Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Capoeira é Liberdade!
A Experiência Político-Cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora
na Cidade de São Paulo (1976-2004)
São Paulo
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Programa de Pós-Graduação em História
Capoeira é Liberdade!
A Experiência Político-Cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora
na Cidade de São Paulo (1976-2004)
São Paulo
2011
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
À memória de Mestre Maurício, que nos
deixou na lembrança e na vida as marcas
da ousadia, alegria e beleza de se jogar
capoeira.
“ AGRADECIMENTOS”
Apresentação.........................................................................................................................01
Capítulo I
.......................................................................................................................................26
Capítulo II
Capítulo III
4. Considerações Finais...........................................................................................................185
5. Fontes..................................................................................................................................189
6. Referências Bibliográficas..................................................................................................191
APRESENTAÇÃO
“Um dia desses, comecei imaginar, que força é essa, que nos faz
continuar. Parece que corre nas veias, não consigo explicar. Força
que traz energia pra cantar e pra jogar. Que força é essa, que está no
ar?É dança, é arte, é cultura popular. É a força da capoeira, essa
arte milenar. Na roda da capoeira, na vibração do instrumento, o
cantador com sua voz, faz ecoar o sentimento. Então que surge essa
força, que acompanha o jogador, que está em cada um de nós, dentro
do nosso interior. Que força é essa, que está no ar?É dança, é arte, é
cultura popular. Força que vêm de uma luta, que é patrimônio
cultural. É brincadeira que se dança e hoje é esporte nacional. Já foi
arma para o negro conquistar a liberdade, pra hoje, nós capoeiristas
jogarmos com felicidade.
1
Diógenes Argueles Francisco é aluno da Associação Cultural Corrente Libertadora desde 2004, atualmente na
quinta graduação (das dezesseis que a Associação compreende). Atua como monitor de capoeira desde 2006,
trabalha atualmente (2010) no Projeto São Paulo é Uma Escola, em parceria com a Secretaria Municipal da
Educação da Cidade de São Paulo.
1
Quando me vi diante da responsabilidade de escrever essa apresentação entrei
inesperadamente em um diálogo com as lembranças do processo inicial da pesquisa que agora
aqui é apresentada. Estava muito preocupada em demonstrar o caminho metodológico que
desenvolvi durante a pesquisa: as perspectivas históricas, as dificuldades teóricas e
conceituais que encontrei, o diálogo com as fontes, as especificidades de trabalhar com a
História Oral, etc. No entanto, ao participar de um evento promovido pela Secretaria
Municipal da Cultura do Município em Agosto de 2010, me dei conta das razões pelas quais
iniciei esse processo de pesquisa.
O objeto de estudo, entretanto, não era um objeto. Eram pessoas, sujeitos históricos
que vivenciam cotidianamente a prática da capoeira e que através e pela prática desta
desenvolvem trabalhos dentro de uma perspectiva pedagógica pautada na acolhida, respeito e
construção conjunta do conhecimento.
2
é um multiplicador e/ou monitor de capoeira. Dentro do trabalho desenvolvido pela Corrente
Libertadora, isso significa que ele ministra oficinas de capoeira, embora não tenha uma
graduação de instrutor, professor ou contra-mestre, como é comumente aceito no mundo da
capoeiragem e/ou definido pela Federação Paulista de Capoeira.
Outro aspecto relevante é que o aluno comanda a roda de capoeira puxando (cantando)
sua própria composição, ladainha, sem a necessidade que o Ms. Tigrão, mestre representante
da Associação Cultural Corrente Libertadora, intervenha. A atuação de Diógenes no Projeto
São Paulo é Uma Escola indica o processo de profissionalização do aluno e, por outro lado, a
garantia de gratuidade para as crianças e adolescentes atendidas pelo projeto, visto que o
projeto é subsidiado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
Esses três pontos fazem parte de uma perspectiva pedagógica mais ampla, mas que nos
ajuda a compartilhar aqui, as razões que motivaram o desenvolvimento dessa dissertação.
Estamos pontuando os aspectos pedagógicos, pois foram eles que motivaram e nortearam a
pesquisa no primeiro momento.
No contato com a Corrente Libertadora por 15 anos, sempre nos chamou a atenção o
fato de se aprender a jogar capoeira, tocar os instrumentos musicais – berimbau, pandeiro,
atabaque e agogô -, dançar maculelê, samba de roda e ainda se envolver em outras atividades
de formação, sem obedecer necessariamente a uma sistematização de aula e treino, como
comumente ocorre na maioria das academias e grupos de capoeira.
Outro aspecto que nos chamava a atenção era a convivência entre alunos e entre
alunos e mestre. Nesses anos, participando de aula no mesmo espaço e ao mesmo tempo com
meninos e meninas em situação de rua, portadores de necessidades especiais – principalmente
auditivos e mentais – alunos de faixa etária diversificada (de crianças de 6 anos a senhores e
senhoras com mais de 70 anos), jovens em conflito com a lei, jovens estudantes, profissionais
liberais, enfim, muitas pessoas e portanto, uma gama infinita de possibilidades de estabelecer
relações afetivas, culturais e profissionais, presenciamos uma convivência pautada na inclusão
e respeito à pluralidade.
3
cantando sua ladainha em um espaço público da região: o Paço Cultural Júlio Guerra,
popularmente conhecido como Casa Amarela, cravada no coração do Largo 13 de Maio.
Como se desenvolve esse processo de aprendizagem foi o que nos motivou a pesquisar
a experiência de capoeira da Associação Cultural Corrente Libertadora e foi através desse
desejo que chegamos ao processo seletivo da Pós-Graduação em História da PUC-SP, com o
apoio da profª Drª Maria do Rosário da Cunha Peixoto.
4
A alteração da primeira parte do título, Capoeira é Liberdade! é o resultado em parte
de preocupações conceituais observadas pela banca de qualificação e, por outro lado, revela o
interesse em evidenciar o sentido de luta por transformações sociais através da cultura, o que
nos remete à trajetória política da Associação. Utilizamos três versos da música Capoeira é
Liberdade (Ms. Maurício e Ms. Moreira, 1981) como epígrafes dos capítulos com a pretensão
de deixar registrados esses significados e como uma modesta homenagem ao precursor da
Corrente Libertadora, Mestre Maurício.
Acreditamos que o aspecto parcial que a pesquisa poderia ter assumido foi minimizado
pelo próprio fazer histórico: a pesquisa, as fontes, as leituras, a orientação e a reflexão foram
fundamentais nesse processo, não apenas assegurando os princípios metodológicos do
trabalho, mas permitindo realizar com coerência a escolha do que queria se apresentar na
dissertação.
Desde o início percebemos que nossa fonte primária seria as entrevistas com os
fundadores, alunos e colaboradores da Corrente Libertadora.2 Tomar os depoimentos orais
como fonte primária e a experiência político-cultural da Associação como tema central da
pesquisa ia de encontro com as preocupações e produções de pesquisadores de parte
significativa do corpo docente do programa de Pós-Graduação em História da PUC e,
paralelamente, contemplava o objetivo de pesquisar em diálogo com os protagonistas diretos
dessa experiência.
2
Essa constatação se deu considerando as particularidades de se pesquisar na perspectiva da História do
Presente, na ausência de um arquivo da Associação Cultural Corrente Libertadora e a acessibilidade aos
possíveis entrevistados.
5
Perseguindo o desejo de dialogar com os sujeitos de nossa pesquisa e ao mesmo tempo
marcar a presença do historiador no processo de análise, problematização e considerações, os
trabalhos de Alessandro Portelli nos foram fundamentais3. O respeito, as especificidades, a
ética, a subjetividade e a historicidade inerentes à produção das fontes orais são elementos,
aos quais, o pesquisador deve sempre estar atento. Estamos certos de que o caminho de
aprendizagem nesse campo ainda é longo para nós, mas acreditamos que para esse primeiro
exercício nosso objetivo foi alcançado.
O contato com as fontes nos fizeram perceber que a proposta pedagógica desenvolvida
por Ms. Tigrão que tanto nos interessava estava alicerçada em uma vivência política e cultural
da Associação desde sua fundação em 1976. Pensando nisso, o recorte temporal inicialmente
delimitado em 1989-2008 recuou para 1976-2004.
Com o caminhar da pesquisa pudemos ter clareza que o recorte temporal inicial estava
carregado de afetividade, visto que, como acima mencionamos, participamos desse processo
como sujeitos ativos, quer dizer, como aluna que vivenciou na prática da capoeira o
desenvolvimento da pedagogia proposta.
3
Ver: Referências Bibliográficas, p. 195.
4
Apesar da formação do Grupo de Capoeira Corrente Libertadora ter se dado por volta de 1974-75,
metodologicamente tomamos o ano de 1976 como ano de fundação por tratar-se do momento em que os irmãos
Maurício, Eufraudísio, Eufrásio e Magnólia gestaram a transformação do grupo em Associação de Capoeira
Corrente Libertadora e depois definitivamente em Associação Cultural Corrente Libertadora e, juntos,
coordenaram as atividades da Associação.
6
Ali comecei de fato a treinar e na minha detraída percepção nada indicava que se
tratava de um trabalho diferenciado. Somente alguns meses depois, estreitaram
definitivamente meus laços de respeito, camaradagem e trabalho com a Corrente Libertadora.
Assim, a vida acadêmica se fez uma extensão da roda de capoeira: um jogo apertado,
um diálogo constante, um prazer ressabiado, uma malícia no corpo. Tomar a capoeira
praticada pela Associação Cultural Corrente Libertadora como instrumento de intervenção
7
social, exigiu escolhas metodológicas e políticas, inclusive, recuar no recorte temporal e
definir eixos temáticos que possibilitassem um olhar não apenas sobre a capoeira, mas sobre
as estratégias desenvolvidas pela Associação para a continuidade de seu trabalho.
Nossa preocupação com a capoeira nesse trabalho, diz respeito a forma como ela foi
apropriada pela Associação Cultural Corrente Libertadora como instrumento de intervenção
social. Mais do que um olhar antropológico sobre a capoeira, nossa intenção foi a de trazer à
cena as possibilidades políticas que a capoeira propicia através de sua linguagem plural, que
agrega musicalidade, destreza de luta, performance e tradição oral.
Nossa atenção com a formação política e cultural dos fundadores da Associação, com
a prática pedagógica para o ensino da capoeira e as estratégias da atuação e manutenção da
Associação, se colocaram no diálogo com as fontes e no caminho metodológico que tentamos
trilhar.
8
de Mestre Tigrão com o qual realizamos duas conversas (entrevistas), os demais
concentraram-se em uma entrevista.
Nesse sentido, acabamos por identificar dois períodos distintos, porém, interligados
através do fazer cultural da capoeira e político da Associação: um primeiro período de 1976-
1988 e o segundo período de 1989-2004 .
5
Foi através de Mestre Maurício que Eufrásio Modesto (Ms. Tigrão), Magnólia e Eufraudísio (Ms. Eufraudísio),
aprenderam e aprimoraram o jogo de capoeira.
9
A partir dessa reestruturação da Associação e respondendo as demandas sociais e
culturais de seus alunos, Ms. Tigrão deu início à construção da proposta pedagógica
rompendo com práticas pedagógicas anteriores e redefinindo metas e estratégias de ação
adotadas pela Associação no período anterior.
Assim, pensando na complexidade das relações sociais dessa família migrante que
através da capoeira passou a intervir ativamente nas lutas políticas na cidade de São Paulo e
da relevância desses aspectos para a definição das particularidades da capoeira proposta pela
Associação é que o recuo temporal se fez necessário e se desdobrou no primeiro capítulo
dessa dissertação, intitulado I. Da Sombra da Barriguda aos Movimentos Populares:
Capoeira e Política no Processo de Formação da Associação Cultural Corrente Libertadora
(1976-1988).
Para a construção desse capítulo utilizamos como fonte primária as entrevistas de três
dos quatro irmãos que compartilharam essa experiência de fundação e estruturação da
Associação Cultural Corrente Libertadora: Ms. Eufraudísio, Ms. Tigrão e Magnólia. Ms.
Maurício, responsável por trazer para o cotidiano dos irmãos a capoeira e por ter fundado o
grupo por volta de 1975, faleceu em 2005 deixando apenas um pequeno depoimento no
documentário Quilombo da Memória de 1993,6 utilizado aqui como fonte.
6
QUILOMBO da Memória. Direção de Saloma Salomão. São Paulo: Fantasma Vídeo, 1993.
10
na figura de Ms. Tigrão, diferentemente do período anterior, quando a gestão era
compartilhada entre os quatro irmãos.
7
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho- Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
8
Documento: Histórico e Atuação da Associação Cultural Corrente Libertadora, s/d.
11
A capoeira utilizada como elemento de mobilização social e política nesses
Movimentos, certamente conviveu com tensões na relação entre cultura e política, mas em
contrapartida, desencadeou a construção de perspectivas culturais, pedagógicas, políticas e
sociais que influenciaram na formação dos fundadores da Corrente Libertadora e nortearam
as diretrizes dos trabalhos por eles desenvolvidos, temas discutidos nesse capítulo.
Entendemos, pois, que a cidade de São Paulo nessa experiência se faz como o campo
que possibilita vir à tona o conflito, não obstante, como o espaço que viabiliza a construção de
redes de comunicação e articulação entre diferentes grupos sociais para a definição de metas e
estratégias de participação política no espaço urbano, através de uma teia tensa de relações em
constante diálogo, disputa e negociação entre os sujeitos envolvidos nessas ações
reivindicatórias e contestatórias, bem como na relação com o Poder Público.
O termo popular guarda relações muito complexas com o termo classe... Os termos
classe e popular estão profundamente relacionados entre si, mas não são
absolutamente intercambiáveis. A razão disso é evidente. Não existem culturas
inteiramente isoladas e paradigmaticamente fixadas, numa relação de determinismo
histórico... As culturas de classe tendem a se entrecruzar e a se sobrepor num mesmo
campo de luta. O termo popular indica esse relacionamento um tanto deslocado entre
cultura e as classes. Mas precisamente, refere-se à aliança de classes e forças que
constituem as classes populares. A cultura dos oprimidos, das classes excluídas: esta é
a área à qual o termo popular nos remete... 9
9
HALL, Stuart. Da Diáspora Africana: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p.245.
12
Isso posto, trabalhamos nessa perspectiva de cultura popular para melhor
compreendermos a experiência da Associação nos dois períodos que anteriormente
10
distinguimos e que optamos metodologicamente em termos como referência temporal para
análise.
A análise do processo pelo qual essas questões se deram e o que a experiência dos
sujeitos históricos envolvidos nessa trajetória nos diz sobre as práticas culturais e políticas de
grupos populares formaram o núcleo central da problematização dessa dissertação. Norteados
por essas preocupações desenvolvemos o eixo temático do capítulo II . Meu Aluno é Meu
Mestre – A Vivência de Capoeira de Mestre Tigrão.
10
O recorte temporal funcionou para nós como um referencial, no sentido de colaborar na organização e
coerência da análise, entretanto, trabalhamos em um movimento de ir e vir, através das inquietações que as
fontes propunham e da necessidade de análise e compreensão do processo histórico em questão.
13
A proposta pedagógica está centrada, na nossa percepção, em duas premissas: a
acolhida e a musicalidade. A partir dessas duas premissas, os elementos e os traços da
tradição da capoeira foram adaptados, reelaborados ou abandonados pela prática do Ms.
Tigrão.
A capoeira embora não possa ser considerada uma arte marcial, visto que essa
conceituação considera apenas tipos de lutas empreendidas em guerras,11 apropriou-se de
golpes de lutas marciais como o Karatê e o Jiu- Jitsu, adaptando-os em sua variante de
Capoeira Regional. Não obstante, a capoeira é uma luta. Uma luta de combate indireto que
compreende movimentos de ataque, defesa e esquiva. Esses movimentos corporais estão
presentes em todo jogo de capoeira e, reafirmamos tratar-se de golpes, pois a sua utilização
está inserida em uma lógica estratégica de combate.
Nesse sentido, ganha visibilidade a capoeira como performance do corpo: o corpo que
toca instrumentos, que canta, que forma a roda, que bate palma, que tem marcas, que traz uma
vestimenta que o particulariza, que se expressa através de movimentos e improvisações.
Enfim, o corpo que joga capoeira.
15
Mestre como um mediador que compartilha com os alunos a aprendizagem da capoeira, traz a
dimensão de uma construção de conhecimento circular (ensinando-aprendendo-ensinando) e
aberta, está pois, baseada no diálogo com o outro, que é sempre diferente.
As demandas sociais imposta por esse viver urbano exigiu da Corrente Libertadora a
disposição em refazer-se continuamente, buscando nas brechas do cotidiano e do fazer
político-cultural, as estratégias para o encontro da capoeira com o aluno, o capoeirista, o
cidadão.
12
SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginárias.São Paulo: Edusp, 2005.
16
Trabalhar em parceria era uma condição que estava posta para a Associação desde sua
atuação junto aos Movimentos Populares da cidade na segunda metade dos anos 70, mas o
processo de redemocratização do país e a nova conjuntura social, política e econômica nos
anos 90 exigiu da Associação o desenvolvimento de novas estratégias de intervenção social.
Nesse período em que os Movimentos Populares se reconfiguravam, formando o que se
popularizou como Terceiro Setor, a lógica e as metas para o estabelecimento de parcerias se
transformaram.
17
profissionais especializados e os projetos em parceria com o Poder Público foram
indispensáveis.
O Transe Essa Rede colocou a Associação diante dos dilemas e proposições das
questões referentes à sexualidade, prevenção e tratamento da AIDS e das DSTs, no universo
da adolescência. Mas do que uma prevenção médica, o Projeto Transe Essa trazia a idéia de
compartilhar e de trabalhar no campo das vulnerabilidades, as quais os adolescentes estão
expostos cotidianamente. Em uma prática de formação compartilhada entre educadores e
adolescentes, o Projeto trouxe a sexualidade para dentro da Associação e a Associação levou
para o Transe a capoeira, aprimorando consideravelmente a proposta da formação do
adolescente multiplicador.
A parceria com o Centro de Referência de Santo Amaro é significativa, pois traz para
nossa discussão, no mínimo, duas dimensões desse processo de rearticulação das forças
sociais nos anos 90. Primeiro a parceria ocorreu através das inquietações e atuação de
profissionais que buscavam soluções para a debilidade dos serviços oferecidos para as
crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social. Significou que profissionais
como, por exemplo, Marcos Veltri (coordenador e orientador de prevenção do CR –Santo
Amaro), voluntariamente passassem a colaborar sistematicamente com a Associação para a
formação dos adolescentes e, essa atuação se fortaleceu através da prática, desdobrando-se
em ações que passaram a envolver não apenas o profissional Marcos Veltri, mas o próprio
serviço público, o Centro de Referência.
13
Muitas dessas lutas políticas se deram em espaços construídos coletivamente pela articulação de parceiros
civis e públicos como o do Fórum de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente de Santo Amaro –
FDCA. A Associação Cultural Corrente Libertadora participou desde o início dessa articulação e manteve
participação intensa através de alunos e mestres no Fórum. Ver: GERASSI, Maria Irene. Resignificando
Sujeitos: A Trajetória de Formação de Sujeitos Políticos no Fórum de Defesa de Direitos de Crianças e
Adolescentes de Santo Amaro. Dissertação de Mestrado em Serviço Social: PUC – SP, 2007.
18
A aproximação de profissionais das ONGs com profissionais de serviços públicos da
região de Santo Amaro possibilitou a afirmação das parcerias com o Poder Público com uma
possibilidade real de intervenção social. Entretanto, as parcerias com o Poder Público,
pautado em propostas financiadas pelo mesmo, trouxeram no bojo de sua efetivação a
complexidade do diálogo com o Estado: os limites e contradições dessa negociação.
No capítulo III, tentamos dialogar com essas questões tendo em vista a participação
efetiva da Associação Cultural Corrente Libertadora nessa articulação entre as ONGs e
Serviços Públicos para ampliar e otimizar o atendimento a crianças e adolescentes em
situação de risco pessoal e social – muitos em situação de rua e em conflito com a lei, e
paralelamente compreender o processo de parceria com o Poder Público através de projetos
de intervenção social financiados pelo mesmo.
Conceitualmente, acreditamos que analisar a capoeira como cultura, mais que como
esporte, permitiu uma reflexão mais de acordo com a experiência da Associação, à medida
que politicamente, cultura popular confere à capoeira legitimidade e visibilidade através da
ação dos sujeitos históricos – os capoeiristas. Foi a trajetória desses sujeitos que garantiu
sobrevida à capoeira no mundo contemporâneo, mediante a um processo orgânico de
valorização do seu conhecimento, construído de forma coletiva e amparado nos saberes
populares com ou sem o reconhecimento das instituições normativas do Estado.
19
processo contínuo de seleção, por parte de um determinado grupo social, no qual certos
significados e práticas são escolhidos e outros excluídos, mas que as permanências os atrelam
a um passado que lhes permitem construir identidades e sociabilidades.
A capoeira é, pois, entendida nesse trabalho como uma manifestação cultural, que
agrega elementos da música, dança e golpes de lutas marciais. A capoeira desenvolvida pela
Corrente Libertadora parece estar longe tanto da visão estática apresentada pelos nossos
folcloristas quanto da normativa defendida pela Federação Paulista de Capoeira. A tradição
reinventada ganhou novas cores, novos modos, novas expectativas e propôs outras
experiências.
14
In: Estudos Afro-Asiáticos, nº 24: Rio de Janeiro, 1993.
20
produzidos a partir da vivência da diáspora e da luta dos capoeiras naquele contexto histórico
por visibilidade social e política.
Esses aspectos da experiência dos capoeiras dialoga com nossa pesquisa à medida que
reafirma a posição dos capoeiras em desenvolver estratégias de manutenção e de luta político-
cultural frente às dificuldades postas pela realidade social na qual estão inseridos. A capoeira,
portanto, se transforma à medida que dialoga e responde aos problemas postos pela sempre
dinâmica realidade social, mas se reatualiza continuamente para marcar suas especificidades e
resistências.
Esse processo de desportização da capoeira foi largamente discutido por Letícia Vidor
16
em seu livro O Mundo de Pernas Para o Ar, A Capoeira no Brasil e é uma contribuição
importante para pesquisadores do tema. Por se tratar de um estudo antropológico, a autora se
preocupou com a linguagem corporal e simbólica da capoeira, o que ela chamou de “dialética
da mandinga”.
15
MELLO, André da Silva. Capoeira para Adolescentes Internos na FEBEM – Um Estudo Sobre a Consciência.
Dissertação de Mestrado em Psicologia da Educação, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1999.
OLIVEIRA, André Luis. Os significados dos Gestos no Jogo de Capoeira. Dissertação de Mestrado em
Educação, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1993.
ROCHA, Maria Angélica. A Capoeira Como Ação Educativa nas Aulas de Educação Física. Dissertação de
Mestrado em Educação, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1994.
STOROLI, Fernanda Quevedo. Inclusão Social e Esporte: Os Significados – Sentidos da Capoeira Para
Adolescentes em Situação de Pobreza. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social, Pontifícia Universidade
Católica, São Paulo, 2007.
VIEIRA, Sergio Luiz de Souza. Da Capoeira Como Patrimônio Cultural. Tese de Doutorado em Ciências
Sociais, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2004.
16
REIS, Letícia Vidor de Souza. O Mundo de Pernas para o Ar – A Capoeira no Brasil, São Paulo, 2000.
21
Letícia Vidor ao trazer o “jeito negro e popular de jogar capoeira”, muito ligado às
propostas desenvolvidas por Mestre Pastinha e Bimba na Bahia que se espalharam com o
grande fluxo migratório de nordestinos para a região sudeste do Brasil na segunda metade do
século XX, nos possibilitou entrar em contato com argumentos que subsidiassem a ideia de
que a desportização da capoeira no Brasil fez parte de um programa nacional,17 que entre
outros objetivos, visava enfraquecer e desmobilizar as manifestações populares da primeira
metade do século XX, politizando consideravelmente nosso posicionamento frente a essa
problemática.
Essa discussão perde em parte seu vigor à medida que a capoeira foi reconhecida
como Patrimônio Cultural Brasileiro no dia 15 de julho de 2008, em Salvador, pelo Conselho
Consultivo do Patrimônio Cultural do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, indo de encontro com e a lei de regulamentação da profissão de professor de
capoeira em trâmite no Congresso Nacional do Brasil (2009).
17
A ideia de transformar a capoeira em esporte nacional foi retomada no governo de Getúlio Vargas (1930-
1945) quando, no intuito de forjar uma identidade nacional, não apenas elegeu o samba e o futebol como
símbolos da nacionalidade brasileira como também descriminalizou a capoeira em 1937 e concedeu a Manuel do
Reis Machado – Mestre Bimba– o registro de qualificação do curso de capoeira como curso de Educação Física.
A escolha pela capoeira baiana e pelo estilo de Capoeira Regional desenvolvida pelo Ms. Bimba contemplava o
interesse de disciplinarização da capoeira, a partir de então praticada apenas em academias e concomitantemente
marginalizava a memória histórica da capoeira carioca, comumente associada à malandragem e autonomia dos
capoeiras.
22
A produção acadêmica, a descriminalização, o mérito da internacionalização e o
tombamento da capoeira como patrimônio cultural no Brasil se configuram como estratégias
de visibilidade cultural e política da capoeira, no qual o Estado, através de instituições
atreladas a ele, reconhece, legaliza e atribui valor a uma manifestação popular. Pressupõe-se
nessa ação a esquemática divisão entre cultura erudita e cultura popular, na qual a primeira se
sobrepõe à segunda e os sujeitos históricos que a produzem são comumente ignorados. Nesse
sentido nos chamam atenção Nestor Canclini em sua obra Culturas Híbridas:18
Essas reflexões sugeridas por Nestor Canclini nos impelem ao reencontro com a
experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora para que possamos assim, a partir
da prática cotidiana dessa Associação, reforçar o seu caráter de cultura e não obstante, seu
caráter popular. É a experiência social dos fundadores, mestres, colaboradores e alunos da
Corrente Libertadora que nos interessa nessa discussão em torno da capoeira.
18
CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 2008, pp 195 e 206..
23
na experiência vivenciada da capoeira por eles, que a Corrente Libertadora se faz espaço de
sociabilidades, cultura e de intervenção social.
Nesse sentido, pensamos o resultado da pesquisa, agora configurado nas páginas que
seguem como um trabalho comunitário, no sentido de que foi através da observação, diálogo e
vivência com esses sujeitos e através da experiência desses, narradas nas entrevistas
concedidas, que a dissertação se fez.
Temos ciência dos limites dessa dissertação, visto que a experiência da Associação
Cultural Corrente Libertadora permite lançarmos vários olhares sobre sua prática. Entretanto,
nos propusemos a dar visibilidade às estratégias que possibilitaram a formação e continuidade
de seu trabalho político-cultural.
Retomamos aqui a imagem inicial descrita nesse texto de apresentação para aludirmos
às Considerações Finais dessa dissertação. Ouvindo o aluno Diógenes cantando sua ladainha
e vendo a Associação ali presente, jogando capoeira, contribuindo para a organização do
evento em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura e tendo seus alunos como
24
palestrantes, pudemos reafirmar que a produção dessa dissertação é parte constitutiva do
trabalho da Corrente Libertadora, que não se pretende definitivo, mas ser reconhecido como
mais um instrumento para produção do conhecimento, através da apreensão, discussão e
quiçá, desconstrução de seu conteúdo.
25
Capítulo I
26
Entrar em contato com a experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora
nos colocou na posição de ouvintes. Ouvintes de histórias que descrevem pelo olhar sempre
particular, uma vivência que se fez coletiva e, nesse caso, comunitária. Ouvir atentamente
essas narrativas nos permitiu dialogar com um universo plural de significados, dinâmico e
multifacetado como a própria tradição oral. A oralidade que conta histórias, que vive histórias
e que ritualiza histórias está no cerne da produção e reprodução do conhecimento concernente
à capoeira.
A narrativa de Magnólia Maria Alves Pinto nos chama para a dissertação, no ato de
relembrar e dar significados ao que viveu e que continua presente através da ação cotidiana de
pessoas e da construção da memória...
ai ele falou assim: Não, vamos sentar aqui e vamos por o nome. Ele era muito decidido,
muito persistente, persiste, persiste e não desiste. Ai eu falei: Tá bom, vamos
sentar...que tinha um pé de barriguda no quintal que fazia uma sombra e tava um sol
bonito e ele gostava de sentar em baixo da árvore pra criar as coisas. Ai sentamos em
baixo da árvore, ai começamos a bolar o nome, Mas eu falei: Vamos fazer uns
rascunhos dos negros e tal, aí ele fez uns rascunhos do negro num tronco e me mostrou,
aí eu, não, tá muito agressivo o negro amarrado no tronco, eu falei, amarrado? É peraí,
eu falei que o negro tava amarrado é muito agressivo no rascunho, ah é, é mesmo,
vamos por um pé então? Negro não era amarrado os pés no tronco? Não era amarrado
nas mãos, ah, no pé também, vamos por um pé aí. Aí fez um rascunho de uma árvore, aí
desenhou aquela árvore e o pé na árvore. Aí eu falei: Não, não gostei, aí ele, é mesmo,
aí eu falei: Escuta, os negros não eram amarrados em correntes? De cordas, de
correntes? Aí ele, é. Eu falei: Então, que tal você por um pé, dois pés, sei lá e a corrente.
Aí ele falou: É mesmo, é uma boa! Aí pôs os pés, a corrente, mas eu disse: Fica
esquisito, né?! Tipo assim, tá bom, tudo bem, soltar a corrente o negro sai correndo... eu
sou muito fã de mão, o que você acha, por a mão e o pé? (risos). É mesmo, vamos pôr a
mão e o pé, mas a mão vai ficar amarrada na corrente? (risos) Ai meu Deus, aí ele, põe
duas mãos! Aí eu falei: Mas põe as duas mãos como quem tá soltando, não põe mão
presa, põe soltando! Aí ele falou: Não, meio termo! Tá bom. Aí, ele mesmo fez o
rascunho das mãos e a corrente grudada, aí eu falei: Peraí, vai soltar ou não vai? É pela
liberdade ou não é? Ele falou: É pela liberdade. Aí ele pôs a corrente solta e falou:
Achei o nome da academia, Pela Liberdade! Pela liberdade vai ser de um aluno seu,
27
vamos inventar um outro. Como aluno meu? Aluno meu não montou academia. Mas
vamos guardar esse nome, por que eu achei fraquinho, vai pra letra de música... você
colocou uma corda, põe uma corrente, ele pôs a corrente, ele sabia fazer a corrente. Faz
uns „s‟ grudado no outro, faz uns „s‟ que dá certo. Aí ele fez uns „s‟ meio soltos assim,
aí ele: Corrente, legal, corrente, o nome é corrente! Corrente, vai ser corrente! Mas
corrente de quê? Ah, a corrente não vai tá solta? Aí eu falei: Liberdade, libertadora! Aí
quer dizer, nós criamos naquele momento e aí ele falou: Gostei, você gostou? Aí eu
falei: Adorei, assim tá certo! Aí eu falei: Peraí, vamos ver se não tem por aí, alguma
coisa com esse nome, por que a gente não pode copiar de ninguém. Aí ele falou:
Detesto copiar. Aí eu falei: Não, não tem. Vamos analisar e guardar por umas duas
semanas, aí vamos pesquisar, se não tiver nada com esse nome, nós põe esse nome! Aí
ele falou: E se tiver e não tiver registrado, eu ponho ele de qualquer jeito! Aí a gente se
abraçou e ele criou o nome da Corrente Libertadora. Quer mais saber o quê?1
Foi sob a sombra de uma Barriguda no quintal de uma casa de três cômodos, nos
fundos do Salão Paroquial no Jd. Manacá, que o jovem José Maurício Neto e sua irmã
Magnólia Maria elaboraram pela primeira vez o nome e o símbolo da Associação. A
Associação nascia no bairro Vila São José, no seio da família Modesto, uma família em
condição migrante que dialogava com as culturas locais.
1
Entrevista VI : Magnólia Maria Alves Pinto, 31.13.1010.
28
1.1. Trabalho e Cultura no Processo de Migração da Família Modesto
Eu vim pra cá, como todo nordestino: em busca de um pouco mais de dignidade, em
busca de fugir da fome lá do nordeste, como a maioria dos nordestinos, das dificuldades
que passam, fogem, vêm pra São Paulo... Quando nós chegamos em São Paulo, eu vim
primeiro, passei a trabalhar na construção civil, simplesmente com o objetivo de ganhar
um dinheiro pra minha mãe poder vir com os outros irmãos e esses outros irmãos eram
a Magnólia, o Tigrão e o Maurício. Esses irmãos vieram em seguida.2
A cidade de São Paulo na década de 1970, assim como outros centros urbanos em
desenvolvimento industrial – principalmente Rio de Janeiro e Belo Horizonte, exerciam
grande influência na busca de melhores condições de vida para uma parcela significativa da
sociedade brasileira, oriunda de diversas regiões do país. Segundo Nadine Habert, na década
de 70 os fluxos migratórios envolveram 30 milhões de pessoas para uma população de 93
milhões, um terço da população a engrossar, nas fileiras do operariado industrial e do
mercado do trabalho informal. 3
2
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
3
HABERT, Nadine. A Década de 70 – Apogeu e Crise da Ditadura Militar. São Paulo: Ática, 2006, p.72.
29
A construção civil, segundo Eder Sader,4 absorvia uma parcela considerável da mão de
obra migrante por permitir o aproveitamento de habilidades que este já possuía,
principalmente as habilidades de trabalho braçal, presentes na profissão de pedreiro,
marceneiro e outros. Muitas vezes, a construção civil abrigava em condições precárias, no
próprio espaço das empreitas, trabalhadores sem moradia estabelecida na cidade, o que era
uma saída para muitos recém-chegados. Eufraudísio inicia sua relação de trabalho na
construção civil, mas, diferentemente da experiência de muitos migrantes, não fez do local de
trabalho sua casa. Isso porque, parte do núcleo familiar já residente em São Paulo o acolhe.
Então, eu me chamo Eufrásio Modesto Alves e nasci em Floresta Azul, uma cidadinha
da Bahia, perto de Ilhéus, de Ibicaraí e nasci em cinqüenta e cinco... e a minha trajetória
lá na Bahia assim, era de uma família assim não muito pobre, mas, uma família assim
mais ou menos. No começo meu pai ele foi delegado de Floresta Azul mesmo e depois
ele passou pra fiscal...meu pai era uma pessoa bem considerada em Floresta Azul e aí
ele...foi caí na trajetória dele, teve envolvimento com bebida e aí foi vendendo todas as
coisas dele, as casas deles e nisso a gente foi crescendo... meu pai já tava com problema
sério de bebida e aí a gente teve de mudar de Floresta Azul pra Ibicaraí...Bicaraí é uma
cidadinha perto de Itabuna, uma cidadinha muito legal e a gente... começou a trajetória
de, não de miséria, mas assim de pobre mesmo... Então a trajetória, meus irmãos
começou a sai de lá, de Bicaraí e aí fomos morar no Bode, Bode Capado. Bode Capado
é um arraialzinho em Bicaraí, muito pequeno e lá ...minha mãe vendeu uma casa lá em
Floresta Azul e comprou esse lugarzinho lá em Bode Capado e que a gente começou a
morar e a situação complicou mesmo e aí que meus irmãos começou a vir pra São
Paulo... Eu já tinha nove ano, por isso que a gente também num estudava, porque saía
de um canto mudava pra outro e depois...voltamos pra Itapetinga, do Bode Capado pra
Itapetinga.5
A família Modesto vivia na área urbana do município favorecida pela profissão do pai
Eufraudísio Modesto, como nos indica Eufrásio Modesto – Ms. Tigrão. Entretanto, o
4
SADER, Eder. Quando Novos Personagens Entraram Em Cena. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.81.
5
Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08.
30
problema de saúde do patriarca atingiu diretamente a situação econômica da família forçando-
os a deslocar-se em busca de condições de sobrevivência.
A mudança de Floresta Azul para Ibicarí e depois para Itapetinga, indica que a família
passou em poucos anos por um movimento de deslocamento intenso, o que necessariamente
exigiu lidar com diferentes realidades sociais. A busca por trabalho para garantia de condições
melhores de vida estava transpassada pelo desafio de adaptação e diálogo com essas
realidades.
nossa família sempre foi muito pobre, muito humilde, mas muito rica de energia, em
acreditar no outro e não têm aquela coisa de super proteção, pisou na bola, a gente cai
em cima mesmo e dá um pega... agora, existe uma coisa de se acreditar, de se ajudar, ter
um grau de solidariedade, um grau de partilha em todas as instâncias da vida: os
sofrimentos, as alegrias e tal, isso é uma coisa que a gente herdou do núcleo familiar...
nós temos posturas diferentes sociais, posturas diferentes até culturais, mas a gente
respeita muito essa coisa...6
6
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
7
Gostaríamos de ressaltar que quando mencionamos os fundadores da Associação como o grupo dos quatro
irmãos – Maurício, Eufraudísio, Eufrásio e Magnólia – não se trata de negligenciar o papel desempenhado por
Ms. Maurício na atitude de buscar a capoeira, de iniciar o processo de divulgação da mesma à sua família e à
31
A narrativa de Eufraudísio – Ms. Eufraudísio, descreve um universo familiar a partir
de um forte sentimento de pertença, construído através da participação ativa dos membros na
constituição da história familiar. Há na vivência cotidiana descrita por ele um sentido de
coletividade baseado no reconhecimento do outro, na discussão e em decisões
compartilhadas.
Chegamos em São Paulo desprevenidos, por que ninguém tinha blusa de frio e tava
naquela época que fazia aquele frio mesmo e... fomos pra casa da nossa irmã. Ao chegar
lá, a gente ficou assim meio que decepcionado, que a gente achava que chegando em
São Paulo a gente ia resolver a vida assim, naquela época, a maioria que morava na
Bahia ou em qualquer lugar achava que vindo pra São Paulo, vinha pro céu, tudo ia
melhorar...Saímos procurando as casas, só que ao chegar lá, ela já não morava nessa
casa, aí fomos de um a bairro pra outro, aquele monte de gente, passando frio e
conseguimos encontrar a casa, só que ao chegar, a casa era dois comodozinho! Alugada
ainda! E aí, tivemos que embolar todo o mundo ali; ela recebeu a gente muito
emocionada, muita gente, claro! Mas mesmo assim ela ficou muito feliz de ver a gente e
comunidade da Vila São José e na ação empreendedora da formação do grupo Corrente Libertadora por volta de
1975-6, sem a participação direta dos irmãos, mas trata-se de uma opção metodológica que compreendeu através
da pesquisa realizada, que foi a partir de 1976 com a participação dos quatro irmãos, que a Associação
desenvolveu as especificidades em seu fazer cultural da capoeira; em sua prática cultural, social e política que a
diferencia no universo da capoeiragem de outras experiências de grupos de capoeira na cidade.
32
embolou todo mundo ali, pra passar de manhã quem ia trabalhar, tinha que ver se não
pisava na cabeça de alguém...8
A chegada à casa de sua irmã, narrada por Magnólia, está carregada do estranhamento
inicial no olhar a cidade. O frio, as distâncias e desapontamentos estão intimamente
relacionados com a gama de expectativas sobre o viver na “cidade grande” que
acompanhavam a maioria dos migrantes: esperanças de melhores condições de trabalho, de
educação, de saúde, de melhor viver e conviver. Nesse sentido, sob os impactos do processo
de desenraizamento, o núcleo familiar exerce um papel fundamental na reelaboração de
valores, na construção de novas sociabilidades e no fortalecimento da identidade cultural.
8
Entrevista VI: Magnólia Maria Alves Pinto, 31.13.10.
9
Segundo Eder Sader, “a família permanece lugar central na reelaboração de experiências de seus membros e de
construção de projetos de vida. Ao apoiar-se na família o migrante recupera (e reinterpreta) toda uma
constelação de valores comunitários no interior das relações societárias. A mobilização de parentes, vizinhos e
conterrâneos não constitui um resíduo de padrões tradicionais, que tenderiam a sumir com o processo de
urbanização, mas são relações atualizadas na vida urbana e constitutivos dela”. SADER, Eder. Op, cit., p. 94-
95.
10
Na cidade de São Paulo, as políticas voltadas voltadas para a transformação do espaço acabaram por criar as
condições para alterações nos padrões de ocupação da cidade pela indústria, comércio, serviços e habitação. Esse
movimento de remodelação urbana está intimamente relacionado com o crescimento industrial já nos anos 30,
período em que se optou pelo Plano de Avenidas de Prestes Maias para a reforma viária da cidade, favorecendo a
ocupação da periferia metropolitana (centro - regiões limítrofes: Osasco, Taboão da Serra, etc.) seguindo os
trilhos dos trens e dos bondes. Nos anos 50, esse processo se intensificou criando um movimento de ocupação da
33
Mediante essa situação, fica patente o precário acesso da população da periferia a
serviços públicos, entretanto, a produção cultural em bairros como Santo Amaro e,
principalmente, em sua periferia ganha sobrevida através da ação direta de seus moradores,
que diante das limitações impostas pela realidade social – entrecortada pelas conseqüências de
uma distribuição de renda desigual e um capital cultural marginalizado – reinventam práticas
culturais e vivenciam novas experiências comunitárias.
ali no São José, Maurício começou se envolver com capoeira...quando nós mudamos
pro Jd. Manacá, o Maurício já tava envolvido com capoeira; a gente num queria nem
saber de capoeira. Eu não queria, a minha mãe também brigava: Menino cê fica com
esse negócio... E falava que meu avô também fazia isso, num sei o quê, mas ela não
gostava disso, que não dá camisa pra ninguém... Ai o Zé Santos, como ele treinava no
Penatti... era um Mestre que tinha uma academia em Santo Amaro, na Av. Santo Amaro
que era São Bento Pequeno, O Limão tinha uma academia ali também na Av. Santo
Amaro, no Brooklin e aí o Maurício, ele fazia aquela coisa ia no Limão, ia no Penatti. O
cara que era o Zé Santos que tava montando academia, ele treinava lá e ensinava pro
Maurício cá e o Maurício ia lá de vez em quando, fazer aquela coisa: ia lá... ia cá e
nunca pagou academia, que era daquele jeito. 11
O jovem Maurício circulava pela cidade a partir do referencial cultural com o qual se
identificava. No primeiro momento, levado pela relação direta com a Bahia – ele entrou no
12
mesmo ano que chegou aqui...não sei o que...viu que era capoeira da Bahia. Vivendo em
um território que o diferenciava por sua origem, condição social e especificidades culturais, a
busca por espaços alternativos, nos quais pudesse compartilhar experiências através da
prática cotidiana de manifestações culturais, foi uma estratégia de inserção na cidade.
cidade por parte significativa de trabalhadores migrante nas periferias da cidade (centro-periferia). Nessa
conjuntura, regiões da Zona Sul de São Paulo, como Capela do Socorro, Campo Limpo e Parelheiros foram
ocupados massivamente por essa população, economicamente dessastitida por políticas públicas de habitação
efetivas e exposta à especulação imobiliária. Ver: BÓGUS, Lúcia Maria M. Urbanização e Metropolização: O
Caso de São Paulo. In: A Luta Pela Cidade em São Paulo. São Paulo: Cortez, 1992.
11
Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08.
12
Idem.
34
José Maurício entrou no universo da capoeira utilizando as estratégias que estavam ao
seu alcance: a proximidade com o capoeirista Zé Santos o colocou em contato com mestres
importantes da zona Sul de São Paulo e do contexto da capoeira naquele período, Ms. Pinatti
e Ms. Limão.13 Entretanto, os limites financeiros, bem como o olhar no futuro, afastou o Ms.
Maurício de um vínculo permanente com os mestres citados.
Não pretendemos aqui, lançar um olhar antropológico para o que entendemos por
malícia, mesmo por que estaríamos navegando em águas de outros territórios, mas tão
somente adjetivar um conjunto de estratégias cotidianas para inserção de um estrangeiro – no
sentido que utilizada Nobert Elias –14 na dinâmica da cidade, ainda por se tornar conhecida e
apoderada.
13
Djamir Pinatti, Ms. Pinatti e Paulo dos Santos, Ms. Limão fundaram em 1969 a Associação de Capoeira São
Bento Pequeno, ao que indica a bibliografia, na Av. Brigadeiro Luiz Antônio em São Paulo. Herdeiros da
tradição da capoeira Regional e Angola, respectivamente, ministraram aulas e formaram alunos no diálogo
desses dois estilos. Em 1970, Ms. Limão particulariza seu trabalho fundando o Grupo Quilombo de Palmares e
Ms. Pinatti, continua com sua Associação, ambos na zona sul de São Paulo. Ms. Pinatti, hoje com seus 80 anos
de idade continua ministrando suas aulas na Vila Mariana e Ms Limão faleceu em Santo Amaro da Purificação –
BA em 1985.
14
Nobert Elias utiliza o conceito outsiders para designar o recém - chegado a uma cidade estranha, nova, com
uma sociedade estruturada em valores, normas e status social reconhecido pelos grupos sociais que a compõem.
Nesse sentido, a compreensão dos outsiders (estrangeiros) se dá em uma condição relacional com os established
(estabelecido); a concepção de Nobert Elias esta centrada nas normas estabelecidas pela boa sociedade, por isso,
estamos nos referindo aqui, à ele, mais para entendermos o ser estrangeiro em uma cidade desconhecida. ELIAS,
Nobert; SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders – Sociologia das Relações de Poder a Partir de
Uma Pequena Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
35
histórico no qual a capoeira até a década 30 estava intimamente associada às práticas sociais
e culturais das chamadas “classes perigosas” em centros urbanos de fortes traços culturais de
matriz africana como Recife, Salvador e Rio de Janeiro.
Na virada do século XIX para o século XX escritores, cronistas, jornalistas das cidades
acima referidas, colaboraram para a construção de uma determinada imagem do capoeira, um
transeunte da cidade ligado quase sempre ao universo da malandragem, da vadiagem,
envolvido em arruaças, escaramuças e pequenos expedientes.15
15
Ver: SALVADORI, Maria Ângela Borges. Capoeiras e Malandros: Pedaços de Uma Sonora Tradição
Popular (1890-1950). Dissertação de Mestrado em História, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp,
São Paulo, 1990.
16
MATTA, Roberto da. Carnavais, Malandros e Heróis. São Paulo: Zahar, 1981. Sobre Escolas de Samba,
principalmente em São Paulo, Ver: AZEVEDO, Amailton Magno. A memória musical de Geraldo Filme: os
sambas e as micro-áfricas em São Paulo. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2006.
17
Para o desenvolvimento da capoeira no Brasil, os trabalhos de BRETAS (1991), HOLLOWAY (1989), REIS
(1993;2000), SALVADORI e SOARES (1993; 1999 e 2002) são indispensáveis.
36
brasileira, escrava e carregada de estereótipos criminalizados em uma realidade política regida
pelo sistema ditatorial, instaurado no golpe militar de 1964.
Para além dos preconceitos e vigilância policial, a formação do grupo passava ainda
pela necessidade em estabelecer um espaço para realização das aulas de capoeira. Nessas
circunstâncias, foi sob os olhares e argumentos de Dona Elvina e de alguns irmãos, que José
Maurício começou a ministrar as aulas de capoeira na sombra da barriguda no quintal de sua
mãe no Jd. Manacá – Vila São José.
18
O governo Militar promoveu a Lei de Segurança Nacional, Lei Anti-greve, a Lei de Imprensa, a intervenção
nos órgãos representativos, e a criação do Serviço Nacional de Informações – SNI. Essas medidas tomadas,
sobremaneira, em resposta as grandes mobilizações operárias, camponesas, estudantis do período precedente, em
torno das chamadas Reformas de Base, foram instituídas já no primeiro governo militar do General Castelo
Branco, 1964-1967, (PAES, 2004). O governo seguinte, General Costa e Silva (1967-1969) baixou o decreto AI-
5 que previa o fortalecimento e outorga do Executivo, abrindo caminho para cassações, fechamento do
congresso, censura, repressão e invariavelmente para a tortura. O AI-5 para além da realidade brasileira e da
iminência do crescimento do Movimento Estudantil, converge para um quadro mais amplo, no qual vários
países, incluindo paises da América Latina, viviam o embate entre movimentos sociais, políticos e culturais,
muitos liderados por estudantes, intelectuais e organizações de esquerda, com a reação violenta e autoritária de
setores ligados a posturas políticas de extrema direita (HABERT, 2006).
19
No processo de ocupação das periferias da cidade de São Paulo, o convívio entre a população e as autoridades
políciais foram comumente tensas, o enquadramento polícial, as batidas e revistas ocorriam à sombra da
suspeita da vadiagem e prostituição, atingindo homens e mulheres, muitas vezes incapazes de comprovar
trabalho fixo e registrado. No contexto da década de 70, muitos bairros da periferia eram visados como região de
esconderijo para criminosos procurados pela polícia, o que agravava a situação dos moradores. Ademais, a
região de Santo Amaro, zona sul, esteve vinculada à maioria dos movimentos populares e sociais desse período,
relacionados às necessidades básicas, transporte, serviços públicos e moradia desde 1974, fazendo do olhar
policial uma constante no cotidiano dessa população(SINGER, 1980).
37
família, principalmente D. Elvina, passam a construir uma imagem positivada da capoeira em
um processo de ressignificação da capoeira.
quando Maurício chegou com aqueles colegas, tudo sem camisa, cinco colegas e aí
colocaram umas músicas lá e começaram a jogar as pernas pra lá e pra cá. Eu fiquei
olhando do vitrô e falei: Que coisa feia é essa?... Eu falei: Mãe, mas é muito esquisito,
ah, eu não gostei desse povo aqui no quintal jogando perna pra cima, pra baixo, ah,
que coisa feia! Aí ela: deixa ele, você deixa ele, que isso é coisa dos escravos, você
não estudou sobre os escravos? Estudei que eles tinham uma luta, que eles se
defendiam. Ah, então essa é a capoeira que os escravos se defendia? Aí eu fui pra
38
porta olhar, observar como ele tava fazendo pra jogar, como ele fazia pra ensinar
aqueles meninos em um espaço tão curto...20
A partir das narrativas dos irmãos Eufraudísio, Eufrásio e Magnólia, percebemos que a
construção das narrativas históricas elaboradas durante as entrevistas para a realização da
dissertação partem de referenciais diversos e demonstram como eles enquanto protagonistas
da história que narram, interpretam de maneiras diferentes os processos sociais nos quais
atuaram diretamente.
Três excertos das narrativas dos irmãos 22 permitem que adentremos na complexidade
da construção dessa memória, os olhares sobre a capoeira no período de formação da
Associação (1976-1980)23 e suas relações históricas.
20
Entrevista VI: Magnólia Maria Alves Pinto, 31.13.1010.
21
Tomamos esse referencial do artigo Muitas Memórias, Outras Histórias - Cultura e o sujeito da História, da
professora Yara Aun Khoury, In: Muitas Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho Dágua, 2004.
22
Infelizmente não podemos contar com a narrativa de Mestre Maurício, fundador da Corrente Libertadora,
falecido em 2005.
23
Esse recorte do período foi determinado no processo de pesquisa, por entendermos que foi nesses anos, que os
irmãos em conjunto definiram a proposta de trabalho da Associação.
39
colaborador dos projetos sócio-culturais desenvolvidos pela entidade, a capoeira passa a fazer
parte de sua vivência social na cidade de São Paulo, como segue a narrativa:
Então, lá num tinha.... eu nem conhecia o que era capoeira... Não existia essa capoeira,
isso lá na minha cidade. Se existia capoeira, eu não via falar capoeira... que eu me
lembro, nunca vi capoeira na Bahia. Isso é uma coisa que se eu for falar isso pra um
capoeirista, ele vai me matar, ele vai achar que eu sou louco!...A conversa que eu via
falar em chinelo, Olha aquele cara é bom de chinelo! Aquele cara é bom de porrada!
Bom de briga! De chinelo! Chinelo era o que a gente falava. Agora capoeira,
sinceramente, na minha época, eu não via falar. Eu vi falar em capoeira, vou falar uma
coisa pra você: foi em São Paulo.24
Para a irmã Magnólia, hoje 56 anos, cabeleireira e colaboradora das ações culturais da
Associação, a capoeira aparece quase como uma reminiscência do passado, sem um vínculo
de observação ou de prática.
assim, a história da Corrente, do Maurício foi uma coisa assim muito inesperada da
minha parte, por que até então eu já era casada... já com minha filha... e o Maurício
chegou, chamou uns colegas lá e sinceramente eu não sabia o que era capoeira, eu
baiana e não sabia o que era capoeira. Me lembro vagamente que quando eu estudava lá,
uma professora chamou o irmão dela pra jogar capoeira pra gente ver, eu me lembro
mais ou menos, mas eu era muito pequena, então conforme eu fui crescendo, eu não via
falar de capoeira lá na cidade que eu morava e aí, quando Maurício chegou com aqueles
colegas tudo sem camisa... falei: Que coisa feia é essa?26
24
Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08.
25
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
26
Entrevista VI: Magnólia Maria Alves Pinto, 31.13.1010.
40
É importante notar que apesar das lembranças dos narradores estabelecerem relações
diferentes com a capoeira, todos, entretanto, têm um referencial sobre a capoeira. Durante o
processo de formação e envolvimento desses atores sociais na Associação Cultural Corrente
Libertadora, esse referencial foi sendo reelaborado a partir de suas experiências afetivas,
sociais, culturais e políticas.
É significativo que, dentre os três irmãos, o único a estabelecer uma percepção mais
elaborada da capoeira, e a inseri-la no campo da cultura, atribuindo assim, importância
política à sua prática, foi o irmão mais velho Eufraudísio – Ms. Eufraudísio.
Ao narrar seu contato com a capoeira, Ms. Eufraudísio chama a atenção para o fato de
ter um contato anterior e de incentivar o irmão Maurício, provavelmente vendo na capoeira
um aspecto da resistência negra no Brasil. Ademais, identificar a pernada na beira do rio
como capoeira, indiretamente nos remete a tradição da capoeira baiana, para qual, a capoeira
surgiu na Bahia e por isso é uma prática corriqueira no estado.
A pernada na beira do rio, para o Ms. Eufraudísio vai de encontro com o chinelo ou
chinela, para o Ms. Tigrão. Embora Ms. Tigrão não julgasse ser o chinelo, capoeira, nas duas
referências aquela atividade física, lúdica, era uma prática que se dava no universo da rua.
Vista através do olhar do presente, a capoeira para ambos foi, na infância e juventude na
Bahia, uma brincadeira de meninos ou uma forma de luta, briga de rua.
A narrativa de Ms. Tigrão indo no sentido contrário à de Ms. Eufraudísio, tenta marcar
um rompimento com a chamada tradição da capoeira baiana. Em sua narrativa fica patente
uma situação que beira o constrangimento em assumir publicamente para outros capoeiristas
que não aprendeu jogar capoeira na Bahia, aliás, segundo ele, nem mesmo conhecia a
capoeira enquanto prática cultural ou esportiva como veio a conhecer na cidade de São Paulo.
Esse elemento corrobora para pensarmos como essa dita tradição da capoeira baiana se
reatualiza continuamente, apesar das intrínsecas contradições e ambiguidades que a
compõem.
41
O projeto populista do Estado Novo de forjar uma pretensa identidade nacional -
harmoniosa e disciplinada – pretendia transformar a capoeira em um símbolo nacional,
juntamente com o carnaval e o futebol. Esse projeto ia de encontro aos interesses de
intelectuais e artistas – como Gilberto Freire, Jorge Amado, Caribé – que empenhados em
construir uma identidade baiana (para conhecimento, visibilidade e valorização da cultura
local) apoiaram os mestres de capoeira, representados por Ms. Bimba e Ms. Pastinha, na
estratégia de tomar para a Bahia a origem, pureza e difusão da capoeira no Brasil.
Entendemos que a posição de Ms. Tigrão está fortemente influenciada pela posição
que assumiu desde 1989, momento em que a frente da coordenação da Associação
desencadeou um processo de redefinição nos objetivos de atuação pedagógica e política da
Associação marcando um rompimento com vários aspectos da prática da capoeira de até
então.
27
REIS, Letícia Vidor de Souza. Negros e Brancos no Jogo de Capoeira: A Reinvenção da Tradição.
Dissertação de Mestrado: USP, 1993, pp. 64-65.
28
A proposta pedagógica desenvolvida por Mestre Tigrão abandonou vários elementos da tradição da capoeira,
como a hierarquia social da capoeira, a disciplinarização das aulas, critérios de avaliação de graduação, entre
outros. Discutiremos a proposta pedagógica no capítulo II.
42
Mediante essas questões recorremos às autoras da Introdução de Muitas Memórias,
Outras Histórias,29 no desafio de lidar com a memória no plural, de construir um diálogo com
o narrador de maneira que eles possam se reconhecer como sujeitos das narrativas que
construíram.
como uma prática social, ela tem sua própria historicidade; narrador constrói sua
identidade, fazendo uso dos elementos de sua cultura e historicidade e recorrendo a um
passado significado e ressignificado no presente, ao tempo em que expressa tendências
no processo vivido.30
Maurício começou a praticar capoeira em 1972, mesmo ano em que chegou a São
Paulo, segundo Magnólia Maria. O fato de ser o mais jovem da família, poupado em certa
medida da rápida inserção no mundo do trabalho na cidade, possibilitou que ele tivesse certa
mobilidade: um transeunte anônimo que observa e toma a cidade pra si a partir de seus
referenciais culturais. Reconhecer a capoeira como parte da cultura baiana, o aproximou dessa
prática e abriu caminho para a construção de vínculos com pessoas e com a própria cidade.
Maurício então lançou mão da sua condição caçula e menor para estabelecer com a
cidade de São Paulo uma relação mais fluída, no sentido de estar em certa medida isento da
obrigatoriedade do trabalho. Pode dispor de um tempo que para os demais irmãos estava
destinado ao mundo produtivo do trabalho. Esse tempo desobrigado do processo tido como
produtivo lhe permitiu conhecer e interagir; já no primeiro momento, com a cidade por outro
viés: o da cultura.
29
Estamos nos referindo às professoras Déa Fenelon, Heloisa Faria Cruz e Maria do Rosário Cunha Peixoto.
30
KHOURY, Yara Aun. Op. cit., p.128.
43
O contato de Maurício com Zé Santos, capoeirista paulistano, se deu provavelmente
nas ruas e bares do bairro em que moravam na periferia de São Paulo. A Vila São José no
início da década de 1970 era um dos diversos bairros que compunham o distrito da Capela do
Socorro.
Com padrões irregulares de muitas das moradias, os moradores ainda conviviam com
precárias instalações de saneamento básico, rede elétrica, transporte, serviços de saúde, etc. 31
Seus moradores nesse período se constituíam majoritariamente de migrantes, muitos de
origem nordestina: trabalhadores que enfrentavam as faces de uma cidade em processo
constante de transformação urbana, econômica e social e que ao mesmo tempo eram sujeitos
ativos nesse processo de mudança. 32
Se, por um lado, esse quadro de precariedade no padrão de vida dos moradores nos
apresenta aspectos do processo de exclusão social esquadrilhada nos territórios ocupados pela
população de baixa renda, por outro lado nos dá conta das estratégias desenvolvidas por parte
dessa população no sentido de superar as dificuldades e reinventar o cotidiano muitas vezes
através da cultura.
Com a ajuda do então amigo Zé Santos, Maurício transita pela cidade se apropriando
desta, através da capoeira. Frequentando as rodas de capoeira da zona sul da cidade e em
contato com Ms. Pinatti e Ms. Limão conheceu e aperfeiçoou os golpes e movimentos da
capoeira em um processo criativo de aprendizagem.
Como anteriormente mencionado, Ms. Maurício não tinha condições financeiras para
manter o pagamento das mensalidades nas academias de capoeira Associação de Capoeira
São Bento Pequeno – Ms. Pinatti e Quilombo de Palmares – Ms. Limão, ambas localizadas na
Zona Sul de São Paulo nos primeiros anos da década de 1970.
31
Segundo dados da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano, havia no início dos anos 90, cerca de
350 mil unidades de habitação em situação ilegal e fora dos padrões de habitabilidade em São Paulo, das quais as
regiões de Capela do Socorro e Campo Limpo perfazem número expressivo (BÓGUS, 1992). Esse dado remete
ao processo acelerado e desorganizado de ocupação intensa da periferia sem a presença efetiva do Estado através
de políticas públicas, contribuindo para favelização de muitos bairros.
32
As lutas pela moradia e reforma urbana foi protagonizada pela população moradora dessas regiões da periferia
da cidade. No final dos anos 70 existiam no Brasil 8 mil associações de moradores e a cidade de são Paulo
contava com 900 (WANDERLEY,1992). Para se ter uma idéia, estamos nos referindo apenas as associações
registradas, não considerando, portanto, os grupos que não se constituíram em associações e que participaram
dos vários movimentos populares nesse período.
44
Diante desse obstáculo financeiro, Ms. Maurício passa a utilizar as manhas da
capoeira: identificou as brechas do cotidiano das academias e se apropriou dessas brechas
para continuar os seus treinos.
Embora os treinos, na maioria das academias sejam restritos aos alunos, as rodas
semanais são abertas a visitantes de outros grupos. Se apropriando desse mecanismo, Ms.
Maurício acompanhava os treinos, muitas vezes como espectador e participava
intensivamente das rodas. Com a ajuda de Zé Santos, aluno regular do Ms. Limão, treinava
nas ruas da Vila São José e no quintal de D. Elvina. Aquilo que observava, reproduzia
buscando aperfeiçoar; aquilo que aperfeiçoava colocava em prática nas rodas de capoeira dos
grupos conhecidos.
33
Estamos nos referindo à alunos formados de Ms. Bimba, Ms. Pastinha, Ms. Canjiquinha, Ms. João Pequeno
Ms. João Grande. Para identificar alunos e mestres desse período, Ver: REIS, Letícia Vidor de Souza. Op. cit.
45
década de 1960 mestres, hoje de renome internacional, iniciaram seus trabalhos na cidade e a
formação de alunos para a expansão da capoeira.
Não nos cabe no limite desse capítulo, inclusive por falta de fontes, a discussão em
torno do processo de formação do Ms. Maurício, entretanto, podemos avançar no sentido de
conhecer e refletir sobre os desdobramentos de sua atuação como mestre de capoeira.
Ai, como ele treinava com cara que tava no São Bento Pequeno que era do Pinate, ele
treinava com esse cara em casa. Foi num dia que eu cheguei, no começo de setenta e
34
A fundação da Federação Paulista de Capoeira está inserida em um movimento político mais amplo, que não
nos cabe detalhar aqui, mas para sua compreensão, Ver: REIS (1993;2000) e VIEIRA (2004).
46
quatro, falei: Esse ano faço dezoito! tirando um barato dele e aí ele falou: Olha eu tô
fazendo capoeira. Eu falei: Dá Licença, capoeira. Meu negócio é karatê! E fui pra cima
dele. Brincadeira... Então eu era um cara bom de briga, então eu fui pra cima do
Maurício. Pra que eu fui pra cima minha filha? Ele me deu um rodo tão feio! Pegou nas
duas pernas minha, minha bunda ficou uns três dias doendo! (risos) eu falei: Sabe que
esse negócio é muito bom! Eu vou aprender esse negócio! Aí eu comecei a gostar da
capoeira, falei: nossa é muito bom cara, me ensina! Comecei a me envolver com ele e
aí, nossa! Comecei a pegar um gosto tão grande assim...35
Podemos identificar na narrativa de Ms. Tigrão que o rapaz, a quem está se referindo é
Zé Santos, podemos também identificar aspectos recorrentes em sua relação com a capoeira,
sobretudo no que tange aos elementos de luta que compõem a capoeira. Em nenhum momento
das duas entrevistas cedidas pelo Ms. Tigrão ele se refere a capoeira como expressão cultural
ou como luta de resistência negra. As narrativas indicam que essa construção da capoeira
como cultura de caráter popular, como símbolo de resistência de um povo é posterior à sua
iniciação na capoeira. Assim como o Chinelo na Bahia, o que aproximou o Ms. Tigrão da
capoeira foi a eficiência desta como luta, como possibilidade de ataque e defesa, um
diferencial nas relações e conflitos vivenciados nas ruas de São Paulo.
Na narrativa de Ms. Tigrão o encontro com a prática de capoeira em São Paulo se deu
em casa, no ambiente familiar. Os treinos se tornaram paulatinamente regulares, então
podemos visualizar um trânsito constante de pessoas na casa de D. Elvina. Podemos intuir que
a família acolheu a capoeira em uma atitude de interagir com a experiência de Maurício. Na
narrativa de Magnólia esse caráter afetivo fica patente como elemento que possibilitou a
proximidade e a aceitação da capoeira.
Aí eu fui pra porta olhar, observar como ele tava fazendo pra jogar, como ele fazia pra
ensinar aqueles meninos em um espaço tão curto do quintal... eu fiquei olhando da
porta, aí ele olhou pra mim, ele... Cê quer aprender? Deus me livre! Quero aprender isso
nada! Isso é feio pra mulher! Ele falou: Não, não é feio não. Aí eu falei: Não, não quero
aprender isso não! Mas eu quero ver, tô achando bonito...você jogando, agora, eles eu
não tô gostando não. Mas aí ele levou na brincadeira e todos os dias... todos os dias ele
levava o pessoal lá. Aí às vezes tinha seis, às vezes tinha oito, nunca foi menos que
cinco e aí ele dava o jeitinho pra jogar com cada um deles... no quintal, aí passou um
tempo, ele falou assim: Oh Nólia, sinceramente eu quero que você me ajude...Assim,
minha mãe fica me criticando... quem criticou fui eu! Não, mas fora de você ela critica,
pede pra ela não ficar me criticando perto dos meninos, por que eu quero que esse
pouco, seja meus primeiros alunos de uma academia que eu vou montar.36
35
Idem.
36
Entrevista VI: Magnólia Maria Alves Pinto, 31.13.1010.
47
O espaço da casa possibilitou o contato, a aproximação e o estreitamento dos laços
afetivos de alguns de seus membros através da capoeira. Ms. Maurício no restrito espaço do
fundo da casa de sua mãe iniciou sua prática pedagógica de capoeira antes mesmo de fundar
seu grupo de capoeira, antes mesmo de contar com o apoio de seus irmãos. Primeiro
constituiu a prática e no segundo momento estabeleceu as estratégias para a viabilidade de
crescimento de seu trabalho.
Nesse sentido, é relevante enfatizar que foi com o intuito de ajudar o irmão Maurício a
driblar as resistências da mãe Elvina, que Magnólia passou a colaborar com Maurício no
objetivo de fundar um grupo. Foi o vínculo familiar, afetivo que levou Magnólia à capoeira.
Maurício, pois, fez um movimento de articulação na família, envolvendo e trazendo seus
familiares para o universo cultural da capoeira.
Acreditamos que esse movimento só teve penetração por que já havia na família a
cultura de compartilhar experiências e projetos. Um sentido comunitário na comunicação e
construção de conhecimentos. Comunitário no sentido de haver um nível de identidade entre
os membros do grupo capaz de gerar projetos em comum.
Então aí, a construção da academia lá no Jd. Alpino, que foi assim, uma coisa assim de
carinho dele, construir, levar os blocos pra lá e chamar a gente pra ajudar a fazer, e
fizeram o salão. O salão ficou nossa! E rolou, aí sim começou a rolar capoeira, e eu
comecei a treinar mesmo.37
A construção da primeira Sede em 1976 marca de certa forma uma transição na forma
de desenvolver a capoeira, antes praticamente caseira, no sentido literal da palavra;
convivendo diariamente com a complexidade das relações familiares que oscilavam e se
tencionavam entre o sentimento de aceitação e resistência, para um segundo momento, no
37
Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08.
48
qual, apesar da precariedade estrutural, a capoeira possuía um lugar específico para sua
prática e para desenvolver o aprendizado de outras manifestações culturais.
Entretanto, o sujeito que introduziu a presença da capoeira nessa família foi o jovem
Maurício, que em um movimento intenso de articulação entre o saber da rua – espaço público
– com o saber de casa, o espaço privado, conseguiu viabilizar o processo de construção da
Associação Cultural Corrente Libertadora, através da criação inicial de um grupo de
capoeira.
38
Depoimento José Maurício Neto – Ms Maurício. In: QUILOMBO da Memória. Direção de Saloma Salomão.
São Paulo: Fantasma Vídeo, 1993.
49
1.2. Cultura e Política na Prática de Capoeira da Associação Cultural
Corrente Libertadora
O bairro em que vivia passou também a ser o bairro no qual Ms. Maurício trabalhava e
que dialogava com as demandas da comunidade. É pertinente observar que, contrariando o
movimento de difusão da capoeira na década de 1970 em São Paulo, que se fazia conhecida a
partir do centro da cidade, a Corrente Libertadora se desenvolveu desde seu princípio na
periferia.
39
REIS, Letícia Vidor de Souza. Negros e Brancos no Jogo de Capoeira: A Reinvenção da Tradição.
Dissertação de Mestrado: USP, 1993, pp. 126 e 129.
40
A distinção entre Capoeira Angola e Capoeira Regional se deu nos anos 30, quando o presidente Gétulio
Vargas oficializou a descriminalização da capoeira instituída em 1989. Nessa ocasião, Mestre Bimba – Manuel
dos Reis Machado (1900-1974) – defendeu junto aos poderes constituídos o que chamou de Capoeira Regional,
uma variante da capoeira já praticada, mas que incluía golpes de outras lutas, ocidentais e orientais, além da
introdução dos chamados Balões de Bimba, novos toques de berimbau e a introdução de um incipiente sistema
de graduações. Em oposição a essas transformações na capoeira defendidas por Bimba, Mestre Pastinha –
Vicente Joaquim Ferreira Pastinha (1889-1981) – intitulou de Capoeira Angola, a capoeira que negava essas
transformações, atribuindo à ela um status de pureza e de berço da tradição da capoeira baiana. Sobre os estilos
de capoeira, ver: REGO, Waldeloir. A Capoeira Angola – Ensaio Sócio- Etnográfico. Salvador: Editora Itapuã,
1968. Sobre o processo de descriminalização, ver: REIS, Letícia Vidor de Sousa. O Mundo de Pernas para o Ar
– A Capoeira no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 2000 e, Negros e Brancos no Jogo de Capoeira: A
Reinvenção da Tradição. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993, pp. 64-5.
50
Em 1969 Ms. Pinatte e Ms. Limão fundaram a São Bento Pequeno na av. Brigadeiro
Luiz Antônio. Nos primeiros anos da década de 1970, os formados desses mestres e de outros
da primeira geração intensificaram a difusão da capoeira na metrópole, formando grupos com
características diversificadas, tanto do ponto de vista do jogo da capoeira como do
posicionamento político, como se evidenciou a partir da fundação da Federação Paulista de
Capoeira em 1974.
51
As políticas sociais propostas pelos governos militares (HABERT, 2006) entre os anos
60 e 70 e as políticas voltadas para habitação como a reestruturação do Banco Nacional de
Habitação – BNH e a Lei Lehman (WANDERLEY,1992) buscavam construir uma imagem
positivada do governo. Em nossa compreensão, essas leis funcionavam como um mecanismo
de legitimação ao regime que paralelamente tinha uma política econômica pautada no arrocho
salarial, precarização das condições de trabalho e na concentração de capitais nacionais e
estrangeiros. 41
41
Estamos nos referindo à políticas como o Movimento Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL, que previa
erradicar o analfabetismo no Brasil e Projeto Rondon que arregimentava estudantes e interessados a levar
assistência médica e social à população do interior do Brasil. Essa políticas federais agregadas a outras da
mesma natureza, permearam a atuação dos governos militares, para nossa pesquisa, entretanto, a questão
habitacional é que nos toca diretamente pois esteve presente no universo de nossos protagonistas desde o
processo migratório até a inserção dos mesmos nos Movimentos Populares.
42
Segundo Luiz Eduardo W. Wanderley, mesmo com a criação do Plano Nacional de Habitacão Popular –
PLANHAP e do Sistema Financeiro de Habitação – SFH que tinham a pretensão de retomar a preocupação
inicial com a moradia popular prevista na criação do BNH e em de incrementos posteriores à essas políticas,
como a Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Políticas Urbanas – CNPU, os impactos efetivos dessas
foram minimizados à medida que o regime se consolidava, sendo os recursos dessas políticas direcionados,
principalmente, para a habitação das classes médias, atendendo aos critérios empresariais e de mercado tidos
como necessários para a estabilidade econômica. Ver: WANDERLEY, Luiz Eduardo W. As Políticas Urbanas e
Lutas Pela Habitação. In: A Luta Pela Cidade em São Paulo. São Paulo: Editora Cortez, 1992.
43
Para uma discussão sobre habitação popular em São Paulo nas décadas de 1970 e 1980, ver: FILHO, Geraldo
Francisco. O Crescimento das Favelas no Município de São Paulo de 1970-1985: A Problemática da Habitação
Popular. Revista Projeto História, nº7, 1987.
44
MILTON, Santos. O Espaço dividido: Os dois Circuitos da Economia Urbana dos Paises Subdesenvolvidos.
São Paulo: Edusp, 2004.
52
que a cercava e da qual fazia parte. Entretanto, até meados de 1977 a Corrente Libertadora
atuou mais diretamente como prática esportiva e cultural no modelo de academia.
Estamos pontuando essa particularidade por duas razões: a primeira diz respeito à
prática da capoeira como manifestação cultural, mas que dialoga com o processo de
esportização da capoeira na cidade e, a segunda, remete ao processo de gradual politização de
suas ações ao se reestruturar enquanto Associação em 1977.
45
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
53
foi acolhida por essa paróquia, mediante o vínculo estabelecido por Eufraudísio com aquela
comunidade.
As atividades sociais desenvolvidas pela Igreja Católica na década de 1960 e 1970, nas
periferias da cidade (principalmente aquelas norteadas pelos princípios da Teologia da
Libertação) atenderam, para além do sentido político de propiciar um espaço de encontro e
discussão – quando o canal de espaços públicos foram fechados ou cerceados pela ação
repressiva do Estado na vigência da Ditadura Militar (1964-1984), atendeu também essa
população de trabalhadores no sentido de apresentar estratégias de inserção na sociedade e no
mercado de trabalho, através de cursos de formação, de orientações e de redes de
solidariedades.46
46
Para uma análise da participação da Igreja Católica nos Movimentos Populares, ver: WANDERLEY, Luiz
Eduardo W. Igreja e Movimentos Populares. Revista Projeto História, nº 7, 1987.
54
Nesse período, provavelmente no correr de 1977, Eufrásio Modesto e Magnólia Maria
já compunham o grupo, participando como alunos e colaboradores diretos das atividades na
academia, mas a relação que tornara-se conflituosa entre José Maurício – Ms Maurício – e Zé
Santos anunciava o rompimento da sociedade e o possível desamparo estrutural da Corrente
Libertadora.
Interessante notar que, diante da eminente crise, os irmãos mais jovens foram buscar
no irmão mais velho a escuta, o aconselhamento e o apoio necessário para a resolução do
problema. Não queremos afirmar com isso que Ms. Eufraudísio exercia um tipo diferenciado
de poder ou influência sobre os demais irmãos, mas antes, reafirmar que a formação da
Associação Cultural Corrente Libertadora estava impregnada da prática familiar de
compartilhar ideias, problemas e cultura.
Há, pois, uma preocupação em não romper com a trajetória cultural do grupo
vivenciada até aquele momento – através da manutenção de seu nome de origem Corrente
47
Segundo relato de Ms. Tigrão e Magnólia Maria, as brigas entre Ms. Maurício e Zé Santos, além de questões
técnicas sobre a capoeira, dizia respeito a uma possível traição. Ms. Maurício teria se envolvido em uma
aventura amorosa com a esposa de seu sócio.
55
Libertadora, mas por outro lado, tenta pontuar a mudança de atitude política ao utilizar a
terminologia Associação.
Segundo Paul Singer, as SABs tiveram sua formação nos anos 50 e ganharam nos anos
subsequentes notoriedade pública e política como organização de representatividade das
comunidades (muitas localizadas na periferia). A principal função das SABs até meados da
década de 1960 era de articular as demandas locais (requerimentos de melhoria de serviços
urbanos) e apresentá-las as autoridades municipais. Embora essas associações tenham perdido
48
Infelizmente não tivemos acesso aos documentos legais como comprovante de registro em cartório, atas e
regimento da Associação para aprofundarmos aspectos do processo de institucionalização da mesma. Como
discutiremos em outros momentos da dissertação, encontramos dados institucionais do período em que a
Entidade já estava consolidada como Associação Cultural Corrente Libertadora, portadora de representantes
legais, Certificado Nacional de Pessoa Jurídica - CNPJ e diretoria executiva. Segundo Ms. Tigrão a retirada a
palavra capoeira se deu como uma estratégia política de articulação entre a Entidade e os parceiros, não-
governamentais e poder público, na viabilização de projetos sócio-culturais no anos 90. Essa informação indica
que o processo de institucionalização foi relativamente longo (aproximadamente entre 1976-1993), mas embora
o consideremos relevante, nos falta elementos para problematizá-los. Por outro lado, acreditamos que as demais
fontes utilizadas conseguem dar subsídios para a compreensão do nosso tema central: a trajetória político-
cultural da Corrente Libertadora.
56
seu vigor devido as novas atribuições e as relações políticas que estabeleceram, 49 elas
continuaram a atuar nas periferias da cidade com reconhecimento das comunidades.
A relação com a capoeira que iniciou-se com José Maurício – Ms. Maurício –
paulatinamente foi partilhada com os demais irmãos, ocorrendo que com a formação destes,
na prática da capoeira, a Associação Cultural Corrente Libertadora se compôs por três
mestres: Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio e Ms. Tigrão.50
49
Segundo Singer, as SABs desde sua origem conviveram com o assédio de setores políticos através de proposta
de cooptação formal – torná-las em conselhos consultivos, por exemplo) ou através de barganhas eleitorais
(benfeitorias em troca de votos). Sua composição social era heterogênia e em meados dos anos 60, o elemento
pequeno burguês (formada por comerciantes, pequenos empresários, especuladores imobiliários, etc) tornou-se
majoritário aproximando-se sobremaneira, dos interesses da autoridades municipais. Nesse período as SABs,
começou a desenvolver atividades recreativas e assistencialista, o que contribuiu para o esvaziamento político e
para o afastamento, das familias advindas dos setores populares. Apesar dessa conjuntura, a atuação das SABs
não era homogênea, tendo exemplos nos quais o papel reivindicatório e popular foi intensificado como a
experiência da SABs Vila Iolanda e do Jd. Kagohara. Ver: SINGER, Paul. Movimentos de Bairro. In: O Povo em
Movimento. Petropólis: Vozes, 1980.
50
No início dos anos de 1990, a Corrente Libertadora passa a cunhar a definitivamente o nome Associação
Cultural Corrente Libertadora e no emblema da Associação vem acompanhado o nome de Ms. Maurício, Ms.
Eufraudísio e Ms. Tigrão. Segundo Ms. Tigrão a retirada a palavra capoeira se deu como uma estratégia política
de articulação entre a Entidade e os parceiros não-governamentais e poder público, na viabilização de projetos
sócio-culturais. Esse aspecto será pormenorizado nos capítulos II e III dessa dissertação.
57
Comumente respeitando e valorizando esse papel desempenhado pelo mestre, muitos
grupos de capoeira cresceram e ganharam notoriedade no Brasil e no exterior. Carregando o
nome do mestre e do grupo em que se formaram, alunos desenvolvem seus trabalhos
contribuindo para a visibilidade do grupo e reconhecimento social do mestre.
Particularidade que também desejamos aqui pontuar é o perfil dos alunos da Corrente
Libertadora na Vila São José. Como nos descreve Ms. Eufraudísio, tratava-se basicamente de
trabalhadores, moradores do bairro, sujeitos às dificuldades e precariedades do viver na
periferia de São Paulo naqueles anos de expansão e de luta popular por ver seu espaço
reconhecido e assistido pelo poder público.
Compreendemos que foi a partir do encontro entre as demandas sociais trazidas pelos
alunos e a experiência cultural e política dos irmãos que coordenavam a Associação, que a
Corrente Libertadora, a capoeira por eles praticada, extrapolou o seu universo de prática
esportiva e cultural para ser compreendida como instrumento de intervenção política.
58
sempre que havia um movimento de resistência social, a Corrente era chamada, porque
era a capoeira que falava a língua da resistência popular. Então assim, nunca a gente se
apresentava, em nenhum momento, em nenhum desses momentos sem colocar o nosso
propósito... dentro da Corrente, como Associação Cultural nós tínhamos o Cine Clube,
tínhamos um grupo de dança, dança folclórica e a gente tinha uma reunião por semana
pra discutir os assuntos sociais com os alunos e aí, os trabalhadores, a família ... vinham
pra esse debate. Às vezes assistiam um curta metragem de um tema específico e a gente
discutia as questões sociais ali. Com isso a Corrente tinha uma inserção das pessoas
dentro dessa questão do Movimento Popular. 51
Nesse sentido, não podemos deixar de pontuar as profundas diferenças na postura dos
atores da Associação em relação as políticas culturais de âmbito federal nos anos 70.
Inspirando-se nas diretrizes do Ministério da Educação e Saúde Pública da gestão Capanema
(1934-1945),52 os governos militares preocuparam-se em estabelecer uma postura oficial
acerca da cultura e de programas, que através de intensa propaganda midiática, marcasse a
participação e controle do Estado nesse setor.
Para a discussão que fazemos aqui, eximindo-se de fazer uma análise pormenorizada
das transformações dos conteúdos e orientações da política cultural oficial desse período, nos
toca diretamente o lançamento da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e a aprovação
51
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
52
A gestão de Gustavo Capanema contou com a colaboração de vários intelectuias como Carlos Drummond de
Andrade, Anízio Teixeira e emprementou diversos programas e projetos. Entre eles destacam-se a reforma do
ensino secundário e o grande projeto de reforma universitária. Em sua gestão se definiu uma política de
preservação do patrimônio cultural do país, que culminou na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional - SPHAN, concebido por Mário de Andrade, além da criação do Instituto Nacional do Livro
ambos retomados no governo Médici no final da década de 60. Ver: BADARÓ, Murilo. Gustavo Capanema. A
Revolução da Cultura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
53
MICELI, Sergio. O Processo de Construção Institucional na Área Cultural Federal (Anos 70). In: O Estado e
a Cultura no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1984, p.56.
59
da Política Nacional de Cultura em 1975. Em ambas, as tradições e costumes das classes
populares são definidas como folclore, pertencentes ao patrimônio histórico e artístico do
pais, cuja salvaguarda e preservação estavam sob a tutela do Estado e das Fundações à ele
atreladas.
54
Para uma discussão sobre patrimônio e folclore, ver: CANCLINI, Nestor García. O Povir do Passado. In:
Culturas Híbridas.São Paulo: Edusp, 2008.
55
MICELI, Sergio. Teoria e Prática da Política Cultural Oficial no Brasil. In: O Estado e a Cultura no Brasil.
São Paulo: DIFEL, 1984, p.108.
56
Sem neglicenciar os desdobramentos do gradual processo de abertura política iniciado no governo Geisel
(1974-1979) que estava na base da Política Nacional de Cultura(1975) através de novas perspectivas e espaços
abertos à cultura, entendemos que a presença efetiva do Estado na periferia de São Paulo ocorreu posteriormente,
no final da década de 80 com a implementação das Casas de Cultura.
60
Por isso, entendemos que havia na prática da Corrente Libertadora uma forma de
acolher através da capoeira, utilizando os elementos que lhe são próprios: a música, a dança, a
roda, o jogo. Esses elementos da capoeira, compostos pelo traço da ludicidade, potencializam
a característica de ser a capoeira uma atividade coletiva.
57
Os movimentos ligados a questão da moradia eram bastante diversificados na realidade paulistana dos anos
70, segundo Gohn, ocorreram vários modos de organização das lutas em torno dessa questão: lutas pelo acesso à
terra e habitação derivadas ocupações – assentamentos e terrenos clandestinos lutas pela posse da terra que
atingia, principalmente moradores de favelas ameaçados de desalojamento; lutas de proprietários pobres que
tiveram acesso a moradia por meio da compra de embriões de programas do poder público que buscavam a
legalização, entre outros. In: GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e Luta Pela Moradia. São Paulo:
Loyola, 1991.
58
Segundo Singer, a movimentação popular para legalização de loteamentos clandestinos (que era a realidade de
muitas famílias da zona sul) começou em 1976, promovida pelas CEBs com o apoio da Comissão Pastoral da
periferia de Santo Amaro e dos Centros Acadêmicos 11 de Agosto (USP) e 22 de Agosto (PUC). Em 1978, a
Capela do Socorro centralizava o movimento da cidade em reuniões mensais com seus representantes. Essa
organização chegou a envolver o interesse de aproximadamente 50.000 pessoas. O movimento se estendeu para
zona leste. A zona sul protagonizou outras ações dos Movimentos Populares desse período e o imediatamente
anterior: Movimento do Custo de Vida (Vila Remo – 1973), Luta por transporte (1974) e o Movimento das
Favelas de São Paulo (Santo Amaro – aproximadamente, 1977). Ver: SINGER, Paul. Movimentos de Bairro. In:
O Povo em Movimento. Petropólis: Vozes, 1980, pp. 94-6.
61
Os fundadores da Corrente Libertadora conheciam de perto a realidade social dessa
região, estabelecendo relações e ações acerca da questão da moradia e a necessidade da
construção de uma rede de serviços – como creches e postos de saúde na região – que
atendesse às demandas das famílias de trabalhadores, carentes desses equipamentos públicos.
Esses objetivos aproximaram as lideranças locais do recém-criado Partido dos Trabalhadores
(PT) da Corrente Libertadora, tendo na Sede provisória da Associação um dos primeiros
espaços de encontros para discussões e organização do partido na região.
Eu iniciei a minha vida, digamos assim, política, o início da minha conscientização foi
através da Corrente Libertadora. Através do companheiro Maurício, Eufraudísio, Tigrão
e Magnólia e, outros companheiros dessa academia. Não era apenas uma academia que
ensinava a jogar capoeira, absolutamente. Era uma academia que tinha uma finalidade
principal: conscientizar os seus alunos e não só os alunos. Mesmo as outras pessoas que
procuravam a academia, sempre tinham espaço na Corrente Libertadora para discutir os
problemas da região, problemas da cidade, os problemas do país e a academia
funcionou muitas vezes, a sede da academia, para reuniões do Partido dos
Trabalhadores, para reuniões do Grupo de Cultura da Região de Interlagos, para dos
Movimentos Populares. A academia sempre assessorou e contribuiu, inclusive na época
da ditadura, com as greves, apoiando as greves, se solidarizando com as greves,
arrecadando alimentos, arrecadando fundos para que o sucesso da greve fosse atingido.
Então, uma das coisas mais importantes que aconteceram nessa região foi a Corrente
Libertadora.59
59
Depoimento Arselino Tatto. In: QUILOMBO da Memória. Direção de Saloma Salomão. São Paulo: Fantasma
Vídeo, 1993.
62
associações, etc) viviam sob a repressão, vigilância e medo imposta pela experiência do
autoritarismo. 60
O espaço da capoeira, que também era o espaço do samba de roda, das músicas e
danças populares, do teatro, do cinema, era também o espaço de formação política, concebida
como processo de conscientização e construção da autonomia do indivíduo. Essa formação
era norteada pelo senso comunitário, objetivando a garantia de direitos que beneficiasse o
coletivo e que propiciasse a construção de espaços públicos alternativos, não
institucionalizados.
60
Ver: TELLES. Vera Silva A Experiência do Autoritarismo e Práticas Instituintes – Os Movimentos Sociais em
São Paulo nos Anos 70. Dissertação de Mestrado: USP, 1984.
61
Ver. HALL, Stuart. Notas Sobre a Desconstrução do “Popular”. In: Da Diáspora Africana: identidades e
mediações culturais. Belo Horizonte: Humanitas, 2003.
63
A formação político-cultural ocorria desde o processo de aprendizagem da capoeira e
das demais manifestações culturais na vivência das aulas, como nos ciclos de discussões, na
experiência como espectadores ativos no Cine Clube Corrente Libertadora62 e na participação
em apresentações públicas da Associação.
Mulheres, homens, adultos e crianças, a capoeira era para todos, independente de raça
ou cor ou idade. Todos os alunos que se destacavam eram convidados para as exibições.
Partíamos de peruas, carros, etc, para apresentações em diversos locais onde nossa
recompensa era o público aplaudindo e o lanchinho que nos era ofertado. Durante a
viagem íamos tocando e cantando, todos muito animados. O movimento tinha
participação política... eram montados palanques onde fazíamos nossas apresentações
defendendo a classe dos trabalhadores... tínhamos aulas de música, cinema 8mm,
aprendíamos a montar berimbau e a tocá-lo. Assistíamos filmes antigos sobre a historia
da capoeira, tudo em 8mm aqueles rolos de fita que hoje deve estar todos no museu, era
uma atração a parte sempre que tinha estas sessões a academia ficava lotada.63
62
O Cine Clube Corrente Libertadora consistia na exibição de filmes, curta metragens e documentários, de
temas diversos. Essas produções, a maioria em filmes super-oito eram exibidos na Sede da Associação
projetados na parede, depois da exibição ocorria um debate envolvendo os alunos, mestres e convidados sobre o
tema.
63
Entrevista IX : Marcelo Pinheiro de Menezes, 09.10.10.
64
Em 1979 a Corrente Libertadora ministrava aulas de capoeira dentro da Associação
de Trabalhadores da Mooca, na Associação dos Trabalhadores do Tatuapé, Sociedade
Amigos de Bairro do Pq. Santa Madalena, Sindicato dos Químicos Tamandaré e Sindicato
dos Metalúrgicos de São Bernado no ABC Paulista.64
manifestação que teve, questões de manifestação das fábricas, muita. Por exemplo,
greve, então o pessoal chamava a gente pra fazer uma apresentação lá no carro. Aí ia ter
uma atividade, a gente ia, porque pra gente era uma farra, agora pros movimentos não,
pros movimentos era uma questão de cidadania, de mostrar que o povão tava ali, que a
gente ia levar umas atividades culturais, atividade de capoeira, nossa capoeira, com uma
apresentação de capoeira num carro alegórico, sei lá, em qualquer lugar. O pessoal
adorava, porque chamava atenção. Fazia maculelê, fazia capoeira, era muito legal! Foi
aí que eu comecei a ver os movimentos, esse negócio de partido. Não manjava nada
disso aí. Fui ver que tava montando os partidos... os caras brigando questão de salário e
a gente... não tinha a questão de política, mas tinha toda a filosofia das igrejas, dos
envolvimentos na igreja... eu fiquei meio assim, mas embalamos. Aí o negócio pegou,
porque a gente era chamado nos movimentos... nos movimentos populares da região,
não só da região de Santo Amaro, mas de região de fora também... nós fomos pra
Brasília.65
A experiência de Ms. Eufraudísio como uma liderança comunitária trouxe para dentro
da prática cultural da capoeira o conhecimento apreendido nas lutas sociais e levou para o
Movimento Popular a festa da capoeira, como manifestação de resistência popular que dança,
canta e luta.
Essa atuação política se dava através da prática da capoeira facilitada pelo caráter
coletivo da Associação Cultural Corrente Libertadora, permitindo que os irmãos fundadores
64
Documento : Histórico: Associação Cultural Corrente Libertadora, 2000.
65
Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves – Mestre Tigrão, 06.03.08.
65
da Associação pudessem se dividir entre os diversos espaços nos quais ministravam aulas e na
coordenação das atividades que realizavam. 66
Assim, Ms. Tigrão nos narra suas impressões sobre esse período.
No dia do Maurício, ele tinha os alunos dele, no dia do Eufraudísio ele tinha os alunos
dele, e no dia do Tigrão ele tinha o aluno dele. Então os três ficou meio fora de
esquadro. A Nólia, ela ia, ela ajudava, ela fazia o que tinha que fazer, ela ajudava a
gente, mas ela não dava oficina, mas nós três, cada um tinha uma metodologia diferente,
cada um ensinava diferente. Dava certo porque era os três irmãos... Eufraudísio dava
aula no sindicato dos plásticos, Maurício dava aula no sindicato dos químicos e eu
trabalhava e só dava aula na academia. Meu negócio era chegar e chinelar os caras e a
aula era diferente de todos dois. Minha aula era aula puxada, eu pagava até pessoa da
OSEC pra dá oficina de educação física, tinha que fazer educação física, tinha que fazer
aquela coisa, pá, e eu não gostava não...67
66
Documento: Pequeno Histórico da Associação Cultural Corrente Libertadora, 1995.
67
Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08.
66
referência a chinela ou chinelo, nome da brincadeira, briga de rua dos meninos na Bahia de
sua infância.
A chinela tem aqui a função de demonstrar o aspecto de luta da capoeira em sua aula.
A questão da Educação Física, contrariando a impressão de Ms. Eufraudísio como veremos
em seguida, aparece como uma exigência da dinâmica da metodologia adotada pelos irmãos
na sede. Ms. Tigrão marca sua desaprovação em relação à Educação Física citando a
estratégia que desenvolveu para burlar essa atividade e concomitantemente respeitar o
procedimento utilizado pelos irmãos, que foi pagar um profissional da área para executar essa
parte da aula de capoeira ministrada por ele.
68
Na proposta pedagógica desenvolvida por Ms. Tigrão doze golpes de capoeira são considerados básicos, a
saber: benção, martelo, chapa, queixada, armadinha, chapa giratória, martelo voador, meia lua de compasso, au e
au chibata.
67
Olha, era muito legal, muito tranquilo. Nós tínhamos uma preocupação, por exemplo,
do preparo físico. Normalmente o Tigrão assumia mais isso... A questão da aula prática,
cada um tinha uma, uma forma pedagógica de aplicar os ensinamentos. Eu e o Maurício
– o Tigrão começou a fazer isso um pouco depois – mas eu e o Maurício já tinha uma
coisa muito nossa assim, um método. Ele tinha uma forma, um método que é muito
parecido com o professor convencional na sala na aula: você é um professor de história
e tua irmã também é uma professora de história, só que ela acredita em um caminho pra
repassar os seus ensinamentos e você acredita num outro caminho, eu imagino dessa
forma. E aí, o Tigrão também tinha uma outra forma, um outro jeito de ensinar... a
Magnólia também, tinha uma coisa mais de pegar um pouco de cada um de nós, mas
durou muito tempo e a gente não tinha nenhum problema não. Os alunos se davam
muito bem e assim, eles gostavam muito de ter aula com todos, porque era uma coisa,
até uma sacada inteligente, pegar jeitos. O capoeirista, o corpo do capoeirista é uma
ferramenta, então assim, são ferramentas que procedem de formas diferentes. Então,
quando o aluno era mais inteligente, pegava aula com nós três e aí tinha uma aula mais
completa e a gente nunca se negava a essa coisa de, não você teve aula com fulano,
então é só com ele, não, não, era uma coisa totalmente diversificada, era uma coisa que
fluía bem...69
69
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
68
liderança...foram aí pro mundo e foram contribuir com outras comunidades, isso pra
nós, é o nosso papel.70
Há, pois, nas narrativas de Ms. Tigrão e Ms. Eufraudísio elementos que os aproximam
e outros em que as opiniões divergem. O caráter de complementaridade da participação dos
irmãos é reconhecida por ambos, no entanto, a eficiência e coerência da pratica pedagógica
assumida em consenso entre os irmãos é questionada por Ms. Tigrão. Acreditamos que essa
divergência está calcada na experiência da Associação que não se estancou na conjuntura dos
anos 70 e no processo de consolidação da democracia nos anos 80.
Esse período de lutas sociais e políticas, nas quais a Associação se posicionou e atuou
diretamente é representativa para Ms. Eufraudísio, mesmo porque, essa experiência colocou a
Corrente Libertadora como sujeito ativo na história do país. Ter participado dessa história
através de uma proposta de capoeira que se diferenciava pelo caráter político, é valorizado
apesar das possíveis divergências cotidianas entre os irmãos.
70
Idem.
69
Nesse sentido, é sintomático que Ms. Eufraudísio enfatize o caráter político da
experiência de capoeira vivenciada através da Corrente Libertadora e que Ms. Tigrão chame
atenção para a questão pedagógica da capoeira, cerne de seu trabalho na atualidade.
Entretanto, entendemos que o aspecto político marcadamente do período anterior a 1989 não
se perdeu, apenas transformou-se através da proposta de ensino desenvolvida por Ms. Tigrão,
sendo assim, ambos aspectos complementares e constitutivos da prática de capoeira da
Associação.
O Maurício ficava feliz, porque quando fazia a roda de capoeira era engraçado, porque
era assim: eu tinha que ajudar a cantar, tinha que ajudar a tocar atabaque. Aí eu cantava,
eu corria pra roda. Só tinha homem e os homens já eram acostumados a me ver jogar na
academia, mas lá nas excursões, exibições que a gente fazia, o pessoal não era
acostumado. Então os homens tinham aquele respeito, as mulheradas criticavam, mas é
como um homem hoje que vê o outro fazer unha no salão e fica criticando, mas ele
critica porque ele têm vontade de ir e não têm a coragem que o outro teve. Naquela
época, eu considerei dessa forma, elas criticavam porque não tinham coragem, coragem
que eu tava tendo... e eu fui por quê? Incentivo do meu irmão. Então o que que eu fiz,
comecei a conquistar as mulheradas pra academia. Toda vez que tinha uma exibição,
isso até me arrepia, toda vez que tinha uma exibição de capoeira, elas vinham pra me,
como que fala? Pra me intimar. Como que era, se doía o corpo, se eu não achava
estranho, se eu me sentia a vontade... eu era muito insegura, mas o pouco que eu sabia já
tava bom, pelo menos pra incentivar, pra abrir espaço já tava bom. 71
71
Entrevista VI: Magnólia Maria Alves Pinto, 31.13.1010.
70
Em sua narração, Magnólia acaba por evidenciar que sua participação na Corrente
Libertadora exigiu dela ultrapassar medos, limites e preconceitos. O conhecimento que se
construía através da prática cotidiana contribuiu para sua formação pessoal, no circular das
experiências. Defender a participação da mulher não estava relacionado a uma linha
ideológico-política ou a um movimento organizado, mas antes à necessidade de assegurar a
continuidade e ampliação da Associação, que tornou-se um projeto comum dos irmãos –
Maurício, Eufraudísio, Tigrão e Magnólia.
O aspecto político das atividades da Corrente Libertadora não foi uma experiência
isolada entre os grupos de capoeira na cidade de São Paulo no período mais coercitivo da
Ditadura Militar. Nessa linha de atuação político-cultural temos a experiência do grupo
Capitães d’Areia idealizado pelo Ms. Almir das Areias em parceria com formados de Ms.
Suassuna. Em 1971, os Capitães d’Areia fundaram sua primeira sede no bairro do Brás, tendo
na capoeira expressão do oprimido, luta de libertação da classe trabalhadora.
Segundo Letícia Vidor, a formação dos Capitães d‟Areia, bem como do grupo
Cativeiro foi, sobretudo, uma resposta à proposta de esportivização da capoeira defendida
pela Federação Paulista de Capoeira – marcializante, disciplinadora, que além de estabelecer
uma sistematização da prática de capoeira e sua normatização para participação em torneios e
competições, buscava através desses mecanismos apagar a memória de resistência negra e os
elementos culturais da capoeira.
72
Nos referimos aos trabalhos de: Augusto Boal com a proposta teatral denominada Teatro do Oprimido; Paulo
Freire na educação com a proposta da Pedagogia do Oprimido e a Teologia da Libertação conduzida pela ala
progressista da Igreja Católica.
71
competições. O berimbau, instrumento mestre do jogo da capoeira, podia ficar quieto, calado,
acanhado como um espectador que conhece o que vê, mas nada pode fazer.
A capoeira, nesse sentido, foi o elemento que permitiu o encontro entre a Associação e
a comunidade, funcionando como um instrumento de formação, mobilização e articulação
político-cultural. A parceria com os Movimentos Populares e a parceria ativa em atividades
culturais, exigiu que a Associação fizesse escolhas dos caminhos a serem trilhados por ela.
73
A partir da década de 60 a capoeira ganhou espaço em produções culturais, alcançando certa ascenção social e
dando notoriedade a alguns mestres. Produções cinematográficas como Briga de Galos (1964), Barravento
(1961), Senhor dos Navegantes (1964), Gato Capoeira (1979) e produções teatrais , de dança e música como os
de Solano Trindade, Grupo Folclórico da Bahia, além da presença na música popular brasileira em espetáculos
como Berimbau de Elis Regina e Badem Powell, em músicas de Vinícius de Morais, Jackson do Pandeiro e
72
Os caminhos trilhados pela Associação nesse período (1976-1989) correspondem a
opção política de contribuir para a transformação social da realidade da comunidade – e
indiretamente, da realidade política em que vivia o Brasil, através da linguagem cultural da
capoeira que, por si só, nos remete a uma historicidade marcada pela resistência. Essa opção,
entretanto, afastou a Associação das pelejas do universo da capoeiragem.
Gilberto Gil, entre outros, permitiram a capoeira efetivar sua participação no mercado cultural. Acreditamos que
apesar dessas possibilidades, a Corrente Libertadora acabou por escolha ou por consequência de suas atividades,
centrando-se na atuação político-cultural. Para a participação da capoeira em produções artísticas, Ver: REGO,
Waldeloir. A Capoeira Angola – Ensaio Sócio-Etnográfico. Salvador: Editora Itapuã, 1968.
73
manifestações culturais, imbuídas de vontade política e centradas não essencialmente na
prática da capoeira.
Ô Bahia, ô, ô, ô Bahia ô
para pensarmos os caminhos e os limites de atuação dos grupos sociais nos diversos territórios
da cidade, território no sentido de espaço de vivências, que supõe conflitos, contradições e
negociações entre seus habitantes e entre os habitantes e o poder público na busca de um viver
urbano amparado pela garantia de direitos: políticos, civis e sociais.
74
Entre os setores populares, a cultura – a capoeira no caso específico da Associação –
pôde funcionar como instrumento na construção de vínculos entre a comunidade: viabilizou
laços de solidariedade entre seus participantes e possibilitou o desenvolvimento de estratégias
políticas em prol dessa comunidade.
75
meu dia tinha muita gente e... eu dominei. Não foi ambição, mas assim, meu dia todo
mundo ia, o pessoal gostava da minha aula e ia lotava. Então as aulas do Maurício
também lotava, todo mundo nossa! Maurício era assim, nossa! Então Eufraudísio não
tinha tempo de dar aula por que ele tava nos movimentos... E aí foi na época que o
Moreira chamou a gente pra fazer o disco, o Brasil Folclórico. Nós fizemos o disco,
disquinho... em oitenta e um, oitenta e dois, oitenta e três Maurício começou a beber...
Maurício não tava dando problema, tava legal, ele bebia, mas ele dava aula direitinho.
Maurício começou a dominar mesmo: as aulas de sábado e domingo Maurício dominava
mesmo as aulas, eu dominava mais na terça e na quinta... eu chegava de noite e dava
aula. Sábado e domingo sempre trabalhei no Rolamentos Fag... tava super bem... e
comecei a pagar a academia e o dinheiro não dava pra pagar, né? A gente cobrava de
algumas pessoas, outros não pagavam e em oitenta e quatro, oitenta e cinco foi o auge
do Maurício. Em oitenta e cinco ele começou a pegar feio mesmo na bebida... Ai
perdemos a sede de novo porque o cara aumentou, oitenta e cinco eu sai da Rolamento
Fag, fui mandado embora, aí o Maurício ficou muito mal, muito mal... entregamos a
academia, eu fiquei desesperado. Ai fui alugar outra academia na esquina, atrás daquela
outra...o negócio ficou feio, oitenta e seis, oitenta e sete eu pastei muito e assim, ficou
fechado a academia dessa época pra cá.74
Assim sendo, Ms. Eufraudísio e Tigrão – que ainda não era mestre nesse período – se
dividiam entre o trabalho, as atividades políticas e a capoeira. Aqui nos encontramos
novamente com os diálogos dos atores sociais com as nuâncias do viver urbano e das questões
sócio-econômicas que atravessam sua realidade.
74
Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves – Mestre Tigrão, 19.02.08.
76
O envolvimento de Mestre Eufraudísio com os Movimentos Populares desde meados
da década de 1970 se adensou: a troca de experiências, o envolvimento com as lutas sociais,
tendo como elemento agregador a capoeira, paulatinamente exigiu que Mestre Eufraudísio
assumisse compromissos de maior envergadura.
75
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio: 09.10.09. Segundo Andrews, o Grupo de União
e Consciência Negra foi criado em 1980 depois de um processo de dois anos de encontros promovidos pela
conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB com o clero negro. O grupo formado por religiosos e leigos
negros, se consideravam ao mesmo tempo parte do movimento negro e da Igreja Católica e tinha como uma de
suas preocupações a redefinição das afirmações amenas e tradicionais da Igreja Católica com relação à democracia
racial no Brasil. Ver: ANDREWS, George Reid. Negros e Brancos em São Paulo (1888-1988). São Paulo:
EDUSC, 1998, p.318.
76
Documento: Histórico - Associação Cultural Corrente Libertadora, s/d.
77
Ms. Maurício e Tigrão passaram a ministrar as aulas ocupando praticamente todos os
dias da semana, revesando os horários de acordo com a disponibilidade de ambos. Tigrão,
funcionário de uma indústria da região, se dividia entre o trabalho formal, fonte de sua
subsistência financeira e a informalidade da capoeira no período noturno. Essa situação traz
consigo as debilidades estruturais da Associação.
Embora Ms. Maurício ministrasse aulas de capoeira e oficinas culturais durante o dia e
em vários horários, não havia uma sistematização de pagamento de mensalidades, que como
apontamos anteriormante, era conflituoso e em certa medida contrário à proposta de
intervenção sócio-cultural que a Associação perseguia. 77 Portanto, havia uma fragilidade da
Associação do ponto de vista e financeiro.
Do ponto de vista social podemos perceber a tensa relação entre trabalho e cultura
vivenciada por esses sujeitos: trabalhadores assalariados que não podem abrir mão de seu
trabalho formal, por que dele dependia a manutenção de sua atividade cultural, atividade esta,
que não produz lucros, nem sequer rendimentos suficientes para suprir seu funcionamento.
Esse quadro estrutural não pode ser confundido com um negócio, uma pequena
empresa com problemas administrativos. Trata-se de uma associação cultural, que já em seus
primeiros anos de existência abandonou a ideia inicial de ser tão somente um grupo de
capoeira, de estabelecer uma academia de capoeira e escolheu o caminho comunitário de se
fazer Associação, de construir um projeto de intervenção social a partir da capoeira.78
77
A sistematização de pagamentos de mensalidades na Corrente Libertadora sempre fora frágil, tanto do ponto
de vista administrativo como ideológico. Embora houvesse uma mensalidade prevista, os aluno (a maioria
moradores da própria comunidade da Vila São José e bairros circunvizinhos) devido sua condição sócio-
econômica não conseguiam manter a regularidade dos vencimentos, por outro lado, os administradores (Mestre
Maurício, Eufraudísio, Tigrão e Magnólia) não conseguiam negar a participação dos inadimplentes nas aulas e
atividades, isso porque, a proposta de trabalho da Corrente Libertadora sempre previu a inclusão e o diálogo com
a comunidade. Dessa maneira, a mensalidade foi assumindo mais um caráter de contribuição do que de
pagamento até ser extinta definitivamente e a gratuidade tornar-se uma das metas do trabalho da Associação.
78
Estamos tentando pontuar que a Corrente Libertadora ao definir seu campo de atuação junto a população da
periferia da cidade e se situar na defesa de direitos escolheu o caminho dos projetos sócio-culturais em parceria
com a Sociedade Civil Organizada e o Poder Público com o objetivo de ampliar sua atuação e garantir a
gratuidade de seu atendimento através da capoeira, assim negou a possibilidade de trabalhar em academia
78
Não podemos perder de vista o lugar social de onde esses sujeitos históricos (a frente
da Corrente Libertadora) estão falando: não se trata de uma Associação que pratica capoeira
em centros universitários, em bairros do circuito cultural da cidade ou em centros culturais
particulares, mas antes, de uma Associação formada por quatro irmãos, de uma família
migrante, moradores da periferia da cidade de São Paulo, que se formou em um momento no
qual essa periferia lutava pela presença do Estado através dos diversos serviços públicos que
lhe faltava.
Esse lugar social não determina a impossibilidade desses atores sociais se fazerem
visíveis e atuantes através da cultura, mas implica nos limites dessa atuação e dá contorno as
dificuldades de manutenção e continuidade do trabalho realizado.
(própria ou de terceiros) em que a mensalidade é uma premissa para manutenção do trabalho e está dentro da
lógica do mercado de bens e serviços.
79
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
79
Corrente Libertadora. O advento da gestão Luiza Erundina (1989-1993) nos parece
significativo nessa experiência. Além de ser tomado como um referencial de governo
comprometido com as questões sociais e culturais, está intimamente relacionado com o
período de transição e as novas condições de atuação dos fundadores em particular e da
própria Associação.
80
Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08; Entrevista VI: Magnólia Maria Alves Pinto,
31.13.1010 e Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
80
afetivas permeando o desenvolvimento de estratégias de continuidade do trabalho
desenvolvido.
Estamos considerando esse período como sendo de transição por algumas razões que,
embora específicas, muito nos dizem da fragilidade da manutenção de uma Associação de
cunho popular e que no caso da Corrente Libertadora é intrínseca às relações familiares.
No período a que nos referimos, Tigrão era formado, quer dizer, já havia recebido de
Mestre Maurício a graduação de professor e junto a ele cumpria a responsabilidade de
ministrar as aulas de capoeira e das atividades culturais correlatas a ela.
E,
oitenta e quatro, aí começou a cair a Corrente. A gente não conseguia pagar a prestação
lá da sede, aí oitenta e cinco eu fui mandado embora do Rolamento Fag... na época que
o Maurício começou a ficar muito mal, aí já tinha saído da Rolamento Fag e comecei a
pagar a prestação e aí foi na época que o Eufraudísio falou: Olha Tigrão, agora você vai,
agora você vai segurar a Corrente porque você já tá mais maduro... Aí foi na época que
81
Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08.
81
eu comecei a pegar a Corrente... pegar mesmo. Assim fiquei um tempo sofrendo com
Maurício aí em oitenta e cinco ele foi internado.82
A narrativa, além de reafirmar aspectos que alimentavam a crise pela qual passava a
Associação, nos traz elementos da relação familiar-afetiva no desenroalar das situações. É
bastante significativo que a atitude de tomar para si a responsabilidade de manutenção da
Associação por parte de Mestre Tigrão passou pelo crivo do irmão mais velho, Mestre
Eufraudísio. Aqui reaparece o sentido de cumplicidade, confiança e respeito entre os irmãos
nas situações de dificuldades, bem como nas deliberações político-culturais as quais se
dedicariam.
82
Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08.
82
Foi nessas circunstâncias – de afastamento dos irmãos e crise financeira – que Ms.
Tigrão, a partir da construção de sua proposta pedagógica e à frente da administração, ganhou
visibilidade como referência da Associação. Estando praticamente sozinho na
responsabilidade de ensinar capoeira, desencadeou um processo de redefinição do campo de
atuação e das diretrizes do trabalho da Corrente Libertadora.
Esse processo, no entanto, foi acompanhado por divergências que envolviam Ms.
Maurício, Ms. Eufraudísio e Ms. Tigrão e se concentravam, principalmente, na prática, em
questões técnicas e, indiretamente na concepção de tradição da capoeira.
eu acho que uma das maiores discordâncias, as mais ferrenhas foi em cima da questão
técnica. Por exemplo, ele disse que eu gingo errado, que o Maurício gingava errado, eu
discordava, em função de que? Não existe ginga errada. Existe a dança ginga, onde
alguns faz ela mais quadrada, ela mais fechada, ela mais triangular, ela mais aberta, isso
depende do estilo de cada capoeirista ou de cada grupo... é a dança. Mas eu não
consegui convencê-lo... que a capoeira é a linguagem entre os corpos. Existe um
diálogo. E isso, cada um têm que ter a sua linguagem, se não ela não flui, vira uma coisa
plástica, uma coisa burocrática, a capoeira não é burocrática, a capoeira é emoção... essa
é uma coisa. A questão por exemplo de não fazer aquecimento, a ginga é o próprio
aquecimento, eu sempre discordava, nós sempre fizemos o aquecimento... imagine eu
colocar meu corpo voando, eu tenho que fazer aquecimento... mas ele não concordava.
Tudo isso foi criando fatores de resistência entre a gente e aí chegou o momento de que
ele dizia que a minha capoeira não era uma capoeira correta... tem que ser assim, o pé
tem que ficar assim, por que o pé não pode... gente, isso é uma indicação no início...
então eu falei: eu desisto!83
83
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
84
A ginga é o movimento do corpo que em sintonia com a música de capoeira, determina o ritmo do próprio jogo
executado pelos capoeiristas na roda de capoeira. Na proposta pedagógica desenvolvida por Mestre Tigrão,
como veremos detalhadamente no capítulo II, a ginga é um elemento que permite estabelecer contato com o
aluno e deste com a musicalidade. Com a preocupação de potencializar os elementos de dança da capoeira, Ms.
Tigrão modificou a posição da ginga, juntando o dançar do corpo com a posição de esquiva (movimento de
defesa da capoeira).
83
Estamos, pois, analisando os elementos exteriores da proposta de ensino de Mestre
Tigrão e não os princípios que norteiam esses aspectos técnicos. Entretanto, embora tentemos
separar a técnica dos princípios para a análise, torna-se uma tarefa movediça e frágil, pois
entendemos, através do diálogo com as fontes, que todas as alterações de natureza técnica
desenvolvidas e implantadas por Mestre Tigrão estão subordinadas ao princípio da inclusão
social de seus alunos.
O que nos propomos pensar sobre essas discordâncias segue duas direções: a primeira
é que qualquer discussão ou descrição da prática de ensino de capoeira adotada por Mestre
Tigrão – inclusive a que tentamos realizar até aqui –, distanciada do fazer cotidiano, da
experiência, pode incorrer na caracterização dessa prática como um método, no sentido de um
procedimento dado, concluído, fechado. Assumindo assim, um aspecto burocrático, como nos
alertou Mestre Eufraudísio.
Então, para compreender o que estava sendo vivenciado por Mestre Tigrão e seus
alunos, Mestre Eufraudísio necessariamente teria que experienciar essa proposta, não somente
na dimensão discursiva, mas na dimensão prática. Isso posto, caminhamos para a segunda
direção do que nos arriscamos pensar: a bagagem de conhecimento adquirido e desenvolvido
85
Na proposta pedagógica desenvolvida por Mestre Tigrão, onze golpes de capoeira foram definidos como
básicos para prática de capoeira – benção, martelo, chapa, queixada, armadinha, rabo de arraia, chapa-giratória,
martelo-voador, meia-lua-de-compasso, au e au chibata. Esses golpes são ensinados antes do aluno entrar na
roda de capoeira pela primeira vez, no entanto, é relevante ressaltar, que esse aprendizado prevê as
particularidades de cada, e por isso pode apresentar diferenças na forma de conduzir esse processo.
86
Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08 e Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves -
Mestre Tigrão, 06.03.09.
84
por Mestre Tigrão durante o período em que ficou sozinho coordenando a Associação lhe
imbuiu de autonomia, confiança e legitimidade para defender suas posições e resistir à
possíveis ambiguidades de posturas pedagógicas entre os fundadores na representação da
Corrente Libertadora.
outra coisa que eu sempre peguei no pé dele, essa coisa de não enaltecer os atos
tradicionais. O se benzer, por exemplo, o Tigrão aboliu o benzer na frente do berimbau.
Ora, eu não sou religioso, não sou católico, não gosto de religião, mas o benzer na frente
do berimbau é um ato de tradição, de respeito ao berimbau, plasticamente é superbonito
você vê isso... é incalculável esse valor e quando ele aboliu isso, tudo bem, ele acha
melhor assim, mas eu acho que perde, perde culturalmente... Tradição não pode ser
mudada... Tradição a palavra já diz, é tradição. Então, você pode adequar ou criar
movimentos, elementos para enaltecer a tradição, entendeu? Então pra mim, tradição é
preservar elementos, fatores superimportantes que é a cultura imaterial, que não se
calcula esse valor, que é a grande fonte de onde você se espelha e vê toda essa
riqueza...Tem fatores muitas vezes você fala: ah, mas é uma besteira! É uma besteira vê
ali, mas quem vive não é besteira, aquele valor muito peculiar pra aquela pessoa, tem
uma história.87
87
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
85
A concepção de tradição de Mestre Eufraudísio está ancorada na imutalidade, o que
faz de uma cultura tradicional é o ato de preservar os elementos constitutivos da manifestação
cultural. Mas contraditoriamente, ele reconhece a possibilidade de adptação ou de criação em
função de enaltecer os elementos tradicionais. Ora, ao criar, ao incluir novos elementos, os
sujeitos que vivenciam a cultura já estão atribuindo novos significados à mesma. Nesse
sentido, a cultura dificilmente se manterá imutável, pois a experiência humana a torna viva,
sempre em movimento e em diálogo com o tempo histórico.
Entretanto, nos parece que embora não haja impedimentos formais para que os alunos
da Associação considerem esses elementos tidos como tradicionais, não há como nos apontou
Mestre Eufraudísio, uma preocupação no processo de aprendizagem de Mestre Tigrão em
ensiná-los, preservá-los e enaltecê-los. Isso é perceptível, pois houve um deslocamento de
prioridades: o processo de aprendizagem da capoeira é a própria estratégia de inclusão social.
A capoeira não é o fim, é o começo.
Por que nós não somos grupo. Nós somos uma associação cultural... nós somos sócios
dentro daquela questão de igualdade social, a gente não é um grupo, uma academia...
Então, uma roda só eu acho, acho não, tenho certeza, que uma roda só inibe as crianças
e mesmo um adulto... por que uma roda só, só joga quem manja... Então lá, nós temos
cinco rodas e tem dia que tá lotado as cinco rodas. Se nós tivessemos só uma roda, todo
o mundo em volta, batendo palma, a tradição. Nós não seguimos essa tradição, de uma
roda só. Agora, por exemplo, das quinze as dezesseis vamos fazer a roda? Vamos, por
que todo mundo já jogou... Se as pessoas que ficam inibidas não querem, mas já
jogaram a aula todinha... por que a gente não faz Educação Física ... a pessoa chega, não
tá bem pra, então se o professor falar assim: Vamos fazer isso! A pessoa não tá bem,
qualquer movimento a pessoa pode se machucar... Então se a pessoa não tá bem naquele
dia... ela pode pegar um berimbau...ficar tocando num canto, ninguém vai falar nada...
ninguém mais faz física, ninguém tá fazendo física, mas antigamente, nossa, tinha que
fazer... hoje em dia cê tá chegando, tô gingando, tô entrando, tô chegando, tô ouvindo
uma música, tô entrando no mundo da capoeira... não têm essa coisa de graduação... por
que qualquer aluno pode chegar lá e pegar um instrumento... O que eu penso do cordão
é isso aí: é um cidadão. É formar um cidadão... não é só o jogo da capoeira, o jogo da
capoeira é o primeiro, segundo, terceiro e quarto, quinto e sexto pra lá, aí pode
continuar com capoeira, pode sim, mas ele tem projeto de vida, ele vai fazer uma
faculdade ou vai fazer um puta curso, pra mim ele tá indo num jeito legal, ele tá
seguindo uma cidadania. 88
88
Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08 e Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves -
Mestre Tigrão, 06.03.09.
86
Nosso narrador inicia sua fala reafirmando ser a Corrente Libertadora uma
Associação. Essa afirmação é relevante para compreendermos sua posição em relação à
tradição, pois na argumentação construída por ele, essa condição – de Associação – os
diferenciam de grupo de capoeira e de academia de capoeira e consequentemente das
atribuições específicas destes.
87
pontuamos aqui através de nossos narradores. Portanto, a sequência e a escolha dos excertos
para essa análise, corresponde ao trabalho do historiador e não a uma discussão condicionada
e direta entre os dois mestres.
Retomar a prática de capoeira em conjunto com Mestre Tigrão, depois de alguns anos,
significaria retornar à partilha dos irmãos Modesto na Associação vivenciada de 1976-1989,
período no qual, Mestre Maurício e Mestre Eufraudísio eram as referências culturais e
políticas.
O que estava em jogo não era a posição política da Associação, mas a maneira como a
capoeira se fazia instrumento desta. Apesar de nos embates e discussões entre os irmãos Ms.
Tigrão figurar como minoria, dois aspectos favoreciam sua posição, uma de ordem pessoal e
outra conjuntural: a convicção de que a proposta de ensino de capoeira desenvolvida por ele
poderia colaborar significativamente para o desenvolvimento físico, psicossocial e cultural de
88
seus alunos e o apoderamento dos mecanismos administrativos e pedagógicos a frente da
Associação entre 1989 e 1994.
Nos anos 90, o Mestre Tigrão tornara-se o referencial junto aos alunos e aos serviços
parceiros. Nessa conjuntura, o retorno de Mestre Eufraudísio necessariamente passaria por
uma negociação entre os irmãos, na qual exigiria uma readaptação por parte de Mestre
Eufraudísio e que Mestre Tigrão cedesse em alguns pontos da proposta de aprendizagem de
capoeira que desenvolvera nos anos antecedentes.
90
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
89
Compreendemos que a permanência de Mestre Eufraudísio, como claramente descrito
por ele, está intimamente relacionada a proposta político-cultural da Corrente Libertadora, ao
seu comprometimento com essa proposta. Mas, nos permitimos considerar, como aludimos
acima, que sua permanência também concerne ao caráter complementar das posições que
defendem os irmãos e mestres e que na tensão do embate foram ignorados, enfatizando
sobremaneira, as discordâncias.
Nos remetemos aqui, ao que consideramos ser uma das particularidades da Corrente
Libertadora: ser uma Associação que tem na sua origem a atuação de quatro irmãos – Mestre
Maurício, Mestre Eufraudísio, Mestre Tigrão e Magnólia, e para nós, profundamente
influenciada por esse sentido comunitário, transpassado pelos laços familiares. A Corrente
esta dentro do meu sangue nos diz Mestre Eufraudísio.
Assim como, Ms. Tigrão apoderado da legitimidade de seu trabalho, atribui esse
mérito à Corrente Libertadora, igualmente Ms. Eufraudísio direciona sua contribuição
política à Corrente Libertadora. Os irmãos não romperam para formar outras associações ou
grupos de capoeira. As divergências não foram capazes de dividir: as relações se
transformaram, os referenciais mudaram, os projetos e ações trilharam novos caminhos, mas a
Associação Cultural Corrente Libertadora continuou a ser, em certa medida, um projeto
comum dos irmãos Modesto e a capoeira seu principal instrumento.
Esse período que identificamos aqui como de transição é relevante, pois indica os
contornos das ações de intervenção sócio-cultural que a Corrente Libertadora assumiu nos
anos 90 e a redefinição dos papéis desempenhados pelos irmãos Modesto nessa conjuntura.
91
Para o conceito de patrimonialismo, ver: HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das
Letras, 2008.
90
Depois de 1994 o núcleo de capoeira da Associação ficou definitivamente sob a
coordenação de Mestre Tigrão dando vazão ao processo criativo da proposta pedagógica
desenvolvida por ele. A proposta pedagógica tornou-se o cerne da intervenção político-
cultural da Associação, que subsidiada pela experiência anterior à 1989 compunha o corpo de
justificativa para alçar novos projetos e efetivar ações junto aos parceiros.
91
Capítulo II
92
O capítulo que se segue tem como pretensão apresentar as particularidades da proposta
pedagógica para o ensino da capoeira desenvolvida por Ms. Tigrão a partir de 1989. Através
do diálogo com as fontes – narrativas orais, projetos e relatórios institucionais e imagéticos –
buscamos discutir a vivência das transformações de concepções e prática da capoeira pelos
alunos e mestres da Associação Cultural Corrente Libertadora.
Como em uma roda de capoeira, a ladainha1 Encontros de Ms. Tigrão, 1999, nos
chama para esse universo.
Berimbau me chamou,
Assim disse o atabaque,
O pandeiro respondeu,
Chamando a todos nós.
E obrigado negro,
Foi você quem criou a capoeira!
E, obrigado negro,
Foi você quem criou a capoeira!
Esse verso irrompe com o desejo de nos seduzir, de nos levar, mesmo que
parcialmente à uma roda de capoeira, de nos permitir entrar em contato com uma das
múltiplas possibilidades de experiências sócio-culturais que o universo da capoeira permite e,
que aqui, nos propomos pensar sobre alguns dos processos desse fazer cultural, suas tensões e
alguns significados.
A ladainha também nos lança no campo das discussões étnicas, tendo em vista a
autonomia e criatividade dos brasileiros, afro-descendentes na criação, desenvolvimento e luta
pela manutenção da capoeira no Brasil, o que remonta a capoeira desde a experiência escrava.
Não obstante, o verso nos remete aos elementos que, em nossa percepção, distingui a capoeira
das demais lutas, marciais ou não. Estamos chamando a atenção para os instrumentos
musicais – berimbau, pandeiro e atabaque – que fazem da capoeira uma dança que luta ou
1
A palavra ladainha está no dicionário como oração formada por uma série de invocações curtas e respostas
repetidas. Relação, narração, ou conversa longa e fastidiosa; lengalenga, cantilena. No universo da capoeira, a
ladainha é a canção que abre o jogo de Angola, normalmente trata-se de uma narração relativamente longa,
durante a qual apenas o puxador (cantador) se faz ouvir. A ladainha não é acompanhada por palmas e apenas
quando o puxador evoca o coral é que este responde. Até a introdução da invocação e da resposta do coro, os
jogadores se mantém de cócoras ao pé do berimbau, quando o puxador então sinaliza para os jogadores
abaixando levemente o berimbau em direção a roda, aí então começa o jogo, a brincadeira.
93
quem sabe, uma luta que finge dançar; uma performance do corpo que brinca, que canta e
que engana.
Podemos entrever o traço da tradição oral, na atitude do mestre que conta história, que
reivindica o lugar dos negros na elaboração da capoeira através da ladainha, que é uma
narrativa. Uma narrativa cantanda,2 que os instrumentos da capoeira dá vida, como um
dramaturgo à uma personagem.
A tradição oral presente nas tradições dos diversos povos que entre conflitos,
negociações e intercâmbio cultural conviveram e convivem em terras brasileiras, é inerente ao
fazer da capoeira. Está presente na transmissão e apreensão do conhecimento por entre os
golpes treinados, no responder dos corridos,3 na escuta atenta da ladainha, no manusear dos
instrumentos que ganham forma através do desajeitado aprendiz ou na habilidade do tocador.
Está presente no exemplo do Mestre, no cotidiano da roda, nas estratégias de reprodução e de
produção de novos conhecimentos acerca da experiência da capoeira.
Iniciamos essa discussão pelas mãos, pés e narrativas dos sujeitos históricos que desde
1989 participam da Associação Cultural Corrente Libertadora e que na prática de capoeira
vivenciaram as transformações na forma de ensinar capoeira empreendidas por Mestre Tigrão,
a partir de então, ora como agentes que desencadearam o movimento de transformação, ora
como apredizes do que foi transformado e, algumas vezes, como multiplicadores,
responsáveis por expandir e repassar essas transformações.
2
Sobre poesia oral, ver: ZUNTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
3
Corridos é o nome dado as canções composta por dois versos, dos quais um é evocado pelo puxador e o outro é
respondido pelo coro.
4
VIGARELLO, Georges. O Corpo Inscrito na História: Imagens de Um Arquivo Vivo. In: Revista Projeto
história, nº 21. São Paulo: Educ, 2000. Para uma discussão sobre as relações entre performance do corpo e
tradições orais de matrizes africanas, ver: ANTONACCI, Maria Antonieta. Corpos Sem Fronteiras. In: Revista
Projeto História, nº 25. São Paulo: Educ, 2000.
94
predominantemente públicos – casas de cultura, escolas, associações de bairros, serviços de
atendimento a criança e adolescentes, clubes da cidade, sedes de movimentos sociais, entre
outros – vivencia com a presença ativa da capoeira, personificados por seus agentes – mestre,
instrutores, monitores, alunos e colaboradores – uma experiência comunitária e pedagógica
que está presente não apenas na maneira de dar aulas de capoeira, mas na maneira de ocupar o
espaço, de se relacionar com a comunidade e de desenvolver uma proposta de inclusão social
através da cultura.
Tava fechando a academia em oitenta e oito. Tava preocupado com essa coisa, será que eu
vou parar com a capoeira, meu Deus do céu! inclusive nossas coisas foi pra casa do
Arselino, que não tinha lugar, não tinha nem uma garagem, tive que levar pra lá, já tinha
saído do Rolamento Fag... foi na época que Maurício foi internado de novo e... a Erundina
tava criando o Centro de Convivência e aí, tava criando a Casa de cultura. Antes de criar a
Casa de Cultura eles já pediram pra mim ir pra lá, como eu tava desempregado, aí eu falei:
Vou tranqüilo. E minhas coisas? Arrumaram um caminhão, fui lá peguei minhas coisas e
levei pro Autódromo de Interlagos, aí tive que trabalhar a semana toda, tudo sujo lá, aquele
salão imundo, que até dedo de gente tinha lá em cima... o negócio foi feio e lá era Polícia
Militar muitos anos e...então quando a gestão da Erundina entrou e o Leónidas... trabalhou
aqui na prefeitura então, ele arrumou lá pra gente, pra gente fazer um trabalho, pra montar
uma casa de cultura e além da casa de cultura... o centro de convivência que ficou cá em
baixo e eu fiquei lá em cima limpando voluntariamente, louco pra deixar bem bonito pra
quando Maurício saísse da... internação ele visse que a academia estava super bem, que a
gente não tava mais pagando aluguel. Eu fiquei muito contente na época por que... além
disso a minha cunhada, que era esposa do Eufraudísio, foi convidada pra administrar o
Centro Esportivo Joerg Bruder que fica em Stº Amaro... Nossa, aí eu fiquei muito contente!
Em oitenta e nove... por que o Maurício vai sair, vai pra academia... Aí foi a época que
comecei a falar assim: Puxa, que legal! Agora eu vou trabalhar com capoeira, né. É eu vou
trabalhar com capoeira, acho que chegou o momento. Agora deu, deu...sei lá, tô muito
contente! Então comecei. Aí fui convidado pra ir pro Bruder. Fui lá no Bruder, limpei o
95
salão, arrumei o salão lá no Bruder e cá, já coloquei o nome mestre... Mestre Maurício já na
frente, nossa! Mestre Maurício e Professor Tigrão, por que não era mestre, eu era formado.5
A mudança para o antigo Posto Militar de Interlagos, na Zona Sul de São Paulo, marca
o início das parcerias entre a Associação Cultural Corrente Libertadora com o Poder Público.
O posto militar desativado em 1989 e transformado em Casa de Cultura Interlagos e Centro de
Convivência, estava previsto no programa de gestão da então prefeita Luiza Erundina, mas
seguindo os rastros deixados por nosso narrador, nos diz também da articulação entre o
governo que começa a trabalhar com a colaboração das forças dos Movimentos Populares.
5
Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08.
96
Não obstante, as circunstâncias sócio-econômicas da Associação, bem como de Mestre
Tigrão – desalojamento e desemprego respectivamente – possibilitou uma disponibilidade a
capoeira. Nesse sentido, o desalojamento da Associação obrigou Mestre Tigrão e seus irmãos,
particularmente Mestre Eufraudísio, a buscar alternativas que impedissem o fechamento
definitivo da academia, portanto, do espaço no qual a capoeira se dava.
A decisão em aceitar ir para o antigo Posto Militar de Interlagos indica uma disposição
em ver nas pequenas e improváveis brechas da realidade social, a possibilidade de construir,
de criar, de trabalhar. Essas características se evidenciam a medida em que nos deparamos
com a informalidade desse contrato basicamente oral. Primeiro Mestre Tigrão aceitou ir para
o espaço e lá trabalhou na sua reorganização e apenas meses depois, foi efetivamente
contratato pela Prefeitura do Município de São Paulo como funcionário. 6
6
Somente depois de um ano trabalhando como voluntário na Casa de Cultura Interlagos e no Centro Educacional
e Esportivo Joerg Bruder, Eufrásio Modesto Alves, Mestre Tigrão, foi contratado pela Prefeitura de São Paulo,
após ser aprovado em concurso público, o que possibilitou a continuidade remunerada do seu trabalho nesses
espaços.
97
Manacá, quando o espaço foi construído pelas mãos de Mestre Maurício com a ajuda dos
irmãos e pedreiro. Entretanto, o que torna peculiar a prática de Mestre Tigrão é que a
transformação do espaço passa a constituir um elemento de sua prática pedagógica.
7
Dos projetos analisados (ver: Fontes, p.196), apenas aqueles relacionados especificamente a sexualidade e que
previam oficinas culturais ou de prevenção à DST/AIDS em lugares variados, não continham a adequação do
espaço como parte da metodologia de trabalho. Os demais projetos e/ou planos de trabalho, todos o previam,
indicando os materiais necessários para a pintura das rodas de capoeira, das linhas circunscritas no chão para a
aprendizagem da ginga e dos golpes e outros materiais dependendo da especificidade do público a ser atendido.
A adequação era prevista como parte do trabalho da Associação e por isso, de responsabilidade dos
coordenadores dos projetos.
8
Documento: Projeto Iniciação a Capoeira, 1996. Parceria: Centro Comunitário da Criança e do
Adolescente/Liberdade – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo/Região Episcopal Sé. p.7.
98
Ocupar o espaço através da capoeira, introduzindo os elementos que acompanharam o
desenvolvimento de cada aluno e paralelamente marcando especificidades do processo
pedagógico. Nesse sentido, as linhas assinaladas no chão a que se referem os autores do
projeto, trata-se de um recurso pedagógico utilizado pela Corrente Libertadora no
aprendizado da ginga e de alguns golpes da capoeira. Esse recurso utilizado por Mestre
Maurício e seus irmãos no período de 1976-1988, foi por Mestre Tigrão reapropriado em um
processo ativo de seleção e incorporação de novos elementos.
Nas imagens a seguir, veremos o desenho das linhas utilizadas pelos irmãos Modesto
antes de 1989 e que foram reapropriada por Mestre Tigrão mediante o deslocamento dos
objetivos pedagógicos à ele atribuídos.
99
1a. Ginga de Frente, lado esquerdo, 1b. Ginga de Frente, lado direito,
sobre as linhas posteriores em v. sobre as linhas posteriores em v.
9
As imagens (1a e 1b) foram feitas a partir de fotografia. Como não tínhamos um imagem do período (1976-
1989) no qual esse recurso era utilizado pela Associação, através dos depoimentos de Ms Tigrão e do aluno
Emerson Coutinho reproduzimos a ginga, fotografamos (22.01.11) e então, Emerson Coutinho produziu a
ilustração. Para mantermos um padrão nas ilustrações utilizamos o mesmo procedimento para as imagens 2a e
2b.
100
De maneiras e por razões diferentes, esses sujeitos apresentam limitações à prática da
capoeira, entretanto, o ritmo desenvolvido a partir da ginga pode potencializar suas
habilidades e não as dificuldades e limitações.
O procedimento acima descrito não impede a prática da capoeira por esses indivíduos,
sendo inclusive comum, que num primeiro momento as pessoas apresentem facilidade em
executá-lo, normalmente ignorando o ritmo. No entanto, na perspectiva de prática
continuada, compreendemos que não propicia uma relação integral com a capoeira, podendo
incorrer em uma inclusão parcial, no sentido que viabiliza a participação do indíviduo pautada
no limite e não na habilidade.10
2a. Ginga de Lado, direito, as sobre 2b. Ginga de Lado, lado esquerdo, sobre
linhas posteriores paralelas. as linhas posteriores em paralelas.
10
O que estamos tentando inferir é que muitas vezes, as pessoas portadores de necessidades especiais participam
de aulas e atividades culturais sendo aceitas afetuosamente pelo grupo sem que delas sejam exigidos ou
estimulados passos de progressos dentro de uma proposta pedagógica que leve em consideração as
particularidades de cada caso. Essa situação, muitas vezes, incide em uma participação apenas recreativa desses
alunos. Não estamos negando as contribuições de atividades recreativas, mas no caso da proposta da Corrente
Libertadora, pudemos compreender que o caráter recreativo é uma decorrência de estar relacionado ao grupo e a
capoeira e não um fim em si mesmo.
101
A posição das pernas no movimento da ginga não se cruzam, exigindo assim o
equilíbrio como uma habilidade a priori, mas antes, serve como apoio que possibilita o
equilíbrio, os pés estão inteiros no chão e a perna anterior (perna da frente) livre para
empreender um contra-golpe, já que a perna posterior (perna de trás) lhe dá firmeza.
O que torna essa reapropriação particular como uma estratégia pedagógica que
pressupõe uma inclusão integral dos indivíduos na prática da capoeira, é a concepção desta,
como instrumento mesmo da inclusão, gerando o deslocamento dos aspectos de luta da
capoeira para os aspectos da dança da capoeira.
Nesse sentido, o papel da ginga embalado pela musicalidade torna-se prioritário. Para
potencializar os aspectos da dança, portanto, os aspectos rítmicos, o recurso das linhas
assinaladas no chão utilizadas por Mestre Tigrão, inverte a posição de ataque da imagem 1a e
1b, para a posição de defesa da imagem 2a e 2b, isso porque, ao possibiltar o equilíbrio do
corpo através da posição das pernas, também conduz simultaneamente a esquiva, 11 sem a
necessidade de realizar dois movimentos subsequentes.
Então, dentro dessa proposta de ensino da capoeira, a ginga se faz através da esquiva
ritmada, tornando o jogo de capoeira praticado pela Associação Cultural Corrente
Libertadora, por excelência defensivo e esteticamente complementar, potencializando os
elementos acrobáticos, rítmicos e evitando os contra-golpes. 12
No entanto, estamos pontuando essa questão para nos apropriarmos da mesma, como
elemento de análise de que não há, na prática de capoeira da Corrente Libertadora, um
posicionamento de anulação ou negligência concernente ao aspecto de luta da capoeira, mas
11
A esquiva é o movimento que possibilita a defesa do capoeirista mediante ao ataque do outro jogador durante
o jogo de capoeira. Há outros movimentos que podem se configurar como de defesa – cocorinha e negativa – no
entanto, esses movimentos ocorrem da altura da cintura para o chão e a esquiva se dá em pé.
12
É chamado de contra-golpe a ação do capoeirista em executar um golpe no sentido contrário a posição do
outro jogador. Esse movimento pode incorrer no contato direto entre os jogadores. Normalmente se configura em
um movimento de ataque, que atingindo o outro capoeirista pode levá-lo a queda ou a um tipo de lesão.
102
antes, a valorização e potencialização do aspecto da dança. Assim, como não se propõe
predileção por um dos conhecidos estilos de jogo de capoeira: angola e regional. 13 Segundo
Mestre Tigrão, a gente joga capoeira, se o berimbau tocar angola, a gente joga angola, se
tocar regional, a gente joga regional.
Podemos ainda, lançando mão do recurso das linhas assinaladas no chão, levantar
outros aspectos pedagógicos e políticos que esse recurso carrega. A quem se destinava a
atividade de capoeira proposta pela Associação Cultural Corrente Libertadora? No projeto
em questão, à crianças e adolescentes de rua e moradoras de cortiços da região central da
cidade, principalmente, região da Liberdade e da Sé. 14
Uma das mudanças mais significativas nos trabalhos desenvolvidos pela Associação
nos anos que segue à 1989, foi do público alvo e com isso os desdobramentos práticos. No
período anterior, o público participante da capoeira e das demais atividades desenvolvidas
13
Nos anos 30, Mestre Bimba – Manuel dos Reis Machado (1900-1974) – defendeu junto aos poderes
constituídos o que chamou de Capoeira Regional, uma variante da capoeira já praticada, mas que incluía golpes
de outras lutas, ocidentais e orientais, além da introdução dos chamados Balões de Bimba, novos toques de
berimbau e a introdução de um incipiente sistema de graduações. Em oposição a essas transformações na
capoeira defendidas por Bimba, Mestre Pastinha – Vicente Joaquim Ferreira Pastinha (1889-1981) – intitulou de
Capoeira Angola, a capoeira que negava essas transformações, atribuindo à ela um status de pureza e de berço da
tradição da capoeira baiana. Sobre o tema, ver: REGO, Waldeloir. A Capoeira Angola – Ensaio Sócio-
Etnográfico. Salvador: Itapuã, 1968.
14
Documento: Projeto Iniciação a Capoeira, 1996. Parceria: Centro Comunitário da Criança e do
Adolescente/Liberdade – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo/Região Episcopal Sé. p.7.
103
pela Associação, era majoritariamente de jovens e adultos: trabalhadores, moradores da Vila
São José e dos bairros circunvizinhos. Devido a essas características, o horário mais disputado
das aulas era o noturno, que atendia à necessidade do público, bem como dos professores e
mestres que se desdobravam entre o trabalho formal (pela sobrevivência) e a atividade
cultural.
Na realidade social da Vila São José, na segunda metade dos anos 70 e no decorrer dos
anos 80, as crianças que frequentavam a Associação de forma regular ou ocasionalmente,
eram moradoras do bairro, filhos de trabalhadores da região que sofriam as precariedades de
aparelhos públicos de lazer e educação. Nessas circunstâncias, a capoeira, além de suas
qualidades atrativas inerentes, tinha a seu favor o fato de ser uma das poucas atividades
culturais acessíveis no bairro.
Portanto, apesar de ser um público de poucos recursos econômicos, era por outro
lado, um público que os fundadores da Associação tinham contato direto e familiaridade no
dia-a-dia nas ruas do bairro. Essa familiaridade proporcionada pelo território ocupado pela
Associação não apenas se modifica, como também se amplia a medida que novos sujeitos
passaram a compartilhar essa experiência.
15
Esses conceitos concebidos em sua maioria por outras áreas do saber, principalmente a Psicologia Social e o
Serviço Social, estão relacionados em geral ao grau de exposição à violência (física e psicológica) ao qual um
indivíduo está submetido (nesse caso por crianças e adolescentes). Trata-se também em considerar as condições
sociais (econômicas e culturais) nas quais esse indivíduo está inserido.
104
às crianças do bairro que no período contrário do escolar participavam de atividades, entre as
quais, a capoeira.16
eu comecei dar aula normal, normal. Aula assim do jeito que meu irmão ensinava pra
mim... a empolgação era muito boa... nisso começou o Centro de convivência e o Centro
de convivência trabalhava com menino já, é, que falava que era imperativo. Com
menino que tinha problema mental, menino que tinha problema com a mãozinha, que a
mãozinha era torta, o pezinho era torto e aí foi lotando lá em baixo dessas crianças. De
vez em quando, uma psicóloga subia lá em cima pra ver eu jogando capoeira e nisso
calhou de um menino, um deficiente... no momento que eu tava jogando capoeira, ele
não fazia atividade de massinha... E aí a Zélia, Zélia era a coordenadora do Centro de
Convivência subiu, falou: Oh, prazer, sou a Zélia. Eu tô com um menino... que todas as
psicólogas não conseguem fazer atividade com ele no dia que o senhor está aqui,
fazendo a capoeira. E, eu disse: Por quê? Por que ele fica dançando direto! E ai, a gente
não consegue fazer atividade... eu queria trazer ele aqui!... ai eu falei: Oh moça, sabe
como é os menininhos. Os menininhos pula... tem uma habilidade. Esse menino vai vim
pra cá, vai atrapalhar toda a aula. Ela falou: Não, só pra ele ver! Não tudo bem, pode
subir com ele, pra ele ver de boa, não tem problema não, ele pode ver... mas pra fazer
aula já é meio difícil... oh senhora, sem chance! Por que como ele vai fazer um aú? Só
16
Não temos condições de indicar com exatidão o período e o significado da sigla OZEM por falta de
documentação. À referência a OZEM encontra-se na narrativa de Mestre Tigrão, Entrevista I: Eufrásio Modesto
Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08. Segundo ele, a Ozem funcionava como um Centro de Convivência e o
trabalho foi desenvolvido por volta de 79 com duração de três anos.
17
Documento: Histórico – Associação Cultural Corrente Libertadora, s/d.
105
que traz ele aí, que eu vou ver. Imediatamente a mulher desceu e subiu com o menino.
O menino levou mais ou menos meia hora pra subir a escada né. Tinha a perninha torta,
a mãozinha torta e o menino ficou lá, assim, dançando, olhando minha aula. Aí eu falei:
Olha, não dá pra você fazer capoeira porque você... tem, sua mãozinha, não vai encostar
no chão né, aí, ele, ah, ah. O menino não falava direito. Ai a Zélia levou o menino...aí
eles discutiram lá com os técnicos... aí subiu outra pessoa lá, a assistente social e falou:
Tigrão, não tem condições desse menino fazer capoeira? Não dá...Não dá, não tem
condições! Os meninos aqui têm um movimento, como que é que eu vou ficar
segurando essa criança, não dá. Aí insistiram... depois a Zélia subiu falou: Olha, dia de
capoeira ele vai subir! Aí eu falei: Beleza vai, já que vocês... eu vou dar aula pra esse
menino!18
18
Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08. O aú é o movimento de inversão, conhecido
também como estrelinha.
19
As implicações das parcerias com o Poder Público serão pormenorizadas no capítulo III. Da Roda de Capoeira
à Roda de Negociações: Projetos e Parcerias da Associação Cultural Corrente Libertadora.
106
denunciavam um governo autoritário e todas as implicações que essa situação acarretava. As
forças dos Movimentos Populares, apesar de sua pluralidade, comungavam de um interesse
comum: a visibilidade de suas reivindicações e a instauração do Estado de Direito.20
Embora entendamos que a atuação da Corrente Libertadora em toda sua trajetória seja
profundamente política, no período de 1989-2004, as lutas sociais por ela defendidas
relacionam-se ao embate com setores e a questões mais específicos do Poder Público –
Educação, Assistência e Desenvolvimento Social, Esporte, Cultura e Justiça – e estão
centradas na diretriz da garantia de direitos, principalmente no que tange as crianças e
adolescentes. Por outro lado, levamos em consideração a terminologia utilizada pelos nossos
narradores ao tratar da capoeira como elemento de intervenção, nesse caso, sócio-cultural.
Aí me invoquei pra dar aula pra ele. No dia que não tinha muita gente, muita criança, eu
falei pra ele subir antes. Aí ele subiu e aí eu coloquei uma música lá, uma música bem
lenta de angola e o menino começou a dançar do jeito certíssimo, assim, no ritmo. E eu
falei: Mais rápido! Como mais rápido se era angola? ...Então falei: Vou colocar uma
música mais rápida pra ver, porque tá num ritmo diferente do meu ritmo... Coloquei
uma música mais rápida e o menino, mais rápido. No ritmo mais rápido e eu fiquei
bobo! Porque o menino tava no ritmo, eu não estava. Eu não estava no ritmo. Então eu
comecei... Minha capoeira mesmo. E o menino no ritmo e eu fora do ritmo. Eu percebi
que eu tava muito fora do ritmo. Depois eu sei que eu suei, refleti um pouco, nossa!
Coloquei outra música que é a música A Morte da Capoeira. Vou colocar essa que é
cadenciada... aí ele começou a gingar. Eu comecei acompanhar ele e felizmente, isso é
muito legal, eu comecei acompanhar o menino, por que eu estava fora de esquadro, eu
que tava fora de ritmo, eu tava fora de sintonia. Eu comecei a entrar em sintonia, aí
comecei apaixonar pelo menino né, a ensinar pra ele legal e assim: Não foi eu que
ensinei pra ele, foi ele que veio me ensinar. Ele tinha a musicalidade na cabeça, eu não
tinha ainda e... assim, o conduzir, quem vai te conduzir e aí, isso aí mostrou uma
maneira assim muito forte, muito forte assim, que parecia que eu não era professor,
quem era o professor era ele. E aí ele, gente! Comecei a me empolgar tanto com esse
menino, gingar do ritmo dele e eu comecei a esquivar, foi na hora que eu ameacei nele,
ele esquivava. Só que ele esquivava no ritmo, ele não esquivava bem louco... Gente do
céu! Olha, eu acho que eu estava totalmente fora de esquadro. Aí esse menino foi outro
dia, outro dia, eu é que ia pegar ele lá em baixo; ele já tava subindo a escada totalmente
diferente, ele já tava fazendo aú e aí, eu comecei a gingar do meu jeito, do jeito do
menino, que não era o meu jeito, não foi eu que criei (emoção) é por isso que hoje a
necessidade, por exemplo, a gente trabalha com a necessidade do próprio menino. E aí
vem a questão assim, você, não é que você é bom professor, é você saber respeitar o
limite das pessoas e você sabendo respeitar o limite do aluno, do menino que tá ali... é...
gingando, você trabalha o limite dele e o seu limite, por que é o limite da música. Você
não tem que impor o outro limite ou outro ritmo, é o ritmo da música!21
20
Ver: SINGER, Paul; BRANT, Vinícius Caldeira. São Paulo: O Povo em Movimento.São Paulo: Vozes, 1982.
21
Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08. Partes desse excerto foi utilizado no capítulo
III com o intuito de analisar a importância e as implicações da Associação ocupar um espaço público, aqui no
107
Vemos na resistência primeira de Mestre Tigrão em atender o menino portador de
necessidades especiais a percepção de capoeira na qual ele havia se formado: a capoeira da
beleza, da agilidade, destreza e força.
De forma subjetiva, também remete a sua relação íntima com a capoeira de sua
infância, a chinela, instrumento de brincadeiras, arruaças e contato físico, em outras palavras,
as brigas, nas quais se envolvia nas ruas de Ibicarí e Itapetinga no sul da Bahia. A capoeira
que em São Paulo no início dos anos 70, aperfeiçoou a brincadeira de menino e tornou-se um
instrumento real de defesa e ataque, portanto, a capoeira propriamente luta, utilizada no
enfrentamento cotidiano da hostil relidade urbana, como uma vantagem sobre seus possíveis
adversários ou desafetos.
O nosso narrador marca a importância afetiva do que aprendeu com seu irmão, Mestre
Maurício, não apenas no ato de jogar capoeira, mas também de como ensiná-la, em várias
passagens das narrativas aqui apresentadas, pontuando a relação de cumplicidade e respeito
compartilhados pelos irmãos Modesto. No entanto, o próprio Mestre Tigrão marca o
rompimento com os procedimentos pedagógicos que aprendera na convivência cultural com
os irmãos no período anterior e, principalmente, que esse rompimento se deu a partir da
prática mesmo da capoeira e pelas mãos do aluno.
Foi o aluno que ensinou, segundo Mestre Tigrão, a medida que foi a partir de suas
necessidades, limites e habilidades que o professor observou, experenciou, refletiu e iniciou
um processo de elaboração de estratégias pedagógicas que possibilitassem a aprendizagem da
capoeira e colaborasse para a inclusão social desse aluno em outras instâncias da sociedade na
qual estava inserido.
entanto, nossa preocupação é enfatizar o processo de formação de educador do Mestre Tigrão, bem como os
desdobramentos em sua prática pedagógica.
108
pedagogicamente de diversas maneiras com objetivo de trabalhar o auto-conhecimento do
corpo, a harmonia da musicalidade com o corpo, a noção de lateralidade, o equilíbrio,
concentração, aprendizagem e aperfeiçoamento de golpes e principalmente, uma estratégia
para conhecer o outro, de estabelecer o primeiro contato com o aluno, imprescindível para a
construção de vínculo.
O que está posto na narrativa, entre outras coisas, é que ocorreu naquele período uma
transformação não apenas no jeito de ensinar, mas na forma de conceber a capoeira e de se
fazer sujeito desse processo. Mestre Tigrão se coloca como aquele que aprende, capaz de
aprender com o outro e de mudar de posições se necessário, nessa perspectiva, o trabalho da
Associação Cultural Corrente Libertadora, se amplia. O princípio do respeito avança no
sentido de ser, além da base da convivência em grupo, ser o condutor do processo de
aprendizagem, da construção de vínculos e a elaboração de projetos pessoais junto com os
alunos.
22
Documento: A Capoeira e o Desenvolvimento do Deficiente Auditivo, 1996. Parceria: Secretaria Municipal da
Educação/ EMEDA – Escola Municipal de Educação para Deficientes Auditivos Anne Sulivan.
109
Além destas percepções, colaboram para a aprendizagem as vibrações emitidas pelos
movimentos dos pés no assoalho, marcando o ritmo; a presença constante no campo
visual do professor, assim como a exposição contínua à sua fala.
Utiliza-se linhas assinaladas no chão como recurso para o ensino da ginga e dos golpes
básicos.
Findo este período, o aluno junta-se ao restante do grupo (alunos ouvintes), jogando na
roda e concretizando sua integração... Esta colaboração também se dá na aprendizagem
da dança maculelê, através das vibrações provocadas pelas batidas nos bastões de
madeira e que mobilizam o estabelecimento de um ritmo interno.23
O recurso das linhas assinaladas no chão são utilizadas, no entanto, outras estratégias
são empreendidas de forma complementar, objetivando dar vida a musicalidade surda dos
alunos. Relevante atentarmos para a preocupação com a musicalidade, de garantir o ritmo,
mesmo considerando o comprometimento auditivo dos alunos.
23
Idem. P.p 4 - 5.
110
Essa informação é relevante a medida que aponta para o processo de elaboração das
estratégias pedagógicas adotadas. A convivência com os alunos, com o espaço, com os
profissionais especializados no atendimento a essa demanda específica, certamente contribuiu
para o aperfeiçoamento da capoeira enquanto intervenção sócio-cultural junto a esse público
e, portanto, para a produção do conhecimento e experiência da Corrente Libertadora. Em
contrapartida, abriu para os alunos não ouvinte um referencial cultural, o espaço da capoeira
como lugar de aprender, conviver e se divertir.
Essa afirmação está baseada na relação que os alunos não ouvintes estabeleceram com
a capoeira através da Associação Cultural Corrente Libertadora, em outros espaços durante o
período em que não havia financiamento para o projeto ser executado na EMEDA Anne
Sullivan, 1992-1995. Muitos alunos migraram para o Centro Educacional e Esportivo Joerg
Bruder e para as Casas da Cultura, espaços nos quais, o Mestre Tigrão e seus monitores
davam oficinas de capoeira, chamando assim, a atenção para a construção de vínculos afetivos
e de afinidade com a atividade cultural. 24
24
Idem. Ibedem. P.1. O período de 1993-1995 coincide com a minha formação em monitora junto a Corrente
Libertadora, convivi diretamente com os alunos não ouvintes nos espaços citados, nos quais já não havia a
estrutura física da EMEDA Anne Sullinan, os alunos participavam das atividades com os demais e a única coisa
que os diferenciava era a comunicação baseada nos gestos.
111
necessidade desse menino. Por que o menino faz o aú e o punho fica doendo? Aí será
que assim não é melhor? De lado, pra dentro? Então, eu fui escrevendo pela necessidade
dele e aí foi, eu fui, nós fomos criando um jeito de não forçar a coluna do menino, o
braço, o punho, pra ter uma forma melhor de fazer o aú e o aú chibata... Então, pra não
dá problema na coluna, você começa: você faz uma bolinha na frente, com o pé da
frente e pra trás, pra você vê qual a habilidade do menino, se é o pé esquerdo ou se é o
pé direito. Então têm toda essa coisa... aí cê faz a risca e vê se o menininho faz isso que
você fez, pá, pá, pá, volta com o esquerdo ou volta com o direito. Se ele voltar com o
direito, mais habilidade com o direito, você vai trabalhar com o direito, se têm mais
habilidade com o esquerdo, então você vai trabalhar com o esquerdo, pra ele não virar e
dá problema na coluna... você vai ajudar o menino... essas riscas que nós fazemos no
chão é pra trabalhar essa questão do equilíbrio, equilíbrio que nossa, nós temos muito
equilíbrio! (risos). Então a gente faz essa risca, essas riscas foi a necessidade dele que
eu fui criando em cima da necessidade dele.25
No caso específico de Mestre Tigrão fica patente o diálogo com o outro: o aluno ou o
educando. É essa relação íntima que estabelece entre o fazer da capoeira e o universo do
aluno, que possibilitou o desenvolvimento do trabalho sócio-cultural. Embora Mestre Tigrão
não detenha o conhecimento específico da Educação Física ou mesmo da Pedagogia, a sua
preocupação está voltada para garantia da integridade física de seu aluno e paralelamente, na
busca do aperfeiçoamento contínuo da capoeira. A qualidade do que se está praticando,
mesmo que a quantidade de movimentos desenvolvidos pelo aluno seja restrito.
25
Entrevista II : Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08.
26
No capítulo I, discorremos sobre o caráter auto-didata de Mestre Maurício na arte da capoeira e de Mestre
Eufraudísio na busca por sua formação cultural e política, agora estamos diante desse aspecto na formação de
educador e capoeirista de Mestre Tigrão. Na narrativa de Mestre Eufraudísio ele faz uma referência ao caráter
auto-didata recordando-se de seu pai: eu já venho de uma luta desde meu pai, dos meus tios. Meu pai, que é o pai
do Tigrão, que foi o pai do Maurício, que foi meu pai, ele tinha uma história muito parecida: ele era um
analfabeto que virou um delegado da cidade. Então assim, ele tinha.... a mais bonita caligrafia da família e
nunca sentou num banco de escola. Então nós herdamos um pouco isso, essa ousadia de desafiar os modelos e
começar a mostrar a capacidade, o convívio, o acreditar. In: Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre
Eufraudísio, 09.10.09.
112
Através da pesquisa de campo, realizada entre fevereiro e setembro de
2010,27podemos identificar o que de forma geral foi tecnicamente definido por Mestre Tigrão
como recurso pedagógico para a aprendizagem da capoeira.
Fico gingando na frente dele, pego na mão dele e aí a gente vai tentando bem
divagarinho até ele conseguir. E a ginga de lado ela é melhor por que ela é mais fácil de
pegar o ritmo, não é tão complicado por causa dos pés, porque quando a pessoa tem
muita dificuldade de ritmo é difícil acompanhar o pé com a mão na ginga de frente e na
ginga de lado o corpo mesmo ele já vira quase praticamente sozinho, se você vira a
ponta do pé o corpo todo automaticamente já vira, então é mais fácil por causa disso...
fica mais fácil da pessoa acompanhar também e se a pessoa tem alguma limitação. A
gente sempre tentar jogar no ritmo da pessoa e aí sempre acompanhar o ritmo porque
esse método é mais pra acompanhar o ritmo, a capoeira desse jeito é pra acompanhar o
ritmo da música, se a pessoa consegue acompanhar o ritmo da música, ela vai conseguir
te acompanhar, porque tá todo mundo acompanhando o ritmo da música.28
27
O trabalho de campo foi realizado no Clube da Cidade de Santo Amaro, antigo Centro Educacional Joerg
Bruder, às quartas e sextas-feiras, no período da manhã. Eventualmente participávamos da oficina aos sábados.
Esse procedimento se fez necessário devido a diversidade do público. Nas quartas-feiras há uma participação
significativa de idosos e portadores de necessidades especiais – principalmente distúrbios mentais, entretanto,
no final de semana, há uma presença mais jovem, alunos que estão na Associação há algum tempo, estudantes e
trabalhadores que interagem com os novos alunos.
28
Entrevista IV: Rosana Gonçales, 28.01.09. Quando nossa narradora se refere a ginga de frente, trata-se da
ginga comum a todos os grupos de capoeira, a ginga ilustrada nas imagens 1a e 1b (ver, p.102), em que a posição
do corpo assume uma postura de alerta e ataque, a ginga de lado, refere-se à ginga utilizada pela Corrente
Libertadora após as alterações introduzidas por Mestre Tigrão, em que a posição do corpo assume uma postura
defensiva e rítmica ilustrada nas imagens 2a e 2b (ver p.104).
113
atividade como tocar um instrumento, aprender uma acrobacia, ver outros alunos jogarem –
são pequenas estratégias para que o aluno se sinta acolhido e tenha prazer em aprender.29
Estratégias que dependem da habilidade do educador e, principalmente, dos pressupostos que
embasam sua prática.
Então, a gente aprende primeiro assim é a ginga, lógico, mas é o ritmo também, por isso
que é um pouquinho diferente, se você não entrar no ritmo não tem condições de ir pra
roda. Primeiro de tudo a gente aprende o ritmo, pra depois a gente aprender os golpes,
pra depois a gente aprender aquela mandinga toda da roda. É... a gente chega, tá todo
mundo lá, chegou todo mundo, um levanta pra gingar, aí já vai o outro atrás e de
repente, tá todo mundo gingando, uma coisa só e fazendo os golpes básicos que são
iguais pra todo mundo e fazendo todo mundo junto. Não precisa de chegar e falar: ah,
agora é a hora de fazer a ginga! Não precisa, a gente mesmo acaba um olhando o outro e
fazendo todo mundo junto.30
Embora estejamos nesse momento, tentando dar conta dos aspectos técnicos da
proposta, a força de seus princípios vem à tona, porque são eles que movem a ação dos
sujeitos envolvidos. A narrativa da Rosana Gonçales, nos dá indícios desses princípios.
Embora haja uma sistematização técnica dos recursos pedágogicos, eles não se dão de forma
sistematizada e disciplinalizadoras na prática.
29
Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.09.
30
Entrevista IV: Rosana Gonçales, 28.01.09.
114
do jogador. É a criatividade e improviso pessoal em diálogo com o outro, próprio da capoeira,
que dá o caráter sempre inédito de cada jogo vivido na roda de capoeira.
Os movimentos acrobáticos também podem ser aprendidos com auxílio das linhas
assinaladas no chão elaboradas por Ms. Tigrão. Em um caminho passo a passo, o aluno
aprende a lidar com possíveis dificuldades e desenvolve a capacidade de realizar o
movimento.
3a 3b
31
Fotografias: Regiane Luzia Lopes. Clube Escola Santo Amaro, 11.02.2011.
32
O aú chitbata é uma variante do aú (ou estrelinha) executado com apenas uma mão.
115
3c 3d
Na sequência das imagens a seguir,33 Lucas M. Rochel Alves, 27 anos realiza sobre as
linhas circulares o movimento chamado Pirulito. Na imagem 4a, os círculos na numeração de
1 a 4, indicam o processo passo a passo de onde as mãos e pés irão se posicionar
gradualmente e de forma crescente até o aluno conseguir completar o giro como o faz Lucas
Rochel.
4a 4b
4c 4d
33
Fotografias: Regiane Luzia Lopes. Clube Escola Santo Amaro, 11.02.2011.
116
Utilizando os mesmos círculos agregando setas para o posicionamento dos pés de das
mãos (imagem 5a), o aluno Renan S. da Silva Barbosa, 21 anos, realiza o macaquinho como
podemos acompanhar nas imagens abaixo (5b,c e d).34
5a 5b
5c 5d
34
Idem.
117
Essa estratégia pedagógia está impregnada de princípios ou ideias que rompem com o
modelo de academia de capoeira. A aprendizagem não está centrada prioritariamente na figura
do mestre, mas é compartilhada entre os demais alunos, onde cada um é capaz de ensinar o
que aprendeu. Como esse aspecto é patente na vivência de capoeira na Associação Cultural
Corrente Libertadora, os alunos tendem a expressá-lo, a partir do olhar pessoal e da prática
cotidiana seus significados.
É uma troca de informações, uma grande troca! Acontece até hoje na Corrente
Libertadora. Até hoje o Tigrão senta com a gente e ele ensina e ele aprende, até hoje...
ele acha que um pode ensinar o outro. O aluno ensinar o professor. O professor ensinar
o aluno. Eu acho isso fantástico! Eu acho fantástico. Eu acho que isso pra mim é a
essência da humanidade em todos os seus aspectos... Eu vejo que é muito bom você,
você não ter a certeza mesmo de que você agora sabe tudo. Quando você internaliza
isso, você não diz de boca pra fora. Quando você sente isso, é, eu acho isso muito bom,
muito bom mesmo! Isso faz você aprender, querer aprender, buscar aprender, gostar de
aprender, constantemente. Não é todo dia, mas em muitos momentos do seu
dia...Porque quando você é o mestre né!? Nas palavras do Tigrão, eu compreendo o que
ele quer dizer nessa frase, que é uma bandeira que ele carrega: quando você é o mestre,
você deixa de aprender! Eu acredito e eu vim aprendendo na vida, que quando você
deixa de aprender, que você prova que nada aprendeu, mas isso não é só uma
reprodução de palavras, porque eu li ou ouvi, é uma coisa que eu percebo e uma coisa
que eu sinto.35
O ponto a que queremos chegar e que nosso narrador, Emerson Coutinho, hoje 33
anos, estudante de Educação Física, formado pela Associação Cultural Corrente Libertadora
e instrutor de esportes de escalagem, nos ajuda a perceber, são os princípios, as ideias, as
posições pedagógicas que permeiam o fazer cultural da Associação e que no período em que
agora nos detemos, está sobre a coordenação de Mestre Tigrão.
A sistematização técnica trata-se apenas da parte externa desse fazer cultural e está
passível de alteração sempre que a necessidade ou a demanda social e cultural dos alunos
exigirem, por isso a palavra método torna-se incompleta, incapaz de dar conta dessa prática,
porque ela não é fechada, acabada. Não se trata de uma receita ou uma cartilha, mas antes, de
uma postura diante do fazer cultural, aberta e em diálogo constante entre as qualidades da
capoeira e as intervenções dos sujeitos que dela se apropriam.
35
Entrevista III: Emerson Coutinho da Silva, 26.01.09.
118
discutidos e ilustrados é que está situado a especificidade dessa experiência e o
posisionamente político da Associação na proposta de inclusão social.
As próprias aulas, assumidas como oficinas de capoeira a partir de então, dão conta da
preocupação em estabelecer uma relação de proximidade com os alunos através de uma
atividade cultural que pode ser passageira para os atendidos, mas que têm por objetivo
construir um diálogo, baseado em vínculo afetivo que possa contribuir na elaboração de
projetos de vida, nos quais a garantia de direitos e a cidadania sejam o alicerce.
Consideramos que a figura do mestre, bem como a disciplina através da capoeira, pode
ser um caminho pedagógico, mas não foi esse o caminho escolhido pela Associação Cultural
Corrente Libertadora. Compartilhar a construção do conhecimento parece ser mais adequado
para essa experiência. O mestre não perde a respeitabilidade e a capacidade de ensinar por ser
passível de errar e de aprender com o aluno, no entanto, a relação de respeito não se dá a
priori, pautado na graduação de mestre, mas na relação equânime entre aprendizes no
cotidiano da capoeira.
Nesse sentido, podemos entrever que a proposta de ensino desenvolvida por Mestre
Tigrão, além de trazer elementos da experiência com os irmãos Modesto no período anterior,
reafirma-se como um processo flexível, uma concepção pedagógica aberta e em permanente
construção, porque se baseia no diálogo com o outro, que nunca é o mesmo, é sempre
diferente. Assim, o mestre é um mediador em potencial, a sua formação é, portanto, contínua
e a cidadania é o seu horizonte.
119
Então, não se deve fumar. O cigarro faz mal e você acabou de fumar. Você tá falando
com cheiro de cigarro. Eu tô pegando só um dos exemplos... Eu não posso falar para
não roubar, roubando. Eu não posso falar que a gente não pode bater nas pessoas na rua,
sendo que passou um cara, trombou no meu ombro, eu tentei desviar, mas trombou e eu
vou e acerto o cara. Então, primeiro é um processo... uma mudança interna e... depois
disso, você continua essa mudança interna e você passa a transmitir. É uma coisa que
flui, você parece que já não pensa mais o que tem que falar e você mostra com as suas
ações. Foi uma coisa muito grande que o Tigrão apresentou pra gente. Ele fala que não é
pra brigar, mas você não ouve histórias que ele brigou. Ele fala da não agressividade, da
inserção na capoeira e ele não exclui aquele que não pode pagar, aquele que tem
pouca... menos capacidade de fazer. Ele não exclui. Ele mais demonstra com suas
atitudes do que fala. Ele fala também, mas mais ele demonstra... Então, é isso que é um
foco muito forte e sutil, sutil também, trabalhado dentro da Corrente Libertadora. 36
120
com o crescimento dos serviços públicos na periferia de São Paulo, no entanto, se depararam
com os problemas advindos do fato desse avanço não ter acompanhado o crescimento
demográfico e o inchaço das periferias nessas últimas décadas, o que incorre inevitavelmente
na precariedade e insuficiência desses serviços.
Nesse sentido, detalhar essa concepção pedagógica não se restringe a uma descrição,
mas antes, acompanhar o amadurecimento político da própria Associação, o seu contínuo
39
Os dados do mapa da situação da cidade de São Paulo coordenados por Sposati, abarca os anos 90, através dele
podemos ter um noção da condição de exclusão na região a que nós nos dedicamos. O trabalho ainda colabora do
ponto de vista conceitual, pois o Núcleo entende a exclusão social como multifacetada... supõe diversas formas:
cultural, econômica, social, política, que podem se completar e ainda, é um conceito interdependente
exclusão/inclusão social, caso contrário, se trata da medida reducionista e tautológica como os estudos da
pobreza que analisam os graus da pobreza sem referenciá-los ao que seria a não pobreza. Idem, p.p. 23-24.
121
refazer-se para cumprir seu compromisso sócio-cultural junto a esse seguimento da população
paulistana, considerando o movimento de se reavaliar e redimensionar constantemente suas
ações e estratégias.
Com exceção dos iniciantes, a dinâmica do treino é determinada pelo próprio aluno,
assim como o aprendizado dos instrumentos musicais e dos movimentos acrobáticos. Dessa
maneira, é comum no mesmo momento, alunos estarem jogando capoeira, outros treinando
golpes e acrobacias, tocando e cantando ou simplesmente conversando e/ou observando o
treino dos demais alunos.
Essa autonomia atribuída ao aluno e a flexibilidade dos treinos, nota-se como indício
de que essa proposta colabora para a integração das pessoas portadoras de necessidades
diversas. Um portador de necessidades especiais não será obrigado ou constrangido por não
poder executar uma sequência de movimentos; um dependente químico não será impedido de
participar da aula por não ter chegado no horário ou não possuir o condicionamento físico
necessário para tanto, um idoso terá a liberdade de experimentar apenas o que não lhe
prejudique do ponto de vista físico e assim por diante.
Não apresentar uma sistematização de aula com horário determinado para cada
atividade da capoeira – aquecimento, passagem dos golpes, roda, instrumentalização, história
ou maculelê – está associado a posssibilidade de ter condição de acolher o aluno que chega
para atividade em momentos diferentes dentro do previsto.40 Depois da aprendizagem da
ginga e dos golpes básicos, o aluno é dono do tempo e da decisão do que e com quem
aprender, por isso a relação com o grupo é imprescindível. A ideia de autonomia está na base
da proposta, colaborar para que o aluno seja capaz de discernir e fazer escolhas. 41
40
Atualmente no Clube Escola as aulas ocorrem das 08 às 11h e das 14 às 17h nas quartas e sextas; no final de
semana das 14 às 17h. Normalmente, em outros espaços, como escolas, associações, CJs os horários são em
turnos manhã e tarde e em espaços de atendimentos à pessoas em situação de rua como os Crecas, não há uma
rigidez de horário.
41
Compartilhamos a noção de autonomia desenvolvida por Gohn (2005) para quem a autonomia se obtém
quando se adquire a capacidade de ser um sujeito histórico, que sabe ler e re-interpretar o mundo; quando se
adquire a linguagem que possibilita ao sujeito participar de fato, compreender e se expressar por conta própria.
Os sujeitos autônomos veem e aceitam as diferenças e as singularidades das pessoas... acatam e assumem a
122
Esse procedimento na forma de acolher permite que o adolescente se sinta seguro,
acolhido para que o educador possa conhecê-lo, atendê-lo e dar encaminhamentos. A
sistematização das oficinas e a disciplinarização são portanto, contrárias à proposta da
Associação, tendo em vista o perfil diversificado do público atendido e os objetivos a serem
conquistados. Não se pretende formar atletas, mas cidadãos e para um objetivo tão ambicioso,
o primeiro passo é acolher, é incluir.
6a 6b
123
6c 6d
45
Na tradição da capoeira a roda é um momento especial, tem um sentido ritual. Nos grupos e associações de
capoeira angola, normalmente a roda ocorre apenas uma vez na semana, com a presença do mestre ou do
professor responsável, a bateria deve ser completa e todos vestidos adequadamente. Nas rodas de capoeira
regional, as regras são mais diversificadas, dependendo da orientação do grupo, mas é comum que no final do
treino, se dê início a uma roda.
124
Na prática, a determinação das funções ocorre informalmente, baseada na
cumplicidade entre os alunos e de uma relação respeitosa com o Mestre e para com o grupo.
Isso significa que no cotidiano dos treinos, à medida que o aluno vai aprendendo a tocar os
instrumentos, ele passa a contribuir na parte musical da Associação, tocando e cantando. O
aluno não será impedido de realizar essa atividade em função da graduação.
Estamos nos referindo aos alunos em geral, tanto o aluno que esta iniciando, portanto
aprendendo, como o aluno que já ensina – o monitor ou instrutor. A formação desses
125
adolescentes não se dá centrada apenas na prática da capoeira, esta é, o instrumento de
construção de vínculos afetivos e a porta de entrada para um projeto de vida que inclui a
construção de mecanismos de ação política e uma inserção mais completa do próprio aluno na
sociedade (formação educacional, profissional e cultural). É provavelmente devido a essa
percepção, que os critérios de graduação do Mestre Tigrão se diferencia do comumente aceito.
Por mais que tentemos com palavras definir os lugares sociais dos sujeitos nessa
experiência pedagógica, estaremos sempre incorrendo em uma simplificação, porque o que
nos dizem os narradores é que esse movimento aprender e ensinar é simultâneo, a troca é
constante e pode se dar de diversas maneiras, às vezes de forma sutil, mas propositiva.
Uma coisa que a gente se deparou muito e eu comecei a me deparar, que eu só ouvia até
então, o Tigrão relatar, mas eu fui entrando cada vez mais, foi a gente ser roubado por
nossos alunos. E isso é uma tristeza muito grande. Porque você acredita, você confia,
você se desdobra, você as vezes deixa de almoçar com toda a sua família pra ir dar aula
pra aquele aluno e de repente ele te rouba uma coisa que foi difícil você adquirir, um
celular, um dinheiro, uma identidade, um documento que vai te dar um trabalho muito
grande pra ter outro. E aí, eu ainda tô aprendendo com o Tigrão, eu ainda tô aprendendo
que você deve ter paciência com essas atitudes, com essas pessoas. Eu ainda tô
aprendendo isso. Percebo que eu não tenho a paciência e a visão que ele tem nesse
ponto de vista. Acabamos mais uma vez, pela centésima vez, passar por um fato recente
e ele diz: vamos ter paciência, não vamos lá e prender, vamos... a gente tá lutando pra
que ele não continue a fazer, por que a gente vai fazer um processo que ele faça
novamente?! Então, são coisas que eu estou buscando e é isso. 46
46
Entrevista III: Emerson Coutinho da Silva, 26.01.09.
126
posição da Associação Cultural Corrente Libertadora vai na contra-mão da repressão
deliberada e na direção da garantia de direitos. Não estamos, no entanto, negando a condição
do menor infrator e de suas responsabilidades perante a justiça, mas pensando nos
encaminhamentos dados a esse conflito na perspectiva da Associação.
47
Segundo o dicionário jurídico com base no Artigo 228, da Constituição Federal: Artigos 26 a 28, do Código
Penal; Artigo 397, inciso II, do Código de Processo Penal; Artigo 492, inciso II, alínea "c", do Código de
Processo Penal, a Inimputabilidade penal é a incapacidade que tem o agente em responder por sua conduta
delituosa, ou seja, o sujeito não é capaz de entender que o fato é ilícito e de agir conforme esse entendimento.
Sendo assim, a inimputabilidade é causa de exclusão da culpabilidade, isto é, mesmo sendo o fato típico e
antijurídico, não é culpável, eis que não há elemento que comprove a capacidade psíquica do agente para
compreender a reprovabilidade de sua conduta, não ocorrendo, portanto, a imposição de pena ao infrator.
GUIMARÃES, Dioclesiano. Dicionário Compacto Jurídico. São Paulo: Rideel, 2010. Dicionário Juridico,
in:www.direitonet.com.br.
48
Para uma discussão sobre medidas sócio-educativas, Ver: PEREIRA, Irandir; MESTRINER, Maria Luiza.
Liberdade Assistida e Prestação de Serviço a Comunidade: Medidas de Inclusão Social Voltadas a Adolescentes
Autores de Ato Infracional. São Paulo: IEE/PUC-SP; Febem-SP, 1999.
49
Idem.P. 12.
50
A categoria menor também foi apropriada pelos meios de comunicação e por grande parte da opinião pública
para genericamente e de forma estereotipada designar um grupo social heterogêneo e complexo de crianças e
adolescentes expostos à vulnerabilidade social. Sobre a imagem do menor, ver: ANDRADE. Marcelo Pereira. A
Categoria Meninos de Rua na Mídia: Uma Interpretação Ideológica. São Paulo: S.N, 2005.
127
Não nos cabe aqui fazer uma discussão sobre o ECA e suas regulamentações, pois não
é o propósito deste trabalho, mas entendermos como essa legislação se encontra com a
experiência político-cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora. Retomando a
narrativa de Emerson Coutinho e as estratégias de inclusão desenvolvidas por Mestre Tigrão
na prática da capoeira, podemos então perceber que há um diálogo entre essas duas dimensões
da problemática da infância e da adolescência: a lei e a prática.
51
Documento XVI – Projeto de Liberdade Assistida, 2002-2003. Parceria: Fundação do Bem Estar do Menor –
Febem/SP. A execução desse projeto exigiu a formação de um corpo profissional que contou com a participação
de colaboradores e parceiros da Corrente Libertadora nas lutas político-sociais da região como Marcos Veltri
(Centro de Referência em DST/Aids de - CR Santo Amaro), Irene Gerassi (Centro de Convivência e Cooperativa
de Santo Amaro – CECCO/SA) e Laura Mª Carvalho (Unidade Farcamacodependência de Santo Amaro). Sobre
as implicações do estabelecimento de parcerias e da atuação dos colaboradores junto a Associação, discutiremos
no capítulo III – Da Roda de Capoeira à Roda de Negociações.
52
Documento XI – Projeto Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, CEDECA/SA, 2001. O
Projeto elaborado coletivamente pelos membros do Fórum de Defesa da Criança e do Adolescente de Santo
Amaro, foi o órgão responsável por indicar a Associação Cultural Corrente Libertadora para mantenedora do
serviço, o que ocorreu em novembro de 2003 quando se firmou convênio com a Secretaria Municipal de
Assistência Social para implementação do serviço na Rua Cerqueira César, 185, Santo Amaro.
128
do Adolescente Estação Cidadania,53na recepção, acolhida, diagnóstico e encaminhamentos
24h, dessa demanda em situação de risco.
Mas o que nos diz a narrativa de Emerson Coutinho é que nem sempre a criança e
adolescente atendidos pela Associação Cultural Corrente Libertadora nas oficinas de
capoeira e que comete delitos, é necessariamente o legalmente jovem infrator. Pode ser, mas
nessa condição, os encaminhamentos estão atrelados ao atendimento especializado,
estruturado nos serviços acima citados ou a outros serviços da rede de atendimentos da região.
O fato da Associação ter podido pleitear a gestão desses serviços e, de certa forma,
essa situação configurar-se em uma profissionalização da mesma, nos interessa é o trabalho
que está por trás desse reconhecimento por parte do Poder Público para com a Associação. Os
bastidores, o trabalho que construiu o alicerce para esses serviços especializados, vem da
prática de capoeira desenvolvida diariamente em diversos espaços da cidade pelos mestres e
alunos da Associação Cultural Corrente Libertadora em um movimento quase anônimo. 54
É engraçado. Porque assim, a Corrente o pessoal fala assim: é a capoeira! Mas é uma
grande mentira. A capoeira nada mais é, no meu entendimento é claro, não no dele... a
capoeira nada mais é, do que trazer o pessoal pra próximo da Corrente, pra perto do
mestre, próximo dessa linha de pensamento. Então, hoje eu vejo a capoeira, nada mais
que como o chamativo para as pessoas conhecerem uma cultura diferente e daí ser
ajudado. Porque de novo eu falo, a minha situação de buscar a capoeira, era pra ganhar
o lanche na época... e hoje ainda, a capoeira serve pra isso. Eu tava na reciclagem
domingo, eu volto a citar, tinha os meninos lá fora, esperando o horário do lanche, eles
pediram: da um suquinho pra mim, um lanchinho? E todo mundo deu. Não, ninguém
falou não pode porque você não fez. Todo mundo deu e muitos meninos estão lá, por
53
Documento: Plano de Trabalho da Associação Cultural Corrente Libertadora (2003-2004,s/d.
54
O trabalho junto a criança e adolescente em situação de risco e de moradores de rua se intensificou a partir de
1996 em parcerias com a Caritas Arquiodiocesana realizadas no Centro de Convivência da Criança e
Adolescente no bairro da Liberdade e Sé e com o Centro Comunitário da Igreja do Largo São Francisco; em
parceria com PROCAD – Escola Paulista de Medicina, através do Projeto Quixote a partir de 1998; no
atendimento contínuo a demanda de Santo Amaro, crianças, adolescentes e adultos em situação de risco e em
situação de rua que circulam diariamente na região do Largo 13, desde o início dos anos 90. Com a implantação
do Projeto Casa da Praça, Posto Sul e Acolhimento Cidadão, a Associação pode ampliar o atendimento em Santo
Amaro trabalhando em parceria com esses serviços.
129
quê? Ou tá lá ou tá na rua, ou tá lá ou tá na boca, ou tá lá ou tá traficando, fazendo coisa
errada e a capoeira bem, te ensina uma cultura diferente, te dá esse lance de você ter um
mestre, ter alguém que você respeite, te dá educação, respeito ao próximo. Então a
capoeira é tudo isso. A capoeira não é só o jogo da capoeira, jogar capoeira é muito
fácil, muito fácil, em qualquer esquina você pode aprender capoeira, agora você
acreditar que além da capoeira você pode se tornar um cidadão consciente, no Brasil
que nós vivemos, é difícil e a Corrente Libertadora com seu histórico te dá isso.55
55
Entrevista VIII: Michel Vanderlei Coutinho da Silva, 08.06.10.
56
A reciclagem foi o nome dado à um encontro mensal, no qual alunos, Mestre Tigrão e colaboradores se
encontram para conversar e treinar. Nesses encontros, os monitores que estão desenvolvendo trabalhos trazem
suas inquietações que são discutidas e deliberadas em grupo, também são revistas questões técnicas do ensino e
jogo da capoeira. Quando necessário, colaboradores oferecem oficinas temáticas que possam enriquecer a prática
desses monitores. Embora a reciclagem seja uma proposta de formação continuada para
monitores/multiplicadores, é aberta para participação de qualquer aluno interessado.
130
crianças e adolescentes (Fóruns, Encontros de Adolescentes, Conferências, Manifestações
Públicas).57
E ainda
Podemos ponderar que nesse caso, na ideia de cidadania objetivada por Mestre Tigrão
e assumida nas metas da Associação Cultural Corrente Libertadora, está pautada também no
compromisso de repassar o que se aprendeu e ao fazê-lo, o aluno se constitui em um potencial
educador. A circularidade do saber atrelado à preocupação sócio-cultural.
57
A formação em sexualidade humana se deu através da parceria com o Grupo de Trabalho e Pesquisa em
Orientação Sexual – GTPOS, através do Projeto Trance Essa Rede, iniciado em 1996 e com o Centro de
Referência em DST/AIDS de Santo Amaro a partir de 1997. Com a linguagem artística se deu por várias mãos:
voluntários e posteriormente com o Grupo Teatral AI Ui Fui. A participação política se intensificou a partir de
1997 em eventos com o Dia Mundial de Luta Contra Aids, Encontro Paulista de Adolescentes –EPA, Encontro
Nacional de Adolescentes – ENA, Movimento Nacional de Adolescentes – MAB, Conferência Lúdica Municipal
de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes, Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente
de Santo Amaro – FDDCA, entre outros.
58
Documento: Atividades Realizadas ( 2000, 2001), s/d.
59
Documento: Associação Cultural Corrente Libertadora: Princípios, s/d.
131
Esse saber adquirido parte da capoeira, no entanto não se restringe a ela. Por isso, o
multiplicador, muitas vezes, migra para outras profissões, algumas com características afins.
Embora a preocupação da Corrente Libertadora esteja voltada prioritariamente a um
segmento social, esse saber construído na prática e para a prática é capaz de extrapolar os
cerceamentos econômicos, pois usa a linguagem da cultura e se dá no encontro, no ato de
compartilhar.
Emerson Coutinho traz uma reflexão desses três aspectos: a cultura, o social e a
circularidade do saber.
60
Entrevista III: Emerson Coutinho da Silva, 26.01.09.
132
suas habilidades e seu potencial em protagonizar ações individuais e coletivas de
transformação social.
133
tradicionais tendem a restringir a participação das pessoas que a Corrente Libertadora se
propõe a atender, mais que incluir, por exigir do aluno predisposição a prática e habilidades a
priori, visto que requer um leque de posturas adequadas para sua vivência: respeito,
disciplina, atenção, dedicação, etc.
134
Capítulo III
135
A trajetória político-cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora está
intrinsecamente relacionada com a sua prática de capoeira, com as demandas sociais
advindas das experiências com seus alunos e dos parceiros, que de modos diversos
contribuíram para continuidade, aperfeiçoamento e ampliação de suas ações.
136
sede da Associação: espaço da prática da capoeira, de articulação política e formação
cultural. Nesse espaço ocorriam as aulas de capoeira e atividades culturais que ampliavam
a formação dos alunos e dos fundadores como o caso do samba de roda, puxada de rede,
maculelê, teatro e números musicais.
por que nós saímos? Por uma questão financeira. Chegou um momento que as pessoas
não podiam pagar as suas mensalidades para sustentar o aluguel, o aluguel passou a
ficar muito caro e o grupo era grande... era grande e era uma coisa aberta à
comunidade. Pra você ter uma ideia, algumas atividades do Movimento social, do
Movimento Popular acontecia dentro da Corrente, era uma outra parceria que
acontecia...1
1
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
2
A complexidade desse tema, bem como o processo de reestruturação da associação foram pormenorizados no
capítulo I – Da Sombra da Barriguda aos Movimentos Populares.
137
rearticulação de sua prática político-cultural que as parcerias com a Sociedade Civil e com o
Poder Público se intensificaram.
Entretanto, esse não foi o caminho escolhido pela Associação Cultural Corrente
Libertadora. Sem sede própria e recursos financeiros para continuidade de seu trabalho,
contou com sua capacidade de se rearticular através do diálogo e da valorização do seu
fazer capoeira buscando no primeiro momento o auxílio dos amigos e parceiros de sua
trajetória política para reestruturar suas metas e ações políticas no campo da cultura. E no
segundo momento, construindo uma rede de parcerias com vários setores da sociedade.
Essa escolha está de certa forma pautada na negação do modelo de academia, isto
é, de manter uma academia particular, em espaço permanente estruturada através de
mensalidades para as aulas de capoeira ou se sujeitar à instabilidade profissional e
financeira de trabalhar em academias de outros, com múltiplas atividades físicas, nas
quais a capoeira é apenas mais uma categoria.
Assim, a capoeira foi o elo do diálogo entre esses parceiros e foi a prática que
justificou a continuidade de intervenção da Associação junto à grupos específicos da
sociedade paulistana. O processo pedagógico para o ensino da capoeira proposta pela
Corrente Libertadora e sua trajetória político-cultural tornou-se o diferencial e o
elemento central para a construção das parcerias.
138
A prática cultural da capoeira proposta pela Associação Cultural Corrente
Libertadora nos coloca diante das tensões e desafios de expressões de culturas populares
conviverem e disputarem espaços de interesses entre crianças, jovens e adultos com os
produtos do mercado cultural largamente divulgado pelos meios de comunicação de
massa.
Como nos sugere Stuart Hall, 3 não se trata de idealizar, cristalizar ou defender a cultura
popular como uma lendária cultura, íntegra, autêntica e autônoma, mas de entendermos que
há uma concentração de poder referente ao campo da cultura, na qual, a cultura dominante
lança mão dos meios institucionais – principalmente a educação formal – e da indústria
cultural para desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular.
Tendo em vista a pluralidade das manifestações populares, o que nos interessa aqui, são
as relações de poder que se estabelecem e se desconfiguram no campo da cultura. O status
social e a visibilidade dessas práticas, através desse encontro conflituoso, indicam que o lugar
que se ocupa é determinante na definição dos papéis sociais dos sujeitos envolvidos.
A capoeira praticada pela Corrente Libertadora se faz popular não apenas por
considerarmos que o popular se compõe das manifestações, práticas, fazeres de um setor
específico da sociedade, sobretudo os trabalhadores rurais ou urbanos de recursos financeiros
limitados. Até porque, tomar essa perspectiva, seria ignorar a riqueza inerente da pluralidade
cultural e da autonomia dos sujeitos que a desenvolvem e se alinhar a uma conceituação da
cultura fundada na polarização entre cultura erudita e cultura popular. Definição essa, que
delegou à cultura popular o papel de subordinado e caracterizou o conhecimento elaborado
nesse campo como primitivo, repetitivo e de limitados recursos técnico-teóricos.4
o essencial em uma definição de cultura popular são as relações que colocam a cultura
popular em uma tensão contínua (de relacionamentos, influência e antagonismos) com a
cultura dominante... Considerar o domínio das formas e atividades culturais como um
3
HALL, Stuart. Da Diáspora Africana: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:UFMG, 2003.
4
A dicotomia entre as chamadas cultura erudita e cultura popular vem de um longo processo político, econômico
e cultural, no qual o eurocentrismo e os intelectuais tiveram papel relevante. Entretanto, essa discussão vem
sendo intensificada e desconstruída através de intelectuais de vários campos do saber, principalmente das
ciências humanas. Entretanto, para nossa iniciação nessa discussão e considerando a contribuição africana na
nossa pesquisa, as principais referências foram: WILLIAMS (1980), CERTEAU (1980), CHARTIER (1990),
MIGNOLO (2001), BHABHA (2001), GILROY (2001), HALL (2003), SARLO (2005) e CANCLINI (2006).
139
campo sempre variável... atenta para as relações que continuamente estruturam esse
5
campo em formações dominantes e subordinados.
É nessa perspectiva de cultura que lançaremos nosso olhar para essa dimensão de
experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora, no seu fazer capoeira e na
capacidade estratégica de estabelecer parcerias como meio de viabilizar a ampliação de seus
trabalhos.
Compreendemos que durante os anos 70 e 80, a capoeira foi para Associação uma
prática cultural que colaborou na mobilização de grupos sociais, mas que só podia fazer-se
política pelo profundo caráter de resistência que a atrelava a outras manifestações de
culturas populares que se produzem e reproduzem continuamente, construindo memórias,
identidades e significados aos sujeitos que as ritualizam cotidianamente.
5
HALL, Stuart. Op. Cit., p.241.
6
GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e Educação. São Paulo: Cortez Editora, 2009
140
direto com as diversas demandas e vertentes de lutas sociais, permitiram à Associação,
nesse contexto, delimitar a partir dessa vivência, suas prioridades e campo de atuação.
7
A terminologia Terceiro Setor, segundo Duriguetto e Debórtoli ganhou evidência nos anos 90 com o processo
de descentralização administrativa do Estado, refere-se a organizações públicas não-estatais e organizações
privadas que celebram com o Estado, contratos de gestão, parcerias. O emprego da negativa não-estatal é para
defini-la como uma terceira forma de propriedade ao lado da propriedade privada e da estatal. O termo é
utilizado para destacar a construção de uma dimensão „pública‟ que não seja exclusivamente do Estado e
também para romper com o entendimento da identificação da esfera privada como esfera marcadamente
mercantil. É com essas organizações que surge, como figura legal, o chamado terceiro setor. Ver:
DURIGUETO, Maria Lúcia; SILVA, Isis; DEBÓRTOLI, Débora. Descentralização Administrativa, Políticas
Públicas e Participação Popular. In: Serviço Social e Sociedade nº 96. São Paulo: Editora Cortez, 2008, p.8.
8
Estamos denoiminando Sociedade Civil Organizada, grupos, associações, fundações, agremiações, entidades
sem fins lucrativos e grupos da mesma natureza, que se constituíram fora da tutela ou de vínculos institucionais
com as instâncias do Estado (civis ou militares), portanto, Entidades que, embora dialoguem e firme parcerias
com o Estado, têm sua autonomia política garantida.
9
GOHN, Maria da Glória. Op. Cit.
10
O ECA - lei 8. 069 de 13 de julho de 1990 - estava alinhado as propostas adotadas pela Assembléia Geral das
Nações Unidas de 20 de novembro de 1989, sobretudo, no que tange a proteção integral a criança e adolescente e
a desconstrução do estigma do menor. Esse paradigma prevê a formulação de políticas públicas e de destinação
privilegiada de recursos para implementação destas, como é o caso dos Centros de Defesa da Criança e do
Adolescente – CEDECAs e dos Conselhos Tutelares. Também prevê a articulação entre ações governamentais e
não-governamentais, o que abria a oportunidade de participação direta da Sociedade Civil para intervir na
elaboração de políticas públicas e na execução de projetos e serviços. Nesse sentido, a LOAS – Lei nº 8.742 de
07 de dezembro de 1993 - reforçava esse caráter participativo através do Art 5º, Seção II, inciso II – Participação
da população por meio de organizações representativas na formulação de políticas e no controle das ações em
todos os níveis.
141
Em Santo Amaro e bairros adjacentes, lócus prioritário da atuação da Corrente
Libertadora, muitas entidades e ONGs encontraram no estabelecimento de parcerias entre
si e em pequenos financiamentos privados, a brecha para o desenvolvimento de seus
trabalhos sociais. Nesse sentido, a Associação Cultural Corrente Libertadora iniciou um
processo orgânico de estabelecer parcerias através de propostas de trabalho que
pressupunham a construção de uma reflexão sobre si e sobre o seu fazer cultural através da
prática da capoeira.
142
aos vínculos constituídos nas lutas sociais ao longo dos anos 70 e 80, em que a Corrente
Libertadora esteve ligada aos setores progressivos da Igreja Católica.
A capoeira enquanto esporte é vista como uma porta de entrada para as crianças e de
adolescentes em situação de risco pessoal e social, isso porque, a capoeira, nesse viés, se
põe como luta, como mecanismo de defesa e ataque, essenciais para a sobrevivência nas
ruas. No entanto, a proposta de capoeira da Associação Cultural Corrente Libertadora
segue os trilhos do que os gestores chamaram de formação sócio-cultural.
11
Documento: Projeto Iniciação à Capoeira, 1996. Parceria: Centro Comunitário da Criança e do
Adolescente/Liberdade – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo/Região Episcopal Sé. P.1 - 2.
143
propiciando uma maneira de trabalhar harmoniosamente com a agressividade contida
nessas crianças e adolescentes.12
Quando solicitada pelos Movimentos para participar dos atos, nos quais, as
reivindicações populares eram apresentadas, a Corrente Libertadora assumia a
responsabilidade de chamar a atenção da população transeunte e de mobilizar esse público,
no sentido de escutar e tornar-se ciente das questões políticas que estavam sendo postas.
12
Idem, p.5.
144
A beleza, destreza e agilidade do jogo dos alunos continuaram perfazendo parte do
um conjunto de intervenções pedagógicas, mas a intervenção política concentrou-se no
processo de aprendizagem. Foi através dele, que a Associação Cultural Corrente
Libertadora intensificou sua ação a partir da década de 90.
Acreditamos que a figura do monitor, que no final da década de 1990 passou a ser
chamado de multiplicador, fez parte desse processo de rearticulação política e de
redirecionamento de metas e de objetivos da Associação.
Esse olhar sobre o que se experiencia, associado diretamente à realidade social está
posto nos projetos. Pressupõe uma observação dessa realidade, pela qual se identifica os
problemas vivenciados pelas crianças e adolescentes daquela comunidade e propõe, através
do saber e da habilidade específica da Associação, o meio de enfrentá-los utilizando a
capoeira.
13
O adolescente multiplicador /monitor refere-se ao aluno de capoeira que passa por uma formação contínua em
diálogo com outras linguagens do saber (sexualidade, teatro, direitos, etc) e participa das atividades
desenvolvidas pela Associação, com a responsabilidade de repassar o conhecimento por ele adquirido. Ver:
capítulo II – Meu aluno é Meu Mestre.
14
Documento IV : Projeto Iniciação à Capoeira, 1998. Parceria: Associação Civil Sociedade Alternativa Morro
Verde. p.1.
145
Então, caracteriza o bairro justificando o desenvolvimento do esporte:
15
Idem, p.1.
16
Não nos cabe aqui realizar uma discussão aprofundada sobre o Terceiro Setor, entretanto, é importante ressaltar
que sua emergência nos anos 90 está relacionado diretamente a proposta de descentralização (federal, estadual e
municipal), a partir da qual, o Terceiro Setor em parceria com poder público passou a administrar serviços
vinculados à políticas públicas de atendimento. Esse processo baseado em convênios com o poder público, tende a
tornar instável a gerência dos serviços (que podem ser alteradas pela decisão do Estado) e a situação financeira da
Entidade, que comumente depende dos convênios para sua atuação. Ver: DURIGUETO, Maria Lúcia; SILVA,
Isis; DEBÓRTOLI, Débora. Op. cit.
146
Este projeto pretende, através do esporte, que é uma porta de entrada atraente para os
jovens, auxiliá-los a gerir sua energia para atividades sadias, que colaborem para a sua
formação geral e participação construtiva em nossa comunidade, prevenindo a
violência urbana.17
Então, esse foi o processo desde que eu entrei... o Tigrão pegou um aluno, com uma
média de sete à oito meses de Corrente e me ensinou os golpes básicos. A maior parte...
e golpes foi o Tigrão que me ensinou e alguns golpes o Tigrão aprendeu junto com a
gente, quando alguém conseguia fazer um que ele não fazia ou a maioria não fazia ou
ninguém fazia, era o momento em que todo mundo era aluno daquele aluno. Naquele
momento, aquele aluno era o professor. Isso revertia. Porque tinha um outro momento
breve, logo em seguida ou depois de um mês ou um ano, que o aluno que tava
ensinando, era o aluno de um aluno dele. Então esse aluno dele pegou um golpe, um
mortal na parede rolê com um pé só e ele passava a ensinar. Isso acontece até hoje. É
uma troca de informações, uma grande troca! Acontece até hoje na Corrente
Libertadora, até hoje o Tigrão senta com a gente e ele ensina e ele aprende, até hoje.
Então, é uma forma que o Tigrão acredita, é um método que ele acredita, que não tem
distinção de mestre e aluno; distinção no sentido de saber, né!? O mestre é... acredito,
percebo que algumas pessoas acreditam nisso, o mestre não é o que sabe tudo, né, pro
Tigrão. É uma pessoa que sempre tá aprendendo. Ele não gosta dessa palavra, dessa
posição ou hierarquia, se pode se dizer assim, chamada mestre. Pra ele mestre é outro
conceito, que seria melhor ele dizer sobre, mas ele acha que um pode ensinar o outro. O
aluno ensinar o professor. O professor ensinar o aluno18.
17
Documento IV: Projeto Iniciação à Capoeira, 1998. Parceria: Associação Civil Sociedade Alternativa Morro
Verde. P.2.
18
Entrevista III: Emerson Coutinho da Silva, 26.01.09.
147
A riqueza de detalhes da narrativa de Emerson, aluno da Corrente Libertadora há 21
anos, nos dá conta de como a construção do conhecimento é circular e compartilhado
seguindo uma postura de equidade, que produz significados diversos, pois o ensinar e o
aprender não ocorre em um processo unilateral: professor ensina o aluno.
o Tigrão, ele já faz capoeira levando a área social junto. Além dele tá ensinando, ele já
tá tirando a criança da rua, ele já que levar pra escola, resolver a situação dela, foi dali
que partiu assim a minha visão das coisas. A capoeira não é só o esporte, não é só pra
148
suar, pra brincar, além disso, a Corrente tem esse trabalho diferenciado, que é cativar ele
e levar ele a ter uma vida digna, como qualquer outra pessoa. 19
eu já tinha uns 10, 11 anos já pegando amor pelo esporte e esse envolvimento com o
Tigrão foi exatamente isso... E esse foi um envolvimento forte, foi com as apresentações
de capoeira, foi a forma do Tigrão ensinar. Ele nunca agrediu um aluno né!... Então, não
tinha uma coisa fora da roda de puxar a orelha ou dá tapa na cabeça ou algo semelhante.
Então, toda essa forma... fez eu me apaixonar... pela metodologia, pela forma dele ser e
me apegar totalmente... ele sentava com a gente nos domingos e explicava histórias
sobre a capoeira... Então pra participar da apresentação... você tinha que criar um golpe
e apresentar pra ele. Ele tinha que aprovar esse golpe pra você, depois de aprovado você
ir pra exibição, né! E foi fatores assim que fez eu me apegar... essa preocupação que ele
tinha com os alunos. Ao mesmo tempo que de início parecia uma pessoa rígida, por
outro lado, era uma pessoa que te colocava na moto, na perua e levava pra casa dele pra
almoçar e depois ir pra uma apresentação, emprestava a blusa dele pra você voltar pra
casa. Então, é dessa forma que eu fui me apegando... Eu tô na Corrente há 19 anos e 6
dias.20
19
Entrevista VII: Luciene Vidal Marinho, 18.04.10.
20
Entrevista III: Emerson Coutinho da Silva, 26.01.09.
149
Essa proposta de trabalho, assim como outras da mesma natureza, somente se fez
viável devido à existência real de uma demanda gerada nos bairros periféricos da cidade e
por outro lado, porque a experiência e o processo de construção do conhecimento cultural e
político da Corrente Libertadora desde sua fundação na década de 1970 estava arraigado à
sentidos referentes ao comunitário.
Assim, entendemos que esses aspectos, que podem ser considerados sutis, da prática
de capoeira proposta pela Associação nos projetos – papéis sociais, vínculos afetivos,
confiança, não-violência e respeito – podem ter uma efetiva contribuição para os
envolvidos do ponto de vista social, pois colaboram para valorização dos indivíduos e dos
espaços em que vivem; estimula uma cultura de paz, enfatiza a importância dos papéis
sociais pautados na complementariedade e não na autoridade pré-estabelecida e abre
possibilidades de formação profissioanal, cultural e política.
Então, naquela época a razão especial era o fato de, de não ser obrigado a pagar pra
fazer, né!? Então, a questão financeira. Onde eu poderia frequentar as aulas e eu não
era obrigado a pagar para continuar? E isso foi crucial na época.21
Esse compromisso certamente não é natural, nem assistencialista por excelência, mas
resultado da experiência da Corrente Libertadora em seu trabalho nos diversos bairros da
região de Santo Amaro, Capela do Socorro e Parelheiros. Como já pontuamos, a própria
relação entre a proposta de atuação político-cultural e a cobrança de mensalidades era
21
Idem.
150
sentida ideologicamente, pelos os fundadores como conflituosa, pois feria diretamente o
princípio de participação aberta à comunidade defendida pelos mesmos.
151
caminhos trilhados pela Associação no sentido de buscar colaboradores de áreas diferentes
do saber, para garantir uma qualidade técnica ao acompanhamento psicossocial destinadas
aos alunos e familiares.
22
Documento: A Capoeira E O Desenvolvimento Do Deficiente Auditivo, 1996. Parceria: EMEDA – Escola
Municipal de Educação para Deficientes Auditivos.
23
Documento: Projeto Iniciação à Capoeira, 1996. Parceria: Centro Comunitário da Criança e do
Adolescente/Liberdade – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo/Região Episcopal Sé.
24
Documento: Currículo Social, 1999.
25
Documento: Sugestão Para o Projeto C.C.C.A, 1996, p.1.
26
Entende-se por lutas diretas as que pressupõem contato físico constante, tais como judô, boxe. E indiretas,
quando o contato físico é ocasional tais como algumas vertentes do karatê e da capoeira.
152
político enquanto estratégia de negociação para manutenção e visibilidade da capoeira.27
Propõe sentidos múltiplos da capoeira para seus praticantes, pois a cultura reafirma sua
tradição – na manutenção de seus elementos e de sua trajetória de resistência, mas o
esporte, atualmente, possibilita a entrada da capoeira em outros campos de atuação,
alcançando as áreas do lazer, do esporte e da educação.
O que estamos propondo pensar sobre esses caminhos abertos através das parcerias
da Associação Cultural Corrente Libertadora com a sociedade civil organizada, não é um
desdobramento natural e inevitável de sua atuação, mas antes, a opção política de dar
visibilidade as demandas sociais com as quais se deparavam em sua prática cultural. Uma
opção de se reafirmar como sujeitos, protagonistas de transformações sociais e marcar a
cultura – a capoeira – como estratégia de resistência.
Podemos identificar que as parcerias com a sociedade civil não estavam relacionadas
apenas com a manutenção e ampliação do trabalho da Associação, mas também, com
afinidades políticas, sociais, culturais e pedagógicas.
27
Para compreender a atuação dos capoeiras no século XIX, ver: SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A
Negregada Instituição – Os Capoeiras na Corte Imperial (1850-1890). Rio de Janeiro: ACCESS, 1999; A
Capoeira Escrava e Outras Tradições Rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: UNICAMP, 2002. E
no século XX, ver: REIS, Letícia Vidor de Sousa. O Mundo de Pernas para o Ar – A Capoeira no Brasil. São
Paulo: Publisher Brasil, 2000.
28
A parceria com o GTPOS ocorreu inicialmente através de um curso oferecido por eles para formação de
educadores na área de sexualidade no inicio de 1997. Nesse período, estando trabalhando no Enturmando Circo
Escola Grajaú, com capoeira e atendendo especificamente adolescentes e majoritariamente meninos, busquei
uma formação em sexualidade para melhor tratar dessa questão com os alunos. A partir desse contato, passei a
trabalhar voluntariamente com Elisabeth Gonçalves no Trance Essa Rede e viabilizei o contato entre o Trance e
a Corrente Libertadora.
153
Em 1996, dois psicólogos integrantes do GTPOS Elisabeth Gonçalves e Ricardo de
Castro e Silva gestaram o Projeto Trance Essa Rede com o intuito de produzir uma
metodologia de trabalho que pudesse instrumentalizar educadores e adolescentes para lidar
com as questões inerentes à sexualidade no universo adolescente. Elisabeth Gonçalves nos
dá as diretrizes desse trabalho:
O Trance Essa Rede, projeto pelo qual o vínculo com a Associação Cultural
Corrente Libertadora se fortaleceu, resultou em uma parceria – até o momento – contínua
de troca de conhecimento, de elaboração conjunta de projetos, em supervisões técnicas e
no enfrentamento de dificuldades. Vemos na narrativa de Elisabeth Gonçalves a
sexualidade não apenas relacionada à prevenção, mas à constituição plena do adolescente
enquanto sujeito de direito: responsável por si, consciente do outro e participante ativo da
realidade social a qual pertence.
29
GONÇALVES, Elisabeth Maria vieira. Adolescência e Vulnerabilidade. Revista Interface – Comunicação,
Saúde e Educação, Botucatu, p.1, 2000.
30
Idem.
154
Em ambos os trabalhos, as entidades trazem consigo pressupostos como respeito à
história e limite do outro, e um sentido de sociabilização que exclui a hierarquização
tradicional dos papéis sociais comumente aceitos. A contribuição de todos é necessária
nessa perspectiva, e o saber técnico e especializado atua como mediador do conhecimento
que se quer compartilhado.
Essas parcerias expressam, de certa forma, o movimento pelo qual a sociedade civil
construiu circuitos alternativos de trabalhos, não obstante, totalmente integrados às
demandas sociais atuais, demonstram, na perspectiva histórica e de constituição da
memória, a necessidade de grupos se situarem em processos que desestabilizam modos de
ser e viver, ao mesmo tempo em que vêem neles oportunidades de firmar e reafirmar
presenças, como nos indica Yara Aun Khoury no artigo Muitas Memórias, Outras
Histórias: Cultura e o Sujeito da História.31
Foi essa experiência prática que, a nosso ver, contribuiu para que a Associação
Cultural Corrente Libertadora caminhasse no sentido de priorizar o atendimento a
crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social; a aproximar-se cada vez mais
dos setores da sociedade que atuavam nesse segmento e a definição do compromisso
31
KHOURY, Yara Aun. Muitas Memórias, Outras Histórias: Cultura e o Sujeito da História. In: Muitas
Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho Dágua, 2004.
155
político em garantir a gratuidade do atendimento e a prática cultural da capoeira a seus
alunos.
por um lado foi uma coisa importante, porque foi o governo da Erundina e foi no início
do projeto de se criar as casas de cultura, que até então, a cidade de São Paulo não tinha
casa de cultura. Isso eu acho que o governo da Erundina foi um dos que conseguiu fazer
isso a duras penas, porque os vereadores não queriam... uma das primeiras casas de
cultura a ser implantada foi a de Interlagos e que, antes disso, tinha um salão que ainda
não era casa de cultura, que era usado como vestiário dos guardas municipais, que o
administrador regional ao saber que a Corrente precisava de um espaço e era uma
pessoa que conhecia profundamente o início da Corrente, que era o Leonídas Tatto, ele
32
Estamos chamando de Poder Público, setores do Estado (âmbito federal, estadual e municipal) com outorga
para propor políticas de convênios com a sociedade civil organizadsa através programas sociais, mediante
mecanismos públicos com editais e audiências. Ministérios e secretarias são os principais setores encubidos
dessas políticas.
156
foi comigo lá e a gente olhou o salão e ele falou assim: Vamos trazer o pessoal pra qui!.
Isso aqui é um espaço público, a Corrente presta – isso fala dele – a Corrente presta um
serviço à comunidade e o município tem que apoiar esse tipo de iniciativa. Foi quando a
Corrente foi pra lá e se instalou a partir daí num espaço público e continuou prestando
serviço a comunidade...33
O contato da Associação com a família Tatto foi construído nas lutas sociais e embora
não se configurasse como uma relação ideológica – partidária, compartilhavam das mesmas
preocupações e do conhecimento das demandas sociais da Região de Santo Amaro,
principalmente da Capela do Socorro e Parelheiros, onde tanto Corrente Libertadora quanto
família Tatto35 eram lideranças populares naquele período.
Segundo Aluísio Ruscheinsky, 36 havia naquele momento uma grande expectativa das
lideranças e protagonistas dos Movimentos Populares, em participar ativamente do governo
da prefeita Luiza Erundina (1989-1992). Esse ideal de governo democrático estava baseado na
trajetória política da prefeita e em sua relação estreita com os movimentos sociais. Em seu
discurso de posse, Erundina reafirma o compromisso com os movimentos sociais:
O caráter popular desse governo será dado pela inversão de prioridades, no sentido de
atender aos direitos sociais da população trabalhadora... propiciar a efetiva participação
nas decisões político-administrativas, além de estimular e respeitar a organização
autônoma e independente dos trabalhadores, na perspectiva de construção do autêntico
poder popular. 37
Não nos cabe nesse momento fazer uma análise, nem avaliação do governo de Luiza
Erundina, mas nos cabe talvez, uma reflexão a propósito das afinidades da proposta de
governo da prefeita com a atuação da Associação. Nesse sentido, as propostas de políticas
33
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
34
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio: 09.10.09 e Entrevista II: Eufrásio Modesto
Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08.
35
A família Tatto- Arselino Tatto, Jilmar Tatto, Ênio Tatto e Leônidas Tatto - conta de uma intensa participação
nas lutas política na zona sul de São Paulo. Na década de 70 conhece os fundadores da Corrente Libertadora
como moradores do mesmo bairro, mais tarde já envolvidos nas lutas defendidas pelas Comunidades Eclesiais de
Base, Movimento de Moradia e Sindical, se aproximam do ponto de vista das preocupações político-sociais.
36
RUSCHEINSKY, Aluísio. Cidade Política Social e Participação Popular: Movimento de Moradia e
Administração do PT. São Paulo: Cadernos Cedic, nº64, 1997.
37
Citado In: PATARRA, Ivo. O Governo Luiza Erundina – Cronologia de Quatro Anos de Administração do PT
na Cidade de São Paulo. São Paulo: Geração Editorial, 1996, p. 34.
157
públicas da gestão em questão, o caráter participativo e autogestionário de alguns setores de
sua administração – Programa de Financiamento de Mutirões, Centro de Desenvolvimento de
Equipamentos Urbanos e Comunitários e Cultura - permitiu uma atuação profissional efetiva
de vários grupos ligados a cultura popular na cidade.
38
Casa de Cultura Santo Amaro (1995-1996), Oficina Cultural Maestro Juan Serrano (1995), Centro de
Convivência de Interlagos (1994-1996) Espaço Cultural Julio Guerra (2002-2003). É importante pontuar, que no
que se refere a construção da metodologia de ensino, trabalhos desenvolvidos em outros espaços públicos foram
constitutivos desse processo como a EMDA Anne Sullivan e CEE Joerg Bruder.
158
quando uma psicóloga subia lá em cima pra ver eu jogando capoeira e nisso calhou de
um menino, um deficiente... tinha as mãozinhas tortas... aquelas massinhas, ele não
fazia. Ele ficava brincando lá... aí eu falei: Oh moça, sabe como é os menininhos. Os
menininhos pula... têm uma habilidade. Esse menino vai vim pra cá, vai atrapalhar
toda a aula... Aí me invoquei pra dar aula pra ele... Aí ele subiu e aí eu coloquei uma
música lá, uma música bem lenta de angola e o menino começou a dançar do jeito
certíssimo assim... no ritmo. E eu falei: Mais rápido! Como mais rápido se era angola?
Então falei: Vou colocar uma música mais rápido pra ver... porque tá num ritmo
diferente do meu ritmo... Fiquei bobo! Porque o menino tava no ritmo, eu não estava.
Eu não estava no ritmo. Então eu comecei... minha capoeira mesmo... Eu percebi que eu
tava muito fora do ritmo. Depois, eu sei que eu suei, refleti um pouco, nossa!... Eu
comecei acompanhar ele e felizmente isso é muito legal, eu comecei acompanhar o
menino... aí comecei a paixonar pelo menino né, a ensinar pra ele legal e assim: Não foi
eu que ensinei pra ele, foi ele que veio me ensinar. Ele tinha a musicalidade na cabeça,
eu não tinha ainda e não é que as pessoas fazem capoeira hoje, que não têm
musicalidade. Têm musicalidade, mas assim, o conduzir, quem vai te conduzir e aí, isso
ai mostrou uma maneira assim muito forte, muito forte assim, que parecia que eu não
era professor, quem era o professor era ele... a minha metodologia hoje... eu não! O
Tigrão, ele foi é, adaptando uma metodologia em cima da necessidade de cada um...39
Faz-se necessário pontuar essa situação de caráter trabalhista, pois esta implica na
ausência de um comprometimento formal da prefeitura – da gestão Erundina e de períodos
39
Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08.
159
posteriores – com a Associação no sentido de assegurar a organização e manutenção de seus
trabalho através de um investimento estrutural.
Entendemos que essa relação inicial com o Poder Público ocorreu de forma indireta
no sentido de contrato institucional, e se por um lado colaborou para visibilidade da capoeira
desenvolvida pela Corrente Libertadora, por outro lado, não garantiu uma estabilidade
estrutural como, por exemplo, a cessão de um espaço que pudesse ser configurado como sede
da mesma ou o reconhecimento profissional do trabalho dos adolescentes multiplicadores
juntos ao Mestre Tigrão.
Conseguimos perceber que estar ocupando um espaço público como o CEE Joerg
Bruder foi estratégico para a Associação no sentido de articular ações e contatos com outros
serviços, profissionais e ONGs especializadas, que pudessem colaborar para o fortalecimento
do atendimento à criança e adolescente que estava perseguindo realizar.
O CEE Joerg Bruder está situado ao lado do Terminal Santo Amaro. O Terminal é
caracterizado pela alta rotatividade da população da região, mas funciona variavelmente como
local de encontro, de convivência, de empreender pequenos delitos pelas crianças e
adolescentes em situação de rua.
Muitas das relações afetivas e sociais entre esses sujeitos se dão, muitas vezes, por um
viés informal, por um sistema próprio de comunicações criadas por eles, que fazem dos
160
encontros e correrias em vários cantos da cidade, momentos de conhecer e se apropriar das
brechas dos serviços à eles destinados. É recorrente a circulação dos mesmos meninos pelos
diversos serviços com esse perfil na cidade e é a partir desse vínculo fluido e vulnerável que
os contatos e amizades se dão.40
Segundo Irene Gerassi, 41 a região central de Santo Amaro, onde está localizado o CEE
Joerg Bruder, configura-se em um território de múltiplas vivências urbanas cotidianas.
Considerada uma micro-metrópole por sua estrutura, serviços, densidade demográfica,
comércio e indústria, convive com um alto índice de violência e violação de direitos,
sobretudo, no que tange as crianças e os adolescentes.
Vislumbrar a participar nas atividades oferecidas pelo CEE Joerg Bruder como
futebol, natação, karatê e outros, esbarrou sempre na resistência institucional da direção e de
profissionais do CEE a essa demanda, entretanto, os vínculos estabelecidos entre crianças,
adolescentes, homens e mulheres de rua com Mestre Tigrão em trabalho desenvolvidos com a
Cáritas Arquidiocesana e a Faculdade Paulista de Medicina levou os sujeitos atendidos nesses
trabalhos a ocupar aquele espaço paulatinamente, apesar das resistências.43
Como nos indica Irene Gerassi, do ponto de vista dos profissionais dos serviços
públicos da região de Santo Amaro preocupados com essa demanda, mediante a constatação
visível da “incompletude institucional” (BAPTISTA, 2004) – isto é, da limitação do trabalho
40
Essas reflexões a respeito das crianças e adolescentes em situação de rua, foram elaboradas a a partir da minha
experiência no atendimento a esse público ajudando o Ms. Tigrão no Projeto Quixote e no Joerg Bruder, bem
como, no CEDECA/SA, no qual trabalhei por dois anos como educadora social.
41
GERASSI, Maria Irene. Resignificando Sujeitos: A Trajetória de Formação de Sujeitos Políticos no Fórum de
Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes de Santo Amaro. Dissertação de Mestrado em Serviço Social,
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2007.
42
Idem.
43
Comunidade São Francisco (1996); Centro de Comunitário da Criança e do Adolescente (1997), Casa da Praça
(1997) e Projeto Quixote (1998-2009), respectivamente.
161
desenvolvido isoladamente por setor de serviço, e da violação constante dos direitos previstos
no ECA, ficou claro a inviabilidade de um atendimento adequado naquelas condições de
cerceamento institucional, condições materiais e técnicas.
44
Documento: Projeto Integrar, 1998. Parceria: Profissionais do CEE Joerg Bruder, CR Santo Amaro.
45
Idem, p.1.
162
Paralelamente ao advento do Projeto Integrar, ocorria um movimento mais amplo de
comunicação baseada no compromisso desses profissionais, com nome e endereço
profissional certo: Maria Irene Gerassi (terapeuta ocupacional - CEE Joerg Bruder), Marcos
Veltri (CR/Santo Amaro) Evandro Teodoro Braga e Mara Ramos (respectivamente, psicólogo
e assistente social, Projeto Casa da Praça), Mestre Tigrão (CEE Joerg Bruder), Laura Mª
Carvalho (Unidade Farcamacodependência de Santo Amaro).
alcançar a otimização dos serviços e suprir as faltas de uma rede mais ampla, a redinha
propôs rever o papel atribuído às instituições e aos técnicos, quanto aos
encaminhamentos... atendimentos interinstitucionais, criando com isso alternativas aos
atendimentos individuais e familiares e, conseguindo respostas positivas às carências
existentes tanto nas instituições como na vida das crianças e jovens que eram
atendidos. 46
O que nos parece pertinente notar, é que dada essa experiência advinda da
participação política nos espaços acima citados e do cotidiano vivenciado a partir da
prática da capoeira junto a esse público, a Associação ampliou os contatos e suas parcerias
com técnicos de diversas áreas atuantes no serviço público em programas de assistência
social, saúde, da cultura e esporte.
46
GERASSI, Maria Irene. Op. cit., p.37.
47
A Associação Cultural Corrente Libertadora participou desde o início da Redinha em 1997. Os encontros da
Redinha ocorriam no CEE Joerg Bruder. Para saber mais sobre o envolvimento da Associação na Redinha e no
Fórum DCA de Santo Amaro, Ver: GERASSI, Maria Irene. Op. Cit. Sobre a participação da Associação na
Executiva do Fórum DCA foram analisados em particular os documentos: Entrevista V: Eufraudísio Modesto
Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09 e Entrevista VIII: Michel Vanderlei Coutinho da Silva, 08.06.10.
163
No final da década de 1990 os contatos, as lutas políticas e trabalhos realizados entre
parte desse grupo de profissionais que integravam a Redinha e a Associação Cultural
Corrente Libertadora desencadearam a elaboração de projetos institucionais em parceria com
o Poder Público.
Aqui estamos nomeando Poder Público todos os projetos em parceria com o Governo
Federal através do Ministério da Saúde; com o Governo Estadual através da Secretaria de
Saúde e com a Prefeitura do Município de São Paulo através das Secretarias Municipais de
Assistência Social, Cultura, Educação, Esporte e Lazer.
48
A estratégia de descentralização estava inserida em uma discussão maior sobre reforma administrativa que
começou ser a efetivamente implementada em âmbito federal através do I Plano Diretor em 1995 na gestão do
Ministro Bresser Pereira. Ver: DURIGUETO, Maria Lúcia; SILVA, Isis; DEBÓRTOLI, Débora. Descentralização
Administrativa, Políticas Públicas e Participação Popular. In: Serviço Social e Sociedade nº 96. São Paulo:
Cortez, 2008.
164
documental da pessoa jurídica e o financiamento previsto. As ONGs e entidades sociais
interessadas nas propostas e financiamentos deveriam, pois, primeiro apoderar-se dessas
informações e depois elaborar o projeto indo de encontro com o padrão proposto pelo Poder
Público.
A situação descrita acima nos coloca no campo das forças políticas, no qual a
Associação Cultural Corrente Libertadora precisaria necessariamente negociar com as
tendências políticas de cada gestão para ter a capoeira reconhecida como um elemento de
intervenção comportamental, como exigia a maioria dos projetos pleiteados pela mesma.
a gente não tem Sede e outra dificuldade é os projetos né, eles faz os projetos do jeito
deles, por exemplo, a Corrente não pode fazer um projeto. Todos os projetos que a
Corrente faz, pra trabalhar a questão do menino em situação de risco ou de trabalhar a
família e fazer uma cooperativa na própria favela, você entrar na favela e fazer um
negócio legal com família de profissão, se você falar isso, nossa, os caras: não, isso não
funciona! Só funciona assim, eles faz o projeto, de trás da mesa, assim... bota o Cria, o
Creca, o não sei o que , que vai dar certo! Tira os meninos da rua e bota na calçada, que
vai dar certo, então de trás da mesa, faz um projeto e é maravilhoso! E aí, não dá para as
ONGs; as ONGs mal-estruturadas né, as ONGs mal-estruturadas as ONGs sem fins
lucrativos, aí quando tem um lucro, um lucro é que ela rouba, quando ela não tem lucro é
por que é sem fim lucrativo, ela não tem fins lucrativo, mas quando eles vão dar um
projeto pra gente, fala: você tem que ter contra-partida? Mas se é sem fins lucrativos, cê
não tem que ter nada, mas na hora do projeto, cê tem que ter...uma sede, cê tem que ter
não sei quantos computador, você tem que ter...água, luz, você tem que ter toda essa
infra-estrutura, mas é sem fim, não é lucro, mas você tem que ter isso. 49
Há uma criticidade inerente à narrativa de Mestre Tigrão, que nos indica que os
membros da Associação conheciam os mecanismos, tendências e os limites das políticas
públicas no processo de parceira e convênios e que trabalharam no sentido de intervir
49
Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08.
165
através das brechas dessas propostas. Também nos aponta a natureza das dificuldades
estruturais da Associação no desafio de ampliar seu trabalho.
Podemos pensar que a conquista do se fazer sujeito político capaz de aceitar, propor e
negociar ideias e práticas, nesse caso, se constituiu através da experiência de viver
cotidianamente da capoeira norteada em encontrar respostas as demandas sociais com as
quais conviviam.
50
Esses entraves, segundo Michel Vanderlei Coutinho da Silva, referem-se principalmente à documentação,
contra-partida da Entidade, aos impostos e exigência profissional com nível universitário, entre outros. In:
Entrevista VIII: Michel Vanderlei Coutinho da Silva, 08.06.10.
166
O Mestre Eufraudísio nos dá conta desse processo, no qual a capoeira se encontra
com os objetivos sócio-políticos: os sonhos, visão de mundo e as escolhas de atuação da
Associação:
A capoeira, por exemplo, da Corrente Libertadora, ela é uma das de São Paulo, se a
gente for ver o histórico de todas elas, ela é a mais criativa. Ela esteve em mais, em
vários canais da sociedade. Não por ser um jogo de capoeira, mas por ser um grupo de
pessoas que utilizam a capoeira como formação. Então, tanto é, que por exemplo, eu
não tive notícia até hoje, que teve algum grupo de capoeira que foi mantenedor de um
CEDECA, por que que foi a capoeira? A Corrente Libertadora? Exatamente por sua
história, seu empenho sócio-cultural. Então, quando eu me envolvi com isso, me
envolvi através de acreditar que uma sociedade poderia ser diferente, eu me envolvi,
eu utilizei o movimento popular dentro da capoeira e a capoeira dentro do movimento
popular, exatamente por acreditar que é uma expressão popular.51
51
Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.
167
vislumbrar a possibilidade da construção – talvez não de um mundo comum, como sugere
Vera da Silva Telles – mas de objetivos e metas em comum, centradas nas questões da
infância e juventude. O espaço público nesse sentido é o espaço do aparecimento e da
visibilidade e por isso, esclarece Vera Telles
que o espaço público se determina como espaço político que têm por efeito instituir uma
cena, na qual o conflito se apresenta aos olhos de todos... como necessário, irredutível e
legítimo.52
Embora a autora esteja se referindo a um processo mais amplo das relações de tensão e
conflitos geradas pelo sistema capitalista entre os grupos sociais, trouxemos essa reflexão
para uma experiência mais localizada, para compreendermos melhor os sentidos possíveis
desses espaços.
52
TELLES, Vera da Silva. Direitos Sociais, Afinal do que se Trata?. UFMG: Belo Horizonte, 1999.
168
Nesse sentido, a busca por informações, a atenção aos editais e a articulação desses
sujeitos para proporcionar encontros, reuniões para elaboração dos projetos, indicam que
eles construíram caminhos autônomos de se fazerem visíveis politicamente e de explorar
outras possibilidades de atuação político-cultural.
53
Sobre políticas públicas voltadas para criança, adolescentes e jovens, ver: WERTHEIN, Jorge. Políticas
Públicas De/Para /Com Juventudes. Brasília: UNESCO, 2004.
54
Documento: Projeto Identidade Cultural, Nós Fazemos a Diferença! 2003. Parceria: Secretaria Municipal da
Cultura da Prefeitura do Município de São Paulo, p. 7.
169
de inclusão através dessa prática cultural se faz pautada em uma proposta pedagógica e de
integração diferenciada...
Os projetos têm vários aspectos em comum, que vão desde o tema, público alvo até a
área geográfica de abrangência, mas nos concentraremos, sobretudo, nos aspectos em que os
55
Idem, p.10.
56
Ibidem, p.10.
57
Projetos financiados respectivamente por: Ministério da Saúde – Secretaria de Políticas de Saúde/Coordenação
Nacional de DST/AIDS, Unidade de Articulação com ONG; Ministério da Saúde – Secretaria de Políticas de
Saúde/Coordenação Nacional de DST/AIDS em parceria com UNESCO e Secretaria de Estado da Saúde –
Coordenação dos Institutos de Pesquisa/Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS.
170
conceitos apresentados, são nessas experiências, intrínsecos: a concepção de capoeira
adotada e a metodologia desenvolvida.
A Corrente Libertadora e seus membros trabalham há mais de dez anos com adolescentes
em situação de risco pessoal e social na Região Sul da cidade de São Paulo. Tem como
estratégia o ensino da capoeira e da utilização de sua simbologia como interpretação da
realidade social. Forma multiplicadores para o desenvolvimento desta proposta de
58
trabalho em comunidade.
58
Documento: Projeto Ginga Pela Vida, 1999, p.07.
59
GASPAR, AKERMAN; GARIBE, Ricardo; Marcos e Roberto. Espaço Urbano e Inclusão Social – A Gestão
Pública na Cidade de São Paulo (2001-2004). Editora Fundação Perseu Abramo: São Paulo, 2006.
171
a capoeira pra mim, ela é minha vida, independente do caminho que eu segui. A
capoeira é minha vida, a capoeira corre no meu sangue, entendeu? Ela é minha vida. A
capoeira é o coração que bate. E o que faz o coração bater. Sabe, eu posso estar
afastado, eu posso me afastar, vir a me afastar, eu posso perder as pernas, mas é a
capoeira que faz o coração bater. Quando você ouve, quando você conversa, você se
empolga, você se sente vivo falando de capoeira, praticando capoeira, tocando
berimbau. É isso aí.60
A Associação Cultural Corrente Libertadora é uma entidade social sem fins lucrativos
e sem investimentos da iniciativa privada. Embora, no período estudado tenha se superado, no
sentido de se fazer e se fazer ver como profissional no atendimento as crianças e adolescentes
esbarrou sempre nos limites de sua estrutura financeira, administrativa e de recursos humanos.
60
Entrevista III - Emerson Coutinho da Silva, 26.01.09.
172
Sabemos pela análise das fontes que esses projetos obedeciam a uma padronização, tanto dos
critérios e informações a ser preenchidas, quanto de diagramação.
A produção escrita dos projetos, pois, não estava sob o controle direto dos fundadores
da Associação – Ms. Tigrão, Ms. Eufraudísio e Magnólia. Embora fosse compartilhado o
conteúdo dos projetos e dos relatórios entre todos os gestores, ainda sim, o produto final – o
projeto – encaminhado para o Poder Público, era finalizado pelos colaboradores: profissionais
especializados, com formação acadêmica e experiência no atendimento à criança e
adolescentes.
61
In: Documento: Projeto Ginga Pela Vida, 1999; Documento: Projeto Ginga e Arte Pela Vida, 2000;
Documento: Relatório de Progresso - Projeto Ginga e Arte Pela Vida, 2002 e Documento: Projeto Livre da
Aids, 2003.
173
passado histórico idealizado e que nesse contexto, funcionam como palavras-chave para
aceitação, pois vão de encontro com as reivindicações e políticas públicas no que tange as
questões raciais no Brasil. 62
Há, portanto, um trânsito de ideias, que circulam entre a prática e a escrita dos
projetos, entre o formal e o informal, entre o profissionalismo e a vivência cultural. Um
diálogo protagonizado por sujeitos que, em virtude de compartilharem objetivos político-
sociais, imprimiram nos projetos elaborados e executados suas marcas.
62
Lei 9.349, Art 26, alterada pela Lei 10.639 de janeiro de 2003.
63
Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08.
174
Mediante essa situação, compreendemos o caráter coletivo na concepção e elaboração
dos projetos; identificamos a influência e características das experiências e saberes dos
profissionais ali compartilhadas, não obstante, identificamos um campo de forças através
desse fazer e uma ampliação do campo decisório na Associação.
O que está posto, entre os sujeitos com quem estamos dialogando, não se refere a
tendências ideológicas políticas de caráter partidário, mas sim a pressupostos teóricos, a
metodologia de trabalho e ideais de sistematização e implementação de serviços à criança e
adolescentes da região.
175
Defesa de Direitos de Criança e Adolescente de Santo Amaro – FDCA para ser a
mantenedora do serviço. 64
pra você trabalhar no Terceiro Setor... infelizmente, nos que somos uma ONG pequena
precisamos da ajuda do poder público e pra você conseguir uma parceria com o poder
público é uma burocracia muito grande, essa burocracia exige muitas pessoas com
nível universitário... nós não tínhamos conhecimento e fomos buscar pessoas
capacitadas e essas pessoas trouxeram muito prejuízo, porque aquela coisa que era
mais caseiro, nosso, tornou uma empresa... tivemos que contratar pessoas... que não
cresceram na ideologia da Corrente... elas não tinham um vínculo com a Capoeira,
com a Corrente e foram embora e deixaram o prejuízo, o prejuízo nós estamos
pagando... o Tigrão teve muito prejuízo, não só financeiro... teve muitos prejuízos
morais... a diretoria nessa época não foi só com pessoas da Corrente, pessoas de fora
que não tinham comprometimento, foram indo embora... eu não vou falar que estavam
erradas, mas elas não concordavam com a metodologia do Tigrão... então houve um
choque e além disso a burocracia... isso nos deu prejuízo porque aí saiu da mão do
Mestre, o Mestre não teve mais como cuidar... Mestre era só uma pessoa que dava aula
de capoeira, isso me magoava muito... de ver uma pessoa que eu vejo como um pai
sendo humilhada muitas vezes por um projeto que era dele, da família dele...65
A diretoria executiva no período a que se refere nosso narrador, era formada por
voluntários civis, visto que se trata de uma associação sem fins lucrativos. Com a
64
A Associação Cultural Corrente Libertadora participou desde o início da Redinha em 1997. Os encontros da
Redinha ocorriam no CEE Joerg Bruder e desencadearam a formação do Fórum DCA. Para saber mais sobre o
envolvimento da Associação na Redinha e no Fórum DCA de Santo Amaro, Ver: GERASSI, Maria Irene.
Resignificando Sujeitos: A Trajetória de Formação de Sujeitos Políticos no Fórum de Defesa de Direitos de
Crianças e Adolescentes de Santo Amaro. Dissertação de Mestrado em Serviço Social, Pontifícia Universidade
Católica, São Paulo, 2007. Sobre a participação da Associação na Executiva do Fórum DCA foram analisados
em particular os documentos: Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09 e
Entrevista VIII: Michel Vanderlei Coutinho da Silva, 08.06.10.
65
Entrevista VIII: Michel Vanderlei Coutinho da Silva, 08.06.10.
176
profissionalização e o estreitamento das parcerias conveniadas, os fundadores e,
particularmente, do Mestre Tigrão que estava à frente do núcleo de capoeira e inteiramente
envolvido com os projetos em execucão, tinha uma função consultiva no corpo executivo da
Associação.66 Podemos, pois, identificar que essa função estava carregada de tensões.
Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não
econômicos.
Parágrafo Único. Não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos.
O que está em questão, portanto, não é o estatudo legal que respalda o funcionário ou
o colaborador, mas antes um comprometimento com um ideal, com uma proposta de trabalho,
com uma visão de intervenção sócio-cultural desenvolvida pela Corrente Libertadora e que, a
medida que Mestre Tigrão percebeu estar fora do seu controle ou tomando direções diversas
66
Dos fundadores, mestre Maurício, Mestre Eufraudísio, Mestre Tigrão, já estiveram no corpo executivo mas
devido a questões legais, na atualidade do ponto de institucional, principalmente depois da implementação do
Centro de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente de Santo Amaro – CEDECA /SA, os fundadores
passaram a ter papel consultutivo. Por insuficiência de documentação institucional, não podemos avançar nessa
questão, nem precisar os mandatos, entretanto na análise dos projetos e relatórios produzidos pela Associação,
acreditamos que os mandatos se concentraram até os anos 90. Tudo indica que no final dos anos 90 em virtude
da profissionalização da Associação e das exigências para os contratos com o Poder Público, o regimento interno
da Associação sofreu modificações que implicaram em limites da participação dos fundadores no corpo
executivo.
177
das construídas e defendidas na experiência cotidiana da capoeira, das atividades da
Associação e em última instância, da família Modesto, ele reagiu, desencadeando uma
situação conflituosa que levou a saída dessas pessoas em questão.
Trazendo para exemplos concretos, isso se referia entre outras coisas, que o CEDECA
pudesse absorver profissionalmente jovens multiplicadores da Associação, aptos para
trabalhar como educadores sociais,68 que o serviço trabalhasse em parceria com o núcleo de
capoeira podendo dar atendimento psicossocial e às vezes jurídicos a alunos envolvidos com a
prática da capoeira e, quando necessário, que o CEDECA desse suporte profissional e material
para atividades realizadas nos espaços nos quais a Associação Cultural Corrente Libertadora
desenvolvesse as oficinas de capoeira em parcerias.
O que nos arriscamos inferir como explicação para essa tensa relação no campo
decisório da Associação, tendo em vista as reflexões entrecortadas de nossos narradores, que
67
Essas observações estão baseadas na minha experiência profissional no Cedeca –SA como educadora social de
2003 à 2005.
68
Estamos nos referindo à experiência dos multiplicadores junto a crianças e adolescentes em situação de risco
pessoal e social (que era demanda do Cedeca) e com a formação requerida (ensino médio completo ou nível
universitário)
178
parte do executivo e os profissionais à frente do CEDECA – SA pretendiam dotá-lo de um
padrão profissional para tornar o serviço de proteção gerido por eles, uma referência na região
e, para tanto, era necessário romper com as práticas informais da administração da Associação
e delimitar as especificidades de ação do serviço CEDECA e da Corrente Libertadora.
Outro aspecto que nos chama a atenção nas reflexões feita por Michel Vanderlei é que
nesses momentos de conflito, que invariavelmente redundam na dispersão do grupo – alunos,
colaboradores e funcionários envolvidos em projetos conveniados com o Poder Público – o
movimento de rearticulação e de reestruturação de diretrizes e estratégias de manutenção das
atividades da Associação couberam aos irmãos da família Modesto e sobretudo, ao Mestre
Tigrão.
Trazendo os elementos que congregam a postura por Mestre Tigrão acerca da proposta
de trabalho focado na formação do cidadão ao encontro da reflexão de Michel Vanderlei
sobre os embates decorrentes dessa postura, respectivamente, pontuamos o segundo tema a
que nos propomos discutir: a metodologia de trabalho presente nos projetos.
O sentido de direitos sociais presentes nos projetos e nas narrativas orais caminha no
sentido de assegurar aos grupos sociais dos segmentos populares, os próprios protagonistas
dos projetos, o acesso à serviços e espaços públicos, nos quais possam construir, sem prejuízo
de qualidade, o conhecimento. O conhecimento no sentido amplo da palavra, que não se dá
apenas na escola e na profissionalização, mas também se constitui no contato com a cultura,
com a arte, a política, o esporte e com a rua.
179
princípios e pressupostos teóricos da Associação e de seus colaboradores. As atividades
desenvolvidas direcionavam-se para intervenção comportamental e se constituía de oficinas,
participação em eventos e fóruns, formação e avaliação das atividades.
O projeto Ginga e Arte Pela Vida, nos indica alguns caminhos para compreendermos
essa abordagem:
E,
Qualquer proposta de trabalho de prevenção passa necessariamente pela criação de
70
vínculos, auto-estima, numa abordagem no campo se seus próprios valores.
69
Documento: Projeto Ginga e Arte Pela Vida, 2000, p. 4.
70
Idem, p. 5.
180
e viabilizavam a participação dos mesmos em eventos e fóruns relacionados à garantia de
direitos e a prevenção/sexualidade. Há, pois, uma circularidade de ideias e práticas entre os
sujeitos envolvidos na ação
181
organização da sociedade civil, constroem espaços públicos e força um canal de diálogo entre
sociedade civil organizada e Poder Público.
Alguns como o EPA e ENA, concentravam suas discussões nas questões referentes à
sexualidade: direito reprodutivo, prevenção, gênero, homossexualidade. Nos fóruns, a
preocupação voltava-se, sobretudo, a garantia de direitos das crianças e adolescentes, mas
apesar das especificidades, eram locais de discussão e gestão de propostas de políticas
públicas, das quais a Associação participava de forma ativa através de seus fundadores – Ms.
Tigrão e Ms. Eufraudísio –74 colaboradores e alunos multiplicadores.
74
Participa do Fórum de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes desde sua fundação em novembro de
1998, passa a compor a executiva, na figura do Ms. Eufraudísio em 2001.
182
potencializado pelas parcerias com a sociedade civil organizada, de onde a Associação pode
contar com a colaboração – comumente voluntária – de profissionais especializados e
intelectuais que sanaram momentaneamente suas fragilidades e colaboram para mais uma
etapa da trajetória e profissionalização da Associação.
Por outro lado, a almejada participação e controle na gestão pública acabaram por
limitar-se a execução dos projetos, visto que o controle do financiamento – quer dizer, a
proporção do recurso a ser destinado aos projetos e serviços sociais administrados pelas
ONGs – e a seleção das entidades a serem conveniadas continuaram centralizados nas esferas
do Estado.
Talvez por isso o Mestre Tigrão fez a seguinte reflexão sobre essas parcerias com o
Poder Público:
órgão público é o seguinte, ele só dá o projeto seis por meia dúzia, você gasta seis,
devolve meia dúzia, dá meia dúzia, você pega pra dá os seis pra eles. Então, você não
tem nada de auto-sustento, porque você é uma ONG, você tem que dar contrapartida,
75
DURIGUETO, Maria Lúcia; SILVA, Isis; DEBÓRTOLI, Débora. Op. cit.
183
então é muito complicado... Tudo isso aí, tem que ter isso, infra-estrutura, é, você tem
76
que dar isso, mas você não tem...você dá com a mão direita e pega com a esquerda.
Seguindo o rastro dessas considerações, os sentidos que essas ações ganharam para os
sujeitos que as protagonizaram, Luciene Vidal nos deixa a reflexão a cerca da cidadania.
foi através da Corrente que eu tive oportunidade trabalhar em projetos sociais como a
Casa de Acolhida, com meninos em situação de rua. Eu conheci outro universo, que de
certa forma eu fazia parte. Eu sempre morei na periferia, então eu convivia muito com
isso, só que aí eu convivi de fato e isso mudou bastante a minha vida, porque eu acho
77
que tudo que eu sou hoje, tudo o que eu penso, os meus valores partiram daí.
76
Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves – Mestre Tigrão, 06.03.08.
77
Entrevista VII: Luciane Vidal Marinho, 18.04.10.
184
Considerações Finais
185
Novamente irei me apropriar do verso escolhido para abrir essas últimas considerações
com a pretensão de pontuar alguns aspectos dessa pesquisa que agora encerra uma etapa. O
verso da música A Mulher traz a alegria da transformação, a possibilidade da capoeira evoluir,
para nós, evoluir não no sentido linear e cartesiano, mas no sentido de ganhar outros
significados na experiência dos sujeitos históricos.
186
precarizada. Essa particularidade permeia a trajetória político-cultural da Associação, nela
visualizamos os limites e o alcance de seu trabalho.
A capoeira que uniu quatro irmãos – Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio, Ms. Tigrão e
Magnólia – em torno de um projeto comum, a Corrente Libertadora, traz consigo muito da
experiência pessoal de cada um desses atores e imprimiu o caráter coletivo na trajetória
político-cultural da Associação, agregou novos personagens e se transformou. Rompeu com
concepções de tradição e procedimentos técnicos para efetivar uma ideia: transformar um
princípio político em prática cotidiana, a inclusão social.
187
organizada e com o Poder Público muito nos dizem de a quantas andam a democracia no
Brasil.
Concluimos essa suscinta reflexão com a certeza de que para além do que foi discutido
nessa dissertação, a experiência político-cultural da Corrente Libertadora permite outros
olhares, aqui não pormenorizados: as relações com a educação popular, as questões
concernentes aos aspectos psicossociais, a capoeira como atividade física, entre outros.
Esperamos que nosso trabalho seja o primeiro passo para outros: outras pesquisas, outros
encontros, outros diálogos.
188
Fontes
Entrevistas
Vídeos
QUILOMBO da Memória. Direção de Saloma Salomão. São Paulo: Fantasma Vídeo, 1993.
INSTITUCIONAL Associação Cultural Corrente Libertadora, 2009.
RECICLAGEM Associação Cultural Corrente Libertadora, 2010.
INSTITUCIONAL Associação Cultural Corrente Libertadora, 2010.
189
Projeto Iniciação à Capoeira – Creche Sinhazinha Meireles, 1999.
Projeto Ginga Pela Vida – Ministério da Saúde, 1999.
Projeto Ginga e Arte Pela Vida – Ministério da Saúde, 2000.
Projeto CEDECA – Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Santo
Amaro, 2001.
Projeto Liberdade Assistida – Secretaria do Bem Estar do Menor e FEBEM, 2002.
Projeto Iniciação à Capoeira – Associação de Construção por Mutirão do Casarão, 2001-2003.
Projeto Identidade Cultural, Nós Fazemos a Diferença! – Secretaria Municipal da Cultura,
2003.
Projeto Sexualidade e Prevenção – União Moradores do Parque Cocaia, 2003.
Projeto Ginga pela Vida – Secretaria de Estado da Saúde, 2003.
Projeto Livre da AIDS – Secretaria de Estado da Saúde, 2003.
Projeto Iniciação à Capoeira – Centro de Educação Popular Santa Joana de Lestonnac, s/d.
Projeto Iniciação à Capoeira – Centro de Convivência Casa da Praça, s/d.
Programa de Trabalho Iniciação à Capoeira – União Moradores do Parque Cocaia, s/d.
Relatórios
Outros
190
Referências Bibliográficas
ANDREWS, George Reid. Negros e Brancos em São Paulo (1888-1988). São Paulo: EDUSC,
1998.
ANTONACCI, Maria Antonieta. Corpos Sem Fronteiras. In: Revista Projeto História, nº 25.
São Paulo: Educ, 2002.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.
BÓGUS, Lúcia Maria M; WANDERLEY, Luiz Eduardo (org). A Luta Pela Cidade em São
Paulo. São Paulo: Cortez, 1992.
BOSI, Alfredo. Cultura Brasileira: Temas e Situações. São Paulo: Ática, 1992.
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que Não Foi.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
CHALHOUB, Sidney. Visões de Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
CHASIN, J. A Miséria Brasileira. São Paulo: Estudos e Edições Ad. Hominem, 2000.
COSTA, Ricardo. Notas Sobre a Exclusão Social. In: Serviço Social e Sociedade, nº 96. São
Paulo: Cortez, 2008.
COVRE, Maria de Lourdes Manzini. O Que é Cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1998.
FILHO, Geraldo Francisco. O Crescimento das Favelas no Município de São Paulo de 1970-
1985: A Problemática da Habitação Popular. In: Revista Projeto História, nº 7. São Paulo:
Educ, 1987.
GASPAR, Ricardo; AKERMAN, Marco; GARIBE, Roberto. Espaço Urbano e Inclusão Social
– A Gestão Pública de São Paulo (2001-2004). São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.
192
GERASSI, Maria Irene. Resignificando Sujeitos: A Trajetória de Formação de Sujeitos
Políticos no Fórum de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes de Santo Amaro.
Dissertação de Mestrado em Serviço Social: PUC – SP, 2007.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Editora
34, 2001.
GOMIDE, Denise (org). Governo e Sociedade Civil – Um Debate Sobre os Espaços Públicos
Democráticos. São Paulo: Peirópolis, 2003.
GREGORI, Maria Filomena; SILVA, Cátia Aida. Meninos de Rua e Instituições: Tramas,
Disputas e Desmanche. São Paulo: Contexto, 2000.
GRESPAN, Jorge. Considerações Sobre o Método. In: Fontes Históricas. São Paulo: Contexto,
2005.
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro - Estudos de Teoria Política. São Paulo: Edições
Loyola, 2002.
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. São Paulo: Paz e Terra,
2002.
193
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
IANNI, Octávio. A Ditadura do Grande Capital. São Paulo: Civilização Brasileira, s.d.
KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
KHOURY, Yara Aun. Muitas Memórias, Outras Histórias: Cultura e o Sujeito da História.
In: Muitas Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho Dágua, 2004.
MARTA, Felipe Eduardo Ferreira. O Caminho dos Pés e das Mãos: Taekwondo. Arte
Marcial, Esporte e a Colônia Coreana em São Paulo (1970-2000). Dissertação de Mestrado
em História Social: PUC – SP, 2004.
MATTA, Roberto da. Carnavais, Malandros e Heróis. São Paulo: Zahar, 1981.
MICELI, Sergio (org). O Estado e a Cultura no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1984.
ORTZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2006.
194
PAES, Maria Helena Simões. A Década de 60. Rebeldia, Contestação e Repressão Política.
São Paulo: Ática, 2004.
PELEGRINI, Sandra C.A; FUNARI, Pedro Paulo. O que é Patrimônio Imaterial. São Paulo:
Brasiliense, 2008.
___________________. O Que Faz a História Oral Diferente. In: Projeto História, nº 14. São
Paulo: Educ,1997.
__________________. História Oral Como Gênero. In: Projeto História, nº 22. São Paulo:
Educ, 2001.
REIS, Letícia Vidor de Sousa. O Mundo de Pernas para o Ar – A Capoeira no Brasil. São
Paulo: Publisher Brasil, 2000.
195
ROCHA, Maria Angélica. A Capoeira Como Ação Educativa nas Aulas de Educação Física.
Dissertação de Mestrado em Educação: PUC-SP, 1994.
SADER, Eder. Quando Novos Personagens Entraram Em Cena. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
SANTOS, Milton. O Espaço dividido: Os dois Circuito da Economia Urbana dos Paises
Subdesenvolvidos. São Paulo: Edusp, 2004.
SEGAWA, Hugo. Veios e Fluxos –1872-1954. In: História da cidade de São Paulo – A
Cidade na Primeira Metade do Século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
SERPA, Ângelo. Espaço Público na Cidade Contemporânea. São Paulo: Contexto, 2007.
SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental. In: O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1973.
SINGER, Paul; BRANT, Vinícius Caldeira (org). São Paulo: O Povo em Movimento. São
Paulo: Vozes, 1980.
196
STOROLI, Fernanda Quevedo. Inclusão Social e Esporte: Os Significados – Sentidos da
Capoeira Para Adolescentes em Situação de Pobreza. Dissertação de Mestrado em Psicologia
Social: PUC-SP, 2007.
TELLES, Vera Silva. Direitos Sociais, Afinal do que se Trata?. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
__________ Costumes em Comum: estudo sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
VIEIRA, Sérgio Luiz de Souza. Da Capoeira Como Patrimônio Cultural. Tese de Doutorado
em Ciências Sociais: PUC-SP, 2004.
VIGARELLO, Georges. O Corpo Inscrito na História. In: Revista Projeto História, nº 21.
São Paulo: Educ, 2000.
WERTHEIN, Jorge. Políticas Públicas De/Para /Com Juventudes. Brasília: UNESCO, 2004.
197