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Santo André
2019
Evelyn Ariane Lauro
Santo André
2019
LAURO, Evelyn Ariane.
Aprovação: / /_
Prof.
Dr. Instituição:
Prof.
Dr. Instituição:
A todas as mulheres pobres (cis e trans, travestis, negras, índias e
brancas, mães e filhas) que durante toda a história do Brasil, até aqui, foram
impedidas de cursar o nível superior... A todos os homens negros pobres, aos
efeminados, aos transexuais...
Amo vocês!
É ISTO UM HOMEM?
Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
pensem bem se isto é um homem
que trabalha no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome,
sem mais força para lembrar,
vazios os olhos, frio o ventre,
como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
(Primo Levi)
RESUMO
Como exercício de análise das práticas para os Direitos Humanos na
museologia, tenho o objetivo de compreender, a partir da exposição de longa
duração, o lugar onde o Museu da Imigração do Estado de São Paulo se coloca
no que diz respeito à memória da (i)migração de forma a perceber se esse lugar
é o da crítica histórica ou da manutenção dos discursos que omitem as violências
e, por tanto, aloca essas memórias fora da categoria “traumática”. Proponho,
então, um olhar crítico para a instituição de forma a explicitar a violência da
experiência migrante como lacunar em seu discurso museológico e, a partir
disso, entender se o Museu da Imigração do Estado de São Paulo deve ou não
ser entendido como um lugar da memória traumática.
sumário
AGRADECIMENTOS 6
RESUMO 8
ABSTRACT 9
INTRODUÇÃO 12
1. O Museu da Imigração do Estado de São Paulo 23
1.1 O debate acadêmico 23
1.2 A Instituição 29
1.3 A Exposição Permanente: “Migrar: experiências, memórias e identidades” 32
2. O discurso museológico em análise 42
3. Considerações finais 76
11
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 78
INTRODUÇÃO
A pesquisa que aqui se apresenta é a monografia de conclusão do curso
de especialização em Direitos Humanos, Diversidade e Violência ofertado pela
Universidade Federal do ABC entre outubro de 2017 e julho de 2019.
12
O museu existe onde funcionou a Hospedaria de Imigrantes do Brás,
fundada em 1887 e desativada em 1978. Durante esse período, passou por
diversas transformações estruturais, acompanhando o crescimento e as
mudanças da cidade de São Paulo e do Brasil, tendo, inclusive servido para
outros fins, tais como prisão política e escola de aviação.
13
museológico e das suas áreas expositivas, bem como de todos os
seus programas (EXPOMUS, 2014. p.8).
14
produzidas pelo contexto paulista do pós escravidão. Mas, é preciso entender
se evidenciar a violência oculta no discurso da instituição é o suficiente para
inseri-la na categoria de lugar de memória traumática.
15
Para tanto, pretende-se partir de duas principais fontes documentais:
1. O discurso produzido pelo museu e que fundamenta as decisões
curatoriais da instituição (o plano museológico), assim como sua comunicação
com o público geral e espontâneo (a exposição permanente).
2. O livro “Memórias de um colono no Brasil”, de Thomas Davatz, publicado
na Suíça em 1850 relatando as péssimas condições dos colonos na fazenda
Ibicaba, propriedade de Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, o Senador
Vergueiro, modelo inicial para o processo de imigração em massa que ocorreria
anos depois.
Para que se entenda os limites da modernização do Museu da Imigração
do Estado de São Paulo tendo as lacunas discursivas como principal ponto de
tensionamento, é importante olhar para museu como uma instituição
historicizada e que reflete às necessidades de seu tempo.
16
Tradicionalmente, um museu é um tipo de instituição onde se guardam e
exibem objetos de interesse artístico, cultural, científico, histórico, técnico ou de
qualquer outra natureza material, documental e simbólica com fins de
preservação, pesquisa, educação e lazer. Ou, como compreende Mário Chagas
(2006, p. 67), museu é o lugar que recolhe, preserva, conserva, observa,
estuda, analisa, interpreta, expõe fragmentos de memória, testemunhos
materiais. No entanto, muito para além de um espaço de salvaguarda, pesquisa
e turismo, o museu têm se reinventado como mecanismo de comunicação a
favor da humanidade, dos Direitos Humanos e, neste sentido, o ICOM,
Conselho Internacional de Museus, proporá em uma conferência geral a ser
realizada em Kioto, em setembro do ano corrente, uma nova e ampliada
definição de museu, que leve em consideração o caráter amplo de centro
cultural vivido pelas instituições na contemporaneidade (e não mais de
unicamente espaço de salvaguarda dos vestígios materiais da sociabilidade
humana). Teremos que esperar para conhecê-la.
18
instituições museológicas são as exposições temporárias, que podem ser de
curta, média ou longa duração.
definida por sua missão, objetivos e valores, pela natureza de seu acervo e,
claro, pelo trabalho desenvolvido pelas pessoas que neles atuam e pela relação
atendem. Mas, para além desta personalidade, os museus são identificados por
importante lembrar que criar categorias para classificar é um exercício que tem
19
como principal objetivo dar inteligibilidade às questões que, no caso, é
apresentadas):
Guilherme de Almeida
do Índio.
20
- Webmuseu: São os museus no ciberespaço. Podem ser
páginas de museus físicos, que estão cada vez mais independentes destes ou
Pessoa.
21
E, é na perspectiva dos direitos humanos que voltaremos nosso olhar ao
Museu da Imigração do Estado de São Paulo.
Museus podem ser também lugares de memórias difíceis, traumáticas e
os lugares de memórias traumáticas nos remetem a histórias marcadas por
graves violações de direitos humanos. Sendo o processo de imigração no Brasil
marcado historicamente por um sem número de violências, porque é, então,
que o Museu da Imigração do Estado de São Paulo está fora desta categoria?
O discurso produzido e veiculado pela instituição por meio de sua exposição de
longa duração o coloca dentro ou fora desta categoria?
Não falar do trauma, não falar da violência, não desnaturaliza o passado,
não rompe com a lógica discursiva e com as práticas produtoras dessas
violências. Falar da violência é, por consequência, dar voz a quem à vítima. “A
memória traumática é a face de maior força em nossos tempos, herança de
conflitos e violências que assolaram o século passado e não desapareceram
neste (...). Com a memória traumática, surgiram novos agentes no cenário
memorial, como a testemunha e, sobretudo, a vítima” (MENESES, 2018, pp.04-
05). E, ainda que saibamos que o museu não a elimina, “ele tem a especial
capacidade de tornar presente a violência, seja a violência maior escancarada,
seja violência doméstica enrustida. No museu, a violência não seria mais uma
noção abstrata: é coisa concreta, sensível, apreendida com nossos sentidos,
nosso corpo e nossa mente. O museu pode ser, sim, um farol, que mantém em
circulação o que calha de nos passar despercebido em nosso cotidiano”
(MENESES, 2018, p.15).
A história enquanto memória transformada em discurso a respeito dos fluxos
migratórios (marcado, no Estado de São Paulo pela Grande Imigração) será o
foco de nosso olhar no texto que segue abaixo.
22
será apresentada a exposição de longa duração, a partir de suas
características expográficas.
23
Figura 1: Fotografia da fachada do Museu da Imigração do Estado de São
Paulo
Fonte: http://museudaimigracao.org.br/o-museu/fotos/
24
Fernandes trabalha na chave da comunicação. Uma vez que os museus
são, hoje, considerados meios de comunicação em massa, propõe uma
reflexão dessa função de comunicação museu-sociedade a partir das
exposições de longa duração do Museu da Imigração do Estado de São Paulo
e do Museu do Futebol .
Evidente que aqui nos interessa o que o autor tem a dizer a respeito do
Museu da Imigração do Estado de São Paulo. Neste sentido, me furto de
discorrer sobre suas impressões acerca do Museu do Futebol.
Sobre o Museu da Imigração do Estado de São Paulo, Fernandes
apresenta brevemente o histórico da instituição desde o nascimento do prédio
como hospedaria até a sua configuração atual, mas seu objetivo é discorrer
sobre a exposição de longa duração e é aí que projeta a sua energia. O grande
mote da exposição é a ampliação do entendimento do público acerca do
conceito de imigração e, para ele:
25
No entanto, a contribuição da sua pesquisa é a análise da expografia. Partindo
da exposição de longa duração, "averigua os recursos expográficos (...) e suas
contribuições para a apresentação das temáticas museológicas" (p. 92).
Mostrando como a temática museológica assume importante protagonismo, o
que, a seu ver, se expressa na integração entre conteúdo, museografia e
arquitetura e no uso de estímulos sensoriais na busca de proporcionar aos
visitantes reações emocionais, enquanto intencionalidade cenográfica. Por fim,
deixa claro que não intentou "discorrer a respeito dos pressupostos conceituais
que delinearam a narrativa museológica apresentada nas exposições" (p. 111).
Nosso segundo autor, Odair da Cruz Paiva atua na área de Migrações,
Patrimônio e Museus. É professor no Departamento de História da
Universidade Federal de São Paulo, é também membro do Conselho Editorial
da "Travessia Revista do Migrante" e fez parte do Conselho de Administração
do Memorial do Imigrante entre 2006 e 2009.
É importante dizer que Odair muito tem colaborado com a pesquisa aqui
apresentada com soma de afeto pelo objeto, com a disponibilização de
bibliografia e com o continuado estímulo acadêmico que sempre me ofertou.
Odair, além de um grande incentivador, é o principal pesquisador a
trabalhar o Museu da Imigração do Estado de São Paulo como objeto de
investigação e crítica.
Em “Museus e Memória da Imigração: Embate entre o passado e o
presente” (2014), Paiva discorre sobre o museu hoje a partir do entendimento
de que museu é território de preservação da memória, mas é também território
que envelhece, expondo que o grande desafio da área é hoje renovar-se
equilibrando a relação entre estabilidade e modernização da paisagem/
discurso. A partir deste dado da realidade, apresenta o debate acadêmico
sobre memória coletiva tendo Maurice Halbawachs, Joel Candau, Jacques Le
Goff, Dominique Polout e François Hartog como balizadores. O debate trazido
por Odair da Cruz Paiva é importante para evidenciar que a memória coletiva
está constantemente em disputa e é campo para muito tensionamento.
26
O debate anterior serve de gancho para o autor explorar a relação entre
a elaboração da memória coletiva acerca da imigração no Brasil, mas
sobretudo em São Paulo, e o desenvolvimento da historiografia sobre o tema a
partir do refluxo migratório característico da década de 1940. Neste sentido,
aponta que a elaboração da memória se dá com a formulação de um discurso
historiográfico. Em relação à Hospedaria dos Imigrantes do Brás, no bojo deste
processo de elaboração de memória coletiva, Paiva defende que “tal qual a
historiografia da imigração, a constituição de um locus de materialização da
memória da imigração também ocorre quando do fim do vivido da imigração
naquele espaço; a partir daí o concebido sobre ela surge em seu lugar” (p 164).
O autor passa a, então, discorrer sobre a relação entre a historiografia oficial e
a consolidação de uma memória coletiva que teve no Memorial da Imigração o
seu principal monumento.
Mas, como exposto acima, Paiva abre o artigo apontando para a
necessidade de os museus contemporâneos se renovarem, processo pelo qual
a instituição em questão passa a partir de 2010, quando inicia a fase de
requalificação institucional e restauração do edifício.
Paiva fecha o artigo apontando questões que envolvem os atuais fluxos
migratórios, as transformações sociais, as expectativas para com a nova
instituição e o debate sobre “os dilemas entre a preservação do passado e os
desafios do presente” (p. 167) que essa requalificação deverá gerar.
Posteriormente, em “Migrar: Experiências, memórias e identidades”
(2015), Paiva trata diretamente da exposição de longa duração do Museu da
Imigração do Estado de São Paulo no contexto da reabertura e entrega da
instituição à população após sua requalificação.
Para Paiva, “A reabertura da antiga Hospedaria de Imigrantes e a
inauguração do Museu da Imigração inscrevem-se num contexto de embates
– nem sempre explícitos - entre as representações sobre o passado e os
desafios no presente” (2015, p.01). Neste sentido, aponta que o objetivo de
seu artigo é “compreender a nova exposição como produto destes embates e
como materialização de uma leitura específica do processo imigratório” (idem).
27
É importante apontar que esta reflexão é “parte de uma pesquisa mais
ampla intitulada Museus e Patrimônio da Imigração: história, memória e
patrimônio cultural nos museus de imigração no Estado de São Paulo cujo
escopo central é analisar as formas da memória da imigração em alguns
museus da imigração no Estado de São Paulo” (idem). Sendo esta a parte da
pesquisa a tratar especificamente do nosso objeto, não nos voltaremos aos
demais materiais produzidos no bojo dela.
Voltando ao que Paiva apresenta em “Migrar: Experiências, memórias e
identidades” , diferente do texto de Fernandes, aqui a história da instituição é
apresentada de forma a demonstrar o contexto propício para a musealização
do espaço após o fechamento da Hospedaria em 1978. De forma bastante
sucinta discorre sobre os múltiplos funcionamentos da instituição até 2010,
quando
28
Conhecendo bem a exposição e o discurso histórico e museológico
anterior, Odair da Cruz Paiva entende como principais avanços a ampliação do
conceito de migração e a inserção do tema da escravidão como imigração
forçada, ainda que reconheça que há polêmica e falta de consenso a respeito.
Outros pontos são, para ele, manutenção daquilo que o público espera
encontrar no Museu da Imigração do Estado de São Paulo: O cotidiano dos
imigrantes e a relação entre a imigração e o desenvolvimento da cidade. Ele
percebe a preocupação em inserir recursos de mídias audiovisuais, em sintonia
com o que se tem encontrado nos museus atuais e em consonância com o
atual contexto de desenvolvimento tecnológico, além do que, completa páginas
adiante, “visando seu público por excelência (estudantes do ensino
fundamental e médio), a exposição adentra à forma com que as novas
gerações apreendem a realidade, qual seja: pela intermediação da tecnologia”
(p. 14).
Uma crítica importante de Odair em relação à expografia e que merece
especial atenção, ainda que não seja o objetivo da pesquisa dele e nem da
que apresentamos abaixo, diz respeito à evidente falta de conexão entre o
edifício e a exposição. Em suas palavras:
29
apreendida como trauma: desenraizamento, sofrimento, privação,
exploração... No entanto, a mensagem inscrita na recepção do
visitante é negada no transcurso da exposição. Deslocamento ou
fratura discursiva, o fato é que a instalação e o discurso expositivo
não dialogam entre si, denotando que o discurso curatorial propõe um
exercício de superação da mensagem inicial (p. 09).
1.2 A Instituição
O Museu da Imigração do Estado de São Paulo, instituição da Secretaria
de Estado da Cultura, é:
30
instituição como: documentação textual, documentação iconográfica,
acervo museológico tridimensional, história oral e os saberes e os
fazeres dos imigrantes, mobilizados, principalmente, para a Festa do
Imigrante, que a instituição vem realizando há 16 anos. (EXPOMUS,
2014. p.8)
Estima-se que passaram pela hospedaria do Brás entre 2,5 e 3,5 milhões
de pessoas de cerca de 75 países diferentes, sendo que destes, pelo menos,
1,6 milhão eram trabalhadores nordestinos (PAIVA, 2015, p. 04).
31
As profundas mudanças sociais e políticas na sociedade brasileira nas
décadas finais do século XX, como a abolição da escravidão, a expansão da
cafeicultura e os processos de urbanização, abriram espaço para políticas
imigratórias e a uma mudança nas mentalidades ao que dizia respeito à
imigração. Se antes o caráter era de colonização, agora estava sob a
perspectiva de mudança de mão de obra e de desenvolvimento da ideia de
nação ou identidade nacional a partir da lógica civilizadora (SANTOS, 1998, p.
60).
Neste sentido, este lugar, criado a partir da política pública que visava
atrair trabalhadores europeus para as terras paulistas, esteve preparado para
receber, abrigar, alimentar, cuidar da saúde e alimentação, expedir documentos
e encaminhar para o trabalho. Além disso, ainda segundo o website da
instituição, a hospedaria tinha como atribuição organizar esta imigração de mão
de obra para São Paulo. Para isso, foi construída em 1905 a Agência Oficial de
Colonização, anexada à direita do prédio principal. Nesse espaço, os
trabalhadores eram informados das vagas disponíveis e podiam negociar com
os contratantes.
32
(1986); a criação do Museu da Imigração (1993); e a concretização do
Memorial do Imigrante (1998). Desde sua criação, a Hospedaria de
Imigrantes do Brás recebeu aproximadamente 70 nacionalidades e
etnias, e contar esta história fornece subsídios para o entendimento
da constituição plural da sociedade brasileira hoje, ao mesmo tempo
em que, principalmente, traz luz à história do Estado de São Paulo,
por meio de seus muitos atores: italianos, espanhóis, nordestinos,
indígenas, lituanos, japoneses, coreanos, peruanos e tantos outros
que ousaram se deslocar para construir o novo. O Memorial do
Imigrante reuniu numa parte do antigo complexo de edifícios da
Hospedaria do Brás as atividades de: Museu da Imigração, Centro de
Pesquisa e Documentação, Núcleo Histórico dos Transportes e
Núcleo de Estudos e Tradições; no momento atual, passa por mais
uma transformação, com o seu fechamento para restauro em agosto
de 2010, momento em que também foi iniciado o redesenho
museológico e das suas áreas expositivas, bem como de todos os
seus programas (EXPOMUS, 2014. p.8).
33
1.3 A Exposição Permanente: “Migrar: experiências,
memórias e identidades”
1. PROGRAMA DE COMUNICAÇÃO
34
1.5. Programa de pesquisa Espaços Físicos
35
específicos, como a grande imigração ocorrida nos séculos 19 e 20,
as políticas voltadas ao tema, o cotidiano da Hospedaria de
Imigrantes do Brás e as contribuições desse processo para a
formação do estado e da cidade de São Paulo.
(http://museudaimigracao.org.br/exposicoes/longa-duracao/)
36
escadas, o visitante se depara com a obra do artista plástico Nuno Ramos
intitulada “É isto um homem?”, título homônimo do livro do escritor italiano,
prisioneiro em Auschwitz-Birkenau, Primo Levi. A obra fica no hall que divide a
exposição ao meio. Trata-se de “uma instalação assemelhada a uma carroceria
de caminhão (que também pode sugerir a forma de um barco) suspensa do
chão e carregada com alguns milhares de tijolos – a palavra tijolo está grafada
em várias línguas” (PAIVA, 2015, p. 04) que ocupa quase todo o hall de entrada
da exposição.
37
Nuno Ramos, 2014
É isto um homem?
Carroceria, tijolos, cadeira, vitrine e auto falante.
Exposição permanente no Museu da Imigração.
(imagem do site oficial de Nuno Ramos)
38
Na sala seguinte, ainda no segundo módulo, o visitante encontra duas
grandes telas. Em uma delas são projetadas imagens sobre as várias
hospedarias de imigrantes que funcionaram no Brasil. Na outra tela, fotografias
de pessoas em situação de pobreza em países da Europa, sob a qual estão
“três telas menores que possibilitam um exercício interativo ao visitante. São
telas nas quais é possível ver fotografias das hospedarias de emigrantes de
Bremen, Genova e Kobe bem como as rotas marítimas que ligavam essas
hospedarias ao Brasil” (PAIVA, 2015, p. 05). Há, ainda, uma outra tela com
projeções de panfletos de Companhias Marítimas e de propaganda para
atração de imigrantes para o Brasil.
39
ocupando todo o pé direito, nichos com objetos - na maioria deles
remanescentes do mobiliário da antiga Hospedaria.
Fonte: http://museudaimigracao.org.br/exposicoes/longa-duracao/
Imagem autoral
41
tela onde é possível assistir a depoimentos de imigrantes de inserção mais
contemporânea na cidade. São: três brasileiros e um imigrante oriundo de cada
um dos países a seguir: Bolívia, Colômbia, Líbano, Nigéria, Peru, Índia, Coréia,
Moçambique, Paraguai e Taiwan. Retornando ao vão central há uma grande
parede com a inscrição de centenas de sobrenomes de imigrantes registrados
na Hospedaria” (PAIVA, 2015, p. 07).
42
Estado de São Paulo. Propõe-se um contraponto com os relatos de experiência
de Thomas Davatz (e de outros registros sobre (i)migração e refúgio) e do
referencial teórico sobre direitos humanos e suas violações.
43
2. O discurso museológico em análise
Este capítulo objetiva, a partir dos relatos de experiência de Thomas
Davatz, de outros registros sobre (i)migração e refúgio e do referencial teórico
sobre direitos humanos e suas violações, abrir a discussão que aponta para
uma possível incoerência entre o discurso museológico difundido para o público
na exposição de longa Duração do Museu da Imigração do Estado de São
Paulo e a própria memória da (i)migração na perspectiva de seus principais
atores (os imigrantes).
44
A experiência de Davatz está exatamente entre os dois processos.
“Trata-se da primeira experiência de importação de mão-de-obra para a
lavoura, promovida por uma companhia de colonização organizada pelo
Senador Nicolau de Campos Vergueiro na segunda metade da década de
1840” (idem). Como colono, emigrou para o Brasil com expectativas de
construção de um futuro promissor, mas logo percebeu que a realidade não
condizia com o que lhe fora ofertado na Europa. Em suas próprias palavras:
“Em companhia de numerosos outros emigrantes embarquei na primavera de
1855 para essa terra mas não tardei em chegar às convicções que de tantos
outros arrancaram aquêles lamentos. 'Desta vez estou perdido'" (DAVATZ,
1951, p. 37).
Davatz, como se verá mais à frente, tornou-se porta voz dos imigrantes
suíços e, a partir de sua própria experiência, produziu um importante relato
acerca das condições de trabalho no Brasil que foi publicado na Suíça em 1858
e posteriormente, em 1951, traduzido para o português em versão publicada
pela Martins Fontes.
O livro de Davatz deixa claro três objetivos centrais: expor as péssimas
condições a que eram submetidos os trabalhadores livres no Brasil; socorrer os
colonos que ficaram quando de sua partida em retorno à Europa e desencorajar
novas vindas.
O livro está organizado em três partes. A primeira descreve São Paulo a
partir dos aspectos naturais e econômicos. Nesta parte, o livro muito se
assemelha aos tão conhecidos relatos de viajantes dos séculos XVIII e XIX, no
entanto, Davatz pesa cor nos aspectos desfavoráveis. Aqui, o autor já anuncia
que, em busca por melhores dias, os futuros (i)migrantes são seduzidos por
uma realidade “deliberadamente falseada” (p. 50) produzida pela propaganda
que tinha como único objetivo atender aos interesse dos agentes de imigração
que faturavam com os embarques. Quanto maior o número de trabalhadores
embarcados, maior o faturamento do agente e isso dava espaço para um sem
número de falsas promessas.
45
A segunda parte, a que aqui nos interessa, discorre sobre o cotidiano na
fazenda apresentando detalhes sobre as condições da vida doméstica, do
trabalho e aspectos da relação entre trabalhadores e administradores, dando
foco às ambiguidades dos contratos e ao descumprimento deles por parte dos
fazendeiros, realidade muito distinta da apresentada pelas propagandas de
atração veiculadas pelos agentes de imigração.
A parte final narra o levante dos colonos contra a situação análoga à
escravidão na fazenda no evento que ficou conhecido como a revolta de
Ibicaba. A repercussão do livro de Davatz e da revolta foi tamanha que a Suíça
chegou a proibir a imigração para o Brasil.
Com a "preocupação em resgatar os registros produzidos pelos viajantes
europeus e levando em consideração especificamente o seu caráter
documental" num contexto intelectual de construção da memória da formação
de uma identidade brasileira, na década de 1930 Rubens Borba de Moraes,
dirigente da Biblioteca Municipal de São Paulo, na divisão de bibliotecas do
recém criado Departamento de Cultura da cidade de São Paulo (CHAGAS,
2006, p. 75 - 76), coordenou uma coleção de traduções de obras desses
viajantes com a contribuição intelectual de Sérgio Milliet, Afonso Arinos de
Mello Franco e Sérgio Buarque de Holanda, entre outros. "O quinto volume da
coleção foi o das Memórias de um colono no Brasil, de Thomas Davatz"
(COHEN, 2001, p. 183-184). Uma leitura/fonte, para a autora, quase que
obrigatória sobre a colonização em São Paulo.
A nós, no estudo aqui apresentado, interessa o relato que Davatz
registra na segunda parte do livro, que se inicia na página 71 e recebe o título
de “II - O TRATAMENTO DOS COLONOS NA PROVÍNCIA BRASILEIRA DE
S. PAULO”.
O autor faz questão de anunciar que seu registro está focado em sua
própria experiência e nos relatos que pode coletar de outros imigrantes
alemães no tempo em que esteve no interior de São Paulo, mais precisamente
na Fazenda Ibicaba, mas que tudo indica que é similar à realidade de todos os
imigrantes no Brasil independente de suas nacionalidades.
46
De partida, Davatz aponta para a diferença entre o oferecido e o cobrado
dos imigrantes ainda antes do embarque, quando do momento de fechar o
contrato. Seduzidos, ansiosos e com as fichas postas nesta possibilidade de
futuro, não há, neste momento, muito o que fazer senão assinar e embarcar.
Segundo ele, “De uma parte dos colonos alemães [...] pude saber [...] que os
acordos provisórios com que deixaram sua terra [...] continham cláusulas bem
mais sedutoras do que aqueles que os mesmos colonos se viram persuadidos
a aceitar [...] por ocasião do embarque e que deveriam cumprir no Brasil” (p.
71). Segundo seus relatos, esse é apenas o começo das agruras que os
colonos iriam encaram no Brasil. O acordo já não tão sedutor é seguido de uma
viagem arriscada, longa e cansativa que anuncia as futuras dificuldades.
Vencida a etapa marítima, os colonos precisaram enfrentar o
deslocamento entre o Porto de Santos e a fazenda, etapa que poderia levar até
16 dias (p. 75) e que fazia com que a dívida adquirida crescesse
significativamente.
48
Segundo me atestaram muitas pessoas e sem a menor sombra de
dúvida, alguns colonos, por simples ordem do diretor, sem inquérito e
sem processo de espécie alguma, foram metidos na prisão de uma
cidade a que a fazenda estava politicamente sujeita, e ali agrilhoados,
não tendo cometido nenhum delito passível de punição e apenas
porque teriam caído no desagrado do patrão devido a este ou àquele
motivo (p. 81)
49
Na perspectiva do autor, a dívida era uma questão central na relação
entre os administradores da fazenda e os colonos, era o que os prendiam à
terra, era a garantia de mão de obra, era a principal forma de controle do
proprietário e a principal angústia do colono. Muitos são os trechos em seu
relato a apontar para o problema, mas para fechar a questão, destaco os
excertos abaixo:
Tudo isso vem servir também para mostrar como a situação das
dívidas contraídas por numerosos colonos é realmente horripilante e
para atestar como a crença tão corrente na Europa de que nas tais
colônias é possível em poucos anos e facilmente, a qualquer pessoa,
libertar-se das suas dívidas, não passa de uma doce ilusão. Essas
dívidas além do café mal pago, das despesas da comissão, do
processo de redução do dinheiro à moeda do país, das somas
destinadas à viagem e da estranha divisão dos lucros da venda do
café esclarecem bem as queixas dos colonos e sua sublevação, de
que mais tarde se falará com pormenores (p. 112).
50
tudo era ordinário ou inexistente. Faltava lugar apropriado, material e o nível de
escolaridade entre adultos e crianças era o mesmo, de quase nenhum a
nenhum. Até pouco tempo antes de sua chegada à Ibicaba, “não havia na
província de São Paulo pastores protestantes. Por conseguinte não se poderia
esperar que houvesse ali instrução religiosa e administração dos sacramentos
segundo o rito protestante” (p. 119). Davatz denuncia o descumprimento do
direito de livre culto. Segundo ele, os fazendeiros têm todo o poder nas mãos e
podem gerir suas fazendas e as vidas (e no caso a alma) dos colonos que
nelas trabalham à sua maior conveniência. Em suas palavras:
51
De resto, também no sul os alemães do tempo da Independência
tinham sido ludibriados, pelo que referem os alemães da época como
Schumacher ou Schlithorst. Os livres suíços que vinham para Ibicaba
volupiados pelas lendas duma terra de oiro, garantidos por contratos
aperitivantes de arrendamento à meia e trato melhor que os das
aldeias nevadas, encontravam era uma legítima escravidão
(ANDRADE, 1931, p.7, apud COHEN, 2001, p. 186).
52
refugiados enfrentam a falta de assistência, de emprego, de moradia, de
acesso à educação e dificuldade de sociabilidade derivada das questões
raciais (racismo e xenofobia) que faz com refugiado seja uma “categoria da
ONU” incompleta, pois no Brasil há uma clara diferença quanto à experiência
dos refugiados brancos e refugiados negros, ponto que infelizmente não
teremos tempo de tratar aqui.
Silva e Menezes, ao tratar da memória de experiência de migração
interna, defendem que na busca pelo rompimento com o presente, migrar é
projetar um futuro de oportunidade de melhores condições de vida,
constituindo uma estratégia importante para as famílias. Segundo as autoras:
53
aquelas focam na importância das redes de apoio para a superação dos
desafios impostos pela experiência de migração, essas escolheram lidar com o
como a experiência é transmitida para as gerações posteriores e, é justamente
nesta transmissão que deixam emergir as memórias de violência, na maioria
das vezes relacionadas ao excesso de trabalho, que muitas vezes se inicia
ainda na infância.
Em um pequeno salto no tempo, Dornelas em “Migrações
contemporâneas: Desafios para a acolhida e a integração social a partir da
pastoral do migrante” reitera a relação entre migração, refúgio e violência
defendendo que as travessias se fazem sob violência de todo tipo, “constituindo
uma contínua tragédia humanitária” (2018, p. 123). Para ele:
54
questão das migrações estão envoltas, ainda, em ações criminosas de tráfico
de pessoas e prostituição, denuncia Dornelas.
Conforme anunciado, os relatos anteriores demonstram que a violação à
dignidade humana é uma frequente na experiência de deslocamento do
migrantes e refugiados ao longo da história dos séculos XIX, XX e XXI, pelo
menos. No entanto, as políticas públicas em defesa desses indivíduos são fruto
dos debates acerca dos Direitos Humanos, movimento que nasce apenas no
bojo do pós guerra (meados do século XX).
Em “Migrantes sob a perspectiva dos direitos humanos”, Fláva Piovesan
(2013) apresenta Direitos Humanos como proteção da dignidade humana e
prevenção do sofrimento. Para ela, trata-se da defesa do direito à diferença e
da busca pela alteridade a partir do princípio básico de igualdade formal de
direitos.
É importante apontar para a luta internacional pelos Direitos Humanos na
chave da diferença pois, como ela mesma demonstra, a diferença entre os
seres humanos foi o fundamento para as mais graves violações de direitos da
história da humanidade (escravidão, nazismo, sexismo, homofobia e
xenofobia para citar os mais presentes nos debates públicos). E, neste
sentido, a evidente relação entre migração, refúgio e a violação de direitos é
que motiva, no âmbito da política internacional, ações específicas.
Para Piovesan:
55
estima que há no mundo hoje mais pessoas deslocadas por desastres
ambientais do que por guerras. Até 2010, a ONU contabilizava 50
milhões de refugiados ambientais (2013, p. 143)
56
retenção de passaportes nos casos mais contemporâneos e os casos de
violação sexual que dá especificidade para a experiência de gênero da
migração e do refúgio). O que significa dizer que mesmo com as políticas de
proteção internacionais, os Estados têm feito pouco para a efetivação da
erradicação do problema.
Manter viva a memória das experiências é, sem dúvida, forma de resistir
contra a invisibilidade da questão e manter o debate público vivo. Neste
sentido, museus são ferramentas políticas de construção e manutenção de
memórias coletivas, de elaboração de discursos e de educação para a crítica.
É tendo em vista essas potencialidades que se faz importante entender como,
por meio de sua exposição de longa duração, o Museu da Imigração do
Estado de São Paulo se debruça sobre a questão.
O texto de abertura da exposição dá o tom que vai tomar, de forma geral,
a exposição. Aqui fica clara a busca de alinhamento entre o discurso
museológico e o debate acerca do Direitos Humanos, quando o texto aponta
para o direito à diferença e igualdade de direitos, conforme debate
apresentado acima. No texto da parede se lê:
57
Assim, o Museu da Imigração cumpre sua função essencial: provocar a
descoberta do outro em nós ao encurtar as distâncias culturais, estimulando
o respeito à diferença por meio do conhecimento.
58
aponta qualquer dicionário em língua portuguesa, em uma distância de poucos
metros uma possível contradição se põe. Ou, como já anunciado por Paiva:
59
como um sapo no inverno.
ao deitar, ao levantar;
os seus filhos virem o rosto para não vê-los (LEVI, 1988, p. 09).
60
Figura 6: Vista da entrada da exposição
61
curiosidade de conhecer outros lugares. Foram essas migrações que fizeram
com que nossa espécie seja a de maior distribuição geográfica pelo planeta.
62
Ao longo do tempo, muitos povos passaram pelo extenso território que hoje
é o Brasil. Embora alguns desses movimentos tenham sido ainda anteriores à
chegada dos portugueses, em 1500, é impossível negar que a colonização
seja um marco em nossa história. A lógica desse sistema colocou o Brasil na
rota entre os continentes europeu e africano tornando o deslocamento de
pessoas pelo Oceano Atlântico até mais importante que fluxo de produtos
economicamente desejáveis. Aos indígenas nativos, somavam-se colonos,
escravos, traficantes e exploradores. Alguns estavam somente de passagem
por aqui, mas muitos ficavam; alguns vinham por vontade própria, enquanto
tantos outros eram forçados a vir.
63
exposição. Se a proposta discursiva inicial é apontar para a longa duração na
história dos deslocamentos dos grupos humanos, a prática discursiva aloca
cada grupo em um determinado trecho da história.
Na parede se lê:
64
Na sala “As Hospedarias no Contexto das Migrações” o visitante
conhece os dados numéricos sobre o fluxo migratório conhecido como Grande
Imigração”. A contribuição desta sala para o debate é a apresentação da
existência das hospedarias de imigrantes como política pública internacional
(com os exemplos de Kobe, no Japão; Bremen, na Alemanha e Gênova, na
Itália) e que a construção da hospedaria que existiu no prédio onde hoje está o
Museu é fruto de uma complexa rede de relações político-histórico-econômicas
que fomentou a existência de outras hospedarias no Brasil. Conforme o texto
de parede desta sala:
65
sanitário, registro e encaminhamento dos imigrantes para os locais de
trabalho. O estado de São Paulo, um dos principais destinos da emigração
para o Brasil, também contava com a estruturas para recebimento, abrigo e
encaminhamento de trabalhadores e seus familiares. A hospedaria mais
importante, no entanto, não foi construída no porto de Santos – embora
houvesse um espaço de acolhimento naquela cidade -, mas na capital, mais
especificamente no bairro paulistano do Brás. Essa escolha deveu-se a
existência de uma malha ferroviária que se irradiava a partir da cidade de
São Paulo. Assim, pode - se dizer que a hospedaria de imigrantes do Brás
foge à regra das demais, portuárias ou insulares, mas o fato de sua estrutura
contar com muros altos e acessos de entrada e saída bastante restritos
tornava- a bastante similar a uma “ilha de acolhimento” no meio da cidade.
66
Figura 8: Vista da sala “As Hospedarias no Contexto das
Migrações”
67
Figura 9: Vista da sala “Travessia: A Viagem”
68
representados são migrantes internos e as fotografias são parte do material
enviado ao exterior para as propagandas de promoção da política de atração
de mão de obras estrangeira do estado, no entanto, não há na nenhuma
menção a essa propaganda que, como sabemos, foi bastante questionável no
que diz respeito a veracidade das informações transmitidas.
69
Aqui, para além do conflito, outra ausência é sentida. Se o esforço
discursivo seria o de localizar as experiências de migração na longa duração
trazendo-a, inclusive, para o tempo presente, porque não tratar dos fluxos de
retorno tão importantes social, política e economicamente quanto os fluxos de
partida?
70
Fonte: Imagem extraída do aplicativo Google Arts & Culture
71
Ao chegarem no novo país, os imigrantes buscam diferentes
ocupações e lugares para morar. As cidades que cresciam, as
pequenas fábricas e as ferrovias em construção, para além das
colônias agrícolas, apresentavam alternativas de moradia e novos
ofícios para essa população.
73
"...um cosmopolitismo genuíno é antes de mais nada uma orientação,
uma disposição para entrar em contato com o Outro. Implica uma
abertura intelectual e estética em direção a experiências culturais
divergentes, uma busca por contrastes, mais do que por
uniformidades." (1996, p. 103). Ulf Hannerz, antropólogo.
São Paulo foi até 1870 uma “cidadezinha” com não mais do que 24
mil habitantes. Com a expansão da lavoura cafeeira para exportação
e, em seguida, com a industrialização, esse cenário se transformou. A
presença de amplos contingentes populacionais de fora, tanto do
exterior como de outras regiões do país, foi determinante para que a
cidade crescesse de forma rápida, exponencial. Tal processo refletiu
profundamente na vida familiar e doméstica de seus habitantes, nas
instituições políticas, na religiosidade, nas estratégias relativas à
saúde, na sociabilidade e no entretenimento, na oferta de novos
ofícios e de técnicas construtivas, nas expressões artísticas, enfim,
nos mais diversos aspectos da vida da cidade - tudo resultando numa
variedade de modos de vida que combinou particularidades e traços
distintivos.
74
Num único exemplo, porém significativo, na categoria “Religiosidade”, entre as
centenas de imagens expostas não havia um único terreiro representado, ainda
que estes figurem na cidade em números e importância social significativos.
Figura 13: Vista da sala “Bom Retiro, Mooca, Santo Amaro, Brás”
75
experiência no tempo da longa duração (o que poderia ser feito a partir da
experiência de indígenas e das populações de origem africana, por exemplo),
mas mostrar como o longo do tempo produz múltiplas experiências similares
(referindo-se aos novos fluxos), cujo ponto comum é o deslocar-se em busca
de novas oportunidades.
76
Figura 14: Vista da sala “Imigração Hoje”
Por fim, ainda que não tenha sido o objetivo da pesquisa realizada e do
presente texto, e, portanto, não temos as condições necessárias para tratá-lo
aqui, um ponto importante para uma futura reflexão precisa ser mencionado.
Trata-se da relação entre a exposição de longa duração e o edifício.
Odair já havia apresentado a crítica (2015, p. 08) quando aponta para a
total vedação e a desconexão dos ambientes em relação com o prédio. Não é
difícil perceber tal desconexão. Ambientes escurecidos, módulo centralizados
e voltados para o interior de si mesmos e distantes das paredes e janelas
revestidas de forma a esconder o edifício indicam uma relação contrária à
77
proposta pelo Plano Museológico da instituição, que atribuí ao edifício
importância na relação entre história e memória da imigração e para o
cenário museológico brasileiro.
Segundo o documento:
78
Trata-se da construção de um lugar para a experiência dentro de um
lugar da própria experiência histórica.
Importante lembrar que o projeto museográfico foi desenvolvido pelo
arquiteto Felipe Tassara e pela cineasta, cenógrafa, diretora teatral,
dramaturga, iluminadora e figurinista Daniela Thomas o que pode justificar as
opções que favorecem teatralização e a criação de atmosferas ilusórias. A
ambientação, enquanto “arranjo espacial para criar, recriar ou remeter (a) um
determinado ambiente" (SOUZA, 2012, p. 48) foi, sem dúvidas, o partido
estético adotado pela equipe, visível, por exemplo, na Sala Cotidiano, onde "a
ambientação do espaço intenta criar uma atmosfera que parece favorecer a
experiência de visitação, envolvendo o visitante na rotina dos viajantes"
(FERNANDES, 2017, p. 102), sendo essa uma escolha dentre outras opções
de representação do cotidiano.
Em resumo, a exposição não precisava estar neste edifício, ela poderia
ser alocada em qualquer outro, uma vez que está apartada e as escolhas
museográficas e narrativas em nada dependem dele.
79
3. Considerações finais
80
BRESCIANI, 2017). Na América Latina esse processo é datado das décadas
de 1970 e 1980 e é marcado pelos contextos ditatoriais.
Os lugares de memória traumática nascem com o objetivo claro de expor
as violências produzidas pelo Estado. O modelo fundamental deste tipo de
lugar de memória são os espaços a expor a horror produzido pelo holocausto.
A partir dele, outros lugares vão sendo criados pela memória das vítimas do
Aparthaid, das ditaduras na América Latina e, mais recentemente, da
escravidão dos povos africanos no contexto da colonização européia. Em
contraponto à história oficial, os lugares de memória traumática nascem,
geralmente, pela iniciativa de grupos e movimentos sociais que reivindicam
seus próprios lugares de memória (HOFFMAN, 2015; MENESES, 2018;
BOAS, 2018; SOSA, 2019).
A história da instituição que hoje conhecemos como Museu da Imigração
do Estado de São Paulo se inicia pela ação do estado, com a criação do
Centro Histórico do Imigrante, vinculado à Secretaria de Estado da Promoção
Social, em 1986, pelo DECRETO N. 25.173, DE 12 DE MAIO DE 1986, de
Franco Montoro, então governador do Estado de São Paulo. Por tanto, não
foram os imigrantes ou qualquer outro grupo popular ou movimento social a
requerer a hospedaria como seu lugar de memória. Trata-se de um lugar da
memória do Estado de São Paulo.
A partir do que se pode constatar com os exemplos apresentados pelos
autores expostos, um lugar de memória traumática é constituído com o
objetivo claro de expor o trauma (tais quais os memoriais de ditadura, os
museus do holocausto e etc). Nesta perspectiva, as potencialidades
discursivas do recorte histórico musealizado pela instituição não é o suficiente
para inseri-la nesta categoria.
Podemos afirmar a potencialidade do Museu de Imigração do Estado de
São Paulo para o debate acerca das múltiplas violências e violações de
direitos humanos que se mostraram característicos do processo de migração
enquanto permanência histórica, no entanto, é também notável que este não é
o seu objetivo.
81
A exposição de longa duração do Museu da Imigração, principal
ferramenta de comunicação da instituição com o público, revela que o objetivo
é apresentar os processos migratórios e as experiências de migração a partir
da memória afetiva. Ainda que possamos apontar e criticar os limites
pedagógicos e políticos de difundir um discurso sobre migração
desconsiderando a profundidade dos seus aspectos violentos, a instituição faz
a sua seleção/escolha discursiva, o que é legítimo.
Portanto, concluímos que, no sentido atual da expressão, “lugar de
memória traumática” não é uma categoria adequada para o Museu da
Imigração do Estado de São Paulo.
Talvez nos caiba ampliar os limites do entendimento da expressão, uma
vez que é necessário complexificar o debate.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
83
BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2009.
84
<http://museudaimigracao.org.br/institucional/documentos-institucionais/>. Aceso em
16 de outubro de 2018.
85
NEVES, Kátia Regina Felipini (coord). Museus como agentes de Mudança social e
desenvolvimento. São Cristóvão: Museu e Arqueologia do Xingó , 2008. pp. 157 - 172.
PIOVESAN, Flávia. Migrantes sob a perspectiva dos direitos humanos. In: Diversitas.
n. 01 (2013). Disponível em: . Acesso em: 15 de abril de 2019.
SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo e Pobreza (1890
- 1915). São Paulo: Annablume, 1998.
86
SOSA, Ana María. Patrimonialización de lugares vinculados a memorias
traumáticas: políticas públicas sobre el pasado reciente en Uruguay. In:
URTIZBEREA, Iñaki Arrieta (ed.). Lugares de memoria traumática.
Representaciones museográficas de conflictos políticos y armados [Recurso
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Unibertsitatea, Argitalpen Zerbitzua = Servicio Editorial, [2017]. – 1 recurso en
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<https://web-argitalpena.adm.ehu.es/pdf/UHPDF174313.pdf>. Acesso em 02 de
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