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Musicalidades Brasileiras
Expressões, vivências, relações, tensões e resistências no cenário musical
urbano dos anos de 1960-1990
Doutorado em História
São Paulo
2019
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
Programa de Pós-Graduação em História
Musicalidades Brasileiras
Expressões, vivências, relações, tensões e resistências no cenário musical
urbano dos anos de 1960-1990
Doutorado em História
São Paulo
2019
1
Banca Examinadora
__________________________________________________
Prof.(a) Dr.(a) Maria do Rosário da Cunha Peixoto (Orientadora)
__________________________________________________
Prof. Dr. Amilton Magno de Azevedo
__________________________________________________
Prof. Dr. Ival de Assis Cripa
__________________________________________________
Prof.(a) Dr.(a) Maria Antonieta Antonacci
__________________________________________________
Prof. Dr. Salomão Jovino da Silva
2
Dedicatória
3
Essa pesquisa contou com apoio financeiro da
CAPES, sem o qual sua realização não seria
possível.
4
Agradecimentos
À minha mãe, Luzia Santos Nascimento (em memória), mulher negra, baiana,
que chegou a São Paulo viúva, com quatro filhos(as) e que, dentro de sua
sabedoria, me ensinou a sobreviver e viver com dignidade numa cidade “moinho de
gente”, na periferia da Zona Sul de São Paulo. A todas as mulheres, minhas
ancestrais, por gravarem em nossas vidas a cultura da resistência e o culto às
energias existentes, que nos mantém de pé e de cabeça erguida.
Ao meu pai, Alcino Joaquim Cardoso (em memória), por ter iniciado o meu
caminho nos movimentos populares, por ter me permitido acompanhá-lo nas
reuniões de associações de moradores de bairro desde a infância. Por me ensinar a
lutar por justiça e a ter coragem de enfrentar e questionar o que considerava errado.
À “Dinha”, Rosa Moraes Alves de Oliveira, por ter sempre me apoiado de
todas as formas possíveis, por ter acreditado em mim quando muitos
desacreditaram. Por estar ao meu lado em todos os momentos da minha vida, pela
certeza de que nunca estive só, o mesmo dedico a sua filha Carolina Moraes, minha
prima/irmã.
Ao meu primo José Alves de Oliveira (em memória) que me incentivou, desde
cedo, a buscar o conhecimento. Que trabalhou a vida inteira e se foi cedo, deixando
um grande legado que é o de não aceitar submissões de nenhuma natureza.
Ao meu irmão, Sebastião Santos Nascimento (em memória), assassinado
pelas “mãos do Estado”, que com seu violão me apresentou tantas canções. Que
despertou em mim a sensibilidade para a arte e me fez perceber, bem cedo, o
potencial destrutivo da sociedade autoritária em que vivemos.
Ao meu irmão, José Antonio Santos Nascimento (em memória), que também
morreu jovem, afogado na represa do Guarapiranga, como tantos(as) outros(as),
jovens pela falta de espaços e condições de lazer, também fruto dos descasos de
nossos “governantes”. Pelas lições de seriedade e por ter amparado toda família
antes de partir.
Às minhas irmãs, Dalva Santos Nascimento Pacheco e Marlene Santos
Nascimento Silva, pelas palavras de incentivo e por demonstrarem imenso orgulho
diante de cada uma de minhas conquistas. Da mesma forma, aos meus cunhados,
Geraldo Tedeu Pacheco (em memória) e Antonio Wilson.
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Aos meus sobrinhos e sobrinhas, primos e primas, que, desde criança,
aprenderam comigo a ouvir música popular brasileira e que, inúmeras vezes, me
acompanharam nas canções de Vandré, quando eu insistia em tocá-las no violão.
Aos meus amigos, poucos, mas sinceros, que, nas horas difíceis, me fizeram
acreditar que ainda existe amizade neste mundo. Especialmente à Maria José
Costa, Egnaldo Rocha e Sandra Portuense, companheiras(os) de “batalha
acadêmica”.
Ao meu amigo Antonio Passaty, que mais que amigo foi também um grande
parceiro, me incentivando de todas as formas possíveis e me apoiando em cada
entrevista realizada. A ele, os créditos de todas as imagens gravadas nos diferentes
estados em que passamos.
Ao Alexandre Durães, companheiro com o qual sempre poderei contar, sem
os rótulos e moldes das relações afetivas entre um homem e uma mulher. Pessoa
incrível que sempre amarei da forma mais profunda e subversiva empregada ao
termo.
Agradeço ao Heraldo do Monte e sua família, por terem me recebido em dois
momentos com extrema atenção e um acolhimento sempre carinhoso. Ao Sérgio
Ricardo pela prosa e genialidade apresentada no Vidigal, uma tarde linda e alegre.
Ao Theo de Barros, pela atenção, pela sutileza e pela generosidade. Ao Hermeto
Pascoal, por permitir uma aproximação, desde a abertura da porta, da energia
contida nele e, consequentemente manifestada em sua narrativa, um dia
inesquecível. Ao Airto Moreira, que mesmo sem me conhecer, respondeu
prontamente a todos os contatos, pela entrevista de longas horas pelo Skype
quando estava nos E.U.A, permeada pela emoção e por ter me recebido em Curitiba
esse ano, com um brilho no olhar e com uma simplicidade correspondente a sua
visão de mundo. Ao Geraldo Vandré, pela valorização e reconhecimento da minha
pesquisa, pelas conversas e encontros ao longo dos anos após o mestrado e por ter
me recebido em João Pessoa, pelo carinho de me colocar na lista de convidados(as)
nas duas apresentações que fez e março de 2018, por cantar depois de 50 anos em
nosso país e pela entrevista concedida num domingo mesmo tendo uma série de
compromissos diante da repercussão de suas apresentações junto à pianista
Beatriz. Ao Sidney Miller (em memória) pelo legado de sua obra conhecida, e pelas
composições inéditas que um dia espero ouvir, agradeço à Joice Moreno por me
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contar o que sabia sobre ele.
Às professoras e professores da PUC/SP, sobretudo à Maria do Rosário da
Cunha Peixoto (orientadora) pelo respeito à sua trajetória e luta, pela contribuição
que tem na minha caminhada e à Maria Antonieta Antonacci, que não por acaso,
indiquei como membro da Banca Examinadora.
Aos professores que participaram da Banca de Qualificação, Amailton Magno
Azevedo pela identificação e admiração do lugar de fala, professor negro, músico,
compositor, cantor e inspirador, que “colou” na “quebrada” fortalecendo nossas lutas.
Especialmente ao Salloma Salomão, irmão, parceiro de lutas dentro do território,
pessoa... Pessoa, gente, artista, homem negro, capaz de transformar sonhos em
realidade, não pelo romantismo empregado à expressão, mas pela capacidade de
lutar com as mãos, de fazer acontecer, por fortalecer nossas trajetórias, por olhar
nos olhos e dizer: É possível! Máximo respeito por sua existência, conhecimentos,
sabedoria e luta contínua contra o racismo antinegro... Valeu Leão!!
Ao Professor Ival de Assis Cripa, que, na graduação, me orientou nos
primeiros passos para a pesquisa e que sempre esteve disposto a me ajudar, seja
pelas conversas via internet ou pelos encontros presenciais, mesmo após o término
da graduação. Por ter lido meus textos e por ter me acompanhado em várias etapas
deste caminho, não por acaso tenho satisfação e gratidão por tê-lo como membro
dessa Banca Examinadora.
Por fim, agradeço a cada estudante com os(as) quais tive contato nesses
vinte anos de magistério, das diversas escolas por onde passei. Na realidade, minha
busca contínua por conhecimento é fruto do pensamento de que trabalho para
minha gente e que elas e eles merecem o melhor que eu possa fazer. Dominar os
conteúdos não é tudo, mas duvidar das verdades estabelecidas é algo que aprendi e
desejo ensinar. A pesquisa histórica é um dos caminhos necessários para tanto.
Conhecer gente, olhar nos seus olhos, reconhecer nossas humanidades e pontos de
convergências identitárias são outras histórias a serem registradas...
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CARDOSO, Marilu Santos. Musicalidades Brasileiras - Expressões, vivências,
relações, tensões e resistências no cenário musical urbano dos anos de 1960-
1990. Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2019.
Resumo
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CARDOSO, Marilu Santos. Brazilian musicality – expressions, experiences,
interface, tension and resistance in 1960-1990 unban scene. These. (Doctorate
in History), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.
Abstract
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Sumário
Introdução ............................................................................................................................... 11
Capítulo 1. Conexões e relações com a arte: Nas ruas, cidades e sertões ................ 21
1.1 Terra, chão, gente e sensibilidades ..................................................................... 24
1.2 Bares, boates, rádio e TV: Caminhos e descaminhos ...................................... 46
Capítulo 2. Indústria Cultural Brasileira, tensões e suas relações com a música ....... 68
2.1 Mediações e produções musicais ........................................................................ 70
2.2 Construção das imagens e silenciamento ........................................................ 106
Capítulo 3 – Fé, amor e mais nada: Iniciativas e resistências ..................................... 122
3.1 Quarteto Novo: Entre improvisos e desafios .................................................... 147
3.2 Disco de Bolso: Qual é?....................................................................................... 168
Considerações finais ........................................................................................................... 192
Fontes Principais ................................................................................................................. 204
Bibliografia ............................................................................................................................ 206
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Introdução
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Como professora da rede pública na educação básica, assumo a
responsabilidade de possibilitar experiências e trocas que fomentem a convicção de
que a música e a arte de fora geral, são importantes fontes de transformações e de
que não somos obrigados(as) a ouvir somente o que os meios de comunicação nos
direcionam.
A historicidade dessas questões delineou a problemática central dessa
pesquisa que é a forma como as expressões e trajetórias dos artistas aqui
estudados foram significadas dentro da periodização estabelecida. Bem como as
múltiplas formas de resistência e persistência diante de uma sociedade autoritária,
que não se restringe ao período ditatorial, visto que abordo o período dos anos 1960
a 1990.
A arte está presente em todas as sociedades, como fruto das experiências
humanas expressa, em diferentes tempos e espaços, sentimentos, desejos, visões
de mundo e formas de interações e intervenções. Assim como é constituída pelas
múltiplas realidades é também constituintes dessas.
As relações entre Cultura Popular e Cultura hegemônica serão
problematizadas como dinâmicas e permeadas pelas tensões, confluências e
diálogos a partir das discussões com os referenciais utilizados, como a noção de
“transformação cultural” apresentada por Stuart Hall:
Hall toca num ponto relevante para as reflexões aqui apresentadas, visto que
o discurso de modernização não somente expulsa via exclusão, com seus
mecanismos de produção e veiculação da música, como também marginaliza
artistas ao se alinharem ou com temáticas, modos de vida e estéticas que desafiam
a lógica de modernização. O viés político que relaciono ao popular como resistência
1
HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do "popular". In: Da diáspora: identidades e mediações culturais.
Liv Sovik (org); trad. Adelaine La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Representação da
UNESCO no Brasil, 2003. p. 248
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à dominação se distancia da dicotomia popular – erudito, até porque, no que se
refere ao “mercado musical” há um permanente diálogo, mesmo com tendências à
hierarquização com as expressões que emanam dos grupos populares, mas que
passam por processos de ressignificações e releituras.
A forma como nos relacionamos com as expressões artísticas e seus/suas
criadores(as) evidencia traços significativos dos modos de vida e dos anseios.
Permeadas em suas criações e recepções por subjetividades, quando atravessadas
por diferentes interesses e usos passam a ser fontes e alvos de projetos, muitas
vezes, conflitantes e imprevisíveis, não havendo controle absoluto sobre seus
impactos.
Esse trabalho surge da necessidade de compreensão a respeito das relações
estabelecidas entre a sociedade brasileira e a arte, com foco na música, ainda que,
pela natureza das obras e artistas analisados, transite por diferentes linguagens.
De acordo com Jesús Martím Barbero o funcionamento da hegemonia na
indústria cultural não anula as aspirações de liberdade, mas as pressionam com
interesses de “expropriação”, “massificação” e de processos “educativos”, nem
sempre vencedores, mas bastante perspicazes. A complexidade dessas relações
parte da dificuldade de compreensão a respeito de como o “popular” opera de forma
ambígua sobre as transformações impostas. Os processos de “modernização” e as
práticas de “massificação” implicam em um aprofundamento a respeito do conceito
de “cultura”, tendo como referência os estudos realizados por Raymond Williams.
Segundo Williams, a cultura é dinâmica e complexa, sendo produto das
relações sociais existentes dentro de uma realidade material, estando presentes
todas as contradições e antagonismos de uma sociedade, assim como as
convergências e divergências. Sendo o ser humano imprevisível e as suas relações
sociais conflituosas e permeadas por significações e ressignificações, a cultura
como produto desta sociedade não poderia ser concebida de outra forma. O artista
não é um ser aquém das relações sociais, ele faz parte destas relações e a sua
produção, seja ela qual for é fruto da sua experiência e da forma como se posiciona.
A dificuldade em conceituar o nacional e o popular e a confusão, muitas vezes
realizada, em torno destes conceitos, são reflexões de importantes pesquisadores,
entre eles Stuart Hall, Jesús Martín-Barbero e Marilena Chauí. Sendo ainda mais
complexa a discussão em torno do que seja a “Cultura Popular”. Esta abordagem é
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fundamental para que possamos compreender as práticas sociais desenvolvidas por
esses artistas brasileiros.
Há alguns aspectos que muito me intrigam, de que forma e em que medida as
temáticas e estilos, adotados pelos artistas estudados, se contrapõem aos projetos
que “excluem o povo como sujeito”? Busco, portanto, compreender a partir desse
referencial as relações de possíveis hierarquizações a respeito da produção musical,
sobretudo, no que se refere às classificações do que era evidenciado e do que era
colocado numa esfera de banalização ou de menor valor artístico, bem como os
conflitos evidenciados na conjuntura das produções artísticas e nas particularidades
das tendências, que envolvem posicionamentos, concepções e projetos diversos.
Para tanto se faz necessário uma análise atenta das fontes produzidas pela
imprensa, sobretudo, a imprensa ligada aos interesses hegemônicos, como é o caso
da Revista Veja, mas também das produções artísticas e da constituição do público
por meio das fontes da História Oral .
Busca de longa data, impulsionada por experiências e análises presentes nas
trajetórias pessoal, acadêmica e profissional, reveladora de posicionamentos e
projetos, algumas vezes, dissonantes. Luta por justiça e visibilidade para pessoas
que se dedicaram e se dedicam à arte, com toda sua força, expressão e significado,
não esquecendo suas condições humanas, seus conflitos e contradições frente aos
desafios de viver da e para a música.
As reflexões aqui apresentadas foram, sobretudo, desencadeadas durante o
processo de construção da pesquisa que desenvolvi no Mestrado, com o título “Para
não esquecer Vandré: Música, Política, Repressão e Resistência (1964-1978)” no
Programa de Pós Graduação em História da PUC/SP, com orientação da Professora
Dra. Maria do Rosário da Cunha Peixoto. Por meio das análises a respeito da
memória e da importância do cantor e compositor Geraldo Vandré no cenário
cultural dos anos 1960 e 1970, com vistas a problematizar sua atuação no campo da
resistência por meio da música e as formas de repressão empregadas contra ele,
assim como suas implicações. Deparei-me com questões relevantes a respeito do
processo de constituição da memória em relação ao cantor. Nessa trajetória iniciei
um aprofundamento sobre o conhecimento das experiências de outros
compositores, chegando dessa forma ao despertar do interesse e da necessidade
de pesquisar a constituição das memórias sobre Sergio Ricardo, Sidney Miller, Airto
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Moreira, Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal e Theo de Barros, bem como buscar
compreender suas práticas sociais desempenhadas por meio da música e as
implicações em torno disso.
Geraldo Vandré tem uma importância muito grande na minha formação
política, suas canções não somente geraram emoções, como também despertaram
o interesse pelos estudos a respeito da conjuntura em que se deram suas
produções. Conheci os músicos que compõem o Quarteto Novo a partir de suas
parcerias e a música instrumental brasileira passou a ser alvo de minhas
indagações.
O que se apresenta na atualidade como cenário e memória da música
produzida no Brasil é, como afirma Walter Benjamin, também um monumento da
barbárie. Situo essa pesquisa num campo de luta contra o esquecimento de vozes
que não emudeceram, mas que vivenciaram relações e processos que evidenciam a
produção do silenciamento, mesmo que em alguns momentos tenham atingido
projeções e estabelecido vínculos necessários para veiculação de suas obras, como
apresentarei mais adiante.
Problematizo as experiências dos artistas citados, no período de 1960 a 1990,
abordando suas trajetórias, produções e suas relações com a sociedade brasileira,
com destaque para o público, a Indústria Cultural Brasileira e outros setores que
atuaram para a construção do esquecimento e para a minimização da importância
de suas obras, tais como a Imprensa, a Crítica Musical e a própria Historiografia.
Ressalto que não foi uma escolha fácil, visto a imensidão de artistas
brasileiros(as) que passaram por tais processos e que guardam especificidades
atravessadas por opressões de gênero, de classe e de raça. A escolha, como disse
anteriormente, se deu em função dos estudos aprofundados no mestrado,
abrangendo experiências de artistas que de alguma forma se relacionaram ao
Vandré. Guardadas as proporções da presente pesquisa indico que em tempo
oportuno e, espero, não muito distante dedicarei esforços para a ampliação desse
debate, chegando ao propósito de estudar expressões que dentro da dinâmica
dessa sociedade autoritária sequer são significadas como arte, falo dos meus, dos
que não estiveram e não estão dentro do circuito de legitimidade da então chamada
MPB. Para tanto, justifico que a trajetória desses estudos constituiu um olhar que
ainda se constrói e que carece de aprofundamentos.
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Compreendendo a memória como um campo de disputas analisarei as
relações de poder que envolvem a evidenciação de determinados artistas e estilos
musicais dentro de uma dinâmica complexa que envolve as formas de
mercantilização da música, assim como os processos de resistência e busca por
brechas dentro do próprio sistema. Para tanto se fez necessário compreender, a
partir das fontes da história oral, a conjuntura em que se deram as relações
problematizadas, que envolvem a cultura, sua dinamicidade, as tensões, as
convergências e os conflitos dentro do período delimitado.
A maior parte das produções analisadas ocorreu durante as décadas de 1960
e 1970, período em que o Brasil vivenciou uma Ditadura Civil Militar. Nesse sentido,
é importante não perder de vista as relações constituídas dentro de uma conjuntura
de repressão e censura, mas também na qual a música desempenhou um
importante papel, no caso desses artistas, no campo das resistências. É importante
analisar a conjuntura dos anos de 1980 e 1990, período em que ocorreu um grande
avanço das mídias, tecnologias e veículos que envolvem a produção musical no
Brasil e, em contra partida, investigar a construção do silenciamento a respeito dos
artistas pesquisados dentro de uma conjuntura “democrática”, mas profundamente
excludente, dando indícios da complexidade da sociedade brasileira.
É importante também problematizar não somente a forma autoritária do
Estado brasileiro, mas as evidências das relações de poder que atravessam todos
os demais setores, nos levando a crer que a Indústria Cultural Brasileira não esteve
dissociada dos interesses que financiaram e colaboram para a construção do
autoritarismo no Brasil e do projeto de sociedade hegemônico até o presente
momento. Evidenciando, também, sua complexidade e a forma como as pressões
advindas do que chamamos de “forças populares” interferem e promovem pressões
sobre essa.
Adotando uma perspectiva de análise a partir do presente parto do princípio
de que o esquecimento de hoje, desqualifica, reduz e minimiza a importância de
Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Sidney Miller, Airto Moreira, Heraldo do Monte,
Hermeto Pascoal e Theo de Barros no cenário artístico brasileiro. É com essa
perspectiva que me proponho a realizar uma investigação a respeito de suas
práticas, suas trajetórias e suas relações com a sociedade brasileira, constituindo
documentos que confrontem o silenciamento e que promovam a visibilidade de suas
17
obras e histórias: “(...) o igualamento amnésico da história é, entre outras coisas,
uma afronta ao presente”2
Foi fundamental o estudo da coexistência de diferentes tendências no cenário
musical dos anos 60 e 70, bem como as relações com a Bossa Nova e com outros
estilos musicais brasileiros3, entendendo-os como expressões constituintes da
realidade e também constituídas por essa. Pretendo compreender o que se
denomina como “tendências” problematizando aspectos relevantes dos
posicionamentos, escolhas e implicações, no que diz respeito às formas musicais e
artísticas utilizadas. Analisarei os movimentos culturais que impulsionaram
transformações, concebendo-os como ações políticas permeadas por sentimentos,
desejos e projetos diversos, muitas vezes conflitantes e as correlações de forças
que os envolvem. Buscarei a compreensão a respeito da heterogeneidade das
expressões musicais, sua dinamicidade e articulações com as formas de sentir e
expressar as visões e concepções acerca do fazer artístico, significando-o como
prática social.
A partir da sondagem inicial das fontes, problematizo a existência de
discursos sobre uma “linha evolutiva da música popular brasileira”, no momento em
que as produções aqui estudadas ocorreram e na própria abordagem da
historiografia, da imprensa e da crítica musical. Faz-se necessário, portanto, um
estudo profundo a respeito das relações e discursos produzidos dentro do período
delimitado, assim como as articulações e implicações que envolvem a dinâmica das
produções musicais, suas projeções e recepções.
Levando-se em consideração que não há uma cisão entre o que se produz
artisticamente e os modos e jeitos de viver, bem como, as pressões, os conflitos e os
enfrentamentos, a análise da realidade vivenciada no campo da música precisa
considerar aspectos importantes da conjuntura do país e da conjuntura internacional,
havendo a necessidade de compreender e problematizar os conceitos de
“nacionalidade”, “cultura nacional”, “nacional popular”, bem como, suas utilizações e
2
SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginárias: Intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 1997.
P. 40.
3
Problematizarei expressões tais como a Tropicália, A Jovem Guarda, a música produzida nos Centros
Populares de Cultura da UNE, posteriormente os movimentos dos mineiros (Clube da esquina), do Pessoal do
Ceará, entre outros. É importante também aprofundar os estudos a respeito da conjuntura dos Festivais e sua
importância. Assim como também é relevante compreender as relações entre música, teatro e cinema dentro do
período abordado e as características dessas expressões, como por exemplo, o Cinema Novo.
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significações dentro do período estudado. É importante investigar, em sua relação
com a produção musical, os projetos que anunciam os impulsos e incentivos acerca
das noções de “modernidade”, “desenvolvimento” e “evolução”, buscando
compreender de que forma esses discursos permearam o campo da cultura como
uma força que possivelmente buscou imprimir “novos modos de vida” e os impactos
disso sobre as visões e relações com a música. Pretendo estudar esses elementos e
compreendê-los numa dinâmica que aborda as produções musicais de Geraldo
Vandré, Sérgio Ricardo, Sidney Miller, Airto Moreira, Heraldo do Monte, Hermeto
Pascoal e Theo de Barros em suas relações, posicionamentos e escolhas.
Os estudos preliminares evidenciam conflitos e oposições por parte desses
cantores, músicos e compositores a respeito das “tendências” que sinalizaram para
a necessidade de “novas roupagens” ou “modernização” da música popular
brasileira, bem como da lógica de mercado que impõe sérias implicações no que diz
respeito aos processos criativos e construções artísticas, havendo a possibilidade de
investigação a partir de depoimentos dos próprios cantores e músicos a respeito de
suas concepções sobre “música popular brasileira” 4. Não busco com isso encontrar
apenas pontos de convergência entre eles, visto que cada um vivenciou e se
posicionou diante da realidade a sua maneira, e também das necessidades e
interesse materiais, aspectos que intenciono abordar por meio das análises das
particularidades de suas trajetórias, porém indico que esse é um aspecto importante
para compreendermos as implicações acerca da produção do esquecimento e da
minimização da importância desses artistas no cenário musical, assim como sobre a
memória produzida ou ocultada sobre eles.
Interessa-me investigar as trajetórias e os estilos musicais de cada um dos
compositores, músicos e cantores aqui apresentados, mas também e
principalmente, a forma pela qual se constituíram como elementos importantes no
campo de oposição aos discursos de necessidade de modernização da música
popular brasileira em detrimento de outros estilos, conceituados, por exemplo, pela
4
A este respeito os estudos de Raymond Williams apresentados no texto “Quando foi o Modernismo” (livro
Margem Esquerda: Ensaios Marxistas, Boi Tempo, 2005, que reúne artigos de diferentes pensadores) e seu livro
Drama em cena (COSACNAIFY, 2010), contribuem para a problematização iniciada, ao abordar a conceito do
termo “Moderno” e suas utilizações em diferentes épocas, assim como as transformações formais do teatro no
ocidente. Esses estudos me ajudam a pensar, também, as transformações no campo da música popular brasileira,
sem perder de vista as suas particularidades.
19
crítica musical, pela indústria cultural brasileira e pela imprensa, como
“ultrapassados”.
Essa abordagem me possibilita pensar também, de que forma as expressões
populares foram sendo constituídas durante a Ditadura Civil Militar como “folclore”
com uma perspectiva diferenciada das utilizações anteriores, com particularidades
que evidenciam uma construção ideológica de busca da “Identidade Nacional” e ao
mesmo tempo numa atitude de simplificação e minimização da sua importância,
problematizarei de que forma essa conceituação se relaciona com as disputas de
poder e de valores, investigando as relações dessas concepções com as práticas
musicais e com a própria lógica da construção do que se intitulou como MPB,
enquanto movimento, e a evidenciação dos então chamados “estilos regionais” ou
de setores tidos pelas elites brasileiras como “marginais”.
Há uma forma dicotômica e desqualificadora sobre o que foi enquadrado
como “regional”, como substrato utilizado pelos meios intelectualizados da música
brasileira, fontes “primárias” de inspiração, mas estereotipadas nas suas origens. A
musicalidade brasileira construída em diferentes locais do país, com feições,
características, contribuições e constituições diferenciadas não cabe numa
nomenclatura unificadora de expressões tão plurais e complexas.
Esses elementos da cultura popular podem ser observados nas obras aqui
analisadas. Cada artista e suas relações com as culturas de seus locais de origem
possibilitaram construções musicais nos meios urbanos que mantém um profundo
diálogo e interação com a cultura musical constituinte de nossa população, sem
perder de vista suas diversidades. Daí surge a genialidade das composições,
justamente da pluralidade e da junção de diferentes elementos, sem
hierarquizações, como é o caso de Disparada.
É inegável o posicionamento estabelecido por meio da escolha e proposta
dessa temática e das problematizações aqui apresentadas. A pertinência desse
trabalho reside não apenas na sua importância no campo da historiografia, mas na
necessidade, como ressaltada inicialmente, de atuação na luta pelo direito à
memória, e contra os processos autoritários de construção do esquecimento ou da
banalização das obras.
20
Capítulo 1. Conexões e relações com a arte: Nas ruas, cidades e sertões
5
Introdução da canção “Terra Plana” gravada no LP “Canto Geral” pela gravadora EMI ODEON em
1968.
21
das experiências de outros compositores, chegando dessa forma ao despertar do
interesse e da necessidade de pesquisar a constituição das memórias sobre Sergio
Ricardo e Sidney Miller, bem como buscar compreender suas práticas sociais
desempenhadas por meio da arte e as implicações em torno disso. Analisarei,
também, as experiências de Geraldo Vandré com aprofundamento de questões já
suscitadas na dissertação de mestrado.
A inserção dos músicos do Quarteto Novo, Airto Moreira, Hermeto Pascoal,
Heraldo do Monte e Theo de Barros, na temática central, se deu, sobretudo, pela
riqueza de seus relatos e pelas possibilidades de análises de suas experiências. Um
trabalho que atua na luta contra o esquecimento não seria tão contundente se não
levasse em conta a trajetória de músicos, que passam por pressões semelhantes as
dos intérpretes e compositores, mas que têm particularidades a serem evidenciadas,
visto que muitas vezes são colocados em segundo plano e seus nomes sequer são
citados durante as apresentações.
As principais fontes desse capítulo são provenientes da História Oral,
entrevistas realizadas com os principais sujeitos abordados. O conceito de
“memória” que atravessa toda essa proposta e a constitui, tem seus fundamentos
nos estudos realizados para desenvolvimento da Pesquisa de Mestrado na PUC/SP
e na minha participação como membro no Núcleo de Estudos Culturais: Histórias,
Memórias e Perspectivas do Presente. Num importante diálogo com autores, tais
como Walter Benjamin, Raymond Williams, Beatriz Sarlo, Déa Fenelon, Yara Aun
Khoury e Maria do Rosário da Cunha Peixoto, situo as utilizações em torno do
conceito de “memória” compreendendo-a como um campo de disputas, onde o
movimento de “lembrar e esquecer” é politicamente significado e traduz
intencionalidades.
Partindo do princípio, apontado por Walter Benjamin, de que “o passado
coexiste no presente” problematizo as relações das experiências relatadas. A
perspectiva do presente me possibilita pensar as relações de poder em torno do que
se constitui como memória atual sobre esses artistas, buscando dessa forma,
construir uma problemática possibilitadora de uma investigação que assuma um
caráter prospectivo, inserindo-se assim, num campo de resistência. Sem deixar de
lado o aspecto de que os relatos são produtos do presente e da forma como essas
pessoas constroem suas memórias a partir das abordagens.
22
É importante destacar que existem proximidades nas narrativas e que todas
possuem um eixo que nos ajuda a compreender a música como prática social
profundamente vinculada à existência dessas pessoas. Muitos tiveram seus
interesses pela arte despertados durante a infância, de forma intuitiva e criativa, mas
também pela sensibilidade das percepções de seu entorno. Isso nos ajuda a
compreender as escolhas e os caminhos percorridos por esses artistas, sobretudo
por nos dar a dimensão do significado da arte para eles.
O eixo a que me refiro somente foi identificado após a realização de todas as
entrevistas, há um brilho no olhar de cada um deles, um embargo na voz ao falar
das dificuldades, mas um sentimento profundo de satisfação pela convicção da
coerência mesmo em face de pequenas e grandes seduções ou decepções
desencadeadas pelas relações estabelecidas por parte da indústria cultural
brasileira. A isso podemos chamar de “amor à música”, “amor à arte”. Não num
sentido piegas e bastante clamado, mas no sentido de viver esse amor e de viver
por esse.
A arte como prática social coexiste com a mercantilização e com seus
subprotudos, jamais será superficial e com destino ao entretenimento enquanto
preservar a sua essência.
Viver da arte, sobreviver com os ganhos materiais da música tem sido
privilégios garantidos a poucos e isso nada tem a ver com a qualidade do que é
realizado e sim com os meios pelos quais ocorre a seletividade por parte dos meios
de produção e veiculação.
23
1.1 Terra, chão, gente e sensibilidades
25
sons: Para mim a música não está separada de nada, a música está em todos os
contextos. Quem pensar que não está tem que viver mais pra ainda aprender.
(Hermeto/Curitiba, 2015)
Esse contato possibilitou-me conhecer melhor a sua obra. O “bruxo”, como é
chamado, o é assim porque nele está contida toda a energia de uma vida.
7
Fotografia de Antônio Passaty, durante a entrevista realizada em Curitiba, 2015.
8
Versos entoados por Hermeto no início da entrevista (Curitiba, 2015)
26
atuante, interagindo de forma intensa com seu público o artista encontra motivação
para sua existência. Seus primeiros contatos com a música se deram de forma
intuitiva, ainda na infância, quando tirava sons de coisas inusitadas. No interior de
Alagoas, sem acesso ao rádio ou televisão sua criatividade viajava pelo seu mais
íntimo universo.
27
O “dom” da música, como ele diz, sempre esteve consigo, teve uma infância
libertária, juntamente com seu irmão vivenciava os sons que os cercavam. A
liberdade dada pelo pai e o incentivo da mãe foram preponderantes para que ainda
na infância explorasse seus instintos musicais. A intuição é um traço bastante
presente nas produções de Hermeto, que surpreende o público com seus improvisos
e produção de sons com os mais inusitados objetos. Na sua casa uma sanfona de
oito baixos, pertencente ao pai, possibilitou o contato com o primeiro instrumento
musical não confeccionado por ele mesmo:
28
ser albino seu pai o colocava debaixo de uma árvore enquanto trabalhava na roça e
em cima de um carro de boi observava os pássaros:
O autor nos ajuda a pensar o sentido do “popular”, para além do que vem
sendo significado por alguns estudos, o “popular” não está atrelado a um modo de
vida específico, são relações plurais constituídas em diferentes espaços e por
diferentes grupos sociais. O conceito de “mestiçagem” ao qual prefiro tratar como
“entre lugares”, de acordo com o pensamento de Homi Bhabha, nos impulsiona a
pensar o popular dentro de uma perspectiva de contatos, confrontos, assimilações e,
porque não dizer, conflitos diante dos processos de deslocamentos e dos contatos
com realidades antes não vivenciadas. As experiências e vivências dos artistas aqui
estudados nos proporcionam a noção de que há permanências, há traços
construídos ao longo da vida que se transformam sem que sejam extintos.
Distinguir os processos de massificação daquilo que é produzido e apreciado
pelos grupos populares é bastante importante, visto que ocorre historicamente uma
desqualificação, sobretudo nos processos de construções hegemônicas, que com
diferentes interesses, têm construído discursos que diminuem ou estereotipam
culturas não compreendidas em sua profundidade, essas práticas estão
constantemente relacionadas à ideia de poder e à necessidades de “superioridades”
que de fato não existem. São modos de pensar e cosmovisões diferentes.
Obviamente a música instrumental brasileira está longe de ser pertencente a
uma cultura de massa, muito pelo contrário, permanece na maioria das vezes restrita
a pequenos nichos, não recebendo das mídias os espaços merecidos. No caso dos
músicos aqui estudados o elemento popular, fruto de suas vivências e não de suas
aspirações, constituem suas obras como energia propulsora de suas relações com a
arte e formas de comunicação.
30
Airto Moreira fez um relato semelhante ao de Hermeto ao falar de sua infância
e seu primeiro contato com a música. Afirma que começou não necessariamente
tocando música, mas produzindo sons em Ponta Grossa, estado do Paraná:
31
Os bailes realizados nas pequenas cidades e vilarejos rurais, além de serem
palcos que possibilitavam uma insurgente profissionalização e aperfeiçoamento das
habilidades musicais, também eram meios de sobrevivência, visto que a “passagem
do chapéu” e a “paga” dos(as) donos(as) das festas rendiam, mesmo que pouco,
algum dinheiro aos artistas:
Os bailes eram festas longas que duravam, muitas vezes, por dias. Nessas
ocasiões a música desempenhava um papel significativo, de embalar as noites, de
trazer alegria e dança. Airto, com apenas cinco anos, vivenciava essa experiência
com encanto e apesar do cansaço permanecia ativo até o encerramento do baile. Ao
término do serviço, que desempenhava com alegria, havia o pagamento e o
merecido descanso. No entanto, relata que não conseguia dormir junto às demais
crianças, seu espírito inquieto o levava para outros lugares onde pudesse sentir a
energia das noites tocando e contemplando a natureza:
“(...) Um dia, aliás esse dia foi muito bonito... Eu tava assim,
não conseguia dormir ai eu desci a escada, abri a porta da
frente e sai... E tinha uma carroça, sem cavalo sem nada,
parada cheia de feno (...) Subi assim naquela carroça e deitei
no feno e fiquei olhando pra cima e tava tão bonita a noite,
muito bonita, uma coisa assim... E eu vi várias estrelas
cadentes, parecia até pra mim... Sabe eu fiquei assim, não é
possível... E ai tinha outra que passava e a minha mãe me
ensinou a dizer ‘Deus te guie’ quando caí uma estrela assim...
Deus te guie (...) Foi tão bonito que eu nunca mais esqueci,
uma coisa muito simples... E esse aí foi meu primeiro trabalho
e que me dava uma grana (...)”
33
É interessante observarmos que ao contrário da lógica evolucionista da
música brasileira que ignora e rejeita os estilos musicais provenientes das classes
ou grupos populares, mesmo às assimilando e modificando com interesses
comerciais, os modos de vida relacionados ao campo têm por diversas vezes
desempenhado um papel importante na literatura e na música. Grande parte do que
chamamos de música popular brasileira tem a sua gênese em experiências que se
harmonizam com a natureza e com modos de vida associados à ideia de
simplicidade, que na verdade são complexos e fontes de riquezas não valorizadas
pela parcela da população que assume o papel avaliador. Nos relatos de Airto e
Hermeto essas correlações são explícitas, a importância desses contatos e vivências
é evidenciada ao buscarem a memória do início de suas trajetórias e um estudo
mais profundo de suas produções posteriores poderá nos dar indícios da relevância
desses modos de vida em suas práticas.
Não obstante podemos também pensar nos mecanismos de exclusão, em
momentos em que o discurso de modernidade coloca em primazia modos de vida
relacionados aos ambientes urbanos. Ocorre uma simplificação das análises e ao
mesmo tempo a criação de estereótipos ao julgar que tudo que vem das zonas
rurais se relaciona à tradição como algo imutável ou ao “folclórico”. A diversidade
está para a arte assim como está para a vida, pessoas que partiram em busca de
trabalho nos centros urbanos preservam seus costumes, criam e recriam outras
relações com os espaços, relações essas que não podem ser simplificadas ou
descartadas.
A literatura e a música exemplificam muito bem a complexidade dessas
relações ao mesmo tempo em que permitem a junção de diferentes fazeres
permeados por estruturas de sentimentos diversos. Ao lidar com as emoções
captam aquilo que existe de mais sublime nos campos afetivos e emocionais.
É interessante notarmos que esses artistas se constituíram ao longo da vida,
iniciando suas caminhadas ainda na infância e sendo provenientes de famílias
humildes receberam o incentivo que lhes foi necessário para enveredar num campo
de atuação que não lhes possibilitava nenhuma garantia. Na verdade, a
sensibilidade e a criatividade surgem a partir da forma como visualizam e se inserem
no mundo.
34
Os processos de exclusão e de desqualificação são extremamente violentos,
pois não se trata apenas de banir o que não lhes é interessante do ponto de vista
comercial, mas de interferir drasticamente nas produções humanas e nas
elaborações artísticas. Ainda que não sejam determinantes, esses processos têm
nos roubado e interferido significativamente naquilo que poderia brotar de forma
espontânea. Obviamente existe resistência e as obras apresentadas por esses
artistas nos possibilita constatar o poder de resiliência e que a própria indústria
cultural brasileira passa a assimilar o que ganha notoriedade por meios diversos,
sobretudo, os emanados pela população.
As experiências vivenciadas nos centros urbanos são também elementos
constitutivos das obras aqui analisadas, como são os casos de Sérgio Ricardo e
Theo de Barros.
Theo nasceu numa família que já possuía experiências musicais, sua mãe
havia sido cantora num quarteto vocal nos anos 40, abandonando a carreira após o
casamento. Seu pai era diretor das Edições Associadas e também compositor e
músico. Com uma personalidade bastante introspectiva, Theo viu na música uma
forma de parceria, de companhia para as tardes solitárias ainda quando criança. Sua
observação das pessoas que frequentavam a sua casa despertou a percepção de
que também poderia compor, com acesso aos estudos e com o incentivo de seus
pais enveredou pelos caminhos das canções sem muitas expectativas de ser tornar
um profissional. O fato é que as conexões e a apreciação da arte forjaram suas
práticas e o potencial artístico logo foi verificado. A vida na cidade do Rio de Janeiro
35
e a convivência com artistas consagrados lhe atraiu para a música e lhe possibilitou
uma dedicação quase que exclusiva, só vindo a fazer um curso de graduação na
área de comunicação aos quarenta anos.
Theo afirma que tornou-se músico de forma espontânea e quando percebeu
já estava enfronhado no meio musical, convivendo com artistas mais velhos
percebeu que aquele era seu meio e que de fato desejava dedicar sua vida à
música.
Assim o fez e se constituiu como um músico bastante disciplinado e dedicado,
suas composições são frutos de suas vivências, mas também de estudos realizados
sobre a cultura popular brasileira. A temática do povo, bastante em voga nos anos
60 o levou a compor canções como o Menino das Laranjas, mais tarde interpretada
por Geraldo Vandré e Elis Regina.
Na entrevista concedida no bairro de Pinheiros em São Paulo afirma que
Hermeto e Heraldo foram a alma do Quarteto Novo, mesmo tendo se constituído
como artista nos centros urbanos de São Paulo e Rio de Janeiro valoriza as culturas
provenientes do Nordeste e assume essa influência em sua obra.
Heraldo do Monte nasceu em Recife, capital de Pernambuco e teve uma
formação musical teórica ao participar da banda e orquestra de seu colégio.
Também iniciou seus estudos musicais ainda na infância:
36
porém aos poucos vai se soltando e se entregando às brincadeiras e piadas, homem
forte ri dos desencontros da vida.
Ainda menino fez um teste juntamente com outros alunos em sua escola, um
teste de musicalidade em que precisava cantar a escala de dó. Foi um dos
selecionados dando início aos estudos na banda e na orquestra. Suas primeiras
execuções foram de músicas ditas eruditas e de dobrados, ao qual considera “uma
coisa militar”. O fato é que o estudo com o maestro lhe proporcionou conhecimento
sobre teoria musical, conhecimento esse que fora importante no início de sua
carreira profissional em Recife e depois em São Paulo.
Suas apresentações são repletas de expressões e demonstração emotiva, o
artista não concebe o fazer musical dissociado dos sentimentos que a música lhe
provoca. Os elementos populares estão presentes em sua obra e sua vivência num
bairro pobre de Recife também, suas músicas são extremamente elaboradas e seus
dedos deslizam pelas cordas do violão e da guitarra como quem brinca suavemente.
A experiência vivida por Heraldo Monte, no final dos anos 40, lhe possibilitou
a percepção das múltiplas culturas de seu estado natal, o tocar em troca de galinha
guisada, bate-bate e alguns trocados deu início a sua precoce carreira e a noção de
que poderia viver da música. Aparentemente uma brincadeira de criança, mas aliada
aos seus estudos de teoria musical lhe forneceu as bases para o desenvolvimento
de sua carreira.
Na orquestra de sua escola teve contato com o segundo instrumento, o
clarinete que apesar de sua seriedade e empenho não lhe chamou muita atenção,
não tardaria para que tivesse o seu primeiro violão e que desse início a uma parceria
que lhe acompanhou por toda a vida. Por volta dos seus dezesseis anos a partir do
método de clarinete, começou a estudar as cordas do violão, aprendeu afinação e já
tinha percepção das notas e dos acordes musicais, a princípio estudou sozinho em
casa.
37
9
No início da carreira nas boates de Recife não era possível ainda escolher
seu repertório, o gosto musical da clientela, a quem define como procedente de
“classe média alta” era o que demarcava as músicas que tocaria ao lado do pianista
Walter Wanderlei. Nas boates de Recife já se tocava Bossa Nova, estilo musical que
se tornaria amplamente popular no final da década de 1950. Mesmo tocando mais
9
Fotografia do acervo pessoal de Heraldo – Banda do colégio em 21 de abril de 1951.
38
tarde nas boates de São Paulo não se distanciaria dos estilos musicais de sua terra,
suas composições, influenciadas pelo Jazz ainda traziam expressões marcantes da
música nordestina.
Sidney Miller, também iniciou suas investidas iniciais na escola, foi aluno do
Colégio Santo Inácio e desde cedo demonstrou suas habilidades para a escrita e
composição. Aos 12 anos escreveu um romance e fez a ilustração com recortes de
revista. Com uma personalidade bastante tímida se dedicou amplamente aos
estudos solitários de violão, com o qual fez as primeiras composições. Tinha uma
grande sensibilidade e tom melancólico em suas canções, além de uma facilidade
para acompanhar músicas ao violão sem ajuda de cifras ou partituras, captava as
melodias “de ouvido”. Já na escola apresentou seus primeiros textos que dariam
origem à publicação de versos numa revista do próprio colégio.
Aos 18 anos dedicou-se mais intensamente à música e mais tarde tornou
pública sua composição “Pede passagem”, gravada por Nara Leão. Um samba que
pede passagem para “arrastar a felicidade pela rua” e que trás a dureza da vida do
“povo” e sua alegria diante de tempos de carnaval na saída de uma escola de
samba.
Sidney enveredou por caminhos diferentes dentro da arte fez cinema, teatro,
intensas pesquisas sobre cantigas de roda e na música transitou por estilos como o
samba, a marcha e as composições que apresentou nos festivais. Foi o primeiro
parceiro do sambista do morro Zé Keti. Apesar de sua timidez, estabeleceu grandes
parcerias no teatro e na música.
Em 1968 publicou o livro “João e o pó”, que já vinha escrevendo há alguns
anos, sendo apresentado pelo editor José Álvaro:
39
As palavras de José Álvaro trazem informações, dentro de uma escassez de
memórias dobre o artista, que além de expressar sua apreciação pela obra,
qualificam as produções de Sidney Miller, fazendo referência não apenas ao
romance cuja temática gira em torno das injustiças sociais sofridas por um homem
do “povo”.
Temática recorrente em suas canções, tais como a citada “Estrada e o
violeiro” defendida no Festival da Record de 1967 ao lado de Nara Leão e vencedora
na categoria de melhor letra, vencendo a canção “Roda Viva” de Chico Buarque.
Toda sensibilidade de uma breve vida se constituiu como uma obra que
infelizmente permaneceu desconhecida de grande parte da população chamada de
“grande público”, mas também de públicos mais restritos apreciadores de MPB. Não
somente a falta de reconhecimento afeta a vida de um artista, mas os caminhos, as
frustrações e os entraves em visibilizar aquilo que se produz. Lutas internas,
conflitos existenciais, sonhos guardados desde a infância e infortúnios dentre uma
sociedade que intenciona transformar a arte em mero produto de comercialização.
Como relatado por Joyce Moreno, um conjunto de fatores levou Sidney Miller
à tristeza e por vezes ao abandono ou simplesmente desistência temporária daquilo
que desejava fazer e o fez da forma que pôde.
As trajetórias relatadas nessa pesquisa têm seus altos e baixos, a vida
entregue à arte ou a arte entregue à vida não é feita somente de aspectos positivos,
a sensibilidade apurada, como vimos desde a infância desses artistas, evidencia
dores que estão presentes nas trajetórias de todos nós, mas também direciona o
olhar para a beleza, mesmo quando as abordagens são melancólicas e duras.
Geraldo Vandré despertou seu interesse pela música, também na infância,
nascido em João Pessoa observava desde cedo os cantadores das feiras livres, daí
venha talvez uma de suas características marcantes, a força e explosão de energia
poética de seu canto.
40
Para Geraldo a função primordial das canções é a comunicação,
característica que podemos observar em toda sua obra. O cantar forte não se
restringe a entonação de voz, muito mais além, se refere à força que estabelece um
vínculo com o público e que emerge dos sentimentos propulsores desse fazer. O
fato é que o menino Geraldo sempre foi um desbravador, passou pelo colégio
interno em Nazaré da Mata, onde deu indícios de sua postura questionadora e onde
iniciou suas práticas artísticas. A forma como observava a vida, as coisas de sua
terra e as pessoas de lá é constitutiva de sua obra e trajetória:
De forma poética, Sérgio Ricardo descreve em seu livro “Quem quebrou meu
violão” as relações iniciais que teve com a música. O olhar de uma criança para o
universo que o circundava ressalta a visão de mundo desse artista, as coisas que
lhe chamam atenção e as marcas de uma infância tranquila em Marília, interior de
São Paulo. Do hábito de ver poesia em tudo, música nos pequenos sons e pinturas
cunhadas pela natureza pode ter surgido a versatilidade desse artista, que além de
cantor e compositor é, também, cineasta e artística plástico, entre tantas outras
empreitadas.
Sua busca inicial talvez nos ajude a compreender a grandeza desse artista e
seus sentimentos em relação à música. Sua alma inquieta lhe garantiu a busca
contínua por aprimoramento, sua curiosidade de infância é observável ainda hoje,
sua empolgação e coragem de desbravar, de experimentar e criar o tempo todo são
importantes elementos para que possamos compreender os sentidos de suas
práticas. Estudou com afinco, desde os anos 50, sem parar. É interessante salientar
que a técnica sempre esteve associada a sentimentos profundos de admiração e de
determinação em fazer de suas produções fontes de comunicação e comoção em
seu público.
Retomando as questões que abrem esse capítulo, podemos observar o
significado da arte nas vidas dessas pessoas. As memórias das infâncias e os
primeiros passos na construção de suas identidades revelam o potencial criativo que
os acompanha durante toda a vida. Não há possibilidade de definir o conceito de
arte de forma universal, mas podemos aqui toma-lo como algo profundamente
relacionado aos modos de vida e à necessidade de expressar sentimentos e
convicções por veículos diversos. A produção artística revela traços das realidades
43
materiais em que eles viveram, suas relações com o lugar de onde vieram e tantas
outras experiências no decorrer da vida.
O domínio das técnicas é, na verdade, o fio condutor para que pudessem
atingir seus propósitos. A seriedade e paixão pela música podem ser constatadas
pelas trajetórias e pelas posturas adotadas. Dessa forma podemos ter noção do que
significa a persistência em meio a tantos entraves ocasionados pelo que chamamos
de Indústria Cultural Brasileira.
O final dos anos 1950 é demarcado por um forte discurso de modernização,
não por acaso o Presidente Juscelino Kubitschek, com seu plano de metas foi
chamado de “Presidente bossa nova”. Digo isso para enfatizar que o termo, para
além do cenário musical, assume uma ligação com os discursos e o momento
histórico do país, sem que haja uma ligação simplista com a musicalidade e sua
constituição. O termo bossa era utilizado com sentido de algo novo, moderno, tem
também suas origens etimológicas relacionadas às culturas africanas, mas que
assume no Brasil um significado relacionado a um “jeito” de ser, o que nos ajuda a
entender o sentido da “batida” característica do movimento bossanovistas vinculado
ao termo.
Na realidade as buscas por fusões musicais, não era algo novo e nem
inventado por um grupo determinado, havia várias expressões musicais, dentro e
fora do país que já vinham experimentando musicalidades e pontos de conexões,
criações e recriações a partir de várias culturas. A própria bossa nova enquanto
movimento que se torna hegemônico, tem nas narrativas a seu respeito muitos
silenciamentos de experiências de artistas que não tiveram a mesma projeção que
Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto. Em momento oportuno desejo
aprofundar o pensamento sobre esses músicos e arranjadores, na sua maioria
composta por negros, dentro de uma futura pesquisa mais ampla e específica.
É importe ainda destacar que Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo tiveram uma
relação bastante significativa, sobretudo no início de suas carreiras, com a bossa
nova. Fato que pode ser verificado nas suas gravações iniciais.
A musicalidade brasileira tem suas bases nas culturas dos povos originários,
nos contatos com europeus estabelecidos via colonização e depois com a chegada
dos povos africanos sequestrados de diferentes locais do continente, suas
expressões carecem de estudos mais profundos, mas é notória a diversidade e a
44
amplitude musical em nosso país. Como disse anteriormente, somos usurpados
desse conhecimento e aprendemos desde cedo que música brasileira é aquilo que
nos ensinaram a ouvir desde crianças. Em casa a mãe entonava cantos de negros
da Bahia e o pai a chamada “moda de viola” aprendida em sua terra natal Ibirá,
interior de São Paulo. O fato é que a música está presente em nossas vidas, em
diferentes espaços e estruturas, mas há os estilos e expressões legitimadas via
rádio e televisão e nesses veículos, salvo alguns programas intitulados regionais,
toca-se “música brasileira” em grande parte composta por artistas migrantes que
fizeram sua vida artística no que chamamos de eixo Rio/São Paulo.
45
1.2 Bares, boates, rádio e TV: Caminhos e descaminhos
47
me contou que a primeira pessoa a confiar nele para tocar piano foi Heraldo do
Monte:
Hermeto conta que esse pouco que aprendeu de piano, ainda em Recife ao
lado do amigo, foi o que lhe garantiu um de seus primeiros empregos quando
chegou ao Rio de Janeiro em 1958. Na boate de Fafá Lemos, na Rua Rodolfo
Dantas, substituindo o aclamado pianista João Donato. O músico afirma que Fafá
Lemos ficava surpreso com sua desenvoltura e que não compreendia como ele
conseguia acompanha-lo nas músicas com tão pouco tempo de experiência no
piano e sem ensaios. A resposta dada na época era: “Eu não sei meu filho, eu sinto”.
Ainda brinca durante a entrevista dizendo: “Se eu tenho ouvido pra tocar com os
passarinhos, como não tocar com as pessoas?”
Antes de trabalhar na boate de Fafá Lemos, Hermeto teve seu primeiro
emprego no Rio de Janeiro na Rádio Mauá de Pernambuco do Pandeiro, conta que
a rádio era apelidada na época como a “Emissora do Trabalhador”. Ainda como
sanfoneiro, trabalhava de dia na Rádio Mauá e à noite nas boates:
O desejo que investir sua vida na música era tão grande que mesmo
respeitando e amando a família não conseguia aceitar a ideia de voltar para casa,
acabou convencendo o irmão a ir juntamente com ele para Recife. Dois
adolescentes, com o pouco dinheiro ganhado no baile promovido pela escola, se
dirigiram à estação para comprar as passagens. Para poder comprar as passagens
e ganhar a autorização para viajarem sozinhos, Hermeto contou uma história triste
sobre uma tia que estava doente e que precisavam de qualquer forma ir visita-la, a
desculpa colou e assim conseguiram embarcar com destino a Recife:
49
Tamandaré, na época pra nós era mais conhecida que a Rádio
Jornal do Commercio, que era a rádio mais importante da
América do Sul. Bom, porque não tinha rádio na minha casa,
não tinha luz, não escutava nada, falavam e a gente ouvia
falar.” (Hermeto Pascoal, 2015)
“(...) Aí o Sivuca falou: Por que não traz ele aqui (...) Como eu
queria ficar perto do meu irmão, que a gente era uma dupla né
(...) Quando eu fui na Jornal do Comércio, não sabia pra que
era, que apresentaram nós três pro Pessoa de Queiroz, que
era o dono da Rádio Jornal do Comércio, que era a rádio mais
rica que tinha também, a mais importante do que a própria
rádio Tamandaré, a Tamandaré era rádios associadas. Aí
porra, quando o meu irmão disse assim e o Sivuca: porque
você não fica aqui também com seu irmão? Aí o doutor Pessoa
disse: Olha, vou comprar uma sanfona pra cada um... Como é
que eu ia voltar mais pra rádio Tamandaré? (Hermeto Pascoal,
2015)
O “Trio pegando fogo” realizou apenas essa apresentação, que inclusive era
um programa de rua com propagando do Sabão Português. De fato, não tinha como
dar continuidade à formação com tamanha disparidade. Logo colocaram Hermeto
para tocar pandeiro, procurando respeitar o contrato que já havia sido assinado
pelos pais. Ocorre que nenhum dos dois irmãos estavam satisfeitos com os
resultados obtidos. Foi nessa época que Hermeto conheceu Jackson do Pandeiro,
que atuava na mesma rádio e que já vinham se dedicando a cantar coco, mesmo
sem estímulo e pouco espaço:
“Aí o Sivuca viu e chegou lá, ele nem sabia disso que tinha
acontecido da gente ser mandado embora assim... Aí o Sivuca
me viu tocando, ele estava assim no escritório com o gerente,
até chamava-se Luís Torres, ele escutou a sanfona, gostou e
disse: Doutor Luís o que é isso? Que sanfoneiro que tá
tocando? Tocando que só a peste, como toca esse cara! (...) Aí
ironicamente o gerente da rádio, doutor Luís Torres, disse:
Sabe quem é? É um daqueles galegos que vieram pra cá como
refugos, só tão esperando terminar o contrato dele.” (Hermeto
Pascoal, 2015)
52
que ganharia bem mais que os 500 cruzeiros pagos pela Radio Jornal do
Commercio. Solicitou que rescindisse o contrato e que o levaria naquele momento
pagando sua passagem e tudo. A proposta não foi aceita pelo diretor da rádio, mas
rendeu um aumento significativo do salário e do respeito em relação ao trabalho que
vinha desenvolvendo.
Hermeto ainda trabalhou um tempo na Radio Jornal do Commercio, mas seu
irmão não aceitou a renovação do contrato e foi embora pra Rio de Janiero, onde
tocou na rádio Tupi, demonstrando também grande aprendizado na sanfona. Como
vimos anteriormente, não tardou para que Hermeto também fosse para o Rio de
Janeiro.
Por diferentes fatores o polo de atração Rio/São Paulo acabou por ser tornar
um eixo para onde artistas do país inteiro migraram em busca de trabalho e
evidência, visto que formou-se nessa região grande parte do aparato da Indústria
Cultural Brasileira, gerando uma concentração de artistas em busca de trabalho.
Isso ocorreu com os músicos, cantores e compositores que abordo na presente
pesquisa. Na entrevista concedida a Zuza Homem de Mello, Vandré relata o
caminho percorrido:
Geraldo Vandré, assim como os demais, teve experiências nas rádios locais,
principalmente em Pernambuco antes de vir para o sudeste, mas ressalta sua
experiência na Rádio Nacional no Rio de Janeiro no Programa Cesar de Alencar, um
programa de auditório bastante popular na época. Mesmo não tendo obtido o êxito
esperado, afinal não devia ser simples para um adolescente de 16 anos se ver
diante de uma plateia de auditório que chegava a comportar 600 pessoas, essa é
uma memória que evidencia ao falar dos primeiros passos de sua trajetória
profissional.
53
A Rádio Nacional do Rio de Janeiro é citada pelos entrevistados como alvo de
possibilidades, afinal nos anos 1950 o rádio ainda era uma das tecnologias mais
eficazes, não apenas de veiculação, mas também de produção musical, tendo em
vista seu rico estúdio de gravações. Era também um teste para cantores que
almejavam a inserção no “mercado” musical, um teste bastante duro pelo qual
Vandré não passou.
55
Copacabana era conhecida por suas boates, direcionadas à classe média alta
e Tom Jobim teve sua temporada pela noite antes do surgimento da Bossa Nova.
Essas boates se constituíam como importante fonte de trabalho para músicos e
cantores que iniciavam suas carreiras, tendo ali possibilidades de sustento, além de
contatos com músicos mais experientes que por vezes acabavam auxiliando de
alguma forma. Sérgio Ricardo substituiu Tom Jobim na boate Posto 5 e ele que tinha
uma formação clássica de piano e estava habituado a tocar jazz passou a se
interessar por música popular brasileira.
O jazz que já vinha se popularizando no Brasil há décadas era no final dos
anos 50 o repertório que dava o tom de modernidade e sofisticação ao cenário
musical, tendo vários adeptos não tardou a se tornar base para experimentações
que, entre outros estilos, daria origem à Bossa Nova. O contato de Sérgio Ricardo
com músicos como Tom Jobim e Newton Mendonça propiciou investidas nesse
insurgente movimento que viria a ser o estilo musical de suas primeiras
composições. Mas, sua primeira composição publicizada foi “Buquê de Isabel”,
gravada por Maysa ainda nos anos 50, canção essa que o tornou conhecido como
compositor no cenário musical da época.
56
No caso dos músicos essa lógica de estilo musical em voga gerava um tipo
de produção por encomenda que, ainda que lhes garantisse emprego, não os
satisfazia. No final dos anos 50 grande parte dos compositores que viriam a se
tornar visibilizados pela Bossa Nova se concentrava no Rio de Janeiro, rendendo
comentários de que São Paulo havia se tornado o “túmulo do samba”. Frase
atribuída a Vinicius de Moraes, sem que haja comprovações, evidencia uma certa
polarização em relação à concentração de artistas no Rio de Janeiro, até mesmo em
função da insurgente Bossa Nova.
Theo de Barros, apesar de carioca, relatou sua revolta em relação a essa
ideia e afirmou que no início da década de 1960 houve um movimento em São Paulo
para reunir compositores e cantores para mobilizar e incentivar as produções:
57
profissionalização. composição mais conhecida no início dos anos 60 foi de fato
Menino das Laranjas.
É interessante o seu relato sobre como surgiu essa composição:
“(...) fui passar férias no Rio, tava na casa de uma tia que tinha
um apartamento em Copacabana, nessa rua mesmo todo
sábado tinha uma feira e uns meninos tinham uns carrinhos de
rolimã um caixote que botavam rolimã pra carregar as compras
das senhoras e no fim da feira geralmente os caras te davam
uma laranja, um limão pros meninos venderem, negocio de
sobra né, então eu tinha que passar, eu tinha que passar pela
feira inteira, e fui observando isso ai me veio a ideia do menino
da laranja, a ideia surgiu nessa situação, mas eu fiz a música
em São Paulo (...)” (Theo de Barros, 2015)
Uma canção de temática social, que aborda o dia a dia de um menino que vai
pra feira vender laranjas para sustentar a família que mora no morro. Theo, assim
como muitos outros artistas, era pertencente a uma família de classe média, mas
desde cedo se interessou pelas realidades vivenciadas no país.
O fato é que o compositor nem sempre é reconhecido pelos seus feitos e até
os dias atuais a canção é apresentada, regravada e pouco se fala a respeito de seus
criadores. No que diz respeito à Disparada, quando veiculada, Vandré e Jair
Rodrigues ainda ganham maior notoriedade. Segundo Theo, ele nunca esperou por
reconhecimento, assume a postura de quem trabalhou muito pela música e não se
arrepende, mas o tom de sua voz e seu olhar transmitem a dureza da trajetória e as
marcas deixadas em seu caminho como artista.
Ainda sobre o início de sua carreira ressalta as dificuldades de quando tocava
na noite, nas boates de São Paulo. Diz que trabalhava mesmo por amor, porque
nunca se tinha uma garantia em termos de trabalho, que por vezes gastava o último
dinheiro pra pagar o transporte até a boate e quando chegava lá o diretor dizia que
não haveria possibilidade de tocar naquela noite:
58
dinheirinho todo dia, mas eu nunca fiquei em casa compondo
me dando ao luxo.” (Theo de Barros, 2015)
“É verdade, tem músico que não liga muito pro que o cara tá
cantando, por falar nisso o negócio da disparada, o Jair só
cantava sorrindo né, você sabe disso e a gente tava receoso,
não sei quem teve a ideia do Jair, acho que foi a produção
mesmo da Record ou o Vandré mesmo, sei lá, eu sei que a
gente ficou preocupado, o Jair vai cantar a disparada rindo, ele
tem o caguete de cantar rindo, a gente pensava que era um
caguete, mas depois a gente falou com ele, ele falou – Não, eu
não vou rir hoje não, aí não riu realmente, ele sentiu o espirito
da letra e cantou legal.” (Heraldo do Monte, 2015)
60
vista a sua essência, acabou por reunir Airto Moreira, Theo Barros e Heraldo Monte,
formando o Trio Novo.
Nesse momento Hermeto Pascoal ficou de fora, por uma atitude
preconceituosa de Lívio Rangan, o produtor. Hermeto é albino e na visão de Lívio
não “ficaria bem” entre as noivas vestidas de branco que desfilariam naquela
ocasião. Apesar de contrariado, Geraldo Vandré iniciou a turnê juntamente com o
Trio Novo.
A Rhodia, empresa francesa que se estabeleceu no Brasil em 1919, com uma
fábrica de lança-perfumes e mais tarde no ramo de tecidos, tinha um estande na
FENIT (Feira Internacional de Indústria Têxtil) e intercalava desfiles de moda com
shows. Vandré cantava acompanhado pelo Trio Novo, que depois deu origem ao
Quarteto Novo, com a entrada de Hermeto Pascoal. Airto Moreira na percussão,
Heraldo do Monte na viola, Theo de Barros no violão e o Hermeto Pascoal no piano
e na flauta, assim surgiu uma das mais importantes expressões da música
instrumental brasileira.
A partir de 1966 o Quarteto Novo tocou exclusivamente com Vandré, o
acompanhou em vários shows pelo Brasil e ganhou notoriedade, despertando o
interesse de outros cantores, como por exemplo, Edu Lobo.
Os arranjos na canção Disparada e a participação do conjunto musical na
elaboração desta canção são significativos para o impacto que teve entre o público
dos festivais:
“(...) o Vandré queria um som de tiro de rifle (...) Ai, mas o que
que tem esse som? Ai pensei: a queixada de burro tem esse
som, mas eu nunca vi uma aqui em São Paulo. Ah, vamos
procurar... Procuramos e encontramos, tinha um percussionista
que morava até fora da cidade, não me lembro o nome dele
infelizmente, mas ele tinha uma queixada de burro, ai o Vandré
encampou a queixada de burro e comprou ou alugou sei lá... E
ai a gente tocou “Disparada”, ai ficou: (cantando) Na boiada já
fui boi... pá, pá, pá/ Boiadeiro já fui rei... pá, pá, pá (...) e
ganhamos em primeiro lugar.” (Entrevista com Airto Moreira no
programa Ensaio da TV Cultura em 2003)
10
Depoimento de Nilce Trajano (ex-mulher de Vandré) no Documentário “O que sou nunca escondi”
de 2009. Direção e produção de Alexandre Napoli e Helena Wolfenson
62
Theo relata que, após o ingresso de Hermeto Pascoal, permaneceram
durante um ano mantendo exclusividade com Geraldo Vandré, o acompanhando e
estudando ao mesmo tempo para que pudessem realizar o desafio lançado e
abraçado por eles.
63
Os estudos realizados pelo Quarteto Novo, juntamente com Vandré, os
remetiam para as canções que costumavam ouvir na infância e na juventude. Num
momento em que o Jazz dava o tom, o projeto empreendido por esses artistas ia
totalmente na contramão do que estava estabelecido. A busca de um repertório com
“essência” brasileira fez com que retomassem as experiências de violeiros,
cantadores de feira e também de Luiz Gonzaga em seus estudos sobre o baião.
Heraldo afirma que o desafio da improvisação surge de “dentro pra fora”, não
é algo que está subordinado à técnica, surge muito mais dos sentimentos e da forma
como o músico se entrega. A criação da linguagem utilizada pelo Quarteto Novo não
pode ser resumida apenas ao que ouvimos no disco, até por questões relacionadas
à tecnologia daquele momento, à forma como os discos eram gravados não permitia
a sobreposição de sons, então os improvisos eram mais perceptíveis, segundo
Heraldo do Monte, nos momentos em que se apresentavam em shows. O músico
afirma que não fizerem muitos shows para além dos festivais, mas destaca um show
que fizeram numa boate da Rua Augusta em São Paulo, diz que não estavam muito
empolgados para tocar na boate, brinca dizendo que naquele momento eram
“metidos à besta” e que cobraram um alto cachê, que surpreendentemente foi aceito
e pago.
O “Quarteto dos Festivais” como foi chamado pela Revista InTerValo, uma
revista popular dos anos 60 que abordava notícias sobre os “famosos”, é
apresentado como um dos importantes grupos no ano de 1967. É possível analisar o
destaque dado aos acompanhamentos de Vandré (Disparada) e Edu Lobo (Ponteio).
64
Há complexidade na fala
atribuída a Theo de Barros,
visto que percebemos a
variedade das referências
musicais dos artistas. O
significado atribuído a então
chamada “música regional”
relacionando-o ao que é
chamada de música popular
brasileira nos possibilita
problematizar questões já
apresentadas inicialmente,
evidenciando a dicotomia entre
o nacional e o regional.
O que observamos em
Disparada é, por exemplo, fruto
de uma construção que aborda
experiências do sertão, com
personagens brasileiros. A “regionalização” das músicas ocorre muito mais em
função de discursos externos e hegemônicos do que na própria constituição das
composições.
O Quarteto Novo acompanhou também Sérgio Ricardo, no Festival de 1967,
promovido pela Record, na tensa apresentação da canção Beto bom de bola.
Heraldo comentou em sua entrevista que naquele dia somente ele permaneceu no
palco com Sérgio Ricardo, porque ninguém conseguia escutar o que o quarteto
estava tocando, nem mesmo o cantor conseguia acompanhar o som:
65
No dia em que Sérgio Ricardo “quebrou seu violão”, a tensão e a conjuntura
do festival da Record, segundo Heraldo, não eram favoráveis à música, ele define
como um espaço de “luta livre” propício para a qualquer tipo de atividade, menos
para uma execução musical, que exige concentração por parte dos artistas. As
vaias, problematizadas mais adiante, e a formação de verdadeiras torcidas por um
ou outro artista podem ser significadas politicamente pelas características do
momento vivenciado no país, mas do ponto de vista do músico acarretavam
problemas que comprometiam as apresentações musicais.
No final de 1968, após a promulgação do AI-5 Geraldo Vandré foi obrigado a
sair do país, tendo em vista a repercussão e as implicações de sua canção “Pra não
dizer que não falei de flores”, apresentada no III Festival Internacional da canção
promovido pela Globo, além das pressões que já vinha sofrendo por conta de seu
posicionamento. Com a saída de Vandré o Quarteto Novo ficou sem o financiamento
de suas atividades e mesmo buscando outros caminhos acabou sendo vencido
pelas dificuldades.
Os músicos ficaram juntos por aproximadamente três anos, chegando a
ganhar o prêmio de melhor conjunto instrumental do Brasil e mais o Troféu Imprensa
por duas vezes, como ressaltou Theo de Barros. O término da parceria é algo que
evidencia que as circunstâncias materiais não eram favoráveis:
67
Capítulo 2. Indústria Cultural Brasileira, tensões e suas relações com a música
11
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História p. 222. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
política: Ensaios sobre a Literatura e História da Cultura: São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.
12
Termo utilizado por Sérgio Ricardo no livro “Quem quebrou meu violão” para se referir aos donos das
emissoras, gravadoras e seus produtores.
68
crítica, constituem pontos estratégicos que não impedem a existência dos primeiros,
mas que se colocam como mediadores da seletividade do que deve ser ecoado e do
que deve ser esquecido.
69
2.1 Mediações e produções musicais
Grande parte da música gravada e veiculada no Brasil passa pelo crivo das
percepções e expectativas de mercado que levam em consideração as concepções
de cultura e cultura popular a partir da ótica euro ocidental. Isso compromete
profundamente as produções, dando o tom do que tem valor e interesses de difusão.
A constituição do público alvo dimensiona e direciona o tipo de arte a ser
destinada ao “consumo”, esse é o problema central das discussões aqui
apresentadas. Visto que os artistas que estudo não se encaixavam nos moldes pré-
estabelecidos, configurando dessa forma uma imensa lacuna no que se refere aos
trâmites e tratos com a lógica do mercado.
O conceito de MPB foi sendo compreendido ao longo desse trabalho, muito
mais em função das experiências analisadas do que das abordagens
historiográficas. Uma escolha, tendo em vista a necessidade de aprofundamento e a
complexidade das informações obtidas. A princípio, num diálogo com a obra de
Marcos Napolitano (2007), reconheço que a construção da nomenclatura se deu
muito mais por fontes externas, por “sociólogos e ideólogos” do que pelos próprios
artistas envolvidos, como percebi a partir dos relatos.
Por meio das entrevistas pude verificar que a necessidade de “rótulos” e o
aprisionamento a questões estéticas não eram alvos das preocupações, pelo menos
não das pessoas com as quais conversei, isso não significa que passaram ilesas
pelas pressões mercadológicas, gerando processos de “negociação” e “mediação”
das obras, ainda que houvesse resistências. O fato é que o termo foi cunhado e a
MPB acabou sendo assimilada como gênero musical, que aglutinava expressões
diversas da música, movimentos que dialogavam com o popular, como o “samba do
morro”, por exemplo, mas que produziam suas releituras e ressignificações. A
televisão e o rádio têm grande contribuição para a ascensão e consolidação do
termo.
A principal fonte de questionamento é o significado da sigla, Música Popular
Brasileira, visto que ao se consolidar como tal gerava uma dicotomia em relação às
expressões que não de enquadravam nos moldes estabelecidos pelo “mercado
musical” e aspectos culturais. Aliás, música popular brasileira (com destaque para as
letras minúsculas) pode ser concebida como todas as expressões criadas em solo
70
brasileiro dentro de uma perspectiva popular, no sentido amplo do termo, e é
exatamente nesse ponto em que surge o dilema, pois na minha concepção a
infinidade de expressões que temos e já tínhamos dentro do período abordado não
cabem nos enquadramentos veiculados e consumidos pelo público que
acompanhava os festivais, programas de auditório e a programação das principais
rádios difusoras.
Ressalto que não questiono a importância da MPB, até porque tenho
trabalhado com temáticas que a contemplam e valorizo expressões que foram
incluídas nesses repertórios em seus diferentes expoentes, mas ao mesmo tempo
considero importante refletir sobre os discursos e certas confusões a seu respeito.
Dentro de uma conjuntura em que a música se constituiu como importante forma de
resistência e múltiplas experiências sonoras e ao mesmo tempo é fundamental
pensarmos nos interesses comerciais em torno das obras, advindos da indústria
fonográfica e dos meios de comunicação aliados aos discursos e significados
atribuídos ao “nacional popular” em meio aos processos de “modernização”.
Só gostaria de ressaltar que não há homogeneidade nem total
representatividade tanto no que se refere à produção, quanto à recepção das
músicas e das canções produzidas dentro do período analisado. Que a cultura
musical brasileira é constituída por uma gama imensa de sonoridades, nem sempre
evidenciadas ou até mesmo conhecidas.
Historicamente as pessoas que constituem grande parte do público
“consumidor” da MPB eram e são provenientes da classe média intelectualizada,
salvo raras exceções, que muitas vezes causam estranhamento, mas que elaboram
e reelaboram percepções a partir do lugar social que ocupam e de suas
experiências. Sendo assim, a ação de mercantilização das obras e suas superações
não são processos simples, mas conexos e concomitantes. Daí a dificuldade de
adotar teorias, desenvolvidas a partir de experiências específicas, como universais e
fecundas às análises que realizo. A comunicação com as “massas”, enfatizando o
equívoco conceitual do termo e problematizando o peso da homogeneidade, é
bastante restrita no início dos anos 1960, por questões materiais e possibilidades de
acesso.
No livro “Impressões de viagem”, Heloísa Buarque de Hollanda (2004) faz
problematizações a respeito das práticas culturais nas décadas de 60 e 70. Em meio
71
à conjuntura vivenciada no país e os processos de industrialização e modernização.
A autora analisa a composição dos movimentos culturais e as suas propostas de
forma crítica, diante da realidade de uma ditadura civil militar, relacionando-os à
concepção de literatura e de poética que adotam, que envolvem escolhas e estéticas
demarcadas pelas diferenças entre os sujeitos e os projetos em que se inseriam.
A forma como a arte foi significada, constituída, expressada e recepcionada dentro
da conjuntura analisada pela autora é bastante relevante para a presente pesquisa.
Nos ajuda a pensar e questionar o perfil do público e a forma como os artistas se
relacionavam com o mesmo. Além de promover reflexões a respeito da forma como
as culturas de “esquerda” e o público, em grande parte constituído por jovens
universitários(as) ligados(as) a essas culturas, se sentiam representados(as) por
alguns artistas ao mesmo tempo em que se distanciavam de outros, nos fazendo
refletir sobre os aspectos políticos que fundamentavam posturas frente ao que se
aproximava e ao que se distanciava dos projetos de sociedade almejados e
defendidos por esses sujeitos e a representatividade por meio da arte.
As produções de Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Sidney Miller, Airto
Moreira, Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal e Theo de Barros, ocorreram, em sua
maioria, durante as décadas de 1960 e 1970, período em que o Brasil vivenciou uma
Ditadura Civil Militar. Nesse sentido, é importante não perder de vista as relações
constituídas dentro de uma conjuntura de repressão e censura, mas também na qual
a música desempenhou um importante papel, no caso desses artistas, no campo
das resistências. É importante também pensarmos nas músicas e canções
produzidas ou nas formas de veiculação ocorridas na conjuntura dos anos de 1980 e
1990, período em que ocorreu um grande avanço das mídias e veículos que
envolvem a produção musical no Brasil e, em contra partida, a construção do
silenciamento a respeito dos artistas citados.
Tomei como foco a produção musical e as experiências dos artistas indicados,
ainda que aborde o cinema e o teatro devido aos trânsitos de alguns cantores e
compositores por essas linguagens, mais especificamente, nos trabalhos de Geraldo
Vandré, Sérgio Ricardo, Sidney Miller e Theo de Barros.
O contato com esses artistas, suas obras e trajetórias possibilitaram a
compreensão de que os processos criativos coexistem com a necessidade de
veiculação, ainda que diante dos mecanismos de exclusão continuem a produzir. Em
72
diferentes momentos das entrevistas e com diferentes sujeitos, uma fala foi
reincidente: existem obras “a espera da soltura”, e “mantê-las no baú” não é
simplesmente uma opção do artista. O fato é que a arte carece de liberdade e as
composições realizadas por esses homens foram muito mais produtos de seus
sentimentos e aspirações do que da demanda do mercado e das modelagens da
Indústria Cultural Brasileira.
Sérgio Ricardo falou-me a respeito dessas relações e do caráter de sua obra:
73
cinematográfica, mas passam também pelas emissoras de televisão e de
radiodifusão, assim como a imprensa escrita e os canais de críticas das obras.
74
O conceito de Indústria Cultural criado pelos pensadores Theodor Adorno
(1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), ambos da Escola de Frankfurt, foi
desenvolvido a partir da crítica à cultura de massa e da transformação da arte em
mercadoria. Tenho muitas ressalvas em relação ao que os frankfurtianos dizem a
respeito da “aura” da obra de arte e confesso que em muitos momentos verifico uma
tendência à sacralização e certa elitização ao indicarem a reprodutibilidade técnica
como problema central e sugerirem que o acesso das classes populares às obras de
arte a descaracterizaria.
75
Segundo Hall, o problema da ideologia, foco central de seu debate nesse
texto, é um tema que merece avaliação do que deve ser considerado, ainda que
revisto, e do que deve ser descartado. Formulações, como disse anteriormente, a
partir de uma ótica de uma realidade específica podem suscitar reflexões e
indagações propícias aos estudos aqui realizados, mas supor que dão conta do
debate estabelecido é no mínimo ingênuo.
76
Os seres humanos são imprevisíveis e a todo o momento as escolhas feitas
desenham nossas possibilidades, tanto de opressão quanto de emancipação, o fato
é que não há receitas possíveis, mesmo diante daquilo que já foi vivido, o olhar
do(a) historiador sobre o que já foi concretizado deve levar em consideração o seu
lugar social e as perspectivas e categorias de análise que o(a) auxiliam e/ou muitas
vezes o(a) aprisionam.
Neste trabalho abordarei mais especificamente as relações de produção
musical, para tanto é preciso conhecer um pouco mais sobre a trama que envolve a
indústria fonográfica e os demais tentáculos que promovem ou descartam o que aqui
é produzido e veiculado.
De imediato observo uma perspectiva de abandono daquilo que chamamos
de música popular brasileira, diferentemente do movimento inaugurado nos anos
1960 cuja denominação é MPB que ainda que passa, em alguns momentos por
rejeições de expressões específicas, em outros é elevada ao status de uma “cultura
elitizada”. Com isso quero dizer que a música produzida no Brasil foi e tem sido
constantemente cerceada e controlada pelos meios que assumem o poder e o
controle do que deve ser veiculado e do que deve ser descartado. Esse é um foco
primordial dos estudos aqui apresentados, as diferenças entre criação, concepção,
reprodução e formas de recepção. É preciso demarcar que cantores, músicos e
compositores da MPB que assumem a valorização das culturas populares e utilizam
em suas composições e apresentações formas musicais provenientes dessas
culturas também experimentam relações conflituosas com essa indústria cunhada
numa perspectiva de banalização ou desqualificação dessas expressões.
Fruto das marcas profundas de nossa diversidade cultural a música brasileira
é plural e sua riqueza não pode ser avaliada a menos que se proponha um estudo
profundo das múltiplas expressões para além daquilo que recebe foco de luz. As
teias da reprodutibilidade deixam de fora grande parte da produção musical,
relegando ao esquecimento ou circunscrevendo sua área de abrangência. Ou seja,
desconhecemos grande parte do que foi e é produzido no campo musical. Os
estigmas e discriminações em relação ao que vem das culturas populares não nos
permite o contato pleno com a dinamicidade de nossas criações. A forma como a
Indústria Cultural Brasileira opera tem constantemente excluído uma gama imensa
de expressões.
77
Assim como os demais aspectos de desenvolvimento, os níveis de exclusão
de grande parte da população e suas expressões é extremamente violento dentro de
uma sociedade capitalista com as nossas particularidades históricas. A arte tem sido
historicamente utilizada por diferente setores, que na maioria das vezes se sentem
como autoridades em determinar o que é arte e o que não é. Ocorrendo fenômenos
de assimilação, com interesses comerciais, e descarte ou folclorização no que se
refere às produções provenientes das culturas populares.
É importante observarmos que o discurso de “Identidade Nacional” no Brasil é
uma construção histórica ideológica em sua origem, que utilizou a música como
ferramenta de seus propósitos em diferentes momentos. A negação aparente dos
regionalismos e das expressões populares assume um caráter utilitário desses
propósitos, digo “aparente” porque o que fora forjado como nacional tem em suas
bases a busca recorrente da ideia de “povo” para constituição de uma nação, sendo
assim as “massas” brasileiras, ainda que diversa, foi amplamente estudada e a ela
atribuída significados de homogeneidade que não conferem com suas múltiplas
realidades.
Os fatores econômicos e o acesso aos chamados “bens de culturais” têm um
papel importante no que diz respeito às relações comerciais em torno da música,
assim como em outras linguagens artísticas, que passam por processos de
produção e difusão. Segundo a autora Márcia Tosta (2008) houve uma grande
popularização dos “toca discos” e “televisores” a partir do final dos anos 1960 e
1980, o que impacta diretamente as relações da indústria cultural brasileira com o
“mercado consumidor” de arte e, consequentemente com os artistas. Ela aponta que
nos anos 1970 a presença dos televisores chega a um percentual de 24, 1 nos
domicílios e o rádio a 58,9. Nas décadas seguintes esse percentual aumenta
vertiginosamente o que leva os diferentes “grupos empresariais” a se reformularem
em busca de maiores lucratividades.
O mesmo ocorre em relação à venda de “produtos da indústria fonográfica” no
Brasil:
“(...) A indústria não prescindiu da grande fertilidade da
produção musical dos anos 60, sobretudo a da segunda
metade da década, assim como a do início dos anos 70, e
constituiu casts estáveis, com nomes hoje clássicos da MPB,
tais como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal
Costa, Maria Bethania e tantos outros. Outro segmento
altamente lucrativo que se consolida, na época, como grande
78
vendedor de discos, é aquele nascido do movimento da Jovem
Guarda, uma das primeiras manifestações do rock. Renovado
por tal movimento, o mercado de canções românticas fez de
Roberto Carlos, cantor exponencial da Jovem Guarda, um dos
maiores vendedores de discos da indústria brasileira.(...)”.
(TOSTA, 2008)
79
durante os Festivais da década de 1960, mas depois por fatores que analisaremos
ao longo deste trabalho, passaram a ser descartados.
É importante também destacar que no emaranhado de “produtos musicais”
nacionais e estrangeiros que se popularizam via rádio e televisão, há expressões
importantes do ponto de vista identitário, como afirmei anteriormente, que chegam
até as populações periféricas e ganham projeções e ressignificações que “escapam”
do controle vislumbrado pela grande mídia e vão fomentando expressões
independentes, sobretudo, as relacionadas à música negra, o soul e o funk, por
exemplo, dos anos 70 e 80 e mais recentemente o RAP dos anos 90, movimento
transgressor que se constrói a revelia das condições materiais de reprodução e
difusão.
O conjunto de elementos que compõem a Indústria Cultural no Brasil deve ser
analisado minuciosamente, passando pelos adventos tecnológicos e culturais
analiso a partir das experiências abordadas seus impactos na produção e recepção
das obras aqui estudadas, não perdendo de vista o ciclo que os envolve, passando
pelos processos criativos e suas concepções, bem como os veículos propulsores ou
inibidores destas práticas. De início é possível notar que a grande indústria
composta pelo rádio, pela televisão, pelas gravadoras e pela imprensa intervém
diretamente na produção artística, mas que seus rumos são imprevisíveis.
O conceito de arte, assim como todos os demais presentes nesta pesquisa,
está em permanente construção, afinal após os estudos de Raymond Williams e Joel
Rufino, distanciei-me da possibilidade de estabelecer conceitos concluídos e
universais. Tomemos então como ponto de partida a dinâmica e as transformações
acerca do que analisei e aprendi sobre arte nos estudos realizados nesses últimos
anos.
O problema central e propulsor das minhas indagações sempre foram os usos
e anunciações a respeito da arte na sociedade brasileira, inicialmente numa
perspectiva “de baixo”, visto que nasci, cresci, estudei, trabalho e vivo na periferia da
Zona Sul de São Paulo. Num primeiro momento a arte me foi significada como algo
intocável, de exclusividade das elites na sua produção e apreciação. Não por acaso
o contato mais próximo, mais íntimo e mais acessível foi com a música. Nesse ponto
concordo com Mario de Andrade: “A música é a mais popular de todas as artes”. Ela
80
está presente em todas as estruturas, cultuada e também repelida, permeando as
lutas de classe e, sobretudo, as lutas culturais.
13
WISNIK. José Miguel. Algumas questões de música e política no Brasil: In: BOSI. Alfredo (org.)
Cultura Brasileira: Temas e situações. São Paulo: Ática, 1987. p. 115
81
Uma análise mais profunda da “lógica da sociedade autoritária” foi
fundamental para que pudesse compreender as especificidades da Indústria Cultural
Brasileira, sem cair nas armadilhas das receitas teóricas. A racionalidade ocidental
ao se construir proferiu um discurso de desqualificação de todas as demais culturas,
a cientificidade eurocêntrica rejeita a possibilidade de pensamento além de seus
limites geográficos, a isso nomearam: Modernidade. A mesma Modernidade que se
ergueu à custa do colonialismo e da escravização, que patenteou conhecimentos
oriundos do que chamou de Oriente, do continente africano e das Américas.
A tentativa de distanciamento da emoção e de separação entre corpo e mente
podem ser considerados processos danosos ao que chamamos de humanidade.
Dentro desta perspectiva a arte se torna banal, uma vez que o pensar, o fazer e o
saber são fragmentados e fragmentários. As feições utilitárias e descartáveis afetam
profundamente a percepção e a criação dentro das sociedades modernas. A lógica
cartesiana inaugura um mundo onde a beleza desempenha papel secundário ou
simplesmente pragmático.
O problema central dessas relações não são os meios de produção ou o
desenvolvimento tecnológico, mas seus usos a serviço dos interesses capitalistas.
Dessa forma, trago críticas e ressalvas às análises frankfurtianas, visto que a
reprodutibilidade e a difusão da arte não levariam a sua mercantilização e usos
escusos se não estivessem diretamente ligadas a projetos de sociedades
verticalizadas e desiguais, sejam elas capitalistas ou socialistas. Sendo assim,
Adorno e Horkheimer quebram o termômetro sem atingir a origem da febre, em
defesa da “aura” e do valor de culto deixaram de realizar a crítica à propriedade
privada da arte em sua produção e recepção.
Alguns dos aspectos centrais da delimitação da temática deste trabalho foram
as análises, ainda no mestrado, sobre o caráter autoritário da indústria cultural
brasileira em tempos de democracia. As questões apresentadas por Sérgio Ricardo
nos remetem à ideia de que a censura empregada em tempos de ditadura assume
novas roupagens, mas não se extingue com os processos de redemocratização. O
artista que transitou por diferentes linguagens e que na década de 1960, e que tinha
uma significativa projeção, ressalta a impossibilidade de difundir seu trabalho,
inicialmente por causa das proibições características do regime ditatorial, que de fato
o limitou e, assim como tantos outros, silenciou por meio da força, mas evidencia as
82
permanências dessas práticas nos levando às análises mais profundas a respeito do
carácter autoritário da sociedade brasileira.
A esse respeito, Marilena Chauí afirma que nossa sociedade tem profundas
marcas do que chama de “sociedade colonial escravista” ou “cultura senhorial”, onde
as relações de mando obediência são demarcadas pelo poder de quem está no topo
da estrutura hierárquica.
14
CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo. 2000. P. 87-88.
83
“(…) O sistema coloca na cabeça das pessoas um negócio do
sucesso, o sucesso é uma doença que graças a Deus eu não
fui contaminado por ela, porque é uma doença terrível, o sujeito
fica limitado naquela coisinha… que ele descobriu, que ele
inventou, sei lá o que… e fica nisso a vida inteira entendeu, há
muitos artistas brasileiros que fazem isso, é uma doideira… e
ficam naquela trilha e não querem mudar porque inclusive até
criticam quem muda… Eu fui muito criticado nessa história:
esse cara fica mudando pra cá e pra lá… Não sabe pra onde
ele vai (…) O problema é que eles ficam limitados… isso é
porque a exigência é da mídia… é do sistema, o sistema é que
quer desfrutar daquela descoberta até sugar tudo que pode
sugar daquilo… só deixa os ossos… é uma coisa terrível, eu
nunca entrei nessa, graças a Deus eu fui um rebelde” (Sérgio
Ricardo – Janeiro de 2015)
84
Os interesses em torno das “necessidades de mercado”, mediados e
anunciados pela Indústria Cultural, são permeados por tensões que envolvem os
“usos sociais da comunicação”:
15
MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.
Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. P. 290.
85
“Aquela coisa da moda, isso aí nunca me atraiu… Na época, a
gravadora que era um dos tentáculos do sistema na cultura
queria limitar (…) queria colocar naqueles escaninhos… Eu
digo: eu não quero ficar fazendo só aquela bossa nova, eu não
quero ficar fazendo só samba de morro, eu quero fazer samba
do nordeste, quero fazer o negócio do interior (…) Não estou
interessado nesse negócio da fixação em uma determinada
coisa não… e aí foi desinteressante pra eles porque… A não
ser o Aluisio de Oliveira que entendeu o meu processo, o meu
projeto de vida e que encarou em vários discos o meu trabalho.
Mas também fazia uma coisa bem particular, ele era agregado
a uma gravadora, quando aquela gravadora começava a
encher o saco ele partia pra outra...”
(Sérgio Ricardo – Janeiro de 2015)
16
Disco de Bolso – edição 1: o Tom de Antonio Carlos Jobim e o tal de João Bosco. 1972. RJ – P. 01
86
2008). O próprio lançamento do “Disco de bolso” foi uma tentativa de burlar o
sistema e buscar formas alternativas de veiculação, formas essas que escapassem
do “círculo vicioso” da exclusão, círculo esse que acabava por impor ao artista
caminhos de assimilação, ou seja, de submissão às intervenções em seu fazer
musical e a negociação e compra de espaço na grande mídia (jabá). Aos que
rejeitavam esses caminhos e não eram aclamados pelo grande público só restava
lutar, e lutar contra um gigante inimigo: “(…) O império tá lá impondo pra você uma
fabricação daquele mesmo chocolate (…) E aí é uma coisa terrível, eu quero fazer
chocolate, pé de moleque (risos), doce de leite, o diabo a quatro” (Entrevista com
Sérgio Ricardo, Janeiro de 2015).
A esse respeito há um relato de Hermeto Pascoal, que traz uma experiência
também vivenciada na década de 1970, quando foi chamado pelo produtor da
Odeon para uma proposta de gravação de um disco. Ao chegar se deparou com
uma lista de aproximadamente quinze músicas prontas para que ele gravasse:
87
que houve um processo de banalização e silenciamento de suas práticas.
Sérgio Ricardo viveu situações semelhantes e chama a isso de “coerência
ideológica”. Chama atenção ainda para as relações com a música depois de
gravada e as tensões empregadas pelo rádio e pela televisão:
92
notoriedade.
O caso de Sidney Miller chama atenção especialmente pelo fato de que nem
mesmo após a morte houve valorização ou veiculação do seu trabalho por parte da
mídia ou das gravadoras. O total “ostracismo” nos últimos anos de sua vida e
posteriormente a sua morte já foi destacado anteriormente por Joyce Moreno.
Há outro episódio ocorrido com Hermeto Pascoal e Grupo no Festival de Jazz
de Montreux em 1979, quando foram ovacionados, aplaudidos de pé durante quinze
minutos após a realização da abertura do show daquela noite. O espetáculo
impressionou a plateia e os organizadores do evento, sobretudo o diretor do festival,
Claude Nobs. O encerramento do show caberia à Elis Regina e seus músicos, sendo
que já haviam feito outras apresentações no mesmo local com casa lotada.
Ocorre que no final da última apresentação de Elis, o diretor Claude, sem
antes combinar com os artistas, convidou Hermeto Pascoal, que assistia na coxia,
para finalizar o espetáculo junto com Elis Regina. Surpresa para ambos, mas o
desafio foi aceito, a relação entre Elis e Hermeto era de reconhecimento e
admiração.
“(...) Daí que se criou uma coisa que eu quis derrubar Elis
Regina, porque eu acompanhei assim improviso né… e muitas
músicas eu mudei o acorde do original, que eu nunca faço
igual, nem as minhas músicas, quanto mais a dos outros e a
Elis Regina parava pra me escutar, pra curtir aquilo que eu
estava fazendo e os menos favorecidos de sensibilidades e de
percepção acharam que ela estava lá… a bichinha morrendo
de rir (…) isso tudo depois foi bem claro… Aí você nunca ouviu
falar que Hermeto Pascoal e Grupo em Montreoux, você nunca
ouviu falar. Tiraram isso tudo… Então agora como é que faz?
Como é que eu posso falar? O que é que eu posso dizer do
povo, desse pessoal que fez isso aí? Foram injustos, não?”
(Hermeto Pascoal, 2015)
94
informações são veiculadas de acordo com os interesses comerciais desses
veículos, o jogo de interesses e o tipo de repercussão que anseiam nada tem a ver
com o compromisso com a arte.
Os mecanismos de exclusão são evidentemente diferentes nas conjunturas
de ditadura e de “democracia”, porém, os projetos de sociedade que vivenciamos
não se contrapõem. Dessa forma, a Indústria Cultural Brasileira sempre se manteve
atrelada aos poderes hegemônicos e a relação dos meios de comunicação e difusão
da arte coadunam com os interesses econômicos e políticos. Conversei com Theo
de Barros a esse respeito, indagando as diferenças de tratamento de sua obra após
o processo de “redemocratização”:
Theo de Barros fala do término dessa experiência com bastante penar, isso
ocorre com todos os demais integrantes, e há evidências de que a ida de Vandré
para o exílio e consequente falta de financiamento, acabou por minar as
possibilidades de continuidade. A figura do empresário, tema em questão, é bastante
complexa. Evidentemente não pode haver generalizações, mas nesse caso
podemos compreender a insegurança gerada pela ausência do empresário, como
um importante articulador. Os aspectos administrativos são muitas vezes
enfadonhos para quem se dedica à arte e ao mesmo tempo as questões materiais
batem à porta, é preciso gerar recursos para continuidade do grupo, os músicos têm
suas vidas, suas famílias. Cabe ao empresário, dessa forma, fazer o grupo “decolar”,
arrumar trabalhos, mantê-lo no chamado “mercado musical”, visualizar as
oportunidades e, também, viabilizar as aparições.
O disco lançado pelo Quarteto Novo em 1967 se configura como uma das
mais importantes experiências da música instrumental brasileira. Projeto iniciado a
partir da busca de Geraldo Vandré de compor um grupo musical com o que chamou
de melhores músicos do momento. O grande desafio foi criar músicas com
elementos totalmente nacionais, sem intervenções do jazz, por exemplo. Os
improvisos, os arranjos, as composições fizeram parte de um projeto no qual todos
97
se embrenharam e permaneceram praticamente isolados. Essa concepção, bastante
audaciosa, necessitou de recursos, possibilitados por Vandré, e uma dedicação
quase que exclusiva por parte dos músicos. O resultado pode ser constatado no
único Lp lançado pelo grupo.
De fato, o fim do Quarteto Novo e a impossibilidade da gravação do segundo
disco são marcadas por dificuldades financeiras. A mercantilização da arte é muito
mais violenta do que podemos supor e encontrar um bom empresário parece ser
algo raro. Marcos Lázaro empresariou artistas renomados como Roberto Carlos,
Erasmo e Elis Regina e mesmo assim não se alinhava aos propósitos do Quarteto
Novo, segundo a fala de Theo de Barros.
100
“(...) o que acontece é que com o tempo o lado financeiro se for falar
você não recebe nada (…) Eles recebem tudo e não passam nada
praticamente pra pessoa que fez… E não é por causa do dinheiro que
eu reclamo não…. É por causa do público de não ter a chance que
deveria ter de comprar mais barato… é por isso que a gente botou na
internet (…) Esses discos todos gravados, todos tá de graça pra quem
quiser… e olha que as gravadoras ficam danadas comigo, mas eu
inclusive tenho o contrato, de rescisão do contrato que foi feito com
eles todos… Quem quiser assinar assine, quem não quiser que entre
com advogado… Justamente porque os coitados ligam, ligam pra lá
pra gravadora, que querem gravar uma música minha e eles pedem
mil reais… Já pensou, quanto dinheiro eles não ganham?! Entende?
Aí o que é que eu faço? Dei de graça, quem quiser é só pegar na
internet (…) se quiserem pedir pra mim, podem pedir pra mim (…) eu
assino, já assinei um monte, porque senão o coitado vai pagar mil
pra… e eu não recebo, eu não recebo mil real por mês, mil reais…
Que isso?! Por mês… seria dinheiro demais… Eles não pagam…
Então parei de brigar com eles… Vou fazer as coisas e cuidar das
minhas coisas… (Hermeto – Mov 8)
17
MIZUKAMI, Pedro Nicoletti. Função Social da Propriedade Intelectual: compartilhamento de arquivos e
direitos autorais na CF/88. Dissertação de Mestrado PUC/SP – 2007.
18
Idem
102
direitos autorais de execução pública musical do mundo.”19
Apesar de destacar a melhora em relação aos anos 50 e 60, Theo afirma que
está muito longe de ser o ideal. A ação do ECAD é ao mesmo tempo positiva, na sua
opinião, por regulamentar e centralizar as arrecadações que antes eram feitas por
diferentes agências, mas também é negativa por se filiar ao governo que é quem
autoriza as concessões. No final das contas o compositor e o músico são as
pessoas que menos ganham com a execução da obra, o direito de execução é um
percentual pago toda vez que a música for executada em quaisquer meio ou
instituição, esse percentual é geralmente administrado por uma editora contratada
pelo autor e a mesma é responsável pelo acompanhamento dos valores retidos pelo
ECAD.
105
2.2 Construção das imagens e silenciamento
106
“Embora se possa datar em torno de três séculos a
voga da notícia moderna (a antiga remonta às Atas Diurnas ou
crônicas do Senado Romano, em 59 a.C.), sua arrancada
mercantil, na segunda metade do século XIX, coincide em
primeiro lugar com a legitimação jurídica e política da esfera
pública, daí as suas possibilidades de tornar-se produto
industrial.” (SODRÉ, 1996, p. 131)
108
pela ditadura, é também citada na matéria sugerindo uma situação, no mínimo,
inquietante, visto que a partir da repercussão no meios militares e diante do cenário
de autoritarismo a ideia de uma possível cilada era de fato iminente. Não trata nesse
momento de questionar a veracidade das informações contidas na matéria, mas de
percebermos que todos os aspectos e apresentação da mesmo nos possibilitam
compreender a forma como a imprensa, no caso a Revista Veja, reconstruía as
informações evidenciando o que lhe interessava.
Ainda na mesma edição há outra matéria sobre o III Festival Internacional da
Canção em que a chamada enfatiza o tom de “protestos”:
110
A tabela apresentada no dia 25 de setembro de 1968, na Revista Veja, é no
mínimo curiosa, ao tratar de forma classificatória os resultados dos últimos festivais.
Pode-se observar nos itens “público e crítica” uma apresentação que sugere a
interpretação do “valor” que cada canção tem, interessante ressaltar que o item
“público” recebe o símbolo de cifrão, relacionando diretamente ao que podemos
chamar de “sucesso de vendas”.
A imprensa desempenhou um papel significativo para projeção de alguns
artistas, essa relação é bastante limiar, pois quando “necessário” atuou também na
111
desconstrução das imagens ou simplesmente silenciou a respeito de algumas
expressões, o que também traz implicações.
No dia 09 de outubro de 1968,
em meio à notícias sobre os discos
resultantes do III Festival
Internacional da Canção, um informe
sobre os mais vendidos. Nesse
momento vemos a canção de
Roberto Carlos em primeiro lugar de
vendas, tanto no Rio de Janeiro,
quanto em São Paulo. Paulo Sérgio
também se configura como um dos
mais vendidos ao lado de Antônio
Marcos, dos Incríveis e The Fevers.
Temos aí a ascensão do Iê iê iê, mesmo não tendo destaques no que foi
apresentado como produtos dos festivais, a Jovem Guarda desponta em vendas,
segundo a revista.
Fato bastante cômodo diante das tensões vivenciadas no III Festival
Internacional da Canção e dos rumos que o país tomava nas vésperas da
promulgação do AI-5. Nesse momento a censura prévia não havia sido instaurada,
mas as ações de repressão e cerceamento sim, o compacto de Vandré com “Pra
não dizer que não falei de flores” já estava sendo apreendido nas lojas e
veementemente proibido. A esse respeito nada foi comentado nessa sessão da
revista.
Daí a ideia de que o silenciamento em relação à determinadas expressões,
também se configura como questão importante a se refletir. O movimento que a
imprensa adota diante das informações é bastante peculiar e aquilo que era
divulgado coadunava com o posicionamento e os interesses do momento.
112
conhecimento do tempo presente, do cotidiano.” (SODRÉ,
1996, p. 136)
113
diferentes fatores, passando pelo descaso em relação aos artistas responsáveis pela
execução das músicas e pelo abandono que os compositores têm em nossa
sociedade. De forma conjunta a imprensa representa, também, o direcionamento do
olhar para determinadas expressões que numa via de mão dupla chama atenção do
público e da imprensa que verifica os níveis dessa atenção para que assim projete
luz sobre ela.
Uma relação bastante complexa, pois seria um erro afirmar que a imprensa
tem o poder de manipulação sobre o público, da mesma forma que seria dizer que
nada tem a ver com a constituição do que se torna atrativo. A observação da
realidade e o comportamento coletivo acaba por produzir uma noção de
homogeneidade que é devolvida em forma de notícia, exercendo assim uma certa
força que atua encobrindo as diferenças e comportamentos heterogêneos.
Há situações em que o fato noticiado passa por um tratamento que o
transforma em fato aspirado, não pelo público, mas por seus produtores. A
apreensão da realidade e sua devolutiva como informação ou conhecimento sobre
ela, não se dá de forma imparcial, em nenhum veículo ou forma. Sendo assim, a
notícia é também palco de subjetividades constituídas pelas experiências e
interesses.
A forma como as notícias são veiculadas comprometem diretamente a sua
veracidade, porém, como o espaço dado aos sujeitos relacionados é, na maioria das
vezes, limitado as versões que circulam acabam por se constituírem como única
versão dos fatos.
Quando Geraldo Vandré retornou do exílio, por exemplo, muitas foram as
afirmações de que ele não desejaria mais cantar ou se apresentar no Brasil. Essas
informações circularam por diferentes jornais e revistas sem levar em consideração
os seus esforços em regravar o disco “Das terras de Benvirá”, disco esse
apresentado à Divisão de Censura e Diversões Públicas, com várias canções
vetadas e depois liberadas. O disco não teve a repercussão que deveria e Vandré
permaneceu exilado em seu próprio país.
114
No dia 03 de outubro de 1973 a Veja noticiou o
cancelamento da apresentação que Vandré faria no
programa do Flávio Cavalcante. Destacando que os
censores apenas “sugeriram” que o quadro de Geraldo
Vandré não fosse ao ar e que não se tratava de uma
proibição.
A apresentação da gravidade da situação,
diante de uma postura “imparcial” da revista, não foi
feita, apenas a comunicação do que ocorreu. Vale
lembrar que em outras matérias os jornais e revistas
noticiavam que Geraldo Vandré se negava a
desenvolver qualquer trabalho artístico, como se essa
fosse a sua escolha.
A partir desse episódio podemos também
verificar a postura da emissora (TV Rio) e do
apresentador Flávio Cavalcante, que, aliás, era
bastante conservador, em cumprir a tal “orientação”. A
revista destaca ainda que pouco tempo antes Geraldo
Vandré havia se apresentado no Programa Haroldo de
Andrade na emissora Globo sem quaisquer proibições
ou repressões.
Um indício de que tanto a revista quanto as
emissoras de televisão não problematizavam as reais
causas da proibição da veiculação do artista e sua
obra. Ainda que citem o pronunciamento de Vandré ao
Jornal Nacional no momento em que seu retorno fora
anunciado, a pouco mais de um mês de seu retorno.
Geraldo Vandré retornou ao Brasil em quatorze
de julho de 1973, porém, mais de um mês depois, a
Rede Globo anunciou no Jornal Nacional a sua
chegada ao aeroporto de Brasília (em 18 de agosto),
momento em que sua polêmica entrevista foi
veiculada.
115
Novamente é possível observar que não há uma busca da coerência em
relação aos fatos noticiados, até porque o movimento de apuração e a escuta ativa
dos sujeitos não são práticas observadas por essa mídia.
A mesma revista apresentou em 18 de abril de 1979 uma matéria onde
apresentam Geraldo Vandré numa fotografia extremamente tendenciosa, visto que
as imagens para uma matéria são criteriosamente escolhidas para que sintonizem
com o texto que enfatiza a ideia de que o próprio Vandré se negava a se apresentar
artisticamente no Brasil.
116
Tanto a fotografia quanto o texto apresentam Vandré como um homem que
“nada tem a dizer”, ressaltado a frase que vem logo abaixo de sua fotografia: “nada
do que eu digo ou penso interessa”. São matérias como essa que vão constituindo a
imagem de Geraldo Vandré como louco, infelizmente essa é a versão que se
consolidou durante os anos posteriores ao seu retorno. Tarik de Souza termina seu
texto afirmando que Vandré está “condenado a um silêncio voluntário”, o que denota
que não houve um estudo dos próprios fatos anunciados anteriormente pela revista.
117
Já num período de abertura política a revista se arrisca a dizer que Vandré,
havia ficado retido na época de seu retorno ao Brasil numa cela da fundação Centro
de Formação do Servidor Público (Funcep) em Brasília, uma carceragem da Polícia
Federal. As informações são desconexas, uma vez que é sabido que Vandré ficou
pouco mais de um mês sob custódia da Polícia Federal e que, segundo o cantor e
compositor, esteve internado no hospital da FAB.
A criação do fato e a construção das notícias prescindem de averiguação e
apresentação das fontes. Dessa forma foi criada uma série de interpretações sobre
o que ocorreu com Vandré. Infelizmente, nenhuma delas contribuiu para a
aproximação da verdade.
O ano, 1968, conhecido mundialmente
como um ano de “explosões culturais”, no
Brasil uma conjuntura de acirramento da
repressão, dois dias antes do AI-5,
também, das resistências e intensificação
da luta armada. Os Festivais foram palcos
de lutas intensas e de demarcação de
posicionamentos. O fenômeno das vaias,
que chama atenção da revista Veja,
precisa ser analisado mais
profundamente, visto que não se tratava de uma avaliação criteriosa da qualidade
das músicas, isso como Vandré afirmou, caberia ao júri e mesmo esse estava sujeito
às tensões políticas. A plateia se dividiu em verdadeiras torcidas uniformizadas e
adotava uma postura cada vez mais intensa, permeada também pelas motivações
políticas e pelos alinhamentos com os(as) artistas que desempenhavam via arte
suas visões de mundo, afinal as percepções e expressões não são dissociadas
disso.
A evidência dessa matéria é para Gal Costa, Sérgio Ricardo e Tom Zé e o
questionamento: “para quem eles querem cantar?” denota uma postura
questionadora de seus fazeres. A visão que a revista apresenta do público é de que
o mesmo se cansa rapidamente das apresentações e ao afirmar que os(as) artistas
“dizem que são comidos vivos” ressalta um aspecto pouco aprofundado pela matéria
118
que é a dimensão que os festivais e as canções têm para esse público diante da
conjuntura apresentada.
Fundamentada pelos dados do IBOPE e pela capacidade de apreensão das
atenções voltadas para a veiculação do III FIC da Record na televisão, o constitui
como uma “doença”, mais precisamente como “câncer”.
120
análise é na verdade bastante subjetiva, mas é a nossa liberdade de dizer o que tem
significado a partir de nossas experiências que esteve e está em jogo.
121
Capítulo 3 – Fé, amor e mais nada: Iniciativas e resistências
20
Oportunamente citado no livro João e o Pó de Sidney Miller de 1968.
122
brasileira para que haja publicização e recepção dessas obras. Essa recepção por
parte do público depende em grande parte dos suportes como os discos, a
veiculação no rádio e televisão, além dos contatos diretos promovidos por meio de
shows. Nesse momento focarei nas discografias e seus percursos.
As reflexões que trago a respeito dos três cantores, compositores e
intérpretes que foram contemporâneos intencionam demarcar que as musicalidades
brasileiras coexistiram dentro da própria indústria cultural brasileira, muitas vezes
obtendo êxitos e, ainda que destoando do moldes pré-estabelecidos como “receitas
de sucesso” ganharam visibilidade e destaque dentro desse cenário.
É importante chamar atenção para as relações políticas dentro do cenário
musical dos anos 1960, no que se refere à Ditadura Civil Militar propriamente dita,
mas de forma articulada aos valores elegidos pela conjuntura de discursos
nacionalistas e busca, de longa data, de uma afirmação da Identidade Nacional com
novos moldes, mas que retoma características de iniciativas anteriores como na
implantação do sistema republicano e durante o Estado Novo. Os elementos da
construção da identidade do Nacional Popular têm nas artes um importante reduto,
assim como as demandas de modernização do país. Chamo atenção para as
distinções desses períodos e seus propósitos, mas também para as convergências e
utilização de discursos que atingem a constituição das culturas e das circunstâncias
materiais em que as músicas e as canções foram produzidas.
A “sofisticação” e domínio técnico da Bossa Nova, por exemplo, dialoga
diretamente com os modos de vida de uma população intelectualizada de classe
média branca, com raras exceções, consumidora e produtora desse estilo, ao passo
em que a evidência da valorização de estilos musicais denominados como
“regionais”, mesmo passando por reelaborações estéticas denotam o diálogo e
muitas vezes o embate entre o que foi significado de forma dicotômica como “novo e
antigo”, “moderno e retrogrado”.
A própria MPB, como expressão musical dos anos 1960 não passa ilesa pelas
questões culturais pulsantes desse momento histórico, afinal a cunhagem do termo,
seja pela imprensa, crítica musical ou mesmo pelos seus protagonistas deve ser
alvo do que se busca compreender como denominação e circunscrição do que é a
nova tendência e o que não cabe dentro dela. Tanto a Bossa Nova, quanto a MPB e
mais tarde o Tropicalismo vão criando nichos que, do ponto de vista estético e
123
político, geram as margens do que se produzia paralelamente, ou do que já vinha
sendo produzido anteriormente, estilos, ritmos e musicalidades nas quais bebiam
das fontes, mas que do ponto de vista comercial vão caindo no abismo do desuso ou
da falta de evidência e, por conseguinte da desvalorização, ainda que permaneçam
vivos e atuantes nos meios evidentemente populares.
O fato é que os artistas aqui estudados estiveram no interior das forças
constituintes desses paradigmas, mesmo que de formas diferentes e com evidências
e projeções singulares, participaram dos festivais promovidos pela Record, pela
Excelsior, mais tarde pela Globo, mantiveram contratos com as gravadoras, ainda
que diante de tensões e conflitos encontraram fendas para expressar o que
desejavam.
Para os artistas com os quais dialogo o final dos anos 1960 foram
impactantes de um ponto de vista negativo, gerando obstáculos e
comprometimentos dos projetos iniciais, contudo continuaram a compor e gravar. O
impacto maior se deu após o Ato Institucional N.5, quando suas dissonâncias foram
criminalizadas e suas vozes silenciadas pela força bruta do Estado.
As primeiras gravações realizadas por Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré
possuem fortes marcas da influência da Bossa Nova, como estilo musical recorrente
e impactante no início da década de 1960, período em que esses artistas gravam
seus primeiros discos, mesmo assim é possível percebermos características que
mais tarde se acentuariam de formas musicais diferenciadas do repertório e das
abordagens temáticas e melódicas desse estilo.
O primeiro disco de Geraldo Vandré, gravado pela Áudio Fidelity, em 1964,
traz composições suas como “Fica mal com Deus”, “Canção Nordestina” que se
configuram como as primeiras composições feitas somente ele no que diz respeito à
letra e melodia. É interessante observar que essas canções, diferentemente de
outras que realizou em parceria com Carlos Lyra e com Baden Powell, não se
enquadram nos padrões bossanovistas, trazendo muito dos elementos provenientes
de sua terra e das formas musicais dos cantadores das feiras livres. O LP é
homônimo, na parte da frente da capa uma foto de Vandré, do ponto de vista gráfico
um trabalho bem simples, o que chama mais atenção é a contracapa que contem
um texto assinado por J.L. Ferrete, produtor que tinha por hábito a produção de
textos onde apresentava os artistas.
124
Geraldo Vandré é apresentado como “uma figura de grande prestígio no
cenário musical do Brasil”, sobretudo pela composição de “Quem quiser encontrar o
amor” feita em parceria com Carlos Lyra dentro dos moldes da Bossa Nova e
“Samba em prelúdio” uma regravação da música de Vinícius de Moraes, feita
juntamente com Ana Lúcia. A respeito dessa canção, o produtor J.L. Ferrete ressalta
a tensão já relatada anteriormente, da proposta de que Vandré gravasse um disco
inteiro em parceria com Ana Lúcia, tendo o mesmo se negado a tal feito. O produtor
ainda destaca que, do ponto de vista, comercial essa foi uma grande perda frente à
popularidade atingida no momento.
Destaco baixo um trecho do texto de Ferrete, onde tece comentários a
respeito do perfil de Geraldo Vandré e suas características dentro do cenário
musical:
126
posicionamento político evidentemente
contra os princípios geradores e
mantenedores do golpe.
Gravado em 1965 com o selo
“Disco Lar” Gravadora Continental, traz
na contra capa versos iniciais de um
soneto de Camões: “Mudam-se os
tempos, mudam-se as vontades”. De
forma anunciada Vandré demarca o
lugar de onde fala, apresentando um
repertório já distante do estilo
bossanovista, se auto afirma como cantador de origem nordestina, exaltando
elementos das culturas afro brasileiras e intensificando as temáticas sociais. A capa
do disco traz a imagem de capoeiras ressaltando o potencial de luta dos grupos
populares e sua ancestralidade, numa conjuntura em que não aspira salvação de
cima pra baixo. É nesse disco que regrava “Asa Branca” de Luiz Gonzaga que em
consonância com o que ressalto no texto a respeito do descarte de importantes
artistas da música popular vinha sendo esquecido pela mídia e passando por sérias
dificuldades.
Nesse mesmo período Geraldo Vandré teve a importante experiência de ter
feito a trilha sonora do filme “A hora e vez de Augusto Matraga” de Roberto Santos,
baseado num dos contos de “Sagarana” de Guimarães Rosa. Esse foi um desafio
que levou Vandré a estudos profundos sobre as realidades e as culturas
relacionadas ao sertão mineiro, bem como a musicalidade presente nesse meio. O
filme já traz na apresentação a canção “Réquiem para Matraga” numa versão com
improvisos feitos por meio da voz de Vandré que vão se harmonizando com os sons
das cavalgadas dos personagens que se dirigem à Praça do Arraial com destino à
Igreja.
Os estudos e a participação de Vandré nesse trabalho foram preponderantes
para a composição de “Disparada”, que fizera em parceria com Theo de Barros.
Com uma letra “quilométrica” na primeira versão, como afirmou Theo, foi sendo
delineada e ajustada à melodia, já pensando na sua inscrição para o Festival de
Música Popular Brasileira de 1966, promovido pela Record. O fato é que houve uma
127
junção poderosa entre letra e melodia, cada frase alinhada à música, foi sendo
construída intencionalmente para expressar o sentimento e comunicar seu conteúdo.
Essa combinação foi potencializada pela interpretação de Jair Rodrigues, gerando
uma performance de grande energia poética e causando um forte impacto no
público.
As expressões e os gestos de Jair Rodrigues se sintonizaram com o arranjo
musical e a imagem constituída no palco, com destaque para a queixada de burro
que demarcava o som de “rifle”, compondo os elementos musicais, juntamente com
a viola e o violão. Essa apresentação não foi feita com o Trio Novo, que no momento
estava numa turnê da Rhodia juntamente com Vandré. Tanto os músicos quanto Jair
Rodrigues desempenharam a execução da canção de forma dinâmica e à altura do
que os compositores desejavam expressar. “Disparada” ficou classificada em
primeiro lugar, juntamente com a “Banda” de Chico Buarque de forma inédita nos
festivais.
O personagem central de “Disparada”, segundo o próprio Vandré traz
referências de “Augusto Matraga” e as suas transformações apresentadas no conto
de Guimarães Rosa. Um homem do sertão que se vê diante de uma situação onde o
poder que exercia é rompido, a forma violenta como agia antes se volta contra ele e
percebe que na verdade possui fragilidades num processo de reconhecimento de
sua humanidade no contato com pessoas que o ajuda num momento em que chega
perto da morte. Os trechos da letra abaixo evidenciam esse processo de
transformação
129
diferentes estilos e temáticas reafirma que “não separa dor de amor” e que esse
amor pode ser por uma pessoa, por um povo e por suas culturas.
As características da obra de Vandré, assim como de outros compositores
como Sérgio Ricardo, levaram a ànalises da crítica musical e posteriormente de
estudiosos da música brasileira como elementos do que chamaram de Nacional
Popular. Como uma postura de rejeição às influências de musicalidades
estrangeiras como o jazz e, sobretudo o Rock.
Vale lembrar a “Marcha contra as guitarras”, ocorrida em julho de 1967, da
qual Vandré, Elis Regina e Sérgio Ricardo participaram, num momento em que o
programa da TV Record “O fino da Bossa” perdia audiência para “As jovens tardes
da Jovem Guarda”. Analiso essas relações de conflitos no cenário musical do final
dos anos 1960, por meios das entrevistas realizadas, como busca de autoafirmação
e disputa por espaços importantes dentro da dinâmica da indústria cultural brasileira,
num momento em que, do ponto de vista comercial, a música estrangeira e as
expressões nacionais influenciadas por essa vinham se tornando hegemônicas.
Existe uma complexidade nesse tipo de análise, visto que o país passava por
momentos de extremismos gerados por questões políticas e processos de
intervenções estadunidenses que sem dúvida permeavam as posturas adotadas no
cenário musical. Há também a imposição de modelos e estéticas dentro de uma
lógica evolucionista da música brasileira, dentro de um discurso de modernização,
que de certa forma afetava as produções, sobretudo pelos interesses comerciais em
torno da veiculação e da venda dos “produtos”.
As expressões podem ser classificadas como extremistas, nacionalistas ou
retrogradas de acordo com os recursos, posicionamentos e possibilidades de
análise. As percebo como formas possíveis de resistência, preferindo não qualifica-
las de forma dicotômica como corretas ou erradas, mas como caminhos encontrados
naquele momento, por aqueles sujeitos motivados por sentimentos diversos no
campo da música e suas relações com a política.
É nesse cenário que Geraldo Vandré produz seu quarto LP “Canto Geral”
lançado em 1968 pela EMI-ODEON. Momento conhecido por nós como de extremo
acirramento da repressão e também da luta armada contra a Ditadura. Num contexto
geral, foi um ano de grandes transformações e questionamentos políticos, estéticos
e morais.
130
Na capa do LP, a reiteração contida em “Disparada”, a relação entre “gado e
gente”, ainda que essa canção não faça parte do repertório. O disco é marcado por
canções com estéticas e temáticas similares. Na contra capa versos de Bertold
Brecht: “Desses tempos em que falar de árvores é quase um crime, pois implica em
silenciar sobre tantos erros – aos que virão depois de mim”. Dessa vez o texto de
apresentação do LP é escrito pelo próprio Vandré, enfatizando o sentido de “Canto
Geral”. Retomar os versos de Bertold Brecht, em março de 1968 significa trazer um
discurso de resistência, de crítica a um Estado autoritário, bem como a sua
sociedade também autoritária, que não permitem a expressão da beleza, tal como
concebida pelo artista, que gera uma circunstância de opressão tamanha e de
131
violação de direitos essenciais que acabam por desencadear uma oposição
expressa de diferentes formas, entre estas, a arte. Sendo a arte produto das
experiências sociais, não havia para Vandré, diante do posicionamento adotado,
como não falar das coisas que via e que vivia, não falar “de tantos erros”.
132
parcerias e a própria inserção e espaço dentro das gravadoras são fundamentais
para a produção e veiculação de suas emoções e pensamentos traduzidos em
canções.
A canção “Cantiga Brava”, uma das que integram esse LP fez parte da trilha
sonora do filme “A hora e vez de Augusto Matraga”, há outras com estéticas
similares que indicam a influência desse trabalho nas composições posteriores a
essa experiência.
Grande parte dos vídeos que contém interpretações de Geraldo Vandré foi
“perdida”, incluindo sua apresentação no Festival Internacional da Canção de 1968,
realizado pela Globo, com a canção “Pra não dizer que não falei de flores”, havendo
apenas a preservação do áudio. Como analisei na dissertação de mestrado isso faz
parte do processo de apagamento da memória sobre o artista, dificultando o acesso
às expressões importantes. Os motivos desse “apagamento” são ainda
desconhecidos, mas diante das tensões que envolvem a perseguição e a repressão
que sofreu dão indícios do processo violento de “exílio em sua própria terra”.
No LP “Canto Geral”, há a canção “Arueira”, cujo um vídeo produzido pela
Record foi preservado, nos permitindo analisar, além do áudio a performance do
cantor e compositor.
133
A canção que já havia sido lançada num compacto em 1967, tem uma
temática que aborda o antagonismo entre “o dono senhor de tudo”, caracterizado
pela violência e pela exploração do trabalho e o trabalhador que consciente de sua
condição aponta para a possibilidade de reversão das opressões, sinalizando que o
“jogo” pode virar e que quem um dia oprimiu pode e deve assumir as consequência
de tal ato, numa perspectiva de justiça social, como já observamos em outras
canções.
No vídeo, Geraldo Vandré, acompanhado pelo Trio Marayá e pelo Quarteto
Novo, a canção é iniciada com uma melodia marcada com ritmo lento, o cantor
coloca-se diante da plateia com uma expressão séria, e imponente, mantida nos
primeiros versos: “vim de longe vou mais longe/ Quem tem fé vai me esperar/
Escrevendo numa conta pra junto a gente cobrar...”. Com a evolução da canção a
melodia acompanha a voz que atinge um tom mais reflexivo, como se estivesse
visualizando as transformações que anuncia. Ao cantar o verso “o dono senhor de
tudo/ Sentando mandando dar” sua expressão é de raiva, de reprovação, sua voz
assume um tom mais grave. A dinâmica é mantida até chegar aos vesos:
“Marinheiro, marinheiro quero ver você no mar/ Eu também sou marinheiro/ Eu
também sei governar/ Madeira de dar em doido vai bater até quebrar...”, em meio a
uma explosão sonora num alinhamento melódico que comunica num ritmo mais
acelerado a “volta do cipó de arueira no lombo de quem mandou dar”. 21
José Miguel Wisnik no texto, “Algumas questões de música e política no
Brasil”, afirma que a música mantém com a política um vínculo operante e nem
sempre visível, nesta afirmação, a questão central não se refere à letra e sim à
música, a melodia que compõe em conjunto com a letra a canção. Wisnik afirma que
a música atinge os seres humanos de forma a provocar um desencadeamento de
sensações e sentimentos que podem provocar reações diferentes de acordo com os
seus ritmos. A sua utilização se dá de forma ampla, podendo ser com propósitos de
manipulação (como é o caso das propagandas) ou de resistência. Ou seja, a
melodia, o ritmo e a harmonia de uma música são fundamentais para a recepção de
suas mensagens.
21
Para um maior aprofundamento sobre a trajetória e produção de Geraldo Vandré indico a dissertação que fiz,
já citada anteriormente: CARDOSO, Marilu Santos. Para não esquecer Vandré: Música, Política, Repressão e
Resistência (1964-1978). Dissertação (Mestrado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2013.
134
O conceito de performance, fundamental para análise do vídeo apresentado,
tem suas bases no estudo realizado por Paul Zumthor. O autor pensa sobre a
literatura e suas formas de apreensão, formas estas que podem mudar de acordo
com as suas práticas discursivas:
136
Seu primeiro LP “Dançante N°1” (Todamérica), gravado em 1958 traz músicas
instrumentais como “Favela”, “3-D” e “Máxima Culpa”, executadas no piano,
instrumento ao qual se dedicou intensamente desde o início de sua formação
musical. Já há traços da influência do Jazz que mais tarde se acentuaria em outras
gravações, mas traz também batidas fortes do samba e da música cubana, já num
processo de reelaboração e misturas de sons. Esse LP tem regravações de
compositores internacionais, como Nacio Herb Brown e Webster.
Já em 1960 grava o LP “Não gosto mais de mim”, com fortes expressões da
Bossa Nova, apresenta a canção “Zelão” que tanto do ponto de vista melódico
quanto da abordagem temática destoa do restante do repertório. Essa canção pode
ser significa como o início de uma ruptura com os moldes pré-estabelecidos pelo
insurgente movimento.
137
certas limitações dentro dos padrões que obtinham maior sucesso, como uma busca
de “sugar” do ponto de vista comercial tudo quanto possível. Nesse sentido Sérgio
se considera um rebelde, por não se prender aos padrões impostos assumindo as
consequências mercadológicas, mas garantindo sua fidelidade a suas criações e
pulsações.
Não pretendo discorrer sobre a totalidade das obras, tendo em vista que são
diversas trajetórias com uma produção imensa, mas ressaltar algumas expressões
que considero significativas para as problematizações trazidas nessa pesquisa.
Dentro do período delimitado pela presente pesquisa Sérgio Ricardo compôs
treze LP’s, os iniciais fortemente influenciados pela Bossa Nova. Gostaria de
destacar um deles, que segundo o próprio compositor marca profundamente suas
experiências e leva a uma ressignificação de suas práticas, trata-se da trilha sonora
que fez para o filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, essa trilha
que viria a ser gravada no suporte de uma disco em 1964 pela gravadora Forma,
que surge com uma proposta bastante
relevante dentro de uma lógica de valorização
da música brasileira, mais tarde virando selo
da Philips.
O fato é que o desafio lançado por
Glauber Rocha para Sérgio Ricardo o levou a
experimentações e estudos a respeito da
música nordestina, promovendo impactos nos
mais diferentes elementos constitutivos da
musicalidade com a qual tinha relação.
Sérgio contou-me sobre essa experiência na entrevista realizada em 2015 no
Morro do Vidigal, lugar onde reside até o momento. Que a noção de que o sujeito do
Nordeste, enquanto ele cava a terra, “enquanto ele sente aquele calor do sol, aquela
coisa do rachar o chão (...) vem frases e vem melodias pra ele na cabeça, que são a
própria cultura, aquela coisa que nasce do chão, da terra, brota da terra.”
No Programa Ensaio da TV Cultura, dirigido pelo Fernando Faro, apresentado
em 1985, Sérgio fala detalhadamente a respeito do processo de produção da trilha
sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e da importância dessa experiência.
Conta que naquele momento estava montando o seu filme “Esse mundo é meu”
138
juntamente com Ruy Guerra e que de repente chega o Glauber lhe cobrando a
música para uma letra que havia deixado com ele uma semana antes, dizendo que
se ele não a entregasse escolheria outra pessoa pra fazer. Diante da pressão foi
para casa e em poucos momentos “jogou toda sua criatividade” para por a música
na letra solicitada, sem saber muito bem da grandeza que o filme e a trilha viriam a
atingir.
Glauber aceitou a versão produzida e solicitou a Sérgio que cantasse:
22
Havia ainda, neste momento, a participação de muitos artistas no “Centro Popular de Cultura” (CPC) da União
Nacional dos Estudantes (UNE) que surgira em 1961 com a proposta de utilizar a arte em função das classes
populares e com projetos de luta por justiça social.
139
populares são composições refinadas do ponto de vista melódico e das letras, uma
característica importante a ser ressaltada, visto que o diálogo com as formas
musicais populares não significa reproduções estéticas, mas intersecções e
reelaborações.
Dentro de uma conjuntura de ditadura, o distanciamento da bossa nova e com
um aprofundamento das questões políticas numa vertente crítica ao sistema, as
implicações foram se acirrando, tornando-se alvo da censura e da repressão. Sua
obra foi sendo cada vez mais proibida de ser veiculada, sobretudo após o Festival
da Record de 1967 com a apresentação de “Beto bom de bola”, que aparentemente
não apresentava críticas diretas à ditadura, mas que gerou uma cisão entre a plateia
que assistia o festival, como já comentei anteriormente.
A memória a respeito desse importante artista passou a ser vinculada ao
homem “que quebrou seu violão” e jogou sobre a plateia que vaiava
incessantemente. Os rótulos e a perseguição não fizeram com que desistisse da
arte, continuou compondo e produzindo filmes. Possui uma vasta obra, investiu
esforços na música, nas artes plásticas e no cinema, permanece ativo até os dias
atuais. Durante essa trajetória define que seu repertório é marcado pela associação
do conteúdo que emana no povo, com a sua própria problemática como tema, como
desenvolvimento de tema e que se sente gratificado pelo que conseguiu extrair para
o seu próprio trabalho.
Na entrevista que realizei com ele afirma que outros artistas passaram por
processos semelhantes, ressaltando a memória que tem sobre Sidney Miller.
Lamenta a morte prematura do artista e diz que além de ser um grande poeta era
um grande músico também. Apresenta Sidney Miller como alguém que tinha uma
simplicidade imensa e um grande desprendimento que implicaram no pouco
resultado, do ponto de vista comercial, da sua obra, mesmo sendo respeitado e
procurado por outros interpretes para possíveis gravações.
O destaca também como um grande guerreiro no campo da luta pelos direitos
autorais, sendo um dos membros da SOMBRAS ao lado do próprio Sérgio, do Chico
Buarque, do Macalé e de outros artistas. A respeito disso comentarei mais adiante.
O fato é que as características da personalidade de Sidney Miller, na opinião
de Sérgio, não contribuíram para que ele tivesse uma projeção no meio musical.
Como compositor era bastante talentoso e sensível, mas como interprete sua
140
introspecção o limitava. Sérgio afirma que em seus conteúdos “tinha uma fixação
pela transformação do país e no amor à cultura brasileira, tanto assim que fez coisas
geniais como músico”.
Em 1967, Sidney Miller lançou seu primeiro LP homônimo com a canção “A
Estrada e o violeiro”, já conhecida pelo público por ser a vencedora na categoria de
melhor letra, defendida ao lado de Nara Leão. A estrutura musical se aproxima de
outros padrões estéticos mais vinculados à música tocada por violeiros relacionados
ao que se pode chamar de música sertaneja, longe das associações que temos na
atualidade, mas como estilo que surgiu a partir das experiências vivenciadas pelo
estudo sobre as culturas dos espaços rurais. Obviamente a partir de reelaborações e
recriações do ponto de vista melódico, essa canção possui um compasso crescente
e a utilização de tempos oscilantes que acompanham a evolução da letra.
É também de seu primeiro LP a canção “O circo”, relacionada algumas vezes
à cantiga de roda ou música para criança, mas que revela, nas entrelinhas,
sentimentos profundos das personagens circenses e suas dores:
141
As letras e os textos produzidos por Sidney Miller são densos, alguns
evidentemente melancólicos, evidenciando traços de sua personalidade pouco
conhecida por nós, pelos fragmentos de curtos relatos e pelas lacunas da escassez
das fontes. Na verdade, sua obra é a principal fonte para que possamos nos
aproximar dos sentimentos e pensamentos desse artista.
Seu segundo LP, lançado em 1968 também pela gravadora Elenco, “Brasil,
do Guarani ao Guaraná” tem como introdução a marcha de carnaval “História do
Brasil?” de Lamartine Babo, na contra capa trechos de textos de Mario de Andrade a
respeito da música brasileira. Esse LP é marcado por um tom aparentemente
nacionalista e folclorista, mas apresenta canções que destoam dessa lógica, como
por exemplo, “Pois é, pra que?”.
Joyce Moreno o conceitua como uma resposta num tom meio irônico em
relação aos tropicalistas que são da mesma geração que ele:
142
Evidentemente há referências
ao cartaz da ópera de Carlos
Gomes, mas uma produção gráfica
com muitos elementos, carregada,
densa, com uma diversidade de
comunicações e de forma, até
mesmo dissonante, a figura
monocromática de Sidney Miller ao
centro, com a típica expressão séria,
triste e preocupada, esses signos
estão presentes também no repertório.
Entre as canções está “Pois é, pra quê?”, destoando das marchas, sambas e
valsinhas tem uma melodia lenta, simples do ponto de vista harmônico, uma
repetição sem grandes mudanças na evolução. A letra, dessa vez assume o primeiro
plano, uma poesia pesada, com relatos de observações sobre uma realidade em
que nada faz sentido. O próprio título já anuncia um conteúdo de pessimismo diante
das circunstâncias vivenciadas pelas personagens:
143
Segundo Joyce Moreno, em sua entrevista concedida a mim, diz que
conheceu o Sidney Miller em 1967, destaca a sua timidez e afirma que ele nunca foi
um performer, caracterizando isso como um grande diferencial na sua carreira, visto
que a falta de evidência e comunicabilidade com o público pode ser, entre outros
fatores, elementos da sua falta de projeção. Para termos noção dessa introspecção,
Joyce relata que uma vez fizeram um show no Teatro Casa Grande e mesmo ele
sendo o “maior nome do show” o mais conhecido, no último dia do show o diretor
que era o Paulo Afonso Grisolli, fez um exercício de permitir que cada artista
escolhesse o que queria fazer, de onde gostariam de se apresentar: “O desejo do
Sidney, o pedido do Sidney foi cantar o show inteiro da cabine de luz, onde ele não
aparecia. Ele fez o show inteiro sem aparecer, só apareceu no final para os
agradecimentos”. (Joyce Moreno, 2015).
Seu terceiro disco, foi lançado somente após seis anos, e Joyce Moreno
aponta como um disco estranho, evidências das experiências e das coisas que
Sidney ouviu durante esse período. Na sua opinião traz elementos de sonoridades
que talvez sejam fruto da audição dos trabalhos do Milton Nascimento e do Clube da
Esquina, não relacionando propriamente à poética. Com arranjadores como Toninho
Horta que vinha realizando
trabalhos com importantes
expressões da MPB, como Elis
Regina, o próprio Milton
Nascimento e o Clube da
Esquina, com Caetano, Tom
Jobim entre outros(as)
cantores(as). Além de Toninho
Horta também buscou como
arranjador o Maurício Maestro,
que fez importantes trabalhos
com o Boca Livre. Então o LP
“Línguas de fogo” de Sidney
Miller gravado pela Som Livre
tem a forte presença das guitarras, com sonoridades bem diferentes das presentes
nos outros dois LP’s.
144
A capa do disco também apresenta um Sidney totalmente diferente das
representações contidas nos LP’s anteriores. Nesses seis anos, o compositor esteve
envolto com outros trabalhos, como a produção musical de peças de teatro ao lado
do diretor Paulo Afonso Grisolli. O fato é que o LP “Línguas de fogo” apresenta um
artista bastante diferente do ponto vista estético e musical. A fotografia da capa traz
Sidney em meio a uma paisagem de morros e vegetações, sua aparência em nada
dialoga com as apresentadas nos discos anteriores, com os cabelos compridos,
calça boca de sino e tom contemplativo é como se um novo artista estivesse sendo
apresentado ao público, destoante do Sidney que, segundo Joyce, sempre se
apresentou de forma conservadora, vestido praticamente como um “senhor”, apesar
de ser bastante jovem. “(...) Ali parece que ele queria tirar o atraso de uma coisa que
ele ainda não tinha vivido né... (Joyce Moreno, 2015).
Apesar de toda “renovação” estética e a busca de outras sonoridades, numa
linha que pode ser chamada de “mais progressista”, a poética é recorrente e
perfeitamente relacionada ao tom melancólico de antes, mesmo que em alguns
momentos haja rupturas e esboços de um ar de possibilidades de “sonhos”.
Paralelamente à produção de seu último LP, Sidney Miller trabalhou no
departamento de Projetos Especiais da Funarte no Rio de Janeiro, como diretor
artístico da sala FUNARTE, tendo uma atuação importante como produtor e agitador
cultural. Sérgio Ricardo disse, em seu depoimento, que nesse espaço Sidney
acabou por se tornar um “operário” e que boa parte de seu entristecimento parte
também dessa realidade. É importante ressaltar que durante o período em que atou
na sala Funarte Sidney se empenhou arduamente, produzindo espetáculos e
possibilitando a expressão de muitos artistas. Atuava nesse espaço quando faleceu
em 16 de julho de 1980.
“Ele é um cara que vivia a época dele, mas que sempre olhava
um pouco mais pra frente. Ele passa uma imagem, sempre
passou uma imagem de um cara tímido, sério, pelo contrário,
era um cara gozador, cara brincalhão, um cara sério quando
devia ser, enfim um amigão, gente finíssima.” (Augusto
Pinheiro, 2015 – Documento FUNARTE – Sidney Miller)23
Augusto Pinheiro, amigo íntimo de Sidney Miller nos apresenta o homem por
trás da pintura do artista. Breve foi sua permanência na vida, mas sua obra é intensa
23
https://www.youtube.com/watch?v=BIiuDjv6YLc
145
e do ponto de vista da poética nos permite a aproximação de sua essência, das
questões que lhe chamavam atenção e da ausência de necessidade de se prender a
um determinado estilo, transitando entre marchas, cantigas, toadas, sambas e
outras elaborações das formas musicais brasileiras.
146
3.1 Quarteto Novo: Entre improvisos e desafios
O contato com cada músico que fez parte do Quarteto Novo me trouxe uma
dimensão da musicalidade e de seus múltiplos significados. A aproximação e o
conhecimento sobre suas trajetórias atribuíram sensações e percepções a respeito
de cada música que compõe o repertório do único disco lançado em 1967 pela
ODEON. Um olhar que buscou nas entranhas dessa produção as emoções
comunicadas por meio de cada música e suas elaborações e processos criativos.
Não por acaso, essa obra é considerada um marco da música instrumental
brasileira, pois sua construção é fruto de um projeto que envolveu a dedicação
quase que exclusiva de quatro dos melhores músicos brasileiros: Airto Moreira,
Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte e Theo de Barros, apoiados e financiados por
Geraldo Vandré, que mais que um mecenas, foi também um participante ativo como
compositor em parcerias com Hermeto em “O ôvo” e “Canto Geral” e com Airto em
“Misturada”. Idealizador dessa junção e das formas musicais elaboradas em
conjunto, o disco traz ainda músicas que compôs sozinho como “Fica mal com Deus”
e “Canta Maria”, apresentadas com novos arranjos e improvisos diferentes dos
originários.
Heraldo do Monte é compositor de “Síntese” e Theo de Barros de “Santana”,
além das composições feitas pelo Quarteto Novo juntamente com Vandré o disco
contém “Algodão” de Luiz Gonzaga e Zé Dantas.
Ao todo são oito músicas tocadas ao violão e contrabaixo (Theo de Barros),
viola e guitarra (Heraldo do Monte), flauta e piano (Hermeto Pascoal) e precursão e
bateria (Airto Moreira).
A cultura musical presente nessa obra nos remete às sonoridades advindas
de diferentes lugares do país, pela natureza dos pertencimentos e das origens dos
músicos e suas experiências, sendo assim houve a produção de uma sonoridade
que combinou os sentimentos mais profundos de cada um e a memória musical de
suas infâncias e juventude com o domínio técnico adquirido ao longo da vida por
meio dos estudos teóricos, mas preservando os sentimentos e a intuição.
Já relatei que o grupo surge inicialmente como Trio Novo, sem a participação
de Hermeto Pascoal, por uma postura discriminatória do produtor Lívio Rangan da
Rhodia. Como afirmou Airto, “Hermeto e Heraldo” eram o coração do quarteto,
justamente pela riqueza musical, pelas emoções, criatividades e suas experiências
147
como músicos nordestinos. Em sua entrevista, Hermeto descreve o significado
dessa parceria e das elaborações e processos criativos, afirmando que inicialmente
tinha mais contato com Airto Moreira, pelos trabalhos que haviam realizado nas
boates, “pra dar canjas”. O Airto na bateria e o Hermeto no piano, afirmou que
tocavam livremente “moderno como eles queriam”, ressaltando que muitas vezes os
donos da boate os mandavam pararem de tocar, justamente por fugirem dos
padrões impostos naquele momento. Hermeto relatou que essa era uma avaliação
dos donos das casas, mas que a plateia apreciava as formas apresentadas. Isso
gerava certo conflito, visto que os músicos questionavam a autoridade dos “donos
das casas” e se autoafirmavam como artistas, o que levava a rompimento dos
contratos de trabalho.
Pela harmonia dos dois músicos e a apreciação de Airto pela forma como
Hermeto tocava, num momento em que o Trio Novo já acompanhava Geraldo
Vandré em “Disparada”, Airto indicou Hermeto para compor o quarteto. Vandré se
interessou pela integração de Hermeto, o que levou ao surgimento do Quarteto
Novo. Heraldo do Monte também já o conhecia da época dos trabalhos em Recife,
havendo aprovação por parte do Theo de Barros a proposta foi aceita por todos os
membros.
Com a entrada de Hermeto Pascoal estava constituído o Quarteto Novo. Os
músicos passaram a ensaiar constantemente em São Paulo, juntamente com
Geraldo Vandré. Porém, o grupo não se limitou ao acompanhamento de Vandré em
suas canções e os músicos aproveitaram aquela formação com intuito de fazer o
disco, considerado por Hermeto como um disco antológico.
Para ensaiar as músicas do Quarteto Novo, Hermeto ressalta que o clima era
bastante amistoso, havendo brincadeiras, mas que sempre manteve a seriedade
frente aos arranjos e que as produções eram muito dialogadas, havendo um
empenho muito grande por parte de todos em tocar, buscar alinhamentos, num
processo muito discutido e refletido com a participação ativa de todos. Como a
maioria mantinha os trabalhos noturnos, ressalta que havia atrasos no início dos
ensaios e que muitas vezes precisavam estudar juntos, o que em sua opinião
deveria ser estudado antes.
Comenta, por exemplo o arranjo da música “Algodão” de Luiz Gonzaga e Zé
Dantas. Nesse período ensaiavam na boate de Roberto Luna, na Rua Augusta, que
148
gentilmente havia cedido o espaço. Hermeto comentou que num dia em que a
“turma” se atrasou ele foi realizando os estudos sobre a música, “bolando os
arranjos”.
“Bate a enxada no chão... é “Algodão (cantando)”. Aí
quando a turma chegou, a turma tinha ficado no bar tomando
café (...) Quando eles chegaram do bar, eu já tava com o
negócio praticamente pronto, só precisava eu ir passando pra
cada um (...) Nada de escrever partitura, era tudo no ouvido. Eu
me lembro que tinha uma frase que eu fiz pro Heraldo e o
Heraldo era difícil de entender o sentido da frase e aí eu fazia
assim: Pararararoró, pararararará (cantarolando), você conta
dois assim, um, dois pararararoró, pararararará (...) Aí o
Heraldo tava sentindo o inverso, tararararóro, tórarararoró (...)
Ele sentia como se fosse o contrário e gente ria, a gente ria...”
(Hermeto Pascoal, 2015)
149
domina ou não possui essa sensibilidade é difícil entender todo esse
processamento.
A produção do LP do Quarteto novo e todas as relações em torno dele foi
uma experiência tão profunda que todos os músicos relatam que suas obras
posteriores têm grande influência dessa produção. Hermeto enfatizou que o que faz
até hoje tem muito da cultura musical vivenciada no Quarteto Novo e com tudo que
tocou ao longo da vida, desde a época em que tocava para os passarinhos: “eu
tenho assim na minha mente que é um apanhado que eu faço desde os
passarinhos, é o que eu falo, que na terra a gente vai subindo o degrau, e aquela
escada dá a volta e você sobe de novo”. (Hermeto Pascoal, 2015).
Theo de Barros afirmou que a experiência com o Quarteto Novo foi a melhor
experiência musical que teve ao longo da vida, sendo um momento de grande
aprendizado e de intensificação de sua sensibilidade como músico. Que o convívio e
as trocas realizadas com Hermeto que é de Alagoas, com Heraldo de Pernambuco e
com Airto do Sul, proporcionaram uma junção de musicalidades que remetiam ao
que ouviam desde crianças, coisas que seus pais cantavam, músicas que tocaram
ao longo da carreira, tudo isso com um aprofundamento intencional das “raízes
brasileiras”, destacando que isso foi a coisa mais importante que fizeram como
quarteto: “então não tinha fronteiras, nós fomos pegando tudo, cada manifestação
musical que fosse tipicamente brasileira e desenvolvendo um tipo de improviso que
não fosse jazzístico, que fosse brasileiro, com sonoridade brasileira.” (Theo de
Barros, 2015).
Durante o curto período em que esses músicos ficaram juntos, receberam
grande notoriedade, chegando a ganhar o prêmio de melhor conjunto musical do
Brasil e mais o Troféu Imprensa por duas vezes, além da evidência promovida pelo
programa “Disparada” na TV Record que realizavam juntamente com Vandré, após a
explosão da música no festival de 1966. Sendo assim a aceitação da produção do
disco por parte da gravadora se deu de forma tranquila e positiva, segundo Theo de
Barros. Pouco conhecido há também uma gravação de um compacto pela mesma
gravadora, realizada em 1967, com as músicas “Ponteio” de Edu Lobo e “O
cantador” de Dorival Caymmi, levando-se em consideração a participação do
Quarteto Novo no acompanhamento das interpretações de Edu Lobo e Elis Regina.
150
É interessante observar a forma como Vandré atuou nessa produção, como
ressaltei anteriormente, não somente por meio do financiamento, mas integrando e
intervindo nos arranjos e composições. O desafio lançado por ele era justamente o
que Theo de Barros relatou, a busca de uma sonoridade brasileira que se
distanciasse das influências do Jazz. Em sua entrevista, Airto Moreira diz que
achava engraçada a forma como Vandré direcionava o trabalho dos músicos e sua
capacidade de sentir e comunicar seus anseios mesmo sem ter uma formação
musical do ponto de vista formal, mas que era dotado de uma energia que
contagiava e impulsionava os processos criativos. Suas intervenções contribuíam
para a construção da musicalidade do Quarteto Novo, de forma intuitiva e criativa,
indicando as sonoridades que julgava necessárias para o projeto, quando os
músicos tocavam algo que julgavam “mais moderno” eram advertidos por Vandré
que reiterava a necessidade da musicalidade brasileira em suas origens.
A reelaboração da música “Algodão” chama atenção pela forma como a
introdução é feita num ritmo mais lento, atingindo uma pausa e depois retomando de
forma mais acelerada. Com a evolução da música os tempos vão se alternando até
chegar ao ápice com a demarcação da percussão que simula sons de chicotes a
partir da queixada de burro. Na sequência o som do triângulo, tocado por Airto, de
forma isolada e acompanhado aos poucos pelos sons da flauta de Hermeto,
retomando a viola de Heraldo e o violão de Theo de barros. Ao término o som da
percussão, juntamente com o contrabaixo vai sendo aos poucos acompanhado
pelos demais instrumentos. Uma criação que se difere das formas originais da
música, sobretudo pelos instrumentos e arranjos, mas que nos permite sentir a
pulsação comunicada por sua versão inicial.
Com todos os recursos e instrumentação que podem ser considerados mais
sofisticados, a sonoridade sertaneja e as fortes marcas do baião são preservadas.
Esse era justamente o desafio lançado por Vandré, promover aprofundamentos
musicais a partir das bases, sem perder a essência e a comunicação das realidades
comunicadas.
A musicalidade presente no nordeste brasileiro é bastante plural, sendo
necessário ressaltar que as músicas elaboradas pelo Quarteto Novo não
contemplam todas as expressões musicais nordestinas, possuindo ligações mais
fortes com o baião, com cantorias de repentistas e em menor proporção com o
151
samba, tendo em vista as próprias referências musicais relacionadas às origens e
aos estudos realizados pelos músicos e pelo próprio Vandré.
A percepção dessas sonoridades nas músicas que não possuem letras, ou
seja, nas que não se caracterizam como canções, também é marcante. Como
ressaltei ao longo dessa pesquisa, a música, enquanto linguagem gera
comunicação, não somente pelo estilo adotado, mas pelas construções de
representatividades de elementos sonoros ligados às culturas e aos modos de vida.
Essa é uma característica marcante das músicas apresentadas no disco, como
podemos notar em “Síntese” de Heraldo do Monte e em “Misturada” atribuída a Airto
Moreira e Vandré, cuja conotação se aproxima mais do samba, talvez pela forte
presença da percussão desenvolvida por Airto.
A proposta lançada pelo Quarteto Novo, juntamente com Vandré foi atingida,
houve uma construção musical com fortes referências de formas musicais
brasileiras, com um distanciamento do jazz que vinha se tornando cada vez mais
presente na música instrumental brasileira. A audição das oito músicas que
compõem o LP nos proporciona a percepção de improvisos diferenciados, dentro da
diversidade dos instrumentos que nos remetem à cultura musical brasileira.
Como relatei anteriormente, com o exílio de Geraldo Vandré, o grupo não
prosseguiu unido por muito tempo. O primeiro a sair foi Airto e mesmo com a entrada
de Nenê substituindo-o, as circunstâncias eram outras e as dificuldades financeiras
acabaram levando cada músico a percorrer outras trajetórias. Há consenso nos
relatos de todos a respeito da importância e do significado dessa experiência e nas
influências no que produziram posteriormente.
Airto Moreira partiu para os Estados Unidos, onde encontrou sua namorada
Flora Purin, com o propósito maior de continuar fazendo música e poder viver por
meio dessa. Seu caminho não foi fácil, passou por adversidades, teve dificuldades
de comunicação, tendo em vista que não dominava a língua inglesa, mas aos
poucos conseguiu se enfronhar nos meios musicais e atingir a projeção que
conhecemos hoje.
Em Nova Iorque tocou com influentes músicos do Jazz, tais como Walter
Booker, Cannonball Adderley, Freddie Hubbard, Ron Carter, Lee Morgan, Paul
Desmond e Joe Zawinul, sendo esse último que o recomendou a Miles Davis,
culminando na gravação de "Bitches Brew" em 1970. Tocar numa banda juntamente
152
com Miles Davis, foi de fato uma experiência marcante, não apenas do ponto de
vista da evidência e dos interesses comerciais, mas da construção de uma
musicalidade que pode ser considerada precursora do Jazz Fusion, sem dúvida
alguma foi um grande aprendizado. Como Airto deixou a banda e o
acompanhamento de Miles Davis é ainda algo não comentado, porém o tempo em
que permaneceu o acompanhando e tocando “seus instrumentos desconhecidos” foi
valorizado pelo trompetista, cuja personalidade era de poucas palavras e sem
grandes demonstrações de aprovação, mas se não houvesse valor agregado às
sonoridades desejadas Airto seria dispensado nos primeiros episódios.
O fato é que Airto tornou-se um dos maiores nomes da percussão nos meios
musicais em diferentes lugares do mundo, sobretudo na Europa e nos Estados
Unidos. Sua participação na banda Weather Report é marcante, na gravação ao vivo
é possível verificar a explosão provocada na plateia nos solos que realiza, voz e
instrumentos se combinam numa musicalidade onde raízes se evidenciam,
remetendo às sonoridades africanas dentro do gênero musical estadunidense
intitulado jazz fusion.
Aqui no Brasil, ao lado de Naná Vasconcelos, é sem dúvida, uma das grandes
expressões musicais dentro dessa instrumentalização, infelizmente pouco
conhecidos e valorizados pelo grande público. Airto gravou vários discos solos e
também juntamente com Flora Purim, todos fora do Brasil.
Hermeto Pascoal permanece ativo em suas atividades artísticas é, também,
conhecido internacionalmente. Suas características são marcantes, músico de
múltiplos instrumentos, participou de várias formações grupais. Em 1969 a convite
de Flora Purin e Airto Moreira foi para os Estados Unidos, onde participou da
gravação de dois discos com eles. Conheceu também Miles Davis, com quem
153
gravou duas músicas como compositor e arranjador: Nem Um Talvez e Igrejinha. Na
gravação original de Miles Davis não aparece o nome de Hermeto como compositor
e arranjador, isso gerou uma certa polêmica na época, mas Hermeto afirma que não
encarou como uma maldade e sim como um erro fruto dos trâmites das gravações e
processos burocráticos. Sua preocupação maior é com a música e com as
experiências propiciadas pelo encontro e pelos espetáculos apresentados. Tanto é
que ressalta na entrevista dada à TVE Bahia, que na segunda edição do disco,
quando Miles já havia falecido, o erro foi corrigido.24
Ao retornar para o Brasil, em 1973 gravou seu disco A Música Livre de
Hermeto Pascoal, pela gravadora Warner Music Group, acompanhado pelo seu
primeiro grupo formado por Anunciação (percussão e bateria), Nenê (bateria e
piano), Alberto (contrabaixo), Mazinho (sax alto, sax tenor), Hamleto (sax tenor e
flauta), Bola (sax tenor e flauta). A capa do disco traz a imagem de Hermeto tocando
seu instrumento, com um foco de luz intensa ressaltado seus cabelos, pelo e a
roupa que usa em tons dourados, esses elementos se alinham à construção musical
presente no disco pelas vibrações
e energias emanadas. O título
ressalta o pensamento do músico
a respeito da música que
necessita de liberdade para fluir,
sem rótulos e sem prisões. Esse
disco reúne composições que
fizera ao longo da vida e músicas
de outros compositores
brasileiros, como a primeira faixa
Bebe de Hermeto, que sem pausa
se mistura a Carinhoso de
Pixinguinha.
A musicalidade e as misturas de sonoridades não comuns, tais como os sons
de animais que se harmonizam aos dos instrumentos são demonstrativos da
genialidade de Hermeto. O resultado é um conjunto de músicas pulsantes que nos
transmitem vibrações sensoriais, com uma profundidade só possibilitada pelo
24
https://youtu.be/vpZo_ed77tY
154
profissionalismo dos músicos imersos numa gama imensa de sentimentos e
emoções. É assim que Hermeto define suas criações, nada está separado da vida,
dos sentidos e sensações vivenciados nos momentos de criação e de execução das
obras.
O disco, que conta ainda com Asa Branca de Luiz Gonzaga, é finalizado com
um “bate papo” entre os membros do grupo, após a faixa que traz a canção O gaio
da roseira. Ao ouvi-los me surge a sensação de que há o encerramento de uma
grande festa, com brincadeiras e improvisos de voz que alternam o volume, até
chegar ao diálogo final, onde Hermeto brinca com a sonoridade das próprias
palavras e pronto.
Práticas como essas reúnem as sensibilidades e as técnicas, o domínio sobre
o instrumento e a voz. Há uma fusão entre corpos e instrumentos que nos remetem
a culturas não ocidentais, ainda que essas se misturem. A obra de Hermeto Pascoal
é vasta, gravou vários discos e até hoje realiza shows dentro e fora do Brasil. Sua
vivacidade e a energia emanada para o público e porque não dizer, do público para
ele e os músicos que o acompanham, demonstram o poder da música e de quem a
sente de forma profunda, gerando expressões e sensações plurais.
Com a gravação do álbum Slaves Mass (Missa dos Escravos), em 1977 nos
Estados Unidos, com apoio e participação de Flora e Airto, ganhou uma maior
projeção internacional. O disco, cujo título é bastante simbólico, remetendo à
resistência diante da escravização negra, é iniciado com uma demarcação forte da
percussão na música "Mixing pot" ("Tacho"), a segunda faixa Slaves Mass (Missa
dos Escravos), da qual o disco é homônimo, traz novamente sons de animais e a
demarcação de instrumentos de percussão, seguida por um coro de vozes
masculinas e femininas, que nos momentos finais da música criam certa
dissonância, tendo em vista que o ritmo vai se tornando mais lento e as vozes mais
aguçadas. Esse é também considerado um dos grandes discos de Hermeto, sendo
importante ressaltar que mesmo gravando nos Estados Unidos e dentro de uma
forma jazzística, havendo uma fusão de gêneros, sua essência é perceptível nos
arranjos e escolhas dos sons, assim como das temáticas.
Heraldo do Monte relatou que também recebeu o convite de Airto Moreira
para ir aos Estados Unidos para fazer parte de um grupo de Jazz, porém o mesmo
recusou, sobretudo por não querer se distanciar da esposa e dos(as) filhos(as).
155
Além disso, no início dos anos 1970 conseguiu um emprego na Orquestra da TV
Tupi de São Paulo, onde permaneceu durante sete anos, atando como guitarrista no
programa Clube dos Artistas. Essa oportunidade lhe garantiu certa estabilidade e a
possibilidade de seguir sua carreira musical, paralelamente realiza suas
composições e participou do disco lançado em 1976 pelo Zimbo Trio gravado pela
RGE, com o qual realizou parcerias posteriores.
Ao sair do programa da TV Tupi, deu continuidade ao seu trabalho,
participando de gravações diversas, nem sempre vinculadas ao que gostava de
tocar, visto que necessitava garantir sua sobrevivência e de sua família. Dentro
desse período produziu músicas
que culminaram na gravação do
disco Heraldo do Monte em 1980
pela gravadora Eldorado. A capa
do disco é emblemática, a imagem
central de Heraldo com uma
abertura do peito por onde se pode
ver seus órgãos entrelaçados a
uma guitarra é representativa dos
sentimentos que o músico teve e
tem com a música, algo visceral,
as cordas embrenhadas ao seu
estômago, seguem em direção ao
seu coração onde se misturam às artérias. Uma imagem forte, com tons de vermelho
na parte superior, com destaque para seu rosto de semblante tímido e calmo.
Considero essa uma das capas mais significativas para uma análise do significado
da música em sua vida. Na última conversa que tivemos em outubro de 2018, sua
esposa Lourdes reforçou esse significado nos contando sobre suas experiências e
rotinas ao longo de um casamento de 60 anos.
Segundo Lourdes, Heraldo viveu e vive a música intensamente, passando
horas estudando, noites acordado, experimentando e criando. Essa relação é tão
forte que ela comentou que ele chegou a sonhar com uma composição e que na
manhã seguinte acordou e escreveu a música. A profundidade dessas experiências
tem como resultado a obra que nos é apresentada, seja por meio dos discos ou das
156
apresentações ao vivo. A imagem da capa dentro das minhas concepções traduz
esse universo da particularidade do artista e também daquilo que evidencia.
A primeira faixa do disco apresenta “Forrozin”, composição de Heraldo, numa
fusão de elementos do baião e improvisos dentro de uma linguagem brasileira,
possuem características dos improvisos realizados pelo Quarteto Novo. A segunda
faixa, Lamentos de Pixinguinha e Vinícius de Moraes, um chorinho, gênero ao qual
Heraldo dedicou grande parte de suas futuras apresentações e composições. O
disco apresenta uma gama de formas e culturas musicais que demonstram a
versatilidade e o conhecimento musical de Heraldo.
Evidencio dentre as músicas que não são de sua composição a Pau de Arara
canção de Guio de Morais e Luiz Gonzaga, pelas fortes características da música do
sertão e também pelos arranjos e improvisos. Caso que verídico em Chuva Morna,
composição de Heraldo, numa pegada mais voltada para o frevo, demonstrativa da
liberdade de criação e do distanciamento de moldes ou prisões a determinados
gêneros. A música tem uma introdução falada:
158
culturas são diferentes, podendo haver encontros, trocas, sem que se submeta ou
se sobreponha.
Conflitos, muitas vezes, gerados não pelos músicos, mas pelas relações de
mercantilização que exigem a exploração de um “produto” específico até a sua
exaustão. Nesse sentido, o Grupo Medusa, assim como outros dos quais Heraldo do
Monte participou, representam uma resistência, cujos resultados são obras de alta
qualidade, com todo o refinamento fruto do profissionalismo dos músicos sem que
percam suas essências e raízes. Nesse sentido, “pensar com sua própria cabeça” é
o fator diferencial e, porque não dizer, o maior valor das músicas instrumentais
brasileiras apresentadas.
Em 1982, Heraldo do Monte participou da gravação do ábum duplo
ConSertão pela Kuarup Discos, juntamente com Elomar (voz), Arthur Moreira Lima
(piano e cravo) e Paulo Moura (sax e flauta). Um mergulho nas formas musicais
brasileiras, com canções Elomar, Luiz Gonzaga, Villa Lobos, Codó, Francisco
Mignone, Severino Araújo e Waldir Azevedo, com arranjos extremamente
elaborados.
As temáticas nos remetem às
culturas nordestinas, com uma
riqueza de detalhes das
expressões culturais e
simbologias perceptíveis entre
os grupos populares, suas
crenças e festividades. Na
contra capa, Arthur Moreira
Lima, produtor do disco,
escreveu um texto de
apresentação e objetivos da
obra, salientando que o
propósito era mostrar ao público
as práticas dos instrumentalistas brasileiros e sua capacidade de realizar arranjos e
improvisos: “bordar, enfeitar, tecendo tramas e enredos musicais sobre temas muito
ou pouco conhecidos, mas de valor musical incontestável”.
159
Para tanto, a liberdade de improvisação foi vencendo os receios, segundo o
músico, de forma natural, com um profundo entrosamento entre as linguagens
sonoras dos companheiros, com trocas de experiências e ideias. Dessa forma, o
repertório e as criações foram dialogadas, respeitando as individualidades de cada
membro do grupo, pautados pelo que chama de “fronteiras do bom gosto”, essa
construção coletiva talvez nos ajuda a entender a inserção de duas músicas de Villa
Lobos (Festa no Sertão e Valsa da dor). O resultado é o álbum duplo, por meio do
qual podemos perceber as influências das trajetórias e pertencimentos de cada
artista, lembrando que a gravação foi feita com a acústica natural da Sala Cecília
Meireles no Rio de Janeiro.
Segundo Heraldo do Monte, que atuou com viola e violão, esse álbum duplo
gerou uma série de apresentações pelo Brasil, chegaram a ir também pra Cuba.
Contou-me que foi sem Elomar, que se recusou a visitar um país ateu. Brinca com
essa situação, mas destaca que foi uma ação importante para o grupo constituído.
Esse é um trabalho importante na memória do músico, destacado como uma
parceria que rendeu muitos frutos e onde as sonoridades nordestinas foram
valorizadas.
Durante a década de 1980, Heraldo continuou compondo e gravando Lp’s
solos, como Cordas Vivas (1983), com a participação de Hermeto Pascoal e Cordas
Mágicas (1986). Afirma que dentro dos vários gêneros e estilos que tocou ao longo
da vida, o que despertou seu olhar para a música nordestina foi a experiência com o
Quarteto Novo, que as marcas dessas expressões estão presentes em sua essência
e consequentemente em sua obra.
Fiz-lhe uma questão que sempre me é feita: Esse posicionamento, de busca
pelas formas musicais brasileiras, pode ser considerado “nacionalismo”? A resposta
veio como uma lâmina que corta as verdades estabelecidas por quem analisa a
música de um ponto de vista sociológico ou historiográfico de forma racionalizada.
Sorrindo ele cita Leon Tolstoi: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua
aldeia” e emenda: “A gente faz essas coisas sem uma prisão política na cabeça, a
gente vai fazendo só, não tem isso, a gente não obedece (...) sempre as pessoas de
fora... é o negócio do rótulo né e rótulo em arte já é um negócio estranho... Eles
rotulam e a gente tá livre”.
160
Esse pensamento se refere aos trabalhos que realizou posteriormente a sua
participação no Quarteto Novo, que obviamente tinha um projeto anunciado e um
objetivo a ser alcançado dentro de uma conjuntura que nos possibilita analisar seu
conteúdo, ainda, sem cair nos rótulos pré-estabelecidos. Mas, Heraldo fala das
sonoridades que, a partir dessa experiência, passaram a integrar sua forma de da
fazer música, de senti-la e de traduzi-la por meio de suas emoções e técnicas.
Segundo o músico, não há prisão política na criação, essa expressão não
circunscreve a música como algo não relacionada à política, visto que compartilho
do pensamento de Vandré quando diz que “Arte é um ato político”, mas num sentido
muito mais profundo expressar, comunicar aquilo que está dentro de cada artista,
sem partir de referências externas e dicotômicas. Obviamente cada pessoa vivencia
a realidade de um lugar diferente, tecendo teias diferentes, nem sempre tão
enquadrada ou alinhada com os posicionamentos atribuídos por quem às recepciona
ou analisa.
Existe uma complexidade nessas expressões que me impedem de tentar
atribuir-lhes os rótulos de “nacional-popular”, “folclore” ou até mesmo “nacionalistas”.
As sinto como um diálogo profundo com as formas musicais brasileiras, como quem
talha uma escultura na madeira, como muitos sertanejos a fizeram, mas com
recursos e ferramentas diferenciadas, que proporcionam cortes e modelagens
diferentes, nem melhores e nem piores, simplesmente diferentes, com estéticas que
passam a ser apreciadas em seus detalhes, re-criações, e refinamentos.
Esse é um traço que aparece nos relatos de todos os músicos que
participaram do Quarteto Novo. As construções de suas musicalidades, mesmo em
suas diferentes abordagens, são permeadas pelas formas musicais brasileiras,
sobretudo as de origens nordestinas e de sonoridades afro brasileiras. A obra de
Theo de Barros, por exemplo, na sua trajetória solo também evidencia culturas e
expressões que não vivenciou no início de sua carreira, mas que por meio de
estudos e direcionamento de seu olhar foram sendo assimiladas na sua constituição
como homem e, consequentemente como músico.
De personalidade bastante tímida e introspectiva, Theo relata que o trabalho
com o Quarteto Novo foi a melhor experiência que teve ao longo de sua carreira, no
sentido de ampliação dos conhecimentos sobre culturas musicais que não tinha
atentado com tanta intensidade. Como afirmei antes, Theo cresceu em meio aos
161
estímulos musicais de sua família e conviveu com importantes nomes da insurgente
bossa nova, sendo suas primeiras composições inspiradas por essa. Afirma que
talvez pudesse ter usufruído mais do sucesso, após a gravação de “Menino das
laranjas” por Vandré e por Elis, mas que seu jeito “quieto demais pra ser artista” o
levou a ficar meio que “escondido”. Mesmo participando de shows e realizando
gravações em estúdio para outros artistas, afirma que: “apesar de não querer
aparecer, no meio era conhecido, era respeitado, então aproveitei dessa maneira
indireta, eu jamais me esforcei pra ser uma estrela”.
O mesmo ocorreu em relação a sua composição juntamente com Vandré de
“Disparada”, aumentando suas participações em shows e convites para gravações.
O importante é que respeitou sua personalidade e continuou compondo, mesmo
com o término do Quarteto Novo, o qual manifestou como “decepcionante” visto que
tinham projetos de continuidade. Diz que sempre foi sensível às questões sociais e
que as injustiças sempre o incomodaram, suas músicas e canções expressam esses
sentimentos e mesmo “não participando de nenhuma facção” se colocou da forma
como compreendia possível, por meio da linguagem musical. Já havia participado
em 1967 do Musical Arena Conta Tiradentes, de Augusto Boal (1931-2009) e
Gianfranceso Guarnieri (1934-2006), atuando como diretor musical, havendo
também canções de
Sidney Miller, com quem
conviveu por um tempo.
Em 1970 compôs as
canções do musical Arena
Conta Bolivar de Augusto
Boal, que foi proibido no
Brasil, sendo apresentado,
segundo Theo, no México,
nos Estados Unidos e no
Peru.
Theo continuou
compondo durante a década de 1970 e participando de gravações em discos de
outros artistas, somente em 1979 lançou seu primeiro LP pela gravadora Eldorado,
162
da qual foi produtor, o LP “Primeiro Disco” de Theo de Barros apresentou músicas e
canções, frutos de suas composições ao longo das décadas de 1960 e 70.
Um álbum duplo, incluindo
canções feitas para as
produções dos musicais do
Arena e de tantas outras
composições que realizou
ao longo da vida. A capa
do disco é pesada, lembra
os versos de “Estória”, que
fizera em parceria com
Paulo César Pinheiro: “(...)
A minha face morre, mas
minha estória, essa
nascerá”. O sentimento ao
ver a imagem é de dor, de
dilaceramento, mas de
persistência de uma face serena, como é a de Theo de Barros. Uma face presa por
fivelas ocultando a carne viva, o contraste do fundo azul com o vermelho da parte
posterior à face, ressaltam as marcas do rosto de Theo, que tem o olhar fixo para
frente.
O primeiro disco de Theo de Barros levou um bom tempo para ser produzido,
sobretudo porque durante a década de 1970 ele atuou como publicitário, compondo
jingles no estúdio da Eldorado, que tinha um viés de produtora de publicidade e uma
parte do estúdio como gravadora. Theo conta que Aloisio Falcão era o ultimo sócio
do Marcos Pereira, para o qual ele também havia trabalhado. Que juntamente com o
Aloysio teve a ideia de fazer o selo. Grande parte do seu tempo era direcionado para
o trabalho com publicidade, o disco foi feito “nas horas vagas” que eram raras,
momentos em que o estúdio estava livre. Atuar na produção de jingles é algo que
Theo encarou como uma necessidade de sobrevivência, mas um trabalho
desgastante, primeiro pelo tempo árduo de dedicação frente às demandas, segundo
porque as composições que a princípio eram feitas com “músicos de verdade”, o que
lhe possibilitava atuar como arranjador e orquestrador, foi sendo cada vez mais
163
substituído pelo trabalho com teclados, o que o desanimou, mesmo sendo
considerado um bom produtor, chegando a ganhar prêmios com o jingle da VASP,
que ficou durante muito tempo no ar. Seu sentimento é de insatisfação visto que
ganhou dinheiro, mas ficou privado de tempo para se dedicar à música como
gostaria:
“(...) foram quase dois mil jingles, mas é um trabalho assim que
você ganha dinheiro, mas não é musica realmente, embora eu
sempre tivesse a preocupação de fazer que as minhas
produções tivessem começo, meio e fim, fosse uma mini
música, mas o público não sabe quem fez, não tem créditos
não tem nada, serve só pra ganhar dinheiro, nunca vi, eu
sempre falei que eu estava publicitário, não era publicitário”
(Theo de Barros, 2015).
Foi em meio a essas condições que surgiu o álbum duplo, com um amplo e
significativo repertório. Uma conquista para Theo de Barros, um caminho de
retomada para o que realmente gostava de fazer. Esse relato foi feito com bastante
tristeza, porque seu ímpeto criativo acaba por ser cerceado pelas condições e
destinos do que vinha produzindo. Esses aspectos, talvez nos ajudem a
compreender a dureza da imagem da capa do disco, bem como o fato de tê-lo
lançado somente em 1979.
A primeira faixa do disco é “Vim de Santana”, a mesma que fizera parte do LP
Quarteto Novo, com novos arranjos, mas preservando elementos da gravação
anterior. Memória viva dos tempos de aprendizagens e trocas de experiências.
Assim como os demais músicos do Quarteto Novo, Theo faz questão de demarcar o
lugar desse projeto em suas composições. Na sequencia canta “Disparada”, que
compusera com Geraldo Vandré, num arranjo diferenciado também, com um ritmo
mais lento, quase melancólico. É difícil falar sobre a alma de um artista, mas sem
dúvida, essas escolhas expressam sentimentos profundos. A terceira faixa “Oxalá”,
inscrita no III FIC de 1968, nos apresenta um compositor que combinou suas
experiências com tudo que vivenciou e aprendeu a valorizar:
Dentro de uma temática recorrente nas demais canções presentes no III FIC
de 1968, Theo reverencia a Oxalá e expressa tanto na música quanto na letra forças
presentes nas culturas populares. O álbum duplo traz no primeiro LP canções com
essas características, demonstrando a versatilidade e a busca pelas raízes das
sonoridades brasileiras. Contendo também canções que fizera para os musicais do
Teatro Arena.
É interessante pensarmos como nos momentos de resistência em conjunturas
de autoritarismo declarado, como é o caso do período em que Theo participou dos
musicais do Arena e no ano de 1968, a busca pela evidência das culturas de
matrizes africanas e dos povos originários, do Brasil e do restante da América, é
intensificada. Isso ocorre, com diferentes compositores. Numa sociedade onde o
racismo anti negro e indígena é estrutural, as culturas são utilizadas numa
demarcação de posicionamento, mas é também importante pensarmos nos
simbolismos dessas buscas, tanto em termos de sonoridades, quanto das letras.
Obviamente ocorre uma aproximação via conhecimentos advindos de estudos das
realidades, mesmo que não vivenciados em suas origens, isso ocorre dentro de uma
perspectiva de produção discursiva e pode ser analisada de acordo com os
interesses e trajetórias de cada compositor, assim como projetos que intencionaram
estabelecer uma comunicação com o “povo”, ou utilizá-las como base para
construções que se pretendem representativas.
A retomada de lutas antigas, também aparece de forma intensa, até por conta
dos projetos com os quais Theo se envolveu nas décadas de 1960 e 70. Sabemos
que o olhar para o passado, como aparece na canção “Espanto” Augusto
Boal/Gianfrancesco Guarnieri/Theo de Barros, foi e tem sido uma estratégia de
pensar caminhos de luta, num movimento de inspiração e de aprendizagem. A
música, campo de atuação desse artista, foi o caminho que encontrou para
expressar seus sentimentos e a defesa de suas convicções.
No segundo LP que integra o álbum, as canções e músicas abordam
elementos urbanos, com uma influência maior dos movimentos musicais que
construíram fusões, como é o caso da bossa nova. A presença jazzística é mais
intensa e as temáticas tratam das relações pessoais, canções de amor por uma
165
pessoa, dilemas e questões existenciais. Há também, canções como “Praça da
República” de Theo de Barros, que trata dos conflitos urbanos, de um cenário
caótico do fluxo de gente em meio à poluição. A ideia da cidade como símbolo de
desenvolvimento é desconstruída, esse aspecto também gera um discurso que se
contrapõe à lógica da “modernidade”, que numa análise geral da obra de Theo, nos
ajuda a compreender a visão de mundo que apresenta em suas composições.
Nos anos seguintes Theo de Barros se dedicou à publicidade, realizou alguns
shows, continuou compondo e somente veio a gravar outro disco em 1997, chamado
“Violão Solo” pela gravadora Paulinas, sua discografia é composta por quatro discos,
somando Theo de 2004 pela gravadora Maritaca e Tatanaguê de 2017 de gravação
independente.
Ressaltei algumas experiências dos músicos que fizeram parte do Quarteto
Novo, após o término do grupo sem a pretensão de apresentar suas obras
completas, mas com intuito de evidenciar suas relações com a música e as formas
musicais desenvolvidas. Como disse anteriormente, o encontro de Airto Moreira,
Theo de Barros, Heraldo do Monte e Hermeto Pascoal propiciado pelo projeto do
Quarteto Novo marcou suas trajetórias e suas musicalidades. O caminho solo teve
aspectos e trilhas particulares, demarcadas pela própria história de vida e
circunstâncias de cada músico.
O disco é um suporte importante para que o público tenha acesso ao que os
músicos e compositores expressaram, mas há também entraves nesses percursos,
sobretudo ao pensarmos na periodização da presente pesquisa. Dos anos 1960 aos
anos 1990 houve um papel preponderante das gravadoras, que ao mesmo tempo
em que acolhiam determinadas expressões, por demandas advindas dos grupos
populares e também de criações que fugiam do “cardápio” apreciado pelo público
ansioso por ouvir e se alinhar com o que chamo de “moderna música brasileira”,
acabavam por gerar obstáculos para a veiculação de uma música livre. É importante
demarcar projetos e gravadoras que fugiam dos moldes estabelecidos, até por
iniciativas propositalmente dissidentes.
Não somente as gravadoras mediaram as veiculações, outros meios, como o
rádio e a televisão, também têm papel relevante, tanto na produção da invisibilidade
quanto na construção de brechas que possibilitaram o acesso às obras aqui
analisadas.
166
Há também, movimentos de resistências protagonizados pelos artistas com
objetivo de criar caminhos e suportes para o estabelecimento de circunstâncias
favoráveis para o contato com o público e a veiculação de suas obras, como
veremos a seguir.
167
3.2 Disco de Bolso: Qual é?
O fato é que a bossa nova já não tinha o mesmo impacto que teve no final
dos anos 1950 e anos 60, e Tom Jobim já vinha manifestando sua insatisfação com
a vinculação de seu nome a um único estilo, mesmo tendo sido beneficiado em
diferentes aspectos por tal feito, ganhando um espaço hegemônico até mesmo entre
outros músicos da tendência, como Johnny Alf, pianista negro que cuja contribuição
não recebeu a mesma evidência.
169
As preocupações manifestadas na revista “Disco de Bolso”, por Tom Jobim,
eram de uma percepção da realidade do início dos anos 1970, de modernização das
cidades e uma ânsia por progresso que, na sua concepção, acabava por se tornar
destrutiva, em relação ao meio ambiente e aos modos de vida que isso acarreta.
Com uma perspectiva folclorista, faz referência à canção “Matita Perê”, passarinho
do sertão relacionado às interpretações populares, que dentro do contexto urbano,
com base no seu texto, era uma cosmovisão praticamente desconhecida e sem
atribuição de significados.
Ao falar da produção musical, Tom Jobim ressalta a importância de compor
músicas brasileiras, “com temática brasileira”, afirmando que a busca de tornar a
música universal não deveria ser o foco e dificilmente atingiria esse propósito se o
compositor se distanciasse da própria cultura. Apresentou como referência o
trabalho de Villa Lobos que, em sua opinião, se tornou universal utilizando recursos
essencialmente brasileiros, escrevendo para instrumentalização brasileira.
Diz ainda que nunca se dedicou ao jazz, fato que me causa estranhamento,
sobretudo pela vinculação anunciada do movimento bossanovista. Ao mesmo
tempo, Tom afirma que o jazz tem influências mundiais:
Essa fala flexibiliza a noção que temos da própria constituição da bossa nova
como fusão entre o samba e o jazz, não tenho como intenção realizar um
aprofundamento dos questionamentos a respeito desse fato, mas é fundamental
pensarmos que o veículo pelo qual Tom Jobim transmite sua interpretação do
movimento do qual fez parte e o momento histórico vivenciado são preponderantes
para tal versão.
Ao tratar das relações comerciais em torno da música, Tom Jobim afirma que
há um problema no Brasil em relação aos “modismos”, o que gera um ciclo de
evidência de determinados movimentos e demandas, como já citei anteriormente,
170
causando conflitos entre a experiência vivida e os processos de criatividade. Os
moldes do sucesso também limitam as criações, uma vez que imersos nas
avalanches de “oferta e procura” os processos criativos são prejudicados, até pela
falta de tempo para dedicação e busca de outras experimentações.
Percebo que é nessa conjuntura que surge a canção “Águas de Março” e não
por acaso o seu lançamento é feito dentro de um projeto antagônico em relação ao
que estava posto como “mercado musical”, com o qual Tom Jobim sempre se
relacionou bem, pelo menos enquanto atendeu aos interesses.
No “Disco de Bolso” a canção “Águas de Março” é apresentada com uma
introdução de uma citação de Olavo Bilac do “O caçador de esmeraldas” (Episódio
da epopeia sertanista no 17º século):
A surpresa de Sérgio Ricardo, não se deu por acaso, a essa altura João
Bosco já possuía um repertório e um domínio do violão que o caracterizava como
grande expoente da então música popular brasileira. Entre as composições
172
apresentadas “Agnus Sei”, foi a escolhida, como disse anteriormente, canção que
fizera em parceria com Aldir Blanc. Sérgio relata que quando Tom Jobim ouviu o
outro lado do compacto ficou extremamente impressionado, afirmando: “Esse
mineiro é bom demais”.
Apresentado no encarte como mineiro de 24 anos, nascido em Ponte Nova,
teve sua habilidade com o violão destacada: “(...) toca violão paca e a turma diz que
um dos dois tem três braços: ele ou o violão dele.” Sem dúvida, João Bosco estava
preparado musicalmente para sua primeira gravação. Ainda na breve apresentação
do encarte há uma fala significativa de Sérgio Cabral, um dos fundadores de O
Pasquim e também compositor, onde afirma: “Nada, rigorosamente nada, é mais
importante atualmente na música popular brasileira, em matéria de coisa nova, do
que a dupla João Bosco – Aldir Blanc.”
Com tamanho apoio e apreciação por parte dos idealizadores do “Disco de
Bolso”, estava confirmada a sua gravação. Lado B do compacto lança oficialmente
João Bosco no cenário musical brasileiro. A canção, gravada de forma bastante
simples, causa grande impacto. João e seu violão revelam a força de um artista, de
voz vibrante e alinhada com as sonoridades das cordas numa fusão com a energia
dos versos, fortes e impactantes. A canção de sua estreia é considerada nos dias
atuais como emblemática de sua carreira, sendo mais tarde regravada por Elis
Regina e Milton Nascimento, recebendo novos arranjos.
É importante ressaltar que a composição foi feita em parceria com Aldir Blanc
num processo de comunicação via correio, Aldir no Rio e João em Ouro Preto,
trocavam fitas cassetes. João Bosco a caracteriza como uma canção com
influências do Barroco, devido a sua vivência em Minas Gerais. Os acordes
desenhados em apenas uma nota exigem a movimentação intensa da mão direita,
segundo João Bosco, sendo ao mesmo tempo uma música que possui simetria,
podendo ser interpretada de várias maneiras.
Mesmo com sua origem barroca, os versos e a melodia, com seus diferentes
arranjos, ganham novos sentidos dentro da conjuntura vivida no início dos anos
setenta e renovam-se em cada interpretação, agregando sentidos e valores:
174
imaginativo, de como seria se Noel estivesse vivo, partindo da convicção de que
seria mais um aliado.
Na parte final do encarte há uma pequena história em quadrinhos, escrita por
Luiz Lobo e ilustrada por Jaguar: As aventuras de São Diabo. Trata-se da relação
entre as agências arrecadadoras e os(as) compositores, um grande dilema que
envolve os direitos autorais e as formas de arrecadação. No Brasil surgem no início
século XX as chamadas “sociedades dos direitos autorais”, criadas em sua maioria
por pessoas ligadas à musica.
O posicionamento dos diretores e artistas que participaram da produção do
“Disco de Bolso” é anunciadamente crítico em relação às “arrecadadoras”, como
podemos observar nas tirinhas abaixo e nos discursos presentes no encarte:
175
No desfecho da trama, a grande maioria do público que simboliza a classe
artística, acredita no discurso de que os dirigentes das sociedades arrecadadoras
são na realidade facilitadores. Esse é um debate que surge também nas entrevistas
realizadas e há posicionamentos diferentes a respeito dessa forma de organização.
Geraldo Vandré é categoricamente contra e afirma que pouco ou nada recebe sob a
veiculação de sua obra, Heraldo do Monte e Hermeto Pascoal também assumem o
mesmo posicionamento, quando realizam críticas ao ECAD (Escritório Central de
Arrecadação e Distribuição), que acabou por se tornar hegemônico entre as
agências. Mas, há também divergências, nos relatos de Joyce Moreno e de Theo de
Barros, por exemplo, o surgimento do ECAD foi fundamental para a garantia dos
direitos autorais.
Na parte de trás da capa da primeira edição há um anúncio dos “Mutantes”, o
que denota aparentemente uma contradição, frente às falas e posicionamentos
contidos na revista, porém, numa análise mais profunda e por meio da entrevista
realizada com Sérgio Ricardo pude compreender que as críticas não eram
direcionadas aos gêneros e estilos musicais, nem mesmo aos artistas e sim à forma
como a indústria cultural brasileira elegia determinadas expressões como “a crista
da onda”, preterindo outras que não se encaixassem nas “fórmulas defendidas”
como possibilitadoras do “sucesso”.
O fato é que o “Disco de Bolso” em sua essência tem um posicionamento
crítico não somente em relação às formas de organização da arrecadação dos
direitos autorais, mas a todo sistema de produção e seus mecanismos de difusão da
música. Esse discurso é recorrente e aparece também na segunda e última edição.
176
A segunda e última edição do “Disco de Bolso”, também dirigida por Sérgio
Ricardo e Luiz Carlos Bravo, apresentou como cantor já conhecido Caetano Veloso,
que retornara do exílio no mesmo ano, 1972. Na capa o anúncio: “Caetano canta a
volta da Asa Branca de
Luiz Gonzaga –
Apresentando Fagner
enquanto São Diabo
ataca na TEVÊ”. O
personagem “São
Diabo” já apresentado
na história em
quadrinhos, de Luiz
Lobo e Jaguar,
analisada na primeira
edição retorna em uma
temática que
apresentarei mais
adiante.
Caetano aparece na capa, por meio de uma ilustração feita por Oliveira
Monte, numa caricatura com um mico leão dourado no ombro. Simbologias que
enfatizam seu pertencimento e conexão com a terra e sua personalidade marcante
dentro do tropicalismo. Acima o pensamento: “A música está numa fase meio Geléia
Geral”, numa referência à canção composta por Torquato Neto e Gilberto Gil, que
fundamentada pela expressão de Décio Pignatari (poeta e ensaísta brasileiro)
recebeu o título de Geleia Geral, tornando-se uma forte referência ao estilo e
musicalidades presentes no movimento tropicalista.
De fato nos anos 1970 houve diferentes manifestações musicais, com
tendências bem diversificadas e expressões que misturavam sonoridades e
instrumentações de diferentes origens, fato que já vinha ocorrendo nas décadas
anteriores, mas que ganham maior projeção. A utilização de instrumentos elétricos
se expandiu, assim como as influências do rock, do blues, do soul, do funk e do folk,
177
e a tentativa de rotulações e enquadramentos foi se tornando cada vez mais
complexa.
Muitas expressões ganharam maior popularidade, sobretudo, por conexões
identitárias das parcelas mais pobres da população, que tendo acesso e gosto pelas
músicas internacionais produzidas por artistas negros(as) estadunidenses, que
chegavam ao Brasil por meio do rádio e dos LP’s, passaram a assimilar as canções
de artistas como Tim Maia, Jorge Bem, Cassiano, Paulo Diniz, Hildon entre outros,
assim como muitas expressões do samba rock também.
Em meio a tudo isso, Caetano, que sempre se manifestou defensor das
experimentações e misturas faz a opção de gravar no “Disco de Bolso” a canção de
Luiz Gonzaga, “A volta da Asa Branca”, cuja análise farei em momento oportuno.
Na contra capa da segunda revista uma tirinha do Jaguar:
Uma abordagem
recorrente em relação à situação
dos músicos e seus dilemas
diante das múltiplas realidades
vivenciadas na década de 1970,
frente à modernização e à
escassez de trabalhos em
decorrência das novas
tecnologias. A guitarra aparece
de forma simbólica e
emblemática, mas as críticas
presentes no “Disco de Bolso” se
expandem para os demais
instrumentos e recursos elétricos que geraram novas formas de gravação, inclusive
dos discos de vinil em circunstâncias e procedimentos que diminuíam as
oportunidades de contratações dos músicos. Heraldo do Monte e Theo de Barros
falaram a respeito do cenário do início dos anos 1970 e de como foi se tornando
cada vez mais difícil encontrar trabalho frente às inovações tecnológicas e o avanço
dos recursos musicais eletrônicos.
178
A princípio os grupos foram mais atingidos, uma vez que era possível obter
gravações em diferentes canais, ou numa linguagem mais leiga, em diferentes
camadas, depois mesmo os trabalhos individuais no acompanhamento de
cantores(as) foram se tornando raros, esses fatores foram preponderantes para o
ingresso de Theo de Barros na publicidade, com a produção de jingles como
alternativa para se manter e também do “ostracismo” comentado por Heraldo, que
conseguiu um emprego na orquestra da TV Tupi, onde permaneceu durante sete
anos, como já relatei anteriormente, mas que posteriormente teve seus percalços.
O primeiro texto da revista, uma espécie de editorial a exemplo da primeira
edição, é assinado por Sérgio Ricardo. O título é “Alô Vandré” e traz uma imagem de
um violão entregue às teias de aranha:
O texto, escrito em primeira
pessoa, apesar do “Alô”
assume um tom de carta, por
meio do qual Sérgio Ricardo ao
mesmo tempo em que clama
pelo retorno de Vandré, levanta
questões sobre o “sumiço”,
frente ao retorno de outros
artistas como Chico Buarque,
Caetano e Gil, que também
foram exilados, mas que já
haviam retornado “sem grandes
complicações” e continuavam
produzindo, fazendo coisas
novas. Sérgio também fala, de
forma otimista, a respeito do
cenário musical do país, das
novas expressões que estavam
surgindo, “enviando” notícias
sobre diferentes compositores.
O tom inicial e a imagem do violão junto às teias, provocam uma sensação de
que Sérgio Ricardo desconhecia a realidade vivenciada por Vandré, mas no decorrer
179
do texto a imagem e as primeiras impressões vão se descontruindo, na medida em
que ele vai levantando hipóteses a respeito do tal “sumiço” e ao mesmo tempo
dialogando consigo mesmo sobre o “absurdo” que significava o impedimento do
retorno de Vandré ao Brasil:
181
passou por grandes dificuldades, sobretudo no início dos anos 1960, após a morte
de um de seus principais parceiros, o Zé Dantas.
Duas páginas foram dedicadas a uma rápida apresentação de Luiz Gonzaga,
sua trajetória de Exu, cidade onde nasceu, seus primeiros passos na música sob
inspiração de seu pai, as andanças pelas festas do sertão, sua entrada para o
exército e depois sua ida para o Rio de Janeiro, onde buscou atuar como sanfoneiro.
O texto ressalta que a música que Luiz Gonzaga tocava na cidade não era a mesma
do sertão, que o repertório era de encomenda do público e se relaciona ao local
onde estava tocando, geralmente “zonas e cabarés”.
Há memórias de sua passagem pelas primeiras rádios, como no programa de
Ary Barroso, onde percebeu que “suas raízes secas do mandacaru do sertão podiam
fazer sucesso na cidade”. E de fato, no início dos anos 1940 obteve êxito, com a sua
primeira gravação em 1941 pela RCA e posteriormente pela Odeon.
O que chama atenção é a expressão “agora sou lúdico, autêntico, virei um tal
de folclore”, porque mesmo diante da busca de outros artistas de evidenciar o valor
da obra de Luiz Gonzaga, como o próprio Vandré que regravou Asa Branca no LP
Hora de lutar em 1965, os termos utilizados ainda soam como pejorativos, no
sentido de atribuição de uma valoração inferior pelo conteúdo e forma musical
vinculados às culturas do sertão. O texto da revista Nº 2 do “Disco de Bolso”
destaca:
Segundo o texto da revista, dirigido por Sérgio Ricardo e Luiz Carlos Bravo,
porém sem identificação precisa de quem o redigiu, o início dos anos 1950 foi um
período em que Luiz Gonzaga retomou suas práticas de tocar e cantar em festas
populares. Após a morte de Zé Dantas, em 1962, destacam que o “prestígio” já não
era o mesmo, mas que mesmo assim continuou se apresentando em diferentes
182
lugares. As expressões utilizadas como “lúdico, autêntico e folclore” denotam uma
análise equivocada a respeito de expressões populares, como disse anteriormente,
ao passo em que ignoram as representatividades e a força cultural das canções e
musicalidades presentes na obra do artista junto a seus parceiros, instituindo um
lugar no passado.
Ao evidenciar a trajetória de Luiz Gonzaga e retomar sua canção em 1970,
Caetano Veloso, junto à equipe do “Disco de Bolso” a ressignificam e demonstram a
atualidade da canção naquele momento, mesmo que explicitamente não questionem
o tom de folclorização da obra, deixando nas entrelinhas, a partir do riso do próprio
Luiz Gonzaga suas impressões diante de tais atribuições.
O texto de apresentação de Caetano: O mano, o mito humano Caetano,
transcreve as falas do próprio artista a respeito do imaginário construído a seu
respeito, sobretudo pela imprensa. Afirmou que não se via como mito, muito menos
que desejava a alcunha de “liderança”, visto que somente poderia ser responsável
por si e pelas canções que compunha. Ressaltou que a ideia de ser considerado
como liderança de uma geração lhe causava angústia.
Na verdade as atribuições e rotulações são construídas em grande parte pela
imprensa, não havendo uma correspondência direta com a realidade. É fato que
Caetano se tornou bastante evidenciado, sobretudo entre os estudantes da classe
média que se identificavam com o tropicalismo e que seu exílio, assim como o de
Chico Buarque e de Gilberto Gil se constituíram como uma violência, assim como o
de outros artistas como Vandré. De certa forma o regresso de Caetano e toda
“mitificação” em torno de sua personalidade e sua obra, surtiram um efeito que o
próprio artista questiona por meio de seu relato no “Disco de Bolso”, ao mesmo
tempo em que diz compreender tais reações.
Tendo plena noção do significado de sua prisão, junto a Gilberto Gil e
posterior exílio, Caetano diz haver traumas, feridas abertas que busca acalentar por
meio de suas composições e projetos futuros. A respeito da canção escolhida para
gravar no “Disco de Bolso” comenta que já tinha gravado “Asa Branca” no LP que
fizera em Londres e que também cantava a “Volta da Asa Branca” e que retornando
resolveu incluí-la no show: “(...) Eu estava com ela na cabeça e coincidiu com uma
coisa muito importante que foi o espetáculo do Luiz Gonzaga no Rio. Foi uma das
183
coisas mais lindas que eu já vi na minha vida.” (Caetano Veloso – Disco de Bolso Nº
2, 1972, p. 7).
A atmosfera de regresso, os sentimentos e expectativas podem ter gerado em
Caetano a sensibilidade para audição e reprodução dessa canção e, porque não
dizer, um processo de identificação:
A capa do disco, feita por Ziraldo, traz ao centro a Lua, que simboliza o rosto
do “Rei do Baião”, no céu estrelado sobre a vegetação típica do sertão, com ênfase
ao mandacaru. A versão, gravada ao vivo por Caetano no show realizado no Teatro
João Caetano, num arranjo simples com improvisos em que se misturam voz e
violão, num canto com certa serenidade.
184
“Já faz três noites que pro norte relampeia
E a asa branca ouvindo o ronco do trovão
Já bateu asas e voltou pro meu sertão
Ai, ai eu vou m’embora
Vou cuidar da prantação
Como disse anteriormente, o arranjo feito por Caetano, tem um ritmo mais
lento que a versão original de Luiz Gonzaga, quase num tom de lamento. Há
alterações da letra e forma de dicção das palavras, por exemplo no trecho em que
fala “da muié séria” no singular, quando Gonzaga diz no plural “das muié séria”. Os
improvisos de voz parecem simular o som da sanfona, visto que Caetano utiliza
somente o violão no acompanhamento e também a supressão do último verso que
fala da “Rosinha”, que coloca ênfase, no término, o verso “Ai, ai o povo alegre/ Mais
alegre a natureza”, seguido do improviso de voz que vai silenciando aos poucos,
findando a gravação com os aplausos.
185
O retorno de Caetano e dos demais artistas citados se deu antes da Lei de
Anistia (1979). Num cenário pós AI-5 e com uma atuação intensa da repressão, o
que não os impediu de continuar atuando, gravando discos e realizando shows,
mesmo submetidos à censura prévia, instituída em janeiro de 1970.
A canção foi feita por Luiz Gonzaga dentro de uma conjuntura específica,
juntamente com Humberto Teixeira, fazendo referência aos períodos de anúncio de
chuvas e consequente fertilidade para as terras sertanejas. Cantada por Caetano
Veloso e gravada no “Disco de bolso” pode assumir proporções e significados
diferentes, como comentei acima. Tudo que circunda a canção, os arranjos, a
entonação, a plateia, o espaço ressignificam suas formas de expressão e recepção.
Há um sentimento de regresso, em meio às intempéries do clima, que ao mesmo
tempo em que possibilita a ação e buscas por brechas, também, implica em olhares
atentos e cuidados específicos dentro de um momento repressivo.
O lado “B” do “Disco de Bolso” apresentou Fagner, um jovem cearense,
nascido em Orós, que desde a infância demonstrou seu interesse em cantar. Na
revista é apresentado: “Bichim novo, seis pra sete anos, ia aos domingos pra Rádio
Iracema, ele e a irmã. A fim? A fim de cantar. E cantava”. Ainda bem moço, Fagner
foi morar em Fortaleza para estudar, mas seu envolvimento com a música se
tornava cada vez mais intenso, ganhando o primeiro lugar no IV Festival de Música
Popular Cearense, realizado em 1968, com a música “Nada sou” que fizera em
parceria com Marcus Francisco. O prêmio foi uma viagem de Fortaleza à Brasília,
cinquenta dias de viagem por terra: “Aí, Fortaleza não dava mais, fui embora pra
Brasília (um ferro concreto surdo cego) fazer faculdade.
Fagner entrou no curso de Arquitetura, mas usou a estrutura universitária
para participar dos festivais, se tornou popular em Brasília e suas músicas eram
tocadas nos bares. Não permaneceu por muito tempo, afinal o eixo Rio/São Paulo
ainda era a atração para quem desejava enveredar pelos caminhos profissionais.
A essa altura já havia composto “Mucuripe” juntamente com seu conterrâneo
Belchior. Com essa canção foi classificado em primeiro lugar Festival de Música
Popular do Centro de Estudos Universitários de Brasília.
Belchior já era mais embrenhado nos meios musicais, tendo ganhado o
primeiro lugar no IV Festival Universitário de 1971 com a música "Hora do Almoço",
interpretada por Jorge Melo e Jorge Teles. A evidência de Belchior e a insurgência
186
de Fagner no cenário musical, fortaleceram os olhares para canções que vinham
ganhando espaço desde o final dos anos 1960, como as produzidas pelo “Pessoal
do Ceará” que contava com a participação de Ednardo, Rodger e Teti, sendo o
primeiro disco produzido em 1972, ainda sem a participação de Belchior e Fagner
que estavam concentrados nos projetos individuais, se juntando posteriormente ao
grupo.
É importante ressaltar o espaço que a música cearense conquistou nesse
período e ao mesmo tempo problematizar algumas expressões de que a mesma
ganhava espaço em contrapartida ao que era chamado de “música nacional”. Afinal,
o que era considerado “música nacional”? Já teci comentários a esse respeito, mas
considero uma questão bastante relevante pensarmos as antíteses ou dicotomias
criadas em torno dos movimentos musicais e as formas de classificações realizadas
a partir de fora, sobretudo pela imprensa, pela crítica musical e pela própria
historiografia.
Retomando a questão central nessa etapa do texto, Fagner já havia chamado
atenção de Elis Regina, que segundo os próprios diretores do “Disco de Bolso”, já
havia manifestado a intenção de gravar “Mucuripe”: “Elis querendo foi alegria geral
nos imigrantes: a importância de ser lançado pela mesma pessoa que lançou Milton
(Nascimento), Gil e Edu. É, Raimundo, bichim.”. O fato é que a canção foi lançada
oficialmente pelo “Disco de Bolso” e logo em seguida regravada por Elis Regina,
com outro arranjo, mais tarde também por Roberto Carlos (1975).
As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vou mandar as minhas mágoas
Pras águas fundas do mar
As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vou mandar as minhas mágoas
Pras águas fundas do mar
187
Calça nova de riscado
Paletó de linho branco
Que até o mês passado
Lá no campo inda era flor
As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vou levar as minhas mágoas
Pras águas fundas do mar
188
leva-me daqui”. Augusto Pontes foi um poeta cearense importante para a formação
literária e intelectual de muitos compositores cearenses, fundamental para a união
do grupo que viria a constituir, o chamado “Pessoal do Ceará”. O próprio Belchior
tem trechos em suas canções cuja inspiração vem de seus versos.
Dessa forma, a apresentação de Raimundo Fagner e a possibilidade de
projeção por meio da iniciativa do “Disco de Bolso” potencializaram o acesso à sua
obra. O projeto foi importante e de fato poderia ter vingado, como disse Sérgio
Ricardo, foi uma ideia “maluca”, diante da realidade vivenciada, mas ao mesmo
tempo afirmou, durante a entrevista, que faria tudo de novo.
No final da revista, seguindo o padrão da primeira, há uma história em
quadrinhos, com texto de Luiz Lobo e ilustração do Jaguar: “Infelizmente a nossa
TEVÊ ainda não tem o som para que o telespectador possa ouvir a música popular
brasileira”.
189
Na história em quadrinhos há dois personagens, e durante toda sequência
ocorre praticamente um monólogo, ficando o personagem “São Diabo” o tempo todo
só a ouvir enquanto fuma. É ressaltada também a consequente falta de interesse por
parte dos artistas, considerados como “melhores compositores”, que não satisfeitos
com o “esquema” de abordagem de suas obras, via demonstração única nos
momentos dos festivais, acabam por se retirar de cena, nem mesmo se inscrevendo
e ficando “de fora dos festivais e marginalizados o resto do ano”.
Enquanto produz seu discurso, o personagem central vai sendo encoberto
pela fumaça do cigarro, sugerindo a falta de interesse na audição e até mesmo a
produção da invisibilidade, diante dos argumentos que, com base na expressão, são
ignorados pelos produtores das emissoras de TV.
190
que “São Diabo pronuncia as falas finais: “Eu acho bobagem” e retirando a máscara
se identifica: “Eu sou produtor de TEVE – São Diabo ataca de novo!”.
Todos esses aspectos demonstram a forma como os artistas envolvidos com
a produção do “Disco de Bolso” compreendiam as novas relações estabelecidas
com a grande mídia. E reafirmam a importância do projeto e a necessidade de se
buscar alternativas para que as expressões musicais chegassem ao “grande
público”. A primeira tiragem da edição Nº1, trinta mil exemplares, não atingiu o
número de vendas esperado e acredito que naquele momento as expectativas em
relação à continuidade do trabalho já causavam certa instabilidade ou até mesmo
incerteza a respeito das formas de recepção.
Na última página da revista uma chamada:
191
Considerações finais
Em casa, no final dos anos 1980, havia uma televisão preto e branca e um
rádio toca fitas pertencente a meu irmão mais novo. A TV era restrita aos canais
abertos, mas a rede Globo, definia a rotina do dia, era por meio de sua programação
que sabíamos os horários e a dinâmica das tarefas. O rádio, era objeto de pouco
acesso, só ouvíamos quando meu irmão estava em casa, ele não ouvia a
programação tocada, tinha algumas fitas cassetes, trilhas de novelas, Paulo Diniz e
algumas fitas de cantoras internacionais. Eu gostava do Paulo Diniz e da Tracy
Chapman, às vezes usava o rádio escondido, quando ele estava no trabalho.
Meu irmão mais velho tocava violão, tinha aquelas revistas com as cifras...
Gostava de ouvi-lo tocar, Tim Maia principalmente. Ele até tentou me ensinar alguns
acordes simples. Meu pai também tocava, eram “modas de viola” como costumava
falar. Sempre gostei de músicas e de alguma forma elas me confortavam ao mesmo
tempo em que me provocavam curiosidades, vontade de saber mais.
Finalmente meu irmão mais velho comprou um “três em um”, um aparelho
usado, com toca disco, rádio e vinil, com ele uma caixa amplificada. Lembro-me dos
primeiros discos de vinil, ao qual chamava de “black music”, muito soul, algumas
“melodias”, disco do Rey Charles, samba rock, samba de raiz. Aquilo tudo me
fascinava. A programação do rádio era pouco ouvida, me recordo apenas dos
programas noturnos do tipo “Love Line”. De manhã minha mãe ouvia Zé Bétio,
canções românticas e as chamadas de “brega” que intercalavam histórias trágicas
narradas pelo locutor.
Já num momento de maior acesso ao rádio, que deixou de ser considerado
uma “relíquia” no início dos anos 1990, veio uma onda de músicas brasileiras, que
se misturavam às canções internacionais. Era a fase dos pagodes, atrativos num
primeiro momento, mas logo se tornaram enfadonhos para mim,
25
SILVA, Salomão Jovino da. A polifonia do protesto negro: movimentos culturais e musicalidades negras
urbanas – anos 70/80 – Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. São Paulo, 2000. Dissertação de Mestrado –
PUC/SP.
192
Como disse nos agradecimentos, meus irmãos morreram jovens, Os discos,
as fitas e o aparelho de som foram minhas heranças. Já adolescente tive contato
com o RAP, que marcou de forma tão profunda a minha vida e de outros(as) jovens
da periferia, que mais que gênero musical se tornou fonte de aprendizagem e
constituição de imagens positivas a respeito da negritude e do pertencimento à
periferia.
Aos 16 anos trabalhei com metalurgia nos fundos de uma casa na região da
Capela do Socorro, Zona Sul de Paulo, que já era uma espécie de polo de
concentração de indústrias. Mas, o meu trabalho era terceirizado, um encarregado
de uma das empresas levava as peças a serem produzidas por um grupo de jovens
e recebíamos nosso pagamento de acordo com a produção, sem registro em
carteira e nem garantias de direitos trabalhistas. Falo desse lugar porque foi ali que
tive acesso à chamada MPB e outros gêneros como o rock nacional dos anos 80.
Foi uma experiência marcante, o filho “rebelde” da família, Fabrício,
costumava acordar no início da tarde, logo após o nosso horário de almoço e tocava
na sala ao lado do ambiente onde trabalhávamos as músicas que gostava de ouvir,
em alto volume. Isso incomodava parte do grupo de adolescentes trabalhadores(as),
mas em mim causou empatia e aos poucos fui conhecendo as canções e seus
intérpretes.
Com o pagamento que recebia, que na maioria das vezes não chegava a um
salário mínimo, comecei a comprar discos de vinil dos(as) cantores(as) que me
chamaram maior atenção, Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Gal
Costa, Maria Bethania e Geraldo Vandré, assim como discos de algumas bandas
como Legião Urbana, Titãs e Capital Inicial.
Faço esse relato nessa etapa do texto para ressaltar os questionamentos que
apresentei inicialmente. Intrigava-me o fato de não ter acesso a esse tipo de música
no local onde morava e ainda moro. Questionava-me porque na programação das
emissoras de rádio e TV que costumávamos ver e ouvir em casa essas canções não
eram difundidas.
Isso gerou um “divisor de águas” em minha vida, pois a cada vez que adquiria
um LP, comprado nos “sebos” que vendiam discos usados, minha vontade de
conhecer mais e me aprofundar na conjuntura de produção daquelas músicas
aumentava. Na minha formação como historiadora os discos vieram antes dos livros,
193
visto que foram as canções e seus sujeitos, que me levaram a estudar os momentos
históricos, com destaque para o período da Ditadura Civil Militar. As críticas
presentes nas canções se alinhavam com a visão de mundo que eu tinha, fruto
também da experiência com as músicas que ouvia desde a infância e o RAP,
gerando uma noção bastante sensorial do que hoje chamo de temporalidades e
suas permanências.
Foi assim que aos 17 anos, já concluindo o antigo Colegial, resolvi fazer
graduação em História. Levou um tempo, fiz cursinho pré-vestibular, participei do
processo seletivo da FUVEST e não passei. Em 1997 ingressei no curso de História
da Universidade de Santo Amaro, uma universidade privada. Logo no início do curso
fomos comunicados(as) que teríamos que fazer um Trabalho de Conclusão de
Curso (TCC) e nos primeiros semestres já tínhamos a disciplina de Iniciação
Científica e Prática de Pesquisa. Quando cogitada a necessidade de se pensar num
tema, não tive dúvidas, desejava pesquisar sobre as músicas produzidas dentro do
período da Ditadura Civil Militar.
Recebi amplo apoio do professor Ival de Assis Cripa, que de forma
antecipada foi me dando dicas para delimitação do tema. No momento de
apresentação do pré-projeto, já no terceiro semestre do curso, tinha a temática
delineada, decidi pesquisar sobre Geraldo Vandré.
Os questionamentos eram bastante simplistas, mas foram sendo aprimorados
por meio das orientações do professor. A principal problematização era: Por que, ao
contrário de outros cantores também perseguidos pela ditadura, Vandré não voltou a
cantar? Além disso, pairava sobre meu pensamento o questionamento vindo de
anos atrás: Por que esse tipo de música não era acessível às pessoas que moravam
nas periferias?
Pode parecer um dilema ingênuo, apresentado dessa forma, mas esses foram
os embates que me trouxeram até aqui. A princípio com o desenvolvimento da
dissertação de mestrado em História na PUC/SP: Para não esquecer Vandré,
orientada pela professora Maria do Rosário da Cunha Peixoto. Depois, já no ano de
2015 a elaboração do Pré-projeto de doutorado, envolvendo outros sujeitos, outros
artistas que mesmo dentro do circuito de difusão da MPB, da Tropicália e da Bossa
Nova, não tinham tanta evidência.
194
A estruturação dessa pesquisa e a delimitação da temática, sob orientação da
Rosário, me levaram a ampliação das análises sobre os músicos, compositores e
cantores: Airto Moreira, Geraldo Vandré, Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte,
Sérgio Ricardo e Sidney Miller. Num primeiro momento, dentro da perspectiva de
presente, os principais questionamentos eram sobre a falta de visibilidade e as
relações desses artistas com a indústria cultural brasileira.
No decorrer do trabalho e, sobretudo, a partir das entrevistas pude notar a
importância de registrar e analisar suas trajetórias, pontos de convergências,
particularidades e relações com a música e construção de suas obras.
No primeiro capítulo “Conexões e relações com a arte: Nas ruas, cidades e
sertões” busquei evidenciar seus primeiros contatos com as sonoridades e
musicalidades dos locais onde nasceram e cresceram o que me possibilitou uma
compreensão maior a respeito de suas composições e posicionamentos dentro do
período delimitado (1960-1990).
Nesse capítulo fica evidente que os vínculos com a música surgem ainda na
infância, tendo particularidades em função da conjuntura e dos locais de onde
vieram. Hermeto Pascoal (Lagoa da Canoa - Alagoas) e Airto Moreira (Nascido em
Santa Catarina, mas criado em Ponta Grossa - Paraná), por exemplo, passaram a
infância em lugares relacionados aos espaços rurais, tendo algumas semelhanças
nos primeiros passos, nas observações do entorno, no contato com a natureza e na
produção de “instrumentos” a partir de objetos e plantas que os circundavam.
Também passaram por experiências de tocar nos bailes, festas de casamento,
batizados e comemorações de toda sorte, ainda bem novos. Uma prática comum,
presente nas histórias de outros artistas provenientes das zonas rurais.
Essas memórias são muito vívidas para ambos, seus relatos partem dessas
relações e da importância da liberdade de criações ainda na infância. Além das
experiências nos bailes da vizinhança ressaltam também a procura por emissoras de
rádio, já com a convicção de que desejavam investir na carreira musical.
Com as devidas particularidades, Sérgio Ricardo (Marília – São Paulo),
Geraldo Vandré (João Pessoa – Paraíba), Herlado do Monte (Recife – Pernambuco),
Sidney Miller (Rio de Janiero – RJ) e Theo de Barros (Rio de Janiero – RJ), também
se sensibilizaram para a música na infância, tendo influências familiares e dos
ambientes em que viveram. Com experiências dos centros urbanos, mas também
195
com características demarcadas por processos de transição, ou seja, com fortes
ligações com as culturas das cidades interioranas.
Além do incentivo por parte de alguns familiares ligados à música, exceto
Vandré, todos eles passaram por experiências e contatos com a música nos
ambientes escolares. Sérgio Ricardo estudou piano desde pequeno, Geraldo Vandré
acompanhava a programação do rádio e sonhava em ser cantor a revelia da mãe
que almejava sua graduação em Direito, Heraldo do Monte participou da banda de
seu colégio tocando clarinete, Theo de Barros tinha em sua casa o trânsito e as
práticas de músicos profissionais e Sidney Miller já se dedicava à literatura e às
primeiras composições também em sua escola.
Essas informações nos aproximam da importância que a música teve nas
vidas dessas pessoas, e cada trajetória e alguns caminhos cruzados, demarcam a
dedicação e o empenho para se profissionalizarem e, mais do que isso pensar
música, de uma forma muito íntegra e com seriedade. O sentimento relatado por
eles ou contado por outras pessoas com as quais tiveram contato, como é o caso de
Sidney Miller (em memória), é de amor pela música, além de uma profunda
dedicação.
A criatividade e as escolhas dos gêneros a que se dedicaram não podem ser
compreendidas sem o conhecimento de suas histórias, por isso, o primeiro capítulo
trata dessas questões. Mesmo que em alguns momentos, do ponto de vista formal o
texto assuma um caráter biográfico, considerei importante dar ênfase às suas falas.
O texto acadêmico é um veículo limitador da transposição dos sentimentos que
presenciei, das histórias que ouvi e das sensações provocadas, sobretudo, por
transcenderem à noção de racionalidade. É um projeto ainda incipiente, mas desejo
produzir um documentário, que fortaleça o que busquei comunicar nesse trabalho,
na verdade, uma necessidade, visto que as palavras não bastam para compreensão
dos fatos comunicados.
Os caminhos para a profissionalização também se entrecruzam e possuem
semelhanças. A busca pelos centros urbanos e mais tarde para o Eixo Rio/São
Paulo, os trabalhos em bares e boates nas noites, as adaptações aos repertórios e
os contatos obtidos por essas práticas são etapas fundamentais para a consolidação
de suas projeções e possibilidades de ganhos financeiros para sobreviverem como
músicos, compositores e cantores.
196
As rádios têm um papel fundamental nas trajetórias citadas, no final dos anos
1950 e início dos anos 60 ainda era bastante comum os programas de auditório,
alguns com caráter de concursos musicais, outros com propósitos de tocar canções
ao vivo. Para os músicos, um importante meio de sobrevivência, uma vez que eram
bastante requisitados para acompanhamentos de cantores(as) diversos(as).
O trabalho na noite, seja em Recife, como foi o caso de Hermeto, Heraldo e
Geraldo Vandré ou em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde também atuaram como
os demais, foi um período de extrema dedicação, de aprendizagens e percalços.
Mas, sobretudo, uma “abertura de portas” para que se tornassem conhecidos, que
estabelecessem contatos importantes com outros artistas e que se enfronhassem
nos meios musicais.
Paralelamente continuaram compondo e buscando autoafirmação, o que
relato no segundo capítulo “Indústria Cultural Brasileira, tensões e suas relações
com a música”. Entre os processos de criações, concepções e apresentações das
obras há mediações que atravessam esses fazeres, o conjunto de mecanismos
compostos no período delimitado, com feições e características particulares em cada
momento, interferem, ainda que sem poder determinante, como ressaltei durante
todo o texto, nas obras e suas veiculações. É nesse ponto que reafirmo o caráter
autoritário de nossa sociedade e, consequentemente da indústria cultural brasileira,
que não se limitavam à Indústria fonográfica e suas gravadoras, mas a toda uma
rede de comunicação que atuaram na difusão, interferindo diretamente nos
processos de difusão e acesso às obras por parte da população.
Todos os relatos nos permitem verificar pontos de tensões, que são de forma
geral mais evidenciados durante a Ditadura Civil Militar, quando o Estado assume
seu caráter autoritário e os mecanismos de controle coadunam com alguns setores
da indústria cultural brasileira, destacando que mesmo assim havia projetos
divergentes, mas que também são verificados em momentos ditos democráticos,
como no final dos anos 1980 e anos 90.
Essas “tensões” estão diretamente ligadas ao fazer político da arte, que pode
ser assimilada ou repelida, de acordo com o posicionamento de seus criadores. Mas
há também processos de negociação e de pressões bastante complexos que
possibilitam a quebra de algumas imposições. As frestas sempre existiram, mas é
inegável a feição controladora das obras e das formas de veiculação. Existem
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fatores diversos que atuam nesse sentido, sem retirar o caráter político, é possível
refletirmos sobre a mercantilização da música e das canções e seu direcionamento
para um público específico, passando obviamente por questões de classe e das
construções em torno do que se chamou de “cultura de massa”.
Nesse sentido o papel da TV, do rádio e da imprensa escrita tem muito a ver
com as restrições de acesso e o direcionamento do tipo de música a ser
“consumida” pelo público. Além disso, a própria concepção da música e suas
diferentes tendências geram formas de recepções também bastante complexas.
A Bossa Nova, por exemplo, tem em suas bases uma cultura voltada para os
centros urbanos, feita e cultuada por pessoas da classe média, ainda que tenha se
“alimentado” de expressões da música popular, como o samba. A chamada MPB,
como já problematizada anteriormente teve como público principal a esquerda
intelectualizada, com seus níveis de identificação e contemplação dos projetos de
sociedade vislumbrados pela juventude dos anos 1960, ainda que tenha se
expandido de forma bastante restrita aos demais setores e grupos populares. Cada
“movimento” ou “gênero” possui particularidades que nos ajudam a entender suas
relações com a indústria cultural brasileira, em seus momentos de “assimilação”
permeadas por interesses financeiros ou de “repulsão” diante das pressões
exercidas pelo Estado autoritário.
Essas questões são bastante complexas, não intenciono qualificar ou
desqualificar movimentos como a Tropicália, por exemplo, mas enfatizar que as
questões que lancei inicialmente a respeito do acesso às obras passam por
reflexões muito profundas a respeito da constituição de um “mercado consumidor” e
sobre a significação e criação de estereótipos acerca do popular.
A forma como cada músico, compositor e cantor aqui abordado se relacionou
com a indústria cultural brasileira é bastante particular. Vandré e Sérgio Ricardo
tiveram grande evidência nos anos 1960. Vandré teve inclusive programa na TV
Record “Disparada”, do qual participou também o Quarteto Novo. Depois de sua
apresentação no Festival Internacional da Canção de 1968, promovido pela Rede
Globo, com a canção “Para não dizer que não falei de flores” e com o Ato
Institucional Nº5 e seu consequente exílio, passou a ser banido, seus discos
confiscados e seu nome proibido de ser veiculado. Sérgio Ricardo também relata,
que sofreu grande perseguição e que suas canções eram proibidas de serem
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tocadas nas rádios. Na verdade, durante todo o período ditatorial a música foi alvo
de repressão, mesmo antes do AI-5 e da censura prévia. Mesmo assim, as canções
eram veiculadas e os discos vendidos. A ditadura foi ditadura desde o primeiro
instante, mas há períodos de acirramento e as consequências após o exílio foram
variáveis em relação a cada artista e suas formas de manifestações.
Vandré, por exemplo, lançou o disco “Das Terras de Benvirá”, que não lhe
trouxe nenhuma projeção, o que contradiz o discurso de que ele optou por não dar
continuidade às atividades artísticas. Como sabemos, sua participação em qualquer
veículo de transmissão foi vetada e a mídia continuou produzindo uma imagem
equivocada a seu respeito, nas poucas vezes em que foi citado, constituindo uma
imagem de “louco” e “contraditório”. A “cultura de esquerda” também contribuiu para
essa constituição, obviamente com exceções, mas os discursos de que ele “traiu e
abandonou” o “movimento” são presentes.
Vale destacar, mesmo estando fora da periodização da presente pesquisa,
que em março de 2018 realizou duas apresentações em João Pessoa, financiadas
pelo Governo estadual da Paraíba. Momento em que após 50 anos de
silenciamento, apresentou músicas inéditas que compôs ao longo dos anos e cantou
“Pátria amada, idolatrada, salve, salve” e “Pra não dizer que não falei de flores”.
Fato significativo, sobretudo, no momento político em que vivemos, indicativo de que
não estar em evidência não significa que deixou de produzir e de acreditar na arte.
Sérgio Ricardo, também continuou produzindo, lançou discos, como
“Arrebentação” em 1971, “Sérgio Ricardo” em 1973 e também produziu filmes, como
“A noite do espantalho” em 1973, um longa metragem que trazia Alceu Valença e
Geraldo Azevedo, considerado uma “opera brasileira” que ganhou prêmios
internacionais, sem grandes evidências no Brasil.
Continua na ativa, no Morro do Vidigal no Rio de Janeiro, fazendo músicas,
canções, apresentações, teatro e música. Mas, como ele mesmo cita “a mídia não
quer saber de mim”. Suas produções são independentes e os recursos bastante
escassos. É também artista plástico, pinta quadros há décadas, inclusive tem um
mural na praça de alimentação da PUC/SP, pouco notado pela juventude
universitária.
Sidney Miller, como relatou Joice Moreno, passou por momentos de grande
frustração diante da repercussão, ou falta dela, com seu último disco “Línguas de
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fogo” gravado em 1974. Nesse LP houve uma tentativa de assumir “novas
roupagens” diante do cenário musical da época. De acordo com Joice, Sidney
buscou se aproximar do que era considerado mais “moderno”, modificou sua
aparência, elementos da capa do LP, mas mesmo assim permaneceu esquecido.
Isso ocorre também posteriormente a sua morte, segundo Joice sua obra caiu num
ostracismo, num total esquecimento. Com destaque para o próprio meio artístico,
visto que Sidney Miller tem uma série de composições, grande parte ainda inédita.
Recentemente teve a canção “É isso aí” regravada em 1971 por Doris Monteiro, foi
recentemente parte do repertório pelo grupo Casuarina e regravada também por
Paula Lima. Essa é uma canção com uma particular popularidade entre os pobres,
numa versão em ritmo de samba rock feita no início dos anos 1980, o que evidencia
que o acesso às obras ou a falta de acesso acabam por gerar formas de valorização
por parte desses grupos sociais, o que contraria as noções de “bom gosto” e “mau
gosto” musical recorrente nos discursos hegemônicos que buscam enfatizar
hierarquias diante das diferentes culturas musicais e suas formas de disseminação e
assimilação.
Como pudemos sentir nesse primeiro capítulo a cultura musical brasileira é
vasta e permeada por diferentes sentimentos e intenções, assim como também
ocorre com os conteúdos e formas de expressá-los. As dificuldades enfrentadas
pelos sujeitos aqui evidenciados também são constituintes de suas obras, desde o
despertar para as musicalidades durante a infância, as sensibilidades e o forma
como cada um deles forjou a sua existência e o “pensar música” até as relações
estabelecidas com a indústria cultural brasileira, dentro do que salientei a respeito
das tensões, relações e formas resistências.
Elemento fundamental dessa pesquisa foi o aprofundamento sore a música
instrumental brasileira, por meio do estudo do projeto que culminou com o
lançamento do LP “Quarteto Novo”, empreitada financiada e motivada por Geraldo
Vandré, que envolveu músicos importantes e de grandes potenciais: Airto Moreira,
Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal e Theo de Barros, cujas trajetórias foram aqui
analisadas enquanto grupo que promoveu uma experiência fundamental, tornando-
se referência para a musicalidade e atingindo o propósito de improvisos a partir de
formas musicais brasileiras.
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A trajetória individual, após o término do quarteto, por dificuldades financeiras,
após o exílio de Geraldo Vandré, possibilitou um mergulho nas diferentes
experiências e uma proximidade, ainda que sem um caráter analítico profundo do
ponto de vista da teoria musical. Mas, de forma sensorial e dentro das possibilidades
de uma abordagem historiográfica, busquei colocar em evidência a genialidade
desses músicos e os entraves para quem vive dessa arte.
No segundo capítulo “Indústria Cultural Brasileira, tensões e suas relações
com a música” busquei analisar a forma como cada artista construiu a sua carreira
profissional, seus encontros, convergências, particularidades, formas de sentir e
viver a música e as canções. Assim como as formas de produção junto à indústria
fonográfica e todo mecanismo que compõe a indústria cultural brasileira.
Sem um olhar determinista sobre essas relações, destaco que é preciso
pensar a música e as canções dentro de um sistema que, para além dos processos
criativos, são atravessadas por toda uma estrutura que interfere diretamente na
forma como cada artista obtém projeção, visibilidade ou busca permanente de
transpor as teias desse sistema para que suas obras possam ser veiculadas, ou
seja, chegar até o público, por diferentes suportes, como o disco e também os meios
de comunicação, como o rádio e a televisão.
Esse processo é permeado por tensões, onde nem sempre os interesses
hegemônicos são vencedores, mas é inevitável pensarmos nas concepções de
mercantilização das obras e na constituição do chamado “mercado consumidor” que
atingem diretamente os processos criativos, ainda que haja resistência.
As relações entre a indústria cultural brasileira e a sociedade autoritária da
qual faz parte, com a música produzida no Brasil se constitui num campo de
interesses que não é impermeável, mas que acaba por dificultar o conhecimento e a
consequente valoração das músicas e canções produzidas. O que não pode ser
visto como processo contínuo e homogêneo, visto que existem dissonâncias e
brechas que extrapolam as formas de controle, seja no interior da própria indústria
ou pelas pressões exercidas por forças populares e pela dinamicidade das culturas
musicais que existem e resistem.
As políticas que se relacionam aos direitos autorais e a forma como os
artistas buscaram se organizar, questionar e exercer pressões em diferentes
momentos foi alvo de reflexões. Chegando à compreensão de que dentro do período
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analisado existiram diferentes posicionamentos e formas de avaliação sobre as
agências arrecadadoras. Esse é, sem dúvida, um aspecto que merece maior
aprofundamento em estudos futuros.
No terceiro e último capítulo “Fé, amor e mais nada: Iniciativas e resistências”,
cujo título tem sua origem a partir de uma fala de Theo de Barros, quando o indaguei
sobre sua relação com a música, pensando em sua trajetória, mas também, no
momento presente, com foco e intenção de compreender as “molas propulsoras”
desses fazeres. O questionei sobre o que o motiva a continuar se dedicando à
música e ele me respondeu, com seu semblante sério e tímido ao mesmo tempo,
que era: Fé, amor e mais nada.
Esse diálogo, sem dúvida, me provocou sentimentos diversos, ao mesmo
tempo em que houve uma retomada das questões iniciais e motivadoras dessa
pesquisa, consolidou a minha convicção de que a arte e seus sujeitos têm um papel
fundamental nessa vida, uma força que transcende aos obstáculos e projetos
hegemônicos, que alimentam nossa humanidade a partir do contato com visões de
mundo comunicadas por meio de sons, sonoridades, musicalidades e versos.
Tendo como referência o suporte do disco de vinil, analisei a produção dos
músicos, compositores e cantores, sem deixar de pensar que, dentro do período
delimitado e ainda hoje as formas de veiculação não são correspondentes ao valor
cultural dessas obras. Infelizmente grande parte do que foi produzido por esses
artistas e muitos(as) outros(as) permanece desconhecida do “grande público”.
Ocorre que esse chamado “grande público” não é homogêneo. Não somos
“massa de manobra”, resistimos cotidianamente às mais diversificadas formas de
violência, também de jeitos e feições diferentes, de acordo com as estruturas,
posicionamentos e personalidades construídas ao longo da vida. A minha defesa é a
de que temos direito ao acesso, às escolhas e que toda forma de cerceamento e
tentativas de controle é uma afronta à nossa humanidade. As nossas sensibilidades,
criatividades, sabedorias, experiências, “percalços”, culturas, ancestralidades nos
fortalecem e muitas vezes nos levam às construções de caminhos de resistências
que são na verdade, também, o combustível para a produção e recepção das
diferentes linguagens artísticas.
Afinal, o que seria da música sem a cosmovisão dos povos “oprimidos”? Os
conhecimentos denominados “populares” e as expressões de nossas musicalidades
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alimentam o que intencionam reelaborar num prisma elitista, por grupos
hegemônicos que historicamente tem “patenteado” aquilo que tentam desqualificar.
Por isso, nossa luta cultural constante e reinvindicações “me parece imagem justa
para quem vive e canta no mau tempo”.26
26
Frase recitada por Maria Bethania durante a canção A Dona do Raio e do Vento, composição de Doryval
Caymmi - https://youtu.be/wR05zNR5GCc
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Fontes Principais
História Oral
Imprensa
Filmes
Livros
MELLO, Zuza Homem de. “Música Popular Brasileira – cantada e contada por: Tom,
Baden, Caetano, Boscoli, Carlos Lyra, Chico Buarque, Claudete Soares, Dori, Edu,
Elis, Gil, Eumir Deodato, Nara, Johny Alf, Marcos Valle, Bethania, Milton Banana,
Milton Nascimento, Menescal, Sérgio Ricardo, Vinícius, Capinam, Vandré, Simonal.”
São Paulo: Editora Melhoramentos, 1976.
RICARDO, Sérgio. Quem Quebrou meu Violão. Uma análise da cultura brasileira
nas décadas de 40 a 90. Rio de Janeiro: Editora Record, 1991.
MILLER, Sidney. João e o Pó. Rio de Janeiro: José Alvaro Editor S.A, 1968
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Bibliografia
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WISNIK, José Miguel. Música: problema intelectual e político - Teoria e Debate.
Fundação Perseu Abramo, 35, jul-set 1997.
__________. Algumas questões de música e política no Brasil, in BOSI. Alfredo
(org.) Cultura Brasileira: Temas e situações. São Paulo: ed. Ática, 1987.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2000. Tradução
de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich.
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