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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP

Programa de Pós-Graduação em História

MARILU SANTOS CARDOSO

Musicalidades Brasileiras
Expressões, vivências, relações, tensões e resistências no cenário musical
urbano dos anos de 1960-1990

Doutorado em História

São Paulo
2019
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
Programa de Pós-Graduação em História

MARILU SANTOS CARDOSO

Musicalidades Brasileiras
Expressões, vivências, relações, tensões e resistências no cenário musical
urbano dos anos de 1960-1990

Doutorado em História

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Doutora em História sob
orientação da Prof.(a), Dr.(a) MARIA DO
ROSÁRIO DA CUNHA PEIXOTO.

São Paulo
2019

1
Banca Examinadora

__________________________________________________
Prof.(a) Dr.(a) Maria do Rosário da Cunha Peixoto (Orientadora)

__________________________________________________
Prof. Dr. Amilton Magno de Azevedo

__________________________________________________
Prof. Dr. Ival de Assis Cripa

__________________________________________________
Prof.(a) Dr.(a) Maria Antonieta Antonacci

__________________________________________________
Prof. Dr. Salomão Jovino da Silva

2
Dedicatória

Dedico essa pesquisa a todas as pessoas que


vivem a arte em sua plenitude e que mesmo diante
dos obstáculos expressaram e continuam
expressando suas visões de mundo, nos
proporcionando o contato com sentimentos e
culturas diversas num campo de resistência à
lógica autoritária da sociedade brasileira.

3
Essa pesquisa contou com apoio financeiro da
CAPES, sem o qual sua realização não seria
possível.

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Agradecimentos

À minha mãe, Luzia Santos Nascimento (em memória), mulher negra, baiana,
que chegou a São Paulo viúva, com quatro filhos(as) e que, dentro de sua
sabedoria, me ensinou a sobreviver e viver com dignidade numa cidade “moinho de
gente”, na periferia da Zona Sul de São Paulo. A todas as mulheres, minhas
ancestrais, por gravarem em nossas vidas a cultura da resistência e o culto às
energias existentes, que nos mantém de pé e de cabeça erguida.
Ao meu pai, Alcino Joaquim Cardoso (em memória), por ter iniciado o meu
caminho nos movimentos populares, por ter me permitido acompanhá-lo nas
reuniões de associações de moradores de bairro desde a infância. Por me ensinar a
lutar por justiça e a ter coragem de enfrentar e questionar o que considerava errado.
À “Dinha”, Rosa Moraes Alves de Oliveira, por ter sempre me apoiado de
todas as formas possíveis, por ter acreditado em mim quando muitos
desacreditaram. Por estar ao meu lado em todos os momentos da minha vida, pela
certeza de que nunca estive só, o mesmo dedico a sua filha Carolina Moraes, minha
prima/irmã.
Ao meu primo José Alves de Oliveira (em memória) que me incentivou, desde
cedo, a buscar o conhecimento. Que trabalhou a vida inteira e se foi cedo, deixando
um grande legado que é o de não aceitar submissões de nenhuma natureza.
Ao meu irmão, Sebastião Santos Nascimento (em memória), assassinado
pelas “mãos do Estado”, que com seu violão me apresentou tantas canções. Que
despertou em mim a sensibilidade para a arte e me fez perceber, bem cedo, o
potencial destrutivo da sociedade autoritária em que vivemos.
Ao meu irmão, José Antonio Santos Nascimento (em memória), que também
morreu jovem, afogado na represa do Guarapiranga, como tantos(as) outros(as),
jovens pela falta de espaços e condições de lazer, também fruto dos descasos de
nossos “governantes”. Pelas lições de seriedade e por ter amparado toda família
antes de partir.
Às minhas irmãs, Dalva Santos Nascimento Pacheco e Marlene Santos
Nascimento Silva, pelas palavras de incentivo e por demonstrarem imenso orgulho
diante de cada uma de minhas conquistas. Da mesma forma, aos meus cunhados,
Geraldo Tedeu Pacheco (em memória) e Antonio Wilson.

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Aos meus sobrinhos e sobrinhas, primos e primas, que, desde criança,
aprenderam comigo a ouvir música popular brasileira e que, inúmeras vezes, me
acompanharam nas canções de Vandré, quando eu insistia em tocá-las no violão.
Aos meus amigos, poucos, mas sinceros, que, nas horas difíceis, me fizeram
acreditar que ainda existe amizade neste mundo. Especialmente à Maria José
Costa, Egnaldo Rocha e Sandra Portuense, companheiras(os) de “batalha
acadêmica”.
Ao meu amigo Antonio Passaty, que mais que amigo foi também um grande
parceiro, me incentivando de todas as formas possíveis e me apoiando em cada
entrevista realizada. A ele, os créditos de todas as imagens gravadas nos diferentes
estados em que passamos.
Ao Alexandre Durães, companheiro com o qual sempre poderei contar, sem
os rótulos e moldes das relações afetivas entre um homem e uma mulher. Pessoa
incrível que sempre amarei da forma mais profunda e subversiva empregada ao
termo.
Agradeço ao Heraldo do Monte e sua família, por terem me recebido em dois
momentos com extrema atenção e um acolhimento sempre carinhoso. Ao Sérgio
Ricardo pela prosa e genialidade apresentada no Vidigal, uma tarde linda e alegre.
Ao Theo de Barros, pela atenção, pela sutileza e pela generosidade. Ao Hermeto
Pascoal, por permitir uma aproximação, desde a abertura da porta, da energia
contida nele e, consequentemente manifestada em sua narrativa, um dia
inesquecível. Ao Airto Moreira, que mesmo sem me conhecer, respondeu
prontamente a todos os contatos, pela entrevista de longas horas pelo Skype
quando estava nos E.U.A, permeada pela emoção e por ter me recebido em Curitiba
esse ano, com um brilho no olhar e com uma simplicidade correspondente a sua
visão de mundo. Ao Geraldo Vandré, pela valorização e reconhecimento da minha
pesquisa, pelas conversas e encontros ao longo dos anos após o mestrado e por ter
me recebido em João Pessoa, pelo carinho de me colocar na lista de convidados(as)
nas duas apresentações que fez e março de 2018, por cantar depois de 50 anos em
nosso país e pela entrevista concedida num domingo mesmo tendo uma série de
compromissos diante da repercussão de suas apresentações junto à pianista
Beatriz. Ao Sidney Miller (em memória) pelo legado de sua obra conhecida, e pelas
composições inéditas que um dia espero ouvir, agradeço à Joice Moreno por me

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contar o que sabia sobre ele.
Às professoras e professores da PUC/SP, sobretudo à Maria do Rosário da
Cunha Peixoto (orientadora) pelo respeito à sua trajetória e luta, pela contribuição
que tem na minha caminhada e à Maria Antonieta Antonacci, que não por acaso,
indiquei como membro da Banca Examinadora.
Aos professores que participaram da Banca de Qualificação, Amailton Magno
Azevedo pela identificação e admiração do lugar de fala, professor negro, músico,
compositor, cantor e inspirador, que “colou” na “quebrada” fortalecendo nossas lutas.
Especialmente ao Salloma Salomão, irmão, parceiro de lutas dentro do território,
pessoa... Pessoa, gente, artista, homem negro, capaz de transformar sonhos em
realidade, não pelo romantismo empregado à expressão, mas pela capacidade de
lutar com as mãos, de fazer acontecer, por fortalecer nossas trajetórias, por olhar
nos olhos e dizer: É possível! Máximo respeito por sua existência, conhecimentos,
sabedoria e luta contínua contra o racismo antinegro... Valeu Leão!!
Ao Professor Ival de Assis Cripa, que, na graduação, me orientou nos
primeiros passos para a pesquisa e que sempre esteve disposto a me ajudar, seja
pelas conversas via internet ou pelos encontros presenciais, mesmo após o término
da graduação. Por ter lido meus textos e por ter me acompanhado em várias etapas
deste caminho, não por acaso tenho satisfação e gratidão por tê-lo como membro
dessa Banca Examinadora.
Por fim, agradeço a cada estudante com os(as) quais tive contato nesses
vinte anos de magistério, das diversas escolas por onde passei. Na realidade, minha
busca contínua por conhecimento é fruto do pensamento de que trabalho para
minha gente e que elas e eles merecem o melhor que eu possa fazer. Dominar os
conteúdos não é tudo, mas duvidar das verdades estabelecidas é algo que aprendi e
desejo ensinar. A pesquisa histórica é um dos caminhos necessários para tanto.
Conhecer gente, olhar nos seus olhos, reconhecer nossas humanidades e pontos de
convergências identitárias são outras histórias a serem registradas...

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CARDOSO, Marilu Santos. Musicalidades Brasileiras - Expressões, vivências,
relações, tensões e resistências no cenário musical urbano dos anos de 1960-
1990. Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2019.

Resumo

A presente pesquisa tem por objetivo problematizar as Musicalidades


Brasileiras: Expressões, vivências, relações, tensões e resistências no cenário
musical urbano dos anos de 1960-1990. Para tanto estabeleci como sujeitos/objetos
de pesquisa as trajetórias de músicos, compositores e cantores que me chamaram
atenção pelas perspectivas de presente e pelos posicionamentos adotados dentro
da periodização estabelecida.
São eles, Airto Moreira, Geraldo Vandré, Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte,
Sérgio Ricardo, Sidney Miller e Theo de Barros. Homens que vivenciaram a música
e a cultura musical brasileira, contemplando suas diferentes faces e especificidades.
Que tiveram contato em alguns momentos, mas que em outros trilharam seus
caminhos em trajetórias solos.
A relação entre música e política é ponto central das investigações, sendo as
fontes da História Oral primordiais para realização desse trabalho. Diante da
pluralidade das experiências busquei enfatizar suas relações com a música, assim
como as múltiplas formas pelas quais suas obras são atravessadas pelas relações
estabelecidas com a indústria cultural brasileira, que interferem nos processos
criativos, produção, veiculação e recepção das mesmas. Ressalto que os projetos e
posicionamentos de resistência são constituintes da escolha dessa temática, bem
como das considerações e registros aqui presentes.

Palavras-chave: Música; indústria cultural brasileira; musicalidades; resistência.

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CARDOSO, Marilu Santos. Brazilian musicality – expressions, experiences,
interface, tension and resistance in 1960-1990 unban scene. These. (Doctorate
in History), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.

Abstract

This ongoing research aims at hashing out the Brazilian musicality:


expressions, experiences, interface, tension and resistance in 1960-1990 unban
scene. To achieve this, the musicians, composer and singers whose trajectory have
drown my attention to their perspective about the present, as well as the viewpoint
assumed by them through the former period investigated was established as
subjects/objects of the research.
These musicians are: Airto Moreira, Geraldo Vandré, Hermeto Pascoal,
Heraldo do Monte, Sérgio Ricardo, Sidney Miller e Theo de Barros. Men who have
experienced Brazilian music and culture, contemplating their different aspects and
specialness. All of them had some interaction in some moments but have followed
their solo career.
The relationship between music and politics is central to the investigation,
being the oral narratives essentials sources for the achievement of this study. In the
face of the plurality of experiences, I tried to emphasize their connection with music,
as well as the multiple ways their work have been undergone by the relation
established with the Brazilian cultural industry, which interfere in the creative
process, production, media placement and reception of them. It is important to
highlight that the project and the position of resistance are constituent parts in the
choice of this theme, as well as the considerations and records presented here.

Keywords: Music; Brazilian cultural industry; musicality; resistance.

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Sumário

Introdução ............................................................................................................................... 11
Capítulo 1. Conexões e relações com a arte: Nas ruas, cidades e sertões ................ 21
1.1 Terra, chão, gente e sensibilidades ..................................................................... 24
1.2 Bares, boates, rádio e TV: Caminhos e descaminhos ...................................... 46
Capítulo 2. Indústria Cultural Brasileira, tensões e suas relações com a música ....... 68
2.1 Mediações e produções musicais ........................................................................ 70
2.2 Construção das imagens e silenciamento ........................................................ 106
Capítulo 3 – Fé, amor e mais nada: Iniciativas e resistências ..................................... 122
3.1 Quarteto Novo: Entre improvisos e desafios .................................................... 147
3.2 Disco de Bolso: Qual é?....................................................................................... 168
Considerações finais ........................................................................................................... 192
Fontes Principais ................................................................................................................. 204
Bibliografia ............................................................................................................................ 206

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Introdução

“Todos os mitos são iguais a sabonetes”


Belchior

As relações entre a música e a sociedade brasileira têm, em suas bases, as


mediações realizadas pelo que chamamos de indústria cultural brasileira. As
análises aqui presentes são frutos das percepções e estudos realizados ao longo
dos anos que dedico a tais reflexões, dentro de uma perspectiva de que não existem
determinismos, mas que as formas de produção, veiculação e projeção das
expressões musicais são atravessadas por tensões e conflitos, também permeadas
por buscas de projetos e alternativas que muitas vezes criam espaços possíveis de
existência e participações, visto que toda estrutura construída, ainda que dentro de
circunstâncias e projetos autoritários, é tencionada por processos de resistência e
participações que promovem brechas e reestruturações.
A citação de Belchior, na epígrafe é representativa do pensamento e
posicionamento a que cheguei, até o presente instante e da forma como percebo a
historicidade dessas relações, onde os mecanismos da própria indústria cultural
brasileira, no que diz respeito à música, tende a colocar em ascensão expressões,
que mesmo tento surgido como populares acabam por se tornar hegemônicas,
ocorrendo, consequentemente o desvio do olhar e a dificuldade de acesso do
público ao que foi e continua sendo produzido por compositores(as), músicos(as) e
cantores(as) brasileiros(as) que não se encaixam nos padrões exigidos pelo
“mercado musical”. A elevação de um(a) artista e sua transformação em “mito”, no
sentido de referência ao “sucesso” se configura, também, como uma mercantilização
da obra, exigindo uma adequação aos moldes estabelecidos, que acaba por se
constituir como obstáculos para processos criativos que somente são possíveis a
partir da liberdade.
Ainda assim, não é possível adotar um olhar determinista, pois mesmo no
“centro das engrenagens” ou às suas margens, há resistências e pressões que
impulsionam transformações e rupturas com a lógica de transformação da música
em produto.
A feitura dessa pesquisa se deu em meio a uma conjuntura bastante
complexa. Escrever sobre arte e suas relações com uma sociedade autoritária num
11
cenário de golpe, iniciado em 2013 durante as manifestações de junho é de fato um
grande desafio. Mas, o lugar de onde falo é marcado por desafios e enfrentamentos
desde sempre e o contato, a apreciação e produção artística têm sido ao mesmo
tempo fonte de inspiração e possibilidades de expressões de vivências e
observações sobre a realidade que fortalecem a abordagem e delimitação da
presente temática.
Eu, mulher negra e periférica encontrei desde cedo na música uma fenda que
ao mesmo tempo em que, dentre outras forças, me constituiu e me levou a
questionamentos a respeito da vida e meu posicionamento diante dela. A ideia de
que existe um tipo de arte como produto feito pelas elites e restrita à sua apreciação
e outro tipo direcionado à “cultura de massa” nunca me condicionou e nem levou à
sua credibilidade, sendo assim as problematizações aqui realizadas são resultados
de formas de sentir e pensar que, nesse momento apresento pelo veículo de uma
tese acadêmica, buscando respeitar o rigor exigido, mas ao mesmo tempo
respeitando os sentimentos propulsores de tais indagações.
O contato com as obras estudadas, a apreciação de canções e músicas que
dentro da esfera vivida por mim nos anos 1980 e 1990 se mostrava de forma
inusitada, pois a revelia dos meios de comunicação, sobretudo as emissoras de
televisão e de rádio, me aproximei, ouvi e senti musicalidades que me chamaram
atenção pelo teor e vibrações comunicadas que se alinhavam com meus desejos e
sonhos de transformação de uma realidade, a qual aprendi a questionar pela
cotidianidade das dores e dos processos excludentes vividos na periferia da Zona
Sul de São Paulo.
A música permeia minha vida e acredito que assim se dá em tantas outras
vidas e experiências diversas. É pulsante e transgressora, mas também pode ser
intencionalmente utilizada como disciplinadora de modos de vida e concepções. A
questão central é a forma como a criação e a recepção são mediadas por diferentes
veículos com feições e intenções diversas. Os questionamentos que trago da
adolescência e mais tarde, de forma amadurecida pela militância e pelas práticas e
reflexões como professora de história na rede pública de São Paulo, são
sistematizados nesta pesquisa com um propósito muito preciso que é o de ressaltar
a importância da música na constituição de nossa humanidade, das consciências e
posicionamentos diante de uma sociedade.

12
Como professora da rede pública na educação básica, assumo a
responsabilidade de possibilitar experiências e trocas que fomentem a convicção de
que a música e a arte de fora geral, são importantes fontes de transformações e de
que não somos obrigados(as) a ouvir somente o que os meios de comunicação nos
direcionam.
A historicidade dessas questões delineou a problemática central dessa
pesquisa que é a forma como as expressões e trajetórias dos artistas aqui
estudados foram significadas dentro da periodização estabelecida. Bem como as
múltiplas formas de resistência e persistência diante de uma sociedade autoritária,
que não se restringe ao período ditatorial, visto que abordo o período dos anos 1960
a 1990.
A arte está presente em todas as sociedades, como fruto das experiências
humanas expressa, em diferentes tempos e espaços, sentimentos, desejos, visões
de mundo e formas de interações e intervenções. Assim como é constituída pelas
múltiplas realidades é também constituintes dessas.
As relações entre Cultura Popular e Cultura hegemônica serão
problematizadas como dinâmicas e permeadas pelas tensões, confluências e
diálogos a partir das discussões com os referenciais utilizados, como a noção de
“transformação cultural” apresentada por Stuart Hall:

“(...) A "transformação cultural" é um eufemismo para o


processo pelo qual algumas formas e praticas culturais são
expulsas do centro da vida popular e ativamente
marginalizadas. Em vez de simplesmente "caírem em desuso"
através da Longa Marcha para a modernização, as coisas
foram ativamente descartadas, para que outras pudessem
tomar seus lugares.”1

Hall toca num ponto relevante para as reflexões aqui apresentadas, visto que
o discurso de modernização não somente expulsa via exclusão, com seus
mecanismos de produção e veiculação da música, como também marginaliza
artistas ao se alinharem ou com temáticas, modos de vida e estéticas que desafiam
a lógica de modernização. O viés político que relaciono ao popular como resistência

1
HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do "popular". In: Da diáspora: identidades e mediações culturais.
Liv Sovik (org); trad. Adelaine La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Representação da
UNESCO no Brasil, 2003. p. 248
13
à dominação se distancia da dicotomia popular – erudito, até porque, no que se
refere ao “mercado musical” há um permanente diálogo, mesmo com tendências à
hierarquização com as expressões que emanam dos grupos populares, mas que
passam por processos de ressignificações e releituras.
A forma como nos relacionamos com as expressões artísticas e seus/suas
criadores(as) evidencia traços significativos dos modos de vida e dos anseios.
Permeadas em suas criações e recepções por subjetividades, quando atravessadas
por diferentes interesses e usos passam a ser fontes e alvos de projetos, muitas
vezes, conflitantes e imprevisíveis, não havendo controle absoluto sobre seus
impactos.
Esse trabalho surge da necessidade de compreensão a respeito das relações
estabelecidas entre a sociedade brasileira e a arte, com foco na música, ainda que,
pela natureza das obras e artistas analisados, transite por diferentes linguagens.
De acordo com Jesús Martím Barbero o funcionamento da hegemonia na
indústria cultural não anula as aspirações de liberdade, mas as pressionam com
interesses de “expropriação”, “massificação” e de processos “educativos”, nem
sempre vencedores, mas bastante perspicazes. A complexidade dessas relações
parte da dificuldade de compreensão a respeito de como o “popular” opera de forma
ambígua sobre as transformações impostas. Os processos de “modernização” e as
práticas de “massificação” implicam em um aprofundamento a respeito do conceito
de “cultura”, tendo como referência os estudos realizados por Raymond Williams.
Segundo Williams, a cultura é dinâmica e complexa, sendo produto das
relações sociais existentes dentro de uma realidade material, estando presentes
todas as contradições e antagonismos de uma sociedade, assim como as
convergências e divergências. Sendo o ser humano imprevisível e as suas relações
sociais conflituosas e permeadas por significações e ressignificações, a cultura
como produto desta sociedade não poderia ser concebida de outra forma. O artista
não é um ser aquém das relações sociais, ele faz parte destas relações e a sua
produção, seja ela qual for é fruto da sua experiência e da forma como se posiciona.
A dificuldade em conceituar o nacional e o popular e a confusão, muitas vezes
realizada, em torno destes conceitos, são reflexões de importantes pesquisadores,
entre eles Stuart Hall, Jesús Martín-Barbero e Marilena Chauí. Sendo ainda mais
complexa a discussão em torno do que seja a “Cultura Popular”. Esta abordagem é

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fundamental para que possamos compreender as práticas sociais desenvolvidas por
esses artistas brasileiros.
Há alguns aspectos que muito me intrigam, de que forma e em que medida as
temáticas e estilos, adotados pelos artistas estudados, se contrapõem aos projetos
que “excluem o povo como sujeito”? Busco, portanto, compreender a partir desse
referencial as relações de possíveis hierarquizações a respeito da produção musical,
sobretudo, no que se refere às classificações do que era evidenciado e do que era
colocado numa esfera de banalização ou de menor valor artístico, bem como os
conflitos evidenciados na conjuntura das produções artísticas e nas particularidades
das tendências, que envolvem posicionamentos, concepções e projetos diversos.
Para tanto se faz necessário uma análise atenta das fontes produzidas pela
imprensa, sobretudo, a imprensa ligada aos interesses hegemônicos, como é o caso
da Revista Veja, mas também das produções artísticas e da constituição do público
por meio das fontes da História Oral .
Busca de longa data, impulsionada por experiências e análises presentes nas
trajetórias pessoal, acadêmica e profissional, reveladora de posicionamentos e
projetos, algumas vezes, dissonantes. Luta por justiça e visibilidade para pessoas
que se dedicaram e se dedicam à arte, com toda sua força, expressão e significado,
não esquecendo suas condições humanas, seus conflitos e contradições frente aos
desafios de viver da e para a música.
As reflexões aqui apresentadas foram, sobretudo, desencadeadas durante o
processo de construção da pesquisa que desenvolvi no Mestrado, com o título “Para
não esquecer Vandré: Música, Política, Repressão e Resistência (1964-1978)” no
Programa de Pós Graduação em História da PUC/SP, com orientação da Professora
Dra. Maria do Rosário da Cunha Peixoto. Por meio das análises a respeito da
memória e da importância do cantor e compositor Geraldo Vandré no cenário
cultural dos anos 1960 e 1970, com vistas a problematizar sua atuação no campo da
resistência por meio da música e as formas de repressão empregadas contra ele,
assim como suas implicações. Deparei-me com questões relevantes a respeito do
processo de constituição da memória em relação ao cantor. Nessa trajetória iniciei
um aprofundamento sobre o conhecimento das experiências de outros
compositores, chegando dessa forma ao despertar do interesse e da necessidade
de pesquisar a constituição das memórias sobre Sergio Ricardo, Sidney Miller, Airto

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Moreira, Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal e Theo de Barros, bem como buscar
compreender suas práticas sociais desempenhadas por meio da música e as
implicações em torno disso.
Geraldo Vandré tem uma importância muito grande na minha formação
política, suas canções não somente geraram emoções, como também despertaram
o interesse pelos estudos a respeito da conjuntura em que se deram suas
produções. Conheci os músicos que compõem o Quarteto Novo a partir de suas
parcerias e a música instrumental brasileira passou a ser alvo de minhas
indagações.
O que se apresenta na atualidade como cenário e memória da música
produzida no Brasil é, como afirma Walter Benjamin, também um monumento da
barbárie. Situo essa pesquisa num campo de luta contra o esquecimento de vozes
que não emudeceram, mas que vivenciaram relações e processos que evidenciam a
produção do silenciamento, mesmo que em alguns momentos tenham atingido
projeções e estabelecido vínculos necessários para veiculação de suas obras, como
apresentarei mais adiante.
Problematizo as experiências dos artistas citados, no período de 1960 a 1990,
abordando suas trajetórias, produções e suas relações com a sociedade brasileira,
com destaque para o público, a Indústria Cultural Brasileira e outros setores que
atuaram para a construção do esquecimento e para a minimização da importância
de suas obras, tais como a Imprensa, a Crítica Musical e a própria Historiografia.
Ressalto que não foi uma escolha fácil, visto a imensidão de artistas
brasileiros(as) que passaram por tais processos e que guardam especificidades
atravessadas por opressões de gênero, de classe e de raça. A escolha, como disse
anteriormente, se deu em função dos estudos aprofundados no mestrado,
abrangendo experiências de artistas que de alguma forma se relacionaram ao
Vandré. Guardadas as proporções da presente pesquisa indico que em tempo
oportuno e, espero, não muito distante dedicarei esforços para a ampliação desse
debate, chegando ao propósito de estudar expressões que dentro da dinâmica
dessa sociedade autoritária sequer são significadas como arte, falo dos meus, dos
que não estiveram e não estão dentro do circuito de legitimidade da então chamada
MPB. Para tanto, justifico que a trajetória desses estudos constituiu um olhar que
ainda se constrói e que carece de aprofundamentos.

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Compreendendo a memória como um campo de disputas analisarei as
relações de poder que envolvem a evidenciação de determinados artistas e estilos
musicais dentro de uma dinâmica complexa que envolve as formas de
mercantilização da música, assim como os processos de resistência e busca por
brechas dentro do próprio sistema. Para tanto se fez necessário compreender, a
partir das fontes da história oral, a conjuntura em que se deram as relações
problematizadas, que envolvem a cultura, sua dinamicidade, as tensões, as
convergências e os conflitos dentro do período delimitado.
A maior parte das produções analisadas ocorreu durante as décadas de 1960
e 1970, período em que o Brasil vivenciou uma Ditadura Civil Militar. Nesse sentido,
é importante não perder de vista as relações constituídas dentro de uma conjuntura
de repressão e censura, mas também na qual a música desempenhou um
importante papel, no caso desses artistas, no campo das resistências. É importante
analisar a conjuntura dos anos de 1980 e 1990, período em que ocorreu um grande
avanço das mídias, tecnologias e veículos que envolvem a produção musical no
Brasil e, em contra partida, investigar a construção do silenciamento a respeito dos
artistas pesquisados dentro de uma conjuntura “democrática”, mas profundamente
excludente, dando indícios da complexidade da sociedade brasileira.
É importante também problematizar não somente a forma autoritária do
Estado brasileiro, mas as evidências das relações de poder que atravessam todos
os demais setores, nos levando a crer que a Indústria Cultural Brasileira não esteve
dissociada dos interesses que financiaram e colaboram para a construção do
autoritarismo no Brasil e do projeto de sociedade hegemônico até o presente
momento. Evidenciando, também, sua complexidade e a forma como as pressões
advindas do que chamamos de “forças populares” interferem e promovem pressões
sobre essa.
Adotando uma perspectiva de análise a partir do presente parto do princípio
de que o esquecimento de hoje, desqualifica, reduz e minimiza a importância de
Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Sidney Miller, Airto Moreira, Heraldo do Monte,
Hermeto Pascoal e Theo de Barros no cenário artístico brasileiro. É com essa
perspectiva que me proponho a realizar uma investigação a respeito de suas
práticas, suas trajetórias e suas relações com a sociedade brasileira, constituindo
documentos que confrontem o silenciamento e que promovam a visibilidade de suas

17
obras e histórias: “(...) o igualamento amnésico da história é, entre outras coisas,
uma afronta ao presente”2
Foi fundamental o estudo da coexistência de diferentes tendências no cenário
musical dos anos 60 e 70, bem como as relações com a Bossa Nova e com outros
estilos musicais brasileiros3, entendendo-os como expressões constituintes da
realidade e também constituídas por essa. Pretendo compreender o que se
denomina como “tendências” problematizando aspectos relevantes dos
posicionamentos, escolhas e implicações, no que diz respeito às formas musicais e
artísticas utilizadas. Analisarei os movimentos culturais que impulsionaram
transformações, concebendo-os como ações políticas permeadas por sentimentos,
desejos e projetos diversos, muitas vezes conflitantes e as correlações de forças
que os envolvem. Buscarei a compreensão a respeito da heterogeneidade das
expressões musicais, sua dinamicidade e articulações com as formas de sentir e
expressar as visões e concepções acerca do fazer artístico, significando-o como
prática social.
A partir da sondagem inicial das fontes, problematizo a existência de
discursos sobre uma “linha evolutiva da música popular brasileira”, no momento em
que as produções aqui estudadas ocorreram e na própria abordagem da
historiografia, da imprensa e da crítica musical. Faz-se necessário, portanto, um
estudo profundo a respeito das relações e discursos produzidos dentro do período
delimitado, assim como as articulações e implicações que envolvem a dinâmica das
produções musicais, suas projeções e recepções.
Levando-se em consideração que não há uma cisão entre o que se produz
artisticamente e os modos e jeitos de viver, bem como, as pressões, os conflitos e os
enfrentamentos, a análise da realidade vivenciada no campo da música precisa
considerar aspectos importantes da conjuntura do país e da conjuntura internacional,
havendo a necessidade de compreender e problematizar os conceitos de
“nacionalidade”, “cultura nacional”, “nacional popular”, bem como, suas utilizações e

2
SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginárias: Intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 1997.
P. 40.
3
Problematizarei expressões tais como a Tropicália, A Jovem Guarda, a música produzida nos Centros
Populares de Cultura da UNE, posteriormente os movimentos dos mineiros (Clube da esquina), do Pessoal do
Ceará, entre outros. É importante também aprofundar os estudos a respeito da conjuntura dos Festivais e sua
importância. Assim como também é relevante compreender as relações entre música, teatro e cinema dentro do
período abordado e as características dessas expressões, como por exemplo, o Cinema Novo.
18
significações dentro do período estudado. É importante investigar, em sua relação
com a produção musical, os projetos que anunciam os impulsos e incentivos acerca
das noções de “modernidade”, “desenvolvimento” e “evolução”, buscando
compreender de que forma esses discursos permearam o campo da cultura como
uma força que possivelmente buscou imprimir “novos modos de vida” e os impactos
disso sobre as visões e relações com a música. Pretendo estudar esses elementos e
compreendê-los numa dinâmica que aborda as produções musicais de Geraldo
Vandré, Sérgio Ricardo, Sidney Miller, Airto Moreira, Heraldo do Monte, Hermeto
Pascoal e Theo de Barros em suas relações, posicionamentos e escolhas.
Os estudos preliminares evidenciam conflitos e oposições por parte desses
cantores, músicos e compositores a respeito das “tendências” que sinalizaram para
a necessidade de “novas roupagens” ou “modernização” da música popular
brasileira, bem como da lógica de mercado que impõe sérias implicações no que diz
respeito aos processos criativos e construções artísticas, havendo a possibilidade de
investigação a partir de depoimentos dos próprios cantores e músicos a respeito de
suas concepções sobre “música popular brasileira” 4. Não busco com isso encontrar
apenas pontos de convergência entre eles, visto que cada um vivenciou e se
posicionou diante da realidade a sua maneira, e também das necessidades e
interesse materiais, aspectos que intenciono abordar por meio das análises das
particularidades de suas trajetórias, porém indico que esse é um aspecto importante
para compreendermos as implicações acerca da produção do esquecimento e da
minimização da importância desses artistas no cenário musical, assim como sobre a
memória produzida ou ocultada sobre eles.
Interessa-me investigar as trajetórias e os estilos musicais de cada um dos
compositores, músicos e cantores aqui apresentados, mas também e
principalmente, a forma pela qual se constituíram como elementos importantes no
campo de oposição aos discursos de necessidade de modernização da música
popular brasileira em detrimento de outros estilos, conceituados, por exemplo, pela

4
A este respeito os estudos de Raymond Williams apresentados no texto “Quando foi o Modernismo” (livro
Margem Esquerda: Ensaios Marxistas, Boi Tempo, 2005, que reúne artigos de diferentes pensadores) e seu livro
Drama em cena (COSACNAIFY, 2010), contribuem para a problematização iniciada, ao abordar a conceito do
termo “Moderno” e suas utilizações em diferentes épocas, assim como as transformações formais do teatro no
ocidente. Esses estudos me ajudam a pensar, também, as transformações no campo da música popular brasileira,
sem perder de vista as suas particularidades.
19
crítica musical, pela indústria cultural brasileira e pela imprensa, como
“ultrapassados”.
Essa abordagem me possibilita pensar também, de que forma as expressões
populares foram sendo constituídas durante a Ditadura Civil Militar como “folclore”
com uma perspectiva diferenciada das utilizações anteriores, com particularidades
que evidenciam uma construção ideológica de busca da “Identidade Nacional” e ao
mesmo tempo numa atitude de simplificação e minimização da sua importância,
problematizarei de que forma essa conceituação se relaciona com as disputas de
poder e de valores, investigando as relações dessas concepções com as práticas
musicais e com a própria lógica da construção do que se intitulou como MPB,
enquanto movimento, e a evidenciação dos então chamados “estilos regionais” ou
de setores tidos pelas elites brasileiras como “marginais”.
Há uma forma dicotômica e desqualificadora sobre o que foi enquadrado
como “regional”, como substrato utilizado pelos meios intelectualizados da música
brasileira, fontes “primárias” de inspiração, mas estereotipadas nas suas origens. A
musicalidade brasileira construída em diferentes locais do país, com feições,
características, contribuições e constituições diferenciadas não cabe numa
nomenclatura unificadora de expressões tão plurais e complexas.
Esses elementos da cultura popular podem ser observados nas obras aqui
analisadas. Cada artista e suas relações com as culturas de seus locais de origem
possibilitaram construções musicais nos meios urbanos que mantém um profundo
diálogo e interação com a cultura musical constituinte de nossa população, sem
perder de vista suas diversidades. Daí surge a genialidade das composições,
justamente da pluralidade e da junção de diferentes elementos, sem
hierarquizações, como é o caso de Disparada.
É inegável o posicionamento estabelecido por meio da escolha e proposta
dessa temática e das problematizações aqui apresentadas. A pertinência desse
trabalho reside não apenas na sua importância no campo da historiografia, mas na
necessidade, como ressaltada inicialmente, de atuação na luta pelo direito à
memória, e contra os processos autoritários de construção do esquecimento ou da
banalização das obras.

20
Capítulo 1. Conexões e relações com a arte: Nas ruas, cidades e sertões

Me pediram pra deixar de lado toda a tristeza, pra só


trazer alegrias e não falar de pobreza. E mais,
prometeram que se eu cantasse feliz, agradava com
certeza. Eu que não posso enganar, misturo tudo o
que vi. Canto sem competidor, partindo da natureza
do lugar onde nasci. Faço versos com clareza, à rima,
belo e tristeza. Não separo dor de amor. Deixo claro
que a firmeza do meu canto vem da certeza que
tenho, de que o poder que cresce sobre a pobreza e
5
faz dos fracos riqueza, foi que me fez cantador.

Como se constrói um(a) artista? Aliás, como um(a) artista constrói a si


mesmo(a)? Não há possibilidade de farsas, um(a) cantador(a), um(a) tocador(a),
assim como demais artistas, se constroem a partir da relação que têm com a vida,
com a sua terra, consigo e com as pessoas. A música em seus desdobramentos
(melodia, ritmos, poesia e performance) é potencialmente reveladora de traços das
realidades, mesmo que se pretenda fictícia estará sempre atrelada às vivências e
experiências. Qualquer tipo de manipulação dos sentidos ou práticas meramente
comerciais transforma a arte em subproduto, destinada ao entorpecimento e não à
comunicação.
Neste capítulo abordarei de questões relacionadas às trajetórias de cada
artista aqui estudado, da forma como a música surgiu em suas vidas e os
significados atribuídos a essa. Por meio das entrevistas que realizei, das concedidas
a terceiros, produções e publicações a respeito dos artistas que pesquiso.
As reflexões iniciais foram desencadeadas durante o processo de construção
da pesquisa que desenvolvi no Mestrado, com o título “Para não esquecer Vandré:
Música, Política, Repressão e Resistência (1964-1978)” no Programa de Pós
Graduação em História da PUC/SP, com orientação da Professora Dra. Maria do
Rosário da Cunha Peixoto. Por meio das análises a respeito da memória e da
importância do cantor e compositor Geraldo Vandré no cenário cultural dos anos
1960 e 1970, com vistas a problematizar sua atuação no campo da resistência e as
formas de repressão empregadas contra ele, assim como suas implicações, deparei-
me com questões relevantes a respeito do processo de constituição da memória em
relação ao cantor. Nessa trajetória iniciei um aprofundamento sobre o conhecimento

5
Introdução da canção “Terra Plana” gravada no LP “Canto Geral” pela gravadora EMI ODEON em
1968.
21
das experiências de outros compositores, chegando dessa forma ao despertar do
interesse e da necessidade de pesquisar a constituição das memórias sobre Sergio
Ricardo e Sidney Miller, bem como buscar compreender suas práticas sociais
desempenhadas por meio da arte e as implicações em torno disso. Analisarei,
também, as experiências de Geraldo Vandré com aprofundamento de questões já
suscitadas na dissertação de mestrado.
A inserção dos músicos do Quarteto Novo, Airto Moreira, Hermeto Pascoal,
Heraldo do Monte e Theo de Barros, na temática central, se deu, sobretudo, pela
riqueza de seus relatos e pelas possibilidades de análises de suas experiências. Um
trabalho que atua na luta contra o esquecimento não seria tão contundente se não
levasse em conta a trajetória de músicos, que passam por pressões semelhantes as
dos intérpretes e compositores, mas que têm particularidades a serem evidenciadas,
visto que muitas vezes são colocados em segundo plano e seus nomes sequer são
citados durante as apresentações.
As principais fontes desse capítulo são provenientes da História Oral,
entrevistas realizadas com os principais sujeitos abordados. O conceito de
“memória” que atravessa toda essa proposta e a constitui, tem seus fundamentos
nos estudos realizados para desenvolvimento da Pesquisa de Mestrado na PUC/SP
e na minha participação como membro no Núcleo de Estudos Culturais: Histórias,
Memórias e Perspectivas do Presente. Num importante diálogo com autores, tais
como Walter Benjamin, Raymond Williams, Beatriz Sarlo, Déa Fenelon, Yara Aun
Khoury e Maria do Rosário da Cunha Peixoto, situo as utilizações em torno do
conceito de “memória” compreendendo-a como um campo de disputas, onde o
movimento de “lembrar e esquecer” é politicamente significado e traduz
intencionalidades.
Partindo do princípio, apontado por Walter Benjamin, de que “o passado
coexiste no presente” problematizo as relações das experiências relatadas. A
perspectiva do presente me possibilita pensar as relações de poder em torno do que
se constitui como memória atual sobre esses artistas, buscando dessa forma,
construir uma problemática possibilitadora de uma investigação que assuma um
caráter prospectivo, inserindo-se assim, num campo de resistência. Sem deixar de
lado o aspecto de que os relatos são produtos do presente e da forma como essas
pessoas constroem suas memórias a partir das abordagens.

22
É importante destacar que existem proximidades nas narrativas e que todas
possuem um eixo que nos ajuda a compreender a música como prática social
profundamente vinculada à existência dessas pessoas. Muitos tiveram seus
interesses pela arte despertados durante a infância, de forma intuitiva e criativa, mas
também pela sensibilidade das percepções de seu entorno. Isso nos ajuda a
compreender as escolhas e os caminhos percorridos por esses artistas, sobretudo
por nos dar a dimensão do significado da arte para eles.
O eixo a que me refiro somente foi identificado após a realização de todas as
entrevistas, há um brilho no olhar de cada um deles, um embargo na voz ao falar
das dificuldades, mas um sentimento profundo de satisfação pela convicção da
coerência mesmo em face de pequenas e grandes seduções ou decepções
desencadeadas pelas relações estabelecidas por parte da indústria cultural
brasileira. A isso podemos chamar de “amor à música”, “amor à arte”. Não num
sentido piegas e bastante clamado, mas no sentido de viver esse amor e de viver
por esse.
A arte como prática social coexiste com a mercantilização e com seus
subprotudos, jamais será superficial e com destino ao entretenimento enquanto
preservar a sua essência.
Viver da arte, sobreviver com os ganhos materiais da música tem sido
privilégios garantidos a poucos e isso nada tem a ver com a qualidade do que é
realizado e sim com os meios pelos quais ocorre a seletividade por parte dos meios
de produção e veiculação.

23
1.1 Terra, chão, gente e sensibilidades

“O artista precisa ter a vivência e a experiência. O


profissional faz de sua arte uma expressão de vida e
não uma imitação da vida. Se, para ser artista, fosse
necessário e bastante viver, então arte seria imitação
da vida. Arte é uma expressão livre da vida, que
incorpora a emoção a partir da visão de mundo.”
6
Geraldo Vandré

A relação com a “terra”, como lugar de origem ou como lugar de escolha é


contundente em todas as entrevistas realizadas. A música surge para essas
pessoas como um sopro de vida, a forma como falam e rememoram suas
experiências nos transporta para suas infâncias e famílias indubitavelmente.
“Chão”, diferente de “terra” diz respeito ao universo privado, que aqui não se
pretende tratar de forma biográfica e sim como análise de conjuntura, para que
possamos nos aproximar o máximo possível das realidades materiais que
possibilitaram as expressões estudadas.
A música surge para esses artistas como caminhos e possibilidades de
expressar suas experiências de uma forma, ou melhor, de formas semelhantes às
demais necessidades da vida. O fato é que suas produções trazem intrinsecamente
o olhar sobre a beleza e sobre a dor, marcas profundas do contato com suas
“gentes” e “sensibilidades”.
São oriundos de diferentes lugares do Brasil, Airto (Itaiópolis/SC) é
catarinense, Heraldo (Recife/PE), Hermeto (Lagoa da Canoa/AL) e Geraldo Vandré
(João Pessoa/PB) são nordestinos; Sérgio Ricardo é paulista (Marília/São Paulo),
Theo (Rio de Janeiro/RJ) e Sidney (Rio de Janeiro/RJ) são cariocas. Suas falas
remetem às profundas relações com os lugares de onde vieram e a valorização de
suas experiências de infância.
Sidney Miller morreu em 1980, cheguei a contatar seu filho e um amigo
próximo, mas não obtive êxito no retorno. Quem falou um pouco sobre ele foi a
Joyce Moreno, que gentilmente relatou suas memórias sobre o artista. Mesmo com a
escassez de fontes mantive os estudos a seu respeito, com intuito de registrar, da
forma como foi possível, a memória sobre sua trajetória e sobre suas práticas.
As temáticas relacionadas ao “povo” foram amplamente utilizadas pela MPB,
como movimento musical, nas décadas de 1960 e 70, os artistas aqui estudados
6
MELLO, Zuza Homem de, Música Popular Brasileira. São Paulo, Melhoramentos, 1976. P. 215
24
experimentaram não apenas a temática, mas as formas musicais populares. Acredito
que esse seja um diferencial que serviu para enriquecer suas músicas, mas
também, para dificultar o acesso às gravadoras e a difusão pelos meios de
comunicação.
Existe um pensamento reincidente por parte da Indústria Cultural Brasileira
que é o de colocar a música dentro de uma lógica evolutiva, ou seja, grande parte do
que esses artistas produziram foi colocado, de alguma forma, no passado e suas
permanências no presente são consideradas pelas forças hegemônicas como
retrogradas e atrasadas, restringindo dessa forma o acesso do “grande público” ao
que fizeram e/ou continuam produzindo. Além disso, ocorreu também o cerceamento
das obras durante a ditadura, como é o caso de Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo.
Considero que as escolhas de um(a) artista nem sempre são racionalizadas,
passam por questões emotivas, sensoriais, culturais e os posicionamentos, como
sugere a epígrafe, surgem da impossibilidade de seguir caminhos diferentes, muitas
vezes até mesmo dos que almejaram.
A trajetória de cada um deles nos possibilitará compreender melhor essas
questões. O contato com a terra natal rendeu a todos um misto de consciência das
origens e as necessidades de partir para o eixo Rio de Janeiro/São Paulo. As
relações com os centros urbanos também são temáticas abordadas e é interessante
observar que nas narrativas as perspectivas são endógenas, ou seja, as
personagens representantes das classes populares são também sujeitos de
transformações nas composições analisadas. Na música instrumental há muito
desses elementos, desde as melodias até os arranjos e execuções.
Cada pessoa que entrevistei, deu ênfase às suas experiências e relações
com as musicalidades durante a infância. Isso é bastante significativo, pois revela as
percepções das sonoridades e as culturas musicais nas quais estavam inseridos e
mais do que isso indica também a forma como essas experiências permanecem
vivas dentro de cada um e consequentemente presentes em suas obras.
Hermeto Pascoal, durante a entrevista que realizei, contou detalhadamente
sua relação com a música desde a infância. Ele é um desses seres que encantam
no primeiro contato. Sua casa de então, em Curitiba, revelou a criança que nunca
matou dentro de si. A recepção permeada por brincadeiras, as guloseimas e a prosa
descontraída e bem humorada, sua sala repleta de brinquedos dos quais tira e ouve

25
sons: Para mim a música não está separada de nada, a música está em todos os
contextos. Quem pensar que não está tem que viver mais pra ainda aprender.
(Hermeto/Curitiba, 2015)
Esse contato possibilitou-me conhecer melhor a sua obra. O “bruxo”, como é
chamado, o é assim porque nele está contida toda a energia de uma vida.

Este canto vem de longe


A distância não sei dizer
Salve, salve a toda gente que vive e deixa viver
Aqui vai o nosso abraço
Tirando de nossas mentes a palavra para dizer
A música segura o mundo enquanto a gente
viver
É a maior fonte sem fim
De alegria e prazer
Toquem-se, amem-se, cantem, abracem-se
Vivam felizes, minha gente, até o dia
amanhecer8

Os versos entoados no inicio da entrevista revelam que a música é para


Hermeto fonte de vida e ao mesmo tempo um caminho para se manter integro e

7
Fotografia de Antônio Passaty, durante a entrevista realizada em Curitiba, 2015.
8
Versos entoados por Hermeto no início da entrevista (Curitiba, 2015)
26
atuante, interagindo de forma intensa com seu público o artista encontra motivação
para sua existência. Seus primeiros contatos com a música se deram de forma
intuitiva, ainda na infância, quando tirava sons de coisas inusitadas. No interior de
Alagoas, sem acesso ao rádio ou televisão sua criatividade viajava pelo seu mais
íntimo universo.

“No dia 22 de junho de 36, no dia em que eu nasci, já dá pra


notar que são 78 anos, eu nasci com um dom musical e graças
a Deus um dom muito amplo e com aquela vontade. Não me
criei assim com meus pais dizendo faça isso, aprenda aquilo...
Porque primeiro, eu não tinha luz lá, luz elétrica, foi muito bom
que eu valorizei muito a luz da minha mente, muito mais do que
poderia ser normal, além do normal eu desenvolvi a minha luz,
a minha mente. E aí o que eu fazia né...” (Hermeto Pascoal,
2015)

Hermeto nasceu em Lagoa de Canoa, cidade pequena de Alagoas em 1936.


Lagoa de Canoa somente se tornou emancipada em agosto de 1962, antes era um
povoado em torno de uma pequena lagoa, que abrigava pessoas nas viagens pela
estrada que ligava Arapiraca a Traipu e Girau do Ponciano. Com características
rurais, a agricultura relacionada, sobretudo ao café propiciava empregos para os
moradores locais. De acordo com os relatos de Hermeto, seu pai era roceiro e essa
vivência lhe possibilitou um contato profundo com a natureza e com os modos de
vida desse lugar.
A ausência de energia elétrica é lembrada com satisfação, visto que isso lhe
permitiu o desenvolvimento de percepções e inteligências provenientes de seu
contato com aquele mundo. As brincadeiras de criança sempre estiveram
associadas à produção de sons e experimentações com que o que lhe era acessível.

Com os meus oito anos de idade, o meu pai tocava sanfoninha


de oito baixos, que lá no Nordeste a gente chama, tem uns
nomes bonitos que a gente dá né... É um nome assim né...
chama-se fole o nome, mas é sanfona de oito baixos e pronto
né... Daí meu pai ia pra roça e eu comecei a pegar na
sanfoninha escondido, eu e meu irmão José Neto, já morreu, já
se foi... E aí tocando a sanfona a mamãe escutou e disse pro
meu pai vir almoçar em casa esse dia lá... Pra papai vir porque
ele saia sempre às seis da manhã, papai não admitia sair de
casa com o sol de fora (...)” (Hermeto Pascoal, 2015)

27
O “dom” da música, como ele diz, sempre esteve consigo, teve uma infância
libertária, juntamente com seu irmão vivenciava os sons que os cercavam. A
liberdade dada pelo pai e o incentivo da mãe foram preponderantes para que ainda
na infância explorasse seus instintos musicais. A intuição é um traço bastante
presente nas produções de Hermeto, que surpreende o público com seus improvisos
e produção de sons com os mais inusitados objetos. Na sua casa uma sanfona de
oito baixos, pertencente ao pai, possibilitou o contato com o primeiro instrumento
musical não confeccionado por ele mesmo:

“Aí eu peguei, tava tocando sanfona de oito baixos quando


papai chega da roça e escuta, ai a surpresa foi impressionante
né, a felicidade dele e a mamãe chorava a toa... A gente
tocando e ele pensando se batia na porta ou não né... Ele
bateu na porta, quando nós vimos ele né, aí ficamos com meio
receio porque pegava escondido, a sanfoninha dele a gente
pegava escondido né... Aí daqui a pouco ele viu tocando e
disse: (...) Vocês não vão... Vocês... agora eu vou vender a
vaca, o boi que eu tiver, o melhor que eu tiver, pelo preço que
eu conseguir pra comprar uma sanfona, uma oito baixos, um
fole bom pra vocês. Ele falou isso e nós ficamos contentes
porque ele deu uma força (...)” (Hermeto Pascoal, 2015)

Na simplicidade de seu pai um gesto que lhe permitiria enveredar pelos


caminhos da música, inicialmente com seu irmão e depois desbravando outras
possibilidades. Relata que com cinco meses tocando a oito baixos que seu pai lhes
presenteara e com a “liberdade” dada, ele e seu irmão já estavam prontos para
substituir o pai nos bailes promovidos pela vizinhança.
Hermeto revezava com seu irmão, entre a “oito baixos” e o pandeiro.
Chamados de “galegos”, por serem albinos, seguiam pelos bailes da redondeza. Os
“Galegos do Pascoal” seguiram juntos por um tempo, mas tinham desejos e
expectativas diferentes: E ai pronto, aí fui né... tocando com meu mano (...), mas
sempre aquela história né, cada um tem a sua cabeça, o seu jeito (...) Ele não queria
sair de casa e eu ia pro mato.” (Hermeto Pascoal, 2015)
A relação de Hermeto com a natureza lhe proporcionou a interação que tem
até hoje, afinal ele é o músico que encanta sapos na lagoa, que se comunica com os
animais por meio dos sons. Sua intuição, vinda do mato, segundo ele, foi despertada
pela curiosidade e pelo olhar apurado sobre as coisas com as quais convivia. Por

28
ser albino seu pai o colocava debaixo de uma árvore enquanto trabalhava na roça e
em cima de um carro de boi observava os pássaros:

“(...) Aí poxa, eu criança eu via os pés de mamona, lá a gente


chama pé de carrapateira, os pés de mamona e aí o que é que
eu fazia? Pegava a faquinha de papai que ele tinha pra cortar
fruta no mato e ia fazendo uma coisa (...) que de repente eu
pegava assim e escutava e começava a tocar pra eles, pros
passarinhos e o papai lá na roça longe né (...) Daqui a pouco
eu tocava e vamos supor que tinha dez passarinhos na árvore,
eu dava uma nota assim, duas ou três notas e os passarinhos
iam embora correndo assustados né, e na minha cabeça, na
minha intuição dizia assim: pode tocar que eles vão vim.”
(Hermeto Pascoal, 2015)

Segundo Hermeto, os pássaros iam aos poucos que acomodando nas


árvores e quanto mais ele tocava, mais pássaros chegavam para ouvi-lo. A
integração com a natureza aguçou sua sensibilidade, em suas músicas há mistura
de sons e interações com os sons das matas, dos animais e das águas. A magia e a
intuição são constituintes da sua obra.
Essa é uma característica interessante entre os artistas pesquisados, é
comum o início da carreira em pequenos bailes promovidos pela vizinhança. Assim
como Hermeto e seu irmão José Neto, Airto Moreira no interior do estado do Paraná
(tendo se mudado para esse estado ainda quando criança), também iniciou suas
práticas artísticas ainda criança tocando nos bailes dos arredores.
A cultura popular com toda a sua dinamicidade é permeada por significados
atribuídos às vivências e pelos modos de vida que preservam de certa forma uma
interação com as realidades materiais, a essência das composições de Hermeto
Pascoal, por mais sofisticadas e elaboradas que sejam, partem de suas relações
com o mundo, transitando entre os mais íntimos estímulos e os mais vastos
conhecimentos construídos ao longo da vida. Nesse sentido, o popular não pode ser
simplificado ou estigmatizado, não se trata de algo menor ou inferior, mas aspectos
fortemente enraizados que quando expressados por meio dos sons, das melodias e
dos versos assumem uma energia poética extremamente potente.
Barbero traz importantes contribuições para essas reflexões:

“(...) E estamos descobrindo nesses últimos anos que o popular


não fala unicamente a partir das culturas indígenas e
camponesas, mas também a partir da trama espessa das
29
mestiçagens e das deformações do urbano, do massivo. Que,
ao menos na América Latina, e contrariamente às profecias da
implosão social, as massas ainda contém, no duplo sentido de
controlar, mas também de trazer dentro, o povo. Não podemos
então pensar o popular atuante à margem do processo
histórico de constituição do massivo: o acesso das massas à
sua visibilidade e presença social, e da massificação em que
historicamente esse processo se materializa. Não podemos
continuar construindo uma crítica que separa a massificação da
cultura do fato político que gera a emergência histórica das
massas e do contraditório movimento que ali produz a não
exterioridade do massivo ao popular, seu constitui-se em um de
seus modos de existência (...)” (BARBERO, 2013. P. 29).

O autor nos ajuda a pensar o sentido do “popular”, para além do que vem
sendo significado por alguns estudos, o “popular” não está atrelado a um modo de
vida específico, são relações plurais constituídas em diferentes espaços e por
diferentes grupos sociais. O conceito de “mestiçagem” ao qual prefiro tratar como
“entre lugares”, de acordo com o pensamento de Homi Bhabha, nos impulsiona a
pensar o popular dentro de uma perspectiva de contatos, confrontos, assimilações e,
porque não dizer, conflitos diante dos processos de deslocamentos e dos contatos
com realidades antes não vivenciadas. As experiências e vivências dos artistas aqui
estudados nos proporcionam a noção de que há permanências, há traços
construídos ao longo da vida que se transformam sem que sejam extintos.
Distinguir os processos de massificação daquilo que é produzido e apreciado
pelos grupos populares é bastante importante, visto que ocorre historicamente uma
desqualificação, sobretudo nos processos de construções hegemônicas, que com
diferentes interesses, têm construído discursos que diminuem ou estereotipam
culturas não compreendidas em sua profundidade, essas práticas estão
constantemente relacionadas à ideia de poder e à necessidades de “superioridades”
que de fato não existem. São modos de pensar e cosmovisões diferentes.
Obviamente a música instrumental brasileira está longe de ser pertencente a
uma cultura de massa, muito pelo contrário, permanece na maioria das vezes restrita
a pequenos nichos, não recebendo das mídias os espaços merecidos. No caso dos
músicos aqui estudados o elemento popular, fruto de suas vivências e não de suas
aspirações, constituem suas obras como energia propulsora de suas relações com a
arte e formas de comunicação.

30
Airto Moreira fez um relato semelhante ao de Hermeto ao falar de sua infância
e seu primeiro contato com a música. Afirma que começou não necessariamente
tocando música, mas produzindo sons em Ponta Grossa, estado do Paraná:

“eu gostava muito de fazer sons, eu pegava coisas, é... tinha


um aterro grande, perto da minha casa e então a gente descia
lá no aterro e eu e meus amigos e cada um fazia o que queria.
Eu sempre queria fazer instrumentos, fazer apitos e coisas pra
chamar passarinho, essa coisa toda e eu fui enchendo, vamos
dizer, eu enchia uma latinha de leite moça, alguma coisa assim,
tampava bem, botava umas pedrinhas e eu fazia um
chocoalho, que agora não é chocoalho é ganzá, mas naquela
época era chocoalho. E eu continuei fazendo isso, e eu tocava
e fazia som no quintal da minha casa e um dia o vizinho que
morava do lado, eu senti que ele tava olhando pra mim, mas eu
continuei, aí ele me chamou, eu fui né, na cerca né... e ele
falou assim: poxa, você toca bem né, você é músico?” (Airto
Moreira, 2015)

A musicalidade e o interesse por sons acompanharam toda existência de Airto


Moreira, além de cantar, coisa que sua mãe o incentivava desde criança, tinha
também a busca e produção de instrumentos, ainda na infância, que lhe
possibilitaram, assim como a Hermeto, a participação em apresentações nos bailes
de sua cidade. A memória que tem desses momentos é extremamente emotiva,
podendo ser perceptível em sua voz. Aos cinco anos de idade Airto Moreira já
tocava juntamente com seu vizinho, a quem chama de “grande acordeonista”. Seu
vizinho, cujo nome não recorda, iniciou Airto na música tocado no bailes de sua
cidade, eram bailes de batizado, casamento, aniversário: “a gente ia de cavalo e eu
levava um saquinho assim de lado, de pano e com alguns instrumentos que eu tinha
feito. Eu levava aquilo e ele botava o acordeom nas costas dele e eu me agarrava
nele e a gente ia, vamo lá, vamo lá...” (Airto Moreira, 2015).
Há felicidade ao relatar os desafios iniciais, de uma criança que teve suas
criações valorizadas. Dessa forma Airto seguiu seu rumo e experimentou nos bailes
seus primeiros palcos. Nota-se que os instrumentos criados e carregados nas costas
eram, na sua maioria, relacionados à percussão. Hoje Airto Moreira, que reside nos
Estados Unidos é considerado como um dos maiores percussionistas do mundo,
sendo responsável, ao lado de Naná Vasconcelos, entre outros, pela inserção da
percussão no Jazz.

31
Os bailes realizados nas pequenas cidades e vilarejos rurais, além de serem
palcos que possibilitavam uma insurgente profissionalização e aperfeiçoamento das
habilidades musicais, também eram meios de sobrevivência, visto que a “passagem
do chapéu” e a “paga” dos(as) donos(as) das festas rendiam, mesmo que pouco,
algum dinheiro aos artistas:

“(...) Depois da meia noite começava a passar o chapéu, a


gente tocava duas músicas e aí começava a passar o chapéu,
eu entrava ali no meio do pessoal que tava dançando, os
casais com o chapeuzinho e eles me davam o dinheiro e
aquela era nossa paga e claro que tinha uma paga do dono da
casa... A gente tocava até cinco, cinco e meia da manhã, de
quatro a cinco e meia... E aí a gente não ia voltar no mesmo dia
claro... Eu dormia assim com várias crianças no chão, eles
punham uma coisa assim no chão, uma colcha e todo mundo
dormia ali, eu geralmente não dormia ali porque todo mundo se
mexe muito e aí você não dorme direito (...)” (Airto Moreira,
2015)

Os bailes eram festas longas que duravam, muitas vezes, por dias. Nessas
ocasiões a música desempenhava um papel significativo, de embalar as noites, de
trazer alegria e dança. Airto, com apenas cinco anos, vivenciava essa experiência
com encanto e apesar do cansaço permanecia ativo até o encerramento do baile. Ao
término do serviço, que desempenhava com alegria, havia o pagamento e o
merecido descanso. No entanto, relata que não conseguia dormir junto às demais
crianças, seu espírito inquieto o levava para outros lugares onde pudesse sentir a
energia das noites tocando e contemplando a natureza:

“(...) Um dia, aliás esse dia foi muito bonito... Eu tava assim,
não conseguia dormir ai eu desci a escada, abri a porta da
frente e sai... E tinha uma carroça, sem cavalo sem nada,
parada cheia de feno (...) Subi assim naquela carroça e deitei
no feno e fiquei olhando pra cima e tava tão bonita a noite,
muito bonita, uma coisa assim... E eu vi várias estrelas
cadentes, parecia até pra mim... Sabe eu fiquei assim, não é
possível... E ai tinha outra que passava e a minha mãe me
ensinou a dizer ‘Deus te guie’ quando caí uma estrela assim...
Deus te guie (...) Foi tão bonito que eu nunca mais esqueci,
uma coisa muito simples... E esse aí foi meu primeiro trabalho
e que me dava uma grana (...)”

A sensibilidade do artista, ainda na infância, proporcionava momentos únicos


imersos na simplicidade. Uma noite deitado sobre o feno, contemplando as estrelas
32
cadentes forja uma alma e a torna ainda mais criativa. Acendia também o desejo de
trilhar outros caminhos e de buscar a sobrevivência por meio daquilo que já amava
fazer: música. A memória é um campo vasto e a sua permanência no presente nos
dá elementos da grandiosidade de alguns momentos que são, sem dúvida,
constitutivos das práticas desempenhadas posteriormente. O lugar que a música
ocupa nas vidas dessas pessoas é muito maior que as relações comerciais em torno
da arte, daí a ideia de que a Indústria Cultural pode dificultar os meios de produção,
mas jamais poderá determinar os rumos da criação.

Em Curitiba teve participação no seu


primeiro programa de rádio, cantando e tocando
percussão, aos 13 anos já se tornara um músico
profissional remunerado.
Do campo para a cidade pôde
experimentar as relações de produção e
expressões que não o distanciava dos modos de
vida anteriores. Os modos de vida são
perceptíveis e representados na literatura e na
música de múltiplas formas e essas formas se
entrelaçam nas realidades vivenciadas. A
presença de diferentes estilos musicais não
aponta, de forma alguma, para a necessidade de
classificações, até porque a recepção também é múltipla, tendo em vista a
heterogeneidade das populações.
O problema central é a falta de liberdade, tanto na elaboração das obras,
quanto no acesso a essas. Os poderes e meios que interferem nessa dinâmica, seja
na produção de disparidades ou na crítica postulada das expressões artísticas e na
sua apreciação, revelam o caráter autoritário das definições externas. Ou seja, a
indústria cultural brasileira não determina tudo que é criado ou apreciado, mas
interfere de forma intensa nas relações, ao deter os meios de produção e buscar
direcionar as tendências, mas há também formas e necessidades de inserções
nesses meios para que as canções e as músicas sejam veiculadas por suportes com
a finalidade de chegar até o público.

33
É interessante observarmos que ao contrário da lógica evolucionista da
música brasileira que ignora e rejeita os estilos musicais provenientes das classes
ou grupos populares, mesmo às assimilando e modificando com interesses
comerciais, os modos de vida relacionados ao campo têm por diversas vezes
desempenhado um papel importante na literatura e na música. Grande parte do que
chamamos de música popular brasileira tem a sua gênese em experiências que se
harmonizam com a natureza e com modos de vida associados à ideia de
simplicidade, que na verdade são complexos e fontes de riquezas não valorizadas
pela parcela da população que assume o papel avaliador. Nos relatos de Airto e
Hermeto essas correlações são explícitas, a importância desses contatos e vivências
é evidenciada ao buscarem a memória do início de suas trajetórias e um estudo
mais profundo de suas produções posteriores poderá nos dar indícios da relevância
desses modos de vida em suas práticas.
Não obstante podemos também pensar nos mecanismos de exclusão, em
momentos em que o discurso de modernidade coloca em primazia modos de vida
relacionados aos ambientes urbanos. Ocorre uma simplificação das análises e ao
mesmo tempo a criação de estereótipos ao julgar que tudo que vem das zonas
rurais se relaciona à tradição como algo imutável ou ao “folclórico”. A diversidade
está para a arte assim como está para a vida, pessoas que partiram em busca de
trabalho nos centros urbanos preservam seus costumes, criam e recriam outras
relações com os espaços, relações essas que não podem ser simplificadas ou
descartadas.
A literatura e a música exemplificam muito bem a complexidade dessas
relações ao mesmo tempo em que permitem a junção de diferentes fazeres
permeados por estruturas de sentimentos diversos. Ao lidar com as emoções
captam aquilo que existe de mais sublime nos campos afetivos e emocionais.
É interessante notarmos que esses artistas se constituíram ao longo da vida,
iniciando suas caminhadas ainda na infância e sendo provenientes de famílias
humildes receberam o incentivo que lhes foi necessário para enveredar num campo
de atuação que não lhes possibilitava nenhuma garantia. Na verdade, a
sensibilidade e a criatividade surgem a partir da forma como visualizam e se inserem
no mundo.

34
Os processos de exclusão e de desqualificação são extremamente violentos,
pois não se trata apenas de banir o que não lhes é interessante do ponto de vista
comercial, mas de interferir drasticamente nas produções humanas e nas
elaborações artísticas. Ainda que não sejam determinantes, esses processos têm
nos roubado e interferido significativamente naquilo que poderia brotar de forma
espontânea. Obviamente existe resistência e as obras apresentadas por esses
artistas nos possibilita constatar o poder de resiliência e que a própria indústria
cultural brasileira passa a assimilar o que ganha notoriedade por meios diversos,
sobretudo, os emanados pela população.
As experiências vivenciadas nos centros urbanos são também elementos
constitutivos das obras aqui analisadas, como são os casos de Sérgio Ricardo e
Theo de Barros.

“(...)Eu nasci no Rio e lá em casa quando eu era criança


sempre tinha reunião de músicos, fim de semana ia muita
gente famosa inclusive, e eu sempre fui, foi aí que surgiu essa
atração, o chamado pra música, quando eu mudei pra São
Paulo, mudei pra cá aos onze anos de idade, então não tinha
(...) não tinha turma, então o violão ficou sendo o meu melhor
amigo, eu ficava o dia inteiro tocando violão eu ia pra escola e
depois ficava, e ai eu fui desenvolvendo, desenvolvendo, até
que eu comecei (...) então eu comecei a acompanhar artistas
um amigo da família (...) ele compunha eu fiquei me
questionando porque eu não posso compor também né, e
comecei e experiência de fazer composição, cada vez que eu
ia no Rio mostrava lá e os amigos gostavam, aquele negócio
todo, ai começou assim de maneira bem, bem amadorista, não
tinha a menor intenção de tornar profissional (...)” (Theo de
Barros, 2015).

Theo nasceu numa família que já possuía experiências musicais, sua mãe
havia sido cantora num quarteto vocal nos anos 40, abandonando a carreira após o
casamento. Seu pai era diretor das Edições Associadas e também compositor e
músico. Com uma personalidade bastante introspectiva, Theo viu na música uma
forma de parceria, de companhia para as tardes solitárias ainda quando criança. Sua
observação das pessoas que frequentavam a sua casa despertou a percepção de
que também poderia compor, com acesso aos estudos e com o incentivo de seus
pais enveredou pelos caminhos das canções sem muitas expectativas de ser tornar
um profissional. O fato é que as conexões e a apreciação da arte forjaram suas
práticas e o potencial artístico logo foi verificado. A vida na cidade do Rio de Janeiro
35
e a convivência com artistas consagrados lhe atraiu para a música e lhe possibilitou
uma dedicação quase que exclusiva, só vindo a fazer um curso de graduação na
área de comunicação aos quarenta anos.
Theo afirma que tornou-se músico de forma espontânea e quando percebeu
já estava enfronhado no meio musical, convivendo com artistas mais velhos
percebeu que aquele era seu meio e que de fato desejava dedicar sua vida à
música.
Assim o fez e se constituiu como um músico bastante disciplinado e dedicado,
suas composições são frutos de suas vivências, mas também de estudos realizados
sobre a cultura popular brasileira. A temática do povo, bastante em voga nos anos
60 o levou a compor canções como o Menino das Laranjas, mais tarde interpretada
por Geraldo Vandré e Elis Regina.
Na entrevista concedida no bairro de Pinheiros em São Paulo afirma que
Hermeto e Heraldo foram a alma do Quarteto Novo, mesmo tendo se constituído
como artista nos centros urbanos de São Paulo e Rio de Janeiro valoriza as culturas
provenientes do Nordeste e assume essa influência em sua obra.
Heraldo do Monte nasceu em Recife, capital de Pernambuco e teve uma
formação musical teórica ao participar da banda e orquestra de seu colégio.
Também iniciou seus estudos musicais ainda na infância:

“Foi na infância, com certeza foi na infância. Na Mustavinha,


um bairro bem pobrezinho que eu morava, lá em Recife e uma
gaita de boca que apareceu lá em casa, não sei se eu comprei
ou alguma coisa e eu tocava (...) tinha poucas notas numa
escala de dó, uma coisa assim e eu tocava Asa Branca e Oh
Suzana, as únicas músicas que cabiam naquela gaita, que
davam pra tocar e aí (...) e aquilo me provocava uma emoção,
ai eu tava fazendo o segundo grau, é o ginásio na Escola
Industrial na Agamenon Magalhães, lá em Recife também, em
Cruz de Velho um bairro, vinha a pé da Mustavinha (...)”
(Heraldo do Monte, 2015)

Proveniente de uma realidade de bairro pobre em Recife, Heraldo dedicou-se


aos estudos com afinco, com recursos escassos sua iniciação na música foi por
meio de uma gaita onde tocava o que cabia na escala de dó. Nordestino, não
obstante, dedicou-se a tocar Asa Branca de Luiz Gonzaga, até pelas possibilidades
melódicas de sua gaita. Num primeiro contato Heraldo parece ser bastante tímido,

36
porém aos poucos vai se soltando e se entregando às brincadeiras e piadas, homem
forte ri dos desencontros da vida.
Ainda menino fez um teste juntamente com outros alunos em sua escola, um
teste de musicalidade em que precisava cantar a escala de dó. Foi um dos
selecionados dando início aos estudos na banda e na orquestra. Suas primeiras
execuções foram de músicas ditas eruditas e de dobrados, ao qual considera “uma
coisa militar”. O fato é que o estudo com o maestro lhe proporcionou conhecimento
sobre teoria musical, conhecimento esse que fora importante no início de sua
carreira profissional em Recife e depois em São Paulo.
Suas apresentações são repletas de expressões e demonstração emotiva, o
artista não concebe o fazer musical dissociado dos sentimentos que a música lhe
provoca. Os elementos populares estão presentes em sua obra e sua vivência num
bairro pobre de Recife também, suas músicas são extremamente elaboradas e seus
dedos deslizam pelas cordas do violão e da guitarra como quem brinca suavemente.

“(...) a gente saia e chagava nas casas dos outros e o bloco


parava e um cara tinha que dar galinha guisada com cachaça
(...) com bate-bate, sabe como é bate-bate? Bate-bate é uma
batida de cachaça com sei lá, frutas, com esse tipo de coisa.
Bate-bate de maracujá, esse tipo de coisa, era muito divertido,
a gente ganhava bem pouquinho (risos) imagina com
blocozinho de bairro, além da galinha guisada, eu sempre
ganhava um dinheirinho (...).” (Heraldo do Monte, 2015).

A experiência vivida por Heraldo Monte, no final dos anos 40, lhe possibilitou
a percepção das múltiplas culturas de seu estado natal, o tocar em troca de galinha
guisada, bate-bate e alguns trocados deu início a sua precoce carreira e a noção de
que poderia viver da música. Aparentemente uma brincadeira de criança, mas aliada
aos seus estudos de teoria musical lhe forneceu as bases para o desenvolvimento
de sua carreira.
Na orquestra de sua escola teve contato com o segundo instrumento, o
clarinete que apesar de sua seriedade e empenho não lhe chamou muita atenção,
não tardaria para que tivesse o seu primeiro violão e que desse início a uma parceria
que lhe acompanhou por toda a vida. Por volta dos seus dezesseis anos a partir do
método de clarinete, começou a estudar as cordas do violão, aprendeu afinação e já
tinha percepção das notas e dos acordes musicais, a princípio estudou sozinho em
casa.
37
9

Heraldo se tornou um dos mais conceituados violonistas do Brasil, com uma


infinidade de composições e também execuções de outros compositores. No bairro
onde morava conheceu um cantor de serestas, ele cantava a noite e o convidou pra
tocar num lugar chamado Cassino Flutuante, em Recife, era um barco grande que
ficava perto de uma ponte que dava acesso ao Recife Antigo. O local em que tocou
profissionalmente ainda na adolescência seria um dos muitos caminhos que seguira,
junto com o cantor de serestas Heraldo se aperfeiçoou na guitarra e realizou uma
série de apresentações.

“Tinha um pianista, era um negócio meio, é suspeito assim de


frequência suspeita (...) aí tinha outras casas noturnas
chamadas boates, que você, casa de classe média alta sabe e
chegou um contrabaixista dessa e me escutou tocando e me
chamou – Olha a boate tal, vamos tocar lá com Walter
Wanderlei, um pianista muito bom que tinha na época, e aí
comecei a entrar nessa coisa das boates de Recife, mas só se
tocava Jazz ou Bossa Nova, já tinha aparecido esse disco do
João (...)” (Heraldo do Monte, 2015)

No início da carreira nas boates de Recife não era possível ainda escolher
seu repertório, o gosto musical da clientela, a quem define como procedente de
“classe média alta” era o que demarcava as músicas que tocaria ao lado do pianista
Walter Wanderlei. Nas boates de Recife já se tocava Bossa Nova, estilo musical que
se tornaria amplamente popular no final da década de 1950. Mesmo tocando mais

9
Fotografia do acervo pessoal de Heraldo – Banda do colégio em 21 de abril de 1951.
38
tarde nas boates de São Paulo não se distanciaria dos estilos musicais de sua terra,
suas composições, influenciadas pelo Jazz ainda traziam expressões marcantes da
música nordestina.
Sidney Miller, também iniciou suas investidas iniciais na escola, foi aluno do
Colégio Santo Inácio e desde cedo demonstrou suas habilidades para a escrita e
composição. Aos 12 anos escreveu um romance e fez a ilustração com recortes de
revista. Com uma personalidade bastante tímida se dedicou amplamente aos
estudos solitários de violão, com o qual fez as primeiras composições. Tinha uma
grande sensibilidade e tom melancólico em suas canções, além de uma facilidade
para acompanhar músicas ao violão sem ajuda de cifras ou partituras, captava as
melodias “de ouvido”. Já na escola apresentou seus primeiros textos que dariam
origem à publicação de versos numa revista do próprio colégio.
Aos 18 anos dedicou-se mais intensamente à música e mais tarde tornou
pública sua composição “Pede passagem”, gravada por Nara Leão. Um samba que
pede passagem para “arrastar a felicidade pela rua” e que trás a dureza da vida do
“povo” e sua alegria diante de tempos de carnaval na saída de uma escola de
samba.
Sidney enveredou por caminhos diferentes dentro da arte fez cinema, teatro,
intensas pesquisas sobre cantigas de roda e na música transitou por estilos como o
samba, a marcha e as composições que apresentou nos festivais. Foi o primeiro
parceiro do sambista do morro Zé Keti. Apesar de sua timidez, estabeleceu grandes
parcerias no teatro e na música.
Em 1968 publicou o livro “João e o pó”, que já vinha escrevendo há alguns
anos, sendo apresentado pelo editor José Álvaro:

“Sidney Álvaro Miller Filho, carioca de Santa Teresa, nascido


em 1945, é um dos mais importantes compositores da nova
geração. Poeta dos maiores, tem a sua carreira musical
marcada de inúmeros sucessos – a pesquisa sobre as
‘cantigas de roda’ atesta a afirmação. Sem apelos aos clichês
estandartizados vem construindo sua obra com fôlego e
consciência (‘A ESTRADA E O VIOLEIRO’ recebeu o prêmio
de melhor letra do Festival da Record de 1967). Agora, chega
ao público com sua primeira experiência no romance que, pela
técnica e visão de suas coisas, somos tranquilos em afirmar a
sua definitiva presença de escritor” (José Álvaro, Editor do livro
João e o pó, 1968)

39
As palavras de José Álvaro trazem informações, dentro de uma escassez de
memórias dobre o artista, que além de expressar sua apreciação pela obra,
qualificam as produções de Sidney Miller, fazendo referência não apenas ao
romance cuja temática gira em torno das injustiças sociais sofridas por um homem
do “povo”.
Temática recorrente em suas canções, tais como a citada “Estrada e o
violeiro” defendida no Festival da Record de 1967 ao lado de Nara Leão e vencedora
na categoria de melhor letra, vencendo a canção “Roda Viva” de Chico Buarque.
Toda sensibilidade de uma breve vida se constituiu como uma obra que
infelizmente permaneceu desconhecida de grande parte da população chamada de
“grande público”, mas também de públicos mais restritos apreciadores de MPB. Não
somente a falta de reconhecimento afeta a vida de um artista, mas os caminhos, as
frustrações e os entraves em visibilizar aquilo que se produz. Lutas internas,
conflitos existenciais, sonhos guardados desde a infância e infortúnios dentre uma
sociedade que intenciona transformar a arte em mero produto de comercialização.
Como relatado por Joyce Moreno, um conjunto de fatores levou Sidney Miller
à tristeza e por vezes ao abandono ou simplesmente desistência temporária daquilo
que desejava fazer e o fez da forma que pôde.
As trajetórias relatadas nessa pesquisa têm seus altos e baixos, a vida
entregue à arte ou a arte entregue à vida não é feita somente de aspectos positivos,
a sensibilidade apurada, como vimos desde a infância desses artistas, evidencia
dores que estão presentes nas trajetórias de todos nós, mas também direciona o
olhar para a beleza, mesmo quando as abordagens são melancólicas e duras.
Geraldo Vandré despertou seu interesse pela música, também na infância,
nascido em João Pessoa observava desde cedo os cantadores das feiras livres, daí
venha talvez uma de suas características marcantes, a força e explosão de energia
poética de seu canto.

“Sempre tive vontade de cantar. Sempre tive mania de cantar.


A rigor, jamais pensei que pudesse vir a ser um profissional de
canto em música popular brasileira. Me lembro que quando era
guri ainda, cantava como todo mundo, no banheiro. Eu era um
cantor de voz forte. Depois descobri que cantar não era ter voz
forte, e sim comunicar alguma coisa.” (MELLO, 1976. P. 34)

40
Para Geraldo a função primordial das canções é a comunicação,
característica que podemos observar em toda sua obra. O cantar forte não se
restringe a entonação de voz, muito mais além, se refere à força que estabelece um
vínculo com o público e que emerge dos sentimentos propulsores desse fazer. O
fato é que o menino Geraldo sempre foi um desbravador, passou pelo colégio
interno em Nazaré da Mata, onde deu indícios de sua postura questionadora e onde
iniciou suas práticas artísticas. A forma como observava a vida, as coisas de sua
terra e as pessoas de lá é constitutiva de sua obra e trajetória:

“Na Paraíba participei de um programa de novos na Rádio


Tabajara. Devia ter uns 14 anos. Por volta dessa época, fiz um
show em Nazaré da Mata, no interior de Pernambuco, onde eu
estudava interno no Ginásio São José. O Padre João Mota fez
um show para missões ou qualquer coisa semelhante, e eu e
mais 3 ou 4 colegas cantamos.” (MELLO, 1976. P. 34)

Geraldo Vandré demonstrou desde criança um grande interesse pela música,


em João Pessoa ouvia os programas de rádio e tinha muita admiração pelos
cantores, quando indagado por sua mãe, a senhora Maria Marta, sobre a profissão
que desejava seguir, respondeu com convicção: desejava ser cantor. Do rádio teve
influências de cantores como Francisco Alves, além disso, observava com muita
atenção as apresentações dos cantadores nordestinos nas feiras livres quando
morou em João Pessoa e também em Pernambuco. Com grande interesse e
respeito por estas expressões, em diferentes canções fez questão de enfatizar e se
auto intitular “cantador”.
Como era comum nas famílias de classe média da época, e ainda hoje, havia
certa pressão para que os filhos cursassem universidades e que tivessem, pelo
menos, o título de graduação. Era de desejo de seus pais, que ele se tornasse
advogado e assim o fez. Estudou na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro
ingressando no início 1960. O que ao mesmo tempo lhe possibilitou uma
aproximação do meio musical concentrado na cidade, passando por experiências
importantes. Conheceu o CPC – Centro Popular de Cultura, mas não se identificou
com as propostas estéticas e políticas. Foi nesse momento que também conheceu
dois dos artistas com os quais mais se relacionou a princípio: Baden Powell e Carlos
Lyra, fundamentais para a gravação de seu primeiro disco, que apesar de ter
composições suas como “Canção Nordestina” e “Fica mal com Deus”, com
41
sonoridades bastante diferentes das demais, passa por um momento inicial de flerte
com a Bossa Nova.
Assim como os demais artistas aqui estudados Sérgio Ricardo também
despertou seu interesse pela música ainda na infância, na pequena cidade de
Marília, cidade essa recém-emancipada que crescia juntamente com ele. Um local
onde características urbanas conviviam com feições e expressões rurais:

“Desde a primeira vez em que fui para a boca do poço,


debruçando-me na amurada para olhar o espelho de água lá no
fundo e ouvir o eco dos sons que ele emitia, a imagem e a
música nunca mais me abandonaram. Viraram um hábito. (...)
Pequeno paraíso feito de quintal e sobrado, de cuja sacada se
descortinava um horizonte ondulante no perfil dos cafezais, sob
um céu de escandaloso crepúsculo e de estrelas cintilantes.
Nada mais puro poderia ter sido oferecido aos meus
sentimentos de criança.(...)” (RICARDO, 1991)

De forma poética, Sérgio Ricardo descreve em seu livro “Quem quebrou meu
violão” as relações iniciais que teve com a música. O olhar de uma criança para o
universo que o circundava ressalta a visão de mundo desse artista, as coisas que
lhe chamam atenção e as marcas de uma infância tranquila em Marília, interior de
São Paulo. Do hábito de ver poesia em tudo, música nos pequenos sons e pinturas
cunhadas pela natureza pode ter surgido a versatilidade desse artista, que além de
cantor e compositor é, também, cineasta e artística plástico, entre tantas outras
empreitadas.

“Vivíamos ao som das fazendas, dos animais domésticos de


toda natureza. Das aves, do ‘Buracão’ onde desaguava a
enxurrada. Do estalo do chicote dos carroceiros ávidos. Dos
raios e dos trovões. Do vento forte assobiando na cumeeiras.
Dos pregões, dos sinos das igrejas e dos apitos de trem da
recente estrada de ferro que a Paulista atravessava, dividindo a
cidade em dois bairros: São Bento e Santo Antônio. (...) Meus
pais eram afinados, e à noite cantavam canções populares
árabes, meu pai dedilhava num alaúde. Juntavam-se em
frequentes reuniões alguns parentes e seus novos amigos,
dentre eles alguns vizinhos japoneses, animados pela voz de
minha mãe. Quase sempre eu dormia embalado por essa
alegria (...).” (RICARDO, 1991).

Na privacidade de seu lar, os encontros promovidos pelos pais o aproximava


do universo da arte e aguçava sua visão a respeito de tudo aquilo. Ainda criança
42
prestava muita atenção nas cantorias de seus pais e aquilo tudo o fascinava.
Experimentando a alegria de viver num ambiente extremamente criativo e imerso na
arte, Sérgio Ricardo não tardaria a esboçar seus primeiros arroubos artísticos.
Além do que via em sua casa, o mundo externo também lhe chamava
atenção. Em frente à loja de seu pai havia um casal que frequentemente cantava
para os transeuntes em troca de moedas. Sérgio os observava do interior da loja,
enquanto rabiscava os papeis de embrulho no processo de alfabetização. O fato é
que ali aprendia diferentes lições, uma delas a beleza do dueto de vozes daqueles
artistas de rua, que lhe causava imensa emoção e ao mesmo tempo despertava seu
interesse de um dia poder causar esse impacto em outras pessoas:

“O espelho de água turvou-se, e, no eco que me voltava aos


ouvidos, vinha uma convicção definitiva como profissão de fé:
conquistar aquele poder de provocar com meus meios esse
tipo de emoção em outras pessoas. Algo do fundo do poço me
parecia responder que eu teria potencial para isso. Aos oito
anos, convencida do meu pendor, minha mãe matriculou-me no
conservatório Santa Cecília, de dona Chiquinha e seu Sílvio.
(...)” (RICARDO, 1991).

Sua busca inicial talvez nos ajude a compreender a grandeza desse artista e
seus sentimentos em relação à música. Sua alma inquieta lhe garantiu a busca
contínua por aprimoramento, sua curiosidade de infância é observável ainda hoje,
sua empolgação e coragem de desbravar, de experimentar e criar o tempo todo são
importantes elementos para que possamos compreender os sentidos de suas
práticas. Estudou com afinco, desde os anos 50, sem parar. É interessante salientar
que a técnica sempre esteve associada a sentimentos profundos de admiração e de
determinação em fazer de suas produções fontes de comunicação e comoção em
seu público.
Retomando as questões que abrem esse capítulo, podemos observar o
significado da arte nas vidas dessas pessoas. As memórias das infâncias e os
primeiros passos na construção de suas identidades revelam o potencial criativo que
os acompanha durante toda a vida. Não há possibilidade de definir o conceito de
arte de forma universal, mas podemos aqui toma-lo como algo profundamente
relacionado aos modos de vida e à necessidade de expressar sentimentos e
convicções por veículos diversos. A produção artística revela traços das realidades
43
materiais em que eles viveram, suas relações com o lugar de onde vieram e tantas
outras experiências no decorrer da vida.
O domínio das técnicas é, na verdade, o fio condutor para que pudessem
atingir seus propósitos. A seriedade e paixão pela música podem ser constatadas
pelas trajetórias e pelas posturas adotadas. Dessa forma podemos ter noção do que
significa a persistência em meio a tantos entraves ocasionados pelo que chamamos
de Indústria Cultural Brasileira.
O final dos anos 1950 é demarcado por um forte discurso de modernização,
não por acaso o Presidente Juscelino Kubitschek, com seu plano de metas foi
chamado de “Presidente bossa nova”. Digo isso para enfatizar que o termo, para
além do cenário musical, assume uma ligação com os discursos e o momento
histórico do país, sem que haja uma ligação simplista com a musicalidade e sua
constituição. O termo bossa era utilizado com sentido de algo novo, moderno, tem
também suas origens etimológicas relacionadas às culturas africanas, mas que
assume no Brasil um significado relacionado a um “jeito” de ser, o que nos ajuda a
entender o sentido da “batida” característica do movimento bossanovistas vinculado
ao termo.
Na realidade as buscas por fusões musicais, não era algo novo e nem
inventado por um grupo determinado, havia várias expressões musicais, dentro e
fora do país que já vinham experimentando musicalidades e pontos de conexões,
criações e recriações a partir de várias culturas. A própria bossa nova enquanto
movimento que se torna hegemônico, tem nas narrativas a seu respeito muitos
silenciamentos de experiências de artistas que não tiveram a mesma projeção que
Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto. Em momento oportuno desejo
aprofundar o pensamento sobre esses músicos e arranjadores, na sua maioria
composta por negros, dentro de uma futura pesquisa mais ampla e específica.
É importe ainda destacar que Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo tiveram uma
relação bastante significativa, sobretudo no início de suas carreiras, com a bossa
nova. Fato que pode ser verificado nas suas gravações iniciais.
A musicalidade brasileira tem suas bases nas culturas dos povos originários,
nos contatos com europeus estabelecidos via colonização e depois com a chegada
dos povos africanos sequestrados de diferentes locais do continente, suas
expressões carecem de estudos mais profundos, mas é notória a diversidade e a

44
amplitude musical em nosso país. Como disse anteriormente, somos usurpados
desse conhecimento e aprendemos desde cedo que música brasileira é aquilo que
nos ensinaram a ouvir desde crianças. Em casa a mãe entonava cantos de negros
da Bahia e o pai a chamada “moda de viola” aprendida em sua terra natal Ibirá,
interior de São Paulo. O fato é que a música está presente em nossas vidas, em
diferentes espaços e estruturas, mas há os estilos e expressões legitimadas via
rádio e televisão e nesses veículos, salvo alguns programas intitulados regionais,
toca-se “música brasileira” em grande parte composta por artistas migrantes que
fizeram sua vida artística no que chamamos de eixo Rio/São Paulo.

45
1.2 Bares, boates, rádio e TV: Caminhos e descaminhos

A forma como o país foi industrializado e a acumulação de riqueza


proveniente dos ciclos econômicos, sobretudo do café, fizeram da região sudeste o
chamado “polo de atração”. Sabemos os níveis de desigualdade a que esse
processo levou e também de que essa desigualdade consolidou a ideia de
superioridade da região sudeste em relação às demais regiões do Brasil. Além da
polarização rural-urbano, sendo ao rural atribuída a feição de atraso. Todas essas
questões se relacionam diretamente à forma como as culturas são significadas
dentro da nossa sociedade, e também à música.
As experiências dos artistas aqui estudados, no início de carreira, sobretudo
as vivenciadas nas capitais e no eixo São Paulo-Rio de Janeiro, têm em comum o
trabalho em bares e boates, onde além do contato com outros artistas havia a
possibilidade de ganhos financeiros. Essas trajetórias se entrecruzam, sendo
possível notar, diante dos relatos, que além das tensões havia, também, um rico
aprendizado que na maioria dos casos fortaleceu a convicção de que de fato
desejavam prosseguir na carreira artística.
No que diz respeito aos músicos é interessante ressaltar que muitos
acompanhavam diferentes intérpretes, o que os projetava também para futuras
gravações, individualmente e em grupos no acompanhamento e arranjos de artistas
que tinham conseguido recursos e contratações nas gravadoras. Essas relações, na
maioria das vezes, eram estabelecidas nas noites e nas parcerias nas boates.
Heraldo do Monte afirmou que no final dos anos 50 a maior procura pelos músicos
era para que tocassem Bossa Nova e jazz nesses ambientes:

“Já tava essa febre de Bossa Nova, então você ao contrário de


hoje em dia se você tocasse brega nessas boates você ia
perder o emprego, a gente tocava, tinha que tocar só jazz
americano né e Bossa Nova, no máximo só isso e era muito
gostoso, porque músico gosta desses dois estilos (...) Walter
veio pra São Paulo, casou com uma cantora daqui a Isaurinha
Garcia e eu fiquei lá e a gente precisava de um pianista pra
substituir o Walter e tinha um acordeonista que tocava no
Regional da Rádio Jornal, no comércio não existia televisão
ainda, eu fui lá e chamei o acordeonista pra tocar com a gente
no lugar do pianista o acordeonista disse que não tinha, que só
tinha noção de piano ele só sabia tocar com a mão direita
porque a esquerda o acordeão é diferente do piano.” (Heraldo
do Monte, 2015)
46
A “febre da Bossa Nossa”, como afirma Heraldo, também condicionava o tipo
de música que deveria compor os repertórios das noites nas boates. O ar de
“modernidade” que esse estilo proporcionava ao público, das classes média e alta,
nos possibilita pensar o tipo de sofisticação procurado e apreciado. Isso não
chegava a ser um incômodo para Heraldo, até porque diante da sua formação
musical era algo que também gostava de fazer, o incômodo aparece nas entrelinhas
justamente pelo tom de obrigatoriedade e pela impossibilidade de escolher seu
próprio repertório.
Ele relata que em Recife teve contatos e realizou trabalhos com o pianista
Walter Wanderley em algumas boates da cidade. Com a vinda de Walter Wanderley
para São Paulo e posteriormente sua ida para os Estados Unidos, onde teve
notoriedade, Heraldo buscou novas parcerias, encontrando um acordeonista, que
apesar de não ter experiência no piano acabou por integrar a banda necessária para
dar continuidade às atividades em Recife, mas não tardaria também a vir pra São
Paulo.

“Depois disso o Walter mandou uma carta me chamando pra vir


pra cá, eu não tinha dinheiro pro avião, nem ele, teve uma
turma, a gente conhecia, conhece as boates, você conhece
muita gente importante né, então, eu acho que o cara foi dono,
ou diretor, presidente, alguma coisa da Vale do Cruzeiro (...)
eles arranjaram a passagem pra mim, vim pra cá trabalhar
numa boate na Major com o Walter.” (Heraldo do Monte, 2015)

Heraldo ficou trabalhando em boates entre o fim da década e 50 e início de


60, mudando de um lugar para outro, sempre que novas oportunidades surgiam ou
que outras não eram mais possíveis, trabalhou em boates da Praça Roosevelt como
a Baiuca, por exemplo. A partir do que chama de “bum” da indústria fonográfica, teve
novos trabalhos no acompanhamento de outros artistas: “aí a turma soube que eu lia
música que eu tocava clarinete, tinha que saber ler música né.” (Heraldo do Monte,
2015)
Heraldo do Monte e Hermeto Pascoal já se conheciam de Recife, mais tarde
vieram a ser tornar compadres e até hoje são grandes amigos, tento realizado uma
série de shows recentemente. Durante a entrevista realizada em Curitiba, Hermeto

47
me contou que a primeira pessoa a confiar nele para tocar piano foi Heraldo do
Monte:

“Eu vim tocando piano de Recife, porque a primeira pessoa que


me chamou pra tocar piano, corajosa foi o Heraldo do Monte,
meu compadre Heraldo do Monte, ele teve coragem em me
chamar, porque eu só tocava sanfona, mas como eu tocava
muito bem sanfona, ele disse: É fácil você tocar com a mão
esquerda no piano. Ele deduziu isso né, me levou pra boate e
eu com três meses, quatro meses já estava tocando
razoavelmente o piano. (Hermeto Pascoal, 2015)

Hermeto conta que esse pouco que aprendeu de piano, ainda em Recife ao
lado do amigo, foi o que lhe garantiu um de seus primeiros empregos quando
chegou ao Rio de Janeiro em 1958. Na boate de Fafá Lemos, na Rua Rodolfo
Dantas, substituindo o aclamado pianista João Donato. O músico afirma que Fafá
Lemos ficava surpreso com sua desenvoltura e que não compreendia como ele
conseguia acompanha-lo nas músicas com tão pouco tempo de experiência no
piano e sem ensaios. A resposta dada na época era: “Eu não sei meu filho, eu sinto”.
Ainda brinca durante a entrevista dizendo: “Se eu tenho ouvido pra tocar com os
passarinhos, como não tocar com as pessoas?”
Antes de trabalhar na boate de Fafá Lemos, Hermeto teve seu primeiro
emprego no Rio de Janeiro na Rádio Mauá de Pernambuco do Pandeiro, conta que
a rádio era apelidada na época como a “Emissora do Trabalhador”. Ainda como
sanfoneiro, trabalhava de dia na Rádio Mauá e à noite nas boates:

“(...) ainda não tinha surgido a Bossa Nova, quando eu cheguei


no Rio, na época né, a Bossa Nova não, mas eu conhecia já o
Tom, conhecia o Donato, esse pessoal todo da Bossa Nova eu
só fazia assim (acenava) porque a gente não se conhecia, não
era de conversar nem nada, porque eu era um matuto do mato,
pra eles né, não que eles me considerassem assim, mas não
tinha costume... Daí então eu acabei tocando, tocando numa
boate lá no Rio, com Fafa Lemos, depois toquei no hotel
Excelsior com Maestro Copinha (...).” (Hermeto Pascoal, 2015)

A Bossa Nova, que viria a se tornar pública no mesmo ano da chegada de


Hermeto ao Rio de Janeiro, já vinha sendo gestada pelos jovens músicas da classe
média carioca. Os trabalhos nas boates aproximava Hermeto desses artistas,
mesmo não sendo contatos muito próximos. Com apenas 22 anos, com uma
48
trajetória extremamente diferente dos músicos com os quais estabelecia contato
naquele momento demarca as diferenças culturais em suas expressões, mesmo
sinalizando que não era tratado como “matuto do mato” destaca as diferenças de
costumes e modos de vida.
Hermeto saiu de sua terra, Lagoa da Canoa, com apenas 14 anos,
juntamente com seu irmão José Neto, para realização de um baile promovido pela
escola em que estudavam, em parceria com outra escola no município de Palmeira
dos Índios. Os “Galegos do Pascoal” já acostumados a realizar os bailes das
redondezas chegaram à cidade vizinha, em meados de 1950, para tocar numa festa
de São João, revezando, como de costume, entre o pandeiro e a “oito baixos”.
No término da festa houve um embate, Hermeto se recusava a voltar para
Lagoa da Canoa. Como se declara 100% intuitivo recorda que algo veio à sua mente
indicando que ele não deveria retornar para sua cidade, que dali deveria alçar novos
voos em busca de aprimoramento de suas práticas artísticas:

“Aí cheguei pro meu irmão, porque lá tinha aquele negócio,


sempre o irmão mais velho tinha que cuidar dos irmãos mais
novos. (...) Quando eu falei pro meu irmão, eu com 14 anos e
ele com 15, quando eu disse: olha, vamos embora cara, daqui
não vamos pra casa mais não, nós amamos os nossos pais,
mas nós temos que fazer a nossa vida na música, tocar... Meu
irmão disse: como eu vou chegar em casa sem você? (...)
Então eu disse, vai ficar ruim pra você, você vai apanhar
porque eu não vou mais não. (Hermeto Pascoal, 2015)

O desejo que investir sua vida na música era tão grande que mesmo
respeitando e amando a família não conseguia aceitar a ideia de voltar para casa,
acabou convencendo o irmão a ir juntamente com ele para Recife. Dois
adolescentes, com o pouco dinheiro ganhado no baile promovido pela escola, se
dirigiram à estação para comprar as passagens. Para poder comprar as passagens
e ganhar a autorização para viajarem sozinhos, Hermeto contou uma história triste
sobre uma tia que estava doente e que precisavam de qualquer forma ir visita-la, a
desculpa colou e assim conseguiram embarcar com destino a Recife:

“(...) Fomos, fizemos a viagem, chegamos a Recife sem


conhecer ninguém, nada, nem cidade nem nada... Nós dois
perguntamos onde era a rádio, primeiro perguntamos onde era
a rádio que a gente conhecia mais de nome, que era a Rádio

49
Tamandaré, na época pra nós era mais conhecida que a Rádio
Jornal do Commercio, que era a rádio mais importante da
América do Sul. Bom, porque não tinha rádio na minha casa,
não tinha luz, não escutava nada, falavam e a gente ouvia
falar.” (Hermeto Pascoal, 2015)

Com ajuda dos transeuntes conseguiram chegar até a Rádio Tamandaré, a


terceira emissora de rádio a ser fundada em Recife pelo Assis Chateubriand em
1951, que desenvolvia, entre outras atividades, programas de auditório e
transmissões musicais ao vivo. Os jovens chegaram à rádio que se interessou
inicialmente apenas por Hermeto e sugeriram que José Neto fosse até à Rádio
Jornal do Commercio, uma emissora com maior abrangência.
Nessa rádio trabalhava Sivuca, que com 21 anos já havia se estabelecido
com um dos importantes músicos da programação. Mesmo tocando coisas muito
simples, suficientes para os bailes, mas não para a programação das rádios José
Neto despertou o interesse do diretor da Rádio Jornal do Commercio pelo fato de ser
albino e de poder formar dupla com Sivuca. Ocorre que José Neto, com sua
esperteza, falou logo do irmão Hermeto que estava na Rádio Tamandaré e sugeriu
que os três se apresentassem juntos:

“(...) Aí o Sivuca falou: Por que não traz ele aqui (...) Como eu
queria ficar perto do meu irmão, que a gente era uma dupla né
(...) Quando eu fui na Jornal do Comércio, não sabia pra que
era, que apresentaram nós três pro Pessoa de Queiroz, que
era o dono da Rádio Jornal do Comércio, que era a rádio mais
rica que tinha também, a mais importante do que a própria
rádio Tamandaré, a Tamandaré era rádios associadas. Aí
porra, quando o meu irmão disse assim e o Sivuca: porque
você não fica aqui também com seu irmão? Aí o doutor Pessoa
disse: Olha, vou comprar uma sanfona pra cada um... Como é
que eu ia voltar mais pra rádio Tamandaré? (Hermeto Pascoal,
2015)

De fato, Hermeto só retornou à Tamandaré para comunicar que iria trabalhar


da Rádio Jornal do Commercio. Obviamente a direção da rádio se incomodou com a
recusa e até mesmo o ameaçou, dizendo que ele não trabalharia em nenhuma das
rádios associadas no Brasil. Hermeto foi firme, pediu desculpas e seguiu seu rumo
ao lado do irmão.
O contato com Sivuca foi importante para os dois, como referência musical e
também na articulação de futuros trabalhos. Porém, Hermeto afirma que não houve
50
uma aprendizagem instrumental, até porque nesse período Sivuca já era bastante
compromissado, não tendo muito tempo para ensiná-los a tocar sanfona, mas os
incentivou da forma que pôde.
Pessoa de Queiroz, dono da Rádio Jornal do Commercio, cumpriu sua
palavra e comprou duas sanfonas para os jovens se apresentarem na rádio.
Hermeto ficou com a de 36 baixos e José Neto com outra de 80 baixos

“(...) aí botaram o nome de o ‘Trio O mundo pegando fogo’,


porque branquinho os três, vermelhinhos né. (...) Tinha um
programa lá que tinha de rua, chamava-se ‘A felicidade bate na
sua porta’ (...). Aí o Sivuca disse, olha vocês ainda não tocam,
mas vocês vão fazer mímica, se balance como eu vou fazer,
vocês façam mímica e tal e o que vocês puderem tocar, vão
tocando, cada um com uma sanfona. Aí Sivuca puxou, me
lembro como se fosse hoje, “Vassorinha” (...) era em si bemol
essa música e no instrumento a gente não sabia dar o tom
ainda (...). O mundo pegou fogo mesmo, porque esse trio só
fez isso, não fez mais nada, porque não dava pra tocar. O
Sivuca não podia tocar com a gente, a gente tinha que ter um
tempo pra aprender.” (Hermeto Pascoal, 2015)

O “Trio pegando fogo” realizou apenas essa apresentação, que inclusive era
um programa de rua com propagando do Sabão Português. De fato, não tinha como
dar continuidade à formação com tamanha disparidade. Logo colocaram Hermeto
para tocar pandeiro, procurando respeitar o contrato que já havia sido assinado
pelos pais. Ocorre que nenhum dos dois irmãos estavam satisfeitos com os
resultados obtidos. Foi nessa época que Hermeto conheceu Jackson do Pandeiro,
que atuava na mesma rádio e que já vinham se dedicando a cantar coco, mesmo
sem estímulo e pouco espaço:

“(...) O Jackson do Pandeiro, olha que cara maravilhoso né,


jovem também na época, ele chegou pra mim e disse: Hermeto
vem cá, eu tenho o meu emprego aqui na rádio, eu não posso
perdê-lo, então vou falar um negócio pra você menino (...) mas,
porque você já mostrou o músico que você vai ser, você já é na
cabeça, agora você vai ser no futuro, o músico que você já é
você não pode ficar nessa de ficar tocando pandeiro, você tem
que aprender a tocar sanfona, olha não diga que falei nem
nada não.” (Hermeto Pascoal, 2015)

Jackson do Pandeiro já andava insatisfeito com a obrigatoriedade de tocar


apenas um instrumento e com muito esforço já havia conquistado um espaço dentro
51
da rádio para que pudesse cantar as músicas que lhe interessavam. Ao ver Hermeto
condicionado ao pandeiro, não por opção, mas pela falta de experiência com a
sanfona, o incentivou a estudar e buscar trilhar o caminho que verdadeiramente lhe
interessava.
Hermeto já demonstrava sua insatisfação, assim como o irmão, a gota d’água
foi quando chegou à rádio e viu um cartaz anunciando: “Sivuquinha e seu pandeiro”.
Para ele foi o estopim, o reducionismo e a caricaturização por causa de sua cor,
além da obrigatoriedade de tocar pandeiro: “fui diretamente na diretoria, o diretor se
chamava Amauri Neceias, (...) cheguei pra ele e disse: olha doutor é o seguinte, eu
não vou mais querer tocar pandeiro, porque o meu contrato aqui é pra sanfoneiro.”
(Hermeto Pascoal, 2015)
O resultado do levante foi uma suspensão de 30 dias e posteriormente a
separação dos dois irmãos. Hermeto foi enviado para uma filial em Caruaru e seu
irmão José Neto para Garanhuns como “refugos só pra terminar o contrato”. A
separação foi muito difícil para os dois, porém, determinaram que estudariam com
afinco para que pudessem tocar sanfona, afinal era o que desejavam desde a
infância.
Com aproximadamente um ano em Caruaru, Hermeto teve contato com
Sivuca, que fazia viagens pelas filiais da Radio Jornal do Commercio nas
comemorações de aniversário da rádio. A essa altura, Hermeto já havia estudado
profundamente o instrumento que desejava tocar e, mesmo de “castigo”, havia
assumido o posto de sanfoneiro, sendo reconhecido como um dos melhores
sanfoneiros do agreste pernambucano.

“Aí o Sivuca viu e chegou lá, ele nem sabia disso que tinha
acontecido da gente ser mandado embora assim... Aí o Sivuca
me viu tocando, ele estava assim no escritório com o gerente,
até chamava-se Luís Torres, ele escutou a sanfona, gostou e
disse: Doutor Luís o que é isso? Que sanfoneiro que tá
tocando? Tocando que só a peste, como toca esse cara! (...) Aí
ironicamente o gerente da rádio, doutor Luís Torres, disse:
Sabe quem é? É um daqueles galegos que vieram pra cá como
refugos, só tão esperando terminar o contrato dele.” (Hermeto
Pascoal, 2015)

Hermeto conta que Sivuca ressaltou sua desenvoltura na sanfona e informou


ao diretor da rádio que já tinha um trabalho garantido para ele em outras rádios e

52
que ganharia bem mais que os 500 cruzeiros pagos pela Radio Jornal do
Commercio. Solicitou que rescindisse o contrato e que o levaria naquele momento
pagando sua passagem e tudo. A proposta não foi aceita pelo diretor da rádio, mas
rendeu um aumento significativo do salário e do respeito em relação ao trabalho que
vinha desenvolvendo.
Hermeto ainda trabalhou um tempo na Radio Jornal do Commercio, mas seu
irmão não aceitou a renovação do contrato e foi embora pra Rio de Janiero, onde
tocou na rádio Tupi, demonstrando também grande aprendizado na sanfona. Como
vimos anteriormente, não tardou para que Hermeto também fosse para o Rio de
Janeiro.
Por diferentes fatores o polo de atração Rio/São Paulo acabou por ser tornar
um eixo para onde artistas do país inteiro migraram em busca de trabalho e
evidência, visto que formou-se nessa região grande parte do aparato da Indústria
Cultural Brasileira, gerando uma concentração de artistas em busca de trabalho.
Isso ocorreu com os músicos, cantores e compositores que abordo na presente
pesquisa. Na entrevista concedida a Zuza Homem de Mello, Vandré relata o
caminho percorrido:

“Vim pro Rio com 16 anos em 1951, e cantei uma vez no


Programa de César de Alencar: era um concurso de cantores,
e eu não fui classificado. Fiz um teste na Radio Nacional e
recebi uma nota data pelo Paulo Tapajós: medíocre. Ele devia
ter razão porque realmente eu cantava muito mal. Ainda no Rio
de Janeiro, já estudando Direito, tive muitos contatos com o
pessoal da música: Ed Lincoln, Luiz Eça que tinha um conjunto
chamado Plaza. Eu ia pra lá cantar de brincadeira, ficava a
noite inteira esperando e o Lincoln que era muito amigo meu,
evitava que eu cantasse, porque eu atravessava muito o ritmo.
Ele tinha razão.” (MELLO, 1976. P. 34)

Geraldo Vandré, assim como os demais, teve experiências nas rádios locais,
principalmente em Pernambuco antes de vir para o sudeste, mas ressalta sua
experiência na Rádio Nacional no Rio de Janeiro no Programa Cesar de Alencar, um
programa de auditório bastante popular na época. Mesmo não tendo obtido o êxito
esperado, afinal não devia ser simples para um adolescente de 16 anos se ver
diante de uma plateia de auditório que chegava a comportar 600 pessoas, essa é
uma memória que evidencia ao falar dos primeiros passos de sua trajetória
profissional.
53
A Rádio Nacional do Rio de Janeiro é citada pelos entrevistados como alvo de
possibilidades, afinal nos anos 1950 o rádio ainda era uma das tecnologias mais
eficazes, não apenas de veiculação, mas também de produção musical, tendo em
vista seu rico estúdio de gravações. Era também um teste para cantores que
almejavam a inserção no “mercado” musical, um teste bastante duro pelo qual
Vandré não passou.

“Em 1960 vim fazer um programa de televisão na TV Record.


Vinha umas 4 vezes por mês ganhando um dinheiro bom:
quinze contos por programa. Estava no quarto ano de Direito,
no ano seguinte terminei o curso, não queria advogar e resolvi
me mudar para São Paulo.
Mas acabou o programa de televisão e eu que vinha contando
com ele, fiquei sem trabalho. Fui trabalhar com corretagem,
mas já tinha me habituado a compor. Em São Paulo, não tendo
ninguém pra fazer música comigo, fiz minha primeira canção
sozinho, em 2 acordes: Canção Nordestina. Na mesma
semana fiz ‘Fica mal com Deus, também sozinho. Na época
gravei meu segundo disco, uma canção de Vinícius de Morais e
Baden, chamada Samba em Prelúdio, com Ana Lúcia. Depois
do Sucesso, a direção da Audio Fidelity queria que eu gravasse
um LP inteiro com Ana Lúcia, mas me recusei.” (MELLO, 1976.
P. 35)

A exigência de sua família fora cumprida, Vandré formou-se em Direito, no


entanto esse não era o seu propósito, sendo assim partiu para São Paulo
gradativamente. Com os contatos obtidos no Rio conseguiu um emprego num
programa na TV Record que lhe garantiu certa estabilidade. A Record inicia sua
programação com programas musicais, o que nos ajuda a compreender sua
evidência nos anos 60 nessa área, mas o programa do qual Vandré fala não vingou
e ele acabou ficando desempregado. Para se sustentar trabalhou como corretor e
paralelamente seguiu compondo e buscando meios para se estabelecer.
Sua primeira composição sozinho, não por acaso, “Canção Nordestina” nos
transporta em dois acordes para um sentimento profundo do qual Vandré é feito, sim
“Vandré o personagem” como Geraldo gosta de dizer até hoje, era naquele
momento um jovem amante da música que produziu uma toada nordestina, simples,
sensível e forte. Uma de suas marcas, a comunicação imediata, pode ser observada
em sua primeira canção e seus versos tratavam não de uma realidade almejada, e
sim da constatação da dureza que não sentiu na pele, mas da gente pela qual se
solidarizou. A temática da justiça social não foi um advento pós-golpe de 1964, faz
54
parte da sua vida e da forma como se posiciona diante dela. Apesar de ser
advogado, escolheu a música para expressar seus sentimentos diante de uma
sociedade que mais tarde diria “sem lei e sem espaço para a beleza”.
“Fica mal com Deus” também trás marcas fortes das características desse
artista e isso nos ajuda a entender as tensões que envolvem as representações
feitas a seu respeito. Vandré relata que se indispôs com a gravadora, que ansiava
por altos ganhos diante do sucesso obtido com a parceria, mas afirma que as razões
comerciais eram diferentes das suas, visto que almejava fazer outro tipo de canção.
Essa característica de buscar a liberdade de composição e estilo musical se
configurou como entrave e constantes conflitos com as gravadoras, cujo interesse
sempre esteve vinculado aos ganhos financeiros. Mesmo assim, Vandré gravou
“Fica mal com Deus” em 1962.
A liberdade de criação, na verdade essa convicção, é um traço marcante dos
artistas aqui pesquisados e um aspecto relevante para compreendermos os rumos
que tiveram. Além disso, nos proporciona reflexões a respeito da arte e a forma
como o cerceamento produz e atribui outros sentidos ao que realmente é.
Sérgio Ricardo também trilhou seu caminho no Rio de Janeiro, trabalhou
como locutor numa rádio ao mesmo tempo em que retomava seus estudos de piano
na Escola Nacional de Música e se apresentava em shows estudantis, é
interessante ressaltar esse vínculo que teve e manteve com estudantes, durante os
anos da Ditadura isso foi extremamente relevante para que se mantivesse ativo
enquanto era execrado pelos meios comerciais.
Também relatou para Zuza Homem de Mello o seu primeiro trabalho
profissional como pianista:

“(...) Um dia resolvi ingressar no trabalho profissional como


pianista: fui para o lugar do Tom, que deixava definitivamente a
noite, numa boite chamada Posto 5 em Copacabana. Só então
comecei a me interessar pela música popular brasileira, porque
na época a música que mais funcionava era o jazz mesmo, e a
gente procurava era tocar bem o jazz. Mas o Tom Jobim e o
Newton Mendonça abriram para mim as perspectivas de
compor com um aproveitamento do jazz numa forma na música
popular brasileira. E foi com essa nova forma que comecei a
compor”. (...)”(MELLO, 1976. P. 55)

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Copacabana era conhecida por suas boates, direcionadas à classe média alta
e Tom Jobim teve sua temporada pela noite antes do surgimento da Bossa Nova.
Essas boates se constituíam como importante fonte de trabalho para músicos e
cantores que iniciavam suas carreiras, tendo ali possibilidades de sustento, além de
contatos com músicos mais experientes que por vezes acabavam auxiliando de
alguma forma. Sérgio Ricardo substituiu Tom Jobim na boate Posto 5 e ele que tinha
uma formação clássica de piano e estava habituado a tocar jazz passou a se
interessar por música popular brasileira.
O jazz que já vinha se popularizando no Brasil há décadas era no final dos
anos 50 o repertório que dava o tom de modernidade e sofisticação ao cenário
musical, tendo vários adeptos não tardou a se tornar base para experimentações
que, entre outros estilos, daria origem à Bossa Nova. O contato de Sérgio Ricardo
com músicos como Tom Jobim e Newton Mendonça propiciou investidas nesse
insurgente movimento que viria a ser o estilo musical de suas primeiras
composições. Mas, sua primeira composição publicizada foi “Buquê de Isabel”,
gravada por Maysa ainda nos anos 50, canção essa que o tornou conhecido como
compositor no cenário musical da época.

“Fiz minha primeira música – Buquê de Isabel – mas as


fábricas de disco recusavam não só as minhas, mas também
as do Tom, Johnny Alf e todos os outros, porque a bolerada
naquele tempo era um negócio infernal, ninguém queria
arriscar em nada novo. Gravei só um disco cantando Jangada
e minha carreira no disco estava parecendo com possibilidades
remotas. Mas surgiu logo depois disso o movimento BN, na
época em que eu era produtor de um programa de televisão
chamado Balada.(...)” (MELLO, 1976. P. 56)

A sua notoriedade não garantiu o acesso às gravadoras que, segundo ele,


dispensava artistas como Tom Jobim e Jonny Alf. O estilo da vez ainda era o bolero
e a sua popularidade fechava as portas para qualquer outro tipo de investida. Sérgio
Ricardo conseguiu gravar seu primeiro disco somente em 1958, um 78 rpm pela
gravadora RGE, com a canção “Vai jangada” de Geraldo Serafim e Newton Castro.
Com possibilidades remotas para sua inserção no “mercado musical”, Sérgio viu no
surgimento da Bossa Nova uma possibilidade de rompimento do ciclo de ostracismo.
De fato houve ganhos dentro desse estilo, mas não tardou a buscar outras formas
musicais como veremos mais adiante.

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No caso dos músicos essa lógica de estilo musical em voga gerava um tipo
de produção por encomenda que, ainda que lhes garantisse emprego, não os
satisfazia. No final dos anos 50 grande parte dos compositores que viriam a se
tornar visibilizados pela Bossa Nova se concentrava no Rio de Janeiro, rendendo
comentários de que São Paulo havia se tornado o “túmulo do samba”. Frase
atribuída a Vinicius de Moraes, sem que haja comprovações, evidencia uma certa
polarização em relação à concentração de artistas no Rio de Janeiro, até mesmo em
função da insurgente Bossa Nova.
Theo de Barros, apesar de carioca, relatou sua revolta em relação a essa
ideia e afirmou que no início da década de 1960 houve um movimento em São Paulo
para reunir compositores e cantores para mobilizar e incentivar as produções:

“(...) quanto a isso, então nós começamos a fazer reuniões


todo sábado, pra reunir compositores e cantores, pra incentivar
a produção de musicas aqui de São Paulo né, (...) e nós fomos,
a cada semana alguém apresentava uma musica nova, uma
maneira que nós achamos de incentivar, o Vandré ia também ia
incentivar, e essa coisa começou a tomar vulto (...) uma dessas
reuniões que a gente fazia eu apresentei o esboço do Menino
das laranjas e o Vandré se pôs em acordo e quis gravar e
gravou realmente, a coisa começou assim e começou
naturalmente foi uma coisa espontânea não foi nada forçado
assim, foi de passo a passo assim, e quando eu vi eu tava
enfronhado lá no meio.” (Theo de Barros, 2015)

O incentivo às produções musicais pouco tinha a ver com suas origens


paulistas ou cariocas, os encontros agregavam pessoas que estavam sedentas de
arte e trocas. O próprio Theo de Barros inicia sua carreira com composições que
podem ser consideradas bossa nova e afirma que esse estilo o impressionou muito.
Sua primeira canção a ser gravada e popularizada foi Menino das Laranjas que teve
como interpretes Geraldo Vandré e depois Elis Regina. Teve também composições
gravadas por Alaide Costa, que compusera quando tinha quinze ou dezesseis anos,
como Igrejinha e Natureza.
O fato de estar “enfronhado” nos meios musicais possibilitava trocas de
influências e pessoas que tinham maior evidência acabavam por impulsionar outros
artistas recém chegados ao meio.
Menino das Laranjas fora gravada em 1965 pela Elis Regina e Theo de
Barros obteve naturalmente, como afirmou, seus primeiros passos no caminho da

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profissionalização. composição mais conhecida no início dos anos 60 foi de fato
Menino das Laranjas.
É interessante o seu relato sobre como surgiu essa composição:

“(...) fui passar férias no Rio, tava na casa de uma tia que tinha
um apartamento em Copacabana, nessa rua mesmo todo
sábado tinha uma feira e uns meninos tinham uns carrinhos de
rolimã um caixote que botavam rolimã pra carregar as compras
das senhoras e no fim da feira geralmente os caras te davam
uma laranja, um limão pros meninos venderem, negocio de
sobra né, então eu tinha que passar, eu tinha que passar pela
feira inteira, e fui observando isso ai me veio a ideia do menino
da laranja, a ideia surgiu nessa situação, mas eu fiz a música
em São Paulo (...)” (Theo de Barros, 2015)

Uma canção de temática social, que aborda o dia a dia de um menino que vai
pra feira vender laranjas para sustentar a família que mora no morro. Theo, assim
como muitos outros artistas, era pertencente a uma família de classe média, mas
desde cedo se interessou pelas realidades vivenciadas no país.
O fato é que o compositor nem sempre é reconhecido pelos seus feitos e até
os dias atuais a canção é apresentada, regravada e pouco se fala a respeito de seus
criadores. No que diz respeito à Disparada, quando veiculada, Vandré e Jair
Rodrigues ainda ganham maior notoriedade. Segundo Theo, ele nunca esperou por
reconhecimento, assume a postura de quem trabalhou muito pela música e não se
arrepende, mas o tom de sua voz e seu olhar transmitem a dureza da trajetória e as
marcas deixadas em seu caminho como artista.
Ainda sobre o início de sua carreira ressalta as dificuldades de quando tocava
na noite, nas boates de São Paulo. Diz que trabalhava mesmo por amor, porque
nunca se tinha uma garantia em termos de trabalho, que por vezes gastava o último
dinheiro pra pagar o transporte até a boate e quando chegava lá o diretor dizia que
não haveria possibilidade de tocar naquela noite:

“(...) ai você ficava desempregado, a gente ia pro ponto dos


músicos que era na Ipiranga com São João, pra ver se achava
um outro emprego ou se fazia folga de alguém, pra poder
sobreviver, então eu vivi muitos anos assim nessa corda
bamba ai, mas a gente gostava de tocar, esse era o grande
pecado né, então nisso ai eu toquei em várias boates de São
Paulo, várias casas noturnas, e foi o que me ajudou a
sobreviver, porque se ganhava por dia, pelo menos tinha um

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dinheirinho todo dia, mas eu nunca fiquei em casa compondo
me dando ao luxo.” (Theo de Barros, 2015)

A busca pela sobrevivência e os caminhos para se obter êxito, não somente


no que diz respeito a emplacar, se tornar conhecido, famoso, mas o ato de viver
daquilo que sabe fazer, daquilo que escolheu como profissão é algo que condiciona
vida de muitos artistas às dificuldades financeiras, dificuldades essas que não os
impede de agir, mas que se configura como algo que compromete a estabilidade
emocional e material para seguir compondo.
Quieto demais, como afirma em vários momentos da entrevista, afirma que
poderia ter aproveitado mais o sucesso que sua composição “Menino das laranjas”
fizera nas interpretações de Elis e Vandré:

“(...) sabe eu fiquei sempre num canto assim, sempre


escondido, mais todo mundo me conhecia, eu fui... sempre era
solicitado pra shows, pra esse tipo de coisa e tal, produção de
disco, pra gravar no estúdio então eu era conhecido, apesar de
não querer aparecer, no meio era conhecido, era respeitado,
então aproveitei dessa maneira indireta, eu jamais me esforcei
pra ser uma estrela, isso não é da minha natureza não, até
hoje, mas desse momento eu aproveitei bem, até fazer a
Disparada. A Disparada aumentou mais ainda.” (Theo de
Barros, 2015)

Disparada, composição feita em parceria com Geraldo Vandré foi a vencedora


do Festival de Música Popular Brasileira de 1966, dividindo o primeiro lugar com “A
banda” de Chico Buarque. Defendida por Jair Rodrigues ao lado do Trio Maraiá, com
arranjos do então Quarteto Novo, é uma canção forte onde letra e música se
encaixam perfeitamente, causando um estrondo no festival e nos meios musicais. A
letra fruto das experiências e estudos de Vandré a respeito da obra de Guimarães
Rosa e da trilha sonora que fez para filme de Roberto Santos, A hora e vez de
Augusto Matraga é potencializada pela música de Theo de Barros, que
compreendeu a essência da letra e trouxe a musicalidade necessária para
intensificar a comunicação desejada.

“(...) isso daí o Vandré combinou comigo, eu fui lá no


apartamento dele, (...) ele mostrou uma letra quilométrica né,
que era muito maior que a letra original, nós fizemos em três
noites, duas noites assim, demos uma reduzida na letra, eu
propus a gente repetir umas frases na letra, pra ficar mais
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fluente, mais fácil (...) nós escrevemos no festival e fizemos a
primeira apresentação (...).” (Theo de Barros, 2015)

Assim nasceu “Disparada”, uma experiência fundamental para a consolidação


da parceria que deu origem ao Quarteto Novo. A busca por um tipo de música que
possibilitasse improvisos dentro das formas musicais brasileiras, rompendo com a
influência do jazz e gerando sonoridades fruto de estudos profundos sobre a
musicalidade brasileira.
A defesa de Disparada no Festival da Record de 1966 foi feita por Jair
Rodrigues, o que de certa forma preocupou não somente Vandré, mas os músicos
do Quarteto Novo também:

“É verdade, tem músico que não liga muito pro que o cara tá
cantando, por falar nisso o negócio da disparada, o Jair só
cantava sorrindo né, você sabe disso e a gente tava receoso,
não sei quem teve a ideia do Jair, acho que foi a produção
mesmo da Record ou o Vandré mesmo, sei lá, eu sei que a
gente ficou preocupado, o Jair vai cantar a disparada rindo, ele
tem o caguete de cantar rindo, a gente pensava que era um
caguete, mas depois a gente falou com ele, ele falou – Não, eu
não vou rir hoje não, aí não riu realmente, ele sentiu o espirito
da letra e cantou legal.” (Heraldo do Monte, 2015)

Uma preocupação gerada pelo estereótipo construído a respeito de Jair


Rodrigues, tendo como base suas apresentações nos próprios programas musicais
da Record. O fato é que Jair defendeu a canção com energia poética imensa e
agregou à letra e à melodia a performance perfeita para evidenciar a força de
Disparada.
Ainda em 1966, em meio à composição de Disparada, Vandré foi convidado
pela Rhodia, empresa que realizava desfiles de roupas em conjunto com um circuito
de shows que acompanhavam suas exposições pelas capitais do país. Nesse ano a
demanda era por apresentações de músicas populares, tendo em vista a
repercussão dos Festivais, daí o convite a Vandré que se destacava no cenário
musical da época.
O cantor e compositor, que anunciadamente privilegiava a letra em função da
música, tinha nesse período uma sensibilidade apurada para a necessidade de
buscar melodias que potencializassem suas letras. Sua busca por músicos e
instrumentistas que pudessem agregar valor a sua obra sem que se perdesse de

60
vista a sua essência, acabou por reunir Airto Moreira, Theo Barros e Heraldo Monte,
formando o Trio Novo.
Nesse momento Hermeto Pascoal ficou de fora, por uma atitude
preconceituosa de Lívio Rangan, o produtor. Hermeto é albino e na visão de Lívio
não “ficaria bem” entre as noivas vestidas de branco que desfilariam naquela
ocasião. Apesar de contrariado, Geraldo Vandré iniciou a turnê juntamente com o
Trio Novo.
A Rhodia, empresa francesa que se estabeleceu no Brasil em 1919, com uma
fábrica de lança-perfumes e mais tarde no ramo de tecidos, tinha um estande na
FENIT (Feira Internacional de Indústria Têxtil) e intercalava desfiles de moda com
shows. Vandré cantava acompanhado pelo Trio Novo, que depois deu origem ao
Quarteto Novo, com a entrada de Hermeto Pascoal. Airto Moreira na percussão,
Heraldo do Monte na viola, Theo de Barros no violão e o Hermeto Pascoal no piano
e na flauta, assim surgiu uma das mais importantes expressões da música
instrumental brasileira.
A partir de 1966 o Quarteto Novo tocou exclusivamente com Vandré, o
acompanhou em vários shows pelo Brasil e ganhou notoriedade, despertando o
interesse de outros cantores, como por exemplo, Edu Lobo.
Os arranjos na canção Disparada e a participação do conjunto musical na
elaboração desta canção são significativos para o impacto que teve entre o público
dos festivais:

“(...) o Vandré queria um som de tiro de rifle (...) Ai, mas o que
que tem esse som? Ai pensei: a queixada de burro tem esse
som, mas eu nunca vi uma aqui em São Paulo. Ah, vamos
procurar... Procuramos e encontramos, tinha um percussionista
que morava até fora da cidade, não me lembro o nome dele
infelizmente, mas ele tinha uma queixada de burro, ai o Vandré
encampou a queixada de burro e comprou ou alugou sei lá... E
ai a gente tocou “Disparada”, ai ficou: (cantando) Na boiada já
fui boi... pá, pá, pá/ Boiadeiro já fui rei... pá, pá, pá (...) e
ganhamos em primeiro lugar.” (Entrevista com Airto Moreira no
programa Ensaio da TV Cultura em 2003)

A junção dos músicos do Quarteto Novo possibilitou a Geraldo Vandré o que


desejava fazer em suas canções, a combinação dos sons e os arranjos
implementaram o projeto e o tipo de música que buscava fazer. No caso de
“Disparada”, a queixada de burro além de trazer para o palco uma combinação de
61
sons e de caráter da música, trouxe também um elemento do “espaço” em que a
narrativa estava inserida: o sertão.
As habilidades dos músicos e a busca da experimentação de sons
proporcionaram uma dinâmica de autenticidade no sentido criativo da palavra. A
sensibilidade de perceber em cada necessidade da letra um tipo de som e de
encontrar, até mesmo numa queixada de burro, o melhor recurso para atingir seus
propósitos aliada à formação musical que cada um tinha individualmente contribuiu
para a elaboração de músicas instrumentais que mais tarde viriam a compor o único
disco lançado pelo conjunto. Um disco homônimo, gravado em 1967.
A junção dos músicos e os estudos realizados foram financiados por Geraldo
Vandré, que sempre demonstrou grande interesse em mantê-los juntos e atuantes,
por reconhecer o valor musical dessa experiência. Mas, esse não foi um processo
simples, dado as particularidades de cada um e suas trajetórias:

“O Theo queria fazer um tipo de coisa que ele tinha na cabeça,


o Heraldo tinha outra coisa na cabeça. Juntar os quatro, tinha
que ser um louco como o Geraldo, na época, que trancava,
chegava a trancar os quatro. (...) O Geraldo trancava eles no
porão, porque senão cada um saia pro seu lado. Então por um
lado eles devem achar assim... se você falar com os quatro...
ele era louco, né! De onde é que se viu trancar quatro
barbados dentro de um porão... Mas ele... era uma vontade que
aquilo desse certo, que aquele quarteto acontecesse... e
aconteceu por um disco né...” (Nilce Trajano, 2009)10

O relato de Nilce evidencia traços do projeto estabelecido por Vandré e as


dificuldades em manter o grupo unido, assim como as entranhas dos processos
criativos de negociação e conciliação das visões e experiências musicais diversas.
Nessa época havia trios de jazz, com piano, baixo e bateria, a empreitada do
Quarteto Novo era criar um som “que fosse mais brasileiro”, como afirmou Theo de
Barros na entrevista que me concedeu. Foi então que surgiu, segundo ele, a ideia de
fazer violão, viola caipira e percussão, nesse momento ainda sem o Hermeto, no
período do show da Rhodia: (...) foi aí que começou a surgir a pesquisa musical
mesmo, empírica né, porque fomos pegando coisa que a gente ouvia quando era
criança e buscando-a” (Theo de Barros, 2015).

10
Depoimento de Nilce Trajano (ex-mulher de Vandré) no Documentário “O que sou nunca escondi”
de 2009. Direção e produção de Alexandre Napoli e Helena Wolfenson
62
Theo relata que, após o ingresso de Hermeto Pascoal, permaneceram
durante um ano mantendo exclusividade com Geraldo Vandré, o acompanhando e
estudando ao mesmo tempo para que pudessem realizar o desafio lançado e
abraçado por eles.

“(...) o Hermeto era de Alagoas, Heraldo de Pernambuco, o


Airton do sul e eu sou do Rio, então nós fomos pegando coisas
inclusive dos pais da gente cantavam, coisa de folclore, coisas
de músicas que nós tocávamos durante a carreira, e fomos
aprofundando essa, essa... na raiz brasileira, então não tinha
fronteiras, quer dizer, nós fomos pegando cada manifestação
musical que fosse tipicamente brasileira, e desenvolvendo um
tipo de improviso que não fosse jazzístico, que fosse brasileiro,
isso eu acho que musicalmente foi a coisa mais importante pra
todos né.” (Theo de Barros, 2015)

A junção de culturas e visões de mundo diferentes conectadas com o mesmo


propósito gerou um processo criativo que buscou nas origens de cada membro do
Quarteto Novo os elementos necessários para fazer o que Theo chama de
“manifestação musical tipicamente brasileira”. Sabemos que a ideia de uma cultura
pura e genuína é improvável, mas o fato é que a intenção de produzir improvisos
que não fossem “jazzísticos” foi atingida e o disco lançado por eles é fonte de
estudos musicais e constituído como uma das importantes manifestações da música
instrumental brasileira.
Theo ainda ressalta a influência que Vandré teve na organização do repertório
do quarteto e que havia preferência, até mesmo pelo histórico do grupo, em fazer
arranjos e músicas dele:

“O Vandré criou um estilo, que a gente fala que é o


estilo de dois acordes né, que as músicas dele só têm dois
acordes, mais é um estilo único, uma letra muito forte, muito
bem feita e pelo fato de ser único e original, eu acho que ele vai
ter sempre um lugar na música (...)” (Theo de Barros, 2015)

A simplicidade das melodias de Geraldo Vandré assume outras feições sob


os arranjos dos músicos do Quarteto Novo, é o caso, por exemplo, de “Fica mal com
Deus” que compõe o repertório do disco que trás músicas de composições próprias
dos músicos, com exceção para essa música de Vandré e “Algodão” de Luiz
Gonzaga e Zé Dantas.

63
Os estudos realizados pelo Quarteto Novo, juntamente com Vandré, os
remetiam para as canções que costumavam ouvir na infância e na juventude. Num
momento em que o Jazz dava o tom, o projeto empreendido por esses artistas ia
totalmente na contramão do que estava estabelecido. A busca de um repertório com
“essência” brasileira fez com que retomassem as experiências de violeiros,
cantadores de feira e também de Luiz Gonzaga em seus estudos sobre o baião.

“a gente começou assim no início, porque pra improvisar, você


tem que vim de dentro pra fora né, então começou a entrar
aquilo e a gente foi criando essa linguagem e terminou a gente
usando no quarteto, no disco não tem tanta improvisação por
causa do problema de tempo, mas nos shows a gente
improvisava bastante mostrava bastante isso.” (Heraldo do
Monte, 2015)

Heraldo afirma que o desafio da improvisação surge de “dentro pra fora”, não
é algo que está subordinado à técnica, surge muito mais dos sentimentos e da forma
como o músico se entrega. A criação da linguagem utilizada pelo Quarteto Novo não
pode ser resumida apenas ao que ouvimos no disco, até por questões relacionadas
à tecnologia daquele momento, à forma como os discos eram gravados não permitia
a sobreposição de sons, então os improvisos eram mais perceptíveis, segundo
Heraldo do Monte, nos momentos em que se apresentavam em shows. O músico
afirma que não fizerem muitos shows para além dos festivais, mas destaca um show
que fizeram numa boate da Rua Augusta em São Paulo, diz que não estavam muito
empolgados para tocar na boate, brinca dizendo que naquele momento eram
“metidos à besta” e que cobraram um alto cachê, que surpreendentemente foi aceito
e pago.
O “Quarteto dos Festivais” como foi chamado pela Revista InTerValo, uma
revista popular dos anos 60 que abordava notícias sobre os “famosos”, é
apresentado como um dos importantes grupos no ano de 1967. É possível analisar o
destaque dado aos acompanhamentos de Vandré (Disparada) e Edu Lobo (Ponteio).

64
Há complexidade na fala
atribuída a Theo de Barros,
visto que percebemos a
variedade das referências
musicais dos artistas. O
significado atribuído a então
chamada “música regional”
relacionando-o ao que é
chamada de música popular
brasileira nos possibilita
problematizar questões já
apresentadas inicialmente,
evidenciando a dicotomia entre
o nacional e o regional.
O que observamos em
Disparada é, por exemplo, fruto
de uma construção que aborda
experiências do sertão, com
personagens brasileiros. A “regionalização” das músicas ocorre muito mais em
função de discursos externos e hegemônicos do que na própria constituição das
composições.
O Quarteto Novo acompanhou também Sérgio Ricardo, no Festival de 1967,
promovido pela Record, na tensa apresentação da canção Beto bom de bola.
Heraldo comentou em sua entrevista que naquele dia somente ele permaneceu no
palco com Sérgio Ricardo, porque ninguém conseguia escutar o que o quarteto
estava tocando, nem mesmo o cantor conseguia acompanhar o som:

“Porque ele não estava escutando o quarteto, ele não estava


escutando, ele não conseguia entrar no tom. (...) os festivais da
Record não eram pra música, tanto fazia luta livre ali, tudo que
tivesse torcida, tinha a ver com aquilo, menos música, se
ninguém escutava música, se outro gostava, outro vaiava e
vice-versa, quer dizer aquilo não era feito pra música né,
música é silêncio e escutar o artista, emocionar junto com o
artista, mas não aquilo, mas enfim era coisa da época, era
isso.” (Heraldo do Monte, 2015)

65
No dia em que Sérgio Ricardo “quebrou seu violão”, a tensão e a conjuntura
do festival da Record, segundo Heraldo, não eram favoráveis à música, ele define
como um espaço de “luta livre” propício para a qualquer tipo de atividade, menos
para uma execução musical, que exige concentração por parte dos artistas. As
vaias, problematizadas mais adiante, e a formação de verdadeiras torcidas por um
ou outro artista podem ser significadas politicamente pelas características do
momento vivenciado no país, mas do ponto de vista do músico acarretavam
problemas que comprometiam as apresentações musicais.
No final de 1968, após a promulgação do AI-5 Geraldo Vandré foi obrigado a
sair do país, tendo em vista a repercussão e as implicações de sua canção “Pra não
dizer que não falei de flores”, apresentada no III Festival Internacional da canção
promovido pela Globo, além das pressões que já vinha sofrendo por conta de seu
posicionamento. Com a saída de Vandré o Quarteto Novo ficou sem o financiamento
de suas atividades e mesmo buscando outros caminhos acabou sendo vencido
pelas dificuldades.
Os músicos ficaram juntos por aproximadamente três anos, chegando a
ganhar o prêmio de melhor conjunto instrumental do Brasil e mais o Troféu Imprensa
por duas vezes, como ressaltou Theo de Barros. O término da parceria é algo que
evidencia que as circunstâncias materiais não eram favoráveis:

“Foi decepcionante, porque como músico foi a melhor


experiência que eu já tive, inclusive pra mim foi frustrante
porque o segundo disco do quarteto ia ser a missa brasileira e
nós já tínhamos até uma igreja já meio arranjada (...) mas, o
quarteto se desfez antes da gente fazer o segundo disco, isso é
pra mim a grande frustração” (Theo de Barros, 2015)

Nas entrevistas que realizei com os membros do Quarteto Novo, há


unanimidade em afirmar que essa foi uma das melhores experiências que tiveram ao
longo de suas carreiras. Como Theo de Barros afirma, houve frustração, sobretudo
porque tinham projetos de continuidade, como é o caso da “missa brasileira” que
estavam empenhados em realizar. O impacto que o primeiro disco teve e as
atividades realizadas pelos músicos sinalizavam para uma ideia de que seria
possível permanecerem juntos e atuantes.
A saída de Airto Moreira do Quarteto Novo se deu exatamente pelas
dificuldades financeiras enfrentadas no Brasil:
66
“Aí começou a brincar esse quarteto não vai dar certo (...) a
gente tava andando assim, lá em frente ao Pacaembu, estádio,
o Airto disse: olha eu sou de leão eu vou pro Estados Unidos,
eu vou voltar aqui e vou comprar uma dessas mansões, aí foi lá
e arrasou, fez o maior sucesso, quer dizer não comprou a
mansão ainda, não voltou pra comprar a mansão. (...) o gozado
é que fez uma declaração mesmo, e bem destemida que ele
falou: tive mais prazer de tocar com o Quarteto Novo do que
com Miles Davis.” (Heraldo do Monte, 2015)

Naquele momento, as condições não eram favoráveis para nenhum dos


músicos do Quarteto Novo, mesmo diante da persistência e da busca por trabalhos,
as dificuldades financeiras batiam à porta. Airto Moreira foi o primeiro a se
desvencilhar, sua namorada Flora Purim, também cantora de Jazz, já estava nos
Estados Unidos e diante da realidade enfrentada no Brasil as forças que o levavam
para lá eram maiores do que as perspectivas de continuidade aqui. Isso não significa
que foi um processo simples, que não foi doloroso pra ele e para os demais
membros do quarteto. Diante dos relatos a respeito do significado da experiência
que esses músicos tiveram é compreensível a fala atribuída à Airto de que teve
“mais prazer em tocar com o Quarteto Novo do que com Miles Davis”.
Após a saída de Airto Moreira do Quarteto Novo, Heraldo, Hermeto e Theo
ainda buscaram outro baterista, realizando alguns testes, até que chegaram a
encontrar Nenê, um renomado baterista, que, aliás, foi indicação do próprio Airto.
Mesmo assim, o cenário já era outro e a ausência de financiamento e até mesmo de
um empresário comprometeu os projetos dos músicos.

67
Capítulo 2. Indústria Cultural Brasileira, tensões e suas relações com a música

“(...) Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de


vozes que emudeceram? (...) Walter Benjamin – Magia
e técnica, arte e política11

Existem expressões artísticas soterradas por avalanches provocadas pelos


sapatos flutuantes12, a essas, chegam somente aqueles e aquelas que se
prontificam a retirar os escombros, os entulhos, os sucessos fabricados e buscar na
profundidade do que chamamos de arte brasileira o que a revelia de toda barbárie
teima em existir e resistir. Compreender as relações estabelecidas entre a Indústria
Cultural Brasileira e a arte produzida aqui é no mínimo um trabalho árduo, tanto
pelos esforços necessários para perceber as especificidades dos processos de
mercantilização e seus mecanismos, quanto pela dureza dos entraves e pelo
sentimento de que temos sido constantemente usurpados(as).
Ao mesmo tempo, há o prazer da descoberta, o encantamento com o que
infelizmente não chega ao “grande público” seja pela via de produção da
invisibilidade ou pela dificuldade de acesso, que são na verdade raízes da mesma
árvore, ou mesmo pela ausência de representatividade e comunicação. Músicas e
canções que se relacionam profundamente com expressões populares
marginalizadas ou folclorizadas, reelaborações de tantas outras artes subtraídas e
estigmatizadas permanecem, na maioria das vezes, soterradas, mas teimam em
existir.
O presente trabalho não tem compromisso com a imparcialidade, é produto
de vivências e experiências que obrigam ao posicionamento crítico diante de um
presente no qual observo atentamente os silenciamentos e ao mesmo tempo o que
nos gritam aos ouvidos.
O lugar social da arte é sem dúvida o ponto de partida para as análises que
aqui serão apresentadas, os processos criativos e os sentimentos são inerentes a
essa concepção, porém, as relações de produção, veiculação, receptividade e

11
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História p. 222. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
política: Ensaios sobre a Literatura e História da Cultura: São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.
12
Termo utilizado por Sérgio Ricardo no livro “Quem quebrou meu violão” para se referir aos donos das
emissoras, gravadoras e seus produtores.
68
crítica, constituem pontos estratégicos que não impedem a existência dos primeiros,
mas que se colocam como mediadores da seletividade do que deve ser ecoado e do
que deve ser esquecido.

“No decorrer de longos períodos históricos, modifica-se não


só o modo de existência das coletividades humanas, mas também a
sua forma de recepção. O modo como se organiza a percepção
humana, o meio pelo qual ela se realiza, não depende só da sua
natureza, mas também da própria história (...)” BENJAMIN (2012).

As formas de percepção, como afirma Benjamin, são modificadas ao longo


dos processos históricos. Sendo assim, a relação que nossa sociedade tem com a
arte e com o que os artistas aqui estudados foi transformada não somente pela
natureza humana, pela produção ou apreciação das músicas e canções, mas por
todo uma rede de significados constituída ao longo da história.
Como disse anteriormente, parti de análises específicas possibilitadas pelas
fontes, sobretudo, das entrevistas realizadas com os artistas pesquisados e mesmo
considerando alguns referenciais importantes, como é o caso de Walter Benjamin,
buscarei as correlações sem perder de vista a historicidade da reprodutibilidade da
obra de arte no Brasil. Os processos históricos e o que se chamou de
desenvolvimento tecnológico aqui tem feições diferentes do que se experimentou na
Europa e nos Estados Unidos.

69
2.1 Mediações e produções musicais

Grande parte da música gravada e veiculada no Brasil passa pelo crivo das
percepções e expectativas de mercado que levam em consideração as concepções
de cultura e cultura popular a partir da ótica euro ocidental. Isso compromete
profundamente as produções, dando o tom do que tem valor e interesses de difusão.
A constituição do público alvo dimensiona e direciona o tipo de arte a ser
destinada ao “consumo”, esse é o problema central das discussões aqui
apresentadas. Visto que os artistas que estudo não se encaixavam nos moldes pré-
estabelecidos, configurando dessa forma uma imensa lacuna no que se refere aos
trâmites e tratos com a lógica do mercado.
O conceito de MPB foi sendo compreendido ao longo desse trabalho, muito
mais em função das experiências analisadas do que das abordagens
historiográficas. Uma escolha, tendo em vista a necessidade de aprofundamento e a
complexidade das informações obtidas. A princípio, num diálogo com a obra de
Marcos Napolitano (2007), reconheço que a construção da nomenclatura se deu
muito mais por fontes externas, por “sociólogos e ideólogos” do que pelos próprios
artistas envolvidos, como percebi a partir dos relatos.
Por meio das entrevistas pude verificar que a necessidade de “rótulos” e o
aprisionamento a questões estéticas não eram alvos das preocupações, pelo menos
não das pessoas com as quais conversei, isso não significa que passaram ilesas
pelas pressões mercadológicas, gerando processos de “negociação” e “mediação”
das obras, ainda que houvesse resistências. O fato é que o termo foi cunhado e a
MPB acabou sendo assimilada como gênero musical, que aglutinava expressões
diversas da música, movimentos que dialogavam com o popular, como o “samba do
morro”, por exemplo, mas que produziam suas releituras e ressignificações. A
televisão e o rádio têm grande contribuição para a ascensão e consolidação do
termo.
A principal fonte de questionamento é o significado da sigla, Música Popular
Brasileira, visto que ao se consolidar como tal gerava uma dicotomia em relação às
expressões que não de enquadravam nos moldes estabelecidos pelo “mercado
musical” e aspectos culturais. Aliás, música popular brasileira (com destaque para as
letras minúsculas) pode ser concebida como todas as expressões criadas em solo
70
brasileiro dentro de uma perspectiva popular, no sentido amplo do termo, e é
exatamente nesse ponto em que surge o dilema, pois na minha concepção a
infinidade de expressões que temos e já tínhamos dentro do período abordado não
cabem nos enquadramentos veiculados e consumidos pelo público que
acompanhava os festivais, programas de auditório e a programação das principais
rádios difusoras.
Ressalto que não questiono a importância da MPB, até porque tenho
trabalhado com temáticas que a contemplam e valorizo expressões que foram
incluídas nesses repertórios em seus diferentes expoentes, mas ao mesmo tempo
considero importante refletir sobre os discursos e certas confusões a seu respeito.
Dentro de uma conjuntura em que a música se constituiu como importante forma de
resistência e múltiplas experiências sonoras e ao mesmo tempo é fundamental
pensarmos nos interesses comerciais em torno das obras, advindos da indústria
fonográfica e dos meios de comunicação aliados aos discursos e significados
atribuídos ao “nacional popular” em meio aos processos de “modernização”.
Só gostaria de ressaltar que não há homogeneidade nem total
representatividade tanto no que se refere à produção, quanto à recepção das
músicas e das canções produzidas dentro do período analisado. Que a cultura
musical brasileira é constituída por uma gama imensa de sonoridades, nem sempre
evidenciadas ou até mesmo conhecidas.
Historicamente as pessoas que constituem grande parte do público
“consumidor” da MPB eram e são provenientes da classe média intelectualizada,
salvo raras exceções, que muitas vezes causam estranhamento, mas que elaboram
e reelaboram percepções a partir do lugar social que ocupam e de suas
experiências. Sendo assim, a ação de mercantilização das obras e suas superações
não são processos simples, mas conexos e concomitantes. Daí a dificuldade de
adotar teorias, desenvolvidas a partir de experiências específicas, como universais e
fecundas às análises que realizo. A comunicação com as “massas”, enfatizando o
equívoco conceitual do termo e problematizando o peso da homogeneidade, é
bastante restrita no início dos anos 1960, por questões materiais e possibilidades de
acesso.
No livro “Impressões de viagem”, Heloísa Buarque de Hollanda (2004) faz
problematizações a respeito das práticas culturais nas décadas de 60 e 70. Em meio

71
à conjuntura vivenciada no país e os processos de industrialização e modernização.
A autora analisa a composição dos movimentos culturais e as suas propostas de
forma crítica, diante da realidade de uma ditadura civil militar, relacionando-os à
concepção de literatura e de poética que adotam, que envolvem escolhas e estéticas
demarcadas pelas diferenças entre os sujeitos e os projetos em que se inseriam.
A forma como a arte foi significada, constituída, expressada e recepcionada dentro
da conjuntura analisada pela autora é bastante relevante para a presente pesquisa.
Nos ajuda a pensar e questionar o perfil do público e a forma como os artistas se
relacionavam com o mesmo. Além de promover reflexões a respeito da forma como
as culturas de “esquerda” e o público, em grande parte constituído por jovens
universitários(as) ligados(as) a essas culturas, se sentiam representados(as) por
alguns artistas ao mesmo tempo em que se distanciavam de outros, nos fazendo
refletir sobre os aspectos políticos que fundamentavam posturas frente ao que se
aproximava e ao que se distanciava dos projetos de sociedade almejados e
defendidos por esses sujeitos e a representatividade por meio da arte.
As produções de Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Sidney Miller, Airto
Moreira, Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal e Theo de Barros, ocorreram, em sua
maioria, durante as décadas de 1960 e 1970, período em que o Brasil vivenciou uma
Ditadura Civil Militar. Nesse sentido, é importante não perder de vista as relações
constituídas dentro de uma conjuntura de repressão e censura, mas também na qual
a música desempenhou um importante papel, no caso desses artistas, no campo
das resistências. É importante também pensarmos nas músicas e canções
produzidas ou nas formas de veiculação ocorridas na conjuntura dos anos de 1980 e
1990, período em que ocorreu um grande avanço das mídias e veículos que
envolvem a produção musical no Brasil e, em contra partida, a construção do
silenciamento a respeito dos artistas citados.
Tomei como foco a produção musical e as experiências dos artistas indicados,
ainda que aborde o cinema e o teatro devido aos trânsitos de alguns cantores e
compositores por essas linguagens, mais especificamente, nos trabalhos de Geraldo
Vandré, Sérgio Ricardo, Sidney Miller e Theo de Barros.
O contato com esses artistas, suas obras e trajetórias possibilitaram a
compreensão de que os processos criativos coexistem com a necessidade de
veiculação, ainda que diante dos mecanismos de exclusão continuem a produzir. Em

72
diferentes momentos das entrevistas e com diferentes sujeitos, uma fala foi
reincidente: existem obras “a espera da soltura”, e “mantê-las no baú” não é
simplesmente uma opção do artista. O fato é que a arte carece de liberdade e as
composições realizadas por esses homens foram muito mais produtos de seus
sentimentos e aspirações do que da demanda do mercado e das modelagens da
Indústria Cultural Brasileira.
Sérgio Ricardo falou-me a respeito dessas relações e do caráter de sua obra:

“O trabalho com as várias artes me satisfaz, mas não me


projeta… O meu trabalho tem mais coisas no baú a espera de
uma soltura do que o que já foi colocado aí na mídia, na
praça… A mídia não me dá a menor bola depois da ditadura
porque foi muito contundente a minha proibição na mídia pela
censura… a censura proibiu mesmo a minha obra ser
executada no rádio e de aparecer na televisão, então
acabaram com o Sérgio Ricardo. E isso é curioso porque
permanece até hoje, o que faz supor que a mídia continua a
mesma coisa: macumunada com o sistema (...)” (Sérgio
Ricardo – Janeiro de 2015).

O trânsito por diferentes linguagens é uma das fortes características de


Sérgio Ricardo, algo que deveria ser positivo, segundo o artista acaba por se tornar
um entrave, visto que “não o projeta”. Ele explica tal fato pela falta de atenção ou de
divulgação de seus fazeres, até mesmo pelo fato de ter acabado um trabalho e já
estar com a cabeça envolvida em outros, sem tempo para explorar possíveis
colheitas do que fizera. Nos anos 60 esteve em evidência, participou dos festivais e
suas canções circulavam pelos meios de comunicação, porém a princípio em função
da censura, como ocorreu com outros artistas, acabou sendo “bloqueado”. Mesmo
após a abertura política não obteve a projeção necessária, acabou sendo rotulado
como “o cara que quebrou o violão” no Festival da Record de 1967. Aos poucos foi
perdendo cada vez mais o espaço na “mídia” e suas produções posteriores são, em
sua maior parte, desconhecidas do público.
A Indústria Cultural Brasileira pode ser considerada a partir das forças que
regulam a reprodução, veiculação, difusão e repercussão das obras realizadas no
país. Essas forças são verificadas, a partir dos relatos, pelos meios de
reprodutibilidade, tais como a indústria fonográfica, as editoras, a indústria

73
cinematográfica, mas passam também pelas emissoras de televisão e de
radiodifusão, assim como a imprensa escrita e os canais de críticas das obras.

“(...) “Indústria cultural” e “cultura de massa” são expressões


ainda em curso nos manuais e nos ensaios. Mas já se
desgastaram por sua vinculação com as perspectivas críticas –
moralistas – da Escola de Frankfurt ou com as posições
incipientes (início dos anos 60) da sociologia da cultura e da
comunicação.” (SODRÈ, 1996)

Muniz Sodré problematiza as expressões que considera estar em curso nos


ensaios. As pesquisas a respeito das obras de arte e sua circulação tratam
inevitavelmente desses conceitos, porém chama atenção para a conjuntura em que
os pensadores Adorno e Horkheimer produziram seus pensamentos a respeito do
conceito de Indústria Cultural nos anos 40. Um cenário de guerra e de ascensão do
nazifascismo e a forma como a arte foi utilizada como instrumento ideológico para
atingir propósitos de popularização e assimilação das ideias defendidas pelos
regimes totalitários acabou por gerar uma reação filosófica um tanto determinista a
respeito do poder de indução e manipulação das classes populares. O fato é que
esse conceito tem sido constantemente utilizado como receita teórica para análise
de conjunturas e realidades diferentes das que o geraram. Sem descartar sua
importância é preciso ressignificá-los a partir das relações e particularidades das
experiências aqui estudadas.
Nesse sentido Muniz Sodré com seus estudos e relações com perspectivas
decoloniais tem nos oferecido amplas reflexões ao passo em que nos chama
atenção para usos e mediações referentes à comunicação e seus mecanismo no
Brasil. Sabemos que o país passou por um processo específico de industrialização,
sendo assim, os meios técnicos de reprodução da arte são adventos popularizados
a partir do início do século XX. Com particularidades de um país colonizado e com
processos de colonialidade que se estendem até os dias atuais, posso afirmar, por
meio dos estudos realizados, que a Indústria Cultural Brasileira passa por relações
de domínio estrangeiro e das elites brasileiras, que delineiam as características
excludentes verificadas no que se refere às produções artísticas, além dos ranços e
materialização das ideias de superioridade das obras de arte dos colonizadores ou
daquelas que se aproximam esteticamente dessas.

74
O conceito de Indústria Cultural criado pelos pensadores Theodor Adorno
(1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), ambos da Escola de Frankfurt, foi
desenvolvido a partir da crítica à cultura de massa e da transformação da arte em
mercadoria. Tenho muitas ressalvas em relação ao que os frankfurtianos dizem a
respeito da “aura” da obra de arte e confesso que em muitos momentos verifico uma
tendência à sacralização e certa elitização ao indicarem a reprodutibilidade técnica
como problema central e sugerirem que o acesso das classes populares às obras de
arte a descaracterizaria.

“(...) paradoxalmente fomos descobrindo tudo que o


pensamento de Frankfurt nos impedia de pensar por nós
próprios, tudo o que de nossa realidade social e cultural não
cabia nem em sua sistematização nem em sua dialética. Daí
que o que segue tenha um inegável sabor de ajuste de contas,
sobretudo com o pensamento de Adorno, que é o que tem tido
entre nós maior penetração e continuidade. O encontro
posterior com Walter Benjamin veio não só a enriquecer o
debate, mas também a ajudar-nos a compreender melhor as
razões de nossa frustração; do interior da Escola, mas em
plena dissidência com não poucos de seus postulados,
Benjamin tinha esboçado algumas chaves para pensar o não
pensado: o popular na cultura não como sua negação, mas
como experiência e produção.” (BARBERO, 2013. P. 72)

Barbero me ajudou a pensar as relações em torno da “nossa realidade social


e cultural”. Nos dá a dimensão de havia dissidências, mesmo no interior da Escola
de Frankurt. Sendo assim, os estudos realizados sobre as trajetórias dos artistas e
suas obras e proximidades ou surgimento a partir das bases populares recebem
maior significado com as leituras realizadas sobre o pensamento de Walter
Benjamin.

“(...) As ênfases no ‘marxismo ociental’ podem muito


bem explicar como o problema da ideologia foi construído,
como o debate foi conduzido e o quanto ele foi abstraído para
os altos domínios da teoria especulativa. Mas creio que
devemos rejeitar qualquer conclusão de que, não fossem as
distorções produzidas pelo ‘marxismo ocidental, a teoria
marxista poderia ter prosseguido confortavelmente em seu
caminho pretederminado, seguindo a agenda estabelecida:
deixando o problema da ideologia em seu lugar subordinado ou
de segunda ordem.” (HALL, 2013)

75
Segundo Hall, o problema da ideologia, foco central de seu debate nesse
texto, é um tema que merece avaliação do que deve ser considerado, ainda que
revisto, e do que deve ser descartado. Formulações, como disse anteriormente, a
partir de uma ótica de uma realidade específica podem suscitar reflexões e
indagações propícias aos estudos aqui realizados, mas supor que dão conta do
debate estabelecido é no mínimo ingênuo.

“Em primeiro lugar, os desenvolvimentos concretos


pelos quais a consciência de massa é moldada e transformada
– o crescimento maciço das ‘indústrias culturais’. Em segundo
lugar, as preocupantes questões do ‘consentimento’ das
massas trabalhadoras ao sistema, nas sociedades capitalistas
avançadas da Europa e, portanto, sua estabilização parcial,
contrariando todas as expectativas. O ‘consentimento não é
mantido apenas através de mecanismos ideológicos. Mas
ambos não podem ser separados um do outro. Isso também
reflete certas fragilidades reais das formulações originais do
marxismo sobre a ideologia, o que lança uma luz sobre
algumas das questões mais críticas da estratégia política e das
políticas do movimento socialista nas sociedades capitalistas
avançadas.” (HALL, 2013)

A ideia recorrente de que a “consciência de massa é moldada e transformada”


simplifica os processos mentais e sociais pelos quais a política atravessa o seio das
classes populares, tanto no que diz respeito às pressões e as formas como elas
atingem seus propósitos ou não, quanto pelo que emerge desses meios a revelia
daquilo que fora estabelecido pela própria indústria cultura. O movimento de
assimilação e rejeição também afetam os rumos do que se estabeleceu como
objetivo pela própria indústria cultural.

“O problema da ideologia é fornecer uma interpretação,


dentro de uma teoria materialista, de como as ideias sociais
surgem. Precisamos compreender sua função em uma
formação social particular, para informar a luta pela mudança
na sociedade e abrir caminho para sua transformação
socialista. Por ideologia eu compreendo os referenciais mentais
– linguagens, conceitos, categorias, conjunto de imagens do
pensamento e sistemas de representação – que as diferentes
classes e grupos sociais empregam para dar sentido, definir,
decifrar e tornar inteligível como a sociedade funciona.” (HALL,
2013)

76
Os seres humanos são imprevisíveis e a todo o momento as escolhas feitas
desenham nossas possibilidades, tanto de opressão quanto de emancipação, o fato
é que não há receitas possíveis, mesmo diante daquilo que já foi vivido, o olhar
do(a) historiador sobre o que já foi concretizado deve levar em consideração o seu
lugar social e as perspectivas e categorias de análise que o(a) auxiliam e/ou muitas
vezes o(a) aprisionam.
Neste trabalho abordarei mais especificamente as relações de produção
musical, para tanto é preciso conhecer um pouco mais sobre a trama que envolve a
indústria fonográfica e os demais tentáculos que promovem ou descartam o que aqui
é produzido e veiculado.
De imediato observo uma perspectiva de abandono daquilo que chamamos
de música popular brasileira, diferentemente do movimento inaugurado nos anos
1960 cuja denominação é MPB que ainda que passa, em alguns momentos por
rejeições de expressões específicas, em outros é elevada ao status de uma “cultura
elitizada”. Com isso quero dizer que a música produzida no Brasil foi e tem sido
constantemente cerceada e controlada pelos meios que assumem o poder e o
controle do que deve ser veiculado e do que deve ser descartado. Esse é um foco
primordial dos estudos aqui apresentados, as diferenças entre criação, concepção,
reprodução e formas de recepção. É preciso demarcar que cantores, músicos e
compositores da MPB que assumem a valorização das culturas populares e utilizam
em suas composições e apresentações formas musicais provenientes dessas
culturas também experimentam relações conflituosas com essa indústria cunhada
numa perspectiva de banalização ou desqualificação dessas expressões.
Fruto das marcas profundas de nossa diversidade cultural a música brasileira
é plural e sua riqueza não pode ser avaliada a menos que se proponha um estudo
profundo das múltiplas expressões para além daquilo que recebe foco de luz. As
teias da reprodutibilidade deixam de fora grande parte da produção musical,
relegando ao esquecimento ou circunscrevendo sua área de abrangência. Ou seja,
desconhecemos grande parte do que foi e é produzido no campo musical. Os
estigmas e discriminações em relação ao que vem das culturas populares não nos
permite o contato pleno com a dinamicidade de nossas criações. A forma como a
Indústria Cultural Brasileira opera tem constantemente excluído uma gama imensa
de expressões.

77
Assim como os demais aspectos de desenvolvimento, os níveis de exclusão
de grande parte da população e suas expressões é extremamente violento dentro de
uma sociedade capitalista com as nossas particularidades históricas. A arte tem sido
historicamente utilizada por diferente setores, que na maioria das vezes se sentem
como autoridades em determinar o que é arte e o que não é. Ocorrendo fenômenos
de assimilação, com interesses comerciais, e descarte ou folclorização no que se
refere às produções provenientes das culturas populares.
É importante observarmos que o discurso de “Identidade Nacional” no Brasil é
uma construção histórica ideológica em sua origem, que utilizou a música como
ferramenta de seus propósitos em diferentes momentos. A negação aparente dos
regionalismos e das expressões populares assume um caráter utilitário desses
propósitos, digo “aparente” porque o que fora forjado como nacional tem em suas
bases a busca recorrente da ideia de “povo” para constituição de uma nação, sendo
assim as “massas” brasileiras, ainda que diversa, foi amplamente estudada e a ela
atribuída significados de homogeneidade que não conferem com suas múltiplas
realidades.
Os fatores econômicos e o acesso aos chamados “bens de culturais” têm um
papel importante no que diz respeito às relações comerciais em torno da música,
assim como em outras linguagens artísticas, que passam por processos de
produção e difusão. Segundo a autora Márcia Tosta (2008) houve uma grande
popularização dos “toca discos” e “televisores” a partir do final dos anos 1960 e
1980, o que impacta diretamente as relações da indústria cultural brasileira com o
“mercado consumidor” de arte e, consequentemente com os artistas. Ela aponta que
nos anos 1970 a presença dos televisores chega a um percentual de 24, 1 nos
domicílios e o rádio a 58,9. Nas décadas seguintes esse percentual aumenta
vertiginosamente o que leva os diferentes “grupos empresariais” a se reformularem
em busca de maiores lucratividades.
O mesmo ocorre em relação à venda de “produtos da indústria fonográfica” no
Brasil:
“(...) A indústria não prescindiu da grande fertilidade da
produção musical dos anos 60, sobretudo a da segunda
metade da década, assim como a do início dos anos 70, e
constituiu casts estáveis, com nomes hoje clássicos da MPB,
tais como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal
Costa, Maria Bethania e tantos outros. Outro segmento
altamente lucrativo que se consolida, na época, como grande
78
vendedor de discos, é aquele nascido do movimento da Jovem
Guarda, uma das primeiras manifestações do rock. Renovado
por tal movimento, o mercado de canções românticas fez de
Roberto Carlos, cantor exponencial da Jovem Guarda, um dos
maiores vendedores de discos da indústria brasileira.(...)”.
(TOSTA, 2008)

É interessante observar a emergência de nomes vetados, como o de Chico


Buarque, Caetano e Gil, que chegaram a ser exilados no final dos anos 60, como
“clássicos” e símbolos de grande reprodutibilidade e lucratividade, mesmo dentro de
uma conjuntura bastante repressiva e com censura prévia instaurada (1973). Isso
demonstra a complexidade das relações entre a indústria fonográfica e a política,
assim como a assimilação de discursos dissonantes e significativos da resistência e
os interesses comerciais em torno das obras. A popularidade da Jovem Guarda e a
ascensão de Roberto Carlos como ícone não causa surpresa, assim como a
expansão de outros gêneros considerados como “brega”.
O fato é que a “consolidação do mercado” e o desenvolvimento dos suportes
e técnicas, aliados ao acesso dos “bens culturais” por parte significativa da
população, sobretudo nos anos 1970 e 80 não significaram relações mais
democráticas e a difusão das múltiplas expressões, ao contrário, contribuíram para a
constituição de nichos cada vez mais reducionistas e direcionados para a produção
de “mitos” ou, como salienta a autora de “clássicos” da MPB. Ao mesmo tempo em
que gêneros, considerados menos intelectualizados como o chamado “brega”, são
direcionados aos pobres, ganhando alta difusão nos meios de comunicação como a
televisão, revistas, jornais e o rádio.
Evidenciando que as relações comerciais, assim como o conjunto de
mecanismos constituintes da indústria cultural brasileira não são determinantes,
reafirmo que os processos criativos, bem como os posicionamentos, são afetados
por interesses de lucratividade que, ainda hoje são difíceis de compreender como
são tecidos, mas que são visíveis e significativos.
Esse é um importante elemento para compreendermos os rumos dados aos
artistas que analiso na presente pesquisa. Distantes do que fora chamado de
“música folclórica” e das tendências que assimilavam elementos estrangeiros foram
aos poucos sendo invisibilizados. Alguns, como o caso de Geraldo Vandré, Sidney
Miller e Sérgio Ricardo, ganharam notoriedade em alguns momentos, sobretudo

79
durante os Festivais da década de 1960, mas depois por fatores que analisaremos
ao longo deste trabalho, passaram a ser descartados.
É importante também destacar que no emaranhado de “produtos musicais”
nacionais e estrangeiros que se popularizam via rádio e televisão, há expressões
importantes do ponto de vista identitário, como afirmei anteriormente, que chegam
até as populações periféricas e ganham projeções e ressignificações que “escapam”
do controle vislumbrado pela grande mídia e vão fomentando expressões
independentes, sobretudo, as relacionadas à música negra, o soul e o funk, por
exemplo, dos anos 70 e 80 e mais recentemente o RAP dos anos 90, movimento
transgressor que se constrói a revelia das condições materiais de reprodução e
difusão.
O conjunto de elementos que compõem a Indústria Cultural no Brasil deve ser
analisado minuciosamente, passando pelos adventos tecnológicos e culturais
analiso a partir das experiências abordadas seus impactos na produção e recepção
das obras aqui estudadas, não perdendo de vista o ciclo que os envolve, passando
pelos processos criativos e suas concepções, bem como os veículos propulsores ou
inibidores destas práticas. De início é possível notar que a grande indústria
composta pelo rádio, pela televisão, pelas gravadoras e pela imprensa intervém
diretamente na produção artística, mas que seus rumos são imprevisíveis.
O conceito de arte, assim como todos os demais presentes nesta pesquisa,
está em permanente construção, afinal após os estudos de Raymond Williams e Joel
Rufino, distanciei-me da possibilidade de estabelecer conceitos concluídos e
universais. Tomemos então como ponto de partida a dinâmica e as transformações
acerca do que analisei e aprendi sobre arte nos estudos realizados nesses últimos
anos.
O problema central e propulsor das minhas indagações sempre foram os usos
e anunciações a respeito da arte na sociedade brasileira, inicialmente numa
perspectiva “de baixo”, visto que nasci, cresci, estudei, trabalho e vivo na periferia da
Zona Sul de São Paulo. Num primeiro momento a arte me foi significada como algo
intocável, de exclusividade das elites na sua produção e apreciação. Não por acaso
o contato mais próximo, mais íntimo e mais acessível foi com a música. Nesse ponto
concordo com Mario de Andrade: “A música é a mais popular de todas as artes”. Ela

80
está presente em todas as estruturas, cultuada e também repelida, permeando as
lutas de classe e, sobretudo, as lutas culturais.

(...) Estando muito próxima daquilo que conseguimos


experimentar em matéria de felicidade humana, a música é um
foco de atrativos que se presta a variadas utilizações e
manipulações. Instrumento de trabalho, habitat do homem-
massa, meio metafísico de acesso ao sentido para além do
verbal, recurso de fantasia e compreensão imaginária, meio
ambivalente de dominação e de expressão de resistência, de
compulsão repetitiva e de fluxos rebeldes, utópicos,
revolucionários, “a música é sempre suspeita”, dizia um
personagem de Thomas Mann em Montanha Mágica (...)
(WISNIK, 1987) 13.

Como afirma Wisnik, o contato com a música promove sensações


ambivalentes, gostar ou não gostar de determinados estilos soa muitas vezes como
uma questão de “bom gosto” ou “mau gosto”, impulsiona feições identitárias,
constituí grupos, nichos... A questão é que entre a produção artística e a recepção
por parte do público há todo um mecanismo complexo e mutável, ao qual chamamos
de Indústria Cultural Brasileira. A arte é política em essência, é uma prática social,
comunica, provoca sensações e sentimentos, por ser a música uma forma potente e
de fácil disseminação, essa tem sido constantemente vigiada, cerceada e
intencionalmente direcionada.
Não há determinismos nessas relações, as frestas, as “subversões” e
insubordinações sempre existiram e a indústria cultural apesar de obter êxitos em
quase todas as suas empreitadas é também desafiada a todo momento. Foi por
meio da música que percebi que não seguir as ordens de consumo e recusar a
mercantilização da arte é uma forma de resistência. Essa forma de resistência não é
racionalizada o tempo inteiro e ocorre de formas distintas pelas pessoas e grupos
sociais.
Dirigir em alta velocidade na contramão é obviamente um risco, por isso
passei a observar os(as) que apesar das colisões permaneceram em movimento, um
movimento sem alarde, sem visibilidade, na maioria das vezes sem recursos, mas
sempre caminhante.

13
WISNIK. José Miguel. Algumas questões de música e política no Brasil: In: BOSI. Alfredo (org.)
Cultura Brasileira: Temas e situações. São Paulo: Ática, 1987. p. 115
81
Uma análise mais profunda da “lógica da sociedade autoritária” foi
fundamental para que pudesse compreender as especificidades da Indústria Cultural
Brasileira, sem cair nas armadilhas das receitas teóricas. A racionalidade ocidental
ao se construir proferiu um discurso de desqualificação de todas as demais culturas,
a cientificidade eurocêntrica rejeita a possibilidade de pensamento além de seus
limites geográficos, a isso nomearam: Modernidade. A mesma Modernidade que se
ergueu à custa do colonialismo e da escravização, que patenteou conhecimentos
oriundos do que chamou de Oriente, do continente africano e das Américas.
A tentativa de distanciamento da emoção e de separação entre corpo e mente
podem ser considerados processos danosos ao que chamamos de humanidade.
Dentro desta perspectiva a arte se torna banal, uma vez que o pensar, o fazer e o
saber são fragmentados e fragmentários. As feições utilitárias e descartáveis afetam
profundamente a percepção e a criação dentro das sociedades modernas. A lógica
cartesiana inaugura um mundo onde a beleza desempenha papel secundário ou
simplesmente pragmático.
O problema central dessas relações não são os meios de produção ou o
desenvolvimento tecnológico, mas seus usos a serviço dos interesses capitalistas.
Dessa forma, trago críticas e ressalvas às análises frankfurtianas, visto que a
reprodutibilidade e a difusão da arte não levariam a sua mercantilização e usos
escusos se não estivessem diretamente ligadas a projetos de sociedades
verticalizadas e desiguais, sejam elas capitalistas ou socialistas. Sendo assim,
Adorno e Horkheimer quebram o termômetro sem atingir a origem da febre, em
defesa da “aura” e do valor de culto deixaram de realizar a crítica à propriedade
privada da arte em sua produção e recepção.
Alguns dos aspectos centrais da delimitação da temática deste trabalho foram
as análises, ainda no mestrado, sobre o caráter autoritário da indústria cultural
brasileira em tempos de democracia. As questões apresentadas por Sérgio Ricardo
nos remetem à ideia de que a censura empregada em tempos de ditadura assume
novas roupagens, mas não se extingue com os processos de redemocratização. O
artista que transitou por diferentes linguagens e que na década de 1960, e que tinha
uma significativa projeção, ressalta a impossibilidade de difundir seu trabalho,
inicialmente por causa das proibições características do regime ditatorial, que de fato
o limitou e, assim como tantos outros, silenciou por meio da força, mas evidencia as

82
permanências dessas práticas nos levando às análises mais profundas a respeito do
carácter autoritário da sociedade brasileira.
A esse respeito, Marilena Chauí afirma que nossa sociedade tem profundas
marcas do que chama de “sociedade colonial escravista” ou “cultura senhorial”, onde
as relações de mando obediência são demarcadas pelo poder de quem está no topo
da estrutura hierárquica.

“As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em


desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. (...)
Enfim, quando a desigualdade é muito marcada, a relação
assume a forma nua de opressão física e/ou psíquica. (...)
Porque temos o hábito de supor que o autoritarismo é um
fenômeno político que, periodicamente, afeta o Estado,
tendemos a não perceber que a sociedade brasileira que é
autoritária e que dela provem as diversas manifestações do
autoritarismo político."14

Ao afirmar que a “mídia continua a mesma coisa: macumunada com o


sistema”, Sérgio Ricardo aponta para questões importantes ressaltadas pela autora
sobre as estruturas que participaram ativamente da trama que culminou com o golpe
de 1964 e que construiu discursos de legitimação durante toda a ditadura, mas que
extrapolam a regulamentação do Estado. A televisão e o rádio, assim como a
imprensa de forma geral, possuem um importante papel nas sociedades e podem
atuar de forma a impulsionar processos repressivos ou emancipatórios, no caso
brasileiro constatamos que o que é chamado de “grande mídia” sempre esteve e
ainda está a serviço da dominação social. No que tange à produção artística nos
permite analisar aspectos preponderantes.
A busca do controle das comunicações e das interações com o público e ao
mesmo tempo o papel da arte como prática social relevante e sujeita, portanto, à
dura repressão, mas também e principalmente, como espaço de resistência.
Ainda que a projeção do artista não ocorra em níveis correspondentes à sua
obra e importância, a continuidade das produções, a revelia de todo e qualquer tipo
de falta de investimento ou valorização, demonstra que a arte como forma de
expressão sofre interferências dos sistemas vigentes, mas que esse não as anula
efetivamente:

14
CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo. 2000. P. 87-88.

83
“(…) O sistema coloca na cabeça das pessoas um negócio do
sucesso, o sucesso é uma doença que graças a Deus eu não
fui contaminado por ela, porque é uma doença terrível, o sujeito
fica limitado naquela coisinha… que ele descobriu, que ele
inventou, sei lá o que… e fica nisso a vida inteira entendeu, há
muitos artistas brasileiros que fazem isso, é uma doideira… e
ficam naquela trilha e não querem mudar porque inclusive até
criticam quem muda… Eu fui muito criticado nessa história:
esse cara fica mudando pra cá e pra lá… Não sabe pra onde
ele vai (…) O problema é que eles ficam limitados… isso é
porque a exigência é da mídia… é do sistema, o sistema é que
quer desfrutar daquela descoberta até sugar tudo que pode
sugar daquilo… só deixa os ossos… é uma coisa terrível, eu
nunca entrei nessa, graças a Deus eu fui um rebelde” (Sérgio
Ricardo – Janeiro de 2015)

A rebeldia verificada na trajetória de Sérgio Ricardo e dos demais artistas que


pesquisei tem como essência a liberdade de produção, muitas vezes ameaçada
pelos “engessamentos” e pela “mercantilização”. A ideia de “sucesso” é produzida a
partir da ótica de quem detém os meios de produção e veiculação interagindo com a
recepção de forma autoritária. Essa fórmula nem sempre obtém êxito, visto que não
há determinismo nas relações, mas as experiências nos demonstram um profundo
desnível e sim, afeta de forma drástica a visibilidade do que nos é apresentado
como digno de apreciação. E se é possível verificarmos que existem artistas que se
negam às determinações desse esquema é, também, evidente que muitos sucessos
são fabricados a partir dessa lógica. Temos assistido a movimentos musicais que
surgem como revolucionários e tornam-se hegemônicos, muito disso tem a ver com
o que afirma Sérgio Ricardo.
Ainda assim, ressalto que as relações de poder que envolvem a produção
artística e sua receptividade não ocorrem de forma determinista e muitas vezes o
público e suas aspirações acabam por impulsionar mudanças significativas. Os
pensamentos elitistas, presentes em muitas expressões da nossa intelectualidade,
excluem a noção do povo como sujeito, ignoram as transformações existentes no
interior das classes populares e admitem a cultura popular como autêntica e pura,
condenando-a e restringindo-a ao passado. Neste sentido, é importante refletirmos
sobre os discursos que condicionam o movimento da arte a uma escala evolutiva e
linear, engessando muitas vezes o que pressupõem de liberdade para existir.

84
Os interesses em torno das “necessidades de mercado”, mediados e
anunciados pela Indústria Cultural, são permeados por tensões que envolvem os
“usos sociais da comunicação”:

“(...) nem toda forma de consumo é interiorização dos valores das


outras classes. O consumo pode falar e fala nos setores populares
de suas justas aspirações a uma vida mais digna (...). Daí a grande
necessidade de uma concepção não-reprodutivista nem culturalista
do consumo, capaz de oferecer um marco para a investigação da
comunicação/cultura a partir do popular, isto é, que nos permita uma
compreensão dos diferentes modos de apropriação cultural, dos
diferentes usos sociais da comunicação.15

Barbero atribui aos “setores populares” uma capacidade de autonomia,


contribuindo com importantes reflexões a respeito de como o “popular” age diante do
“hegemônico”. No que diz respeito à música ocorre que os mecanismos de controle
sobre o que é evidenciado acabam por restringir o contato com as obras, ao mesmo
tempo em que motivados por aspirações alguns nichos se formam. Apesar das
limitações impostas a Indústria Cultural Brasileira passa por momentos de
negociações e concessões diante do que chamamos de “grande público”. A rejeição
à homogeneidade das classes populares e suas aspirações no que se refere à
música é tão importante quanto a noção de que os processos de cooptação e
apropriação são, na realidade, muito mais porosos do que grande parte da
intelectualidade profere.
As “exigências da mídia” e a forma como alguns artistas sedem a elas nos
têm mostrado que existe uma linha tênue entre o sucesso e a lama, muitos são os
casos de abandonos posteriores às aclamações, muitas são as expressões sugadas
até a exaustão e em seguida relegadas ao esquecimento ou à banalização. A
consciência desses pormenores não se dá de forma mecânica, pode e na maioria
das vezes ocorre de forma posterior, o fato é que o “sucesso” no meio musical, tal
como o vivenciamos e o percebemos tem muito a ver com a projeção e não apenas
com a concepção e recepção das obras.

15
MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.
Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. P. 290.
85
“Aquela coisa da moda, isso aí nunca me atraiu… Na época, a
gravadora que era um dos tentáculos do sistema na cultura
queria limitar (…) queria colocar naqueles escaninhos… Eu
digo: eu não quero ficar fazendo só aquela bossa nova, eu não
quero ficar fazendo só samba de morro, eu quero fazer samba
do nordeste, quero fazer o negócio do interior (…) Não estou
interessado nesse negócio da fixação em uma determinada
coisa não… e aí foi desinteressante pra eles porque… A não
ser o Aluisio de Oliveira que entendeu o meu processo, o meu
projeto de vida e que encarou em vários discos o meu trabalho.
Mas também fazia uma coisa bem particular, ele era agregado
a uma gravadora, quando aquela gravadora começava a
encher o saco ele partia pra outra...”
(Sérgio Ricardo – Janeiro de 2015)

O condicionamento do artista a um estilo específico é facilmente observado


em nossa sociedade, nas décadas de 1960 a 1990 as gravadoras tinham um papel
significativo nessas relações. Afinal havia um ciclo de produção cujos interesses
estavam diretamente relacionados à lucratividade. No lançamento do fascículo
“Disco de Bolso”, pelo Pasquim em 1972, sendo Sérgio Ricardo, ao lado de Luiz
Carlos Bravo, diretor dessa produção, consta o editorial sob o título “Qual é”:

(...) O Disco de Bolso entra na briga ora: 1. Romper um círculo


vicioso. Do modo que as coisas andam, o autor (novo ou velho)
quer gravar e procura a gravadora. Como ela tem que investir
no disco, faz uma pesquisa de mercado. Aí o lojista diz que não
vai ficar com o disco na prateleira porque não há procura
daquele artista. A procura diz que não procura o artista porque
não sabe nem que ele existe, não ouve nada dele no rádio nem
na televisão. O rádio diz que não toca porque: primeiro tem
pouco tempo de música brasileira no ar; segundo porque o
artista é mascarado e não vem pedir pra tocar; terceiro, que
esse cara não dá ibope e (quarto) não tá na onda jovem,
parará-pororó; quinto, por umas e outras fofocas; sexto, porque
não vou com a cara dele. A televisão diz que (sétimo) é porque
não tem muito programa musical e (oitavo) que não vai ficar na
geladeira por causa daquele problema com a censura. O
círculo se fecha quando a gravadora responde ao artista que
(nove) por hora não tá dando pé. (...)16

É preciso atentar para as características da indústria fonográfica brasileira,


que no decorrer de sua implantação e existência passou por momentos distintos e
com especificidades. Gravar um disco na década de 1970 implicava em uma série
de “garantias”, levando-se em consideração “a mentalidade empresarial” (TOSTA,

16
Disco de Bolso – edição 1: o Tom de Antonio Carlos Jobim e o tal de João Bosco. 1972. RJ – P. 01
86
2008). O próprio lançamento do “Disco de bolso” foi uma tentativa de burlar o
sistema e buscar formas alternativas de veiculação, formas essas que escapassem
do “círculo vicioso” da exclusão, círculo esse que acabava por impor ao artista
caminhos de assimilação, ou seja, de submissão às intervenções em seu fazer
musical e a negociação e compra de espaço na grande mídia (jabá). Aos que
rejeitavam esses caminhos e não eram aclamados pelo grande público só restava
lutar, e lutar contra um gigante inimigo: “(…) O império tá lá impondo pra você uma
fabricação daquele mesmo chocolate (…) E aí é uma coisa terrível, eu quero fazer
chocolate, pé de moleque (risos), doce de leite, o diabo a quatro” (Entrevista com
Sérgio Ricardo, Janeiro de 2015).
A esse respeito há um relato de Hermeto Pascoal, que traz uma experiência
também vivenciada na década de 1970, quando foi chamado pelo produtor da
Odeon para uma proposta de gravação de um disco. Ao chegar se deparou com
uma lista de aproximadamente quinze músicas prontas para que ele gravasse:

“(...) Aí eu deixei ele terminar as quinze, deixei só pra ele ficar


cansado mesmo, quando ele falou nas quinze, eu disse: Pois é
rapaz, mas essas aí nenhuma eu vou gravar porque eu sou um
compositor… “Ah, mas as suas músicas não são conhecidas!”.
Aí eu digo: e essas eram? Não! A minha também não, mas vão
ser conhecidas! Você como produtor, se você trabalhar bem,
todas depois desse disco vão ser conhecidas (…).” (Entrevista
com Hermeto Pascoal – Curitiba, 2015)

Apesar do reconhecimento das potencialidades do artista, visto que foi


chamado à gravadora, havia condicionamentos para a gravação do disco e, esses
condicionamentos estavam relacionados ao “ciclo vicioso” e à ideia de “sucesso”
citados anteriormente. A rejeição de Hermeto a essas imposições inviabilizou a
gravação do disco naquele momento, mas preservou algo fundamental: a dignidade
e a certeza de que era um compositor, sem isso talvez não tivesse produzido a obra
de sua vida.
Em muitos momentos das entrevistas que realizei a dicotomia “dinheiro x
liberdade de produção” apareceu como fator preponderante para os
encaminhamentos e situações desses artistas no momento presente. Não por
acaso, todos os artistas aqui estudados optaram pela liberdade de produção, essa
aspecto é fundamental para compreendermos suas trajetórias e a defesa da tese de

87
que houve um processo de banalização e silenciamento de suas práticas.
Sérgio Ricardo viveu situações semelhantes e chama a isso de “coerência
ideológica”. Chama atenção ainda para as relações com a música depois de
gravada e as tensões empregadas pelo rádio e pela televisão:

“(...) o chamado “jabá” que é uma coisa absurda, quer dizer,


pagar pra ser tocado… Pelo amor de Deus (…) as gravadoras
é que vieram com essa conversa de começar a pagar pros
programadores de rádio pra programar o diabo da música, isso
aí é comércio… eu não tô (…) não só eu como uma porrada de
amigos meus aí, não querem saber dessa história não (...)”
(Sérgio Ricardo – Janeiro de 2015).

A coerência observada em Sérgio Ricardo é a mesma que levou Hermeto


Pascoal a dizer não à Odeon, uma das mais importantes gravadoras. Eles não foram
os únicos, como ressalto o próprio Sérgio e a resistência não era somente às
tentativas de interferência no fazer musical, mas, também no que ficou conhecido
como “jabá”, ato de pagar para ser veiculado. Essa prática atravessa toda a
periodização aqui delimitada e ainda hoje permanece, da mesma forma em que
muitos artistas a rejeitam, outros acabam por assimilá-la.
A iminência de que não ceder aos “apelos” da indústria cultural acarretaria
redução ou perda de ganhos materiais aparece nas entrevistas como algo que não
os condicionou. Vários são os relatos de dificuldades financeiras para tocar os
projetos e até mesmo para sustento próprio e da família, como veremos no capítulo
seguinte, mas outros princípios são ressaltados. Sem essas escolhas suas obras
poderiam tomar outros rumos, não nos cabe analisar quais, porém é marcante a
ideia de que mesmo assumindo possíveis prejuízos a convicção da busca pela
coerência os gratifica.
A invisibilidade da obra os afeta mais do que a ausência de ganhos
financeiros:
“(…) Eu acho e sempre acredito nisso… que tem muitos
artistas dos anos 70 que ganharam na época o título ou a
pecha de malditos, então todo mundo fala… ah, Macalé,
compositor maldito, Jorge Maltner, compositor maldito, Luiz
Melodia… eram os malditos dos anos 70. Depois vieram os
malditos da década seguinte, que aí entraram Itamar
Assunção… Mas, enfim… isso é muito relativo, porque o
verdadeiro maldito é o compositor que fica mais de 30 anos no
ostracismo como o Sidney Miller. Porque esses “malditos”
outros, os ditos malditos, são compositores que todo mundo
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ama, todo mundo adora, todo mundo canta a obra deles, todo
mundo fala neles, fazem documentários sobre eles, eles estão
sempre sendo mencionados, estão todos aí atuantes
entendeu… O Sidney não, o Sidney caiu em 30 anos de
ostracismo… Isso é um negócio muito sério, porque é um
negócio que dá uma tristeza… Muitas dessas músicas dele que
foram resgatadas depois da morte dele, que estavam inéditas
que foram gravadas por outros artistas como a Roberta, como
Cazuarina, como Zé Renato, são músicas que ele deixou em
fitas com Augusto Pinheiro, que é um grande amigo dele, então
o Augusto é que foi distribuindo essas músicas, algumas
dessas músicas que foram sendo gravadas depois da morte do
Sidney, porque são músicas ótimas que ficariam totalmente
inéditas pra sempre, caso não tivesse acontecido isso.” (Joyce
Moreno – São Paulo, 2015)

Joyce Moreno, cantora e compositora contemporânea, amiga de Sidney Miller


relatou sua observação a respeito da condição de Sidney Miller no cenário musical
dos anos 1970 e no período posterior a sua morte. O significado de ser um “maldito”
está profundamente relacionado a aceitação no mercado musical e isso tem muito a
ver com questões muito particulares a respeito dos posicionamentos e
características do artista. O “ostracismo” citado se revela como uma condição de
abandono e esquecimento, sem as projeções desencadeadas pelo rádio e pela
televisão a propostas de shows e gravações são escassas. No caso de Sidney Miller
houve o afastamento das atividades musicais, pelo menos em foro público, o mesmo
continuou envolvido com a arte e com a cultura no trabalho desenvolvido na
FUNARTE, mas entristeceu e definhou diante disso.
Essas tensões atingem também quem obteve notoriedade, na entrevista
concedida por Hermeto Pascoal consta um relato sobre Tom Jobim e suas
insatisfações com os rumos de sua carreira. Diz que em 1962, “Garota de Ipanema”
estava no seu auge e que em função de um trabalho que estava realizando com o
Tom Jobim o encontrou em Nova Iorque. Ao subirem de elevador a música começou
a tocar:

“(...) Ele tirou o chapéu da cabeça, passou a mão na cabeça e


disse: Já tô cansado Hermeto, dessa música… puxa, virou
música de elevador (...) Aí ele disse: eu queria fazer um som,
fazer uma coisa assim quiném o Quarteto Novo, igual vocês
fizeram… Ele falando… Eu digo, mas então você mora aqui,
você mora em Nova Iorque, você tem sua casa em Nova
Iorque, você tá longe no Brasil, nesse ponto vai ajudar pra
universalizar a música… Não pra dizer que a música
brasileira… Ele disse: é por isso que eu digo, porque só fazem
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isso, só põem a mesma música… Eu achava que ele ia ficar
contente de ver a música dele tocando no elevador, mas
imagine quando ele falou isso pra mim, o respeito que ele tinha
por mim né… Aí cara, quando ele falou isso eu dei um
conselho pra ele, eu disse: vai de vez em quando no Brasil, vai
lá dá uma volta pelo Brasil inteiro, vê os interiores, não pensa
que é nas capitais… no interior você vai escutar tanta coisa…
Aí daqui a pouco surgiu: É pau, é pedra... (cantando).”
(Hermeto Pascoal, 2015)

O cerco anunciado por Sérgio Ricardo, no que diz respeito ao “sucesso” e às


tendências que acabaram por se tornar hegemônicas é suscitado pela fala de
Hermeto, afinal Tom Jobim se tornou um ícone da Bossa Nova, obteve êxito em sua
carreira e atingiu grande repercussão dentro e fora do Brasil. A insatisfação relatada
nos remete a questões importantes desse trabalho, a vinculação de um artista a um
rótulo, um tipo específico de música gera entraves para os processos criativos, bem
menos do que no âmbito da composição, mas nas condições materiais de produção.
A canção “Águas de março” foi gravada em 1972 no fascículo Disco de Bolso
(Pasquim) e naquele momento possibilitou a gravação de uma canção que não
obteve permeabilidade nas gravadoras hegemônicas. Mesmo sendo a composição
de um artista renomado, suas formas musicais rompiam com o padrão estabelecido,
com a receita furtiva da garantia de venda.
O movimento de rejeição às influências musicais estadunidenses é analisado
por alguns autores como “nacionalismo”, mas pode muito bem ser entendido como
uma crítica e ao mesmo tempo defesa contra aquilo que se configurou como
tendência hegemônica:

“(…) Foi abandonado no Brasil a coisa mais importante que era


a cultura do seu povo, que você tem vários ritmos, o povo mais
rico que existe em ritmos é o nosso. A nossa música mesmo
popular é a mais respeitada no mundo inteiro (…)” (Sérgio
Ricardo – Rio de Janeiro, 2015)

O sentimento de substituição das formas nacionais e enaltecimento das


músicas com tendências “internacionais” é notável em diferentes momentos das
entrevistas. Há momentos em que as programações do rádio e da TV são
majoritariamente compostas por expressões estrangeiras. É interessante observar
que os festivais dos anos 60 e 70 impulsionaram a veiculação da música nacional,
mas ao mesmo tempo é possível notar uma certa evidenciação das canções que
90
assimilaram as influências do Rock e do Soul estadunidenses, sobretudo, a partir de
1973.
O significado da TV e do Rádio para a produção musical é preponderante
quando se trata de veiculação, de possibilidade de divulgação e visibilidade. Estar
fora desse circuito, como ressaltei anteriormente, fazia com que os processos
criativos fossem prejudicados pela anunciada exclusão:

“(…) A arte se divide em três partes, você tem a criação, a


concepção e a divulgação… são os três partos do artista. Eu
fiquei nos dois primeiros partos, o terceiro – divulgação – é o
departamento que está jogado às baratas… Principalmente por
ter sido cerceado, quer dizer na ditadura fui inteiramente
proibido de ser executado no rádio, na televisão, etc., cortaram
meu nome, eliminaram de vez e continua sendo a mesma coisa
até hoje e eu não estou muito preocupado com isso, não tenho
nenhuma mágoa disso, não tenho nada… (SR)

Vários estudos ressaltam o cerceamento da música durante a Ditadura Civil


Militar, conhecemos os mecanismos de censura e de repressão que foram
empregados. Sérgio Ricardo chama atenção para isso, mas também evidencia a
continuidade da exclusão pós ditadura. O “congelamento” provocado pela censura
prejudicou muitas carreiras, mas é interessante observar que esse processo é
bastante seletivo já no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Artistas que
passaram por perseguições semelhantes ganham projeções nos meios de
comunicação, dão continuidade às suas carreiras e outros são simplesmente
engavetados. Diante dos estudos realizados, posso afirmar que isso tem muito mais
a ver com os jogos de manipulação e sedução da Indústria Cultural Brasileira e com
a forma como cada artista vai se posicionando, acomodando ou incomodando do
que com a “qualidade musical”.
Sérgio Ricardo toca em três aspectos fundamentais do fazer artístico: a
criação, a concepção e a divulgação. A princípio “criação” e “concepção” parecem
redundantes, porém, compreendo a ideia de concepção como algo relacionado ao
“parto”, ao colocar para fora aquilo que foi concebido. São nítidas na fala de Sérgio
Ricardo as implicações em torno do que chama de impossibilidade de “divulgação”.
O ciclo vicioso da exclusão não é composto simplesmente pelas gravadoras,
há toda uma rede que constrói coletivamente esse processo, como ressaltei
inicialmente. A imprensa atuou significativamente na exaltação de alguns artistas e
desqualificação de outros. A esse respeito Hermeto Pascoal relata:
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“(…) Agora quando eu morrer vai aparecer tudo isso… Porque
a imprensa em certas coisas ela é sádica… eu me lembro que
uma vez eu falei pra imprensa aqui… quando eu viajava pra
Europa né… Eu tô lá na Europa, tô lá no sucesso, aí eu chego
na França, tô fazendo uma turnê de trinta e tanto shows, aí
quando eu vejo, estava na escala que eu ia tocar em Paris,
afastado de Paris num parque maravilhoso que tem lá…
Hermeto Pascoal e Mílton Nascimento, Milton Nascimento e
grupo e Hermeto Pascoal e grupo (…) saí assim: Milton
Nascimento… bá, bá, show e tudo e quem encerrou o show fui
eu, foi eu com meu grupo… Quer dizer, não é culpa do Milton,
mas você vê como é que pode ter isso… Parece um complô
que não é o artista que faz (...)” (Hermeto Pascoal, 2015)

A falta de visibilidade e o desrespeito por parte uma parte da imprensa soa


para Hermeto Pascoal como um “complô” que insiste em ignorá-lo juntamente com
seu grupo. A projeção de determinados cantores, compositores e intérpretes não
precisa estar condicionada ao silenciamento de outros. O Show realizado em Paris
na década de 70 (verificar data com precisão) foi amplamente noticiado no Brasil,
porém, de acordo com o relato de Hermeto, nada foi dito a seu respeito, mesmo
tendo ele encerrado o show juntamente com seu grupo.
A crítica que o músico faz à imprensa, destacando que não há generalização,
nos dá elementos para analisarmos que as tensões são geradas não apenas por
matérias que desqualifiquem os artistas, mas também e, sobretudo, pelas
ausências, pelas lacunas e pela falta de compromisso com a verdade. As relações
que levam a tal situação podem ser verificadas em outras experiências e acabam
por compor aquilo que Sérgio Ricardo chama de “ciclo vicioso”, onde artistas são
jogados de um lado para outro com justificativas que não levam em consideração a
obra e sim a popularidade que essa obra atingiu. Ou seja, a rentabilidade do negócio
precisa ser garantida antes mesmo da veiculação. Sendo assim, a mercantilização
da música é tão complexa que não pode ser analisada apenas por um mecanismo
de produção, há obstáculos predefinidos antes da gravação de um disco.
O “sucesso” reaparece como algo fabricado artificialmente por todos os
“tentáculos” da Indústria Cultural Brasileira. Quando Hermeto afirma que a imprensa
parece ser “sádica”, visto que espera que o artista morra para que sua obra seja
divulgada, não se trata de exagero, sabemos historicamente de vários artistas que
passaram por grandes dificuldades em vida e que somente após a morte ganharam

92
notoriedade.
O caso de Sidney Miller chama atenção especialmente pelo fato de que nem
mesmo após a morte houve valorização ou veiculação do seu trabalho por parte da
mídia ou das gravadoras. O total “ostracismo” nos últimos anos de sua vida e
posteriormente a sua morte já foi destacado anteriormente por Joyce Moreno.
Há outro episódio ocorrido com Hermeto Pascoal e Grupo no Festival de Jazz
de Montreux em 1979, quando foram ovacionados, aplaudidos de pé durante quinze
minutos após a realização da abertura do show daquela noite. O espetáculo
impressionou a plateia e os organizadores do evento, sobretudo o diretor do festival,
Claude Nobs. O encerramento do show caberia à Elis Regina e seus músicos, sendo
que já haviam feito outras apresentações no mesmo local com casa lotada.
Ocorre que no final da última apresentação de Elis, o diretor Claude, sem
antes combinar com os artistas, convidou Hermeto Pascoal, que assistia na coxia,
para finalizar o espetáculo junto com Elis Regina. Surpresa para ambos, mas o
desafio foi aceito, a relação entre Elis e Hermeto era de reconhecimento e
admiração.

“(...) Aí foi que entrou a onda, a onda de eu voltar, deixar o


instrumento pra lá pra fazer a despedida, nos dando a mão
assim, mas a onda já estava armada, o Fantástico já estava na
hora do Fantástico, já estava tudo bolado já, sem me dizer
nada, aí eu entrei já, porque porra eu não quero saber de
ninguém, eu quero saber do público, ali eu ia de qualquer jeito
por causa do público né… Vamos lá, aí Elis disse: Bicho, o que
é que vamos tocar? Aí eu digo: O que? Tava tudo desligado os
instrumentos, se tiver na gravação certa vocês vão ver que
tiveram que ir ligando (…) Bom, aí quando eu entrei, nós
entramos, eu e a Elis bolamos a música, tocamos, fizemos o
som juntos né (…) Daí quando nós fomos saindo ela chegou
pro César, eles eram maridos, estavam vivendo juntos na
época, ela chegou pro César Camargo e disse: Tá vendo
bicho? É assim que eu gosto de tocar. A gente arrasou né,
explodiu, foi um sucesso…” (Entrevista com Hermeto)

Elis já bastante cansada devido a suas apresentações anteriores se


aproximou de Hermeto ao piano, se entreolharam, conversaram algo rapidamente e
começaram umas das mais belas apresentações vistas no festival. Como de
costume Hermeto vibra ao piano e começa a tocar uma sequência de canções que
termina com “Asa Branca”, Elis mesmo cansada surpreendeu ao público e ao
músico ao acompanhar cada nota com precisão e a responder às dissonâncias e
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improvisos característicos de Hermeto, ambos estavam em êxtase e levaram o
público à loucura.
A repercussão desse Show no Brasil, não correspondeu, segundo Hermeto,
ao que de fato ocorreu naquele momento. Houve uma distorção das informações e
além do silenciamento da imprensa a respeito das apresentações de Hermeto e
Grupo, ignorando totalmente a repercussão e a apreciação do público, passou a
circular informações de que Hermeto expôs Elis Regina a uma situação vexatória, a
desafiando com seus improvisos e dissonâncias:

“(...) Daí que se criou uma coisa que eu quis derrubar Elis
Regina, porque eu acompanhei assim improviso né… e muitas
músicas eu mudei o acorde do original, que eu nunca faço
igual, nem as minhas músicas, quanto mais a dos outros e a
Elis Regina parava pra me escutar, pra curtir aquilo que eu
estava fazendo e os menos favorecidos de sensibilidades e de
percepção acharam que ela estava lá… a bichinha morrendo
de rir (…) isso tudo depois foi bem claro… Aí você nunca ouviu
falar que Hermeto Pascoal e Grupo em Montreoux, você nunca
ouviu falar. Tiraram isso tudo… Então agora como é que faz?
Como é que eu posso falar? O que é que eu posso dizer do
povo, desse pessoal que fez isso aí? Foram injustos, não?”
(Hermeto Pascoal, 2015)

Hermeto Pascoal e seu grupo não foram contratados ou financiados por


nenhuma emissora, relata que seu produtor André Midarlin da Warner, falou com
todas as emissoras do Brasil, mas que nenhuma demonstrou interesse. Dessa
forma, a gravação da rede Globo para o Fantástico foi totalmente sem sua
autorização. Conta que o que foi veiculado e divulgado aqui se limita estritamente à
sua apresentação com Elis Regina, como se não tivesse ocorrido nada antes,
nenhuma das suas apresentações foi citada. Além disso os rumores de que ele
propositalmente modificou a estrutura das músicas para se sobressair à Elis, são
coisas que o deixam ainda hoje irritado e ao mesmo tempo com o sentimento de que
fora injustiçado.
Quem conhece a obra de Hermeto Pascoal ou já o viu se apresentar sabe
que uma de suas características é justamente a forma como improvisa e exprime
sons tão potentes que chegam a chama-lo de bruxo. A forma como a imprensa age é
ao mesmo tempo sádica, como o próprio músico definiu, e também deturpadora. As

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informações são veiculadas de acordo com os interesses comerciais desses
veículos, o jogo de interesses e o tipo de repercussão que anseiam nada tem a ver
com o compromisso com a arte.
Os mecanismos de exclusão são evidentemente diferentes nas conjunturas
de ditadura e de “democracia”, porém, os projetos de sociedade que vivenciamos
não se contrapõem. Dessa forma, a Indústria Cultural Brasileira sempre se manteve
atrelada aos poderes hegemônicos e a relação dos meios de comunicação e difusão
da arte coadunam com os interesses econômicos e políticos. Conversei com Theo
de Barros a esse respeito, indagando as diferenças de tratamento de sua obra após
o processo de “redemocratização”:

“(...) é uma ditadura sem dúvida nenhuma, uma imposição ai,


nós somos vitimas, somos escravos, o povo todo né, isso é
vindo de fora, isso é premeditado, isso é orquestrado, já tem
provas disso, tem que haver essa dominação (...) não é culpa
do público, o público não tem acesso (...) nós não temos uma
política pública de defesa da música né, nunca tivemos né, a
própria Bossa Nova ela espantou o mundo inteiro e nunca teve
apoio de nada, então isso daí faz falta, faz falta uma... sei lá...
uma obrigatoriedade dentro da programação das rádios, da
televisão, um motivo de lei (...) a arte em geral, não tem uma
política pública, só a respeito disso, tem pequenos nichos
assim, mas também nesses nichos não acontecem muita coisa,
muita coisa fica restrita ali num pequeno público, não chega no
grande público e eu sinto que o, principalmente o jovem é
interessado, que ele podia prestigiar se desse oportunidade pra
isso, mostrasse, expusesse, mas não tem um show room
(risos) que mostra essa, democraticamente todos os setores da
música, todos os tipos de musicas né.” (Theo de Barros, 2015)

As pessoas que defendem a “dominação” podem (e o fizeram) muitas vezes


se impor pela força bruta, mas podem também exercer a sedução que busca
direcionar pra onde querem, usando até mesmo o rótulo de “liberdade”. Theo de
Barros classifica os anos posteriores à abertura como “ditadura”, e ressalta que
continuam havendo imposições com interesses que são premeditados e com
influências externas. Não é difícil compreender o que ele diz, sobretudo para nós
que vivemos nesse exato momento uma perpetuação de golpe sob o signo de luta
contra a corrupção. O fato é que a arte nunca está dissociada das realidades
materiais vivenciadas nas sociedades e existem portanto àquelas que recebem total
apoio para sua popularização e àquelas que devem ficar debaixo do tapete para que
não arranhem os projetos dominadores.
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Esse é um aspecto muito caro para a presente pesquisa e fruto de reflexões
de longa data. Mesmo que não seja conveniente do ponto de vista do rigor
acadêmico arrisco a dizer que isso me toca pessoalmente. O discurso de que a
população pobre tem mau gosto, não sabe apreciar a arte e muito menos produzi-la
sempre me incomodou. O percurso investigativo que iniciei ainda na adolescência
tem tudo a ver com o que Theo de Barros expressou. Nós, moradoras e moradores
das periferias somos bombardeados pelas emissoras de rádio e televisão com os
“produtos” que julgam nos serem adequados. Passei anos ouvindo e assistindo o
que me ordenavam, a ruptura com isso me trouxe até aqui e alimentou os
questionamentos aos quais ainda busco respostas.
Theo toca num ponto fundamental desse trabalho: a falta de acesso do
grande público à arte produzida no Brasil e com essa restrição a definição do tipo de
arte que devemos “consumir”. Os efeitos dessas práticas são drásticos sob
diferentes aspectos, tanto para os(as) artistas quanto para o público em geral.
Mesmo não sendo determinante e plenamente vencedor esse projeto de sociedade
tem obtido êxitos e se pensarmos na arte como uma prática social, que de fato é,
compreenderemos o real caráter do controle exercido, quer por meio da censura e
repressão, quer por meio da exclusão ou invisibilidade.
Não há uma política séria de fomento à produção artística no Brasil, muito
menos uma legislação que possibilite a difusão de forma democrática. As relações
dos governos com as concessões públicas foram e ainda são permeadas por
interesses e entraves. Pensar então numa política pública que assegure a
veiculação de forma horizontal da arte produzida aqui é um projeto revolucionário.
Outro aspecto importante a ser analisado é a figura do “empresário”, muitas
vezes visto como facilitador das relações comerciais, mas também identificado como
uma das possíveis figuras de opressão e oportunismo. Muitos empresários atuaram
exatamente como atravessadores, em alguns casos, levando artistas até mesmo à
falência. Ou seja, a ausência de um empresário pode levar o artista ao ostracismo
pelas dificuldades de circulação de seu nome e sua obra, mas a presença deste
também pode ser ameaçadora. Theo de Barros evidenciou, ao falar do fim do
Quarteto Novo, algumas tensões relacionadas a isso:

“Foi decepcionante, porque como músico foi a melhor


experiência que eu já tive. Pra mim foi frustrante porque o
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segundo disco do Quarteto ia ser a Missa Brasileira, nós já
tínhamos até uma igreja que o padre se tornou meio simpático
a nossa causa… Nos anos 60, queixada de burro dentro de
uma igreja né, era heresia (…). Nós começamos a compor
essa missa, mas o Quarteto se desfez antes da gente fazer o
segundo disco, isso foi pra mim a grande frustração. O Airto
namorava com a Flora Purin, que é uma cantora né, ela se
mudou para os Estados Unidos e ela foi pros Estados Unidos e
o Airto precisou ir né, junto com ela. (...) Nós recebemos, por
exemplo, nós fomos pra Paris com o Edu Lobo e a Gracinha
Leporace né... Em Paris o Quarteto agradou tanto que até o
dono da boate (…) que era o Guido Castejan (…) mas não
soubemos tirar partido disso ai e outro convite importante que
nós recebemos foi do Sergio Mendes para ficar cinco anos lá
nos Estados Unidos, e o primeiro espetáculo ia ser na Casa
Branca, nós iriamos abrir o show do Sergio Mendes, mas ai
negócio de família o Hermeto tinha muitos filhos o Heraldo
também ai não deu muito certo, mas o Quarteto, sei lá se
tivesse um bom empresário acho que taria no momento até
hoje. (…) Havia dificuldades, porque o único empresário que
tinha na época era o Marcos Lázaro e a gente não se dava
muito bem, com o método dele de empresariar.” (Theo de
Barros, 2015)

Theo de Barros fala do término dessa experiência com bastante penar, isso
ocorre com todos os demais integrantes, e há evidências de que a ida de Vandré
para o exílio e consequente falta de financiamento, acabou por minar as
possibilidades de continuidade. A figura do empresário, tema em questão, é bastante
complexa. Evidentemente não pode haver generalizações, mas nesse caso
podemos compreender a insegurança gerada pela ausência do empresário, como
um importante articulador. Os aspectos administrativos são muitas vezes
enfadonhos para quem se dedica à arte e ao mesmo tempo as questões materiais
batem à porta, é preciso gerar recursos para continuidade do grupo, os músicos têm
suas vidas, suas famílias. Cabe ao empresário, dessa forma, fazer o grupo “decolar”,
arrumar trabalhos, mantê-lo no chamado “mercado musical”, visualizar as
oportunidades e, também, viabilizar as aparições.
O disco lançado pelo Quarteto Novo em 1967 se configura como uma das
mais importantes experiências da música instrumental brasileira. Projeto iniciado a
partir da busca de Geraldo Vandré de compor um grupo musical com o que chamou
de melhores músicos do momento. O grande desafio foi criar músicas com
elementos totalmente nacionais, sem intervenções do jazz, por exemplo. Os
improvisos, os arranjos, as composições fizeram parte de um projeto no qual todos

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se embrenharam e permaneceram praticamente isolados. Essa concepção, bastante
audaciosa, necessitou de recursos, possibilitados por Vandré, e uma dedicação
quase que exclusiva por parte dos músicos. O resultado pode ser constatado no
único Lp lançado pelo grupo.
De fato, o fim do Quarteto Novo e a impossibilidade da gravação do segundo
disco são marcadas por dificuldades financeiras. A mercantilização da arte é muito
mais violenta do que podemos supor e encontrar um bom empresário parece ser
algo raro. Marcos Lázaro empresariou artistas renomados como Roberto Carlos,
Erasmo e Elis Regina e mesmo assim não se alinhava aos propósitos do Quarteto
Novo, segundo a fala de Theo de Barros.

“O Quarteto Novo ficou como uma coisa ontológica… Claro que


se o Quarteto Novo tivesse tido apoio no começo né… Tivesse
tido aquele apoio de logo no começo… de ter trabalho, pra ter
segurado mais o Quarteto Novo… de repente a gente poderia
até ter demorado mais… Mas, ter continuado eu achava que ia
ser difícil pra todo mundo… E eu acho que a minha… eu me
descobri como compositor, bem na prática assim legal foi a
partir desses grupos e um deles… o mais forte foi justamente...
não o melhor, mas eu digo que me deu mais tempo de me
descobrir como compositor pra valer, foi justamente o Quarteto
Novo.” (Hermeto Pascoal, 2015)

O apoio inicial, do qual fala Hermeto, foi justamente o momento em que


Geraldo Vandré possibilitou materialmente a constituição do grupo, que diante da
qualidade musical despontou e realizou importantes trabalhos nos festivais nacionais
e também em espetáculos no exterior, como por exemplo, o acompanhamento de
Edu Lobo. As dificuldades atingiram a todos os membros do grupo Airton Moreira foi
para os Estados Unidos, Theo de Barros nos anos 80 enveredou pelo caminho da
publicidade compondo Jingles, Hermeto continuou compondo e tocando com outros
grupos e Heraldo resistiu na caminhada mesmo com sérias dificuldades.
Heraldo do Monte fala sobre os trabalhos que fez e afirma que houve
períodos de grande procura por músicos, sobretudo os que sabiam ler partitura.
Relata que havia muitos guitarristas em São Paulo, mas que poucos “liam música”:

“Tinha muitos guitarristas aqui em São Paulo, mas poucos liam,


na verdade dois (…) o Boneca e o Ponir. (…) Mas, era tanta
gravação, vendia tanto nessa época né… tudo brega sabe (…)
bolerão, samba canção, a gente gravava com, aquele cara que
matou a mulher, como era o nome dele? (…) Lindomar
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Castilho, a gente gravava com ele, antes dele matar e depois
também, a gente ainda gravou… fazer o que né… (risos), com
o Waldico Soriano, tinha caras bons também… Nelson
Gonçalves (…) Era assim, um esquema que você recebia o
telefonema (…) era tanta gravação simultânea que era fogo pra
só três, tinha dois agora três comigo né… pra dar cabo…
quando a gente não podia, os caras ameaçavam: ó, te boto no
gelo eim! (perguntei o que era botar no gelo e ele respondeu:
era passar uns três meses sem ser chamado, colocar na
geladeira… é…). Mas, não podia, porque outro chamava né…
era muita procura (…) Então ficava nesse esquema, durou…
não lembro quantos anos durou isso. Eu sei que tudo termina
né… aí terminou esse ciclo… Aí começaram os conjuntos
gravarem assim, o conjunto tal vai e grava o conjunto todo, a
banda vai… Aí o tal do músico de instrumento ficou sem
trabalho.” (Heraldo do Monte, 2015)

De acordo com a memória de Heraldo a indústria fonográfica teve momentos


de intensas atividades, esta é uma particularidade interessante para
compreendermos algumas especificidades da produção musical no Brasil. Alguns
estilos musicais passam por processos de elevação da popularidade, que envolvem
múltiplos fatores, e consequentemente despertavam o interesse das gravadoras, há
uma espécie de “ciclos”, visto que ao ser mercantilizada, a música passa por
momentos onde o que regula sua produção é a lei da oferta e da procura, mas essa
“procura” também é tensionada pelos meios midiáticos. Pode-se perceber isso ao
analisar a forma como o bolero passa a ser hostilizado no final da década de 1950 e
início de 1960, sendo caracterizado pelos meios de comunicação como algo
antiquado, dessa forma seus autores caem no “desuso” pela Indústria Cultural
Brasileira, sendo apreciada apenas em alguns nichos.
A procura maior se dava por músicos que sabiam ler partitura, uma vez que
sendo assim, poderiam acompanhar facilmente qualquer ritmo ou estilo. O músico
acabava por produzir de acordo com a demanda e não necessariamente suas
composições ou aquilo que ansiava gravar. Mesmo com ressalvas e críticas a esse
tipo de assimilação, Heraldo destaca que nesse período os músicos tinham trabalho,
eram procurados. É curioso observar que a rejeição de determinados trabalhos, seja
por falta de tempo ou qualquer outro motivo era tratada com autoritarismo, o que ele
chama de “colocar na geladeira”, uma espécie de castigo que, de acordo com
Heraldo, não se efetivava pela grande procura que havia. De qualquer forma essas
questões evidenciam a falta de respeito e o descaso com a arte.
Com a prática de gravação acompanhada por conjuntos ou grupos o “músico
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de instrumento” passa a ficar sem trabalho, a menos que participe de alguns desses.
Muitos grupos musicais se constituíram no início dos anos 1960 e passavam a
acompanhar gravações e shows com diferentes interpretes. É curioso observar que
nos anos posteriores esses grupos também foram descartados após a utilização de
recursos digitais e de músicas eletrônicas, fazendo com que o “mercado” para
músicos se tornasse cada vez mais escasso.
Quando perguntei ao Heraldo sobre a situação do músico brasileiro a partir
dos anos 1980 e na atualidade ele respondeu de forma impactante:

“(…) Eu me coloco na seguinte situação, eu e uma porção de


gente… Tem duas palavras: semi ostracismo e ganhos
irrelevantes, pronto… é só isso que eu uso, duas expressões,
pra situação da gente aí… Semi ostracismo porque quem
conhece a gente? Sobe no ônibus e pode ficar tranquilo… Pior
é você ser conhecido e ser duro né, porque os caras… coitado
ó ele, tá andando de ônibus. (risos)… Mas, é semi ostracismo
com ganhos irrelevantes, essa é a situação, as duas palavras
são essas… Mas, tem bolo, bolo de milho… É isso aí, mas não
fica triste não (…).” (Heraldo – vídeo 05)

“Semi ostracismo e ganhos irrelevantes”, expressões que me paralisaram por


alguns instantes. Mas, é isso, Heraldo retoma a conversa explicando que o fato de
não ser conhecido pelo grande público impõe a ele a pouca oferta de trabalhos,
afirma que passou anos sendo pouquíssimo procurado para fazer shows e quando
procurado o cache muitas vezes era irrisório, o que o desanimava. Ouvir essas
palavras de um grande mestre da música instrumental brasileira é estarrecedor, mas
seu amor pela música o fez persistir e continuar compondo mesmo que o destino
das composições fossem suas gavetas. Recentemente sua filha Neide do Monte,
aposentada do serviço público, passou a assessorá-lo, com isso conseguiu alguns
trabalhos, sobretudo, na rede SESC com seu grupo, do qual Luiz do Monte (seu
filho) faz parte. Em 2017 realizou também alguns shows ao lado de seu compadre e
velho parceiro Hermeto Pascoal, a vibração, a empolgação e o talento de ambos são
imensos, ambos com mais de 80 anos preservam a energia e o amor pela música
que os acompanharam a vida inteira.
O pagamento dos direitos autorais é outro assunto bastante polêmico e
devastador para grande parte das pessoas que vivem ou tentam viver da música.

100
“(...) o que acontece é que com o tempo o lado financeiro se for falar
você não recebe nada (…) Eles recebem tudo e não passam nada
praticamente pra pessoa que fez… E não é por causa do dinheiro que
eu reclamo não…. É por causa do público de não ter a chance que
deveria ter de comprar mais barato… é por isso que a gente botou na
internet (…) Esses discos todos gravados, todos tá de graça pra quem
quiser… e olha que as gravadoras ficam danadas comigo, mas eu
inclusive tenho o contrato, de rescisão do contrato que foi feito com
eles todos… Quem quiser assinar assine, quem não quiser que entre
com advogado… Justamente porque os coitados ligam, ligam pra lá
pra gravadora, que querem gravar uma música minha e eles pedem
mil reais… Já pensou, quanto dinheiro eles não ganham?! Entende?
Aí o que é que eu faço? Dei de graça, quem quiser é só pegar na
internet (…) se quiserem pedir pra mim, podem pedir pra mim (…) eu
assino, já assinei um monte, porque senão o coitado vai pagar mil
pra… e eu não recebo, eu não recebo mil real por mês, mil reais…
Que isso?! Por mês… seria dinheiro demais… Eles não pagam…
Então parei de brigar com eles… Vou fazer as coisas e cuidar das
minhas coisas… (Hermeto – Mov 8)

Hermeto Pascoal tem uma produção imensa, em 1965 teve a gravação do


disco Sambrasa Trio, juntamente com Airto Moreira e Clayber de Souza, até 2017
participou da gravação de vinte e quatro discos. O que ele diz a respeito do “lado
financeiro” se refere ao pagamento dos direitos autorais por parte das gravadoras e
dos produtores, ainda ressalta que o maior prejuízo é a falta de acesso do público
devido aos preços elevados. Sua fala evidencia aspectos relevantes sobre as
relações financeiras em torno das produções musicais, é sabido que os
compositores passam por grandes dificuldades para acompanhar e receber seus
direitos autorais e que o percentual é bastante irrisório em relação ao que as
gravadoras lucram. O artista perde o poder sobre sua obra e a maioria sobrevive de
shows, mas há ainda a dificuldade de projeção e visibilidade pelo abandono e
descaso da grande mídia, ou seja, se não há publicidade a limitação do público
também dificulta a produção de shows. Com o surgimento da internet muitos(as)
artistas têm disponibilizado suas obras para download, como é o caso de Hermeto.
O que Hermeto diz a respeito do pagamento de mil reais para que outra
pessoa possa gravar ou executar suas músicas está relacionado à regulamentação
dos direitos autorais.

“No Brasil, a história dos direitos autorais começa com a Lei de 11 de


agosto de 1827, que estabeleceu os cursos jurídicos de São Paulo e
Olinda. Determinou a lei um privilégio exclusivo de dez anos sobre os
compêndios preparados por professores, obedecidas algumas
condições. A regulação dos direitos autorais penetra efetivamente o
101
ordenamento jurídico brasileiro, entretanto, a partir da legislação penal
e não civil. Se a imposição de normas de direitos penal relativas a
direitos autorais é um evento mais recente em outros países, no Brasil
sempre se enfatizou proteção por via do direito penal (cuja efetividade,
em relação à matéria, é cada vez mais discutível).17

A trajetória jurídica das leis relacionadas aos direitos autorais é bastante


controversa e passa por diferentes momentos ao logo do tempo. Em 1973, durante o
governo de Médici foi criada a Lei 5.988/73, que segundo Mizukami e os autores que
estuda, adota um “espírito nitidamente empresarial”, garantindo o direito de registro
da obra e estendendo:

“O prazo de proteção para direitos patrimoniais foi modificado para a


vida do autor, acrescido da vida dos sucessores, se filhos, pais ou
cônjuge, ou 60 anos no caso dos outros sucessores (art. 42, §§ 1º e
2º). Foi fixado um prazo de sessenta anos de duração para os direitos
patrimoniais sobre obras cinematográficas, fonográficas, fotográficas e
de arte aplicada, contados do dia 1º de janeiro do ano subseqüente de
sua conclusão (art. 45).18

O fato é que na prática, todas as pessoas entrevistadas por mim relataram a


dificuldade de lidar com o controle dos direitos autorais sobre suas obras e ao
mesmo tempo destacaram o arrecadamento irrisório que lhes é repassado. Hermeto
Pascoal chega a rir quando diz que se recebesse mil reais por mês seria muito.
O caso de Geraldo Vandré é ainda mais complexo, visto que quando retornou
ao Brasil em 1973 passou por um processo de exílio dentro do próprio país. Na
entrevista concedida ao Geneton em 2010 ele ressalta que essa é uma questão
muito confusa no Brasil, que “eles” pagam quanto querem e quando pagam. Diz
ainda que se fosse depender dos rendimentos relacionados à sua obra teria
passado por privações.
Ainda em 1973 foi criado o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição,
fundamentado pela Lei 5.988/73 e mantido pelas leis federais 9.610/98 e 12.853/13:

“Seu principal objetivo é centralizar a arrecadação e


distribuição dos direitos autorais de execução pública musical.
Com gestão profissionalizada e premiada, a instituição é
considerada referência na área em que atua e dispõe de um
dos mais avançados modelos de arrecadação e distribuição de

17
MIZUKAMI, Pedro Nicoletti. Função Social da Propriedade Intelectual: compartilhamento de arquivos e
direitos autorais na CF/88. Dissertação de Mestrado PUC/SP – 2007.
18
Idem
102
direitos autorais de execução pública musical do mundo.”19

As avaliações sobre o ECAD, por parte dos artistas entrevistados, são


bastante controversas, há quem diga que significou um avanço em relação ao que
existia antes e há também quem afirme que as expropriações continuam ocorrendo,
agora de forma regulamentada.

“Olha, os direitos do meu... quando eu comecei foi final dos


anos 50, inicio dos 60 pra cá melhoraram muito, a coisa
melhorou muito, agora tem, não é o ideal tá muito longe de ser
o ideal ainda, mas melhorou muito, é que infelizmente eu acho
que o ECAD tem uma grande qualidade e um grande defeito,
acho que a grande qualidade do ECAD é de pertencer ao
governo e o maior defeito do ECAD é pertencer ao governo
(risos) porque ele não pode, porque é o governo que dá as
concessões né (...) mas mesmo assim a batalha do ECAD é
louvável, tem que ser reconhecida e melhorou muito, melhorou
muito, o direito de execução no Brasil melhorou muito, é um
direito que não é todo país que respeita, são alguns países que
respeitam, o Brasil ainda defende esse direito de execução que
tudo bem, agora o direito fonomecânico, continua o mesmo,
quer dizer é o que a gente chama de merreca né e o direito
editorial, hoje praticamente não existe porque, hoje você tem
internet, então você não tem mais o direito de papel que
antigamente tinha, era o direito das partituras vendidas, hoje
não tem mais isso, a internet acabou com isso ai, as editoras
tão vivendo porque elas estão participando do disco e acharam
um jeito de participar da internet também, elas que estão
ganhando dinheiro não o músico.” (Theo de Barros, 2015)

Apesar de destacar a melhora em relação aos anos 50 e 60, Theo afirma que
está muito longe de ser o ideal. A ação do ECAD é ao mesmo tempo positiva, na sua
opinião, por regulamentar e centralizar as arrecadações que antes eram feitas por
diferentes agências, mas também é negativa por se filiar ao governo que é quem
autoriza as concessões. No final das contas o compositor e o músico são as
pessoas que menos ganham com a execução da obra, o direito de execução é um
percentual pago toda vez que a música for executada em quaisquer meio ou
instituição, esse percentual é geralmente administrado por uma editora contratada
pelo autor e a mesma é responsável pelo acompanhamento dos valores retidos pelo
ECAD.

“(...) cada faixa do disco tem uma espécie de DNA que


19
http://www.ecad.org.br/pt/o-ecad/quem-somos/Paginas/default.aspx
103
chamaria CRC, nesse CRC tá o produtor do disco, os
compositores, o maestro e todos os músicos que participaram
naquela faixa, em termos do direito de execução eles recebem
isso ai, que também é uma coisa que não existia no nosso
tempo, se você pega um play antigo não tem nem o nome dos
músicos, nome de ninguém, isso já é um progresso, já foi um
progresso, mas ainda falta muita coisa, chama-se direito
conexo isso ai, mas ainda falta muita coisa, não é como a
Alemanha, como nos Estados Unidos, eu tenho um conhecido
meu que foi para Alemanha músico que fazia jingles, ele disse
que só com o direito que ele recebeu dos jingles que ele
participava como contrabaixista, ele trocava de carro todo ano
e era carro alemão (risos) então, quer dizer, não tem uma coisa
mais justa.” (Theo de Barros)

O direito fonomecânico se refere aos direitos de arrecadação toda vez que a


obra for reproduzida mecanicamente, ou seja, em LP’s, CD’s, DVD,s ou mesmo na
internet. O percentual, além de ser baixo, é atravessado pela dificuldade de controle
por parte das editoras e dos próprios compositores e músicos. Esse é um assunto
bastante complexo para quem não vivencia o mundo da indústria fonográfica, mas é
um tema importante a ser abordado aqui.
Como podemos observar, os entraves para a produção musical no Brasil são
imensos, mas ao contrário da perspectiva de Adorno e Horkheimer não são
deterministas. Há uma forte tendência à transformação da arte em mero produto,
todos os trâmites interferem diretamente no que é produzido. É inegável o papel que
as culturas hegemônicas têm sobre o que é veiculado, porém tanto a recepção
quanto a produção passam por processos complexos de conformismo e resistência.

“E então o verdadeiro problema que uma psicologia das massas deve


enfrentar é “o problema da submissão do homem à autoridade”, de
sua degradação, já que “onde quer que grupos humanos e frações das
classes oprimidas lutem ‘pelo pão e pela liberdade’, o grupo das
massas se mantém à margem e reza, ou simplesmente luta pela
liberdade no bando de seus opressores” (BARBERO, 1997, p.50).

Como salienta Barbero, ainda que os entraves sejam grandes e o controle


sobre o que é evidenciado seja intencional e parte do projeto de sociedade que tem
sido constantemente vencedor, a massificação não ocorre de forma determinista e a
arte continua sendo um campo de múltiplas possibilidades.
Todos os artistas estudados, exceto Sidnei Miller que já é falecido,
permanecem ativos em suas criações. A revelia dos tratamentos e direcionamentos
continuam compondo e se auto afirmando em suas essências. O lugar que a arte
104
ocupa em suas vidas e a relevância que têm, mesmo que para um público restrito,
são combustíveis para que não desistam.

105
2.2 Construção das imagens e silenciamento

Braço importante da Indústria Cultural Brasileira, a imprensa acaba por se


constituir como um veículo de produção e circulação de informações. Esse veículo
opera de acordo com seus interesses, posicionamentos e vinculação com os
projetos vigentes. No que se refere À música há uma forte tendência em expressar
opiniões e avaliações que acabam por constituir, muitas vezes, ideias que semeadas
entre o público agregam ou diminuem o valor das obras.
Parto da noção de que a imprensa não é um mero veículo de discurso
ideológico, mas que se relaciona e/ou posiciona com a construção de um projeto de
país e com setores hegemônicos. Esse “posicionamento” requer uma análise
profunda das produções, bem como de seus vínculos discursivos. De um ponto de
vista teórico-metodológico: “(...) é também monumento, remetendo ao campo de
subjetividade e da intencionalidade com o qual devemos lidar.” (CRUZ e PEIXOTO,
2007). Esse cuidado e refinamento ao lidar com as fontes da imprensa, são tão
necessários quanto às análises realizadas com as demais fontes.
É interessante observar, nas fontes que utilizei, sobretudo da Veja, um
oscilação de opiniões de acordo com tendências do momento. Não existe de fato
uma busca de coerência do discurso e sim uma necessidade de adentrar às
questões em voga. Daí a ideia de que as relações de domínio e resistência são
complexas e que nem sempre aquilo que se constitui como hegemônico ignora ou
rejeita as pulsações do interior das classes populares, muito pelo contrário, há uma
profunda observação dos movimentos e tendências surgidas nesse âmbito, com
interesses comerciais e também ideológicos, o certo é que não há determinismo
nesses embates. Além disso, quando pensamos a impressa associada aos
interesses mercadológicos de outros tentáculos da Indústria Cultural Brasileira,
precisamos também nos ater ao fato de que a notícia gera impacto sobre o “produto”
que se deseja vender. As tramas de poder em torno dessas relações não podem ser
ignoradas, afinal já sabemos a essa altura que a produção do sucesso feita pelos
mais diferentes meios de comunicação, está diretamente associada ao seu valor
mercantil, mas também aos aspectos culturais do status quo.

106
“Embora se possa datar em torno de três séculos a
voga da notícia moderna (a antiga remonta às Atas Diurnas ou
crônicas do Senado Romano, em 59 a.C.), sua arrancada
mercantil, na segunda metade do século XIX, coincide em
primeiro lugar com a legitimação jurídica e política da esfera
pública, daí as suas possibilidades de tornar-se produto
industrial.” (SODRÉ, 1996, p. 131)

No espaço social as notícias circulam, permeiam e também constituem o fato


em si. Dentro dos estudos aqui realizados percebo que um conjunto de interesses
que se articulam em torno dos fatos noticiados. Há momentos de exaltação e
momentos de construção de imagens extremamente negativas a respeito de alguns
dos artistas analisados, essas notícias/matérias estão associadas à “legitimação
jurídica e política da esfera pública”, mas passam também pelo seu valor comercial,
permanecendo atenta ao que desperta interesse do “povo”.

“Por detrás da imprensa enquanto indústria/comércio, encontra-


se a ideia moderna de espaço nacional, que favorece o
estabelecimento de um certo tipo de continuidade dos
acontecimentos isolados ou singulares, com vistas a reforçar o
sentido de uma comunidade homogênea, mas aberta ao
mesmo tempo à heterogeneidade dos acontecimentos
(mudança e progresso) cotidianos. Na cotidianidade figurada
como progresso permanente de mudanças o povo (a totalidade
nacional) parece fazer uma espécie de ‘História coletiva’.”
(SODRÉ, 1996, p. 132)

A intervenção da “produção de notícias” em consonância com os


acontecimentos cotidianos pode ser facilmente observada nos episódios dos
festivais de música dos anos 1960/70, assim como sua relação com o projeto de
sociedade defendido durante a Ditadura Civil Militar, por mais que pareça
contraditório as notícias eram produzidas de forma a sugerir uma certa
imparcialidade, porém uma leitura atenta pode verificar seus reais interesses e
compromissos.
Temos conhecimento e vivenciamos no presente o posicionamento da revista
Veja, é certo que o editorial passou por diferentes momentos e que em 1968 tinha
Mino Carta a sua frente. Mas, a dedicação de uma página inteira para tratar da
canção de Vandré, no dia 19 de outubro de 1968, nos dá indícios daquilo que
discutimos anteriormente. Os fatos: apresentação de uma canção extremamente
crítica à realidade política vivenciada no país; a explosão do público que frequentava
107
os festivais; o alarme das Forças Armadas; a impossibilidade do júri de classificar a
canção em primeiro lugar. Todos esses fatos eram obviamente um prato cheio para
imprensa do ponto de vista comercial, devido a repercussão que havia provocado.
Por outro lado, a necessidade ou procura de não se posicionar explicitamente.

O espaço é dado à notícia, a


manchete aparentemente evidencia o feito
de Vandré, mas a termina enfatizando que
“o Governo da Guanabara não gosta dessas
flores”. Curiosamente as primeiras linhas da
matéria apresentam a visão desse governo
em relação ao feito:
A declaração do General Luís de
França Oliveira tem evidencia ao ser
colocada em primeiro plano, ou seja, a
notícia apesar de trazer como manchete o
feito de Vandré, enfatiza as reações do
governo e ainda ressalta a proibição da
música. Evidentemente havia interesse em
veicular informações a respeito do ocorrido
no festival, afinal houve uma imensa mobilização e o resultado bastante polêmica
havia exaltado os ânimos da plateia, ou seja, o público ansiava por informações.
A estratégia da revista em tratar do assunto privilegiando as tensões em torna
da apresentação é recorrente e astuta. Catarina Meloni, uma jovem estudante presa

108
pela ditadura, é também citada na matéria sugerindo uma situação, no mínimo,
inquietante, visto que a partir da repercussão no meios militares e diante do cenário
de autoritarismo a ideia de uma possível cilada era de fato iminente. Não trata nesse
momento de questionar a veracidade das informações contidas na matéria, mas de
percebermos que todos os aspectos e apresentação da mesmo nos possibilitam
compreender a forma como a imprensa, no caso a Revista Veja, reconstruía as
informações evidenciando o que lhe interessava.
Ainda na mesma edição há outra matéria sobre o III Festival Internacional da
Canção em que a chamada enfatiza o tom de “protestos”:

As imagens escolhidas, de imediato, nos transportam a cenas de agitação e


tensões. A caracterização do festival como “Um festival de protestos” dentro da
conjuntura do final do ano de 1968 já se configura como algo extremamente
tendencioso. É importante lembrar que grande parte das informações coletadas pelo
SNI – Serviço Nacional de Informações, com vistas a investigar e reprimir pessoas
109
durante a ditadura era constituída por matérias de jornais e revistas. Sendo assim
não há como acreditar na imparcialidade da imprensa, muito menos da Veja. Vale
lembrar que Caetano Veloso fora preso no final do mesmo ano ao lado de Gilberto
Gil, logo após o AI-5 e que na mesma data os soldados foram até o apartamento de
Geraldo Vandré, afirmando veementemente que o mataria se o encontra-se...
Felizmente não o localizaram naquele momento.
Num outro aspecto havia interferência da imprensa ao destacar algumas
canções em detrimento de outras, fruto também da crítica musical e da esfera criada
pelos festivais. Era comum e me parece que ainda é, uma espécie de
ranqueamento, fato que aquecia a competição, sobretudo entre os “torcedores” que
compunham o público dos festivais, mas que atingia a sociedade direcionando,
muitas vezes, a atenção para uma ou outra canção. Esse aspecto, também, se
relaciona diretamente à venda dos discos e à evidencia em outros meios de
comunicação:

110
A tabela apresentada no dia 25 de setembro de 1968, na Revista Veja, é no
mínimo curiosa, ao tratar de forma classificatória os resultados dos últimos festivais.
Pode-se observar nos itens “público e crítica” uma apresentação que sugere a
interpretação do “valor” que cada canção tem, interessante ressaltar que o item
“público” recebe o símbolo de cifrão, relacionando diretamente ao que podemos
chamar de “sucesso de vendas”.
A imprensa desempenhou um papel significativo para projeção de alguns
artistas, essa relação é bastante limiar, pois quando “necessário” atuou também na

111
desconstrução das imagens ou simplesmente silenciou a respeito de algumas
expressões, o que também traz implicações.
No dia 09 de outubro de 1968,
em meio à notícias sobre os discos
resultantes do III Festival
Internacional da Canção, um informe
sobre os mais vendidos. Nesse
momento vemos a canção de
Roberto Carlos em primeiro lugar de
vendas, tanto no Rio de Janeiro,
quanto em São Paulo. Paulo Sérgio
também se configura como um dos
mais vendidos ao lado de Antônio
Marcos, dos Incríveis e The Fevers.
Temos aí a ascensão do Iê iê iê, mesmo não tendo destaques no que foi
apresentado como produtos dos festivais, a Jovem Guarda desponta em vendas,
segundo a revista.
Fato bastante cômodo diante das tensões vivenciadas no III Festival
Internacional da Canção e dos rumos que o país tomava nas vésperas da
promulgação do AI-5. Nesse momento a censura prévia não havia sido instaurada,
mas as ações de repressão e cerceamento sim, o compacto de Vandré com “Pra
não dizer que não falei de flores” já estava sendo apreendido nas lojas e
veementemente proibido. A esse respeito nada foi comentado nessa sessão da
revista.
Daí a ideia de que o silenciamento em relação à determinadas expressões,
também se configura como questão importante a se refletir. O movimento que a
imprensa adota diante das informações é bastante peculiar e aquilo que era
divulgado coadunava com o posicionamento e os interesses do momento.

“A natureza mercantil da notícia não a define como pura


mercadoria ou como resultado da manipulação voluntarista dos
profissionais. Na realidade, ela resulta de um conjunto de
regras de produção, um código que, embora criado e
modificado por jornalistas, é capaz de submeter por imperativo
técnico os criadores. O código é fundamental para que o
produto-notícia seja globalmente legitimado como forma de

112
conhecimento do tempo presente, do cotidiano.” (SODRÉ,
1996, p. 136)

Como destaca Muniz Sodré, as notícias são de interesse do público e


obviamente têm fundamentos na realidade. As tramas são bastante complexas, visto
que ao mesmo tempo em que noticiam o ranking dos discos mais vendidos, também
tratam dos discos dos festivais. A atenção do leitor é bastante subjetiva e
imprevisível, mas a organização das informações da página privilegiam os
resultados da tabela, ou seja, o destaque e dado à tabela dos discos mais vendidos
em detrimento das demais
informações.
O que constroem a
respeito dos discos resultantes
dos festivais é de suma
importância, mas noticiado de
forma breve e com letras
pequenas. O que devem
configurar em primeiro plano
recebe um tratamento gráfico,
com espaços estratégicos e
diagramação favorável para a
busca do olhar dos leitores, até
mesmo a escolha da letra e de
seu tamanho desempenho
formas de recepções diferentes.
Nem todo fato ocorrido é
noticiado, nem haveria espeço
suficiente para isso. Logo, a forma como os fatos são selecionados e colocados em
evidência passa pelo “conjunto de regras” a que se refere Muniz Sodré, sendo esse
produto das relações da imprensa com a política e com as culturas que lhe são
apropriadas.
Muito pouco se noticiou a respeito dos músicos do Quarteto Novo e também
sobre Sidney Miller, isso não tem relação direta com a evidência que tiveram nos
festivais e na produção de espetáculos. Suas práticas não se popularizaram por

113
diferentes fatores, passando pelo descaso em relação aos artistas responsáveis pela
execução das músicas e pelo abandono que os compositores têm em nossa
sociedade. De forma conjunta a imprensa representa, também, o direcionamento do
olhar para determinadas expressões que numa via de mão dupla chama atenção do
público e da imprensa que verifica os níveis dessa atenção para que assim projete
luz sobre ela.
Uma relação bastante complexa, pois seria um erro afirmar que a imprensa
tem o poder de manipulação sobre o público, da mesma forma que seria dizer que
nada tem a ver com a constituição do que se torna atrativo. A observação da
realidade e o comportamento coletivo acaba por produzir uma noção de
homogeneidade que é devolvida em forma de notícia, exercendo assim uma certa
força que atua encobrindo as diferenças e comportamentos heterogêneos.
Há situações em que o fato noticiado passa por um tratamento que o
transforma em fato aspirado, não pelo público, mas por seus produtores. A
apreensão da realidade e sua devolutiva como informação ou conhecimento sobre
ela, não se dá de forma imparcial, em nenhum veículo ou forma. Sendo assim, a
notícia é também palco de subjetividades constituídas pelas experiências e
interesses.
A forma como as notícias são veiculadas comprometem diretamente a sua
veracidade, porém, como o espaço dado aos sujeitos relacionados é, na maioria das
vezes, limitado as versões que circulam acabam por se constituírem como única
versão dos fatos.
Quando Geraldo Vandré retornou do exílio, por exemplo, muitas foram as
afirmações de que ele não desejaria mais cantar ou se apresentar no Brasil. Essas
informações circularam por diferentes jornais e revistas sem levar em consideração
os seus esforços em regravar o disco “Das terras de Benvirá”, disco esse
apresentado à Divisão de Censura e Diversões Públicas, com várias canções
vetadas e depois liberadas. O disco não teve a repercussão que deveria e Vandré
permaneceu exilado em seu próprio país.

114
No dia 03 de outubro de 1973 a Veja noticiou o
cancelamento da apresentação que Vandré faria no
programa do Flávio Cavalcante. Destacando que os
censores apenas “sugeriram” que o quadro de Geraldo
Vandré não fosse ao ar e que não se tratava de uma
proibição.
A apresentação da gravidade da situação,
diante de uma postura “imparcial” da revista, não foi
feita, apenas a comunicação do que ocorreu. Vale
lembrar que em outras matérias os jornais e revistas
noticiavam que Geraldo Vandré se negava a
desenvolver qualquer trabalho artístico, como se essa
fosse a sua escolha.
A partir desse episódio podemos também
verificar a postura da emissora (TV Rio) e do
apresentador Flávio Cavalcante, que, aliás, era
bastante conservador, em cumprir a tal “orientação”. A
revista destaca ainda que pouco tempo antes Geraldo
Vandré havia se apresentado no Programa Haroldo de
Andrade na emissora Globo sem quaisquer proibições
ou repressões.
Um indício de que tanto a revista quanto as
emissoras de televisão não problematizavam as reais
causas da proibição da veiculação do artista e sua
obra. Ainda que citem o pronunciamento de Vandré ao
Jornal Nacional no momento em que seu retorno fora
anunciado, a pouco mais de um mês de seu retorno.
Geraldo Vandré retornou ao Brasil em quatorze
de julho de 1973, porém, mais de um mês depois, a
Rede Globo anunciou no Jornal Nacional a sua
chegada ao aeroporto de Brasília (em 18 de agosto),
momento em que sua polêmica entrevista foi
veiculada.

115
Novamente é possível observar que não há uma busca da coerência em
relação aos fatos noticiados, até porque o movimento de apuração e a escuta ativa
dos sujeitos não são práticas observadas por essa mídia.
A mesma revista apresentou em 18 de abril de 1979 uma matéria onde
apresentam Geraldo Vandré numa fotografia extremamente tendenciosa, visto que
as imagens para uma matéria são criteriosamente escolhidas para que sintonizem
com o texto que enfatiza a ideia de que o próprio Vandré se negava a se apresentar
artisticamente no Brasil.

116
Tanto a fotografia quanto o texto apresentam Vandré como um homem que
“nada tem a dizer”, ressaltado a frase que vem logo abaixo de sua fotografia: “nada
do que eu digo ou penso interessa”. São matérias como essa que vão constituindo a
imagem de Geraldo Vandré como louco, infelizmente essa é a versão que se
consolidou durante os anos posteriores ao seu retorno. Tarik de Souza termina seu
texto afirmando que Vandré está “condenado a um silêncio voluntário”, o que denota
que não houve um estudo dos próprios fatos anunciados anteriormente pela revista.

“No caso específico do jornalismo, a duração engendrada


favorece um sentimento de simultaneidade entre o leitor e a
multiplicidade dos acontecimentos, que reforça a aparente
homogeneidade comunitária do espaço nacional. Uma das
razões da perfeita adequação da fotografia ao jornal é que a
imagem química paralisa a duração, imobilizando a
experiência. A afinidade da foto com a notícia está nesse
reforçamento do movimento aparente do real.” (SODRÉ, 1996,
p. 137)

Esse “movimento aparente do real” no caso específico de Vandré e a forma


como as notícias a respeito dele foram veiculadas constituiu uma imagem deturpada
do real com interesses que se alinhavam com os defendidos pela ditadura. Sua
imagem foi bastante deturpada, assim como suas intenções. Isso pode ser verifica
ainda hoje, pois sempre que falo sobre o Vandré me perguntou a respeito de sua
“loucura” e da forma como “abandonou a luta”. Identifico na constituição dessa
memória grande responsabilidade por parte da imprensa e suas versões sobre o que
de fato ocorreu.
Em setembro de 1985 outra informação bastante controversa é apresentada
ao público:

117
Já num período de abertura política a revista se arrisca a dizer que Vandré,
havia ficado retido na época de seu retorno ao Brasil numa cela da fundação Centro
de Formação do Servidor Público (Funcep) em Brasília, uma carceragem da Polícia
Federal. As informações são desconexas, uma vez que é sabido que Vandré ficou
pouco mais de um mês sob custódia da Polícia Federal e que, segundo o cantor e
compositor, esteve internado no hospital da FAB.
A criação do fato e a construção das notícias prescindem de averiguação e
apresentação das fontes. Dessa forma foi criada uma série de interpretações sobre
o que ocorreu com Vandré. Infelizmente, nenhuma delas contribuiu para a
aproximação da verdade.
O ano, 1968, conhecido mundialmente
como um ano de “explosões culturais”, no
Brasil uma conjuntura de acirramento da
repressão, dois dias antes do AI-5,
também, das resistências e intensificação
da luta armada. Os Festivais foram palcos
de lutas intensas e de demarcação de
posicionamentos. O fenômeno das vaias,
que chama atenção da revista Veja,
precisa ser analisado mais
profundamente, visto que não se tratava de uma avaliação criteriosa da qualidade
das músicas, isso como Vandré afirmou, caberia ao júri e mesmo esse estava sujeito
às tensões políticas. A plateia se dividiu em verdadeiras torcidas uniformizadas e
adotava uma postura cada vez mais intensa, permeada também pelas motivações
políticas e pelos alinhamentos com os(as) artistas que desempenhavam via arte
suas visões de mundo, afinal as percepções e expressões não são dissociadas
disso.
A evidência dessa matéria é para Gal Costa, Sérgio Ricardo e Tom Zé e o
questionamento: “para quem eles querem cantar?” denota uma postura
questionadora de seus fazeres. A visão que a revista apresenta do público é de que
o mesmo se cansa rapidamente das apresentações e ao afirmar que os(as) artistas
“dizem que são comidos vivos” ressalta um aspecto pouco aprofundado pela matéria

118
que é a dimensão que os festivais e as canções têm para esse público diante da
conjuntura apresentada.
Fundamentada pelos dados do IBOPE e pela capacidade de apreensão das
atenções voltadas para a veiculação do III FIC da Record na televisão, o constitui
como uma “doença”, mais precisamente como “câncer”.

Sem nenhum aprofundamento do significado das vaias, a revista atribui aos


participantes do festival a culpa pela disseminação da tal “doença”. É importante
observarmos que há uma preocupação iminente: a comercialização do então
produto dos festivais, ao ressaltar que a audiência e a venda dos discos caíram
vertiginosamente. Não há qualquer constrangimento por parte da revista em
apresentar a música como mercadoria e qualificar os dados de consumo como
insatisfatórios, nota-se que os artistas são apresentados como comida num
cardápio: “No entanto, a música brasileira oferece hoje, mais do que nunca, as mais
variadas escolhas para o consumidor”, diante disso podemos aferir sobre quem
deseja “comer os artistas vivos”.
Rogério Duprat, maestro e membro ativo da Tropicália, tem suas falas
destacadas: “Vivemos num mundo que compra significados (...) Nós somos iguais
aos fabricantes de camisa, com a diferença de que produzimos música”. De fato,
dentro de uma lógica mercantilista da arte, a música e seu real significado assumem
um papel secundário, como já afirmei anteriormente. O “mercado” desempenha
pressões é certo, porém, nem todas as pessoas cedem a essas forças. É preciso
denotar ainda que a Tropicália assumiu um caráter hegemônico dentro do cenário
musical dos anos 60, caindo nas graças da imprensa e da Indústria Cultural,
assimilando formas musicais estadunidenses e sendo alvo de críticas por parte de
119
alguns setores da categoria, outro aspecto bastante complexo. Resta-nos pensar
sobre as implicações em torno de tal pronunciamento, soa como desabafo, mas
pode também conter reflexos das reais circunstâncias, o fato é que da forma como
as expressões são colocadas, assumem um papel consolidador do conteúdo
defendido dentro da matéria: de fato a música é tratada como produto e as
preocupações exalam interesses econômicos. Ao término do texto, um balanço da
rentabilidade dos outros festivais... a indústria lamenta os resultados de 1968, não
pelo conjunto de atrocidades, não pela dureza das letras e melodias, nada disso,
não se trata de um lamento e nem de uma crítica musical, mas pelo “infortúnio”
constatado pelo IBOPE e pela queda nas vendas de discos.

Em 21 de dezembro de 1988, a Veja


publicou a matéria intitulada “Viola no saco
– O rebelde Sérgio Ricardo esconde-se na
pintura”. A matéria reforça a articulação da
imagem de Sérgio Ricardo com a noite em
que “quebrou seu violão” e destaca que “o
bardo da resistência democrática no circuito
alternativo durante a ditadura militar,
finalmente silenciou-se.” Essa, entre outras
matérias, possibilita a análise da
constituição da imagem de Sérgio Ricardo e
a problematização de sua relação com a
Indústria Cultural Brasileira. Uma afirmação
feita pela revista chama bastante atenção: “Suas telas com pinturas eróticas, como
suas músicas, não tem mercado”. A esse respeito, Sérgio Ricardo diz: “Não tenho
interesses comerciais, pois minha profissão é a música”, ao final da matéria satiriza:
“Tinha que ter nascido num país desenvolvido, porque sou bom pra criar, mas ruim
pra vender”.
Com isso, além das discussões em torno da mercantilização da arte,
podemos refletir sobre o impacto que essas tensões causam nas vidas dos(as)
artistas e consequentemente do que fora constituído como público. Não se trata de
criar um ran(king e dizer o que é melhor e o que não tem validade, esse tipo de

120
análise é na verdade bastante subjetiva, mas é a nossa liberdade de dizer o que tem
significado a partir de nossas experiências que esteve e está em jogo.

121
Capítulo 3 – Fé, amor e mais nada: Iniciativas e resistências

“Liberdade completa ninguém desfruta:


começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos
às voltas com a delegacia de ordem política e
social, mas, nos estreitos limites a que nos
coagem a gramática e a lei, ainda podemos nos
mexer” (Graciliano Ramos)20

Não somente a Lei e a Gramática, parafraseando Graciliano Ramos, oprimem


escritores, poetas, compositores, cantores e músicos. Como vimos anteriormente há
toda uma rede de opressão dentro de uma sociedade colonizada, capitalista e
autoritária como a nossa, onde a arte passa por tensões, pressões, exclusões que
comprometem suas expressões, mas que não as estinguem e nem impedem de
resistir.
Esse capítulo tem por objetivo apontar para a percepção de que mesmo
diante das opressões e exclusões da Indústria Cultural Brasileira houve resistência e
busca de caminhos alternativos, ainda que tenham coexistido no interior da própria
indústria.
A produção musical desses artistas por si só já represente uma forma de
resistência, portanto apresentarei algumas de suas produções, ressaltando aspectos
fundamentais de suas obras e a constituição de suas musicalidades. As canções
produzidas por Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo e Sidney Miller, diante das
trajetórias já apresentadas serão abordados dentro de uma análise que não se
pretende descritiva, mas reflexiva, apontando as relações entre os compositores e
cantores, as transformações e projetos diante das caminhadas. Da mesma forma
farei com as obras dos músicos Airto Moreira, Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte e
Theo de Barros, buscando analisar a singularidade da música instrumental e seus
elementos.
A partir da compreensão do que a música significou e significa para esses
artistas e os caminhos de produção que envolvem múltiplos fatores, passando pela
concepção, criação e os diferentes suportes para veiculação.
Já sabemos que a musicalidade antecede os meios de produção e que a
trajetória de composição é atravessada pelo que chamamos de indústria cultural

20
Oportunamente citado no livro João e o Pó de Sidney Miller de 1968.
122
brasileira para que haja publicização e recepção dessas obras. Essa recepção por
parte do público depende em grande parte dos suportes como os discos, a
veiculação no rádio e televisão, além dos contatos diretos promovidos por meio de
shows. Nesse momento focarei nas discografias e seus percursos.
As reflexões que trago a respeito dos três cantores, compositores e
intérpretes que foram contemporâneos intencionam demarcar que as musicalidades
brasileiras coexistiram dentro da própria indústria cultural brasileira, muitas vezes
obtendo êxitos e, ainda que destoando do moldes pré-estabelecidos como “receitas
de sucesso” ganharam visibilidade e destaque dentro desse cenário.
É importante chamar atenção para as relações políticas dentro do cenário
musical dos anos 1960, no que se refere à Ditadura Civil Militar propriamente dita,
mas de forma articulada aos valores elegidos pela conjuntura de discursos
nacionalistas e busca, de longa data, de uma afirmação da Identidade Nacional com
novos moldes, mas que retoma características de iniciativas anteriores como na
implantação do sistema republicano e durante o Estado Novo. Os elementos da
construção da identidade do Nacional Popular têm nas artes um importante reduto,
assim como as demandas de modernização do país. Chamo atenção para as
distinções desses períodos e seus propósitos, mas também para as convergências e
utilização de discursos que atingem a constituição das culturas e das circunstâncias
materiais em que as músicas e as canções foram produzidas.
A “sofisticação” e domínio técnico da Bossa Nova, por exemplo, dialoga
diretamente com os modos de vida de uma população intelectualizada de classe
média branca, com raras exceções, consumidora e produtora desse estilo, ao passo
em que a evidência da valorização de estilos musicais denominados como
“regionais”, mesmo passando por reelaborações estéticas denotam o diálogo e
muitas vezes o embate entre o que foi significado de forma dicotômica como “novo e
antigo”, “moderno e retrogrado”.
A própria MPB, como expressão musical dos anos 1960 não passa ilesa pelas
questões culturais pulsantes desse momento histórico, afinal a cunhagem do termo,
seja pela imprensa, crítica musical ou mesmo pelos seus protagonistas deve ser
alvo do que se busca compreender como denominação e circunscrição do que é a
nova tendência e o que não cabe dentro dela. Tanto a Bossa Nova, quanto a MPB e
mais tarde o Tropicalismo vão criando nichos que, do ponto de vista estético e

123
político, geram as margens do que se produzia paralelamente, ou do que já vinha
sendo produzido anteriormente, estilos, ritmos e musicalidades nas quais bebiam
das fontes, mas que do ponto de vista comercial vão caindo no abismo do desuso ou
da falta de evidência e, por conseguinte da desvalorização, ainda que permaneçam
vivos e atuantes nos meios evidentemente populares.
O fato é que os artistas aqui estudados estiveram no interior das forças
constituintes desses paradigmas, mesmo que de formas diferentes e com evidências
e projeções singulares, participaram dos festivais promovidos pela Record, pela
Excelsior, mais tarde pela Globo, mantiveram contratos com as gravadoras, ainda
que diante de tensões e conflitos encontraram fendas para expressar o que
desejavam.
Para os artistas com os quais dialogo o final dos anos 1960 foram
impactantes de um ponto de vista negativo, gerando obstáculos e
comprometimentos dos projetos iniciais, contudo continuaram a compor e gravar. O
impacto maior se deu após o Ato Institucional N.5, quando suas dissonâncias foram
criminalizadas e suas vozes silenciadas pela força bruta do Estado.
As primeiras gravações realizadas por Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré
possuem fortes marcas da influência da Bossa Nova, como estilo musical recorrente
e impactante no início da década de 1960, período em que esses artistas gravam
seus primeiros discos, mesmo assim é possível percebermos características que
mais tarde se acentuariam de formas musicais diferenciadas do repertório e das
abordagens temáticas e melódicas desse estilo.
O primeiro disco de Geraldo Vandré, gravado pela Áudio Fidelity, em 1964,
traz composições suas como “Fica mal com Deus”, “Canção Nordestina” que se
configuram como as primeiras composições feitas somente ele no que diz respeito à
letra e melodia. É interessante observar que essas canções, diferentemente de
outras que realizou em parceria com Carlos Lyra e com Baden Powell, não se
enquadram nos padrões bossanovistas, trazendo muito dos elementos provenientes
de sua terra e das formas musicais dos cantadores das feiras livres. O LP é
homônimo, na parte da frente da capa uma foto de Vandré, do ponto de vista gráfico
um trabalho bem simples, o que chama mais atenção é a contracapa que contem
um texto assinado por J.L. Ferrete, produtor que tinha por hábito a produção de
textos onde apresentava os artistas.

124
Geraldo Vandré é apresentado como “uma figura de grande prestígio no
cenário musical do Brasil”, sobretudo pela composição de “Quem quiser encontrar o
amor” feita em parceria com Carlos Lyra dentro dos moldes da Bossa Nova e
“Samba em prelúdio” uma regravação da música de Vinícius de Moraes, feita
juntamente com Ana Lúcia. A respeito dessa canção, o produtor J.L. Ferrete ressalta
a tensão já relatada anteriormente, da proposta de que Vandré gravasse um disco
inteiro em parceria com Ana Lúcia, tendo o mesmo se negado a tal feito. O produtor
ainda destaca que, do ponto de vista, comercial essa foi uma grande perda frente à
popularidade atingida no momento.
Destaco baixo um trecho do texto de Ferrete, onde tece comentários a
respeito do perfil de Geraldo Vandré e suas características dentro do cenário
musical:

Apesar do destaque para a inserção de Vandré no que chama de “corrente


contemporânea” se referindo à bossa nova, enfatiza que para o compositor esse
conceito traz particularidades, atribuindo a visão de que o termo se expande na
concepção do cantor como música popular e tudo que envolve novas fórmulas e
misturas de expressões diversas. Esse é um assunto bastante polêmico, tendo em
vista que nas conversas que tive com Vandré ele afirmou que nunca se viu como
membro do movimento da bossa nova ou do que mais tarde viria a ser enquadrado
como música de protesto, o trânsito por diferentes modalidades e a preservação de
identidades musicais sem a busca de rótulos é uma característica interessante do
125
compositor e ao mesmo tempo uma atitude vista como controversa por parte da
crítica musical e da imprensa diante da necessidade da criação de enquadramentos.
Na verdade, considero que houve resistência e ainda há, por parte do Vandré
no ato de rejeição às tentativas de conceitua-lo como pertencente a um determinado
estilo. Seu primeiro LP (RGE), assim como o “Cinco anos de canções” (Som Maior)
evidenciam a pluralidade de suas composições e interpretações, suas escolhas
foram muito mais motivadas por suas reais intenções, sentimentos e visões a
respeito da música do que pelas demandas e tendências do mercado musical e das
gravadoras.
Mesmo considerando a importância da bossa nova, Geraldo Vandré afirmou
em 1968 na entrevista concedida a Zuza Homem de Mello que dentro de sua
avaliação havia um “problema”:

“Aí surge um problema na minha opinião: se por um lado uma


estrutura mais desenvolvida possibilita uma criação melódica
mais rica, por outro lado conduz aquele que se preocupa
exclusivamente com harmonia, a esquemas que restringem a
riqueza e a liberdade da melodia em termos de uma
comunicação popular mais expressiva, mais autêntica e mais
criativa” (MELLO, 1968)

As canções apresentadas por Vandré no seu primeiro LP com referenciais e


estruturas musicais nordestinas, suas memórias no tempo presente e seu relato em
1968 nos dão evidências da visão que construiu ao longo de sua carreira a respeito
das estruturas musicais. Mesmo não sendo músico e anunciadamente conhecendo
muito pouco sobre instrumentações, Vandré é ao mesmo tempo um estudioso da
música e um intuitivo em suas origens que não ignorando a potência das
elaborações musicais mais complexas, e por vezes também a buscando, sempre
colocou em primeiro plano a liberdade criativa e a função comunicativa da música do
ponto de vista popular.
O “popular” referido pelo cantor tem conexões com os objetivos de seus
fazeres, que envolve as formas musicais e suas recepções. Isso talvez nos ajude a
compreender o seu distanciamento e rejeição aos rótulos e enquadramentos, assim
como os projetos posteriores à gravação de seu primeiro LP.
O segundo LP de Geraldo Vandré é demonstrativo desses embates, o próprio
título “Hora de lutar”, no ano seguinte ao golpe de 1964 já denota um

126
posicionamento político evidentemente
contra os princípios geradores e
mantenedores do golpe.
Gravado em 1965 com o selo
“Disco Lar” Gravadora Continental, traz
na contra capa versos iniciais de um
soneto de Camões: “Mudam-se os
tempos, mudam-se as vontades”. De
forma anunciada Vandré demarca o
lugar de onde fala, apresentando um
repertório já distante do estilo
bossanovista, se auto afirma como cantador de origem nordestina, exaltando
elementos das culturas afro brasileiras e intensificando as temáticas sociais. A capa
do disco traz a imagem de capoeiras ressaltando o potencial de luta dos grupos
populares e sua ancestralidade, numa conjuntura em que não aspira salvação de
cima pra baixo. É nesse disco que regrava “Asa Branca” de Luiz Gonzaga que em
consonância com o que ressalto no texto a respeito do descarte de importantes
artistas da música popular vinha sendo esquecido pela mídia e passando por sérias
dificuldades.
Nesse mesmo período Geraldo Vandré teve a importante experiência de ter
feito a trilha sonora do filme “A hora e vez de Augusto Matraga” de Roberto Santos,
baseado num dos contos de “Sagarana” de Guimarães Rosa. Esse foi um desafio
que levou Vandré a estudos profundos sobre as realidades e as culturas
relacionadas ao sertão mineiro, bem como a musicalidade presente nesse meio. O
filme já traz na apresentação a canção “Réquiem para Matraga” numa versão com
improvisos feitos por meio da voz de Vandré que vão se harmonizando com os sons
das cavalgadas dos personagens que se dirigem à Praça do Arraial com destino à
Igreja.
Os estudos e a participação de Vandré nesse trabalho foram preponderantes
para a composição de “Disparada”, que fizera em parceria com Theo de Barros.
Com uma letra “quilométrica” na primeira versão, como afirmou Theo, foi sendo
delineada e ajustada à melodia, já pensando na sua inscrição para o Festival de
Música Popular Brasileira de 1966, promovido pela Record. O fato é que houve uma

127
junção poderosa entre letra e melodia, cada frase alinhada à música, foi sendo
construída intencionalmente para expressar o sentimento e comunicar seu conteúdo.
Essa combinação foi potencializada pela interpretação de Jair Rodrigues, gerando
uma performance de grande energia poética e causando um forte impacto no
público.
As expressões e os gestos de Jair Rodrigues se sintonizaram com o arranjo
musical e a imagem constituída no palco, com destaque para a queixada de burro
que demarcava o som de “rifle”, compondo os elementos musicais, juntamente com
a viola e o violão. Essa apresentação não foi feita com o Trio Novo, que no momento
estava numa turnê da Rhodia juntamente com Vandré. Tanto os músicos quanto Jair
Rodrigues desempenharam a execução da canção de forma dinâmica e à altura do
que os compositores desejavam expressar. “Disparada” ficou classificada em
primeiro lugar, juntamente com a “Banda” de Chico Buarque de forma inédita nos
festivais.
O personagem central de “Disparada”, segundo o próprio Vandré traz
referências de “Augusto Matraga” e as suas transformações apresentadas no conto
de Guimarães Rosa. Um homem do sertão que se vê diante de uma situação onde o
poder que exercia é rompido, a forma violenta como agia antes se volta contra ele e
percebe que na verdade possui fragilidades num processo de reconhecimento de
sua humanidade no contato com pessoas que o ajuda num momento em que chega
perto da morte. Os trechos da letra abaixo evidenciam esse processo de
transformação

Boiadeiro muito tempo


Laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente
Pela vida segurei
Seguia como num sonho
E boiadeiro era um rei

Mas o mundo foi rodando


Nas patas do meu cavalo
E nos sonhos
Que fui sonhando
As visões se clareando
As visões se clareando
Até que um dia acordei

Então não pude seguir


Valente em lugar tenente
128
E dono de gado e gente
Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente

A percepção de que a força bruta e a ideia de controle sobre pessoas tal


como animais é na realidade uma ilusão fruto da agressividade construída ao longo
da vida e da forma como reage diante das circunstâncias, impossibilita o
personagem de seguir exercendo tal poder. Os últimos versos quando relacionados
às circunstâncias vividas no país, de endurecimento da Ditadura Civil Militar,
causaram um profundo impacto na sua recepção, tanto por parte do público, quanto
por parte da repressão que já vinha qualificando Geraldo Vandré como subversivo.
Versos fortes e impactantes que questionam as relações de poder e afirmam que
“gente” não é gado, não podendo haver uma imposição sobre suas ações e
ressaltando a importância da liberdade.
O posicionamento de Geraldo Vandré e a forma como compreende e
experimenta a arte direcionaram sua obra para uma vertente cada vez mais crítica
em relação ao autoritarismo presente em nossa sociedade, sobretudo ao que viveu
nos final dos anos 1960, no depoimento dado a Zuza Homem de Mello destaca essa
visão: “(...) arte, independente das nossas propostas conscientes ou inconscientes,
vem do fato político e cria fato político.” (MELLO, 1968).
Dentro dessa lógica, o lançamento do seu terceiro LP, ainda em 1966, “Cinco
anos de canção” pela Som Maior, mesmo ano em que sua canção em parceria com
Fernando Lona “Porta Estandarte” foi a vencedora do Festival da Excelsior, da
intensificação de suas ações ao mesmo tempo em que a comunicação com o
público vai se tornando alvo central de suas intenções, levando-se em conta o
conteúdo e as formas musicais apresentadas.
O LP é na verdade uma coletânea contendo 12 canções que, segundo Franco
Paulino encarregado pela gravadora de fazer sua apresentação, concentra as
canções que “mais definem o trabalho” de Geraldo Vandré. Com um repertório já
conhecido pelo público, traz canções como “Réquiem para Matraga”, “Porta
estandarte”, “Canção do breve amor”, “Se a tristeza chegar”, “Rosa flor” e “Quem
quiser encontrar o amor”, anteriormente gravadas em compactos. Demonstrativo da
pluralidade da musicalidade presente na obra de Vandré na abordagem de

129
diferentes estilos e temáticas reafirma que “não separa dor de amor” e que esse
amor pode ser por uma pessoa, por um povo e por suas culturas.
As características da obra de Vandré, assim como de outros compositores
como Sérgio Ricardo, levaram a ànalises da crítica musical e posteriormente de
estudiosos da música brasileira como elementos do que chamaram de Nacional
Popular. Como uma postura de rejeição às influências de musicalidades
estrangeiras como o jazz e, sobretudo o Rock.
Vale lembrar a “Marcha contra as guitarras”, ocorrida em julho de 1967, da
qual Vandré, Elis Regina e Sérgio Ricardo participaram, num momento em que o
programa da TV Record “O fino da Bossa” perdia audiência para “As jovens tardes
da Jovem Guarda”. Analiso essas relações de conflitos no cenário musical do final
dos anos 1960, por meios das entrevistas realizadas, como busca de autoafirmação
e disputa por espaços importantes dentro da dinâmica da indústria cultural brasileira,
num momento em que, do ponto de vista comercial, a música estrangeira e as
expressões nacionais influenciadas por essa vinham se tornando hegemônicas.
Existe uma complexidade nesse tipo de análise, visto que o país passava por
momentos de extremismos gerados por questões políticas e processos de
intervenções estadunidenses que sem dúvida permeavam as posturas adotadas no
cenário musical. Há também a imposição de modelos e estéticas dentro de uma
lógica evolucionista da música brasileira, dentro de um discurso de modernização,
que de certa forma afetava as produções, sobretudo pelos interesses comerciais em
torno da veiculação e da venda dos “produtos”.
As expressões podem ser classificadas como extremistas, nacionalistas ou
retrogradas de acordo com os recursos, posicionamentos e possibilidades de
análise. As percebo como formas possíveis de resistência, preferindo não qualifica-
las de forma dicotômica como corretas ou erradas, mas como caminhos encontrados
naquele momento, por aqueles sujeitos motivados por sentimentos diversos no
campo da música e suas relações com a política.
É nesse cenário que Geraldo Vandré produz seu quarto LP “Canto Geral”
lançado em 1968 pela EMI-ODEON. Momento conhecido por nós como de extremo
acirramento da repressão e também da luta armada contra a Ditadura. Num contexto
geral, foi um ano de grandes transformações e questionamentos políticos, estéticos
e morais.

130
Na capa do LP, a reiteração contida em “Disparada”, a relação entre “gado e
gente”, ainda que essa canção não faça parte do repertório. O disco é marcado por
canções com estéticas e temáticas similares. Na contra capa versos de Bertold
Brecht: “Desses tempos em que falar de árvores é quase um crime, pois implica em
silenciar sobre tantos erros – aos que virão depois de mim”. Dessa vez o texto de
apresentação do LP é escrito pelo próprio Vandré, enfatizando o sentido de “Canto
Geral”. Retomar os versos de Bertold Brecht, em março de 1968 significa trazer um
discurso de resistência, de crítica a um Estado autoritário, bem como a sua
sociedade também autoritária, que não permitem a expressão da beleza, tal como
concebida pelo artista, que gera uma circunstância de opressão tamanha e de

131
violação de direitos essenciais que acabam por desencadear uma oposição
expressa de diferentes formas, entre estas, a arte. Sendo a arte produto das
experiências sociais, não havia para Vandré, diante do posicionamento adotado,
como não falar das coisas que via e que vivia, não falar “de tantos erros”.

Geraldo Vandré reitera a função principal de suas canções – a comunicação –


destacando que a arte só faz sentido quando está a serviço de “uma necessidade
real”. Essa concepção nos ajuda a compreender a trajetória dessa artista, suas
buscas e suas escolhas, apontando para o aspecto fundamental de sua obra que
implica em “justiça social”, isso tem a ver com suas convicções e com seus
referenciais diante da vida, não havendo, portanto, possibilidades de enquadramento
ou classificações. O que escreveu é fruto das vivências e da forma como observou o
mundo, o país, os lugares, as pessoas e as relações, assumindo as
responsabilidades de seus fazeres, assim como os riscos e implicações sobre o que
buscou comunicar.
Os agradecimentos a todos os sujeitos envolvidos no projeto do disco, com
destaque para os músicos e compositores da Trio Maraya, Behring Leiros, Marconi
Campos e Hilton Acioli, sendo este último amigo e parceiro em diversas canções
desse LP, representam a noção de que nada se constrói de forma isolada, que as

132
parcerias e a própria inserção e espaço dentro das gravadoras são fundamentais
para a produção e veiculação de suas emoções e pensamentos traduzidos em
canções.
A canção “Cantiga Brava”, uma das que integram esse LP fez parte da trilha
sonora do filme “A hora e vez de Augusto Matraga”, há outras com estéticas
similares que indicam a influência desse trabalho nas composições posteriores a
essa experiência.
Grande parte dos vídeos que contém interpretações de Geraldo Vandré foi
“perdida”, incluindo sua apresentação no Festival Internacional da Canção de 1968,
realizado pela Globo, com a canção “Pra não dizer que não falei de flores”, havendo
apenas a preservação do áudio. Como analisei na dissertação de mestrado isso faz
parte do processo de apagamento da memória sobre o artista, dificultando o acesso
às expressões importantes. Os motivos desse “apagamento” são ainda
desconhecidos, mas diante das tensões que envolvem a perseguição e a repressão
que sofreu dão indícios do processo violento de “exílio em sua própria terra”.
No LP “Canto Geral”, há a canção “Arueira”, cujo um vídeo produzido pela
Record foi preservado, nos permitindo analisar, além do áudio a performance do
cantor e compositor.

Vim de longe, vou mais longe


Quem tem fé vai me esperar
Escrevendo numa conta
Pra junto a gente cobrar
No dia que já vem vindo
Que esse mundo vai virar
Noite e dia vêm de longe
Branco e preto a trabalhar
E o dono senhor de tudo
Sentado, mandando dar.
E a gente fazendo conta
Pro dia que vai chegar
Marinheiro, marinheiro
Quero ver você no mar
Eu também sou marinheiro
Eu também sei governar.
Madeira de dar em doido
Vai descer até quebrar
É a volta do cipó de arueira
No lombo de quem mandou dar.

133
A canção que já havia sido lançada num compacto em 1967, tem uma
temática que aborda o antagonismo entre “o dono senhor de tudo”, caracterizado
pela violência e pela exploração do trabalho e o trabalhador que consciente de sua
condição aponta para a possibilidade de reversão das opressões, sinalizando que o
“jogo” pode virar e que quem um dia oprimiu pode e deve assumir as consequência
de tal ato, numa perspectiva de justiça social, como já observamos em outras
canções.
No vídeo, Geraldo Vandré, acompanhado pelo Trio Marayá e pelo Quarteto
Novo, a canção é iniciada com uma melodia marcada com ritmo lento, o cantor
coloca-se diante da plateia com uma expressão séria, e imponente, mantida nos
primeiros versos: “vim de longe vou mais longe/ Quem tem fé vai me esperar/
Escrevendo numa conta pra junto a gente cobrar...”. Com a evolução da canção a
melodia acompanha a voz que atinge um tom mais reflexivo, como se estivesse
visualizando as transformações que anuncia. Ao cantar o verso “o dono senhor de
tudo/ Sentando mandando dar” sua expressão é de raiva, de reprovação, sua voz
assume um tom mais grave. A dinâmica é mantida até chegar aos vesos:
“Marinheiro, marinheiro quero ver você no mar/ Eu também sou marinheiro/ Eu
também sei governar/ Madeira de dar em doido vai bater até quebrar...”, em meio a
uma explosão sonora num alinhamento melódico que comunica num ritmo mais
acelerado a “volta do cipó de arueira no lombo de quem mandou dar”. 21
José Miguel Wisnik no texto, “Algumas questões de música e política no
Brasil”, afirma que a música mantém com a política um vínculo operante e nem
sempre visível, nesta afirmação, a questão central não se refere à letra e sim à
música, a melodia que compõe em conjunto com a letra a canção. Wisnik afirma que
a música atinge os seres humanos de forma a provocar um desencadeamento de
sensações e sentimentos que podem provocar reações diferentes de acordo com os
seus ritmos. A sua utilização se dá de forma ampla, podendo ser com propósitos de
manipulação (como é o caso das propagandas) ou de resistência. Ou seja, a
melodia, o ritmo e a harmonia de uma música são fundamentais para a recepção de
suas mensagens.

21
Para um maior aprofundamento sobre a trajetória e produção de Geraldo Vandré indico a dissertação que fiz,
já citada anteriormente: CARDOSO, Marilu Santos. Para não esquecer Vandré: Música, Política, Repressão e
Resistência (1964-1978). Dissertação (Mestrado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2013.
134
O conceito de performance, fundamental para análise do vídeo apresentado,
tem suas bases no estudo realizado por Paul Zumthor. O autor pensa sobre a
literatura e suas formas de apreensão, formas estas que podem mudar de acordo
com as suas práticas discursivas:

(...) Se admitirmos que há, grosso modo, duas espécies


de práticas discursivas, uma que chamaremos, para simplificar,
de ‘poética’, e uma outra, a diferença entre elas consiste em
que o poético tem de profundo, fundamental necessidade, para
ser percebido em sua qualidade e para gerar efeitos, da
presença ativa de um corpo: de um sujeito em sua plenitude
psicofisiológica particular, sua maneira própria de existir no
espaço e no tempo e que ouve, vê, respira, abre-se aos
perfumes, ao tato das coisas (...) .

A partir das reflexões apresentadas por Paul Zumthor, podemos analisar a


importância da voz e da oralidade expressadas na performance da apresentação de
“Arueira”, assim como dos gestos e do espaço na constituição de uma abordagem
em sua totalidade. A força gerada pela voz envolta em sentimentos e sentidos
adiciona e transforma o texto lido, gerando uma ação dinâmica de transmissão e
recepção simultâneas, que incorpora todos os elementos presentes nesta ação.
A energia poética, presente nas canções de Vandré impactam o público por
tudo que as constitui, para além das temáticas que fundamentam suas letras. Tudo
que compõe a musicalidade, o tom de voz do cantor, gestos e vibrações,
potencializam o que é comunicado. Assim como as diferentes formas de recepção.
O final dos anos 1960, as consequências das ações repressivas e dos
processos de censura, dificultaram e muitas vezes afetaram processos criativos nos
meios artísticos. O rádio, a televisão e os meios de comunicação como um todo
também passaram por processos de cerceamento, obviamente aqueles que se
mantiveram como antagonistas mais ainda. Outros meios, já colaboradores, deram
sequência às suas práticas mesmo buscando construir uma imagem imparcial.
Diante disso podemos refletir sobre o impacto das obras de Vandré e as implicações
pelas quais passou, sobretudo após a apresentação da canção “Pra não dizer que
não falei de flores”, sendo forçado a sair do país, num exílio condicionado que o
levou a partir para o Chile e depois para a Europa.
Toda energia poética, a busca pelas parcerias que potencializavam suas
letras, sua participação ativa nos meios estudantis e nos movimentos de
135
trabalhadores, trouxeram sérias implicações, das quais trato com maior
profundidade na dissertação de mestrado. Aqui gostaria de destacar que suas
escolhas, não separando a arte do ato político, nos ajudam a compreender sua
aproximação com as formas musicais dos grupos populares, sobretudo, os
provenientes do Nordeste e do sertão mineiro, que sua busca pela comunicação,
como fator primordial de sua obra, também possibilita a aproximação do significado
de suas últimas apresentações da canção “Pra não dizer que não falei de flores”,
onde a simplicidade melódica não se deu por mero acaso, mas de forma intencional
ao colocar a letra em evidência. O homem e seu violão diante da plateia provocou
emoções e afinidades discursivas num momento de extrema violência empregada
pelos diferentes mecanismos de repressão e pela dura realidade vivida no final de
1968.
Sérgio Ricardo também flertou e se embrenhou na Bossa Nova, mesmo
atribuindo significados diversos a essa musicalidade. No livro de memórias
produzido pelo Zuza Homem de Mello afirma que o ritmo da bossa nova, de certa
forma, esfriou o espírito do samba, mesmo valorizando o poder de síntese do ponto
de vista melódico. Para o compositor e cantor há aspectos positivos e negativos ao
mesmo tempo:
“(...) Se bem que haja o lado válido disso, porque deu
margem para que o samba fosse mais elaborado
musicalmente. E também para ficar mais urbana. É samba de
asfalto mesmo, de apartamento, não é o samba de favela. Eu
acho que o samba é o que se toca na favela; o que se tocava
no apartamento da Nara Leão era um sambinha que tinha
condicionamento de Jazz, literatura mais bem apurada, uma
voz mais apurada, uma voz mais afinada, mas também tinha
menos emoção, menos agressão, menos comunicabilidade de
ordem popular” (MELLO, 1968)

Nenhum fator negativo é atribuído ao que se refere às elaborações e


experimentações musicais, mas é evidente nas falas de Sérgio e de Vandré uma
preocupação com a comunicabilidade perdida com as raízes das formas musicais
populares e consequentemente com os distanciamento dos propósitos relacionados
às forças pulsantes dessas formas, tais como a emoção e as características de suas
origens. A música “de asfalto” ou de “apartamento” se circunscreve e se destina a
outro tipo de público, mais intelectualizado e próximo das sofisticações afinadas com
os discursos de modernidade.

136
Seu primeiro LP “Dançante N°1” (Todamérica), gravado em 1958 traz músicas
instrumentais como “Favela”, “3-D” e “Máxima Culpa”, executadas no piano,
instrumento ao qual se dedicou intensamente desde o início de sua formação
musical. Já há traços da influência do Jazz que mais tarde se acentuaria em outras
gravações, mas traz também batidas fortes do samba e da música cubana, já num
processo de reelaboração e misturas de sons. Esse LP tem regravações de
compositores internacionais, como Nacio Herb Brown e Webster.
Já em 1960 grava o LP “Não gosto mais de mim”, com fortes expressões da
Bossa Nova, apresenta a canção “Zelão” que tanto do ponto de vista melódico
quanto da abordagem temática destoa do restante do repertório. Essa canção pode
ser significa como o início de uma ruptura com os moldes pré-estabelecidos pelo
insurgente movimento.

Mas assim mesmo zelão


Dizia sempre a sorrir
Que um pobre ajuda outro pobre
Até melhorar
Choveu, choveu
A chuva jogou seu barraco no chão
Nem foi possível salvar violão
Que acompanhou morro abaixo a canção
Das coisas todas que a chuva levou
Pedaços tristes do seu coração

Com uma forte demarcação do samba Sérgio apresenta aspectos da


realidade no morro diante de um deslizamento de terra em função da chuva, que
entre outros, destrói o barraco de Zelão. Atentando para o espírito comunitário da
favela e a forma como as pessoas se uniam mesmo diante dos sofrimentos
individuais para ajudar um ao outro, num espírito de coletividade próprio das culturas
populares com matrizes e simbologias que se distinguem da lógica eurocêntrica e
capitalista. Do ponto de vista musical afirma que foi chamado como dissidente, visto
que sem deixar de lado os elementos fundantes da bossa assumiu de forma mais
acentuada o samba, que na opinião dele eram as duas coisas, “que misturou e deu
certo”.
O fato é que suas canções já não cabiam nos enquadramentos estilísticos
propagados no momento e essa é uma característica que evidencia como
comprometedora das futuras projeções, visto que considera que o “sistema” exigia

137
certas limitações dentro dos padrões que obtinham maior sucesso, como uma busca
de “sugar” do ponto de vista comercial tudo quanto possível. Nesse sentido Sérgio
se considera um rebelde, por não se prender aos padrões impostos assumindo as
consequências mercadológicas, mas garantindo sua fidelidade a suas criações e
pulsações.
Não pretendo discorrer sobre a totalidade das obras, tendo em vista que são
diversas trajetórias com uma produção imensa, mas ressaltar algumas expressões
que considero significativas para as problematizações trazidas nessa pesquisa.
Dentro do período delimitado pela presente pesquisa Sérgio Ricardo compôs
treze LP’s, os iniciais fortemente influenciados pela Bossa Nova. Gostaria de
destacar um deles, que segundo o próprio compositor marca profundamente suas
experiências e leva a uma ressignificação de suas práticas, trata-se da trilha sonora
que fez para o filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, essa trilha
que viria a ser gravada no suporte de uma disco em 1964 pela gravadora Forma,
que surge com uma proposta bastante
relevante dentro de uma lógica de valorização
da música brasileira, mais tarde virando selo
da Philips.
O fato é que o desafio lançado por
Glauber Rocha para Sérgio Ricardo o levou a
experimentações e estudos a respeito da
música nordestina, promovendo impactos nos
mais diferentes elementos constitutivos da
musicalidade com a qual tinha relação.
Sérgio contou-me sobre essa experiência na entrevista realizada em 2015 no
Morro do Vidigal, lugar onde reside até o momento. Que a noção de que o sujeito do
Nordeste, enquanto ele cava a terra, “enquanto ele sente aquele calor do sol, aquela
coisa do rachar o chão (...) vem frases e vem melodias pra ele na cabeça, que são a
própria cultura, aquela coisa que nasce do chão, da terra, brota da terra.”
No Programa Ensaio da TV Cultura, dirigido pelo Fernando Faro, apresentado
em 1985, Sérgio fala detalhadamente a respeito do processo de produção da trilha
sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e da importância dessa experiência.
Conta que naquele momento estava montando o seu filme “Esse mundo é meu”

138
juntamente com Ruy Guerra e que de repente chega o Glauber lhe cobrando a
música para uma letra que havia deixado com ele uma semana antes, dizendo que
se ele não a entregasse escolheria outra pessoa pra fazer. Diante da pressão foi
para casa e em poucos momentos “jogou toda sua criatividade” para por a música
na letra solicitada, sem saber muito bem da grandeza que o filme e a trilha viriam a
atingir.
Glauber aceitou a versão produzida e solicitou a Sérgio que cantasse:

“(...) E me botou pra cantar, inclusive rompendo com o meu


jeito de cantar, porque eu cantava dessa forma doce da bossa
nova né... E ele me transformou num cantador de feira, me
colocou mesmo pra berrar no estúdio e foi uma coisa
interessante.” (Ensaio, TV Cultura – 1985)

Essa experiência e a composição da trila sonora do filme impactou a obra de


Sérgio Ricardo, tanto no cinema como podemos observar em a “Noite do
Espantalho” (1974), quanto em outras composições presentes nos discos que
lançou após 1964. Ao fazer a trilha sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”
Sérgio incorporou a estética presente no filme e transpôs para voz e a melodia os
sentimentos e sensações que o Glauber desejava comunicar.
Paralelamente às vivências com o pessoal da Bossa Nova e com o CPC
(Centro Popular de Cultura)22, Sérgio teve contatos importantes com o Cinema
Novo, atento às diferentes linguagens e já enfronhado com o cinema buscou adotar
uma conotação que chama de “mais política”, para tanto afirma que foi
transformando certos conceitos musicais aprendidos desde a infância, como pianista
clássico, da Bossa Nova com suas relações com o Jazz e uma ligação com a “classe
média praieira”, relata que saiu dessa história e subiu o morro: “Quando minha
música subiu o morro disseram que eu era um dissidente”. Afirma que não se
incomodou com o rótulo, mas que do ponto de vista comercial foi perdendo a
evidência que tinha anteriormente.
Ainda em 1964 é possível verificar a aproximação das questões políticas e
culturais nas abordagens temáticas, como no filme “Esse Mundo é meu”, que aponta
para contradições sociais e raciais. A trilha sonora e o alinhamento com as questões

22
Havia ainda, neste momento, a participação de muitos artistas no “Centro Popular de Cultura” (CPC) da União
Nacional dos Estudantes (UNE) que surgira em 1961 com a proposta de utilizar a arte em função das classes
populares e com projetos de luta por justiça social.
139
populares são composições refinadas do ponto de vista melódico e das letras, uma
característica importante a ser ressaltada, visto que o diálogo com as formas
musicais populares não significa reproduções estéticas, mas intersecções e
reelaborações.
Dentro de uma conjuntura de ditadura, o distanciamento da bossa nova e com
um aprofundamento das questões políticas numa vertente crítica ao sistema, as
implicações foram se acirrando, tornando-se alvo da censura e da repressão. Sua
obra foi sendo cada vez mais proibida de ser veiculada, sobretudo após o Festival
da Record de 1967 com a apresentação de “Beto bom de bola”, que aparentemente
não apresentava críticas diretas à ditadura, mas que gerou uma cisão entre a plateia
que assistia o festival, como já comentei anteriormente.
A memória a respeito desse importante artista passou a ser vinculada ao
homem “que quebrou seu violão” e jogou sobre a plateia que vaiava
incessantemente. Os rótulos e a perseguição não fizeram com que desistisse da
arte, continuou compondo e produzindo filmes. Possui uma vasta obra, investiu
esforços na música, nas artes plásticas e no cinema, permanece ativo até os dias
atuais. Durante essa trajetória define que seu repertório é marcado pela associação
do conteúdo que emana no povo, com a sua própria problemática como tema, como
desenvolvimento de tema e que se sente gratificado pelo que conseguiu extrair para
o seu próprio trabalho.
Na entrevista que realizei com ele afirma que outros artistas passaram por
processos semelhantes, ressaltando a memória que tem sobre Sidney Miller.
Lamenta a morte prematura do artista e diz que além de ser um grande poeta era
um grande músico também. Apresenta Sidney Miller como alguém que tinha uma
simplicidade imensa e um grande desprendimento que implicaram no pouco
resultado, do ponto de vista comercial, da sua obra, mesmo sendo respeitado e
procurado por outros interpretes para possíveis gravações.
O destaca também como um grande guerreiro no campo da luta pelos direitos
autorais, sendo um dos membros da SOMBRAS ao lado do próprio Sérgio, do Chico
Buarque, do Macalé e de outros artistas. A respeito disso comentarei mais adiante.
O fato é que as características da personalidade de Sidney Miller, na opinião
de Sérgio, não contribuíram para que ele tivesse uma projeção no meio musical.
Como compositor era bastante talentoso e sensível, mas como interprete sua

140
introspecção o limitava. Sérgio afirma que em seus conteúdos “tinha uma fixação
pela transformação do país e no amor à cultura brasileira, tanto assim que fez coisas
geniais como músico”.
Em 1967, Sidney Miller lançou seu primeiro LP homônimo com a canção “A
Estrada e o violeiro”, já conhecida pelo público por ser a vencedora na categoria de
melhor letra, defendida ao lado de Nara Leão. A estrutura musical se aproxima de
outros padrões estéticos mais vinculados à música tocada por violeiros relacionados
ao que se pode chamar de música sertaneja, longe das associações que temos na
atualidade, mas como estilo que surgiu a partir das experiências vivenciadas pelo
estudo sobre as culturas dos espaços rurais. Obviamente a partir de reelaborações e
recriações do ponto de vista melódico, essa canção possui um compasso crescente
e a utilização de tempos oscilantes que acompanham a evolução da letra.
É também de seu primeiro LP a canção “O circo”, relacionada algumas vezes
à cantiga de roda ou música para criança, mas que revela, nas entrelinhas,
sentimentos profundos das personagens circenses e suas dores:

Faço versos pro palhaço


Que na vida já foi tudo
Foi soldado, seresteiro
Carpinteiro, vagabundo
Sem juiz e sem juízo
Fez feliz a todo mundo
Mas no fundo não sabia
Que em seu rosto coloria
Todo o encanto do sorriso
Que seu povo não sorria.

Já na introdução utiliza recursos melódicos da cultura circense, elevando o


tom de euforia e felicidade, afinal o entretenimento e a busca das pessoas que vão
ao circo é a produção do riso, da distração... Num contraponto sutil e construído
paulatinamente, sua voz e seu texto vão mostrado as agruras de cada personagem.
No caso do trecho citado o “palhaço” é aquele que tendo passado por diferentes
profissões e tentativas de sobrevivência, de “seresteiro a vagabundo” pinta o rosto
todos os dias para transmitir a felicidade que não há dentro dele. Faz feliz “a todo
mundo”, traz encanto e poesia para um povo sofrido e calejado pelas exclusões e
explorações cotidianas.

141
As letras e os textos produzidos por Sidney Miller são densos, alguns
evidentemente melancólicos, evidenciando traços de sua personalidade pouco
conhecida por nós, pelos fragmentos de curtos relatos e pelas lacunas da escassez
das fontes. Na verdade, sua obra é a principal fonte para que possamos nos
aproximar dos sentimentos e pensamentos desse artista.
Seu segundo LP, lançado em 1968 também pela gravadora Elenco, “Brasil,
do Guarani ao Guaraná” tem como introdução a marcha de carnaval “História do
Brasil?” de Lamartine Babo, na contra capa trechos de textos de Mario de Andrade a
respeito da música brasileira. Esse LP é marcado por um tom aparentemente
nacionalista e folclorista, mas apresenta canções que destoam dessa lógica, como
por exemplo, “Pois é, pra que?”.
Joyce Moreno o conceitua como uma resposta num tom meio irônico em
relação aos tropicalistas que são da mesma geração que ele:

“Mas, aí a coisa não fica muito clara se ele está entrando na


onda dos tropicalistas ou se está criticando os tropicalistas, a
coisa fica meio confusa ali em relação a isso, então ele faz
músicas que brincam com a sociedade de consumo, que falam
da questão da guerra nuclear, um assunto que preocupava ele
bastante, ele de vez em quando solta uma farpas assim, mas
tudo muito sutil. E ao mesmo tempo tem modinhas, como a que
o Macalé canta no disco, o Macalé nessa época também não
era tropicalista e era um compositor de modinhas, eram do
mesmo grupo, estavam sempre juntos, eram muito amigos (...)”
(Joyce Moreno, 2015)

Joyce destaca aspectos fundamentais para que possamos compreender


melhor as características desse LP e as tendências apresentadas pelo Sidney Miller.
Talvez a necessidade de classificação de sua obra não fosse o centro de suas
preocupações e sim a vontade e a necessidade de comunicar aquilo que habitava o
seu interior e que conseguia escoar por meio das canções e singelas interpretações.
Questões complexas, sem a pretensão de apontar saídas, sem a presunção de
apontar caminhos de salvação. A capa do disco já demonstra a complexidade dos
sentimentos e posicionamentos comunicados.

142
Evidentemente há referências
ao cartaz da ópera de Carlos
Gomes, mas uma produção gráfica
com muitos elementos, carregada,
densa, com uma diversidade de
comunicações e de forma, até
mesmo dissonante, a figura
monocromática de Sidney Miller ao
centro, com a típica expressão séria,
triste e preocupada, esses signos
estão presentes também no repertório.
Entre as canções está “Pois é, pra quê?”, destoando das marchas, sambas e
valsinhas tem uma melodia lenta, simples do ponto de vista harmônico, uma
repetição sem grandes mudanças na evolução. A letra, dessa vez assume o primeiro
plano, uma poesia pesada, com relatos de observações sobre uma realidade em
que nada faz sentido. O próprio título já anuncia um conteúdo de pessimismo diante
das circunstâncias vivenciadas pelas personagens:

No fim do mundo há um tesouro


Quem for primeiro carrega o ouro
A vida passa no meu cigarro
Quem tem mais pressa que arranje um carro
Prá andar ligeiro, sem ter porque
Sem ter pra onde, pois é, pra quê?

No último trecho, após a comunicação das contradições sociais e os


sentimentos imersos numa cotidianidade e de relações com as tecnologias, os
produtos e as opressões, as dores e os sentimentos complexos de uma busca de
suportar a vida, as compensações que já não ocultam os dilemas reitera a questão
central: “Pois é, pra quê?”
A respeito dos discos gravados por Sidney Miller é possível notar, sobretudo
pelos comentários de Joyce Moreno, que cada disco segue um caminho diferente do
ponto de vista do repertório e das formas musicais. Ela afirma que em cada disco a
única coisa que une as obras é a pessoa do Sidney, para termos noção da
diversidade das formas e das composições musicais.

143
Segundo Joyce Moreno, em sua entrevista concedida a mim, diz que
conheceu o Sidney Miller em 1967, destaca a sua timidez e afirma que ele nunca foi
um performer, caracterizando isso como um grande diferencial na sua carreira, visto
que a falta de evidência e comunicabilidade com o público pode ser, entre outros
fatores, elementos da sua falta de projeção. Para termos noção dessa introspecção,
Joyce relata que uma vez fizeram um show no Teatro Casa Grande e mesmo ele
sendo o “maior nome do show” o mais conhecido, no último dia do show o diretor
que era o Paulo Afonso Grisolli, fez um exercício de permitir que cada artista
escolhesse o que queria fazer, de onde gostariam de se apresentar: “O desejo do
Sidney, o pedido do Sidney foi cantar o show inteiro da cabine de luz, onde ele não
aparecia. Ele fez o show inteiro sem aparecer, só apareceu no final para os
agradecimentos”. (Joyce Moreno, 2015).
Seu terceiro disco, foi lançado somente após seis anos, e Joyce Moreno
aponta como um disco estranho, evidências das experiências e das coisas que
Sidney ouviu durante esse período. Na sua opinião traz elementos de sonoridades
que talvez sejam fruto da audição dos trabalhos do Milton Nascimento e do Clube da
Esquina, não relacionando propriamente à poética. Com arranjadores como Toninho
Horta que vinha realizando
trabalhos com importantes
expressões da MPB, como Elis
Regina, o próprio Milton
Nascimento e o Clube da
Esquina, com Caetano, Tom
Jobim entre outros(as)
cantores(as). Além de Toninho
Horta também buscou como
arranjador o Maurício Maestro,
que fez importantes trabalhos
com o Boca Livre. Então o LP
“Línguas de fogo” de Sidney
Miller gravado pela Som Livre
tem a forte presença das guitarras, com sonoridades bem diferentes das presentes
nos outros dois LP’s.

144
A capa do disco também apresenta um Sidney totalmente diferente das
representações contidas nos LP’s anteriores. Nesses seis anos, o compositor esteve
envolto com outros trabalhos, como a produção musical de peças de teatro ao lado
do diretor Paulo Afonso Grisolli. O fato é que o LP “Línguas de fogo” apresenta um
artista bastante diferente do ponto vista estético e musical. A fotografia da capa traz
Sidney em meio a uma paisagem de morros e vegetações, sua aparência em nada
dialoga com as apresentadas nos discos anteriores, com os cabelos compridos,
calça boca de sino e tom contemplativo é como se um novo artista estivesse sendo
apresentado ao público, destoante do Sidney que, segundo Joyce, sempre se
apresentou de forma conservadora, vestido praticamente como um “senhor”, apesar
de ser bastante jovem. “(...) Ali parece que ele queria tirar o atraso de uma coisa que
ele ainda não tinha vivido né... (Joyce Moreno, 2015).
Apesar de toda “renovação” estética e a busca de outras sonoridades, numa
linha que pode ser chamada de “mais progressista”, a poética é recorrente e
perfeitamente relacionada ao tom melancólico de antes, mesmo que em alguns
momentos haja rupturas e esboços de um ar de possibilidades de “sonhos”.
Paralelamente à produção de seu último LP, Sidney Miller trabalhou no
departamento de Projetos Especiais da Funarte no Rio de Janeiro, como diretor
artístico da sala FUNARTE, tendo uma atuação importante como produtor e agitador
cultural. Sérgio Ricardo disse, em seu depoimento, que nesse espaço Sidney
acabou por se tornar um “operário” e que boa parte de seu entristecimento parte
também dessa realidade. É importante ressaltar que durante o período em que atou
na sala Funarte Sidney se empenhou arduamente, produzindo espetáculos e
possibilitando a expressão de muitos artistas. Atuava nesse espaço quando faleceu
em 16 de julho de 1980.

“Ele é um cara que vivia a época dele, mas que sempre olhava
um pouco mais pra frente. Ele passa uma imagem, sempre
passou uma imagem de um cara tímido, sério, pelo contrário,
era um cara gozador, cara brincalhão, um cara sério quando
devia ser, enfim um amigão, gente finíssima.” (Augusto
Pinheiro, 2015 – Documento FUNARTE – Sidney Miller)23

Augusto Pinheiro, amigo íntimo de Sidney Miller nos apresenta o homem por
trás da pintura do artista. Breve foi sua permanência na vida, mas sua obra é intensa
23
https://www.youtube.com/watch?v=BIiuDjv6YLc
145
e do ponto de vista da poética nos permite a aproximação de sua essência, das
questões que lhe chamavam atenção e da ausência de necessidade de se prender a
um determinado estilo, transitando entre marchas, cantigas, toadas, sambas e
outras elaborações das formas musicais brasileiras.

146
3.1 Quarteto Novo: Entre improvisos e desafios

O contato com cada músico que fez parte do Quarteto Novo me trouxe uma
dimensão da musicalidade e de seus múltiplos significados. A aproximação e o
conhecimento sobre suas trajetórias atribuíram sensações e percepções a respeito
de cada música que compõe o repertório do único disco lançado em 1967 pela
ODEON. Um olhar que buscou nas entranhas dessa produção as emoções
comunicadas por meio de cada música e suas elaborações e processos criativos.
Não por acaso, essa obra é considerada um marco da música instrumental
brasileira, pois sua construção é fruto de um projeto que envolveu a dedicação
quase que exclusiva de quatro dos melhores músicos brasileiros: Airto Moreira,
Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte e Theo de Barros, apoiados e financiados por
Geraldo Vandré, que mais que um mecenas, foi também um participante ativo como
compositor em parcerias com Hermeto em “O ôvo” e “Canto Geral” e com Airto em
“Misturada”. Idealizador dessa junção e das formas musicais elaboradas em
conjunto, o disco traz ainda músicas que compôs sozinho como “Fica mal com Deus”
e “Canta Maria”, apresentadas com novos arranjos e improvisos diferentes dos
originários.
Heraldo do Monte é compositor de “Síntese” e Theo de Barros de “Santana”,
além das composições feitas pelo Quarteto Novo juntamente com Vandré o disco
contém “Algodão” de Luiz Gonzaga e Zé Dantas.
Ao todo são oito músicas tocadas ao violão e contrabaixo (Theo de Barros),
viola e guitarra (Heraldo do Monte), flauta e piano (Hermeto Pascoal) e precursão e
bateria (Airto Moreira).
A cultura musical presente nessa obra nos remete às sonoridades advindas
de diferentes lugares do país, pela natureza dos pertencimentos e das origens dos
músicos e suas experiências, sendo assim houve a produção de uma sonoridade
que combinou os sentimentos mais profundos de cada um e a memória musical de
suas infâncias e juventude com o domínio técnico adquirido ao longo da vida por
meio dos estudos teóricos, mas preservando os sentimentos e a intuição.
Já relatei que o grupo surge inicialmente como Trio Novo, sem a participação
de Hermeto Pascoal, por uma postura discriminatória do produtor Lívio Rangan da
Rhodia. Como afirmou Airto, “Hermeto e Heraldo” eram o coração do quarteto,
justamente pela riqueza musical, pelas emoções, criatividades e suas experiências
147
como músicos nordestinos. Em sua entrevista, Hermeto descreve o significado
dessa parceria e das elaborações e processos criativos, afirmando que inicialmente
tinha mais contato com Airto Moreira, pelos trabalhos que haviam realizado nas
boates, “pra dar canjas”. O Airto na bateria e o Hermeto no piano, afirmou que
tocavam livremente “moderno como eles queriam”, ressaltando que muitas vezes os
donos da boate os mandavam pararem de tocar, justamente por fugirem dos
padrões impostos naquele momento. Hermeto relatou que essa era uma avaliação
dos donos das casas, mas que a plateia apreciava as formas apresentadas. Isso
gerava certo conflito, visto que os músicos questionavam a autoridade dos “donos
das casas” e se autoafirmavam como artistas, o que levava a rompimento dos
contratos de trabalho.
Pela harmonia dos dois músicos e a apreciação de Airto pela forma como
Hermeto tocava, num momento em que o Trio Novo já acompanhava Geraldo
Vandré em “Disparada”, Airto indicou Hermeto para compor o quarteto. Vandré se
interessou pela integração de Hermeto, o que levou ao surgimento do Quarteto
Novo. Heraldo do Monte também já o conhecia da época dos trabalhos em Recife,
havendo aprovação por parte do Theo de Barros a proposta foi aceita por todos os
membros.
Com a entrada de Hermeto Pascoal estava constituído o Quarteto Novo. Os
músicos passaram a ensaiar constantemente em São Paulo, juntamente com
Geraldo Vandré. Porém, o grupo não se limitou ao acompanhamento de Vandré em
suas canções e os músicos aproveitaram aquela formação com intuito de fazer o
disco, considerado por Hermeto como um disco antológico.
Para ensaiar as músicas do Quarteto Novo, Hermeto ressalta que o clima era
bastante amistoso, havendo brincadeiras, mas que sempre manteve a seriedade
frente aos arranjos e que as produções eram muito dialogadas, havendo um
empenho muito grande por parte de todos em tocar, buscar alinhamentos, num
processo muito discutido e refletido com a participação ativa de todos. Como a
maioria mantinha os trabalhos noturnos, ressalta que havia atrasos no início dos
ensaios e que muitas vezes precisavam estudar juntos, o que em sua opinião
deveria ser estudado antes.
Comenta, por exemplo o arranjo da música “Algodão” de Luiz Gonzaga e Zé
Dantas. Nesse período ensaiavam na boate de Roberto Luna, na Rua Augusta, que

148
gentilmente havia cedido o espaço. Hermeto comentou que num dia em que a
“turma” se atrasou ele foi realizando os estudos sobre a música, “bolando os
arranjos”.
“Bate a enxada no chão... é “Algodão (cantando)”. Aí
quando a turma chegou, a turma tinha ficado no bar tomando
café (...) Quando eles chegaram do bar, eu já tava com o
negócio praticamente pronto, só precisava eu ir passando pra
cada um (...) Nada de escrever partitura, era tudo no ouvido. Eu
me lembro que tinha uma frase que eu fiz pro Heraldo e o
Heraldo era difícil de entender o sentido da frase e aí eu fazia
assim: Pararararoró, pararararará (cantarolando), você conta
dois assim, um, dois pararararoró, pararararará (...) Aí o
Heraldo tava sentindo o inverso, tararararóro, tórarararoró (...)
Ele sentia como se fosse o contrário e gente ria, a gente ria...”
(Hermeto Pascoal, 2015)

É interessante perceber como os arranjos foram feitos a partir de uma


canção, ou seja, a busca de transpor para a música os sentidos contidos na letra,
tanto é que na memória de Hermeto o seu estudo parte dos versos iniciais da
canção de Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Dessa forma os sentimentos são traduzidos
não somente pelo estudo e novos arranjos da melodia, mas cada frase musical tem
como parâmetro o conteúdo comunicado pela letra. Dentro dessa lógica a partitura
se tornava dispensável, o ato de fazer tudo “de ouvido” evidencia um processo
criativo onde as sensações e emoções comunicadas são preponderantes em
relação às técnicas.
A frase que Hermeto arranjou para que Heraldo tocasse na viola chama
também atenção pela forma como comunica a sonoridade, demarcando o tempo, o
ritmo e a melodia por meio da oralidade, num processo de verbalização musical das
construções que viriam a fazer parte da música apresentada no disco. Tudo feito,
segundo Hermeto, de forma descontraída, ressaltando que respeitar a música não
significa manter o aspecto sisudo, com isso podemos perceber que a genialidade
contida nesses músicos se relaciona as suas personalidades e às formas como
sentem cada elemento musical de um jeito espontâneo e natural.
Compreender como funciona a cabeça desses músicos é sem dúvida um
grande desafio, visto que relatam em diferentes momentos que não conseguem
separar a vida da música, sendo assim ao ouvir ou produzir as sonoridades, seus
processos mentais produzem e comunicam leituras musicais que para quem não

149
domina ou não possui essa sensibilidade é difícil entender todo esse
processamento.
A produção do LP do Quarteto novo e todas as relações em torno dele foi
uma experiência tão profunda que todos os músicos relatam que suas obras
posteriores têm grande influência dessa produção. Hermeto enfatizou que o que faz
até hoje tem muito da cultura musical vivenciada no Quarteto Novo e com tudo que
tocou ao longo da vida, desde a época em que tocava para os passarinhos: “eu
tenho assim na minha mente que é um apanhado que eu faço desde os
passarinhos, é o que eu falo, que na terra a gente vai subindo o degrau, e aquela
escada dá a volta e você sobe de novo”. (Hermeto Pascoal, 2015).
Theo de Barros afirmou que a experiência com o Quarteto Novo foi a melhor
experiência musical que teve ao longo da vida, sendo um momento de grande
aprendizado e de intensificação de sua sensibilidade como músico. Que o convívio e
as trocas realizadas com Hermeto que é de Alagoas, com Heraldo de Pernambuco e
com Airto do Sul, proporcionaram uma junção de musicalidades que remetiam ao
que ouviam desde crianças, coisas que seus pais cantavam, músicas que tocaram
ao longo da carreira, tudo isso com um aprofundamento intencional das “raízes
brasileiras”, destacando que isso foi a coisa mais importante que fizeram como
quarteto: “então não tinha fronteiras, nós fomos pegando tudo, cada manifestação
musical que fosse tipicamente brasileira e desenvolvendo um tipo de improviso que
não fosse jazzístico, que fosse brasileiro, com sonoridade brasileira.” (Theo de
Barros, 2015).
Durante o curto período em que esses músicos ficaram juntos, receberam
grande notoriedade, chegando a ganhar o prêmio de melhor conjunto musical do
Brasil e mais o Troféu Imprensa por duas vezes, além da evidência promovida pelo
programa “Disparada” na TV Record que realizavam juntamente com Vandré, após a
explosão da música no festival de 1966. Sendo assim a aceitação da produção do
disco por parte da gravadora se deu de forma tranquila e positiva, segundo Theo de
Barros. Pouco conhecido há também uma gravação de um compacto pela mesma
gravadora, realizada em 1967, com as músicas “Ponteio” de Edu Lobo e “O
cantador” de Dorival Caymmi, levando-se em consideração a participação do
Quarteto Novo no acompanhamento das interpretações de Edu Lobo e Elis Regina.

150
É interessante observar a forma como Vandré atuou nessa produção, como
ressaltei anteriormente, não somente por meio do financiamento, mas integrando e
intervindo nos arranjos e composições. O desafio lançado por ele era justamente o
que Theo de Barros relatou, a busca de uma sonoridade brasileira que se
distanciasse das influências do Jazz. Em sua entrevista, Airto Moreira diz que
achava engraçada a forma como Vandré direcionava o trabalho dos músicos e sua
capacidade de sentir e comunicar seus anseios mesmo sem ter uma formação
musical do ponto de vista formal, mas que era dotado de uma energia que
contagiava e impulsionava os processos criativos. Suas intervenções contribuíam
para a construção da musicalidade do Quarteto Novo, de forma intuitiva e criativa,
indicando as sonoridades que julgava necessárias para o projeto, quando os
músicos tocavam algo que julgavam “mais moderno” eram advertidos por Vandré
que reiterava a necessidade da musicalidade brasileira em suas origens.
A reelaboração da música “Algodão” chama atenção pela forma como a
introdução é feita num ritmo mais lento, atingindo uma pausa e depois retomando de
forma mais acelerada. Com a evolução da música os tempos vão se alternando até
chegar ao ápice com a demarcação da percussão que simula sons de chicotes a
partir da queixada de burro. Na sequência o som do triângulo, tocado por Airto, de
forma isolada e acompanhado aos poucos pelos sons da flauta de Hermeto,
retomando a viola de Heraldo e o violão de Theo de barros. Ao término o som da
percussão, juntamente com o contrabaixo vai sendo aos poucos acompanhado
pelos demais instrumentos. Uma criação que se difere das formas originais da
música, sobretudo pelos instrumentos e arranjos, mas que nos permite sentir a
pulsação comunicada por sua versão inicial.
Com todos os recursos e instrumentação que podem ser considerados mais
sofisticados, a sonoridade sertaneja e as fortes marcas do baião são preservadas.
Esse era justamente o desafio lançado por Vandré, promover aprofundamentos
musicais a partir das bases, sem perder a essência e a comunicação das realidades
comunicadas.
A musicalidade presente no nordeste brasileiro é bastante plural, sendo
necessário ressaltar que as músicas elaboradas pelo Quarteto Novo não
contemplam todas as expressões musicais nordestinas, possuindo ligações mais
fortes com o baião, com cantorias de repentistas e em menor proporção com o

151
samba, tendo em vista as próprias referências musicais relacionadas às origens e
aos estudos realizados pelos músicos e pelo próprio Vandré.
A percepção dessas sonoridades nas músicas que não possuem letras, ou
seja, nas que não se caracterizam como canções, também é marcante. Como
ressaltei ao longo dessa pesquisa, a música, enquanto linguagem gera
comunicação, não somente pelo estilo adotado, mas pelas construções de
representatividades de elementos sonoros ligados às culturas e aos modos de vida.
Essa é uma característica marcante das músicas apresentadas no disco, como
podemos notar em “Síntese” de Heraldo do Monte e em “Misturada” atribuída a Airto
Moreira e Vandré, cuja conotação se aproxima mais do samba, talvez pela forte
presença da percussão desenvolvida por Airto.
A proposta lançada pelo Quarteto Novo, juntamente com Vandré foi atingida,
houve uma construção musical com fortes referências de formas musicais
brasileiras, com um distanciamento do jazz que vinha se tornando cada vez mais
presente na música instrumental brasileira. A audição das oito músicas que
compõem o LP nos proporciona a percepção de improvisos diferenciados, dentro da
diversidade dos instrumentos que nos remetem à cultura musical brasileira.
Como relatei anteriormente, com o exílio de Geraldo Vandré, o grupo não
prosseguiu unido por muito tempo. O primeiro a sair foi Airto e mesmo com a entrada
de Nenê substituindo-o, as circunstâncias eram outras e as dificuldades financeiras
acabaram levando cada músico a percorrer outras trajetórias. Há consenso nos
relatos de todos a respeito da importância e do significado dessa experiência e nas
influências no que produziram posteriormente.
Airto Moreira partiu para os Estados Unidos, onde encontrou sua namorada
Flora Purin, com o propósito maior de continuar fazendo música e poder viver por
meio dessa. Seu caminho não foi fácil, passou por adversidades, teve dificuldades
de comunicação, tendo em vista que não dominava a língua inglesa, mas aos
poucos conseguiu se enfronhar nos meios musicais e atingir a projeção que
conhecemos hoje.
Em Nova Iorque tocou com influentes músicos do Jazz, tais como Walter
Booker, Cannonball Adderley, Freddie Hubbard, Ron Carter, Lee Morgan, Paul
Desmond e Joe Zawinul, sendo esse último que o recomendou a Miles Davis,
culminando na gravação de "Bitches Brew" em 1970. Tocar numa banda juntamente

152
com Miles Davis, foi de fato uma experiência marcante, não apenas do ponto de
vista da evidência e dos interesses comerciais, mas da construção de uma
musicalidade que pode ser considerada precursora do Jazz Fusion, sem dúvida
alguma foi um grande aprendizado. Como Airto deixou a banda e o
acompanhamento de Miles Davis é ainda algo não comentado, porém o tempo em
que permaneceu o acompanhando e tocando “seus instrumentos desconhecidos” foi
valorizado pelo trompetista, cuja personalidade era de poucas palavras e sem
grandes demonstrações de aprovação, mas se não houvesse valor agregado às
sonoridades desejadas Airto seria dispensado nos primeiros episódios.

“Após sua passagem por Miles, Airto foi convidado a formar o


Weather Report original, um grupo com Wayne Shorter, Joe
Zawinul, Miroslav Vitous e Alphonse Mouzon, com quem
gravou "The Weather Report". Logo depois, ele se juntou à
banda original de Chick Corea, "Return to Forever", com Flora
Purim, Joe Farrell e Stanley Clarke, e gravaram os álbuns
"Return to Forever" e "Light as a Feather", em turnê pelo
mundo todo.” (http://www.airto.com/bio.htm, 2018)

O fato é que Airto tornou-se um dos maiores nomes da percussão nos meios
musicais em diferentes lugares do mundo, sobretudo na Europa e nos Estados
Unidos. Sua participação na banda Weather Report é marcante, na gravação ao vivo
é possível verificar a explosão provocada na plateia nos solos que realiza, voz e
instrumentos se combinam numa musicalidade onde raízes se evidenciam,
remetendo às sonoridades africanas dentro do gênero musical estadunidense
intitulado jazz fusion.
Aqui no Brasil, ao lado de Naná Vasconcelos, é sem dúvida, uma das grandes
expressões musicais dentro dessa instrumentalização, infelizmente pouco
conhecidos e valorizados pelo grande público. Airto gravou vários discos solos e
também juntamente com Flora Purim, todos fora do Brasil.
Hermeto Pascoal permanece ativo em suas atividades artísticas é, também,
conhecido internacionalmente. Suas características são marcantes, músico de
múltiplos instrumentos, participou de várias formações grupais. Em 1969 a convite
de Flora Purin e Airto Moreira foi para os Estados Unidos, onde participou da
gravação de dois discos com eles. Conheceu também Miles Davis, com quem

153
gravou duas músicas como compositor e arranjador: Nem Um Talvez e Igrejinha. Na
gravação original de Miles Davis não aparece o nome de Hermeto como compositor
e arranjador, isso gerou uma certa polêmica na época, mas Hermeto afirma que não
encarou como uma maldade e sim como um erro fruto dos trâmites das gravações e
processos burocráticos. Sua preocupação maior é com a música e com as
experiências propiciadas pelo encontro e pelos espetáculos apresentados. Tanto é
que ressalta na entrevista dada à TVE Bahia, que na segunda edição do disco,
quando Miles já havia falecido, o erro foi corrigido.24
Ao retornar para o Brasil, em 1973 gravou seu disco A Música Livre de
Hermeto Pascoal, pela gravadora Warner Music Group, acompanhado pelo seu
primeiro grupo formado por Anunciação (percussão e bateria), Nenê (bateria e
piano), Alberto (contrabaixo), Mazinho (sax alto, sax tenor), Hamleto (sax tenor e
flauta), Bola (sax tenor e flauta). A capa do disco traz a imagem de Hermeto tocando
seu instrumento, com um foco de luz intensa ressaltado seus cabelos, pelo e a
roupa que usa em tons dourados, esses elementos se alinham à construção musical
presente no disco pelas vibrações
e energias emanadas. O título
ressalta o pensamento do músico
a respeito da música que
necessita de liberdade para fluir,
sem rótulos e sem prisões. Esse
disco reúne composições que
fizera ao longo da vida e músicas
de outros compositores
brasileiros, como a primeira faixa
Bebe de Hermeto, que sem pausa
se mistura a Carinhoso de
Pixinguinha.
A musicalidade e as misturas de sonoridades não comuns, tais como os sons
de animais que se harmonizam aos dos instrumentos são demonstrativos da
genialidade de Hermeto. O resultado é um conjunto de músicas pulsantes que nos
transmitem vibrações sensoriais, com uma profundidade só possibilitada pelo

24
https://youtu.be/vpZo_ed77tY
154
profissionalismo dos músicos imersos numa gama imensa de sentimentos e
emoções. É assim que Hermeto define suas criações, nada está separado da vida,
dos sentidos e sensações vivenciados nos momentos de criação e de execução das
obras.
O disco, que conta ainda com Asa Branca de Luiz Gonzaga, é finalizado com
um “bate papo” entre os membros do grupo, após a faixa que traz a canção O gaio
da roseira. Ao ouvi-los me surge a sensação de que há o encerramento de uma
grande festa, com brincadeiras e improvisos de voz que alternam o volume, até
chegar ao diálogo final, onde Hermeto brinca com a sonoridade das próprias
palavras e pronto.
Práticas como essas reúnem as sensibilidades e as técnicas, o domínio sobre
o instrumento e a voz. Há uma fusão entre corpos e instrumentos que nos remetem
a culturas não ocidentais, ainda que essas se misturem. A obra de Hermeto Pascoal
é vasta, gravou vários discos e até hoje realiza shows dentro e fora do Brasil. Sua
vivacidade e a energia emanada para o público e porque não dizer, do público para
ele e os músicos que o acompanham, demonstram o poder da música e de quem a
sente de forma profunda, gerando expressões e sensações plurais.
Com a gravação do álbum Slaves Mass (Missa dos Escravos), em 1977 nos
Estados Unidos, com apoio e participação de Flora e Airto, ganhou uma maior
projeção internacional. O disco, cujo título é bastante simbólico, remetendo à
resistência diante da escravização negra, é iniciado com uma demarcação forte da
percussão na música "Mixing pot" ("Tacho"), a segunda faixa Slaves Mass (Missa
dos Escravos), da qual o disco é homônimo, traz novamente sons de animais e a
demarcação de instrumentos de percussão, seguida por um coro de vozes
masculinas e femininas, que nos momentos finais da música criam certa
dissonância, tendo em vista que o ritmo vai se tornando mais lento e as vozes mais
aguçadas. Esse é também considerado um dos grandes discos de Hermeto, sendo
importante ressaltar que mesmo gravando nos Estados Unidos e dentro de uma
forma jazzística, havendo uma fusão de gêneros, sua essência é perceptível nos
arranjos e escolhas dos sons, assim como das temáticas.
Heraldo do Monte relatou que também recebeu o convite de Airto Moreira
para ir aos Estados Unidos para fazer parte de um grupo de Jazz, porém o mesmo
recusou, sobretudo por não querer se distanciar da esposa e dos(as) filhos(as).

155
Além disso, no início dos anos 1970 conseguiu um emprego na Orquestra da TV
Tupi de São Paulo, onde permaneceu durante sete anos, atando como guitarrista no
programa Clube dos Artistas. Essa oportunidade lhe garantiu certa estabilidade e a
possibilidade de seguir sua carreira musical, paralelamente realiza suas
composições e participou do disco lançado em 1976 pelo Zimbo Trio gravado pela
RGE, com o qual realizou parcerias posteriores.
Ao sair do programa da TV Tupi, deu continuidade ao seu trabalho,
participando de gravações diversas, nem sempre vinculadas ao que gostava de
tocar, visto que necessitava garantir sua sobrevivência e de sua família. Dentro
desse período produziu músicas
que culminaram na gravação do
disco Heraldo do Monte em 1980
pela gravadora Eldorado. A capa
do disco é emblemática, a imagem
central de Heraldo com uma
abertura do peito por onde se pode
ver seus órgãos entrelaçados a
uma guitarra é representativa dos
sentimentos que o músico teve e
tem com a música, algo visceral,
as cordas embrenhadas ao seu
estômago, seguem em direção ao
seu coração onde se misturam às artérias. Uma imagem forte, com tons de vermelho
na parte superior, com destaque para seu rosto de semblante tímido e calmo.
Considero essa uma das capas mais significativas para uma análise do significado
da música em sua vida. Na última conversa que tivemos em outubro de 2018, sua
esposa Lourdes reforçou esse significado nos contando sobre suas experiências e
rotinas ao longo de um casamento de 60 anos.
Segundo Lourdes, Heraldo viveu e vive a música intensamente, passando
horas estudando, noites acordado, experimentando e criando. Essa relação é tão
forte que ela comentou que ele chegou a sonhar com uma composição e que na
manhã seguinte acordou e escreveu a música. A profundidade dessas experiências
tem como resultado a obra que nos é apresentada, seja por meio dos discos ou das

156
apresentações ao vivo. A imagem da capa dentro das minhas concepções traduz
esse universo da particularidade do artista e também daquilo que evidencia.
A primeira faixa do disco apresenta “Forrozin”, composição de Heraldo, numa
fusão de elementos do baião e improvisos dentro de uma linguagem brasileira,
possuem características dos improvisos realizados pelo Quarteto Novo. A segunda
faixa, Lamentos de Pixinguinha e Vinícius de Moraes, um chorinho, gênero ao qual
Heraldo dedicou grande parte de suas futuras apresentações e composições. O
disco apresenta uma gama de formas e culturas musicais que demonstram a
versatilidade e o conhecimento musical de Heraldo.
Evidencio dentre as músicas que não são de sua composição a Pau de Arara
canção de Guio de Morais e Luiz Gonzaga, pelas fortes características da música do
sertão e também pelos arranjos e improvisos. Caso que verídico em Chuva Morna,
composição de Heraldo, numa pegada mais voltada para o frevo, demonstrativa da
liberdade de criação e do distanciamento de moldes ou prisões a determinados
gêneros. A música tem uma introdução falada:

“Chuva morna é uma água abençoada que cai em fevereiro


É quando o pernambucano, ali pela Rua Nova e pela Dantas Barreto
Lava sua alma brincando de liberdade, oxente!
A danadinha não dá resfriado porque enxuga no corpo antes de esfriar”

Essa memória das ruas e avenidas de Recife, dos detalhes só possíveis de


serem contados por quem vivenciou essa cultura, nos aproxima da compreensão do
universo de um músico que estudou arduamente e atingiu um domínio da técnica de
alto grau, mas que ao mesmo tempo não se distanciou das suas origens, das
simbologias e cotidianidades do lugar onde nasceu. É nesse ponto em que formas
diferentes de conhecimentos se aliam, aqueles advindos dos estudos com os
provenientes das vivências e sensibilidades, sem hierarquias, sem um planejamento,
apenas fluem.
No ano início da década de 1980, Heraldo participou da formação do Grupo
instrumental Medusa, tocando guitarra, bandolim e violão ao lado de Amilson Godoy
(piano), Cláudio Bertrami (baixo) e Chico Medori (bateria e percussão). Culminando
na gravação do LP homônimo “Medusa” em 1981, pela Editora e Produtora
Fonográfica Som da Gente. Heraldo relata que os músicos foram iniciando contatos
pelas participações que tinham em função de trabalhos em gravações de outros
157
grupos, que a maioria das vezes não eram gêneros e estilos que gostavam, pela
proximidade e pela insatisfação de tocar dessa forma tiveram a ideia se unirem em
alguns momentos e trabalharem as musicalidades com as quais se identificavam. No
encarte do disco há um texto de apresentação assinado por Hermeto Pascoal,
assinalando as qualidades musicais do grupo, pela criatividade rítmica, melódica e
harmônica, destacando ainda a constituição do grupo por excelentes músicos.
Há ainda um texto assinado pelo Grupo Medusa:

“Existe um conflito básico em quem nasce em um país


colonizado culturalmente; a gente não se ouve mais, a memória
se apaga, as coisas de fora nos são impostas e acabam sendo
consumidas como autênticas. O Grupo Medusa é resultado
desse conflito. O colonizado pode até aprender com o
colonizador, mas não pode jamais deixar de pensar com sua
própria cabeça. Nosso trabalho tem uma proposta musical sem
preconceitos ou barreiras, cujo objetivo maior é conseguir uma
fusão musical sem perder o vínculo com as nossas raízes. As
diferentes origens, o universo de informações, a vivência, as
experiências anteriores, os espaços conquistados por cada um
dos componentes do Grupo, fez com que acontecesse uma
integração tamanha, que viramos um.
Um grupo de música instrumental brasileira.”

O texto, assinado pelo grupo, reforça a ideia de unicidade e fusão, algo


totalmente coerente com a proposta de “juntar”, respeitando as trajetórias, as
diferenças, mas buscando confluências. O “conflito” ressaltado vem ao encontro do
que tenho refletido por meio dessa pesquisa, sobre as especificidades das relações
da música com uma sociedade fundamentada por uma “herança colonial” e
“escravagista”, onde as expressões provenientes das pessoas pobres são, na
maioria das vezes, folclorizadas e tratadas como inferiores. Obviamente não se trata
de pensar o pertencimento social de cada membro, do ponto de vista de suas
origens ou “classes sociais”, mas de evidenciar que a busca de aprofundamento a
partir de formas musicais populares, da liberdade de criação e a consciência de que
essa liberdade se constituiu como uma ruptura com moldes e rótulos pré-
estabelecidos.
As relações entre “colonizados” e “colonizadores” é questionada em sua
hierarquização, não havendo nisso o que muitas vezes foi chamado de
“nacionalismo”, mas uma sensibilidade em perceber que a música é livre e que as

158
culturas são diferentes, podendo haver encontros, trocas, sem que se submeta ou
se sobreponha.
Conflitos, muitas vezes, gerados não pelos músicos, mas pelas relações de
mercantilização que exigem a exploração de um “produto” específico até a sua
exaustão. Nesse sentido, o Grupo Medusa, assim como outros dos quais Heraldo do
Monte participou, representam uma resistência, cujos resultados são obras de alta
qualidade, com todo o refinamento fruto do profissionalismo dos músicos sem que
percam suas essências e raízes. Nesse sentido, “pensar com sua própria cabeça” é
o fator diferencial e, porque não dizer, o maior valor das músicas instrumentais
brasileiras apresentadas.
Em 1982, Heraldo do Monte participou da gravação do ábum duplo
ConSertão pela Kuarup Discos, juntamente com Elomar (voz), Arthur Moreira Lima
(piano e cravo) e Paulo Moura (sax e flauta). Um mergulho nas formas musicais
brasileiras, com canções Elomar, Luiz Gonzaga, Villa Lobos, Codó, Francisco
Mignone, Severino Araújo e Waldir Azevedo, com arranjos extremamente
elaborados.
As temáticas nos remetem às
culturas nordestinas, com uma
riqueza de detalhes das
expressões culturais e
simbologias perceptíveis entre
os grupos populares, suas
crenças e festividades. Na
contra capa, Arthur Moreira
Lima, produtor do disco,
escreveu um texto de
apresentação e objetivos da
obra, salientando que o
propósito era mostrar ao público
as práticas dos instrumentalistas brasileiros e sua capacidade de realizar arranjos e
improvisos: “bordar, enfeitar, tecendo tramas e enredos musicais sobre temas muito
ou pouco conhecidos, mas de valor musical incontestável”.

159
Para tanto, a liberdade de improvisação foi vencendo os receios, segundo o
músico, de forma natural, com um profundo entrosamento entre as linguagens
sonoras dos companheiros, com trocas de experiências e ideias. Dessa forma, o
repertório e as criações foram dialogadas, respeitando as individualidades de cada
membro do grupo, pautados pelo que chama de “fronteiras do bom gosto”, essa
construção coletiva talvez nos ajuda a entender a inserção de duas músicas de Villa
Lobos (Festa no Sertão e Valsa da dor). O resultado é o álbum duplo, por meio do
qual podemos perceber as influências das trajetórias e pertencimentos de cada
artista, lembrando que a gravação foi feita com a acústica natural da Sala Cecília
Meireles no Rio de Janeiro.
Segundo Heraldo do Monte, que atuou com viola e violão, esse álbum duplo
gerou uma série de apresentações pelo Brasil, chegaram a ir também pra Cuba.
Contou-me que foi sem Elomar, que se recusou a visitar um país ateu. Brinca com
essa situação, mas destaca que foi uma ação importante para o grupo constituído.
Esse é um trabalho importante na memória do músico, destacado como uma
parceria que rendeu muitos frutos e onde as sonoridades nordestinas foram
valorizadas.
Durante a década de 1980, Heraldo continuou compondo e gravando Lp’s
solos, como Cordas Vivas (1983), com a participação de Hermeto Pascoal e Cordas
Mágicas (1986). Afirma que dentro dos vários gêneros e estilos que tocou ao longo
da vida, o que despertou seu olhar para a música nordestina foi a experiência com o
Quarteto Novo, que as marcas dessas expressões estão presentes em sua essência
e consequentemente em sua obra.
Fiz-lhe uma questão que sempre me é feita: Esse posicionamento, de busca
pelas formas musicais brasileiras, pode ser considerado “nacionalismo”? A resposta
veio como uma lâmina que corta as verdades estabelecidas por quem analisa a
música de um ponto de vista sociológico ou historiográfico de forma racionalizada.
Sorrindo ele cita Leon Tolstoi: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua
aldeia” e emenda: “A gente faz essas coisas sem uma prisão política na cabeça, a
gente vai fazendo só, não tem isso, a gente não obedece (...) sempre as pessoas de
fora... é o negócio do rótulo né e rótulo em arte já é um negócio estranho... Eles
rotulam e a gente tá livre”.

160
Esse pensamento se refere aos trabalhos que realizou posteriormente a sua
participação no Quarteto Novo, que obviamente tinha um projeto anunciado e um
objetivo a ser alcançado dentro de uma conjuntura que nos possibilita analisar seu
conteúdo, ainda, sem cair nos rótulos pré-estabelecidos. Mas, Heraldo fala das
sonoridades que, a partir dessa experiência, passaram a integrar sua forma de da
fazer música, de senti-la e de traduzi-la por meio de suas emoções e técnicas.
Segundo o músico, não há prisão política na criação, essa expressão não
circunscreve a música como algo não relacionada à política, visto que compartilho
do pensamento de Vandré quando diz que “Arte é um ato político”, mas num sentido
muito mais profundo expressar, comunicar aquilo que está dentro de cada artista,
sem partir de referências externas e dicotômicas. Obviamente cada pessoa vivencia
a realidade de um lugar diferente, tecendo teias diferentes, nem sempre tão
enquadrada ou alinhada com os posicionamentos atribuídos por quem às recepciona
ou analisa.
Existe uma complexidade nessas expressões que me impedem de tentar
atribuir-lhes os rótulos de “nacional-popular”, “folclore” ou até mesmo “nacionalistas”.
As sinto como um diálogo profundo com as formas musicais brasileiras, como quem
talha uma escultura na madeira, como muitos sertanejos a fizeram, mas com
recursos e ferramentas diferenciadas, que proporcionam cortes e modelagens
diferentes, nem melhores e nem piores, simplesmente diferentes, com estéticas que
passam a ser apreciadas em seus detalhes, re-criações, e refinamentos.
Esse é um traço que aparece nos relatos de todos os músicos que
participaram do Quarteto Novo. As construções de suas musicalidades, mesmo em
suas diferentes abordagens, são permeadas pelas formas musicais brasileiras,
sobretudo as de origens nordestinas e de sonoridades afro brasileiras. A obra de
Theo de Barros, por exemplo, na sua trajetória solo também evidencia culturas e
expressões que não vivenciou no início de sua carreira, mas que por meio de
estudos e direcionamento de seu olhar foram sendo assimiladas na sua constituição
como homem e, consequentemente como músico.
De personalidade bastante tímida e introspectiva, Theo relata que o trabalho
com o Quarteto Novo foi a melhor experiência que teve ao longo de sua carreira, no
sentido de ampliação dos conhecimentos sobre culturas musicais que não tinha
atentado com tanta intensidade. Como afirmei antes, Theo cresceu em meio aos

161
estímulos musicais de sua família e conviveu com importantes nomes da insurgente
bossa nova, sendo suas primeiras composições inspiradas por essa. Afirma que
talvez pudesse ter usufruído mais do sucesso, após a gravação de “Menino das
laranjas” por Vandré e por Elis, mas que seu jeito “quieto demais pra ser artista” o
levou a ficar meio que “escondido”. Mesmo participando de shows e realizando
gravações em estúdio para outros artistas, afirma que: “apesar de não querer
aparecer, no meio era conhecido, era respeitado, então aproveitei dessa maneira
indireta, eu jamais me esforcei pra ser uma estrela”.
O mesmo ocorreu em relação a sua composição juntamente com Vandré de
“Disparada”, aumentando suas participações em shows e convites para gravações.
O importante é que respeitou sua personalidade e continuou compondo, mesmo
com o término do Quarteto Novo, o qual manifestou como “decepcionante” visto que
tinham projetos de continuidade. Diz que sempre foi sensível às questões sociais e
que as injustiças sempre o incomodaram, suas músicas e canções expressam esses
sentimentos e mesmo “não participando de nenhuma facção” se colocou da forma
como compreendia possível, por meio da linguagem musical. Já havia participado
em 1967 do Musical Arena Conta Tiradentes, de Augusto Boal (1931-2009) e
Gianfranceso Guarnieri (1934-2006), atuando como diretor musical, havendo
também canções de
Sidney Miller, com quem
conviveu por um tempo.
Em 1970 compôs as
canções do musical Arena
Conta Bolivar de Augusto
Boal, que foi proibido no
Brasil, sendo apresentado,
segundo Theo, no México,
nos Estados Unidos e no
Peru.
Theo continuou
compondo durante a década de 1970 e participando de gravações em discos de
outros artistas, somente em 1979 lançou seu primeiro LP pela gravadora Eldorado,

162
da qual foi produtor, o LP “Primeiro Disco” de Theo de Barros apresentou músicas e
canções, frutos de suas composições ao longo das décadas de 1960 e 70.
Um álbum duplo, incluindo
canções feitas para as
produções dos musicais do
Arena e de tantas outras
composições que realizou
ao longo da vida. A capa
do disco é pesada, lembra
os versos de “Estória”, que
fizera em parceria com
Paulo César Pinheiro: “(...)
A minha face morre, mas
minha estória, essa
nascerá”. O sentimento ao
ver a imagem é de dor, de
dilaceramento, mas de
persistência de uma face serena, como é a de Theo de Barros. Uma face presa por
fivelas ocultando a carne viva, o contraste do fundo azul com o vermelho da parte
posterior à face, ressaltam as marcas do rosto de Theo, que tem o olhar fixo para
frente.
O primeiro disco de Theo de Barros levou um bom tempo para ser produzido,
sobretudo porque durante a década de 1970 ele atuou como publicitário, compondo
jingles no estúdio da Eldorado, que tinha um viés de produtora de publicidade e uma
parte do estúdio como gravadora. Theo conta que Aloisio Falcão era o ultimo sócio
do Marcos Pereira, para o qual ele também havia trabalhado. Que juntamente com o
Aloysio teve a ideia de fazer o selo. Grande parte do seu tempo era direcionado para
o trabalho com publicidade, o disco foi feito “nas horas vagas” que eram raras,
momentos em que o estúdio estava livre. Atuar na produção de jingles é algo que
Theo encarou como uma necessidade de sobrevivência, mas um trabalho
desgastante, primeiro pelo tempo árduo de dedicação frente às demandas, segundo
porque as composições que a princípio eram feitas com “músicos de verdade”, o que
lhe possibilitava atuar como arranjador e orquestrador, foi sendo cada vez mais

163
substituído pelo trabalho com teclados, o que o desanimou, mesmo sendo
considerado um bom produtor, chegando a ganhar prêmios com o jingle da VASP,
que ficou durante muito tempo no ar. Seu sentimento é de insatisfação visto que
ganhou dinheiro, mas ficou privado de tempo para se dedicar à música como
gostaria:

“(...) foram quase dois mil jingles, mas é um trabalho assim que
você ganha dinheiro, mas não é musica realmente, embora eu
sempre tivesse a preocupação de fazer que as minhas
produções tivessem começo, meio e fim, fosse uma mini
música, mas o público não sabe quem fez, não tem créditos
não tem nada, serve só pra ganhar dinheiro, nunca vi, eu
sempre falei que eu estava publicitário, não era publicitário”
(Theo de Barros, 2015).

Foi em meio a essas condições que surgiu o álbum duplo, com um amplo e
significativo repertório. Uma conquista para Theo de Barros, um caminho de
retomada para o que realmente gostava de fazer. Esse relato foi feito com bastante
tristeza, porque seu ímpeto criativo acaba por ser cerceado pelas condições e
destinos do que vinha produzindo. Esses aspectos, talvez nos ajudem a
compreender a dureza da imagem da capa do disco, bem como o fato de tê-lo
lançado somente em 1979.
A primeira faixa do disco é “Vim de Santana”, a mesma que fizera parte do LP
Quarteto Novo, com novos arranjos, mas preservando elementos da gravação
anterior. Memória viva dos tempos de aprendizagens e trocas de experiências.
Assim como os demais músicos do Quarteto Novo, Theo faz questão de demarcar o
lugar desse projeto em suas composições. Na sequencia canta “Disparada”, que
compusera com Geraldo Vandré, num arranjo diferenciado também, com um ritmo
mais lento, quase melancólico. É difícil falar sobre a alma de um artista, mas sem
dúvida, essas escolhas expressam sentimentos profundos. A terceira faixa “Oxalá”,
inscrita no III FIC de 1968, nos apresenta um compositor que combinou suas
experiências com tudo que vivenciou e aprendeu a valorizar:

“Quando eu expulso meu braço


Pr'além do cangaço e da sorte
É ferida, forra e morte
Que esperam no fim do caminho
Enfrento o mundo sozinho
Não quero padrinho ou parceiro
164
Sou meu próprio companheiro
No pulso, no pé e no passo”

Dentro de uma temática recorrente nas demais canções presentes no III FIC
de 1968, Theo reverencia a Oxalá e expressa tanto na música quanto na letra forças
presentes nas culturas populares. O álbum duplo traz no primeiro LP canções com
essas características, demonstrando a versatilidade e a busca pelas raízes das
sonoridades brasileiras. Contendo também canções que fizera para os musicais do
Teatro Arena.
É interessante pensarmos como nos momentos de resistência em conjunturas
de autoritarismo declarado, como é o caso do período em que Theo participou dos
musicais do Arena e no ano de 1968, a busca pela evidência das culturas de
matrizes africanas e dos povos originários, do Brasil e do restante da América, é
intensificada. Isso ocorre, com diferentes compositores. Numa sociedade onde o
racismo anti negro e indígena é estrutural, as culturas são utilizadas numa
demarcação de posicionamento, mas é também importante pensarmos nos
simbolismos dessas buscas, tanto em termos de sonoridades, quanto das letras.
Obviamente ocorre uma aproximação via conhecimentos advindos de estudos das
realidades, mesmo que não vivenciados em suas origens, isso ocorre dentro de uma
perspectiva de produção discursiva e pode ser analisada de acordo com os
interesses e trajetórias de cada compositor, assim como projetos que intencionaram
estabelecer uma comunicação com o “povo”, ou utilizá-las como base para
construções que se pretendem representativas.
A retomada de lutas antigas, também aparece de forma intensa, até por conta
dos projetos com os quais Theo se envolveu nas décadas de 1960 e 70. Sabemos
que o olhar para o passado, como aparece na canção “Espanto” Augusto
Boal/Gianfrancesco Guarnieri/Theo de Barros, foi e tem sido uma estratégia de
pensar caminhos de luta, num movimento de inspiração e de aprendizagem. A
música, campo de atuação desse artista, foi o caminho que encontrou para
expressar seus sentimentos e a defesa de suas convicções.
No segundo LP que integra o álbum, as canções e músicas abordam
elementos urbanos, com uma influência maior dos movimentos musicais que
construíram fusões, como é o caso da bossa nova. A presença jazzística é mais
intensa e as temáticas tratam das relações pessoais, canções de amor por uma

165
pessoa, dilemas e questões existenciais. Há também, canções como “Praça da
República” de Theo de Barros, que trata dos conflitos urbanos, de um cenário
caótico do fluxo de gente em meio à poluição. A ideia da cidade como símbolo de
desenvolvimento é desconstruída, esse aspecto também gera um discurso que se
contrapõe à lógica da “modernidade”, que numa análise geral da obra de Theo, nos
ajuda a compreender a visão de mundo que apresenta em suas composições.
Nos anos seguintes Theo de Barros se dedicou à publicidade, realizou alguns
shows, continuou compondo e somente veio a gravar outro disco em 1997, chamado
“Violão Solo” pela gravadora Paulinas, sua discografia é composta por quatro discos,
somando Theo de 2004 pela gravadora Maritaca e Tatanaguê de 2017 de gravação
independente.
Ressaltei algumas experiências dos músicos que fizeram parte do Quarteto
Novo, após o término do grupo sem a pretensão de apresentar suas obras
completas, mas com intuito de evidenciar suas relações com a música e as formas
musicais desenvolvidas. Como disse anteriormente, o encontro de Airto Moreira,
Theo de Barros, Heraldo do Monte e Hermeto Pascoal propiciado pelo projeto do
Quarteto Novo marcou suas trajetórias e suas musicalidades. O caminho solo teve
aspectos e trilhas particulares, demarcadas pela própria história de vida e
circunstâncias de cada músico.
O disco é um suporte importante para que o público tenha acesso ao que os
músicos e compositores expressaram, mas há também entraves nesses percursos,
sobretudo ao pensarmos na periodização da presente pesquisa. Dos anos 1960 aos
anos 1990 houve um papel preponderante das gravadoras, que ao mesmo tempo
em que acolhiam determinadas expressões, por demandas advindas dos grupos
populares e também de criações que fugiam do “cardápio” apreciado pelo público
ansioso por ouvir e se alinhar com o que chamo de “moderna música brasileira”,
acabavam por gerar obstáculos para a veiculação de uma música livre. É importante
demarcar projetos e gravadoras que fugiam dos moldes estabelecidos, até por
iniciativas propositalmente dissidentes.
Não somente as gravadoras mediaram as veiculações, outros meios, como o
rádio e a televisão, também têm papel relevante, tanto na produção da invisibilidade
quanto na construção de brechas que possibilitaram o acesso às obras aqui
analisadas.

166
Há também, movimentos de resistências protagonizados pelos artistas com
objetivo de criar caminhos e suportes para o estabelecimento de circunstâncias
favoráveis para o contato com o público e a veiculação de suas obras, como
veremos a seguir.

167
3.2 Disco de Bolso: Qual é?

O “Disco de Bolso”, já citado anteriormente, foi um projeto idealizado por


Sérgio Ricardo, com intuito de romper com o chamado “círculo vicioso” que envolvia
todos os meios pelos quais os compositores e cantores precisavam passar para que
suas obras fossem publicizadas. Numa parceria com O Pasquim, semanário que se
posicionou contra a ditadura desde os anos iniciais do golpe, o “Disco de Bolso” foi
organizado como uma revista contendo um disco compacto.
O objetivo era lançar juntamente com um artista já reconhecido pelo “grande
público”, outro de menor evidência dentro do que se pode chamar de cenário
musical do início dos anos 1970. Com uma produção simples, já que O Pasquim,
fundado por Jaguar, Tarso de Castro, Sérgio Cabral e Ziraldo, já vinha enfrentando
dificuldades financeiras para se manter no mercado, sobretudo pelo seu
posicionamento, o projeto teve apenas duas edições. A primeira, lançada em maio
de 1972, sob direção de Sérgio Ricardo e Luiz Carlos Bravo, trazia como título: O
tom de Antonio Carlos Jobim e o tal de João Bosco.
Na apresentação intitulada “Qual é?” Sérgio Ricardo faz uma crítica
contundente ao que chama de “esquemas” que envolvem a produção musical, se
referindo às práticas das gravadoras, rádios e emissoras de TV e à forma como
diferentes artistas iam se posicionando diante desses, na busca de evidência e
“sucesso”. Numa analogia, se refere ao conjunto de mecanismos da indústria
cultural brasileira como “saúvas” e destaca a “vulnerabilidade” dos artistas, em suas
diferentes vertentes e posicionamentos. Não anuncia a intenção de salvacionismo
ou de “remédio” para esses males, mas indica que o “Disco de Bolso” é uma forma
de “entrar na briga” sem que seja necessário passar pelos trâmites, que envolvem
inclusive o “jabá”. Sem intermediários o disco vai parar nas bancas de jornal,
possibilitando um acesso direto por parte do público ao que “o pessoal da música
popular brasileira anda fazendo”.
Ao falar da vulnerabilidade, não se refere simplesmente aos processos de
exclusão de novos nomes, mas também às demandas programadas para obtenção
do sucesso. É enfático ao dizer que o propósito central desse projeto é “levar ao
público o melhor da nossa música, pra ajudar o compositor e ser ajudado por ele,
uma vez que ninguém taqui pra morrer com a boca cheia de formiga”. De fato houve
a expectativa de que a música transitasse sem mediadores ou imposições
168
tecnológicas, a busca pelas realidades vivenciadas, pela música tocada nos bares,
de forma simples e por pessoas livres. Sérgio Ricardo acreditava que era dessa
forma que a criatividade fluía e que muita gente boa permanecia no anonimato por
não ter acesso aos canais de participação, ou simplesmente por se negar a negociar
com a grande indústria. Ainda na apresentação faz um convite a quem quer que se
sinta à vontade e tenha estruturas mínimas para enviar gravações semi-
profissionais, abrindo possibilidades de reprodução em futuras edições do "Disco de
Bolso”.
Havia ali, em 1972, profissionais renomados como Jaguar, que ilustrou as
duas edições com suas tirinhas e quadrinhos, Ziraldo, que fez as duas capas dos
compactos, entre outros, que de fato acreditavam no projeto. Infelizmente, dentro da
conjuntura de ditadura e frente à indústria fonográfica, não foi possível o deslanchar
do projeto, que conta com apenas duas edições.
Na primeira edição Tom Jobim, aclamado como ícone da bossa nova,
retornava de Nova Iorque com o desejo já manifestado a Hermeto Pascoal como
relatei anteriormente, de compor algo que fugisse dos moldes pré-estabelecidos e
vinculados a sua imagem, o que de certa forma lhe colocava numa posição delicada
diante das gravadoras e da censura, sobretudo pelo único episódio de conflito que
teve com a ditadura em função de um manifesto em que vários artistas de
desvincularam do Festival Internacional da Canção da Rede Globo de 1971. Foi
dessa forma que lançou a canção “Águas de Março”, um samba que o distanciava
do rótulo que lhe rendeu muito, mas que já não mais o satisfazia. Como podemos
verificar no seu texto de apresentação:

“Em princípio eu gostaria de dizer que com 45 anos não estou


ligado à música de protesto, participante, etc. O que eu quero
realmente é escrever música. Não estou interessado nos
rótulos como a bossa nova, ou a não-bossa nova.”

O fato é que a bossa nova já não tinha o mesmo impacto que teve no final
dos anos 1950 e anos 60, e Tom Jobim já vinha manifestando sua insatisfação com
a vinculação de seu nome a um único estilo, mesmo tendo sido beneficiado em
diferentes aspectos por tal feito, ganhando um espaço hegemônico até mesmo entre
outros músicos da tendência, como Johnny Alf, pianista negro que cuja contribuição
não recebeu a mesma evidência.
169
As preocupações manifestadas na revista “Disco de Bolso”, por Tom Jobim,
eram de uma percepção da realidade do início dos anos 1970, de modernização das
cidades e uma ânsia por progresso que, na sua concepção, acabava por se tornar
destrutiva, em relação ao meio ambiente e aos modos de vida que isso acarreta.
Com uma perspectiva folclorista, faz referência à canção “Matita Perê”, passarinho
do sertão relacionado às interpretações populares, que dentro do contexto urbano,
com base no seu texto, era uma cosmovisão praticamente desconhecida e sem
atribuição de significados.
Ao falar da produção musical, Tom Jobim ressalta a importância de compor
músicas brasileiras, “com temática brasileira”, afirmando que a busca de tornar a
música universal não deveria ser o foco e dificilmente atingiria esse propósito se o
compositor se distanciasse da própria cultura. Apresentou como referência o
trabalho de Villa Lobos que, em sua opinião, se tornou universal utilizando recursos
essencialmente brasileiros, escrevendo para instrumentalização brasileira.
Diz ainda que nunca se dedicou ao jazz, fato que me causa estranhamento,
sobretudo pela vinculação anunciada do movimento bossanovista. Ao mesmo
tempo, Tom afirma que o jazz tem influências mundiais:

“O que houve foi uma confusão: naquele período da bossa


nova o americano chamou a menina de latin jazz. Quando a
música balança o americano chama de jazz e até o africano
batendo um samba, lá na terra dele, é jazz. O que aconteceu é
que nós somos do deixa pra lá e o americano de venha a nós:
ele pega a música havaiana, cubana, brasileira e comercializa.”
(Disco de Bolso – Edição 01, p. 3, 1972)

Essa fala flexibiliza a noção que temos da própria constituição da bossa nova
como fusão entre o samba e o jazz, não tenho como intenção realizar um
aprofundamento dos questionamentos a respeito desse fato, mas é fundamental
pensarmos que o veículo pelo qual Tom Jobim transmite sua interpretação do
movimento do qual fez parte e o momento histórico vivenciado são preponderantes
para tal versão.
Ao tratar das relações comerciais em torno da música, Tom Jobim afirma que
há um problema no Brasil em relação aos “modismos”, o que gera um ciclo de
evidência de determinados movimentos e demandas, como já citei anteriormente,

170
causando conflitos entre a experiência vivida e os processos de criatividade. Os
moldes do sucesso também limitam as criações, uma vez que imersos nas
avalanches de “oferta e procura” os processos criativos são prejudicados, até pela
falta de tempo para dedicação e busca de outras experimentações.
Percebo que é nessa conjuntura que surge a canção “Águas de Março” e não
por acaso o seu lançamento é feito dentro de um projeto antagônico em relação ao
que estava posto como “mercado musical”, com o qual Tom Jobim sempre se
relacionou bem, pelo menos enquanto atendeu aos interesses.
No “Disco de Bolso” a canção “Águas de Março” é apresentada com uma
introdução de uma citação de Olavo Bilac do “O caçador de esmeraldas” (Episódio
da epopeia sertanista no 17º século):

“Foi em março, ao findar das chuvas, quase à entrada


Do outono, quando a terra, em sede requeimada,
Bebera longamente as águas da estação,
Que, em bandeira, buscando esmeraldas e prata,
À frente dos peões filhos da rude mata,
Fernão Dias Paes Leme entrou pelo Sertão.”

A invasão do bandeirante ao sertão, dentro da narrativa de Olavo Bilac é


apresentada por Tom Jobim como inspiração para a composição: “Daí, creio, vêm as
minhas Águas de Março”. Seguida de letra e partitura a apresentação da canção é
feita. A letra extensa traz uma série de referências às coisas do cotidiano, aos
elementos da natureza e ao mesmo tempo aos sentimentos de solidão e anseio pelo
porvir.

É o fundo do poço, é o fim do caminho


No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego,
É uma ponta, é um ponto,
É um pingo pingando
É uma conta, é um conto
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração”
171
Nos trechos selecionados pode-se observar expressões que ora expressam
esperança e ora pessimismo, os significados podem ser analisados de formas
conflitantes, reveladoras do momento vivido pelo artista. Envolvido no projeto do LP
Matita Perê em parceria com Paulo César Pinheiro, vivendo num sítio, se dispôs a
fazer parte da empreitada apresentada por Sérgio Ricardo, num posicionamento
bastante inusitado.
Juntamente com Tom Jobim, foi apresentado, João Bosco, com a canção
“Agnus Sei” que fizera em parceria com Aldir Blanco. Na sua apresentação o título:
“Quem é esse tal de João Bosco?”. É certo que Tom Jobim recebera maior
evidência, até mesmo na capa da edição aqui analisada, que traz Tom Jobim
tocando flauta a partir de uma partitura pintada no biquíni de uma mulher cujo rosto
nem aparece. Fetichismo, machismo e subalternização do feminino, aliás, são
problemas que verifico nesse encarte, bem como em algumas canções gravadas
anteriormente por Tom Jobim e pelos demais bossanovistas.
A apresentação do então “desconhecido” João Bosco. A música já fazia parte
de sua vida desde a adolescência, começou a tocar violão aos 12 anos, influenciado
e incentivado por membros da família que também apreciavam a música. No final
dos anos 1960 já tinha contato com alguns artistas, mas foi em Ouro Preto, onde
vivia que Carlos Scliar, um amigo pintor, o apresentou a alguns músicos e o indicou
para sua participação no “Disco de Bolso”.
No site oficial de João Bosco, há um relato de Sérgio Ricardo a respeito do
encontro:
“Ouvi João Bosco pela primeira vez em minha casa, quando
estava escolhendo o artista novo, desconhecido, que viria
gravar o outro lado do compacto simples do Disco de Bolso.
Achava que seria meio impossível encontrar alguém que
tivesse fôlego para encarar o artista consagrado do outro lado
do disco, Tom Jobim, com Águas de Março, temendo que
viesse a jogar o desconhecido numa “gelada”. Foi um susto.
Qualquer uma das músicas que ele apresentou naquele dia,
poderia entrar no disco.” (Sérgio Ricardo -
http://www.joaobosco.com.br/biografia/#jb-por-sergio-ricardo)

A surpresa de Sérgio Ricardo, não se deu por acaso, a essa altura João
Bosco já possuía um repertório e um domínio do violão que o caracterizava como
grande expoente da então música popular brasileira. Entre as composições

172
apresentadas “Agnus Sei”, foi a escolhida, como disse anteriormente, canção que
fizera em parceria com Aldir Blanc. Sérgio relata que quando Tom Jobim ouviu o
outro lado do compacto ficou extremamente impressionado, afirmando: “Esse
mineiro é bom demais”.
Apresentado no encarte como mineiro de 24 anos, nascido em Ponte Nova,
teve sua habilidade com o violão destacada: “(...) toca violão paca e a turma diz que
um dos dois tem três braços: ele ou o violão dele.” Sem dúvida, João Bosco estava
preparado musicalmente para sua primeira gravação. Ainda na breve apresentação
do encarte há uma fala significativa de Sérgio Cabral, um dos fundadores de O
Pasquim e também compositor, onde afirma: “Nada, rigorosamente nada, é mais
importante atualmente na música popular brasileira, em matéria de coisa nova, do
que a dupla João Bosco – Aldir Blanc.”
Com tamanho apoio e apreciação por parte dos idealizadores do “Disco de
Bolso”, estava confirmada a sua gravação. Lado B do compacto lança oficialmente
João Bosco no cenário musical brasileiro. A canção, gravada de forma bastante
simples, causa grande impacto. João e seu violão revelam a força de um artista, de
voz vibrante e alinhada com as sonoridades das cordas numa fusão com a energia
dos versos, fortes e impactantes. A canção de sua estreia é considerada nos dias
atuais como emblemática de sua carreira, sendo mais tarde regravada por Elis
Regina e Milton Nascimento, recebendo novos arranjos.
É importante ressaltar que a composição foi feita em parceria com Aldir Blanc
num processo de comunicação via correio, Aldir no Rio e João em Ouro Preto,
trocavam fitas cassetes. João Bosco a caracteriza como uma canção com
influências do Barroco, devido a sua vivência em Minas Gerais. Os acordes
desenhados em apenas uma nota exigem a movimentação intensa da mão direita,
segundo João Bosco, sendo ao mesmo tempo uma música que possui simetria,
podendo ser interpretada de várias maneiras.
Mesmo com sua origem barroca, os versos e a melodia, com seus diferentes
arranjos, ganham novos sentidos dentro da conjuntura vivida no início dos anos
setenta e renovam-se em cada interpretação, agregando sentidos e valores:

Faces sob o sol, os olhos na cruz


Os heróis do bem prosseguem na brisa na manhã
Vão levar ao reino dos minaretes
A paz na ponta dos arietes
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A conversão para os infiéis
Para trás ficou a marca da cruz
Na fumaça negra vinda na brisa da manhã
Ah, como é difícil tornar-se herói
Só quem tentou sabe como dói
Vencer satã só com orações
Á andá pa catarandá que deus tudo vê
Á andá pa catarandá que deus tudo vê
Á anda, ê hora, ê manda, ê mata,
Responderei não!
Dominus dominium juros além
Todos esses anos agnus sei que sou também
Mas ovelha negra me desgarrei
O meu pastor não sabe que eu sei
Da arma oculta na sua mão
Meu profano amor eu prefiro assim
Á nudez sem véus diante da santa-inquisição
Ah, o tribunal não recordará
Dos fugitivos de Shangri-lá
O tempo vence toda a ilusão

Esses versos diante de uma sociedade repressiva, de um regime militar, com


discursos de modernização e desenvolvimento econômico a qualquer custo, em
suas diferentes interpretações ganham sentidos de resistência, retomando signos de
opressões vivenciadas em outros períodos da história e inserido num trabalho como
o “Disco de Bolso”, assume uma dimensão de questionamento à conjuntura nos
diferentes níveis que configuram a sociedade autoritária.
Ainda na primeira edição há um texto assinado por Sérgio Cabral, onde fala
sobre Noel Rosa. Dizendo que se o sambista estivesse vivo, com certeza, faria parte
de uma das edições do “Disco de Bolso”, ressaltando que pra quem conheceu o
artista a convicção de que o projeto lhe interessaria era plena. Num momento de
questionamento aos rótulos e busca por novas tendências da MPB, os sambistas
são constantemente retomados, não somente Noel Rosa, mas também Cartola,
Ismael Silva e o chorinho de Pixinguinha. É um movimento interessante de olhar
para o passado vislumbrando transformações, retomando interesses a respeito das
formas musicais que foram rejeitadas em detrimento da chamada “moderna música
brasileira”, ainda que nunca haja ruptura ou construções musicais que se
mantenham isentas do que é matéria de criação dos grupos populares.
De qualquer forma, dedicar duas páginas do encarte a Noel Rosa é uma
forma de reverenciar e registrar a importância do artista. Num texto bastante

174
imaginativo, de como seria se Noel estivesse vivo, partindo da convicção de que
seria mais um aliado.
Na parte final do encarte há uma pequena história em quadrinhos, escrita por
Luiz Lobo e ilustrada por Jaguar: As aventuras de São Diabo. Trata-se da relação
entre as agências arrecadadoras e os(as) compositores, um grande dilema que
envolve os direitos autorais e as formas de arrecadação. No Brasil surgem no início
século XX as chamadas “sociedades dos direitos autorais”, criadas em sua maioria
por pessoas ligadas à musica.
O posicionamento dos diretores e artistas que participaram da produção do
“Disco de Bolso” é anunciadamente crítico em relação às “arrecadadoras”, como
podemos observar nas tirinhas abaixo e nos discursos presentes no encarte:

O personagem “São Diabo” é um representante das arrecadadoras, defensor


do recolhimento dos valores e da mediação financeira sobre o que os(as)
compositores(as) produzem. A imagem de alguém que busca auxiliar é
desconstruída ao longo da história, o discurso da arrecadadora de que de fato há um
problema sério em relação ao direito autoral no Brasil é feito com sorrisos e o ar
sacralizado, ao mesmo tempo em que os autores evidenciam os discursos
recorrentes de que os artistas que não estão satisfeitos são classificados como
“agitadores profissionais e subversivos”.

175
No desfecho da trama, a grande maioria do público que simboliza a classe
artística, acredita no discurso de que os dirigentes das sociedades arrecadadoras
são na realidade facilitadores. Esse é um debate que surge também nas entrevistas
realizadas e há posicionamentos diferentes a respeito dessa forma de organização.
Geraldo Vandré é categoricamente contra e afirma que pouco ou nada recebe sob a
veiculação de sua obra, Heraldo do Monte e Hermeto Pascoal também assumem o
mesmo posicionamento, quando realizam críticas ao ECAD (Escritório Central de
Arrecadação e Distribuição), que acabou por se tornar hegemônico entre as
agências. Mas, há também divergências, nos relatos de Joyce Moreno e de Theo de
Barros, por exemplo, o surgimento do ECAD foi fundamental para a garantia dos
direitos autorais.
Na parte de trás da capa da primeira edição há um anúncio dos “Mutantes”, o
que denota aparentemente uma contradição, frente às falas e posicionamentos
contidos na revista, porém, numa análise mais profunda e por meio da entrevista
realizada com Sérgio Ricardo pude compreender que as críticas não eram
direcionadas aos gêneros e estilos musicais, nem mesmo aos artistas e sim à forma
como a indústria cultural brasileira elegia determinadas expressões como “a crista
da onda”, preterindo outras que não se encaixassem nas “fórmulas defendidas”
como possibilitadoras do “sucesso”.
O fato é que o “Disco de Bolso” em sua essência tem um posicionamento
crítico não somente em relação às formas de organização da arrecadação dos
direitos autorais, mas a todo sistema de produção e seus mecanismos de difusão da
música. Esse discurso é recorrente e aparece também na segunda e última edição.

176
A segunda e última edição do “Disco de Bolso”, também dirigida por Sérgio
Ricardo e Luiz Carlos Bravo, apresentou como cantor já conhecido Caetano Veloso,
que retornara do exílio no mesmo ano, 1972. Na capa o anúncio: “Caetano canta a
volta da Asa Branca de
Luiz Gonzaga –
Apresentando Fagner
enquanto São Diabo
ataca na TEVÊ”. O
personagem “São
Diabo” já apresentado
na história em
quadrinhos, de Luiz
Lobo e Jaguar,
analisada na primeira
edição retorna em uma
temática que
apresentarei mais
adiante.

Caetano aparece na capa, por meio de uma ilustração feita por Oliveira
Monte, numa caricatura com um mico leão dourado no ombro. Simbologias que
enfatizam seu pertencimento e conexão com a terra e sua personalidade marcante
dentro do tropicalismo. Acima o pensamento: “A música está numa fase meio Geléia
Geral”, numa referência à canção composta por Torquato Neto e Gilberto Gil, que
fundamentada pela expressão de Décio Pignatari (poeta e ensaísta brasileiro)
recebeu o título de Geleia Geral, tornando-se uma forte referência ao estilo e
musicalidades presentes no movimento tropicalista.
De fato nos anos 1970 houve diferentes manifestações musicais, com
tendências bem diversificadas e expressões que misturavam sonoridades e
instrumentações de diferentes origens, fato que já vinha ocorrendo nas décadas
anteriores, mas que ganham maior projeção. A utilização de instrumentos elétricos
se expandiu, assim como as influências do rock, do blues, do soul, do funk e do folk,

177
e a tentativa de rotulações e enquadramentos foi se tornando cada vez mais
complexa.
Muitas expressões ganharam maior popularidade, sobretudo, por conexões
identitárias das parcelas mais pobres da população, que tendo acesso e gosto pelas
músicas internacionais produzidas por artistas negros(as) estadunidenses, que
chegavam ao Brasil por meio do rádio e dos LP’s, passaram a assimilar as canções
de artistas como Tim Maia, Jorge Bem, Cassiano, Paulo Diniz, Hildon entre outros,
assim como muitas expressões do samba rock também.
Em meio a tudo isso, Caetano, que sempre se manifestou defensor das
experimentações e misturas faz a opção de gravar no “Disco de Bolso” a canção de
Luiz Gonzaga, “A volta da Asa Branca”, cuja análise farei em momento oportuno.
Na contra capa da segunda revista uma tirinha do Jaguar:

Uma abordagem
recorrente em relação à situação
dos músicos e seus dilemas
diante das múltiplas realidades
vivenciadas na década de 1970,
frente à modernização e à
escassez de trabalhos em
decorrência das novas
tecnologias. A guitarra aparece
de forma simbólica e
emblemática, mas as críticas
presentes no “Disco de Bolso” se
expandem para os demais
instrumentos e recursos elétricos que geraram novas formas de gravação, inclusive
dos discos de vinil em circunstâncias e procedimentos que diminuíam as
oportunidades de contratações dos músicos. Heraldo do Monte e Theo de Barros
falaram a respeito do cenário do início dos anos 1970 e de como foi se tornando
cada vez mais difícil encontrar trabalho frente às inovações tecnológicas e o avanço
dos recursos musicais eletrônicos.

178
A princípio os grupos foram mais atingidos, uma vez que era possível obter
gravações em diferentes canais, ou numa linguagem mais leiga, em diferentes
camadas, depois mesmo os trabalhos individuais no acompanhamento de
cantores(as) foram se tornando raros, esses fatores foram preponderantes para o
ingresso de Theo de Barros na publicidade, com a produção de jingles como
alternativa para se manter e também do “ostracismo” comentado por Heraldo, que
conseguiu um emprego na orquestra da TV Tupi, onde permaneceu durante sete
anos, como já relatei anteriormente, mas que posteriormente teve seus percalços.
O primeiro texto da revista, uma espécie de editorial a exemplo da primeira
edição, é assinado por Sérgio Ricardo. O título é “Alô Vandré” e traz uma imagem de
um violão entregue às teias de aranha:
O texto, escrito em primeira
pessoa, apesar do “Alô”
assume um tom de carta, por
meio do qual Sérgio Ricardo ao
mesmo tempo em que clama
pelo retorno de Vandré, levanta
questões sobre o “sumiço”,
frente ao retorno de outros
artistas como Chico Buarque,
Caetano e Gil, que também
foram exilados, mas que já
haviam retornado “sem grandes
complicações” e continuavam
produzindo, fazendo coisas
novas. Sérgio também fala, de
forma otimista, a respeito do
cenário musical do país, das
novas expressões que estavam
surgindo, “enviando” notícias
sobre diferentes compositores.
O tom inicial e a imagem do violão junto às teias, provocam uma sensação de
que Sérgio Ricardo desconhecia a realidade vivenciada por Vandré, mas no decorrer

179
do texto a imagem e as primeiras impressões vão se descontruindo, na medida em
que ele vai levantando hipóteses a respeito do tal “sumiço” e ao mesmo tempo
dialogando consigo mesmo sobre o “absurdo” que significava o impedimento do
retorno de Vandré ao Brasil:

“(...) Tenho sabido do teu desespero, nova visão de trabalho,


vontade irresistível de voltar, porque é esta a terra que você
ama e todas aquelas coisas. Mas tem um negócio de visto que
lhe é negado (é isso?), o que lhe impossibilita voltar. Se é
verdade, realmente é algo que foge à minha percepção. Deve
haver algum engano. Sinceramente seria a coisa mais
despropositada do mundo, impedir o teu regresso, pois se
criaria tanta mitificação inútil em torno disso (...).” (Sérgio
Ricardo – Disco de Bolso Nº 2, 1972 – p.1).

De forma estratégica, Sérgio vai problematizando o não retorno de Vandré,


tecendo comentários, de forma “descontraída”, a respeito de um assunto tão pesado
e ainda muito visado no início dos anos 1970, até porque, sabemos que a censura e
a repressão proibiam qualquer tipo de expressão a respeito do artista, que mesmo
no exílio permaneceu sendo vigiado pelo SNI, como detalhei em minha dissertação
de mestrado (Para não esquecer Vandré). Considero um ato de grande importância
e de coragem a abordagem feita nessa edição do “Disco de Bolso”, visto que Sérgio
toca em pontos fundamentais a respeito do que mais tarde veio a se concretizar, a
respeito das múltiplas formas de silenciamento que foram empregadas pela
repressão contra Geraldo Vandré e também as interpretações da própria esquerda e
dos meios artísticos que geraram espécies de “mitificações” que também se
constituem como formas de violências e contribuíram pro que chamo de “Exílio em
sua própria terra” na dissertação.
Ao mesmo tempo o texto faz referências à atuação de Vandré durante o
exílio, enfatiza a produção e coerência mesmo nos momentos de tormenta e
“desespero”. Isso é importante, porque por onde Vandré passou continuou
compondo e buscando formas de resistências.
Outro aspecto que chama atenção no texto é a fala de Sérgio Ricardo sobre
sua observação a respeito à “avalanche de talentos” que vinha surgindo:

“Diariamente tenho ouvido uns caras aí que nossa senhora do


saí de perto! Tendências das mais variadas possíveis. O pouco
180
de ranço esteticista ou moral que eu tinha em relação à nossa
música estão cada vez mais enterradas. Por isso mesmo eu
não me atrevo a chamar esse acontecimento de movimento.”
(Sérgio Ricardo – Disco de Bolso Nº 2, 1972, p. 2).

Sérgio enfatiza suas mudanças de pensamento em decorrência do tempo e


das experiências, adotando uma postura mais libertária em relação à música.
Demonstrando abertura em relação às diferentes tendências sem uma necessidade
de enquadramento ou avaliações que demonstrara em momentos anteriores. O
amadurecimento das ideias e a vivência o levaram à consolidação da noção de que
as expressões musicais são diversas e que cada uma tem o seu valor, o que
mantém é a crítica à forma como o “mercado musical” se fechava para algumas
expressões ou simplesmente as descartava e a ausência de espaço. A não
classificação do que vinha surgindo nos meios musicais como “Movimento”
descontrói formas de avaliações e percepções anteriores, sobretudo nos anos 1960,
e também sob influência dos festivais onde ocorriam certas categorizações e
necessidades de pertencimento a determinados grupos em torno de estéticas
semelhantes e nomeadas, como o caso da própria MPB e da Bossa Nova.
Ao término do texto convida Vandré a enviar “um tape” do que andava
fazendo, caso o seu regresso se prolongasse, juntamente com alguma coisa escrita,
para que fizesse parte de uma das futuras edições do “Disco de Bolso”. Infelizmente
o regresso de Vandré só se deu em 1973, ainda assim diante de circunstâncias
tensas e por meio de um acordo com a Polícia Federal, como detalho na
dissertação. A essa altura o “Disco de Bolso” já havia se encerrado por falta de
condições, em meio às circunstâncias, para sua continuidade.
As próximas páginas foram dedicadas a Luiz Gonzaga, com uma chamada
bastante significativa do conteúdo de texto biográfico a respeito do artista,
destacando uma fala sua: “Eu já toquei em assustado. Fui sanfoneiro, rei do baião,
quase sumi na poeira; agora sou lúdico, autêntico, virei um tal de folclore.”
A expressão destacada é representativa da trajetória do artista, que é
detalhada nas páginas seguintes. A reflexão a respeito do significado dos dizeres
podem parecer irônicas, mas de fato ocorreram ao longo de sua carreira. O “quase
sumi na poeira” demarca um período de esquecimento, no qual o “Rei do Baião”

181
passou por grandes dificuldades, sobretudo no início dos anos 1960, após a morte
de um de seus principais parceiros, o Zé Dantas.
Duas páginas foram dedicadas a uma rápida apresentação de Luiz Gonzaga,
sua trajetória de Exu, cidade onde nasceu, seus primeiros passos na música sob
inspiração de seu pai, as andanças pelas festas do sertão, sua entrada para o
exército e depois sua ida para o Rio de Janeiro, onde buscou atuar como sanfoneiro.
O texto ressalta que a música que Luiz Gonzaga tocava na cidade não era a mesma
do sertão, que o repertório era de encomenda do público e se relaciona ao local
onde estava tocando, geralmente “zonas e cabarés”.
Há memórias de sua passagem pelas primeiras rádios, como no programa de
Ary Barroso, onde percebeu que “suas raízes secas do mandacaru do sertão podiam
fazer sucesso na cidade”. E de fato, no início dos anos 1940 obteve êxito, com a sua
primeira gravação em 1941 pela RCA e posteriormente pela Odeon.
O que chama atenção é a expressão “agora sou lúdico, autêntico, virei um tal
de folclore”, porque mesmo diante da busca de outros artistas de evidenciar o valor
da obra de Luiz Gonzaga, como o próprio Vandré que regravou Asa Branca no LP
Hora de lutar em 1965, os termos utilizados ainda soam como pejorativos, no
sentido de atribuição de uma valoração inferior pelo conteúdo e forma musical
vinculados às culturas do sertão. O texto da revista Nº 2 do “Disco de Bolso”
destaca:

“(...) Aí a época do prestígio estava longe, mas não


reclamava, não tinha mágoa, achava natural. Seu sucesso
agora era maio marginal, mas dava pra viver, enquanto os
artistas de sucesso iam sendo consumidos. (...) E foi aí que
começou a estranhar. O pessoal começou a aparecer de novo,
bater nas costas, chamar de amigo, genial. Andou lendo umas
coisas, que ele era lúdico, uma peça de folclore, autêntico, se
sentiu numa vitrina de museu. Balançou os ombros, riu e
aceitou, como sempre aceita as viradas da vida.” (Disco de
Bolso Nº 2, 1972, p. 5)

Segundo o texto da revista, dirigido por Sérgio Ricardo e Luiz Carlos Bravo,
porém sem identificação precisa de quem o redigiu, o início dos anos 1950 foi um
período em que Luiz Gonzaga retomou suas práticas de tocar e cantar em festas
populares. Após a morte de Zé Dantas, em 1962, destacam que o “prestígio” já não
era o mesmo, mas que mesmo assim continuou se apresentando em diferentes

182
lugares. As expressões utilizadas como “lúdico, autêntico e folclore” denotam uma
análise equivocada a respeito de expressões populares, como disse anteriormente,
ao passo em que ignoram as representatividades e a força cultural das canções e
musicalidades presentes na obra do artista junto a seus parceiros, instituindo um
lugar no passado.
Ao evidenciar a trajetória de Luiz Gonzaga e retomar sua canção em 1970,
Caetano Veloso, junto à equipe do “Disco de Bolso” a ressignificam e demonstram a
atualidade da canção naquele momento, mesmo que explicitamente não questionem
o tom de folclorização da obra, deixando nas entrelinhas, a partir do riso do próprio
Luiz Gonzaga suas impressões diante de tais atribuições.
O texto de apresentação de Caetano: O mano, o mito humano Caetano,
transcreve as falas do próprio artista a respeito do imaginário construído a seu
respeito, sobretudo pela imprensa. Afirmou que não se via como mito, muito menos
que desejava a alcunha de “liderança”, visto que somente poderia ser responsável
por si e pelas canções que compunha. Ressaltou que a ideia de ser considerado
como liderança de uma geração lhe causava angústia.
Na verdade as atribuições e rotulações são construídas em grande parte pela
imprensa, não havendo uma correspondência direta com a realidade. É fato que
Caetano se tornou bastante evidenciado, sobretudo entre os estudantes da classe
média que se identificavam com o tropicalismo e que seu exílio, assim como o de
Chico Buarque e de Gilberto Gil se constituíram como uma violência, assim como o
de outros artistas como Vandré. De certa forma o regresso de Caetano e toda
“mitificação” em torno de sua personalidade e sua obra, surtiram um efeito que o
próprio artista questiona por meio de seu relato no “Disco de Bolso”, ao mesmo
tempo em que diz compreender tais reações.
Tendo plena noção do significado de sua prisão, junto a Gilberto Gil e
posterior exílio, Caetano diz haver traumas, feridas abertas que busca acalentar por
meio de suas composições e projetos futuros. A respeito da canção escolhida para
gravar no “Disco de Bolso” comenta que já tinha gravado “Asa Branca” no LP que
fizera em Londres e que também cantava a “Volta da Asa Branca” e que retornando
resolveu incluí-la no show: “(...) Eu estava com ela na cabeça e coincidiu com uma
coisa muito importante que foi o espetáculo do Luiz Gonzaga no Rio. Foi uma das

183
coisas mais lindas que eu já vi na minha vida.” (Caetano Veloso – Disco de Bolso Nº
2, 1972, p. 7).
A atmosfera de regresso, os sentimentos e expectativas podem ter gerado em
Caetano a sensibilidade para audição e reprodução dessa canção e, porque não
dizer, um processo de identificação:

A capa do disco, feita por Ziraldo, traz ao centro a Lua, que simboliza o rosto
do “Rei do Baião”, no céu estrelado sobre a vegetação típica do sertão, com ênfase
ao mandacaru. A versão, gravada ao vivo por Caetano no show realizado no Teatro
João Caetano, num arranjo simples com improvisos em que se misturam voz e
violão, num canto com certa serenidade.

184
“Já faz três noites que pro norte relampeia
E a asa branca ouvindo o ronco do trovão
Já bateu asas e voltou pro meu sertão
Ai, ai eu vou m’embora
Vou cuidar da prantação

E a asa branca bateu asas pro sertão


Ai, ai eu vou m’embora
Vou cuidar da prantação

(Improvisos – voz e violão)

A seca fez eu desertar da minha terra


Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar chuva pra esse sertão sofredor
Sertão da muié séria
Dos home trabaiador

De mandar chuva pra esse sertão sofredor


Sertão da muié séria
Dos home trabaiador

(Improvisos – voz e violão)

Rios correndo, as cachoeiras tão zoando


Terra molhada, mato verde, que riqueza
E a asa branca, tá de cantar, que beleza
Ai, ai, o povo alegre,
Mais alegre a natureza

E a asa branca, tá de cantar, que beleza


Ai, ai, o povo alegre,
Mais alegre a natureza

(Improvisos – voz e violão)


(Aplausos)”

Como disse anteriormente, o arranjo feito por Caetano, tem um ritmo mais
lento que a versão original de Luiz Gonzaga, quase num tom de lamento. Há
alterações da letra e forma de dicção das palavras, por exemplo no trecho em que
fala “da muié séria” no singular, quando Gonzaga diz no plural “das muié séria”. Os
improvisos de voz parecem simular o som da sanfona, visto que Caetano utiliza
somente o violão no acompanhamento e também a supressão do último verso que
fala da “Rosinha”, que coloca ênfase, no término, o verso “Ai, ai o povo alegre/ Mais
alegre a natureza”, seguido do improviso de voz que vai silenciando aos poucos,
findando a gravação com os aplausos.

185
O retorno de Caetano e dos demais artistas citados se deu antes da Lei de
Anistia (1979). Num cenário pós AI-5 e com uma atuação intensa da repressão, o
que não os impediu de continuar atuando, gravando discos e realizando shows,
mesmo submetidos à censura prévia, instituída em janeiro de 1970.
A canção foi feita por Luiz Gonzaga dentro de uma conjuntura específica,
juntamente com Humberto Teixeira, fazendo referência aos períodos de anúncio de
chuvas e consequente fertilidade para as terras sertanejas. Cantada por Caetano
Veloso e gravada no “Disco de bolso” pode assumir proporções e significados
diferentes, como comentei acima. Tudo que circunda a canção, os arranjos, a
entonação, a plateia, o espaço ressignificam suas formas de expressão e recepção.
Há um sentimento de regresso, em meio às intempéries do clima, que ao mesmo
tempo em que possibilita a ação e buscas por brechas, também, implica em olhares
atentos e cuidados específicos dentro de um momento repressivo.
O lado “B” do “Disco de Bolso” apresentou Fagner, um jovem cearense,
nascido em Orós, que desde a infância demonstrou seu interesse em cantar. Na
revista é apresentado: “Bichim novo, seis pra sete anos, ia aos domingos pra Rádio
Iracema, ele e a irmã. A fim? A fim de cantar. E cantava”. Ainda bem moço, Fagner
foi morar em Fortaleza para estudar, mas seu envolvimento com a música se
tornava cada vez mais intenso, ganhando o primeiro lugar no IV Festival de Música
Popular Cearense, realizado em 1968, com a música “Nada sou” que fizera em
parceria com Marcus Francisco. O prêmio foi uma viagem de Fortaleza à Brasília,
cinquenta dias de viagem por terra: “Aí, Fortaleza não dava mais, fui embora pra
Brasília (um ferro concreto surdo cego) fazer faculdade.
Fagner entrou no curso de Arquitetura, mas usou a estrutura universitária
para participar dos festivais, se tornou popular em Brasília e suas músicas eram
tocadas nos bares. Não permaneceu por muito tempo, afinal o eixo Rio/São Paulo
ainda era a atração para quem desejava enveredar pelos caminhos profissionais.
A essa altura já havia composto “Mucuripe” juntamente com seu conterrâneo
Belchior. Com essa canção foi classificado em primeiro lugar Festival de Música
Popular do Centro de Estudos Universitários de Brasília.
Belchior já era mais embrenhado nos meios musicais, tendo ganhado o
primeiro lugar no IV Festival Universitário de 1971 com a música "Hora do Almoço",
interpretada por Jorge Melo e Jorge Teles. A evidência de Belchior e a insurgência

186
de Fagner no cenário musical, fortaleceram os olhares para canções que vinham
ganhando espaço desde o final dos anos 1960, como as produzidas pelo “Pessoal
do Ceará” que contava com a participação de Ednardo, Rodger e Teti, sendo o
primeiro disco produzido em 1972, ainda sem a participação de Belchior e Fagner
que estavam concentrados nos projetos individuais, se juntando posteriormente ao
grupo.
É importante ressaltar o espaço que a música cearense conquistou nesse
período e ao mesmo tempo problematizar algumas expressões de que a mesma
ganhava espaço em contrapartida ao que era chamado de “música nacional”. Afinal,
o que era considerado “música nacional”? Já teci comentários a esse respeito, mas
considero uma questão bastante relevante pensarmos as antíteses ou dicotomias
criadas em torno dos movimentos musicais e as formas de classificações realizadas
a partir de fora, sobretudo pela imprensa, pela crítica musical e pela própria
historiografia.
Retomando a questão central nessa etapa do texto, Fagner já havia chamado
atenção de Elis Regina, que segundo os próprios diretores do “Disco de Bolso”, já
havia manifestado a intenção de gravar “Mucuripe”: “Elis querendo foi alegria geral
nos imigrantes: a importância de ser lançado pela mesma pessoa que lançou Milton
(Nascimento), Gil e Edu. É, Raimundo, bichim.”. O fato é que a canção foi lançada
oficialmente pelo “Disco de Bolso” e logo em seguida regravada por Elis Regina,
com outro arranjo, mais tarde também por Roberto Carlos (1975).

As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vou mandar as minhas mágoas
Pras águas fundas do mar

Hoje à noite namorar


Sem ter medo da saudade
Sem vontade de casar

As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vou mandar as minhas mágoas
Pras águas fundas do mar

Hoje à noite namorar


Sem ter medo da saudade
Sem vontade de casar

187
Calça nova de riscado
Paletó de linho branco
Que até o mês passado
Lá no campo inda era flor

Sob o meu chapéu quebrado


Um sorriso ingênuo e franco
De um rapaz novo encantado
Com vinte anos de amor

Aquela estrela é dela


Vida, vento, vela, leva-me daqui
Aquela estrela é dela
Vida, vento, vela, leva-me daqui

As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vou levar as minhas mágoas
Pras águas fundas do mar

Hoje à noite namorar


Sem ter medo da saudade
Sem vontade de casar

Calça nova de riscado


Paletó de linho branco
Que até o mês passado
Lá no campo inda era flor

Sob o meu chapéu quebrado


Um sorriso ingênuo e franco
De um rapaz moço encantado
Com vinte anos de amor

Aquela estrela é dela


Vida, vento, vela, leva-me daqui
Aquela estrela é dela
Vida, vento, vela, leva-me daqui

A canção, “Mucuripe” gravada no “Disco de Bolso” faz parte da revista, como


de costume, com letra e partitura. Na gravação, Fagner canta e toca violão,
acompanhado por Ivan Lins ao órgão. O ritmo é bastante lento, com voz bem
demarcada pelo sotaque cearense. É uma canção intimista, que narra a trajetória de
um “rapaz novo encantado com vinte anos de amor”. Ao mesmo tempo ressalta a
sutileza das belezas naturais do bairro de Fortaleza, seu ponto principal é um porto,
caracterizado por Belchior como “lugar poético”, daí a observação e contemplação
das “velas” que saem para pescar e os sentimentos demonstrados na letra,
adaptada por Fagner. Finalizada com versos de Augusto Pontes: “Vida, vento, vela,

188
leva-me daqui”. Augusto Pontes foi um poeta cearense importante para a formação
literária e intelectual de muitos compositores cearenses, fundamental para a união
do grupo que viria a constituir, o chamado “Pessoal do Ceará”. O próprio Belchior
tem trechos em suas canções cuja inspiração vem de seus versos.
Dessa forma, a apresentação de Raimundo Fagner e a possibilidade de
projeção por meio da iniciativa do “Disco de Bolso” potencializaram o acesso à sua
obra. O projeto foi importante e de fato poderia ter vingado, como disse Sérgio
Ricardo, foi uma ideia “maluca”, diante da realidade vivenciada, mas ao mesmo
tempo afirmou, durante a entrevista, que faria tudo de novo.
No final da revista, seguindo o padrão da primeira, há uma história em
quadrinhos, com texto de Luiz Lobo e ilustração do Jaguar: “Infelizmente a nossa
TEVÊ ainda não tem o som para que o telespectador possa ouvir a música popular
brasileira”.

A história em quadrinhos apresenta uma crítica à estrutura das emissoras que


passaram a ter um espaço cada vez mais restrito à música popular brasileira,
resumindo-se a cada vez mais às organizações de festivais, o que segundo os
autores não possibilita ao público um contato maior com o que estava ocorrendo,
com a gama de expressões que vinham surgindo, discurso fortemente presente
nessa edição desde as páginas iniciais. A seriedade dos festivais também é
questionada, atribuindo a esses um caráter de entretenimento, diferente de que
ocorria nos nãos 1960 em que o envolvimento do público, tanto aquele que
comparecia às apresentações, quanto o que assistia pela televisão era bem maior,
no sentido de interação e vivências.

189
Na história em quadrinhos há dois personagens, e durante toda sequência
ocorre praticamente um monólogo, ficando o personagem “São Diabo” o tempo todo
só a ouvir enquanto fuma. É ressaltada também a consequente falta de interesse por
parte dos artistas, considerados como “melhores compositores”, que não satisfeitos
com o “esquema” de abordagem de suas obras, via demonstração única nos
momentos dos festivais, acabam por se retirar de cena, nem mesmo se inscrevendo
e ficando “de fora dos festivais e marginalizados o resto do ano”.
Enquanto produz seu discurso, o personagem central vai sendo encoberto
pela fumaça do cigarro, sugerindo a falta de interesse na audição e até mesmo a
produção da invisibilidade, diante dos argumentos que, com base na expressão, são
ignorados pelos produtores das emissoras de TV.

A fala extensa do quadrinho em que não há a imagem dos personagens e na


sequência a fumaça tomando conta da cena, colocam ênfase na ignorância a
respeito do discurso produzido. Na visão dos autores o espaço, cada vez mais
restrito à música, contribui para a falta de acesso ao que estava sendo produzido, a
diversidade de expressões enfatizadas na revista, e o valor desse momento no
cenário musical, são representadas como inexpressivas para a TV, dessa forma o
“Disco de Bolso” gera um discurso de que outros meios precisam ser construídos,
outros caminhos precisam ser trilhados para a veiculação da música e evidência
dos(as) compositores(as) e cantores(as).
Ao término, o personagem eloquente se perde diante do desdém, perdido em
meio à fumaça, reaparecendo vencido, apenas seus pés para cima, momento em

190
que “São Diabo pronuncia as falas finais: “Eu acho bobagem” e retirando a máscara
se identifica: “Eu sou produtor de TEVE – São Diabo ataca de novo!”.
Todos esses aspectos demonstram a forma como os artistas envolvidos com
a produção do “Disco de Bolso” compreendiam as novas relações estabelecidas
com a grande mídia. E reafirmam a importância do projeto e a necessidade de se
buscar alternativas para que as expressões musicais chegassem ao “grande
público”. A primeira tiragem da edição Nº1, trinta mil exemplares, não atingiu o
número de vendas esperado e acredito que naquele momento as expectativas em
relação à continuidade do trabalho já causavam certa instabilidade ou até mesmo
incerteza a respeito das formas de recepção.
Na última página da revista uma chamada:

A persistência em garantir a venda dos


exemplares da primeira edição, sugerem
que “Ainda dá tempo” de comprar, para
quem por ventura não o obteve.
O “Disco de Bolso”, na sua segunda
edição, ainda traz uma perspectiva de
continuidade, demonstrando em vários
momentos o interesse e o chamado de
novos artistas para fazerem parte dos
lançamentos.
Foi uma iniciativa importante, diante de
tudo que já foi exposto, a ideia de lançar juntamente com uma pessoa já conhecida
a apresentação de um outro artista, que apesar das caminhadas, não tinha tanta
repercussão, uma estratégia significativa.

191
Considerações finais

“Desde sempre, têm acontecido os ritmos sincopados


dos improvisos e gingas cotidianas, nas invenções
contra os percalços e contratempos circunstanciais
surgidos nas trilhas nem sempre escolhidas.”
25
(Salloma Salomão, 2000.)

Em casa, no final dos anos 1980, havia uma televisão preto e branca e um
rádio toca fitas pertencente a meu irmão mais novo. A TV era restrita aos canais
abertos, mas a rede Globo, definia a rotina do dia, era por meio de sua programação
que sabíamos os horários e a dinâmica das tarefas. O rádio, era objeto de pouco
acesso, só ouvíamos quando meu irmão estava em casa, ele não ouvia a
programação tocada, tinha algumas fitas cassetes, trilhas de novelas, Paulo Diniz e
algumas fitas de cantoras internacionais. Eu gostava do Paulo Diniz e da Tracy
Chapman, às vezes usava o rádio escondido, quando ele estava no trabalho.
Meu irmão mais velho tocava violão, tinha aquelas revistas com as cifras...
Gostava de ouvi-lo tocar, Tim Maia principalmente. Ele até tentou me ensinar alguns
acordes simples. Meu pai também tocava, eram “modas de viola” como costumava
falar. Sempre gostei de músicas e de alguma forma elas me confortavam ao mesmo
tempo em que me provocavam curiosidades, vontade de saber mais.
Finalmente meu irmão mais velho comprou um “três em um”, um aparelho
usado, com toca disco, rádio e vinil, com ele uma caixa amplificada. Lembro-me dos
primeiros discos de vinil, ao qual chamava de “black music”, muito soul, algumas
“melodias”, disco do Rey Charles, samba rock, samba de raiz. Aquilo tudo me
fascinava. A programação do rádio era pouco ouvida, me recordo apenas dos
programas noturnos do tipo “Love Line”. De manhã minha mãe ouvia Zé Bétio,
canções românticas e as chamadas de “brega” que intercalavam histórias trágicas
narradas pelo locutor.
Já num momento de maior acesso ao rádio, que deixou de ser considerado
uma “relíquia” no início dos anos 1990, veio uma onda de músicas brasileiras, que
se misturavam às canções internacionais. Era a fase dos pagodes, atrativos num
primeiro momento, mas logo se tornaram enfadonhos para mim,

25
SILVA, Salomão Jovino da. A polifonia do protesto negro: movimentos culturais e musicalidades negras
urbanas – anos 70/80 – Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. São Paulo, 2000. Dissertação de Mestrado –
PUC/SP.
192
Como disse nos agradecimentos, meus irmãos morreram jovens, Os discos,
as fitas e o aparelho de som foram minhas heranças. Já adolescente tive contato
com o RAP, que marcou de forma tão profunda a minha vida e de outros(as) jovens
da periferia, que mais que gênero musical se tornou fonte de aprendizagem e
constituição de imagens positivas a respeito da negritude e do pertencimento à
periferia.
Aos 16 anos trabalhei com metalurgia nos fundos de uma casa na região da
Capela do Socorro, Zona Sul de Paulo, que já era uma espécie de polo de
concentração de indústrias. Mas, o meu trabalho era terceirizado, um encarregado
de uma das empresas levava as peças a serem produzidas por um grupo de jovens
e recebíamos nosso pagamento de acordo com a produção, sem registro em
carteira e nem garantias de direitos trabalhistas. Falo desse lugar porque foi ali que
tive acesso à chamada MPB e outros gêneros como o rock nacional dos anos 80.
Foi uma experiência marcante, o filho “rebelde” da família, Fabrício,
costumava acordar no início da tarde, logo após o nosso horário de almoço e tocava
na sala ao lado do ambiente onde trabalhávamos as músicas que gostava de ouvir,
em alto volume. Isso incomodava parte do grupo de adolescentes trabalhadores(as),
mas em mim causou empatia e aos poucos fui conhecendo as canções e seus
intérpretes.
Com o pagamento que recebia, que na maioria das vezes não chegava a um
salário mínimo, comecei a comprar discos de vinil dos(as) cantores(as) que me
chamaram maior atenção, Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Gal
Costa, Maria Bethania e Geraldo Vandré, assim como discos de algumas bandas
como Legião Urbana, Titãs e Capital Inicial.
Faço esse relato nessa etapa do texto para ressaltar os questionamentos que
apresentei inicialmente. Intrigava-me o fato de não ter acesso a esse tipo de música
no local onde morava e ainda moro. Questionava-me porque na programação das
emissoras de rádio e TV que costumávamos ver e ouvir em casa essas canções não
eram difundidas.
Isso gerou um “divisor de águas” em minha vida, pois a cada vez que adquiria
um LP, comprado nos “sebos” que vendiam discos usados, minha vontade de
conhecer mais e me aprofundar na conjuntura de produção daquelas músicas
aumentava. Na minha formação como historiadora os discos vieram antes dos livros,

193
visto que foram as canções e seus sujeitos, que me levaram a estudar os momentos
históricos, com destaque para o período da Ditadura Civil Militar. As críticas
presentes nas canções se alinhavam com a visão de mundo que eu tinha, fruto
também da experiência com as músicas que ouvia desde a infância e o RAP,
gerando uma noção bastante sensorial do que hoje chamo de temporalidades e
suas permanências.
Foi assim que aos 17 anos, já concluindo o antigo Colegial, resolvi fazer
graduação em História. Levou um tempo, fiz cursinho pré-vestibular, participei do
processo seletivo da FUVEST e não passei. Em 1997 ingressei no curso de História
da Universidade de Santo Amaro, uma universidade privada. Logo no início do curso
fomos comunicados(as) que teríamos que fazer um Trabalho de Conclusão de
Curso (TCC) e nos primeiros semestres já tínhamos a disciplina de Iniciação
Científica e Prática de Pesquisa. Quando cogitada a necessidade de se pensar num
tema, não tive dúvidas, desejava pesquisar sobre as músicas produzidas dentro do
período da Ditadura Civil Militar.
Recebi amplo apoio do professor Ival de Assis Cripa, que de forma
antecipada foi me dando dicas para delimitação do tema. No momento de
apresentação do pré-projeto, já no terceiro semestre do curso, tinha a temática
delineada, decidi pesquisar sobre Geraldo Vandré.
Os questionamentos eram bastante simplistas, mas foram sendo aprimorados
por meio das orientações do professor. A principal problematização era: Por que, ao
contrário de outros cantores também perseguidos pela ditadura, Vandré não voltou a
cantar? Além disso, pairava sobre meu pensamento o questionamento vindo de
anos atrás: Por que esse tipo de música não era acessível às pessoas que moravam
nas periferias?
Pode parecer um dilema ingênuo, apresentado dessa forma, mas esses foram
os embates que me trouxeram até aqui. A princípio com o desenvolvimento da
dissertação de mestrado em História na PUC/SP: Para não esquecer Vandré,
orientada pela professora Maria do Rosário da Cunha Peixoto. Depois, já no ano de
2015 a elaboração do Pré-projeto de doutorado, envolvendo outros sujeitos, outros
artistas que mesmo dentro do circuito de difusão da MPB, da Tropicália e da Bossa
Nova, não tinham tanta evidência.

194
A estruturação dessa pesquisa e a delimitação da temática, sob orientação da
Rosário, me levaram a ampliação das análises sobre os músicos, compositores e
cantores: Airto Moreira, Geraldo Vandré, Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte,
Sérgio Ricardo e Sidney Miller. Num primeiro momento, dentro da perspectiva de
presente, os principais questionamentos eram sobre a falta de visibilidade e as
relações desses artistas com a indústria cultural brasileira.
No decorrer do trabalho e, sobretudo, a partir das entrevistas pude notar a
importância de registrar e analisar suas trajetórias, pontos de convergências,
particularidades e relações com a música e construção de suas obras.
No primeiro capítulo “Conexões e relações com a arte: Nas ruas, cidades e
sertões” busquei evidenciar seus primeiros contatos com as sonoridades e
musicalidades dos locais onde nasceram e cresceram o que me possibilitou uma
compreensão maior a respeito de suas composições e posicionamentos dentro do
período delimitado (1960-1990).
Nesse capítulo fica evidente que os vínculos com a música surgem ainda na
infância, tendo particularidades em função da conjuntura e dos locais de onde
vieram. Hermeto Pascoal (Lagoa da Canoa - Alagoas) e Airto Moreira (Nascido em
Santa Catarina, mas criado em Ponta Grossa - Paraná), por exemplo, passaram a
infância em lugares relacionados aos espaços rurais, tendo algumas semelhanças
nos primeiros passos, nas observações do entorno, no contato com a natureza e na
produção de “instrumentos” a partir de objetos e plantas que os circundavam.
Também passaram por experiências de tocar nos bailes, festas de casamento,
batizados e comemorações de toda sorte, ainda bem novos. Uma prática comum,
presente nas histórias de outros artistas provenientes das zonas rurais.
Essas memórias são muito vívidas para ambos, seus relatos partem dessas
relações e da importância da liberdade de criações ainda na infância. Além das
experiências nos bailes da vizinhança ressaltam também a procura por emissoras de
rádio, já com a convicção de que desejavam investir na carreira musical.
Com as devidas particularidades, Sérgio Ricardo (Marília – São Paulo),
Geraldo Vandré (João Pessoa – Paraíba), Herlado do Monte (Recife – Pernambuco),
Sidney Miller (Rio de Janiero – RJ) e Theo de Barros (Rio de Janiero – RJ), também
se sensibilizaram para a música na infância, tendo influências familiares e dos
ambientes em que viveram. Com experiências dos centros urbanos, mas também

195
com características demarcadas por processos de transição, ou seja, com fortes
ligações com as culturas das cidades interioranas.
Além do incentivo por parte de alguns familiares ligados à música, exceto
Vandré, todos eles passaram por experiências e contatos com a música nos
ambientes escolares. Sérgio Ricardo estudou piano desde pequeno, Geraldo Vandré
acompanhava a programação do rádio e sonhava em ser cantor a revelia da mãe
que almejava sua graduação em Direito, Heraldo do Monte participou da banda de
seu colégio tocando clarinete, Theo de Barros tinha em sua casa o trânsito e as
práticas de músicos profissionais e Sidney Miller já se dedicava à literatura e às
primeiras composições também em sua escola.
Essas informações nos aproximam da importância que a música teve nas
vidas dessas pessoas, e cada trajetória e alguns caminhos cruzados, demarcam a
dedicação e o empenho para se profissionalizarem e, mais do que isso pensar
música, de uma forma muito íntegra e com seriedade. O sentimento relatado por
eles ou contado por outras pessoas com as quais tiveram contato, como é o caso de
Sidney Miller (em memória), é de amor pela música, além de uma profunda
dedicação.
A criatividade e as escolhas dos gêneros a que se dedicaram não podem ser
compreendidas sem o conhecimento de suas histórias, por isso, o primeiro capítulo
trata dessas questões. Mesmo que em alguns momentos, do ponto de vista formal o
texto assuma um caráter biográfico, considerei importante dar ênfase às suas falas.
O texto acadêmico é um veículo limitador da transposição dos sentimentos que
presenciei, das histórias que ouvi e das sensações provocadas, sobretudo, por
transcenderem à noção de racionalidade. É um projeto ainda incipiente, mas desejo
produzir um documentário, que fortaleça o que busquei comunicar nesse trabalho,
na verdade, uma necessidade, visto que as palavras não bastam para compreensão
dos fatos comunicados.
Os caminhos para a profissionalização também se entrecruzam e possuem
semelhanças. A busca pelos centros urbanos e mais tarde para o Eixo Rio/São
Paulo, os trabalhos em bares e boates nas noites, as adaptações aos repertórios e
os contatos obtidos por essas práticas são etapas fundamentais para a consolidação
de suas projeções e possibilidades de ganhos financeiros para sobreviverem como
músicos, compositores e cantores.

196
As rádios têm um papel fundamental nas trajetórias citadas, no final dos anos
1950 e início dos anos 60 ainda era bastante comum os programas de auditório,
alguns com caráter de concursos musicais, outros com propósitos de tocar canções
ao vivo. Para os músicos, um importante meio de sobrevivência, uma vez que eram
bastante requisitados para acompanhamentos de cantores(as) diversos(as).
O trabalho na noite, seja em Recife, como foi o caso de Hermeto, Heraldo e
Geraldo Vandré ou em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde também atuaram como
os demais, foi um período de extrema dedicação, de aprendizagens e percalços.
Mas, sobretudo, uma “abertura de portas” para que se tornassem conhecidos, que
estabelecessem contatos importantes com outros artistas e que se enfronhassem
nos meios musicais.
Paralelamente continuaram compondo e buscando autoafirmação, o que
relato no segundo capítulo “Indústria Cultural Brasileira, tensões e suas relações
com a música”. Entre os processos de criações, concepções e apresentações das
obras há mediações que atravessam esses fazeres, o conjunto de mecanismos
compostos no período delimitado, com feições e características particulares em cada
momento, interferem, ainda que sem poder determinante, como ressaltei durante
todo o texto, nas obras e suas veiculações. É nesse ponto que reafirmo o caráter
autoritário de nossa sociedade e, consequentemente da indústria cultural brasileira,
que não se limitavam à Indústria fonográfica e suas gravadoras, mas a toda uma
rede de comunicação que atuaram na difusão, interferindo diretamente nos
processos de difusão e acesso às obras por parte da população.
Todos os relatos nos permitem verificar pontos de tensões, que são de forma
geral mais evidenciados durante a Ditadura Civil Militar, quando o Estado assume
seu caráter autoritário e os mecanismos de controle coadunam com alguns setores
da indústria cultural brasileira, destacando que mesmo assim havia projetos
divergentes, mas que também são verificados em momentos ditos democráticos,
como no final dos anos 1980 e anos 90.
Essas “tensões” estão diretamente ligadas ao fazer político da arte, que pode
ser assimilada ou repelida, de acordo com o posicionamento de seus criadores. Mas
há também processos de negociação e de pressões bastante complexos que
possibilitam a quebra de algumas imposições. As frestas sempre existiram, mas é
inegável a feição controladora das obras e das formas de veiculação. Existem

197
fatores diversos que atuam nesse sentido, sem retirar o caráter político, é possível
refletirmos sobre a mercantilização da música e das canções e seu direcionamento
para um público específico, passando obviamente por questões de classe e das
construções em torno do que se chamou de “cultura de massa”.
Nesse sentido o papel da TV, do rádio e da imprensa escrita tem muito a ver
com as restrições de acesso e o direcionamento do tipo de música a ser
“consumida” pelo público. Além disso, a própria concepção da música e suas
diferentes tendências geram formas de recepções também bastante complexas.
A Bossa Nova, por exemplo, tem em suas bases uma cultura voltada para os
centros urbanos, feita e cultuada por pessoas da classe média, ainda que tenha se
“alimentado” de expressões da música popular, como o samba. A chamada MPB,
como já problematizada anteriormente teve como público principal a esquerda
intelectualizada, com seus níveis de identificação e contemplação dos projetos de
sociedade vislumbrados pela juventude dos anos 1960, ainda que tenha se
expandido de forma bastante restrita aos demais setores e grupos populares. Cada
“movimento” ou “gênero” possui particularidades que nos ajudam a entender suas
relações com a indústria cultural brasileira, em seus momentos de “assimilação”
permeadas por interesses financeiros ou de “repulsão” diante das pressões
exercidas pelo Estado autoritário.
Essas questões são bastante complexas, não intenciono qualificar ou
desqualificar movimentos como a Tropicália, por exemplo, mas enfatizar que as
questões que lancei inicialmente a respeito do acesso às obras passam por
reflexões muito profundas a respeito da constituição de um “mercado consumidor” e
sobre a significação e criação de estereótipos acerca do popular.
A forma como cada músico, compositor e cantor aqui abordado se relacionou
com a indústria cultural brasileira é bastante particular. Vandré e Sérgio Ricardo
tiveram grande evidência nos anos 1960. Vandré teve inclusive programa na TV
Record “Disparada”, do qual participou também o Quarteto Novo. Depois de sua
apresentação no Festival Internacional da Canção de 1968, promovido pela Rede
Globo, com a canção “Para não dizer que não falei de flores” e com o Ato
Institucional Nº5 e seu consequente exílio, passou a ser banido, seus discos
confiscados e seu nome proibido de ser veiculado. Sérgio Ricardo também relata,
que sofreu grande perseguição e que suas canções eram proibidas de serem

198
tocadas nas rádios. Na verdade, durante todo o período ditatorial a música foi alvo
de repressão, mesmo antes do AI-5 e da censura prévia. Mesmo assim, as canções
eram veiculadas e os discos vendidos. A ditadura foi ditadura desde o primeiro
instante, mas há períodos de acirramento e as consequências após o exílio foram
variáveis em relação a cada artista e suas formas de manifestações.
Vandré, por exemplo, lançou o disco “Das Terras de Benvirá”, que não lhe
trouxe nenhuma projeção, o que contradiz o discurso de que ele optou por não dar
continuidade às atividades artísticas. Como sabemos, sua participação em qualquer
veículo de transmissão foi vetada e a mídia continuou produzindo uma imagem
equivocada a seu respeito, nas poucas vezes em que foi citado, constituindo uma
imagem de “louco” e “contraditório”. A “cultura de esquerda” também contribuiu para
essa constituição, obviamente com exceções, mas os discursos de que ele “traiu e
abandonou” o “movimento” são presentes.
Vale destacar, mesmo estando fora da periodização da presente pesquisa,
que em março de 2018 realizou duas apresentações em João Pessoa, financiadas
pelo Governo estadual da Paraíba. Momento em que após 50 anos de
silenciamento, apresentou músicas inéditas que compôs ao longo dos anos e cantou
“Pátria amada, idolatrada, salve, salve” e “Pra não dizer que não falei de flores”.
Fato significativo, sobretudo, no momento político em que vivemos, indicativo de que
não estar em evidência não significa que deixou de produzir e de acreditar na arte.
Sérgio Ricardo, também continuou produzindo, lançou discos, como
“Arrebentação” em 1971, “Sérgio Ricardo” em 1973 e também produziu filmes, como
“A noite do espantalho” em 1973, um longa metragem que trazia Alceu Valença e
Geraldo Azevedo, considerado uma “opera brasileira” que ganhou prêmios
internacionais, sem grandes evidências no Brasil.
Continua na ativa, no Morro do Vidigal no Rio de Janeiro, fazendo músicas,
canções, apresentações, teatro e música. Mas, como ele mesmo cita “a mídia não
quer saber de mim”. Suas produções são independentes e os recursos bastante
escassos. É também artista plástico, pinta quadros há décadas, inclusive tem um
mural na praça de alimentação da PUC/SP, pouco notado pela juventude
universitária.
Sidney Miller, como relatou Joice Moreno, passou por momentos de grande
frustração diante da repercussão, ou falta dela, com seu último disco “Línguas de

199
fogo” gravado em 1974. Nesse LP houve uma tentativa de assumir “novas
roupagens” diante do cenário musical da época. De acordo com Joice, Sidney
buscou se aproximar do que era considerado mais “moderno”, modificou sua
aparência, elementos da capa do LP, mas mesmo assim permaneceu esquecido.
Isso ocorre também posteriormente a sua morte, segundo Joice sua obra caiu num
ostracismo, num total esquecimento. Com destaque para o próprio meio artístico,
visto que Sidney Miller tem uma série de composições, grande parte ainda inédita.
Recentemente teve a canção “É isso aí” regravada em 1971 por Doris Monteiro, foi
recentemente parte do repertório pelo grupo Casuarina e regravada também por
Paula Lima. Essa é uma canção com uma particular popularidade entre os pobres,
numa versão em ritmo de samba rock feita no início dos anos 1980, o que evidencia
que o acesso às obras ou a falta de acesso acabam por gerar formas de valorização
por parte desses grupos sociais, o que contraria as noções de “bom gosto” e “mau
gosto” musical recorrente nos discursos hegemônicos que buscam enfatizar
hierarquias diante das diferentes culturas musicais e suas formas de disseminação e
assimilação.
Como pudemos sentir nesse primeiro capítulo a cultura musical brasileira é
vasta e permeada por diferentes sentimentos e intenções, assim como também
ocorre com os conteúdos e formas de expressá-los. As dificuldades enfrentadas
pelos sujeitos aqui evidenciados também são constituintes de suas obras, desde o
despertar para as musicalidades durante a infância, as sensibilidades e o forma
como cada um deles forjou a sua existência e o “pensar música” até as relações
estabelecidas com a indústria cultural brasileira, dentro do que salientei a respeito
das tensões, relações e formas resistências.
Elemento fundamental dessa pesquisa foi o aprofundamento sore a música
instrumental brasileira, por meio do estudo do projeto que culminou com o
lançamento do LP “Quarteto Novo”, empreitada financiada e motivada por Geraldo
Vandré, que envolveu músicos importantes e de grandes potenciais: Airto Moreira,
Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal e Theo de Barros, cujas trajetórias foram aqui
analisadas enquanto grupo que promoveu uma experiência fundamental, tornando-
se referência para a musicalidade e atingindo o propósito de improvisos a partir de
formas musicais brasileiras.

200
A trajetória individual, após o término do quarteto, por dificuldades financeiras,
após o exílio de Geraldo Vandré, possibilitou um mergulho nas diferentes
experiências e uma proximidade, ainda que sem um caráter analítico profundo do
ponto de vista da teoria musical. Mas, de forma sensorial e dentro das possibilidades
de uma abordagem historiográfica, busquei colocar em evidência a genialidade
desses músicos e os entraves para quem vive dessa arte.
No segundo capítulo “Indústria Cultural Brasileira, tensões e suas relações
com a música” busquei analisar a forma como cada artista construiu a sua carreira
profissional, seus encontros, convergências, particularidades, formas de sentir e
viver a música e as canções. Assim como as formas de produção junto à indústria
fonográfica e todo mecanismo que compõe a indústria cultural brasileira.
Sem um olhar determinista sobre essas relações, destaco que é preciso
pensar a música e as canções dentro de um sistema que, para além dos processos
criativos, são atravessadas por toda uma estrutura que interfere diretamente na
forma como cada artista obtém projeção, visibilidade ou busca permanente de
transpor as teias desse sistema para que suas obras possam ser veiculadas, ou
seja, chegar até o público, por diferentes suportes, como o disco e também os meios
de comunicação, como o rádio e a televisão.
Esse processo é permeado por tensões, onde nem sempre os interesses
hegemônicos são vencedores, mas é inevitável pensarmos nas concepções de
mercantilização das obras e na constituição do chamado “mercado consumidor” que
atingem diretamente os processos criativos, ainda que haja resistência.
As relações entre a indústria cultural brasileira e a sociedade autoritária da
qual faz parte, com a música produzida no Brasil se constitui num campo de
interesses que não é impermeável, mas que acaba por dificultar o conhecimento e a
consequente valoração das músicas e canções produzidas. O que não pode ser
visto como processo contínuo e homogêneo, visto que existem dissonâncias e
brechas que extrapolam as formas de controle, seja no interior da própria indústria
ou pelas pressões exercidas por forças populares e pela dinamicidade das culturas
musicais que existem e resistem.
As políticas que se relacionam aos direitos autorais e a forma como os
artistas buscaram se organizar, questionar e exercer pressões em diferentes
momentos foi alvo de reflexões. Chegando à compreensão de que dentro do período

201
analisado existiram diferentes posicionamentos e formas de avaliação sobre as
agências arrecadadoras. Esse é, sem dúvida, um aspecto que merece maior
aprofundamento em estudos futuros.
No terceiro e último capítulo “Fé, amor e mais nada: Iniciativas e resistências”,
cujo título tem sua origem a partir de uma fala de Theo de Barros, quando o indaguei
sobre sua relação com a música, pensando em sua trajetória, mas também, no
momento presente, com foco e intenção de compreender as “molas propulsoras”
desses fazeres. O questionei sobre o que o motiva a continuar se dedicando à
música e ele me respondeu, com seu semblante sério e tímido ao mesmo tempo,
que era: Fé, amor e mais nada.
Esse diálogo, sem dúvida, me provocou sentimentos diversos, ao mesmo
tempo em que houve uma retomada das questões iniciais e motivadoras dessa
pesquisa, consolidou a minha convicção de que a arte e seus sujeitos têm um papel
fundamental nessa vida, uma força que transcende aos obstáculos e projetos
hegemônicos, que alimentam nossa humanidade a partir do contato com visões de
mundo comunicadas por meio de sons, sonoridades, musicalidades e versos.
Tendo como referência o suporte do disco de vinil, analisei a produção dos
músicos, compositores e cantores, sem deixar de pensar que, dentro do período
delimitado e ainda hoje as formas de veiculação não são correspondentes ao valor
cultural dessas obras. Infelizmente grande parte do que foi produzido por esses
artistas e muitos(as) outros(as) permanece desconhecida do “grande público”.
Ocorre que esse chamado “grande público” não é homogêneo. Não somos
“massa de manobra”, resistimos cotidianamente às mais diversificadas formas de
violência, também de jeitos e feições diferentes, de acordo com as estruturas,
posicionamentos e personalidades construídas ao longo da vida. A minha defesa é a
de que temos direito ao acesso, às escolhas e que toda forma de cerceamento e
tentativas de controle é uma afronta à nossa humanidade. As nossas sensibilidades,
criatividades, sabedorias, experiências, “percalços”, culturas, ancestralidades nos
fortalecem e muitas vezes nos levam às construções de caminhos de resistências
que são na verdade, também, o combustível para a produção e recepção das
diferentes linguagens artísticas.
Afinal, o que seria da música sem a cosmovisão dos povos “oprimidos”? Os
conhecimentos denominados “populares” e as expressões de nossas musicalidades

202
alimentam o que intencionam reelaborar num prisma elitista, por grupos
hegemônicos que historicamente tem “patenteado” aquilo que tentam desqualificar.
Por isso, nossa luta cultural constante e reinvindicações “me parece imagem justa
para quem vive e canta no mau tempo”.26

26
Frase recitada por Maria Bethania durante a canção A Dona do Raio e do Vento, composição de Doryval
Caymmi - https://youtu.be/wR05zNR5GCc
203
Fontes Principais

História Oral

Entrevista com Sérgio Ricardo (Vidigal/RJ, 2015)


Entrevista com Hermeto Pascoal (Curitiba/PR, 2015)
Entrevista com Heraldo do Monte (São Paulo/SP, 2015)
Entrevista com Heraldo do Monte (São Paulo/SP, 2018)
Entrevista com Theo de Barros (São Paulo/SP, 2015)
Entrevista com Airto Moreira (Skype – EUA, 2015)
Conversa com Airto Moreira (Curitiba/PR, 2018)
Entrevista com Joice Moreno (São Paulo/SP, 2015)
Entrevista com Geraldo Vandré (João Pessoa/PB, 2018)

Imprensa

Matérias da Revista Veja – 1960/90


Revista Disco de Bolso – Pasquim – Edição 1 (Com disco compacto: Tom Jobim e
João Bosco), 1972.
Revista Disco de Bolso – Pasquim – Edição 2 (Com disco compacto: Caetano e
Fagner), 1972.

Discografia (Análise das músicas, canções e capas dos LPs)

LP Quarteto Novo – ODEON, 1967


LP “Geraldo Vandré”. Audio Fidelity, 1964
LP “Hora de Lutar”. Geraldo Vandré - Continental, 1965
LP “Canto Geral”. Geraldo Vandré - EMI-ODEON, 1968
LP “Das terras de Benvirá”. Geraldo Vandré - PHILIPS, 1973
LP “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Sérgio Ricardo – (Trilha sonora do filme de
Glauber Rocha) – FORMA, FM-3, 1964
LP “A noite do Espantalho”. Sérgio Ricardo (Trilha sonora do filme homônimo) –
Continental, 1974
LP “Senhor Talento”. Sérgio Ricardo – Elenco, 1963
204
LP “Heraldo do Monte”. (Homônimo) – Eldorado, 1980
LP “ConSertão”. Elomar, Heraldo do Monte, Paulo Moura e Arthur Moreira Lima –
Karup, 1982
LP “Cordas Vivas”. Heraldo do Monte – Som da Gente, 1983
LP “A Música Livre de Hermeto Pascoal. Hermeto Pascoal, WEA, 1973
LP “Slaves Mass (Expanded). Hermeto Pascoal- Warner Bros. Records, 1977
LP “Primeiro Disco”. Theo de Barros – Eldorado, 1979
LP “Línguas de Fogo”. Sidney Miller – Som Livre, 1974
LP “Sidney Miller”. (Homônimo) – Elenco, 1967
LP “Brasil, do Guarani ao Guaraná” Sidney Miller – Elenco, 1968
LP “Sidney Miller - Projeto Almirante/Funarte (tributo) – 1982
LP “Fingers”. Airto Moreira - CTI Records, 1973
LP “Virgin Land”. Airto Moreira - Salvation Records, 1974

Filmes

“A noite do Espantalho”. Autores: Sérgio Ricardo, Maurice Capovilla (Roteiro,


direção e música de Sérgio Ricardo), 1974
“A Hora e Vez de Augusto Matraga”. Direção de Roberto Santos, baseado no conto
de Sagarana de Guimarães Rosa e trilha sonora de Geraldo Vandré, 1965

Livros

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