições totais em São Paulo, determinando
os vieses que o caso deveria seguir e até mesmo sugerir a massa de trabalhadores
3 22
323
. Processo crime 1670. Termo
• A Platéa. 07.01.1927. p. 4. de declarações de Maria Claudina de Vasconcellos.
•
~
0
-,_) 111
"'- -~
'- ·0 -~ pobres, como que avisando, taxativamente, o que poderia acontecer caso as normu
-~
médicas e as noções jurídicas, já evidenciadas na primeira parte deste trabalho, nlo
·0
'-) fossem cumpridas. 324
-~
~
... J ~
A morte daqueles garotos e o indiciamento de um "preto" como o responaéval
pelas atrocidades que os exames periciais apresentavam e que fazem parte do procNIO
crime que indiciava José Augusto do Amaral, foram usadas pedagogicamente para~o
~
,J
,, branqueamento da população paulistana, projeto social ansiosamente desejado
•
"'
...) elites políticas e dominantes. "O essencial, todavia, e que precisamos
j
cuidadosamente, já ressaltamos de várias maneiras: o indivíduo não fora soclallado:
J
-: ,,
~ i
para agir como 'operário' e para realizar-se, através das carreiras acessíveis, w110~
• :Ji
:,:
trabalhador assalariado. Desajustava-se, pois, por falta de aptidões e predisposições que
deveriam ser adquiridas previamente ou que fôssem assimiláveis mediante 'a educação
~
.,..,
:1'
pelo trabalho'.". 325
r, ...,
e ., A continuidade da leitura do termo de declarações de d. Maria Claudina evidencia
iw- "" que no dia em que saiu de casa para realizar o expediente na casa da Lapa, Antonio
11- "Y
•• Lemos não declarou o nome e tampouco a rua em que a tal casa ficava, "...que, em
seguida, Antonio pediu a declarante que guardasse qualquer cousa para ele almoçar,
visto como, voltaria mais tarde ...". A mãe de Antonio, e de mais dez filhos, percebendo
~
que o filho não chegava " ...ficou um pouco apprehensiva; que na manhã do dia dois
"..,
'1
324
325 . FAUSTO, B. Negócios e ócios. Histórias da imigração. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 67.
• FERNANDES, F. Integração do negro na sociedade de classes. o legado da "raça branca". São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1965. p. 145-6. Criticamente, o levantamento de dados realizados por Petrônio José
DOMINGUES, indica que "...apesar do segmento negro (pretos e pardos) na cidade, em 1920, ser
aproximadamente 9% da população total, o índice de natimorto (nascidos mortos) era de 12,7% em 1918; 12,4%_em
1922; 13,35% em 1924; 15,9% em 1926 e 15,99 em 1928...", deixando entrever um silêncio nas estatísticas
realizadas mediante consulta ao Annuário Demográphico. Secção de Estatística Demographo-Sanitária dos
respectivos anos. DOMINGUES, P. J . Uma história não contada. Negro, racismo e trabalho no pós-abolição em
S~o P_aulo (1889-1930). São Paulo, 2000. 370 f. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Filosofia, Letras e
C1ênc1as Humanas, Universidade de São Paulo.
~
v
t... \) 282
.. \)
~
-~ deste mez, mais apprehensiva ficou a declarante pois vira que Antonio não apparecera,
;J 326
seus irmãos já haviam procurado-o, sem que do mesmo tivessem notícia...".
~
"
~
Receosa, cismada com a demora de seu filho, a mãe de Antonio pediu a um de
·~
seus irmãos que fosse até o Gabinete de Investigações da Delegacia de Segurança
.J· Pessoal para pedir providencias no sentido de localizar o filho desaparecido, tendo em
~..J vista as notícias dos jornais que informavam sobre a morte de um menor em
J circunstâncias misteriosas adiante do bairro da Penha, para onde Antonio havia dito que
-..J ia. Ao ver as fotografias, seu irmão reconheceu que se tratava de Antonio.
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Fotografia 9. Fotografia pericial de Antonio Lemos, a terceira vítima de José Augusto do Amaral. Fotografias tiradas por
investigadores do Gabinete de Investigações. Processo Crime nº. 1670. Acervo do Museu do Crime da Academia de
Polícia do Estado de São Paulo.
326
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~ \.) 211
"- .v
\,)
·...) O depoimento de José Augusto do Amaral, de acordo com os autos do processo,
-..)
após uma pequena viagem de bonde e percebendo que o menor continuasse em sua
~
~ companhia " .. .fez essa circunstância avivar ainda mais os [seus] desejos libidinosos...•,
Chegando no ponto final do "carradura", como era chamado o bonde que lauava._ à
..__,
Penha, Amaral desce do bonde sendo seguido pelo menor, que repete o r,INltW' etF-
J
e vez chagado a um local alto, coberto por pequenos arbustos, Amaral deflagra o crime.
... sem perda de tempo, antes mesmo que o menor pudesse MC8p&!', o
aggrediu, isto é, agarrando o pequeno pela garganta conseguiu em poucos
minutos dominai-o, o atirando ao solo; que, sem perda de tempo, praticou no
-- mesmo coito anal quando este ainda se encontrava agonizante; que tendo
satisfeito seus desejos carnais, resolveu então atar fortemente o cordão no
pescoço do menor, cordão este que julga ser do pequeno, com o qual o mesmo
prendia as calças; que tendo o cuidado de verificar que, de facto, o menor
estaria morto, e que seu estrangulamento fora real. .. 327
I!
.,____ De acordo com o Jornal A Gazeta, um depoimento revelador possibilitou localizar,
entre os diversos negros que haviam sido "detidos para averiguações" na Delegacia de
Segurança Pessoal de São Paulo, que era José Augusto do Amaral, um negro cujos
desertado, negando as ordens de prisão deliberadas por seus superiores que viam nele,
~
\}
\) 211
'-- ·v
....\.) \.) uma ameaça. A notícia se espalhou rapidamente, coroando de glórias e louvores os atos
~ heróicos e protetores conduzidos pela polícia técnica.
►
'J..
- '-,)
E agora, a descoberta do miserável monstro que estrangulou aquelle lndllaao
~ menor, na estrada de S. Miguel, pouco alem do bairro da Penha. A polícia que
----.
liif
_) ~~
vinha encaminhando suas investigações em tomo de um indivíduo de c6r praia,
que se tomara suspeito, verificou, logo após, por uma série de circunstancias.
que a este não cabia a responsabilidade do hediondo crime quando apareceu
um homem do povo, simples nos seus modos, desejando falar ao d• a , la-g,1. de
, O
•
-~
encarregado das diligencias. Este homem era o eletricista Roque da Slh:aira
Leite, de 38 anos, morador na praça da República, 2, esquina da rua lplranga,
onde trabalha. Sendo encaminhado a autoridade, rnanlfeslDu cms
~ apprehensões, muito bem ponderadas, a respeito do que observara no da 9
J Anno Bom, quando almoçava na casa de pasto do sr. Antonio Moulalru, ·, .,,,~•i;
328
~ travessa Lourenço Gnecco, 16.
~ "...como era normal. ..", não chamou sua atenção, somente despertada pelo motivo -
1111
•
~ j
y estarem conversando em voz baixa enquanto almoçavam. Essa minúcia permite supor
~~
~ haver um contra-senso no depoimento de Roque Siqueira Leite pois, se analisado a,,
~
~
- seus próprios termos, isto é, no contexto histórico demarcado por este estudo, o que
e~:
observa é uma prática totalmente adversa, nada normal, já que os negros, em especifico
.. .., os negros da plebe, eram avaliados como "indivíduos" que deviam ser mantidos à
•• distância.
"tl Siqueira Leite, que vira Amaral com os garotos que jogavam cartas nas proximidades do
"'1il Mercado da rua 25 de Março e que foi prestado ao delegado Juvenal Piza no Gabinete
a21 p"""'~
328 --esso Crime 1670. 09.01 .1927.
. A Gazeta. os.01 .1927. p . 8 .
·'1 _,
~
r..... \)
... .
~
-~ Contou o eletricista que, por volta das 11 horas desse dia, vira um preto e duas
crianças à porta do restaurante. Pouco depois um dos meninos entrou com o
-\) homem na casa, alli almoçando, bebendo ambos meia garrafa de vinho. O caso,
~ como é natural, não despertou a attenção de ninguem. Apenas, lendo nos
jornais a descrição do crime horrível, lembrou-se o eletricista do caso, teve
"
..)
suspeitas, procurou o dono do botequim e este aconselhou-o a dar pari& da
suas desconfianças ao dr. Juvenal Pizza. Acrescentou Roque que conhecia de
vista o preto e sabia que o mesmo frequentava as proximidades do mercado. De
posse destas informações o dr. Juvenal Pizza, colhendo oe signaes do Individuo
·. J· já suspeitado, os transmitiu a seus agentes, ordenando-lhes capturassem o
homem. Enquanto isso, comparecia no gabinete Maria Claudina de Vasconcelos
"
.J
e seu filho Antonio Lemos, que foram esclarecer a autoridade sobre a Identidade
do morto.
329
..,, horrores da vida urbana, registrado em compêndios de psiquiatria forense, bem como de
~ -,: periódicos voltados aos estudos de criminologia e medicina-legal escritos, sobretudo, por
~
Antonio Carlos Pacheco e Silva.
e
Nesses termos, no dia 9 de fevereiro do 1927 o Juiz de Direito da 2 1. Vara
lit
Criminal expediu mandato de prisão e no dia seguinte, José Augusto do Amaral foi
recolhido na Cadeia Pública do Estado de São Paulo no dia 16 daquele mesmo mes. A
"Após sua remoção para a Cadeia, o estado de saúde de José Augusto do Amaral
18
..,___ agravou-se cada vez mais. Emagreceu, apresentava-se febril e com dores reumáticas.
Finalmente, pondo fim ao seu sofrimento e antes mesmo de ser julgado, falecia às 4
329
• Idem.
~ \.)
~ \)
t...-\J
-.:, Em seu termo de óbito, que também consta no livro de mortes da Cadeia Pllbllca
~ de São Paulo registra-se o seguinte: "... aos dous dias do mez de Junho de ·mil
\)
~ novessentos e vinte e sete, cidade de São Paulo, na Enfennaria da Cadeia Pllbllca cletda
'-.) Capital... " José Augusto do Amaral morria de " ...tuberculose pulmonar.". O terftltl,
·\J entretanto, foi lavrado e assinado pelos manipuladores técnicos no dia vinte ele
r..--~tJ
Possivelmente após de ter sofrido todos os tipos de maus tratos, ainda hoje d'
-..J aos criminosos hediondos, sobretudo os negros, Amaral apodreceu nos
J
Ji Cadeia Pública da São Paulo. Seria ele verdadeiramente o criminoso da est1
....,'\'
•- J ' de S. Miguel?
e·--...J
:y;
::,1
:,,,
:-,;, Biotipologia humana
■ ~ I As manifestações da degenerescência
~
..Ili julgamento ou mesmo a espera de ser fonnalmente julgado por terem cometido um
• examinado, indiciado pelos órgãos do poder judiciário que requeria o exame para
a vida
.., praticado, definindo, assim a culpabilidade ou a inocência de um indiciado mas
das pessoas que, de uma forma ou de outra, acabaram envolvidas nas malhas fiias,
~·
.,
w
muitas vezes insidiosas, que tecem a trama criminal. Esses registros, documentos que
o crime foi deflagrado mas suas ruas, seus habitantes, suas maneiras de vestir, aeua
.J
---- ,Ji hábitos, comportamentos e origens. Sobretudo, tais registros permitem conhecar
Ji
:,1 verdades produzidas pelos poderes médico e jurídico sobre parcela da população,
:,,
excepcionalmente a população pobre, permitindo identificar como essas pessoas eram
:,,
•
■
~
~ i
i representadas socialmente e quais eram os seus lugares.
..,,
~ Buscando fundamentar cientifica e antropomorficamente o diagnóstico de Amaral,
o ilustre psiquiatra paulistano dr. Antonio Carlos Pacheco e Silva juntamente com José
e -,
Rebello Neto que, no contexto, atuava como chefe do Laboratório de Perícia Techinica
330
..,
~ ; seus órgãos: seus braços. 331
os seus abusos. Em São Paulo, as classes pobres passam a ser consideradas pelas
de trabalho, o contexto histórico demarcado por este estudo, como se pode observar,
• CUNHA, M. e. P. O espelho do mundo. Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. P 25.
. "\ ) m
\J
0
-...) na capital paulista estavam pautadas em valores excludentes, discriminatórios, forjados
·j
a revelia de uma imensa maioria empobrecida, desenraizada e indignada,
~
v costumeiramente segregadas. A moral e a civilidade imposta pelas elites políticas e
~
--... .....,,,)~ dominantes aos habitantes pobres e despossuídos da cidade traduziam o avesso do que
... -....\ ): seria o bom cidadão, inventando um outro citadino, qual seja, o desviante.
.J
..).
Ao que referem as chronicas criminaes, foi, em fins de 1924, exaculado 'ÃO
Hanover, o açougueiro Hennann que trucidou vinte e set'8 l'flPUilt-
esquartejando-lhes os cadáveres e expondo á venda a carne de suas vladmílilí -
• ---J
J' foram, ~ós a prática do primeiro crime_, que H~nn~nn enf~rmou-86 tDI,_..
Remorsos, só os sentiu ao iniciar a série temerosa de crimes: tio Cl'I.IClaMlíj,
.• _.:,-:,,, sobre a sociedade? E a Allemanha, fóco dos mais luminosos da cultura jurkllca,
e a Allemanha, patria dos mestres em psychiatria, a Allemanha condemnou-o é
morte. Na monstruosidade dos crimes perpretados, pode, sem fawr, hombrear-
se com Hermann, o maior delinqüente de que há memoria nos annaes do Citma
1 ~ i
no Brasil, este José Augusto do Amaral, o matador de ceanças, o sombrio
estrangulador, sádico, necrophilo e pederasta, cuja serie de crimes deu aso é
~ - abertura deste inquerito policial. 333
~ ~
~ -
:i .,
. ., O discurso criminalista, as imagens da violência, as práticas classificadas como
"..,'1 forma física dos desviantes. Com uma base filosófica importada da Europa e dos
332
ROCHA, L. C.dePrisão
. Universidade dos pobres. São Paulo, 1994, f. Tese (Doutorado em Psicologia) Faculdade de Psicologia -
São Paulo
333 . '
. Processo Cnme 1670. Abertura de inquérito. Relatório. 01.02.1927.
272
\)
t"..._. \.)
~ - \.)
\i) das pessoas "dignas", sobretudo brancas, que poderiam se ver livres das cicatrizes
~
i_) hereditárias da escravidão.
.. ~
-~~ ,
' pequeno numero. Nota-se ligeira coloração amarella das conjuntivas
(subcterícia). A panícula gordurosa subcutânea é regularmente distribuída, mas
pouco espessa. Na face anterior do antebraço esquerdo há uma tatuagem
~ difficilmente perceptível, F. C. (Francisca Cláudia, nome da mãe do paciente).
Diz ter sido tatuado com a edade de 14 anos. Não apresenta vicias da
. . """, ~ '
conformação congênitos ou adquiridos. Apparelho respiatório: Tórax afunilado,
com depressão da fossa infraclavicular (?) O paciente se apresenta febril, 00111
37°3 a 37°7, temperatura axilar e, outrossim, com tosse. Apparelho circulatório:
'-'' Na~a de_pa~icula_r. Ap_parelho di~estivo: Optimo coefficiente dentario. Órgloa
J,,'
-~---""'-" genito-unnanos: Rins nao palpáveis. Prostata normal. Vesiculas seminaes pouco
salientes. Pênis de forma cylindrica, varicoso, proporções exageradas, como
demonstra a photographia junto. Testículos presentes no interior da bolsa
-- .::,,.:,, , ; 334
~ escrotal. Glândulas de secreção interna normaes.
- :,,i
11111
~ ·
A literatura indica que os processos culturais experimentados na cidade
Paulo nas duas primeiras décadas do século passado impuseram novos costumes que
de São
■
1 :,, ~ · acabavam moldando as formas de pensar e agir de figuras ilustres do Brasil republicano,
1111
~
.,.., homens letrados, filhos das antigas elites, assim como das pessoas comuns, figuras
e. " trabalho livre, em sua maioria, compostos por trabalhadores pobres, negros e
w·- ,
.. miscigenados. Esses processos controlavam o cotidiano das pessoas fossem brancas
••
334
. PACHECO e SILVA, A. C.; REBELLO NETO, J . Um sádico necrófilo: o preto Amaral ln: Archlvos da Sociedade de
• Medicina Legal e Criminologia de São Paulo, São Pauto, vol. li, anno li, fase. 11!, nov. 1927. p. 102.
an
J
r-..,...\,)
"- 0
Mediante esta tática, a vida privada dos indivíduos foi atrelada ao dealino polftlao
~.. de uma determinada classe social, a burguesia, de suas maneira
\) historicamente inéditas. Por um lado, o corpo, o sexo e os semtmentoll
\) conjugais, parentais e filiais passaram a ser programadamente usadoe como
instrumentos de dominação política e sinais de diferenciação aocial daquela
classe. Por outro lado, a ética que ordena o convívio social burgule mod1IO\f O
convívio familiar, reproduzindo, no interior das casas, 08 conffllDe e
antagonismos de classe existentes na sociedade. As r e i ~ intrafamUlaraa •
~- tornaram uma réplica das relações entre classes sociais.
-..-~~1 •~ I
~ -- ~ I
despossuídos. A continuidade do relatório apresentado ao juiz criminal para abertura • ·
.. :Ji
.:,,· inquérito, permite observar esse aspecto:
Ili ::,,:
• ~
'7!
...O estrangulador sinistro que, constituindo um typo muito raro entre 08 cultores
do crime, allia duas perversões, o sadismo e a necrophilia ou vampirismo, conta
poucos emulos no mundo dos delinquentes. O illustre psychiatra patrício, Dr.
li{ ..., Pacheco e Silva, cita como typos lengendarios de sadicos, Nero, Calígula, Ivan,
o terrível, etc., e como exemplo clássico de necrophilo, o crime do sargento
Bertrand; alliando, porém,as duas perversões, o ilustre alienista cita apenas um
CI caso ocorrido não ha muito em Roma. Digno de acurados estudos, esplendido
'sujet' para as observações de [?], Afranio, Souza Lima, para não citarmos Von
Krafft Ebing, Legrand de Saule, Moll, Regis e outros, José Augusto do Amaral é
um elemento indesejavel, constitua imminente e constante ameaça para a
sociedade, tal o externo gráo de sua temibilidade; mais que o tristemente celebre
li Márquez de Sade, mata a sua victima, menos que o sargento Bertrand,
Carlos Pacheco e Silva permite perceber sua inserção nos meios judiciários paulistanos.
. ::,,
1
....,,"· vigilância e controle instruía-se em teorias produzidas por suas relações oblíquas com a
.:,, biotiplogia, considerada como uma ciência auxiliar a criminologia, medicina-legal e
1
~ '
1 ~ :
psiquiatria forense.
~ :
"
~
Nesse sentido, classificações foram erigidas em meio ao debate que procurava
337
• CUNHA, M. C. P., op. cit., p. 29. As interpretações da degenerescência possibilitam inferir que o psiquiatra acatava,
entre as teorias que fundamentavam seus diagnósticos as que previam a eclosão da loucura, o despe rtar do
desatino, sua proverbial anormalidade antes mesmo que ~sta acontecesse de fato. Tal perspectiva, segundo Maria
Ctementin_a _P?reira CUNHA, assinalava o esforço da medicina mental em ampliar suas competências, sobretudo à
esfera Jud1c1ána, bem como sua capacidade de intervenção social. Idem.
)
.► ◄ \)' 271
--~ \J
,r -_ \.)
.~ '\a)
vinculações da noção de segregação social e racial, presentes nas doutrinas que
V
ú regulavam as interseções entre criminalidade e loucura.
\J
~
- Contrariando a teoria do livre-arbítrio o indivíduo era tomado corno a soma das
~ -
•
\,)' características físicas de sua raça, o resultado de sua correlação com o meio. Nestes
~
termos, o fenótipo dos indivíduos poderia refletir suas virtudes ou seus vícios. Dada a
. . . ~ ..
' . t.
-~ · esta orientação intelectual determinista é possível afirmar que as noções sobra crh,te e
·v ,
loucura na primeira República sofriam a influência direta das interpreta9f)es blo~ de.
v" •· ..... < .k
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à
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•• • •
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e -J ' noção expressa da positividade científica assumida pela psiquiatria e suas vln~ •
~ . ...),i ' ''
.,
:,· do século XIX.
... '1unção social da prática", vale dizer, a cura dos males degenerativos da população,
condição racial era pressuposto para julgar não só a conduta social da pessoa, como
"... intuito de demonstrar como esta sendo realizado o estudo biotipológico dos alienados
..,,.
.. .:,,
.::,,
deinquentes recolhidos ao Manicômio Judiciário ..." apontando que:
338
. "Assim, o método antropométrico empregado é o de Viola para tronco e membros e o de Barbára para cabeça,
juntamente com o conhecido método clássico da cefalometria. Igualmente de Viola e Barbára são o método e o
critério de classificação adotados, que nos parecem melhor corresponder às finalidades que temos em vista. O
material antropométrico necessário consta de um antropõmero de báscula, de Viola, de um compasso de espessura,
m~tálico, com ramos retos e curvos, os quais fom,a construidos no Serviço de Ergoterapia da Assistência a
Psicopatas de S. Paulo." PACHECO e SILVA, A. C.; ALVES, C. R. O Serviço de Antropologia e Biotipologia da
Assistência
1938. p. 372.aos Psicopatas de S. Paulo, Revista de Pslqulaatría y Criminologia, Buenos Aires, Ili, n. 16, jul./ago.
)
211
"
~
..)
~ De acordo com o relatório da pesquisa encontrado no acervo da Biblioteca do
..
.
'->
~
Instituto Oscar Freire de Medicina Legal de São Paulo, Antonio Cartos Pacheco e Silva,
. ~=·-- . .:~~-.:
~ a Psicopatas de S. Paulo foi adotado o método antropológico da escola italiana, que nc.i•~JJ:~~
1----._.)
1--._) afigu ra o mais adequado a esse gênero de estudos ...", com essas palavras, os médl
~ ' julgavam que o objetivo do levantamento não era o de " .. .lograr restituir o indivíduo
,- J i
J" convívio social. .. " mas humanizar-lhe a vida, orientando e conduzindo os p
J ' que lidavam cotidianamente com os anormais e, assim, auxilia-los nos "...intrincadoa
~
:, problemas relacionados com a segurança social e assistência aos alienados.
.:,
delinqüentes." O estudo, divulgado em um periódico publicado pela Sociedad Argentina
J'
,,
) ;
de Criminologia e Sociedad de Psiquiatria e Medicina Legal de La Plata, dirigido por
.., Osvaldo Loudet concluía:
~"
..,' Concluímos, pois, que a Biotipologia C riminal fixa as características individuais
do delinqüente e que existe uma íntima relação entre crime e biotipo. Sabemos
que predisposição ao delito é muitas vezes hereditária. Assim , a herança, tanto a
direta como a indireta, pode esclarecer inúmeros casos, não só nos domínios da
criminologia como da psiquiatria. Atribuímos os distúrbios psíquicos, causadores
do crime, à origem endócrina. De fato, vários são os tipos de delinquentes que
apresentam transtornos mentaes devidos às alterações glandulares, as quais
modificam geralmente a morfologia individual. Dentre as glândulas de secreção
interna destaca-se a tiroide como a que mais com umente sofre essas
,
desordens. Nos hipertiroideos delinquentes varificamos: impulsM dade;
, hiperemotividade; instabilidade de humor, taquicardia e vivacidade dos reflexos
vaso-motores. Nos hipotiroideos, pelo contrário, verificamos: lentidão dos
movimentos; apatia; bradipsiquismo; escasso desenvolvimento piloso ou
ausência quase que completa de pêlos. Os estigmas de degeneração
(assimetria crânio-facial, proeminência da arcada superciliar, polidactilia, orelhas
em_ alças e de lóbulos aderentes, prognatismo, etc.), que são comuns nos
delinquentes psicopatas, são também verificados entre os normaes. O
pro_gnatismo, por exemplo, verificando na raza bianca, é geralmente considerado
estig':1ª. ~e degeneração; no entanto, na raça negra, !á faz parte de sua
const1tu1çao morfológica, como um dos elementos raciais. 3 9
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\,)
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Fotografia 12 ºCefalometna (lnstnuto de Identificação)" (legenda ong1nal). Publicada por W. Berardinelle e João 1. de
Mendonça no livro Biotipologia Cnm1nal Acervo da B1bhoteca do Instituto Oscar Freire de Med1c1na Legal e Crim1nolog1a
da Universidade de São Paulo.
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Fotografia 13. "lsaltino Francisco, de perfil. Bíotipograma criminal do Instituto de Identificação" (legenda original).
Publicada por W Berardinelle e João 1. de Mendonça em Biotipologia Criminal. kervo da Biblioteca do Instituto Oscar
Freire de Medicina Legal e Cnm1nología da Universidade de São Paulo.
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Fotografia 14 "lsaltlno Franc1SCO, de frente. B1otiPo9rama cnminal do instituto de Identificação" (legenda original).
Publicada por W . Berardlnelle e João 1. de Mendonça no manual Biotipologia Cnminal. Acervo da Biblioteca do Instituto
Oscar Freire de Med1c1na Legal e Cnm1nolog1a da Universidade de São Paulo.
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Fotografia 15. "Tomada dos diametros transversos e antero-posteriores com o compasso de espessura e fitas metricas
"'1 (Instituto de Identificação)" (legenda original). Publicada por W . Berardinelle e João 1. de Mendonça em Biotipologia
Criminal. Acervo da Biblioteca do Instituto Oscar Freire de Medicina Legal e Criminologia da Universidade de São Paulo.
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11111- · v 282
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a:_ .
•--- Fotografia 16. ''Tomada das medidas longitudinais no antropometro de Viola do Instituto de Identificação" (legenda
original). Publicada por W . Berardinelle e João 1. de Mendonça em Biotipologia Criminal. Acervo da Biblioteca do Instituto
Oscar Freire de Medicina Legal e Criminologia da Universidade de São Paulo.
\,)
• \J 211
.►◄ \J\.)
"- ~~ Por intermédio da fala legitimadora da antropologia criminal existiria, por assim
dos tipos desviantes, desautorizando a idéia de igualdade e atribuíam aos negros e aos
340
mestiços a culpa pelos "males da nação".
..;,, como sendo lsaltino Francisco. As imagens permitem indagações múltiplas tais -•--
... ::,. ·
quem seria este lsaltino? O que teria feito para estar sendo medido, classificado,
•• Criminal do Instituto de Identificação do Rio de Janeiro... " 341 . Essa associação toma-se
340
Como aponta Lilia M. SCHWARCZ, "Na verdade, não só a teoria dos estigmas de C. Lombroso apontava para os
.
traços da população de cor - que revelariam atavismos e tendências à delinqüência -, como os diferentes autores
encontravam na mestiçagem um ponto fundamental de inquietação (...) Com efeito, esse tipo de teoria trazia consigo
a possibilidade de naturalizar, com o aval da ciência, diferenças que não eram 'da natureza', mas eram políticas e
sociais.". SCHWARCZ, L. M. Questão racial no Brasil ln: _ _ . ; REIS, L. V. de S. (orgs.) Negras imagens.
,., Ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996. p. 162. .
· PACHECO e SILVA, A. C.; ALVES, C. A. O Serviço de Antropologia e Biotipologia da Assistência aos Psicopatas de
S. Paulo, Revista de Psiquiaatria y Criminologia, Buenos Aires, Ili, n. 16, julJago. 1938. p. 369
\.)
-
► ~
~ São Paulo pelo próprio Leonídio Ribeiro, como atesta o carimbo na capa do perl6dlaa
~
que informava "Ao Instituto Oscar Freira oferece Leonídio Ribeiro". Sobretudo, 1111
~ . '.
. -r
associação é factível devido à indicação de que os exames antropométricos
......
fotografaclêtl.
•J
"" figuravam os brancos com 56%, os mestiços com 32% e os negros com 12%.
342
. De acordo com PACHECO e SILVA e REBELLO NETO, " ...a ficha antropológica utilizada é de cartolina amarela,
dobrada ao meio e consta de 4 faces: na primeira, a superior, são inscritos os dados referentes ao individuo,
inclusive as anotações cromáticas e genealógicas; ao lado dêsses elementos fazemos constar o gênero do delito, os
resultados da dinamometria, a pressão arterial, o tipo sanguíneo, os exames de sangue e do líquido céfalo-raqueano
e, finalmente, o diagnóstico psiquiátrico. A segunda face, a inferior, é reservada a antropometria, compreendidas as
medidas e_os valores do tronco e membros, as relações fundamentais e respectivas classificações; do outro, à
c:falometna (método de Bárbara é o clássico) e suas classificações. Finalmente, as duas faces restantes da ficha
às fotografias
sao .destinadasIdem.
dact1loscópica. p. 371 . antropométricas (corpo inteiro de frente e de perfil), à sinalética e à individual
'\ \
·. " ' ·'•
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' ' ,'.,,_...J}~
v
►◄ \J
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~~
a;._ '-'
~ altos se comparados aos negros e miscigenados que viviam e trabalhavam na capital
\)
i.) paulista. 343
contrário, buscava estabelecer uma tipologia dos diferentes perfis criminosos, isto é, de
11 Pacheco e Silva, apresenta um dado significativo do ponto de vista criminal, qual seja,
acordo com a perícia realizada por Pacheco e Silva, teria sido feita ainda na
343
• Sobre o aspecto das mortes entre os negros em São Paulo, José Petrônio DOMINGUES apresenta dados
significativos, extraídos de anuários demográficos, artigos de periódicos como "Revista Brasil", obras raras como a
escrita por Telesphoro de Souza Lobo, formado pela faculdade de Direito do Largo de São Francisco que em 1924
publicou o livro "São Paulo na Federação. Problemas sociais, questões raciais, política immigrantista e estudos
econômicos" ou Alfredo Ellis Junior que publica em 1934 "Populações Paulistas", entre outros, permitindo afirmar
que a ideologia do branqueamento na cidade de São Paulo era uma ordem social e moral dada a incapacidade e
decadência dos negros, fatores que o impediam de civilizar-se. DOMINGUES, P. J. Uma história não contada.
Negro, racismo e trabalho no pós-abolição em São Paulo (1889-1930). São Paulo, 2000. 370 f. Dissertação
(Mestrado em História) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. p. 207 et.
~
~
◄- '-'
'-'
, ~ ..
t,.. ,.J
.... ~
~ teoria degenerescência na medida em que a existência de tatuagens pelo corpo
\.)
corresponderia, na perspectiva lombrosiana, à evidência de "elementos sociológicoa" do
~
~· criminoso nato ou do indivíduo predisposto ao delito. Referência utilizada por Pacheco e
344
Silva quando este examina preto Amaral.
-
. . ~,
' :'il<
"'..)" que, segundo Pacheco e Silva, era "descomunal", "desmedido". Diagnosticadei· - ~-~
..,, aspecto não só contribuiu como determinou a perícia psiquiátrica realizada para Oi!
• :,, a qualquer tipo de exame biotipológico foi anexado ao processo encontrado no Museu
O tamanho do pênis de Amaral, de acordo com o médico que o exam inou, era
companheiros, marcou com dois traços, numa bananeira, até que tamanho desejava
que o pênis crescesse. Passado algum tempo, lembrou-se subitamente do que havia
feito, correu a até a bananeira onde havia gravado os traços, mas já era tarde - a
bananeira crescera muito e a distância entre os dois traços era enorme ... " a transposição
seq, Sobre a permanência do negro na cidade de São Pauto, consultar também: SANTOS, J. C. F. dos. Nem tudo
era ltattano. São Pauto e Pobreza (1890-1915). São Paulo: Annablume, 1998.
~
►.
~
.,
~~ ~ ""
~
t.._
-~ da fala de Amaral pelo médico, se é que ela existiu, continua pretendendo demonstrar a
~ capacidade violenta do examinado apontando que " ...cheio de receios, abateu a planta a
~
machadadas, mas com muitas aprehensões foi aos poucos se apercebendo de que
nada havia a fazer, pois que os seus órgãos genitaes cresciam sempre, até attingirem as
345
proporções actuaes.".
e .J,
indispensáveis para melhorar as condições de miséria fisiológica e, porque não
~-
Silva na reedição de seu compêndio de psiquiatria forense, raciocínio esse que pode •r
• entendido, inclusive, como noção fundamental da constituição da Liga Brasileira de
' l'{ ·.
Higiene Mental - LBHM, criada em 1923 e presidida por Pacheco e Silva, movimento
346
nacional que tinha como objetivo precípuo à profilaxia da loucura.
m
Grupos de pessoas influentes ou interessadas na capacidade modemizadora das
344
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São
•
345
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
. PACHECO e SILVA, A. C. Psiquiatria Clinica e Forense. 2 ed. São Paulo: Editora Renascença, 1945. p. 442.
... -
t...
em ver a cidade de São Paulo um espaço "civilizado" e isento das -.,1vag1rt_.,
"monstruosidades" e perversões comumente associadas aos pobnta, negra■ •
despossuídos que viviam à margem da sociedade, entre o arcaico e o mod.ar::o.
Como se sabe, é nesse rastreamento que o saber pelqulétrkx) vil~• ·. ·•· n:•aida
,· ·•
largamente sua vocação disciplinar. Dessa 1arefa eaquadil11h■lfora llalllllo.
pois, aqueles que a psiquiatria idet 1tificava como "debb socllla· e qua ..._,
por motivos de defesa da sociedade, excluir do convfvlo 8"lat m,u■n
Jogadores, vagabundos, alcoólatras, viciados, ele... Evida1 immena. ■ arllo . . .
•
"desajustados sociais" que habitarão e · os hoapfcioe rlllllariilll
Dentre estes, muitos negros e mestiços, e também irnlgranlae. Sabnkl.JD • .
negros, eram tidos como candidatos naturais à uma vaga no ho1pfdo. PIII"
que, segundo o discurso psi~uiátrico, portadores de b11Q08 · · •·
34
próprios à sua condição racial.
sobretudo no campo do direito penal, passaram a ser reconhecidas por seus próprios
membros como uma tendência que se coadunava com a prevenção, por ser extensiva à
coletrv1dade.
346
• Idem. p . 34. De acordo com a pesquisa de Arta Cnstina de Carvalho Medeiros COUTO, a ciassif1cação psiquiátrica
estava diretamente ligada à defesa dos valores normativos soc1a1s, estabelecendo uma ligação direta com a
soeieclade que devena ser eugenicamente pohciada pelo méd,co, ..protetor" da segurança física e mental, atingindo,
sobre ludo as famílias e as mulheres Esta ligação fundamentava-se na defesa do cidadão, cuja condição de
Cidadania estava na sua Sp!Jdão para o trabalho. elemento necessário para a construção nacional e a sanidade da
naçao COUTO A C de C. M. Eugenia, loucura e condição feminina no Braall As pacientes do Sanatóno P1nel
de Pintuba e o .discurso dos médicos e dos leigos durante a década de 1930. São Paulo, 200 f. Dissertação
(~Aestrado em Históna) Faculdade de Filosofia, Letras e C1ênc,as Socta1s - Universidade de São Paulo
~
~
288
• 'V
► . ~
trabalhadores urbanos do início do século XX, para o qual São Paulo era exemplo
t social, isto é, da interdição de sujeitos identificados como " ...formadores de uma maré
l
montante de tarados de toda a espécie que sobrecarrega a sociedade com um enorme
fenômeno que atuava nos "cérebros frágeis e impressionáveis" e que, sua influência, de
regra limitada à família - como suicídio a dois e loucura induzida - poderia, de acordo
347
• REIS, J. R. F. R. Higiene mental e eugenia: o projeto de "Regeneração Nacioanal" da Liga Brasileira de _H igi~ne
Mental (1920-30). Campinas, 1994. Dissertação (Mestrado em História) Programa de Pós-Graduação em. H1stóna -
348 Universidade Estadual de Campinas. p. 150. . .
• CUNHA LOPES, 1. da. Higiene mental: sinopse de psiquiatria à luz dos modernos conhecimentos de genética,
eugenia, psicopatologia, profilaxia, psicohiegiene e pedagogia. 21 ed., Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1960. p. 34.
~
J
►◄ ~
~~
'-li \li)
onde as " ... massas mais ou menos densas apresentam anormal exaltação de
~
w sentimentos a que se chama loucura das multidões...". Para estes delegados da sa(ade
\.J
social "... os atos das multidões resultam de impulsões comunicadas por atuação
crime das multidões resulta da preponderância dos exaltados e mais impulsivos sõbra os
349
sorte de violências."
_,,
..,, Autorizada pelo seu caráter científico, a psiquiatria passou a controlar as forma8
;:, ..
por contaminar todo o corpo social. Neste contexto, os progressos da psiquiatria criaram
~ ,•
autoridade. "Quando um homem tem a hon ra ser médico e quando êsse médico
consagra todas as horas de sua vida ao estudo do maior infortúnio humano, merece ser
m
ouvido pelos que encarnam a autoridade". Neste sentido, caberia ao psiquiatra o
atuação das leis em casos concretos ou até mesmo em casos circunstanciais, o que
349
• CUNHA LOPES. 1da. op. cit. p. 35.
~
►. ~ 191
~
-~
-.) acabava por eliminar todas as possibilidades da não intervenção dos médlcoa
a interdição de seus bens. Julgando as ações humanas a partir de valores impostos por
:,
-- ~-
---- ~
métodos de indagação clínica e biológica, com ênfase nas questões da
tomar a construção social e política da nação em uma atividade prática da vida cotidiana
permitiu que valores e realidades humanas fossem consagrados. Como afirmou Jurandir
Freire COSTA, " ... um dia, para quem não sabe, a psiquiatria criou 'regicidas', 'loucos
,
350
· 19.
OU SAULLE, L. Apud. PACHECO e SILVA, A . C. Psiquiatria Clínica e Forense. São Paulo: Renascença, 1945. p.
~
►◄ ~ 211
~
~
t) morais' ou 'criminosos natos' reconhecíveis pelo rosto, pelo tamanho do crânio, pelo
"\ )
351
peso do cérebro e tudo isso 'cientificamente comprovado'".
\> .
biotipologia italiana, a psiquiatria forense paulistana era praticada e assimilada 00111b. .11' -;~t~'.tef~ii.,
. ..~- .
no Brasil, que falsifica realidades e que impede o exercício da cidadania. Preto Amaral
R representa, nestes termos, a possibilidade de uma reflexão a mais sobre como os
351
352
• COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. 3 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p. 6.
BRESCIANI,
, USP, 135.O Cidadão da República. Liberalismo versus positivismo. Brasil: 1870-1900. ln: Revista da
M. S.p.M.,
n. 23, 1993.
~
'-'
►
~- \J
J -
~
'- ~~
\j
Os crimes evocados por esse estudo recuperam um momento da história em que
- figuraram no cenário cosmopolita de São Paulo nos anos de 1920 como alvos móvel& $t
sociedade que imitava os padrões de vida e costumes do mundo europeu, tido como
►..-. ~
_,
\)
Apoiado nas propostas da microanálise esse estudo perscrutou os eventos
.\ )
trágicos que levaram à morte várias pessoas e que fizeram ecoar outras tantas,
\>
silenciadas pelo anonimato ou esquecidas nas dobras do tempo por evocarem a vida de
foi feito das famílias e amigos que perderam seus entes queridos? Como foi a vida de
Roque Peccili depois de ter saído com vida do encontro com seu perseguidor? Corno•
outros negros presos como suspeitos pela Delegacia de Segurança Pessoal se senthalll
"" Reviver os eventos trágicos da passagem de 1926 para 1927 permitiu reconheo•
c--
J que tanto a medicina quanto o direito contribuíram à permanência de uma visão negativa
-
•• --:::,_,. e preconceituosa, calcada em determinismos biológicos que excluíam os negros da
.
sociedade mais ampla. As imagens bárbaras que registram os crimes confessados por
local onde pessoas perversas alimentam seus desejos sexuais por crianças, contudo,
não são os negros que figuram como desviantes, contrariando as projeções passadas.
A rede de crueldade que o tema desse estudo suscita é ainda hoje debatido pela
padres e médicos pedófilos provocando uma comoção social. Todavia, dados recentes
indicam que 80% dos casos de abuso sexual de crianças no Brasil ocorrem no lar, que
parentes são os principais agressores e que a maior parte dos pedófilos prefere garotos
de 12 a 15anos. 353
353
. SARMATZ, L. Inocência roubada. Super Interessante, ed. 176, maio 2002. p. 39-46.
-
~~
\)
O resgate dos episódios trágicos registrados nos autos do processo n. 1670 de
'-.\
1927 pem,item conclusões diversas. Contudo, a divulgação dos episódios que
marcaram a vida das pessoas trazidas novamente à memória por esse estudo, CX>lt,o 08
que oscilava entre o moderno e o arcaico. Sobretudo, que este mesmo projeto não
....... • -~~ ·
eram negros. Da mesma fom,a as fotografias do manual de Biotipologia não buscavam
Os resultados desse estudo permitem responder que essas imagens não foram
fom,ação de advogados e médicos que, sem dúvida alguma, pautavam seus veredictos
negativo e prejudicial à inserção dos negros na vida social mais ampla ou então qual • •
eram negros?
•
O que salta aos olhos é que quase um século após os acontecimentos trágicos
v
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Jornal Folha da Manhã, 05 de jan. de 1927. Acervo Arquivo Estado de São Paulo.
Jornal Folha da Manha, 06 de jan. 1927. Acervo Arquivo Estado de São Paulo.
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SERVIÇO MEDICO LEGAL
Auto de Corpo de Delicto
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Auto de Corpo de Delito. Livro 7981, p. 101 . Acervo Arquivo do Estado de São Paulo.
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~o 1!\asoul:nc,n&.ú so ~,,;,as vo::stes ,1ue ~\a'a::.. iíllCN'ltrll....as ;;unto á mesma,coo.o p~:t.a CQl'i.\,;, '"
t~,io ~ ta~o e.os u..eirt.es .,semiJ!'u m,1,s t;wsemol vl U-06 006 nomena;que se t,.n,1.,a 40 ·UL. a•
t.-01es~Dte, e:11 msti à.as ca1•,acr.et·ü1ti~ae eneomreüas no orsr1ê0 , e nos OGSdi ;.tOl:i lilt:iiw.1.'vl:J
m ·eri")te5 , ~uerxu.)~sa uete,rmir.ar iue a ,edad.e a.0w,i t rn.:.1.Lô.uo e~ su11-anor ~ à.e <te:.:'.o.u,o
al'i.t1Ql$tl}~la o~~U'lca;áo . cia.i? $p1.:lll,";,'5~3 e.a.. extre1i.~Cia d# SU-J?'lrior íio l'e::tll' 1 ,~ .1.fü\U'l.Or s, -vil'!·
te .l)oi~ o :t'orm;ir a;resenta a sua eJ.)ipt,sse rnf l'lor ria o ,:,ss1ficac.a e e :i;er n-.~o a<;cia~~e !.l'lS•
prmtid.0: d~ sua.a_er1:physes ., .t'ele, ext ei~ao tWs 0;3JJQf;i, ,,M~ me;uú.:ros UU"i3l'1:.1r1~s ;,,ot..uw à.e t,,;;r..;:.:;.-
.mu' iU/; *ZtlO imiiü.::LUô e.ra W: estatU.t't ,a ltillí. ;i~e;l &iilVUU.ente a ,SUB. _eu.ade ,~o.l~,aJ;})liCti:v,',: ...~a
,<i oorJ:eli:. J 10 e;{is.t ente entre {i ~on=u:.i.i.,~nto. d.Oij. 05 tW~ lo~$- aPCOt~t.ra;,,O;:i #. iiue;.l;..; """ ~;,.•
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s , q.ue alli fo i , cincontraà.o d..uas horas antes por- um indivi<luo ;, ._ue por .:.lli J/.. smwa .o
''-Ver ostá em d.ecUbito ü.orsa.i ,cigo lateral -:1.ireita · tema.o as J)ernas em flexão sobre
coxas;vesta IJaletot d.e casdmira ccr1: <Le cinza ,ort~ça, preta,meias coml)rid.as d.E\ mesma
,cer oula br-a:i.ca,camisa d.e zel)bir ·br.f:cr.tc9 com listas azues G c:r.lça snDatos J.e c·ou.ro
Auto de Exame Cadavérico. Livro 7981, p. 144. Acervo do Arquivo do Estado de São Paulo.
324
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ABSTRACT
The central nucleus of this work proposes a reflection around the representations of the race degeneration
in the beginning of the XX century, specifically those produced by the forensic psychiatry. The study
approaches a series of crimes happened in the passage of 1926 for 1927 and it investigates how 1he
current representations images of tragic events which marked the life of a common, black man who was a
slave son and was bom free, happened negatively about the poor black people in the integration proceas
of the class society, stereotyping them as violent individuais, criminais and inferior in the •sca1e of lhe
human evolution". The conclusions of this work were reached from on the interpretation of a speclfic
documental group, produced by doctors and lawyers around the process crime petitioned in 19ZT against
José Augusto do Amaral, who was accused as the author of hideous crimes which culminated in three
male death, and were characterized by the sadism and necrofilia. The documentation used in ihe
investigation recovered medical decisions, expertise policemen, depositions, pictures, articles published in
the press and specialized magazines of the time on Amaral's crimes. This study was ruled in thê
theoretical-methodological proposals of the microanalítica which was allowed to analyze the relationshipe
of power and the dominance strategies in which the speeches settle down anda lot of times work. ln that
perspective, the exam of the tragic events which marked Amaral's life, was allowed to understand how lhe
isolated phenomenons can have relation with the general elements and how these phenomenos have
been contributing to organize the net sociabilities. The results demonstrated that the true effects attnbuted
to the representations of the degenerescência intended to legitimate the exclusion and the discrimination
of the black people, imposing them a hereditary fetish which disqualified them. This thesis defends the idea
that the persistent identification of black people like criminal, seditious and vagabond human beings, is
linked with the specific characteristics of the power relationships in Brazil.