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Rio de Janeiro
2013
Daniele Andrade da Silva
Rio de Janeiro
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
es CDU 612.6-055.34-055.2
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.
___________________________________ _______________
Assinatura Data
Daniele Andrade da Silva
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Anna Paula Uziel (Orientadora)
Instituto de Psicologia da UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. Luiz Mello
Faculdade de Ciências Sociais da UFG
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Miriam Pillar Grossi
Departamento de Antropologia da UFSC
_____________________________________________
Prof. Dr. Guilherme Silva de Almeida
Faculdade de Serviço Social da UERJ
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Eliane Portes Vargas
Escola Nacional de Saúde Pública da FIOCRUZ
Rio de Janeiro
2013
DEDICATÓRIA
À minha família e a meus amores, meus alicerces eternos, pois quando falta força, me
realimento ali.
AGRADECIMENTOS
Num trabalho feito por muitas mãos, são muitos nomes a agradecer.
Começo agradecendo à minha orientadora, professora Anna Paula Uziel. Figura
importantíssima neste processo. Inegavelmente, este encontro foi maravilhoso. Obrigada por
tudo!
Agradeço também aos professores e professoras que gentilmente aceitaram participar
de minha banca: Miriam Grossi, Luiz Mello, Guilherme de Almeida e Eliane Vargas.
Agradeço ainda à professora Naara Luna, que assim como o Guilherme e a Eliane participou
de minha banca de qualificação, oferecendo leitura atenta e valiosas contribuições. Muito
obrigada!
Muitíssimo obrigada a todas as pessoas que gentilmente nos receberam e cederam
entrevistas para esta pesquisa, bem como os/as companheiros/companheiras e amigos/amigas
que nos permitiram este encontro: ao sempre gentil e amigo Aureliano; à Mônica e à Catarina
pela atenção e ajuda; à Thais pela generosidade, atenção e enorme paciência para nos atender.
À recepção afetiva que recebi em São Paulo dos lindos amigos Edu e Sam.
A todas as companheiras de supervisão pelas leituras, contribuições e excelentes
risadas. Depois de vocês, uma manhã chuvosa em Grumari jamais será a mesma!
A meus pais não tenho palavras para agradecer, pois eles representam absolutamente
tudo para mim. Obrigada pela vida, pelo amor, pelos cuidados. Obrigada à minha “velhinha”
Eni pela proteção e a meu irmão Leandro pelo cuidado.
À linda Aninha, obrigada pela entrega, pela paciência, pelo companheirismo, pela
amizade, pelo apoio e cuidado que jamais deixarão de existir.
À minha querida Jimena, figura formidável em minha vida. Ter a encontrado em 2011
foi, certamente, o maior presente desta caminhada. Obrigada, maninha!
E a todas as figuras amigas que tenho e que tornam a minha vida muito mais rica!
RESUMO
Embora a maternidade lésbica não seja novidade, nos últimos anos sua visibilidade
vem aumentando. A ampliação da procura e acesso aos serviços de medicina reprodutiva por
casais de mulheres acrescenta novos ingredientes a este cenário, que desperta crescente
interesse social. Tão bem arraigada às construções de gênero, a maternidade figura como
elemento de fundamental importância em nossa sociedade. Pretendendo tensionar como casais
de mulheres que desejam ser mães a partir do acesso às técnicas de reprodução assistida se
relacionam com a maternidade e com o serviço de saúde, realizamos entrevistas com cinco
casais de mulheres residentes de cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, bem como com
seis profissionais de saúde de um centro de medicina reprodutiva localizado na cidade do Rio
de Janeiro. Mesmo o processo tendo sido longo e dispendioso para muitas, parece a
maternidade autorizar manipulações e intervenções profissionais. Ainda que os profissionais
entrevistados recebam casais lésbicos e prestem atendimento, as desconfianças sobre a
legitimidade desta composição familiar não são poucas. A maternidade ressignificou a vida
dessas mulheres, acrescentando novas dinâmicas às relações familiares e conjugais. Todavia,
sob olhares que desconfiam e tolhidas de direitos, estas famílias enfrentam lutas judiciais e se
articulam para responder as desconfianças.
SILVA, Daniele Andrade da. At last mothers!: from the experience of assisted reproduction
to the experience of lesbian motherhood. 2013. 132f. Dissertação (Mestrado em Psicologia
Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2013.
Although lesbian motherhood is not new, in recent years its visibility has increased.
The increase in demand and access to reproductive health services for female couples adds
new ingredients to this scenario, which arouses growing social interest. So well entrenched in
the constructions of gender, motherhood appears an element of fundamental importance in our
society. Aiming to tension how couples of women who want to be mothers using assisted
reproduction techniques are related to motherhood and the health service, we conducted
interviews with five pairs of women living in cities of Rio de Janeiro and São Paulo and six
health professionals from a reproductive medicine center located in the city of Rio de Janeiro.
Although the process has been long and expensive for many women, it seems that
motherhood allows professional interventions and manipulations. Although the respondents
receive and provide care to lesbian couples, there are many suspicions about the legitimacy of
this family composition. Motherhood re-signified the lives of these women, adding new
dynamics to their family and marital relationships. However, under suspicious eyes and with
curtailed rights, these families face judicial struggles and articulate themselves to respond to
suspicions.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 09
2.1 “Eu não sabia que profissão eu queria ter, mas já sabia que queria ser mãe!” .... 29
2.2 Mulher: profissão mãe? Como a maternidade modifica a relação conjugal ..... 43
3.3.1 “Aja naturalmente” – se elas podem pagar, elas estão acessando o serviço! ........... 76
5.1 “A gente tem que matar um leão por dia” – uma família sob suspeita ................. 104
REFERÊNCIAS ..................................................................................................127
ANEXO ................................................................................................................134
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INTRODUÇÃO
No ano de 2009, na iminência de concluir o curso de psicologia, ainda não havia claro
que tipo de trabalho gostaria de desenvolver como monografia. Admito que muitas
possibilidades povoavam minha mente, mas nenhuma havia sido capaz de me mobilizar de tal
forma que eu decidisse seguir como caminho para estudo. Em março deste mesmo ano,
porém, me deparei com uma história bastante inusitada. A edição online da revista Época
trazia como manchete a seguinte frase: Estou Grávida de Minha Namorada. A reportagem
vinha acompanhada por uma fotografia do casal, uma imagem bastante interessante, aliás,
uma foto em tons de cinza onde uma mulher grávida, deitada, toca como uma das mãos o
rosto de outra mulher, enquanto esta beija e toca com uma das mãos a barriga daquela que se
encontrava deitada. Ao longo da reportagem, o leitor ficava entendendo melhor o enredo da
situação: Adriana Maciel estava grávida, mas quem havia cedido os óvulos fecundados havia
sido sua companheira, Munira Khalil. A reportagem prosseguia, oferecendo alguns detalhes
do procedimento - uma fertilização in vitro -, da história do casal e de quem, segundo o
entendimento legal da época, que não diferencia substancialmente do atual, seria a mãe legal
das crianças. Ao final, a revista eletrônica, porém, disponibilizou espaço para que seus leitores
emitissem opiniões sobre aquilo que haviam acabado de ler. Interessante que muitos leitores
eram favoráveis à decisão das duas mulheres em terem filhos, muitos até citavam a foto
descrita acima, falando sobre como as duas pareciam se amar, de como as crianças seriam
bem recebidas por elas, entre outros argumentos. Todavia, os comentários contrários também
eram bastante expressivos, em alguns momentos até coléricos, e, muitas vezes, usando
argumentos de foro religioso para refutar essa composição familiar como legítima e não
nociva às crianças. A partir dessas leituras, o meu campo de estudo parecia definido. Era isso
que eu queria estudar, era essa pesquisa que eu queria desenvolver. Queria compreender um
pouco melhor a parentalidade exercida por homossexuais e como ela era percebida em nossa
sociedade. Ao término da graduação, todavia, já não restava mais dúvida daquilo que eu
gostaria de pesquisar em meu mestrado.
O tema ainda seria a parentalidade exercida por homossexuais, ou a
homoparentalidade, termo que será melhor discutido ao longo desse trabalho, mas a lente
seria direcionada para a homoparentalidade possibilitada a partir da reprodução assistida.
Como o recurso era mais acessado por lésbicas do que por gays, e como a maternidade
era um tema que me interessava, resolvemos fazer um recorte metodológico, estudando a
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Sendo uma família sob suspeita e sem reconhecimento legal, o último ajuste de nossas
lentes irá percorrer como estas famílias respondem aos olhos que julgam e desconfiam de sua
legitimidade e quais são as lutas que travam para a conquista de direitos, usando a
maternidade com bandeira política.
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1.1 Dos profissionais de saúde à maternidade lésbica, das vozes que calam às que falam
pesquisa, previamente informadas por quem as conhecia. Não tínhamos muitos nomes, mas já
era um início.
A partir desses contatos, conseguimos dois casais, ainda que tenhamos conseguido
entrevistar apenas um deles: Carla e Helena. O outro casal, embora inicialmente tivesse
concordado em ceder entrevista, ao longo das negociações para definição de data deixou de
responder aos e-mails. Meses depois, tentamos novamente contato com esse casal, que teve
uma estratégia parecida: inicialmente concordou e depois deixou de responder aos contatos,
prática que se repetia. A partir de Carla e Helena, chegamos ao segundo casal entrevistado:
Jaqueline e Nádia, amigas do casal.
Concomitantemente a esses movimentos, recebemos ajuda de diversos/diversas
amigos/amigas e parceiros/parceiras pesquisadores/pesquisadoras e, neste momento, a internet
como meio de comunicação nos facilitou bastante. Fizemos um e-mail explicando a pesquisa
e pedimos ajuda de pessoas que faziam parte de nossa rede de relações. A partir daí um
amigo, também pesquisador, se ofereceu para divulgar esse e-mail nos grupos de discussão de
que fazia parte. Com essa divulgação, não demorou muito para uma antropóloga de São Paulo
entrasse em contato se oferecendo para ajudar na pesquisa. Embora não fosse pesquisadora do
tema, conhecia alguns casais de mulheres que haviam se submetido a procedimentos de
reprodução assistida e era amiga de uma advogada que acabara de ganhar uma causa de
adoção unilateral pedida por um dos membros de um casal de mulheres, onde uma delas havia
gerado um menino a partir de uma fertilização in vitro, sem que sua companheira, entretanto,
tivesse qualquer laço consanguíneo ou genético com a criança.
A partir da aproximação com essas duas profissionais, essa pesquisa extrapola os
limites geográficos do Rio de Janeiro e chega até São Paulo. Lá, consigo a possibilidade de
entrevistar dois casais. Depois de algumas negociações e contatos telefônicos, a entrevista fica
marcada para um sábado e todas iriam se reunir na casa de um dos casais, conforme sugestão
das próprias, já que eram amigas. Como a dificuldade para localizar sujeitos que pudéssemos
entrevistar era real, tentávamos facilitar ao máximo esses encontros, deixando a cargo das
mulheres a escolha pelo local das entrevistas, que era, em sua maioria, na própria residência
delas. Contudo, na véspera da entrevista, às 22h00min da sexta-feira recebo um e-mail: um
dos casais cancelava a participação na pesquisa, sendo justamente o casal cuja casa seria o
local de encontro de todas. Na dúvida se conseguiria entrevistar o segundo casal, faço contato
com elas, que confirmam a participação e sugerem sua casa para o encontro, e assim acontece.
Na tarde daquele sábado realizamos a entrevista com o primeiro casal de São Paulo, Elizabeth
e Gabriela, na cidade delas.
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A entrevista foi marcada para a manhã do dia 08 de junho de 2012, uma sexta-feira, portanto, um dia após o
feriado de Corpus Christi, que ocorreu numa quinta-feira. Talvez a data da entrevista, entre um feriado e o início
do final de semana, tenha contribuído para o esquecimento da diretora-médica, além de no dia da entrevista ter
ocorrido um importante congresso médico, onde a profissional iria se apresentar.
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maternidade e todas as relações estabelecidas a partir daí, nos ajudou a redefinir mais uma vez
aquilo que buscávamos tensionar. Ao longo do trabalho esse aspecto será melhor discutido,
por hora, entretanto, cabe destacar a importância de nos colocarmos em relação direta com o
campo, atentas para os elementos produzidos ali e para as forças que atravessam e constituem
estes elementos.A partir de nossas produções coletivas, ocampo nos colocava, a todo instante,
uma série de coisas que nossa atenção não poderia ignorar. Sendo assim, não seria falacioso
admitir a força que o campo toma em nossa pesquisa, nos ajudando a recalcular diversas
vezes nossos caminhos.
Estes movimentos nos auxiliaram a direcionar nossas lentes para emergências que
surgiam das relações que íamos estabelecendo, que não constituíam, portanto, produções
prévias e cegas, pois se assim fosse, teríamos duas pesquisas dentro de uma: aquela que
gostaríamos, cegamente, que fosse e aquela que se construía nas relações
estabelecidas.Ponderando, contudo, que não se tratava de um trabalho disperso, visto que as
relações nos envolviam também, que passavam por nossos filtros perceptuais, e, porque não
dizer, teóricos.
Ao final, o que se observou mais claramente foi que os depoimentos das mulheres
representavam a construção discursiva acerca da maternidade, que não se limitava aos centros
reprodutivos, indo além, antes e depois deles. É essa experiência, tensionada com a
experiência do processo médico, mas indo além dele, que traremos aqui.Pois a maternidade
vai além dos centros reprodutivos, atravessa as vidas das mulheres em diferentes momentos,
especialmente quando levamos em consideração a construção do feminino e as implicações
que parecem coladas aele. Um dos giros de nossas lentes nos leva a percorrer estes caminhos
onde a maternidade se constitui como elemento que altera relações e introduz novos
ingredientes tanto para essas mulheres quanto para as pessoas que compõem as redes de
relação que compartilham. Todas essas relações que passam pela maternidade são
ressignificadas a partir de usos e negociações que a reprodução assistida permite,
acrescentando nossas possibilidades ao parentesco.
Pretendemos deixar articular as múltiplas vozes que falam sobre maternidades lésbicas
e suas redes de significação, além daquilo que se constrói como discurso quando essas
mulheres decidem trazer suas experiências para outrem, incluindo aí essa pesquisadora
desconhecida, que não sairá dessa relação da mesma forma que entrou.Assim como não entra
neste espaço livre de suas próprias escolhas e trajetórias pessoais. Pelas escolhas e trajetórias
pessoais, assumimos este campo de pesquisa sem o excessivo pessoalismo cego, mas sem a
enganosa pretensão de absoluto impessoalismo na escrita. Crendo, assim que, de fato, “somos
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entramos, em cada sala que percorremos, em cada passo que demos, em todos eles, nunca
houve movimentos solitários. Como pesquisadoras, não nos colocamos em lugar privilegiado
de “verdade”, como nos lembra Foucault (2009). Assumindo a escrita, nos propomos a operar
a difusão do saber aqui produzido, com múltiplas vozes e diversas “verdades”.Operamos aqui
os conceitos e as teorias como uma caixa de ferramentas, como bem nos lembra Deleuze
(DELEUZE apud FOUCAULT, 2009). Ferramentas das quais nos apropriamos e
reapropriamos, num campo onde os caminhos não partiram pré-moldados, e onde a escolha
teórica nos ajudoua criar ferramentas de análise e problematização, sem a preocupação de
fixá-las em modelos baseados em regras e procedimentos definidos previamente, sem
apretensa cristalização do método (ZAMBENEDETTI; SILVA, 2011).
As entrevistas com as mães lésbicas buscavam contemplar o máximo da experiência
da maternidade, como a maternidade atravessava suas vidas e modificava as relações; como
foi a escolha de ser mãe e como a parceira vivenciou este projeto. Com os/as profissionais de
saúde, contemplávamos a percepção que possuíam acerca da maternidade lésbica, bem como
as peculiaridades que atravessam a medicina reprodutiva.
Embora difícil de localizá-las, quando conseguimos contato com os casais de mulheres
tínhamos uma recepção bastante positiva. Elas desejavam falar e receberam nossa presença
com bastante entusiasmo e doação.Devido a certa relação de intimidade que conseguíamos
estabelecer com as entrevistadas, as entrevistas com os casais foram mais conversas que
tivemos acerca de suas experiências. Era bastante interessante perceber a curiosidade que
despertávamos nelas, em muitos momentos demonstravam interesse prévio em nossas
opiniões, buscando saber mais do motivo que nos levava a pesquisar este tema.
Pessoalmente,admito que inicialmente essa era uma questão para mim, ainda nos
primeiros passos de construção teórica, a forma de abordagem e contato com as entrevistadas
dispendia especial cuidado em mim. Minha preocupação inicial era em como conseguir não
influenciar as entrevistas com a minha presença, numa tentativa ingênua, diria. Fatalmente,
uma maior maturidade teórica me permitiu superar este aspecto, e entender, ao final, que essas
construções discursivas acerca da maternidade lésbica eram também produzidas por nós. E
embora esse “nós” fale de mim – e de minha multiplicidade - e das entrevistadas, ele
tambémabarca a participação de outras figuras femininas – pesquisadoras, parceiras, amigas,
companheiras - que me acompanharam na maior parte das entrevistas com os casais,
presenças que, creio, tenham ajudado a mudar a tônica dos encontros, que se tornavam
suaves, inclusive quando abordávamos aspectos delicados naquelas famílias, como assuntos
que figuravam como verdadeiros interditos, mas que nos eram trazidos.
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Com os/as profissionais de saúde essas conversas eram bem mais curtas, o tempo ou
possível falta de interesse em participar da pesquisa possivelmente apontem como causas para
tal. O fato de as entrevistas terem sido realizadas no ambiente de trabalho dessas pessoas
também pode ser levado em consideração, tanto por conta do escasso tempo que dispunham
para tal - visto que deixavam de realizar algum procedimento laboral para estarem ali conosco
- ou porque ali representavam a instituição. Especialmente porque as entrevistas eram
gravadas. Sobre este aspecto, destaco que as gravações, posteriormente transcritas, significam
parte do material trazido aqui, parte porque antes ou depois de iniciarmos as gravações as
conversas eram longas e bastante interessantes e geraram um diário de campo.
Antes de apresentar as pessoas que compõem esta pesquisa, cabe esclarecer alguns
aspectos acerca do uso de entrevistas como instrumentos metodológicos. Mais uma vez,
esclarecemos que não concordamos com a ideia de que as entrevistas constituem instrumentos
para a apreensão de uma verdade a ser revelada para pesquisador atento e o mais neutro
possível. Trata-se antes de reconhecer a entrevista como um dispositivo enunciativo, que
envolve ao menos duas personagens: quem entrevista e quem é entrevistada. Trata-se,
portanto, de uma produção estabelecida a partir daquela relação, o que cabe deixar bastante
claro aqui. Trata-se ainda de uma “produção situada sócio-historicamente, como prática
linguageira que se define por uma dada configuração enunciativa que a singulariza”
(ROCHA; DAHER; SANT’ANNA, 2004, p.1).
A pesquisa foi submetida e aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
(CONEP), e todos os nomes dos entrevistados apresentados são fictícios.
A seguir, enfim, apresentamos as personagens que ajudam a compor este trabalho, que
emprestam forma aquilo que produzimos a partir de diversas mãos. Entramos de casas em
casa para apresentar as famílias localizadas nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo,
posteriormente, abrimos as portas do consultório 4 de uma clínica de medicina reprodutiva
localizada na cidade de Rio de Janeiro.
Carla e Helena – Carla tem 40 anos e é psicóloga, Helena tem 43 anos e atualmente não
trabalha, sendo quem fica a maior parte do tempo com os gêmeos, Daniel e Bruno, de 4 anos.
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Ao longo da entrevista Helena esclarece que já foi comerciante, mas que atualmente seu único
trabalho, segundo ela, é cuidar dos filhos. Carla e Helena contam com 15 anos de
relacionamento e se conheceram através de amigos em comum que possuíam. Após alguns
encontros casuais, iniciaram o namoro. Nesta época, Carla ainda morava na casa de seus pais,
mas Helena já tinha a casa em que vivem hoje. Contudo, antes de morarem juntas, Carla,
recém-formada, resolveu se dedicar aos estudos e passar num concurso público, o que acabou
acontecendo algum tempo depois. Assim que isso aconteceu, a relação das duas ficou mais
sólida. Nesta época, porém, Helena ainda era dona de comércio, o que se mantém até pouco
tempo antes do nascimento dos gêmeos. Porém, por trabalhar numa cidade distante da casa da
cidade em que vivia, Carla passava de segunda à quinta-feira morando sozinha na cidade em
que trabalhava e de sexta à segunda-feira ela morava com Helena, situação que se manteve
assim até a decisão das duas pela maternidade.
Em entrevista, Carla e Helena falam que sempre quiseram ser mães. Carla, contudo,
imaginava a maternidade a partir da gestação até o parto; Helena queria ser mãe, mas nunca
pensou em engravidar, por receio do processo. Por esse motivo, o casal, mesmo antes de
decidir iniciar o processo de reprodução assistida, já havia decidido quem geraria a criança.
Por esse desejo de engravidar, a adoção não chegou a ser uma opção para elas. Porém, antes
de recorrerem às clínicas de reprodução assistida, elas pensavam em um irmão ou amigo
como potenciais doadores, assunto que nunca chegou a ser discutido com eles, ficando apenas
nas conversas internas do casal.
Porém, depois de 10 anos de relacionamento, Carla diz ter entrado em crise pessoal
enquanto estava sozinha na cidade onde trabalha e, ao voltar a Niterói, cidade onde vive com
Helena, comunicou-a sobre a vontade de iniciar o processo para engravidar. Helena, por sua
vez, se dizia pronta para o momento em que sua parceira se sentisse pronta. Portanto, após
essa decisão de Carla, Helena a apoiou e iniciaram as pesquisas por clínicas de reprodução
assistida. Inicialmente, essas pesquisas eram realizadas pela internet, mas, para
desapontamento de Carla, as poucas informações contidas nos sites eram direcionadas a casais
heterossexuais, o que fez com que o casal acreditasse, num primeiro momento, que
legalmente não poderiam ter acesso às técnicas. A pouca informação e a dificuldade de acesso
fez com que o casal perdesse a animação inicial, sem que, contudo, desistissem do processo.
Porém, um dia, após encontrar uma amiga na academia onde tinha uma lanchonete, Helena
comenta que ela e sua companheira queriam engravidar, mas não sabiam ao certo como
poderiam fazer isso. Esta amiga, então, comenta que uma amiga sua, lésbica, estava
participando deste processo e liga, imediatamente, para Jaqueline e a coloca para conversar
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com Helena. Jaqueline é, então, bastante receptiva com Helena e a convida para ir a sua casa,
junto com Carla, para conversarem sobre isso. Durante essa conversa, Jaqueline tranquiliza o
casal e passa o contato de uma clínica. Algum tempo depois, Carla e Helena marcam uma
primeira consulta com o médico, que esclarece como seria o processo. Após a primeira
consulta, Carla começa o tratamento para engravidar. Todo o processo durou menos de um
ano, e foram realizadas três inseminações artificiais e três fertilizações in vitro, tendo sucesso
a última fertilização que gerou os gêmeos Bruno e Daniel. A maternidade nesta família é
dividida. Tanto Carla quanto Helena se considerammães dos gêmeos e assim também são
chamadas por eles. A família mora numa casa localizada em uma região nobre da cidade de
Niterói. A entrevista ocorreu na casa do casal e foi realizada por mim e pela mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Jimena de GarayHernández.
Jaqueline e Nádia – Jaqueline tem 44 anos e é comerciante, Nádia tem 46 anos e também é
dona de comércio. Jaqueline sempre teve o desejo de ser mãe, embora ainda não soubesse
como isso seria possível. Nádia, por sua vez, nunca se imaginou mãe ou mesmo cuidando de
uma criança. O casal está junto há 13 anos, mas Nádia diz que só soube desse desejo de
Jaqueline por filhos cinco anos depois do início da relação. Embora não quisesse inicialmente
ser mãe, Nádia apoiou a decisão de sua companheira quando ela decidiu engravidar. Antes de
buscar a clínica de reprodução assistida, Jaqueline e Nádia também pensavam na
possibilidade de incluir algum homem na relação, que seria pai da criança, não apenas um
doador, porém, essa possibilidade também nunca aberta a outras pessoas, sendo restrito
àsconversas internas do casal. Todavia, após muito pensar, elas optam por desistir da ideia,
por julgarem uma decisão bastante problemática, que resultaria na inclusão de uma terceira
pessoa na relação delas. Após descartar essa possibilidade, Jaqueline conversa com sua
ginecologista, que é a pessoa que indica o médico que realizaria o processo. Embora o casal
tivesse chegado a um acordo de que Jaqueline seria a mãe da criança, Nádia desde o início
participou do processo, acompanhando Jaqueline às consultas, inclusive. Jaqueline fez duas
inseminações artificiais e duas fertilizações in vitro, sendo que a última resultou na gravidez
de Gustavo, seu filho de cinco anos.
Jaqueline se denomina mãe de Gustavo e Nádia se denomina madrinha, também é
assim que o menino as trata. Jaqueline e Nádia dizem que a autoridade é bastante dividida
entre as duas, mas que mãe, especialmente no tocante ao afeto, é apenas Jaqueline. A
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Elizabeth e Gabriela –Elizabeth tem 35 anos e trabalha como contadora, Gabriela tem 36
anos e é professora de Educação Física. O casal se conheceu numa casa noturna localizada na
cidade de São Paulo. Gabriela conta que fora abordada por Elizabeth, que é natural de Recife,
mas que estava na cidade acompanhando sua irmã que fazia um tratamento médico à época.
Esse encontro ocorreu no ano de 2007. Após isso, o casal começou a namorar, mas devido ao
tratamento que a irmã de Elizabeth fazia, embora desejassem, elas decidiram não morar juntas
neste primeiro momento. Com o falecimento da sua irmã, Elizabeth se muda para o
apartamento de Gabriela e se estabelece definitivamente na cidade de São Paulo. Em
entrevista, contam que ficaram juntas por dois anos antes de decidirem ter filhos, inclusive
porque a doença da irmã de Elizabeth impossibilitava fazer estes planos. Em tom jocoso,
Gabriela conta que certa vez sugeriu a Elizabeth terem um cachorro e recebeu uma negativa
de sua parceira, pois ela não gostava de cachorros. Diante disso, Gabriela sugere que elas
tenham um filho. Assim, em tom de brincadeira elas abordam a questão do desejo de
experimentar a maternidade. Porém, Elizabeth conta que sempre desejou ser mãe, imaginando
o processo a partir da gravidez, inclusive. Já Gabriela - embora também tivesse o desejo de
ser mãe desde os 15 anos de idade -, não se imaginava grávida. Diante disso, decidem buscar
informações acerca dos procedimentos disponíveis para a reprodução assistida, incluindo
valores e possibilidades de sucesso por tentativa. Durante uma festa familiar, Gabriela
encontra uma prima que era ginecologista e esta prima indica o médico que realizou o
procedimento em Elizabeth. Após marcarem uma consulta, o casal descobriu o real valor do
procedimento e, depois de avaliarem suas finanças, decidem iniciar o processo, escolhendo
como técnica a fertilização in vitro, pelas chances de sucesso. Antes, porém, decidem assumir
que são um casal para suas famílias, especialmente Gabriela. Assim, Elizabeth inicia o
tratamento e a partir da FIV são implantados dois embriões em seu útero. Depois desse
procedimento, o casal viaja para a cidade natal de Elizabeth. Ainda em Recife, o casal recebe
a confirmação da gravidez. Na primeira tentativa, Elizabeth engravidou de Thiago. Durante
todo o processo, elas se apresentavam como um casal. Durante a conversa que tivemos, me
contaram que ambas se consideram mães de Thiago, que está com 1,5 ano. Inclusive
legalmente falando, pois Gabriela entrou na justiça para ter a maternidade reconhecida e a
causa foi deferida. A entrevista foi realizada no apartamento do casal, na cidade de São Paulo.
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Marcela e Vivian – Marcela é médica e tem 38 anos, Vivian é musicista e tem 26 anos. Elas
se conheceram numa casa noturna da cidade de São Paulo durante uma apresentação do grupo
musical de que Vivian faz parte. Embora se conhecessem dessas apresentações, foi durante
uma turnê que o grupo fez fora do país que Marcela e Vivian se aproximaram, pois Marcela
foi com um grupo de amigas para a Europa, onde o grupo de Vivian se apresentaria. O casal
já conta com quatro anos de relação e desde o início o assunto maternidade já era discutido
por elas, especialmente porque Marcela é 12 anos mais velha que Vivian e já tinha a ideia de
ser mãe mesmo antes de conhecê-la. Após dois anos de namoro, Marcela decide iniciar o
tratamento para engravidar. A escolha por Marcela se justifica inicialmente pela idade e
porque, como ocorreu com os demais casais, apenas uma delas desejava engravidar. Embora
ambas quisessem ser mães, era Marcela que imaginava a maternidade a partir da gravidez. Já
Vivian, quando pensava a respeito, aventava a possibilidade de adoção, contudo, com o
encontro do casal e a vontade que Marcela tinha de engravidar, Vivian também assumiu esse
projeto. A partir de uma indicação de Elizabeth e Gabriela, Marcela e Vivian vão para a
primeira clínica de reprodução humana, a mesma que o casal anterior havia utilizado. Porém,
neste primeiro ciclo de tratamento, Marcela não teve qualquer resposta ovariana, o que fez o
médico sugerir uma ovodoação de sua parceira. Porém, inicialmente essa ideia não agradou
Marcela,e com isso o casal buscou outras clínicas. Conforme o tratamento não ia funcionando
como o esperado, elas iam mudando de clínica, ao final, Marcela fez nove FIV, num período
de um ano e quatro meses, em três clínicas diferentes. Na nona tentativa, Vivian interveio e
decidiu ela iniciar o tratamento: os embriões seriam produzidos a partir de seu gameta e do
gameta de um doador anônimo, o mesmo doador usado na última tentativa de Marcela.
Assim, fora implantado no útero de Marcela um óvulo fecundado de Vivian e outro embrião
de Marcela, que se encontrava congelado após o último ciclo. Ao final, o processo resultou
em gravidez, nascendo os gêmeos Pedro e Bianca (1 ano de idade). Assim, ao total foram
feitas 10 fertilizações in vitro, nove com Marcela e uma com Vivian, que fez uma ovodoação
para a parceira. A entrevista ocorreu na residência da família, na cidade de São Paulo.
Patrícia e Clarisse - Patrícia tem 31 anos e Clarisse tem 30 anos, ambas são comerciantes.
Autonomeiam-se mães dos gêmeos Fabrício e Alice, de 3,5 anos. Residentes de uma cidade
metropolitana, no estado de São Paulo. Conheceram-se através de uma amiga em comum.
Depois de três meses de namoro, Clarisse convidou Patrícia para se mudar para seu
apartamento. Após seis meses de relacionamento, Clarisse descobriu sério problema em sua
saúde reprodutiva. Temerosa em perder seu útero, buscou uma clínica de reprodução assistida
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e iniciou os procedimentos para engravidar. Como Clarisse possuía falência ovariana, seu
médico sugeriu que Patrícia cedesse os óvulos a serem fecundados para que Clarisse pudesse
gerar os embriões. Embora desejasse ser mãe, Patrícia nunca quis engravidar, ao passo que
esta era grande vontade de Clarisse. Devido às configurações do caso, o casal recorreu a FIV.
Como os custos do tratamento eram elevados para a condição financeira do casal, por
sugestão do médico que as atendeu, Patrícia cedeu alguns de seus óvulos para um casal que
custeou todo o tratamento de Clarisse e Patrícia. Assim, implantaram três embriões, mas
apenas dois se desenvolveram. Tanto Clarisse quanto Patrícia são nomeadas mães das
crianças. Recentemente Patrícia conquistou na justiça o deferimento de seu pedido de
reconhecimento de dupla maternidade, depois de dois anos de processo. Por sugestão do
casal, nosso encontro ocorreu num shopping em Osasco, onde passamos uma tarde de sábado
acompanhando Clarisse, Patrícia e os filhos do casal, além da presença do irmão de Clarisse e
de sua filha.
Bárbara – tem 49 anos e trabalha há 17 anos como bióloga numa clínica de reprodução
humana.
Noely–é médica e trabalha na clínica faz dois anos, tem 60 anos de idade.
Das discussões de gênero que apontam para uma maternidade tão bem arraigada no
feminino, este capítulo revela alguns pontos importantes acerca dessas famílias e
principalmente dessas mulheres, mães, filhas e pares conjugais.
2.1 “Eu não sabia que profissão eu queria ter, mas já sabia que queria ser mãe!”
Quando se pensa em maternagem, não são incomuns associações que vinculam a “boa
mãe” ao sacrifício. Dentro desta lógica, parece que o amor incondicional e automático pelos
filhos, bem como a plena satisfação ao realizar as tarefas maternas, se encontra bastante
naturalizado e essencializado. Forna (1999) aponta que o estilo de maternagem mais voltado
ao cuidado e responsabilidade amorosa das crianças foi anunciado em 1762, com a publicação
de Émile, livro onde Rousseau criticava as mães que enviavam seus filhos às amas-de-leite,
pois acreditava que eram as próprias mães que deveriam amamentar e priorizar a criação de
seus filhos. Badinter (1985) esclarece que a partir do século XVIII houve um florescimento de
ideias concernente aos sentimentos que os pais deveriam ter com relação aos filhos,
especialmente no tocante ao amor materno. A autora chega a afirmar que o médico parteiro
Philippe Hecquet desde 1708, Crousaz, em 1722, e outros autores já haviam feito a lista dos
deveres da boa mãe, mas que nenhum deles teve a importância que a publicação de Rousseau
teve, tanto com os seus contemporâneos, quanto, e principalmente, com os pensadores dos
séculos XIX e XX. O pensamento rousseauniano cristalizou as novas ideias e deu verdadeiro
impulso inicial à família moderna, ou seja, a família fundada no amor materno.
Elisabeth Badinter (1985) acrescenta que durante longos séculos, a teologia cristã, na
figura de Santo Agostinho, elaborou imagem da infância bastante diferente da que temos hoje.
Para tal construção, a criança assim que nascia era símbolo da força do mal, sendo um ser
imperfeito, “esmagado pelo peso do pecado original” (p. 54). A autora prossegue dizendo que
à época, pedagogos orientavam aos pais frieza em relação aos filhos, visto que estes teriam a
malignidade natural, que deveria ser combatida. Neste sentido, mimos e atitudes imersos em
ternura não eram bem-vindos, não sendo essa a atitude materna esperada socialmente,
30
pensamento que se manteve hegemônico até o final do século XVII. Hegemônicas ao menos
entre filósofos, teólogos e pedagogos. Estas produções de sentido tinham certa influência
social nas classes dominantes e cultas, mas se mostravam mais limitadas nos demais meios.
Noutros meios, devido aos cuidados que especialmente os lactentes necessitavam, as crianças
eram mais percebidas como estorvos, do que como frutos do mal.
Sem pretender esgotar o assunto ou simplificá-lo em poucas linhas, o que se deseja
discutir é como essas generalizações acerca do amor materno como inerente à mulher,
atribuindo possível patologia àquela que não manifestasse tal sentimento, foram construídas
em nossa sociedade, trazendo a necessidade de incluir estas discussões num cenário muito
mais complexo do que se apresenta no senso comum. Assim, compreender a exaltação do
amor materno como ideal é algo bem mais recente do que se imagina, essa concepção foi
alastrada pela sociedade, nas diversas culturas e classes sociais. Embora o amor materno
como sentimento talvez não seja nenhuma novidade, o que se aponta é a questão da exaltação
do amor naturalizando seu sentido e amarrando-o, necessariamente, às mães, à maternidade,
uma boa mãe que ama incondicionalmente e irrestritamente seus filhos, mesmo que para tal
tenha que abrir mão, ou destinar menor importância às demais relações.
A busca pela maternidade acrescenta ingredientes interessantes às relações dessas
mulheres consigo, com suas companheiras e com suas famílias extensas. Ao longo dos
encontros que tivemos, não foi incomum a construção de relatos carregados de paixão quando
se falava em maternidade, incluindo, ao menos para uma das componentes do par conjugal, a
experiência do materno em seu próprio corpo, com o evento da gravidez. Para estas mulheres,
a maternidade precedia a sexualidade exercida, neste caso, a homossexualidade. Precedia,
inclusive, demais escolhas e buscas pessoais, como a escolha profissional, por exemplo. Dito
de diferentes formas, ouvimos muitas vezes que a maternidade era uma certeza que antecedia
escolhas, descobertas e relações – quase colada a uma condição inata de mulher que
respirariam desde o nascimento.
Portanto, discutir maternidade nestes espaços vai além de discutir o exercício da
sexualidade, implica em por em discussão redes e construções sociais que por vezes parecem
colocar o materno e o feminino num mesmo agenciamento, aglutinando elementos dessas
construções e ajudando a significar estes elementos.
Ao discutirmos maternidades, femininos e sexualidades torna-se importante perceber
estes conceitos à luz de construções teóricas que retiram a carga determinista e biologizante
de algumas correntes científicas. Neste sentido, a já célebre frase da filósofa francesa Simone
de Beauvoir "não se nasce mulher, mas torna-se mulher" (BEAUVOIR, 1949 apud
31
SCAVONE, 2001) nos dá o tom da inserção dessas discussões neste trabalho. A autora, ao
publicar no ano de 1949 o livro Segundo Sexo, coloca em pauta discussões que serviram para
problematizar visões deterministas da ciência e dos dogmatismos religiosos, desconstruindo o
ser em si, mas colocando, ainda, que o ser era tornar-se. As principais ideias desse livro foram
tomadas como marco que fundamentava teoricamente as matrizes do feminismo
contemporâneo. Especialmente por questionar a função da maternidade no contexto do pós-
guerra, onde ondas conservadoras atribuíam especial valor à moral e aos bons costumes,
defendidos a partir da promoção da sagrada família. Defendendo a liberdade sexual, a
contracepção e o aborto, as teses desse livro são apontadas como marco de passagem para o
feminismo centrado na mulher-sujeito, onde se postulava que o pessoal também era político.
Dessa politização da intimidade surgem elementos para a passagem ao feminismo
contemporâneo. Neste sentido, um dos elementos mais radicais dessa acepção estava
relacionado à maternidade, onde se buscava refutar o determinismo biológico que atribuía às
mulheres o destino social de serem mães. A maternidade começava, então, a ser
compreendida como uma construção social, que estabelecia o lugar ocupado tanto
socialmente quanto em suas famílias pelas mulheres. Apontando relações de poder entre os
gêneros, denunciando a dominação masculina sobre o gênero feminino (SCAVONE, 2001).
Contribuições feministas também trouxeram à tona discussões acerca da construção
científica do corpo feminino, trazendo, inclusive, apontamentos sobre a ciência também como
um construto social. Nesse sentido, cabe destacar que amaternidade é uma construção
histórica e social, ainda bastante presente no feminino atual e nas construções discursivas que
produzimos no campo. Construção histórica retroalimentada pela própria ciência, que por
largo período percebeu a saúde feminina somente no tocante à maternidade, essencializando
os conceitos. Por este motivo, torna-se salutar observar o trabalho de Emily Martin (2006),
que nos aponta que, historicamente, na cultura Ocidental - especialmente a partir do
desenvolvimento das sociedades capitalistas - algumas instâncias, como o mundo do trabalho
e a esfera familiar, eram claramente separados, sendo a vida da população dividida entre a
esfera pública e a privada. Aos homens era reservado, sobretudo, o domínio público, onde a
vida social acontecia, incluindo aí a produção cultural e o trabalho assalariado; já, às mulheres
das famílias mais abastadas, era reservado o mundo familiar, no espaço delimitado pelas
paredes das residências, onde havia o reforço e a naturalização, para o caso feminino, das
funções relacionadas ao gênero e ao corpo feminino restrito à procriação, e, dependendo da
época, o reforço do conteúdo afetivo dos relacionamentos ficava em primeiro lugar. Em
outras, era a herança e o nome de família que contava. Cabe ressaltar, todavia, que devido à
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vinham à tona, especialmente para aquelas que almejavam a gravidez, como aconteceu com
Carla, que em entrevista disse que embora ainda não soubesse que profissão iria ter, sabia que
seria mãe, pois reconhecia este desejo mesmo antes de começar a ter suas experiências
afetivas e sexuais com mulheres. Carla diz que sua homossexualidade a deixou em dúvida
quanto à possibilidade de ser mãe, acreditando inicialmente que teria que “abrir mão deste
sonho”, em suas palavras. Ou como aconteceu com Marcela, que revela que uma das
primeiras preocupações de sua mãe quando ela assumiu ser lésbica foi o fato de sua filha não
se tornar mãe, e ela, consequentemente, avó. Como se para a mãe da Marcela o exercício da
homossexualidade da filha significasse um furto de seu desejo e direito de ser avó, que
imagina que ao ter uma filha lésbica não poderia prosseguir com aquilo que idealizava para
sua filha mulher e para ela própria.Salientando, todavia, que mesmo nesses casos, outros
elementos pertinentes ao exercício da homossexualidade feminina entram em cena, inclusive
porque ainda em nossa sociedade práticas sexuais distintas das heterossexuais monogâmicas
são permeadas no imaginário social por pânicos morais – especialmente quando incluem o
cuidado parental - e tidas como desviantes/anormais por alguns setores sociais.
Portanto, assim como discutimos a construção do feminino e da maternidade e como
se articulam em nossa sociedade, o mesmo cabe destacar em relação à sexualidade, que
também deve ser compreendida como uma invenção social, construída historicamente a partir
de diferentes discursos sobre o sexo, que regulam, normatizam, constroem verdades e
instauram saberes (LOURO, 2000, p.12). Foucault (2003) revela a sexualidade como um
dispositivo histórico, funcionando como uma
Já Nádia revela que tanto a gravidez quanto ser responsável pelos cuidados de uma
criança nunca foram desejos seus, mas a fim de atender a um anseio de sua companheira, ela
aceitou participar desse projeto, assumindo uma função não muito bem definida naquela
família, pois embora assuma os cuidados de Gustavo, ela não se reconhece ou é reconhecida
como mãe do menino. Aqui é interessante pensarmos na construção da maternidade a partir de
pertencimentos biológicos e como essa relação parece valorizada pelos casais entrevistados,
especialmente este. Mas, a despeito disso, parece que a maternidade enquanto projeto comum
facilita para que a “outra mãe”, aquela que não possui vínculos biológicos, se perceba como
tal (HERRERA, 2007). Todavia, a chegada do menino modifica os projetos iniciais de Nádia,
que com a convivência passa a estabelecer vínculos afetivos bastante sólidos com o menino,
ainda sem querer se transformar em mãe. Se o reconhecimento não é bastante específico, a
afetividade o é:
Nádia: Não, nunca tive essa vontade. Nem nunca pensei em criar uma criança
(risos). Só que hoje a gente acaba se perguntando: como que a gente ia viver sem
isso? [...] Quando a gente ama, a gente quer fazer a outra pessoa feliz, e eu tinha
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certeza que isso iria fazê-la, que ela precisava disso para ser feliz, então, não tinha
como, era um desejo muito forte.
Nádia: é.... Que veio antes, mas que ela só começou a colocar isso para mim uns
cinco anos depois, que esse desejo era grande, assim [as duas riem] (Nádia,
Madrinha, 46 anos).
Helena: e eu sempre falava que estava pronta para a hora que ela quisesse,
porque era como se eu estivesse esperando ela se resolver porque ela não estava
conseguindo fechar nada, assim...
Portanto, neste casal, que compartilhava o desejo pela maternidade, a escolha por qual
delas iriam engravidar levou em conta a configuração pessoal de cada uma, Carla sempre quis
engravidar, já Helena tinha medo da gravidez:
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Carla: ela achava que ela poderia adoecer, alguma coisa assim...de ter alguma
complicação.
Carla: eu acho que para mim seria muito difícil abrir mão desta etapa, eu
queria muito engravidar... e aí foi muito tranquilo, ela com esta posição, assim...
Helena: é... eu não me sinto incompleta desta maneira, era assim que tinha que
ser mesmo, não tinha como ser diferente.
Algo parecido aconteceu com Elizabeth e Gabriela, pois embora Gabriela desejasse ser
mãe fazia bastante tempo, apenas Elizabeth desejava engravidar. O casal está junto há cinco
anos e após dois anos de relação decidiram ampliar a família, assunto surgido de forma
bastante espontânea entre elas, pois logo que decidiram morar juntas, Gabriela sugeriu terem
um cachorro, mas, por conta de experiências ruins com esses animais, Elizabeth refutou a
ideia. Na sequência, Gabriela sugeriu terem um filho ao invés do cachorro, já que ambas
desejavam ter filhos:
Elizabeth: [...] eu queria ter filho, eu queria gerar. Então, entre ter um cachorrinho,
que a gente brinca, para ter um trabalho de cuidar de um cachorro, eu tenho um
filho, né? Meio que é uma comparação...tipo... maseu tinha muita vontade de ter
um filho, tinha vontade de gerar, de ver, de ter a barriga. Então, essa foi a
primeira coisa que fez a gente... e como não teria como ocorrer entre nós
duas, a gente teria que optar por um meio artificial, fosse a inseminação
artificial ou a fertilização, como a fertilização tinha maiores chances e a
inseminação teria quase o mesmo preço, uma vez que poderíamos fazer mais de
uma vez, então a escolha foi essa. A primordial foi que eu queria ser mãe, ela
também, mas não queria gerar, já eu queria.
Gabriela: eu queria adotar, só que tudo é tão trabalhoso, que quando ela quis
gerar, eu iria me satisfazer, sendo mãe no ato, e não ia passar por um
processo de fila, de não sei o que, entendeu? Então, juntou o útil ao agradável,
mas eu adotaria... não adotei porque ela iria me satisfazer e eu adotei, né? A
questão é essa, eu adotei o Thiago. Ele não é meu filho de sangue, eu adotei o
Thiago, ela gerou o Thiago.
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Com Patrícia e Clarisse o relacionamento não era tão longo, mas um problema na
saúde reprodutiva de Clarisse fez com que o casal apressasse a decisão pela maternidade.
Após seis meses de relação, Clarisse inicia os processos para engravidar, por conta de uma
endometriose e por ter uma falência ovariana, ela gera os óvulos de sua parceira fecundados
por um doador anônimo, embora o casal traga que o desejo de ser mãe era tanto de uma
quanto da outra:
Patrícia [...] uma das nossas afinidades era querer ter filho. Falei, olha, quero
constituir família.
Clarisse: Uns 6 meses depois, que eu comecei a ficar muito ruim da endometriose,
comecei a ter crises e mais crises, vivia internada, aí o médico falou, olha.... Na
verdade a gente só queria ter filho depois de se formar. Ela tava na faculdade, aí
queria esperar ela se formar. Eu nem pensava em fazer faculdade, mas queria
esperar um pouco, se estruturar, né?
Patrícia: Aí o médico perguntou: “Você tem filhos?” Não, não tenho... “então,
tenha porque se não ano que vem corre o risco de você perder o ovário, você já
não tem um, você vai perder o outro e pode ser que a gente tenha que tirar o seu
útero também”. E aí que a gente apressou as coisas.
Clarisse: Desde o começo sempre foi dito que eu iria gerar, ela nunca teve
vontade também. [...] Então, eu falei, bom, então eu vou engravidar porque eu
quero ter.
Já no caso de Marcela e Vivian, foi a idade que determinou quem do casal iria
engravidar primeiro. Marcela relata que mesmo antes de conhecer Vivian já havia decidido
pela maternidade. Aos 34 anos, quando começou sua relação com sua companheira atual,
Vivian, Marcela já a informou sobre seus planos. Após dois anos de relacionamento elas
começaram os procedimentos para engravidar. Marcela relata que fora a partir dos trintas anos
que o desejo de engravidar se intensificou. Já Vivian, doze anos mais jovem que sua
companheira, embora desejasse ser mãe, não pensava na possibilidade de engravidar, ao
menos naquele momento:
Marcela: desde início porque eu sou bem mais velha que ela e já era uma vontade
minha, que eu já estava em outro relacionamento estável, já era uma coisa pensada
e aí, quando eu a conheci, eu falei: olha, eu quero ser mãe. Então, ela comprou a
ideia (risos). Apesar de ser novinha, né? (risos)
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Marcela: depois dos trinta. Acho que depois dos trinta que começou a: “se eu
quiser ser mãe, tem que começar a pensar sobre isso porque o tempo está
passando”. E aí, com uns 32 anos eu pensei: “ah, daqui a uns dois anos...” e aí
passavam dois anos e: “daqui a dois anos...” mas aí chegou uma hora que: “ah,
não, com 36 anos já está na hora de pensar”.
Sobre a escolha pela medicina reprodutiva, Marcela acrescenta que embora a gravidez
a interessasse, a crença de que seus filhos teriam maior aceitação em sua família de origem –
por terem laços biológicos presentes – também fora levada em consideração:
Eu acho que tudo, primeiro porque eu achava que era assim, eu queria passar,
desde o início, pelo processo de gravidez, eu acho que tem um vínculo maior,
desde o início, e também pela questão de família, eu acho que seria mais bem
aceito também na minha família. Mas eu acho que mais mesmo porque eu queria
desde o comecinho, assim, sentir crescer ali dentro, e acompanhar todo esse
processo, até porque a adoção também é super difícil, né? Conseguir um bebê
pequenininho, recém-nascido, a gente sabe da dificuldade que é, então, eu queria
acompanhar desde o início, pequenininho, passar por todas as fases(Marcela, Mãe,
38 anos).
Sobre a maternidade e a gestação, Vivian se diz jovem demais para engravidar, o que
chama atenção, pois embora ela se julgue jovem para a gestação, ela não faz menção a isto
quando se trata de exercer a maternidade, pois embora não tenha gerado, Vivian também é
mãe de Pedro e Bianca, tanto por assumir as responsabilidades parentais quanto por ter
reconhecimento social e legal da maternidade.
Destas tramas apresentadas, alguns fios parecem conectar essas histórias. Embora em
cada experiência a maternidade se (re)produza com peculiaridades apresentadas em
sequências ou construções que não são necessariamente similares, ela conecta essas histórias e
perpassa a construção desse feminino, mostrando, ainda, que a maternidade vai além do
exercício da homossexualidade dessas mulheres.
O exercício da homossexualidade feminina é ingrediente presentificado nas
composições discursivas que produzimos a partir dessas experiências, não sendo, portanto,
mero coadjuvante nestes cenários. No entanto, ainda gera o que tem sido definido como
pânico moral, entendido aqui como mecanismos de resistência e controle da transformação
societária, que surgem a partir do medo social com relações às mudanças, especialmente as
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que tangem instituições como a familiar, que alguns grupos sociais conservadores apresentam
(MISKOLCI, 2007). Homossexualidades e responsabilidades parentais ainda suscitam esse
tido de reação em nossa sociedade.
A reprodução do modelo heterocentrista talvez seja uma tentativa de legitimar essa
composição familiar, visto que as indagações acerca da sexualidade dessas mães pretendem
colocar em discussão a legitimidade dessas famílias e a qualidade dos cuidados parentais.
Ainda que saibamos que cuidados parentais e o exercício da sexualidade dos responsáveis por
tais cuidados são esferas distintas da vida, conectadas, mas referentes a aspectos variados da
vida do sujeito (UZIEL, 2007), esta relação direta ainda é constantemente estabelecida por
aqueles que desejam refutar a legitimidade dessas famílias, usando a homossexualidade dos
pais como fator desqualificante quando do cuidado com os filhos, construções sobremaneira
homofóbicas e desprovidas de quaisquer comprovações por práticas acadêmicas e de pesquisa
que nossa sociedade elege como reconhecidas.
De toda forma, cabe retomar que as discussões de gênero, que abordavam a
maternidade em múltiplas facetas, ampliaram a possibilidade de discuti-la, podendo tanto ser
abordada como um símbolo de realização feminina – o que parte das falas das entrevistadas
nos traz – quanto ainda como símbolo da opressão feminina, numa relação de poder entre os
gêneros – como insiste certa literatura feminista, embora na fala de nossas entrevistadas esta
crítica não apareça. Portanto, ampliando as possibilidades de compreensão deste fenômeno
complexo, localizado como um símbolo construído ao longo da história, atravessado tanto
cultural quanto politicamente, sendo resultado das relações de poder e dominação de um sexo
sobre o outro.
Todavia, essas discussões nos possibilitam também pensar a maternidade como
constituinte de um tipo de organização institucional social que possui como núcleo central
articulador a família. Assim, a maternidade é localizada em um contexto cada vez mais
complexo, próprio das sociedades contemporâneas (SCAVONE, 2001). Portanto, falar que
também pertence a estas entrevistadas lésbicas o desejo de acesso à maternidade não deve ser
recebido com espanto, pois as leituras anteriores nos permitem compreender que a
maternidade como dispositivo é fortemente articulada e construída/legitimada em nossa
sociedade como constitutiva do feminino, que também constrói as entrevistadas. Assim, antes
mesmo de vir ao mundo com o sexo feminino – ou com uma parte anatômica que a legitima
como pertencente ao sexo feminino no momento do nascimento –, as meninas já são
generificadas nas barrigas de suas mães, ou até antes disso, já são imaginadas a partir de uma
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série de prescrições de gênero que nos ensinam a sermos mulheres, seja na forma de agirmos,
seja modo de vestirmos, e ainda na forma como nos relacionamos como os demais.
Como mulher, da forma que fui construída, me construí e construo, trago também
experiências pessoais a este respeito. Ao buscar na memória lembranças do que já vivi,
lembro-me de ouvir, quando criança, uma série de conselhos, especialmente de minha mãe,
que diziam respeito ao modo como eu deveria falar, andar, sentar e agir. Meninas deveriam
ter “bons modos” e não ficar “agindo feito meninos”, “meninas sentam com as pernas
fechadas”, “meninas não devem ficar brigando feito meninos, devem ser delicadas”,
“brincadeiras de luta não são coisas de meninas, meninas brincam com bonecas”. Dentre
tantas outras coisas que me lembro, acho que o brincar de bonecas e ter bons modos são as
instruções que mais chamam atenção, pois advertem sobre a delicadeza necessária para ser
mulher, retirando daí qualquer tipo de movimento agressivo, que seria referenciado ao
masculino, e também o aprender a ser mãe, cuidando e sendo responsável, em certo sentido,
pela boneca, que reproduz cada vez mais traços dos bebês de verdade. Em muitos casos, as
meninas já ganham sua primeira boneca antes mesmo do nascimento. E é interessante pensar
como esta relação entre menina e boneca também a conecta a ser mais ou menos feminina, e
como o feminino também está conectado ao materno. Para exemplificar o que trazemos, cabe
destacar a conversa que tivemos com Marcela e Vivian. Durante nosso encontro, falamos
sobre a preferência acerca do gênero/sexo dos filhos e Marcela destaca que antes de começar
sua relação com Vivian ela desejava ter uma menina, mas que Vivian tinha preferência por
meninos, o que acabou fazendo com que Marcela também desejasse que seu bebê fosse um
menino:
Vivian: eu sempre quis ter um menino, mas se viesse uma menina seria super
bem-vinda.
brincar da rua, e jogava bola, skate, brincadeiras, acho, mais de meninos, acho
que seria mais fácil.
Marcela: pra mim, tá ótimo, porque eu também brinquei de boneca, Vivian que
pulou toda essa fase (risos).
Como elas tiveram um menino e uma menina, Marcela logo faz menção ao fato de ter
brincado de boneca quando jovem, afirmando ter competência para dar conta desse universo
feminino, destacando que a vinda de sua filha também seria festejada, mesmo com todos os
apontamentos e críticas que fez acerca das meninas, trazendo o senso comum bastante
presente da menina delicada e do menino mais ativo, tanto nos comportamentos apresentados
quanto nas brincadeiras. Interessante pensar que elas destacam que quando crianças gostavam
de brincadeiras mais ativas, mas quando optam por um menino, e usam este trecho para
legitimar a escolha, o casal partilha também das prescrições de gênero existentes em muitos
espaços, inclusive no brincar. Percebe-se uma naturalização nas falas e compartilhamentos de
crenças e valores que ligam o feminino e o masculino a modos de agir, pensar e se relacionar
bastante específicos, mas que devem ser entendidos nessas linhas de forças que
problematizamos ao longo desta discussão. Com Vivian e Marcela, todavia, este não
questionamento talvez se justifique quando elas explicam seus gostos por esportes ou
atividades mais ativas em função de serem lésbicas, o que não as faria questionar o feminino e
as prescrições de gênero, porque parece que aqui a orientação sexual se colocaria à frente do
gênero.
O que se aponta aqui não é o fato de esta ou aquela brincadeira ser mais adequada que
outra, o que se discute é a distinção entre “coisas de meninos” e “coisas de meninas” e como
essas construções estão presentes nas produções de subjetividades e naturalizadas por quem,
inclusive, rompe com alguns acordos sociais de adequação entre corpo, gênero e gosto pelo
sexo oposto. E essas características prescritas estariam presentes antes mesmo do nascimento,
ou do sujeito ser constituído como tal, ou antes mesmo de ter autonomia para suas escolhas e
decisões. Assim, antes mesmo de perceber se gostava de meninos ou meninas, eu já estava
aprendendo a ser mulher. Se aprofundarmos essa discussão, chegaremos à conclusão de que a
reprodução de gênero estabelecida nos remete a uma configuração hegemônica, portanto
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heterocentrista, que entendida como norma, extrapola as práticas, inclusive. Embora essas
mulheres vivam práticas sexuais diferentes das hegemônicas, elas ainda vivem numa
sociedade que produz e reproduz valores e crenças heterocentristas. Embora alterem em parte
essas configurações, elas também ajudam a reproduzi-la.
As mensagens dos agentes socializadores que impelem a maior parte dos seres
humanos a buscar vivências conjugais como objetivo de vida fundamental, mesmo
que para isso tenham de adaptar tais mensagens, ignorando o conteúdo
heterocêntrico dos valores transmitidos (MELLO, 2005, p.21).
lésbicas, pois relatos de modificação das relações conjugais com a chegada dos filhos também
ocorrem com pares heterossexuais. Para Bozon (1995), “as consequências mais importantes
de uma experiência conjugal são de qualquer modo os filhos” (p.133).
Dos casais entrevistados, Jaqueline e Nádia e Carla e Helena são as que contam com
maior tempo de relação, ambos os casais já estão juntos há mais de uma década. Como vimos
anteriormente, tanto Carla e Helena, quanto Jaqueline e Nádia constituíram suas relações bem
antes de o projeto materno ser colocado em prática, mas ao contrário do que aconteceu com
Carla e Helena, a maternidade não era um projeto comum na relação de Jaqueline e Nádia,
embora o desejo materno fosse bastante forte para Jaqueline. Como já dissemos, o mesmo não
poderia ser dito em relação à Nádia, que sequer se imaginava responsável pelos cuidados de
uma criança. Embora parecesse figurar como projeto de realização pessoal, no caso de Carla e
Helena, a maternidade parecia contemplar a completude do casal, que teria um filho como
fruto de sua relação. Já com Jaqueline, a maternidade estava muito mais restrita ao desejo
pessoal do que à realização do desejo de completude do casal com a chegada de Gustavo.
Com elas a tensão entre a conjugalidade e a parentalidade foi mais explorada,
aparecendo quando falávamos sobre se elas iriam ter novos filhos. Ao responder que não,
Nádia abordou que a interferência na vida conjugal era muito grande, pois, segundo elas,
Jaqueline ficara muito voltada ao filho, especialmente nos primeiros anos de vida de Gustavo.
Cabia à Nádia lembrar que além de mãe Jaqueline ainda era companheira: “‘a gente é um
casal! ’. Era: ‘olha, não é só trocar fralda, não é só olhar para ele’. Ela me lembrou bastante.”
Marcela e Vivian também comentam sobre como a maternidade, ou mais
especificamente, como o longo e desgastante processo de reprodução assistida alterou a
dinâmica do casal. Interessante porque elas abordam a questão hormonal como ingrediente
importante para essa alteração, pois durante um ano e quatro meses de tentativas e insucessos,
tanto a ansiedade, especialmente de Marcela, quanto a descarga excessiva de hormônios
colocou Marcela no que Vivian denominou “TPM constante”:
Vivian: um ano e quatro meses, mais nove meses de gestação, que altera também,
totalmente, depois ainda tem depois que nasce, mais um pouquinho (risos), mas já
tá melhorando... (risos).
Mas o casal que mais explorou a questão da alteração conjugal foi Clarisse e Patrícia,
o assunto surgiu em vários momentos. No shopping onde nos encontramos, antes de
iniciarmos a gravação, tivemos longo tempo para conversarmos, o que facilitou
estabelecermos uma relação de confiança que permitiu, talvez, que o casal se sentisse livre
para abordar questões que tocassem mais profundamente em suas dinâmicas pessoais. O
assunto surgiu pela primeira vez quando falávamos sobre a carência de atenção e afeto que
Clarisse, em suas palavras, sentiu durante o período de gravidez. Ela comentou que quando
estava grávida se sentia mais sensível, o que demandava atenção especial de sua companheira,
Patrícia. O interessante é que Patrícia aponta que esta carência fora modificada quando os
gêmeos Fabrício e Alice nasceram, pois, segundo Patrícia, Clarisse passou a dar atenção
somente aos filhos, esquecendo-se que ainda compunha um par conjugal com Patrícia que,
por sua vez, demonstrou desconforto com esta situação:
Eu sinto até hoje essa carência, porque ela é mãe em tempo integral. Eu consigo
separar um pouco, porque eu sinto falta da relação que a gente tinha. [...]
Então, eu acho que às vezes ela me troca por eles. Daí ela diz: ué, mas você não
me trocaria por eles? E eu falo: não. Tudo tem a sua hora. Eu dou a minha vida por
eles, mas a hora que é pra nós é pra nós, senão a gente não vai existir mais daqui
a um tempo. Nenhum relacionamento resiste a só estresse e obrigações (Patrícia,
Mãe, 31 anos)
Noutro momento, Fabrício, uma criança que necessita de cuidados especiais, estava
bastante incomodado em ficar sentado e se agitara.Clarisse, então, passou a dar mais atenção a
ele, tentando oferecer maior conforto ao filho para que se acalmasse. Neste momento,
Patrícia, que se sentara de frente para mim, observou:
E ele é assim com ela, e só com ela. Se eu pegar, não tá bom. Os dois têm um
vínculo inexplicável. E a Alice comigo. Com ela eu já sou mais dura: é hora de
dormir, é hora de dormir. E com ele, ela é muito mole. Pelo fato de ele ser
especial, ou não, porque ela também faz isso com a Alice. Eu falo: você estraga
eles. E com isso a gente não tem tempo. Até hoje eu sinto falta da atenção que
ela dava para mim. Eu chegava do trabalho, meu pijama estava em cima da cama,
hoje não existe mais, não tem(Patrícia, Mãe, 31 anos).
filha, respondi que não, mas quis saber se eu desejava ter filhos e antes que eu respondesse me
falou para pensar bastante antes de decidir, pois eu deixaria de ser esposa para ser mãe.
Clarisse, que acompanhava toda a conversa, apenas assentiu com a cabeça.
O que se observa aqui é que a chegada de novos elementos altera a dinâmica das
relações já estabelecidas. Quando passam a ser mães, novas necessidades entram em cena. Se
antes o par conjugal tinha maior tempo para as demandas do casal, agora essa atenção será
divida para dar conta das necessidades dos filhos, o que não parece destoar das configurações
heterossexuais, pois também ali não são incomuns relatos de alterações nas relações com a
chegada dos filhos. Necessariamente, isto não significa dizer que haja um apagamento do
casal, mas novas negociações passam a ser necessárias para que contemplem tanto a
parentalidade quanto a conjugalidade.
De toda forma, pensarmos sobre as significações que o exercício da maternidade
possui em nossa cultura nos ajuda a contextualizar estas questões. Destas construções, como
já destacamos, a incondicionalidade do amor materno representa importante impactonas
relações conjugais, pois, uma vez mães, a maternidade passa a ser o aspecto fundamental de
suas vidas. Se antes o amor pelas companheiras fosse talvez o sentimento mais intenso, o
amor que sentirão pelos filhos será ainda maior.
Além das dinâmicas e novas relações que a chegada dos filhos traz para estes casais de
mulheres, pensar tanto as relações de gênero quanto as próprias construções acerca do
materno que percorrem estes lares nos ajuda a problematizar as alterações, muitas vezes
indesejadas, que a maternidade traz para o casal. Pois a atenção que antes era destinada
absolutamente ao casal agora se encontra alterada. Especialmente se levarmos em
consideração a extensa valorização que o mito do amor materno possui socialmente, o que
legitimaria maior atenção aos filhos. Além disso, as negociações que envolvem decisões
quanto às dinâmicas familiares também figuram como elemento para que a relação conjugal
se altere, se antes eram apenas companheiras, agora são além, são mães. Entram em cena
negociações que envolvem os cuidados parentais, decisões que envolvem a rotina familiar e a
própria atenção que os filhos oferecem a uma ou a outra também parece gerar certos
sentimentos.
Assim como Patrícia observa que Fabrício é mais próximo à Clarisse, Nádia, ainda
que seja reconhecida como madrinha, também falou sobre isso. Embora ela e o menino
tenham uma rotina de convívio, Nádia se queixa da falta de carinho espontâneo, em suas
palavras, de Gustavo para com ela:
48
Nádia: [...] eu fico desejando, um pouco, assim, que ele viesse... de manhã ele
chega e vai para o colo dela, é chamego, chamego... e eu não tenho nada de
manhã, de manhã é zero (risos). Mas, de noite, eu vou, deito com ele, leio
história...
Jaqueline: é só ela.
Jaqueline: ela sente falta de receber essa atenção pela manhã (risos)
Quando falávamos sobre a rotina familiar, Carla e Helena também trouxeram algumas
negociações que estabelecem para cuidarem dos gêmeos Bruno e Daniel, negociações que
também podem gerar atritos, especialmente quando as posturas de cada uma sugerem
caminhos distintos. Carla define Helena com mais metódica que ela. Como passa a maior
parte do tempo com os filhos, Helena fica responsável pela rotina dos meninos, o que inclui
alimentação, escola, lazer e demais cuidados, já Carla, como passa a maior parte do tempo
fora de casa trabalhando, tem um tempo mais reduzido para ficar com eles durante a semana.
Para Helena, o estabelecimento de rotinas e horários para os filhos é tão importante para eles
quanto para ela, que ao final de uma rotina de trabalho materno necessita de tempo para
descansar:
[...] e eu sou realmente mais metódica do que ela, então, eles precisam ter uma
organização, precisam ter hora, hora para ir para escola, hora para dormir. Hora
para dormir também, porque eu também fico cansada, então, no final do dia, eu
quero que acabe, quero colocá-los para dormir para eu poder dar uma relaxada. E
com ela, como ela vê menos, pois sai de casa, no máximo, dez da manhã, e quando
chega eles estão dormindo. Então, quando ela pode ficar, quando ela coloca para
dormir, eles vão dormir mais tarde. Até mesmo para que ela possa curtir
isso(Helena, Mãe, 43 anos).
Helena também possui grande preocupação com a alimentação dos filhos, já Carla
parece menos exigente neste sentido. Quando encontramos o casal, era numa segunda-feira,
dois dias após a festa de aniversário de cinco anos de Gustavo, filho de Jaqueline, em que
foram distribuídos kits com doces para as crianças. Embora Helena evite que seus filhos
comam doces ou bebam refrigerantes, houve uma concessão durante a festa. Interessante
acompanharmos as negociações e, até mesmo, tensões do casal quanto a isso:
Carla: é, mas ela é bastante ligada em alimentação saudável, então, eles não
comem bala, refrigerante eles nunca tomaram, aí, no sábado a gente foi
aoaniversário do filho da Jaqueline, então eles voltaram com aquele saco cheio de
bala, e eles ficam alucinados com isso, mas ela já fica incomodada. Eu até tento
tirar uma paçoca, algo assim, mas...
49
Helena: pois é, aí ontem [um dia depois da festa] o café da manhã deles foi cheio
de porcarias... chocolate...
Carla: não era chocolate, era aquele creminho para o café da manhã.
Helena: era.
Carla: então, eu nunca vou comprar para eles comerem no café da manhã Nutella,
mas, se veio no saquinho...
Helena: é, mas hoje o Daniel acordou com dor na barriga...foi o dia inteiro ontem
comendo porcaria...
Carla: às vezes eu acho que é demais e de vez em quando eu libero. Não vou
comprar, se estiver com o primo comendo, eu não chamo atenção, mas ela não
gosta...
Portanto, são vários os atravessamentos que incidem nestas famílias e que podem
impactar a relação conjugal, podem inclusive trazer elementos que aproximem estas mulheres,
colocando-as numa relação de contato mais duradoura, pois mesmo em caso de separação
existirão os filhos para conectá-las. A relação conjugal pode deixar de existir, mas a
parentalidade, a princípio, não. Não se trata de uma relação negociável ou abdicável, da
maternidade elas não podem se separar.
2.3 Minha filha é lésbica, mas eu sou avó! A maternidade ressignificando as relações
familiares
Todavia, se com alguns casais a chegada dos filhos representa certa perda na qualidade
da conjugalidade, o mesmo não se observou com relação às novas significações familiares
que a ampliação familiar propiciou. Interessante perceber como a maternidade dessas
mulheres amplifica e modifica as relações e redes de pertencimento em suas famílias de
origem. Se antes a homossexualidade das filhas dificultava maior aproximação familiar, a
chegada dos netos modifica com frequência este cenário. Necessariamente não significa dizer
50
que ao tornarem-se mães essas mulheres passem a ser mais valorizadas em suas famílias, mas
a chegada da maternidade ou mesmo a maternidade como um projeto faz como que suas
relações afetivo-conjugais sejam reconhecidas naqueles ambientes. Se antes a companheira
era reconhecida ou denominada “amiga”, agora o mesmo não pode ser manter.
Com a maternidade, a sexualidade dessas mulheres passa a ser reconhecida em
ambientes que a dissimulavam, ou ainda, a sexualidade passa a ser ressignificada, pois se
antes era “um desvio”, a maternidade parece aproximar da norma. Desvia-se o foco do sexual
e o direciona para o familiar, para o parental. Parece que a maternidade purifica a sexualidade
dessas mulheres, retirando o estigma de promiscuidade que a homossexualidade carrega, pois
agora se trata de um casal com filhos, afastando-se quanto mais do profano e aproximando-se
da sagrada família.
Portanto, ao mesmo tempo em que visibiliza essa conjugalidade que antes não era
assim nomeada, a maternidade parece atualizar as prescrições de gênero que inserem estas
mulheres numa dinâmica que não destoa do socialmente esperado, pois agora, acima de tudo,
são mães: cuidadosas, protetoras, sagradas. Portanto, movimentos de entrada e saída que
tangenciam a homossexualidade dessas mulheres, mas que normatizam estas performances a
partir do materno e das relações que são estabelecidas a partir daí. Uma sexualidade, ou
melhor, uma conjugalidade assumida, nomeada, reconhecida, mas absolutamente
ressignificada a partir do materno.
Mesmo nos casos em que as relações conjugais já eram reconhecidas, a maternidade
parece ter alterado as dinâmicas de pertencimento familiares. Inclusive porque, conforme
ouvimos muitas vezes no campo de pesquisa, com a chegada dos filhos as próprias mulheres
buscavam o reconhecimento de suas relações, para que seus filhos pudessem ser reconhecidos
como tais e para que ambas pudessem ter o exercício da maternidade legitimado e,
consequentemente, as avós e os avôs tivessem espaço. Ao revelarem-se, essas famílias
parecem buscar aproximações e reconhecimento, necessários especialmente se levarmos em
consideração que a falta de amparo legal deixa este território bastante movediço.
Numa família a filha aparecerá grávida, na outra a companheira da filha estará
gerando um feto que sua filha assumirá como seu, relações novas que agitam as dinâmicas
daqueles lares. Ou ainda, uma pessoa em princípio estranha vai propiciar a continuidade
genética a sua família. Vale de Almeida (2007) cita o trabalho que Olga Viñuales realizou na
cidade de Barcelona, na Espanha, onde a pesquisadora constatou, no grupo pesquisado, maior
aproximação e integração familiar de lésbicas com filhos biológicos, fosse por garantirem a
51
A gente não era assumida, mas agora as coisas eram muito maiores, tem que
se falar. Porque uma coisa é você achar e outra coisa é você ter certeza. Então,
a gente precisava de dinheiro inteiro, dos 12 mil inteiros, daí eu falei: vamos pedir
para o meu pai. Vamos ver se ele nos empresta. E a gente vai pagando aos poucos.
E eu liguei para o meu pai e disse: olha, pai, eu quero ter um filho com a Beth.
Desse jeito! E ele disse: “ah, você é meu orgulho, te amo!” E foi muito dez!E
fizemos o processo. A minha irmã do meio ficou meio assim, porque, na
verdade, foi ela quem me criou, minha mãe trabalhava muito, eu sou caçula,
então a minha irmã do meio que me adotou. Então ela ficou meio... putz, até
imaginava, mas agora eu “tô” tendo certeza. E ela disse: “vocês são loucas!
Ter filho dá muito trabalho!” Mas essa não era a questão dela, de dar muito
trabalho, a questão dela era que agora eu tinha assumido. Embora por mais de
quinze anos eu nunca aparecia com namorado...(Gabriela, Mãe, 36 anos).
No caso deste casal, por não conviver com sua família de origem, já que moram em
estados distintos e distantes, a família de Elizabeth não acompanhou tanto o processo de
gravidez. E após o nascimento e reconhecimento legal de Thiago como filho de ambas o
contato também passou a ser maior com a família de Gabriela. Interessante observar que neste
caso, embora não tendo qualquer relação consanguínea com a criança, a família de Gabriela
reconhece e incorpora Thiago como membro da família. Para garantir que o afeto não seria
negligenciado em qualquer situação e regular sua condição de mãe, Gabriela recorreu à justiça
para reconhecimento da maternidade, o que foi deferido. Portanto, Gabriela adotou o filho que
legalmente era só de Elizabeth. Embora distante, a família de Elizabeth também se relaciona
com o casal, mas ao contrário do que aconteceu com Gabriela, a homossexualidade de
53
Elizabeth não era escondida ou ainda dissimulada em sua família. Tanto era assim que foram
os parentes de Elizabeth os primeiro a saberem de sua gravidez, pois foi numa viagem de
férias para Recife que o casal descobriu o resultado positivo do exame de gravidez. Assim
como aconteceu com o pai de Gabriela, a receptividade do pai de Elizabeth foi positiva,
segundo elas.
Com Patrícia e Clarisse houve também maior relação com a família de Clarisse ao
longo da gravidez. Após breve contato, a família de Clarisse passou a reconhecer Patrícia
como companheira da filha, especialmente quando foram morar juntas. Porém, a relação com
a mãe de Patrícia não era muito estreita. Foi com a gravidez de Clarisse, que gerava os óvulos
doados por sua companheira, que este cenário se alterou:
Patrícia: [...]minha mãe não tinha uma boa relação nem comigo, ela foi criada
muito dura, então ela nos criou muito duro também. E meu pai tinha uma
preferência por mim e ela por meu irmão, e até hoje isso é muito nítido, então, ela
não aceitava o fato de eu ser homossexual, querer ter filho e não ter uma
estabilidade financeira. Mas aí quando a Clarisse falou: “é seu neto, você
sabia que pode ser aquele netinho que você sempre sonhou?” Nossa, minha
mãe desabou, se entregou. E daquele dia em diante foi uma pessoa muito
presente em nossa vida.Todos os dias ligava querendo saber como ela estava, se
estava tomando os remédios direito. Daquele dia em diante, a vida dela mudou.
Com Vivian e Marcela a gravidez de Marcela, que gerava dois embriões, sendo um
seu e outro de sua companheira, também alterou as relações. Tanto uma quanto a outra
acredita que a chegada dos filhos tenha as aproximado de suas famílias, especialmente de suas
mães:
Marcela: para a minha mãe eu acho que sim, porque ela sempre falou que ter um
filho era muito importante, que só tendo um filho você vai entender o que é ser
mãe, aquela coisa toda, né? De chorar porque “aí, minha filha...” “e não vou ter
neto, e não vai entrar na igreja”. E depois, quando eu falei da ideia de gravidez,
parece que as coisas melhoraram. Então, eu acho que ela: “não, vou ser avó”.
Eu acho que as coisas melhoraram depois da gravidez.
Vivian: a minha mãe nunca foi assim de falar sobre isso, né? Mas eu sabia do
desejo dela de ser avó, e eu via uma frustração assim de: “ah, eu não vou ser
avó”. Não via essa possibilidade. E quando eu comentei, porque para mim é bem
mais diferente, né? Quando eu comentei que a Marcela teria, que nós iríamos...
lógico que, num primeiro momento, ela deve ter ficado muito apreensiva,
pensativa, de como ela iria lidar também com as amigas, até com a família e tudo
mais, até pelo fato de eu não estar gerando, né? Mas me surpreendeu, ela aceitou
super bem, mudou, mudou sim, totalmente para a melhor... a relação... a...
Marcela: porque com a mãe dela era mais difícil, porque a minha mãe falar
“ah, minha filha está grávida e eu vou ser avó”, todo mundo estava vendo
minha barriga, agora, para a mãe dela eu acho que era mais difícil. “Ah, vou
54
ser avó, minha filha vai ser mãe”, como se ela não está grávida? Então, eu acho
que ela conseguiu lidar com isso muito bem, porque aí foi quando ela abriu o jogo
para todo mundo, acho até que era uma coisa que ela mesma não imaginava que
fosse conseguir falar abertamente. Mas ela abriu para a família inteira, com os
amigos, com os vizinhos...ela falou com todo mundo...
Vivian: mas você sabe que até hoje eu não sei como ela fala...eu tenho essa
curiosidade de saber como ela fala, eu nunca parei para perguntar para ela, mas
fico como vontade de perguntar: o que você fala? Como você fala? Sabe? (risos)
Mas eu sei que ela fala.
Embora a homossexualidade delas não fosse novidade para seus familiares, parece que
a falta de filhos era um fator que, ao menos para suas mães, dificultava a aceitação da
condição sexual tanto de Vivian quanto, e principalmente, de Marcela. Mais uma vez, parece
que o vínculo de aproximação é estabelecido primeiro com a família extensa daquela que
engravidou. Embora a relação entre Vivian e sua mãe também tenha se alterado,
principalmente porque ela passou a assumir para os demais familiares a relação de sua filha
com outra mulher. Importante ressaltar ainda que tanto Vivian quanto Marcela teriam filhos
que geneticamente seriam seus, assim, o vínculo genético tanto de uma quanto da outra estaria
presente, fato que talvez tenha facilitado o reconhecimento desses novos integrantes nas
famílias de origem. Embora suspeitem quem veio do óvulo de quem, em função das
semelhanças físicas que as crianças apresentam com uma das mães, nem Vivian nem Marcela
quiseram saber qual das crianças seria geneticamente sua, qual delas teria sido fruto do óvulo
fecundado de Marcela ou Vivian.
Embora o reconhecimento de vínculos afetivos e familiares não passe necessariamente
pelo compartilhamento da linhagem genética, parece que “ser do mesmo sangue” faz com que
essas relações fiquem mais fortes. Tanto é assim que Helena se ressente da pouca
aproximação que seu pai tem com seus filhos, pois embora os trate com carinho, ela nota que
a reação dele diante das filhas biológicas de seu irmão é mais intensa. A isso ela credita o fato
de seu pai reconhecer que os filhos de Helena não compartilham “do mesmo sangue” seu,
fosse geneticamente ou pela gravidez:
Helena: porque, os pais delas, assim, para todos, são efetivos, né?
Helena: é, biológicos.. biológicos e isso existe. O meu pai pergunta pelas crianças,
ele vê as crianças, as crianças chamam ele de avô, “meus netos”, mas não é a
mesma coisa com as minhas sobrinhas, por exemplo. Eu sei que não é igual. Para
ele não é igual. Ele até leva de uma maneira... assim, é como se ele aceitasse que
são, mas não é exatamente o que ele sente...
Carla: é...
55
Helena: ah, eu imagino. Eu acho. Eu acho que para ele é algo muito prático. Não
nasceu de mim, eu não tenho participação biológica nesses filhos, então não
são meus, então não são dele.
Entretanto, embora não seja tampouco reconhecida com mãe de Gustavo, Nádia diz
que a proximidade que sua mãe tem do menino é ainda maior do que ela teria com os demais
netos, o que parece surpreender inclusive Jaqueline:
Nádia: [..] eu acho que ela é mais próxima do neto daqui do que dos outros
netos dela...
Nádia: bem mais próxima, muito mais participativa. Mas, também a gente traz
muito ela, né? E meus irmãos... assim, eu não tenho uma relação muito próxima
deles mesmo, mas sempre que a gente está junta é muito bom, não tem nenhum
problema em relação a ele, em como foi feito.
Elizabeth: ela tem uma tia que é bem religiosa, católica apostólica romana,
daquelas com andam com o terço e...
Elizabeth: e a gente achava que com ela seria complicado, que iria colocar a
gente na cruz e jogar água benta para exorcizar, né? E ela nos surpreendeu...
Parece, ainda, que a chegada dos filhos autoriza a incorporação das companheiras nas
relações familiares. Embora Patrícia reconheça pouco convívio – mas agora mais próximo -
56
com sua família extensa, o mesmo não se observa com a família de Clarisse, lá a recepção
tanto para com os filhos quanto para com a sua companheira é positiva:
Patrícia: ele diz assim: “Patrícia, você precisa de uma semana de passe livre para a
gente viajar” (risos).
Clarisse: então, assim, ele gosta muita. Meu outro irmão também. Meu pai gosta
muito dela, meu pai chama ela de genrão.
Clarisse: meu pai não chama ela, é raro ele chamá-la de Patrícia. Então é assim:
“cadê meu genrão, tá aí?” Ah, tá, mas não quer falar comigo? “Não, eu liguei para
falar com ela”. Meus pais são separados, e ele nunca falou nada. A única coisa que
ele dizia era: “você está feliz? Então tá bom!”.
Portanto, a vinda dos filhos estabelece novas relações e altera a forma de perceber e
incluir o casal nas famílias de origem. O afeto e reconhecimento das crianças como membros
da família também altera esse cenário, inclusive devido aos envolvimentos e trocas que a
chegada das crianças aporta. Seja através dos vínculos biológicos, seja por conta dos símbolos
de pertencimento, seja ainda por responder ao esperado socialmente da filha: ser mãe. Como
visto, maternidade parece incluir a família no escopo de uma normalidade autorizada.
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Numa sociedade onde a função procriativa – ainda que não seja uma doença - do
corpo fêmeo é tratada pelo sistema médico (CHATEL, 1995), a Reprodução Assistida (RA) -
expressão criada pelo campo da medicina reprodutiva – configura-se como um conjunto de
técnicas de tratamento paliativo da infertilidade humana, mas que não é restrita apenas ao
tratamento da infertilidade patológica (CORRÊA, 2005). Ao não tratar apenas infertilidades
patológicas, ela pode ser apropriada e discutida a partir dos casais que entrevistamos, pois,
embora a união de células reprodutivas desses casais de mulheres não seja capaz de gerar
embriões, a infertilidade do casal não necessariamente é patológica. Podemos no máximo
afirmar que tem limitações, por constrangimentos corporais. Ao desejarem uma criança, as
demandas destas mulheres não incidem, necessariamente, sobre um sintoma patológico
(CHATEL, 1995). Refletir sobre este aspecto é um dos primeiros pontos de tensão que
propomos neste capítulo, pois embora a medicina reprodutiva possa atender às demandas de
diferentes composições conjugais – ou mesmo situações onde não existam pares conjugais -
parece, ainda, que as práticas profissionais não se transformam para dar conta de casais que
não possuam infertilidade patológica. Ao longo do capítulo – e em muitos momentos neste
trabalho - traremos alguns apontamentos a este respeito. Antes de entrarmos nas discussões
58
propriamente da pesquisa, cabe esclarecer sobre as técnicas utilizadas por nossas entrevistadas
e realizadas pelos/pelas profissionais que encontramos.
As técnicas são distintas e diferem substancialmente a partir da fecundação, que pode
ser realizada dentro ou fora do corpo feminino. No primeiro caso, estamos falando da
inseminação artificial (IA), que consiste na introdução do gameta masculino no aparelho
reprodutivo feminino. Técnica usada, por exemplo, por Carla nas três primeiras tentativas de
engravidar e duas vezes por Jaqueline. No caso das duas mães, a equipe médica optou por
iniciar o processo pela IA. Apenas após o insucesso do uso da IA que os/as profissionais da
clínica – localizada na cidade do Rio de Janeiro – que recebeu Carla e Helena e Jaqueline e
Nádia optaram pelo uso da inseminação extracorpórea, no caso, fertilização in vitro (FIV).
Assim, a fertilização do embrião se dá no ambiente do laboratório e somente após este
procedimento este embrião é implantado no corpo feminino. Neste caso, a ovulação é,
geralmente, estimulada a partir de tratamentos hormonais e os óvulos são capturados por meio
de punção guiada por ultrassonografia endovaginal. Após a junção com o espermatozóide, os
pré-embriões formados são introduzidos na cavidade uterina ou congelados. Embora nossas
entrevistadas não tenham utilizado, cabe ressaltar que existem ainda outras variações da FIV
possíveis, como a Injeção Intracitoplasmática do Espermatozóide (ICSI) ou micro-injeção,
que é uma variedade de FIV onde um único espermatozóide é injetado no citoplasma do óvulo
através do micromanipulador (aparelho que contém micro agulhas para injeção), sendo um
tratamento indicado em casos severos de infertilidade masculina (LUNA, 2005).
Em casos mais específicos, quando há a necessidade ou escolha pela ovodoação, por
exemplo, a IA é descartada, e opta-se pela FIV. Noutros casos, a escolha pela FIV ocorre
tanto por sugestão da equipe médica quanto pelo desejo das mulheres, ao menos foi isto que
aconteceu com os três demais casais que entrevistamos. Para Elizabeth, Clarisse e Marcela a
FIV foi a primeira técnica escolhida. Elizabeth e Gabriela contaram que a escolha pela FIV
foi feita por elas devido ao maior percentual de sucesso que a técnica tem em relação às
outras, como IA, por exemplo. Já Clarisse e Patrícia escolheram FIV pela especificidade do
caso delas: o óvulo fecundado seria de Patrícia, mas Clarisse geraria os embriões, numa
técnica conhecida como ROPA (Recepção de Oócito da Parceira), já citada anteriormente.
Com Marcela e Vivian, a escolha pela FIV também ocorreu pelo fato da técnica ter mais casos
de sucesso do que a IA, contudo, a resposta do corpo de Marcela ao tratamento também
descartou o uso da IA. Ao final, Vivian também iniciou o tratamento, para que sua parceira,
Marcela, pudesse gerar. Como resultado, Marcela gerou um embrião seu e outro de sua
companheira, numa gravidez única.
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A gente pesquisou muito antes, até para saber como era, quais as chances, essas
coisas. E como as chances com a inseminação eram bem pequenas, já estava
resolvida essa parte de qual delas seria. Mas, chegando lá, ele esclareceu mais as
coisas, acrescentando percentuais, e só fez a gente ter certeza do que queria
(Elizabeth, Mãe, 35 anos).
...ele era bacana e tudo, mas ele era muito... vamos usar a palavra atrapalhado, não
era isso, porque ele era cheio de coisa, ele tinha tudo na cabeça, mas sou
capricorniana e sistemática e eu queria as coisas uma pouquinho mais
explicadas... e ele dizia: “ah, no dia tal a gente se encontra...” e eu queria saber
por que... Eu me sentia um pouco carente. Ele não dava detalhes, e eu queria
saber (Gabriela, Mãe, 36 anos).
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O que é sinalizado aqui não diz respeito à escolha por esta ou aquela técnica como
ideal, mas a participação das usuárias nessa escolha e a autonomia nas decisões,
principalmente porque serão em seus corpos que esses procedimentos incidirão. O que se
percebe é, antes, um não raro controle de informações nestes espaços. Ao longo das
entrevistas realizadas, esse controle do processo fica mais evidente.
Os primeiros casais entrevistados realizaram o procedimento antes de 2009, quando a
maternidade lésbica a partir do uso da reprodução assistida ganhou ampla exposição
midiática. Quando colocamos o foco nessas famílias, algumas informações merecem especial
destaque. Carla e Helena trazem que ao decidirem que Carla iria engravidar, a busca por
informações acerca do procedimento começou, mas a falta de conhecimento ou a qualidade
das informações obtidas deixavam o casal em dúvida, especialmente porque, nesta época, as
informações pareciam dirigidas a casais heterossexuais:
Helena: É, e ainda ela chegou falando...vamos ter filhos, daí eu falei: vamos?
Então vamos![...] E a gente começou a pesquisar na internet, e não tinha nada!
Helena: é...
Carla: Não fazia nenhuma referência que você poderia ir à clínica solteira. Mas
em clínica aqui do Rio, na página inicial tinha: “a nossa clínica visa atender
casais inférteis”, assim, ou com dificuldade... e a gente ficava com um pouco de
receio se ia conseguir entrar nesse meio... e daí foi outra crise minha, eu dizia: “tá”
vendo, é só para casais heterossexuais, ninguém abre essa possibilidade.
Este aspecto é mais um que a maternidade lésbica ajuda a problematizar, pois não
necessariamente essas mulheres possuem problemas de infertilidade patológica - e aqui
retomamos a discussão iniciada anteriormente. Embora um casal de mulheres não possa
produzir gravidez a partir de seu encontro sexual, essas mulheres podem ter uma saúde
reprodutiva em perfeitas condições. Ocorre, todavia, que a relação sexual entre essas parceiras
não é capaz, por si, de gerar uma criança. Mesmo assim, o tratamento não destoa
substancialmente para os casos onde há alguma anormalidade orgânica ou incompatibilidade
do casal.Aqui entram em cena movimentos que disparam alguns tremores que o campo da
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medicina reprodutiva e sua apropriação por casais de lésbicas produzem. Embora as escolhas
afetivas e sexuais dessas mulheres possam colocá-las em espaço social assimétrico com
mulheres que assumem práticas heterossexuais, em função da homofobia que ainda assola a
sociedade, provocando olhares que estranham, julgam e desconfiam das pessoas, essa
diferença, no momento de acesso ao serviço, não é observada, ou, ainda que seja, não é
valorizada, pois uma vez sujeitas aos mesmos medicamentos e aos mesmos modos de agir
médico, elas se misturam numa massa homogênea de corpos femininos que se preparam para
receber bebês. Aqui, o olhar médico sugere o que Almeida (2005) aponta como olhar
generalizante sobre as pessoas, que em muitos sentidos não se contorce para dar conta das
especificidades que cada caso apresenta.
Este olhar treinado por séculos de tradição cartesiana é também um olhar que, por
perseguir obstinadamente a objetividade dos conceitos, se faz míope na percepção
das formas como indivíduos recriam, por exemplo, identidades sexuais
(ALMEIDA, 2005, p.283).
por casais de mulheres. Todavia, o não “tratar mal” era suficiente para que as usuárias
recebessem o tratamento como positivo. Fato que parece dialogar bastante com os que
trazemos aqui. Contudo, muito atenta, Elizabeth traz interessantes apontamentos a respeito do
tratamento que ela e Gabriela receberam no centro de reprodução humana a que recorreram:
...mas voltando para a pergunta do consultório, não é que nos tratem mal, mas
não sabem como receber. Não sabe se chama de companheira, se chama de
marida, se chama de ela, de você, “a sua..., a sua...” e a gente: companheira. E ele:
“ah, é...”. Então, é isso, mas de resto... (Elizabeth, Mãe, 35 anos)
Interessante observar que Elizabeth e Gabriela são amigas de Marcela e Vivian, casal
que também foi, algum tempo depois, à mesma clínica que o primeiro casal realizou o
tratamento e nesta clínica não fazem qualquer relato sobre o “não saber como tratar”. Já na
segunda clínica que procuram uma situação parecida foi enfrentada por elas. Tanto que recebi
com certa surpresa o relato do segundo casal, numa estranha sensação de Déjà vu,dada a
semelhança das histórias:
Marcela: [...] a gente vai para a clínica, preenche um cadastro e ele ficou: “mas
como eu vou preencher, porque aqui tem esposa e marido...”
Marcela: não, era marido. “E como que eu preencho isso?”, e a gente: ah, coloca
“companheira”, porque já vinha tudo impresso... Então, ele não sabia muito bem.
Mas aceitou super bem, quando ele viu que estava difícil, ele também propôs fazer
com os óvulos da Vivian, mas ele só não sabia direito como lidar com isso,
como falar abertamente, ele ficou mais tímido.
A ampliação do serviço para aquelas que podem pagar, assim como a crescente
procura, coloca em evidência algumas tensões do campo e uma delas diz respeito a como
nomear essa dupla que busca atendimento, em como receber estas mulheres que, como casal,
procuram os serviços. Mudanças sociais invadem estes espaços e demandam modificações
inclusive nas relações desenvolvidas nos ambientes médicos. Como vimos acima, percebendo
a necessidade de mudança, o próprio médico que atendeu Elizabeth e Gabriela já pensava em
como adaptar as formalidades para receber diferentes demandas. Embora essa busca não seja
nenhuma novidade, parece que agora alguns movimentos de luta por direitos e avanços
pontuais na área jurídica – reconhecimento das uniões homossexuais pelo STF em 2011,
ampliação de deferimento de reversão de uniões estáveis em casamento, etc. – por exemplo,
parecem impulsionar, se não ainda mudanças de atitudes, ao menos a ampliação de discussões
e problematizações. Esse “não saber como agir” ou nomear estes casais pode vir ou ser
64
amplificado pela falta de legislação específica na área de reprodução assistida que imputa
certa insegurança aos profissionais que operam as técnicas.
Outra tensão apontada pelas mulheres que entrevistamos diz respeito à angústia que a
falta de informação acarreta:
Eu não sinto que a gente sofreu preconceito até agora, a gente sofreu com essa
falta de informação (Gabriela, Mãe, 36 anos).
Para Gabriela, embora, em suas palavras, o médico “não as tratasse mal”, o que mais
incomodava era a falta de explicações acerca dos procedimentos e etapas que seriam
seguidos. Fosse pela visão dispensada pelos/pelas profissionais, mais distante, como
observavam algumas participantes da pesquisa, ou ainda pela utilização de verdades médicas
com predominância de aspectos objetivos, como dados quantificáveis e traduzidos em
números (CHAZAN, 2008), por exemplo. Tratamento mais distante, que atribuíam como
próprio da prática médica.Ainda que a experiência da maternidade fosse mais valorizada do
que uma possível falta de atenção dos/das médicos, em alguns momentos, deixavam escapar
certo descontentamento com o tratamento pouco afetivo que recebiam dos/das profissionais.
O foco de interesse dessas mulheres, todavia, não parecia este. Embora fossem capazes de
avaliar o serviço, suas implicações e tensões, as construções discursivas das suas experiências
acerca do materno, de serem mães, eram mais acentuadas. Assim, em muitos momentos, nota-
se a apropriação do discurso médico-científico, não apenas pelos/pelas profissionais, mas
pelas próprias usuárias do serviço que entrevistamos. Helena, por exemplo, justifica a postura
médica não tão afetiva assim pela própria prática da profissão:
Não é que ele seja uma pessoa totalmente fria, não é isso, mas ele sabe a dor das
pessoas que não conseguem, mas não é dele a dor. Como ele vê isto o tempo
inteiro, eu acho que cada vez mais ele acha que é muito comum (Helena, Mãe,
43 anos).
A tensão neste campo fica ainda mais evidente quando reunimos uma série de
ingredientes que ampliam as redes que se articulam para compor nosso mapa. Aqui
colocamos em questão a própria prática médica, que lança olhar indiferenciado a pessoas que
65
são diferentes. Acrescentamos a isso a medicina reprodutiva e o valor social que a gravidez
tem, bem como o olhar historicamente lançado sobre os corpos das mulheres. Como se todos
esses elementos não fossem suficientes, apresentamos mulheres que se assumem lésbicas,
lésbicas que desejam ser mães. Portanto, muitos movimentos são sugeridos. É preciso ter
clareza de que para além do controle de informações por parte dos/das médicos/médicas,
muitas vezes sem que eles/elaspróprios/próprias se deem conta, há um cenário singular
quando entram as mulheres lésbicas. Sobre isso eles/elas não só não têm controle, como não
têm informação e formação para juntar todos esses ingredientes.
No capítulo anterior, discutimos a respeito da construção científica do corpo feminino
ao longo da história, todavia, cabe retomarmos que ao longo do século XX a prática da
medicina, permeada pela visão cartesiana do corpo como uma máquina, percebe a mulher em
trabalho de parto como uma máquina e o médico como um técnico ou um mecânico que pode
consertá-la, empregando, inclusive, ferramentas para interferir no processo, ferramentas que
substituem as mãos das parteiras de outrora pelas mãos dos homens que as utilizam. Práticas
que atribuem ou ampliam a relação de força entre aqueles que dispunham das ferramentas
para aquelas que se submetiam às suas interferências e intervenções.Por largo período, a
atenção à saúde da mulher só era percebida quando se tratava de um corpo virtualmente
materno, neste sentido, não fica tão complexo entender o porquê da concepção negativa da
ciência para a menstruação, muitas vezes definida como o útero que chorava a falta de bebê –
que, analogamente a uma máquina parada ou que desperdiça material, representa, ao final,
uma produção fracassada. Ao menstruarem, as mulheres não estão reproduzindo, não estão
dando continuidade à espécie ou se preparando para ficar em casa para cuidar do bebê. Desta
forma, percebe-se que o corpo feminino vem sendo atravessado por um discurso,
especialmente científico, que o define a partir de sua capacidade ou não de reprodução
(MARTIN, 2006).
Apresentada como um dos principais marcos da revolução tecnológica das últimas
décadas na área médica, a medicina reprodutiva se insere no processo histórico que mantém
contínua uma intervenção sobre a sexualidade e a reprodução humana, especialmente voltada
para o corpo feminino. Mas agora, além de curar, a medicina se propõe à realização pessoal e
social: responder à demanda por filhos, constituir uma linhagem ou família (CORRÊA, 1997).
Medicina que acessada por lésbicas – mas não originalmente pensada para elas –, ressignifica
estas demandas, pois se antes ela só era autorizada a pares heterossexuais, agora a busca por
lésbicas e gays oferece novos tons a este cenário e exige outras reflexões. Aqui trazemos mais
um ponto de tensão em nossas discussões, pois ainda que desde a década de 1980, no cenário
66
eu acho que minha decisão foi me calar na hora, quando já estava lá... assim, eu
me senti decidindo na hora em que eu já estava deitada para realizar o
procedimento [ para eliminar dois dos quatro embriões]e que eu me calei, porque
eu podia ter segurado a mão dele, né? Na hora em que eu fiquei calada foi a hora
em que eu... porque, depois eu fiquei pensando que poderia ter argumentado,
assim: não têm trigêmeos? Então, me deixa com três. Mais quantos eu possa ficar
sem riscos (Carla, Mãe, 40 anos).
Sérgio: não, isso não é permitido por lei, chama-se feticídio, não é uma prática
realizada aqui e eu... aqui no Brasil, isso não é permitido, existem alguns países
que permitem. Então, se a paciente engravidou de trigêmeos ou quadrigêmeos,
ela vai levar essa gestação. Salvo caso exista uma iminência de risco de vida para
70
Sérgio: não, não é comum, mais ou menos uns 20 % dos casos. A gente sempre
tenta fazer com que aquele casal tenha uma gestação única, o objetivo não é a
gemelaridade, não é a trigemelaridade, são gestações únicas (Médico, 29 anos).
O espaço entre o permitido por lei e o aplicado na prática fica difícil de ser discutido,
porque estes procedimentos realizados não deixam rastros localizáveis ou pessoas que
queiram falar sobre eles, principalmente porque diante da ilegalidade, existem receios de
sanções legais e profissionais. No caso das mulheres que se submeteram ao procedimento,
existem ainda tensões morais. Compreendida como aborto, Carla e Helena falam da Redução
Embrionária com bastante desconforto e foram as únicas a tratarem do assunto, as demais
mulheres entrevistadas não admitiram ter usado o procedimento, seja porque de fato não
utilizaram ou seja porque não se sentiram à vontade em abordar o tema conosco.
O que pode favorecer a falta de informação sobre procedimentos que, de fato, são
aplicados nos centros reprodutivos é o próprio contexto brasileiro, onde as técnicas de
reprodução assistida passam a ser utilizadas na década de 1980, concentrando-se no setor
privado, o que é apontado como um importante fator que justificava a pobreza de regulação
específica desses procedimentos em nosso país à época de seu surgimento. Por este motivo,
pouca ou nenhuma atenção era oferecida pela saúde pública ou outros estudos sociais, bem
como pela bioética (CORRÊA, 2005).
No Brasil não existe uma legislação específica que regulamente as técnicas de
reprodução assistida, as clínicas seguem então a Resolução Conselho Federal de Medicina nº
1.957/2010 para adotar tais procedimentos, como já esclarecemos.
Porém, ao possibilitar a concepção sem sexo, a reprodução assistida amplia o acesso a
tais técnicas a mulheres que não vivem relacionamentos heterossexuais, por exemplo.
Portanto, as mulheres apresentadas nesta pesquisa expandem a possibilidade de acesso à
maternidade sem deixarem de viver práticas sexuais exclusivamente homoeróticas, se assim o
desejarem. Pois, ao fazerem uso de técnicas como a inseminação artificial ou a FIV, estes
casais de lésbicas acrescentam como projeto comum a maternidade, onde uma delas, a
princípio, será responsável por gestar a criança, sem incluir homem algum, visto recorrerem a
bancos de sêmen com doadores anônimos.
Embora a reprodução assistida possibilite a desconexão entre sexo e concepção, ela foi
construída a partir de códigos que respeitavam certa “ordem procriativa”, inscrita na tríade
71
apenas uma das parceiras, o que nas clínicas era tratado como se fosse uma produção
independente, mesmo quando se soubesse que se tratava de um casal de lésbica. Das nossas
entrevistadas, tanto Carla e Helena quanto Jaqueline e Nádia buscaram o serviço antes de
2009, portanto, antes do assunto começar a ser abordado com mais intensidade nas mídias. E,
conforme relatado, elas se apresentavam como um casal para os/as profissionais
envolvidos/envolvidas. Todavia, a parte contratual dos procedimentos não envolvia nem
Helena, nem Nádia. Ainda que no caso de Nádia fosse desejo seu não ser mãe, no caso de
Helena, ao contrário, a maternidade era um projeto compartilhado pelo casal. Daí percebe-se,
mais uma vez, a lógica de tentativa de apagamento ou invisibilização dessas relações nestes
centros reprodutivos, destacando que, pela antiga resolução de CFM, mesmo quando não
participava com material biológico, o marido ou companheiro da mulher – salientando que o
acesso era facultado apenas a mulheres – deveria assinar o consentimento informado,
ressaltando o caráter heterossexual da normalização vigente à época. Ao fazê-lo, ficava clara a
presunção da paternidade do companheiro ou marido da mulher que buscava o serviço.
Após a exposição dessa possibilidade para mulheres lésbicas que desejavam ter filhos,
tornou-se crescente a busca pelo serviço. Tanto em casos onde não se desejava recorrer a
ROPA, quanto em casos em que a técnica era solicitada. Patrícia traz que após a repercussão
que seu caso teve em todo país, o médico responsável pelo procedimento e a clínica onde ele
trabalhava decidiram suspender este tipo de serviço. Amigas do casal o procuraram para
solicitar o mesmo procedimento e ele informou que até haver qualquer respaldo legal a este
respeito as intervenções deste tipo estariam suspensas. O fato é que em 2010 o CFM lançou
nova resolução que viria regulamentar a reprodução assistida em nosso país, a atualmente
vigente Resolução 1957/10. Todavia, a doação conhecida de gametas ainda é proibida. A
grande mudança desta resolução foi ampliar o acesso às técnicas, uma vez que qualquer
pessoa, desde que respeite as normas estabelecidas naquela resolução, pode fazer uso da
medicina reprodutiva a fim de gerar filhos, sem fazer distinção de gênero. A resolução de
1992, omissa em muitos pontos, não foi impedimento para a realização dos procedimentos
que ora descrevemos. No entanto, o aumento da procura pelo serviço por casais de mulheres,
poderia por em risco o aparato médico que interpretava como possível engravidar mulheres
fora de relacionamentos heterossexuais. A nova resolução veio dar o respaldo que os/as
profissionais precisavam para dar continuidade a seu trabalho. Todavia, como percebemos ao
longo do campo, diversas tensões emergem desta área, especialmente questões que tocam em
práticas que mesmo não legítimas são realizadas.
73
Como vimos, embora algumas práticas sejam proibidas pela resolução vigente, o
contato com as mulheres que passaram pelo procedimento esclarece que a prática médica
altera este cenário. Como no caso de Patrícia, que admite ter “doado” parte de seus óvulos
para um casal que custeou seu tratamento, seguindo sugestão de seu médico:
Patrícia: “Ah, o pagamento de vocês já está acertado aqui, metade já foi pago”. E a
gente: quanto custa um esperma? “O mais barato 1200 reais”. “Putz”. “Mas, peraí,
quanto anos você tem?” “27”. “Você toparia doar parte de seus óvulos para outro
casal que topasse custear seu tratamento?” Daí eu falei: lógico, com certeza! [...]
Teoricamente, os óvulos teriam que ser doados, não poderia se cobrar por isso,
mas, em off ele falou: “vamos fazer assim? Mas não fala para ninguém para não
dizerem que estou querendo comercializar, eu quero ajudar vocês e ajudar ao outro
casal, que tem muito [dinheiro] e que quer ter custo com o filho, pode ser?”. E
assim fizemos.
Como campo complexo, a área da reprodução assistida acrescenta outra face a ser
verificada: diante da dificuldade que um casal, ou uma pessoa solteira, apresenta para gerar
uma criança, os avanços tecnológicos permitem que este processo seja
facilitado/possibilitado. Mas atribui grande valor a decisão médica, que delibera acerca da
possibilidade ou não de uma pessoa ou um casal utilizar a reprodução assistida. Com a
vigência dessa nova resolução, atualmente é possível inclusive que uma pessoa morta (através
da conservação de seu gameta congelado) gere uma criança, subvertendo a própria lógica de
vida e da morte, de um organismo morto que pode gerar uma vida.
Embora a sociedade adjudique elevado valor à gestação como marcador fundamental
da maternidade, a reprodução assistida traz para a arena de debate uma importante questão,
pois reforça, de forma paradoxal, o modelo biológico da reprodução, embora, como afirma
Corrêa (2005), “ainda que na forma de um simulacro” (p.63).
A reprodução assistida é apontada por muitos casais de homossexuais – ou
homossexuais solteiros – como um importante recurso a fim de possibilitar a gestação de uma
criança sem a prática sexual heterossexual, assim como por mulheres solteiras. Nesta
pesquisa, contudo, o foco volta-se para casais de mulheres.
Assim, ao recorrerem à inseminação artificial, casais de mulheres 2, podem gerar uma
criança, sendo, contudo, a criança filha geneticamente de apenas uma delas (tanto no caso de
doação de óvulo pela parceira quanto pelo uso do próprio óvulo). Porém, como será melhor
exposto a seguir, por ser um processo de custo elevado ele é inacessível a grande maioria dos
2
Como já discutido, diferentemente da difundida culturalmente maternidade representada a partir do mito da
mãe perfeita, onde a função materna é percebida como inata à mulher, bem como o amor materno,
compartilhamos da opinião das teorias de gênero que referem a maternidade como um constructo social e
cultural (AZEVEDO; ARRAIS, 2006).
74
casais de lésbicas no Brasil. Portanto, esta realidade aponta para um importante abismo social
presente no cenário brasileiro, revelando ainda a força cada vez maior do mercado
tecnocientífico na gestão das vidas humanas, permitindo a maternidade/paternidade aqueles
que podem pagar, e excluindo destas aqueles que não dispõem de capital suficiente, assunto
que nossas lentes se moverão para tratar a seguir.
Olha, como somos uma clínica privada, a gente tem, seguramente, uma classe
diferenciada, porque é uma tratamento muito caro, não é uma tratamento
acessível, assim, para muita gente. O valor da fertilização gira em torno de
dez mil reais, mais a medicação que a paciente toma, então o tratamento fica
entre 15, 17 mil reais. É uma realidade que restringe para a maior parte da
população, digamos assim... (Bárbara, Bióloga, 49 anos).
Ainda sobre este aspecto, um diálogo com Valéria, auxiliar de enfermagem, foi
bastante interessante. Segundo ela, em alguns momentos a maternidade é tão importante na
vida dessas mulheres que algumas são capazes de sacrifícios financeiros para concretizar seu
desejo:
76
Daniele: Ok, e aqui, vocês costumam receber que tipo de pessoas, de quais classes
sociais?
Valéria: é caro, não é barato, mas eles procuram. Dá um jeito, mas eles
procuram.
3.3.1 “Aja naturalmente” – se elas podem pagar, elas estão acessando o serviço!
elementos que destoam de configurações heterossexuais, seja pelo lugar que a companheira
que não vai gerar ocupará no processo ou ainda pela adaptação que as técnicas poderiam
sofrer para atender a cada caso especificamente. Mas as tensões do campo não param por aí,
não apenas em como tratar deste corpo que deseja engravidar, mas como receber ou nomear
essas mulheres que crescentemente acessam o serviço. Como os/as profissionais de saúde
lidam com estas demandas e articulam suas responsabilidades profissionais com suas crenças
e preceitos pessoais, num campo que mistura, pelo menos, dois elementos polêmicos:
medicina reprodutiva e maternidade lésbica.
Ao abrirmos as portas do centro reprodutivo que visitamos, nos deparamos com
diferentes pessoas, de distintos níveis de escolaridade, cores, funções, credos, crenças,
formações. Pessoas que são atravessadas por uma série de construções que compõem seus
modos de agir, suas escolhas pessoais e profissionais, mas que em certo sentido suspendem,
ou buscam deixar suspenso, tudo aquilo que de suas crenças não diz respeito ao exercício
profissional quando falam de suas práticas para nós. Fosse por diferentes motivações ou
razões, os/as profissionais que encontramos se limitavam a nos oferecer respostas bastante
objetivas às nossas questões, mesmo quando elas desejavam construir relatos acerca de suas
próprias percepções e opiniões. Talvez não fosse diferente, porque ali falavam profissionais.
Embora ao longo de nosso contato fôssemos estabelecendo relações de confiança que
permitiam que outros elementos que não apenas os profissionais viessem à tona, ao início,
geralmente, nossos contatos eram mais distantes. Embora ao falarem de suas práticas e rotinas
profissionais Paula, Bárbara, Valéria, Noely, Larissa e Sérgio o fizessem de forma menos
incômoda, quando a maternidade lésbica entrava em cena, a dificuldade de localizar ou
nomear este fenômeno trazia alguns pontos de tensão em nossas construções discursivas.
Durante os encontros que tivemos com alguns/algumas profissionais era notória a
enorme dificuldade de se abordar o assunto; em determinados momentos, os/as profissionais
se eximiam, inclusive de expor suas opiniões quando eram perguntados. Chama atenção o
relato de Bárbara, bióloga do centro de reprodução humana visitado. Durante os primeiros
minutos de conversa ela afirmou não saber indicar quando atendera os primeiros casos de
mulheres lésbicas que buscavam o serviço:
Porém, conforme fomos avançando na entrevista, Bárbara, que parecia agora mais à
vontade com minha presença, aponta sua rotina de trabalho, assumindo, inclusive, que os/as
profissionais do laboratório têm conhecimento de todo o processo, mesmo que isso não
signifique contato direto com as pacientes: “em toda a rotina, a gente do laboratório tem
ciência de tudo, até porque, a gente tem que ter uma série de cuidados”. Aproveitando essa
informação, repeti a pergunta, desta vez a profissional parece se lembrar:“ai, tem bastante
tempo sim, seguramente, a gente tem procura de casais homoafetivos há mais de dez anos”
(Bárbara, Bióloga, 49 anos).
Já Sérgio fala com maior facilidade sobre o fato da clínica onde trabalha receber
homossexuais, principalmente porque ele, como médico, tem contato direto com as pacientes
e com suas histórias:
Médico: [...] A gente tem bastante casal homoparental aqui também, que vem
procurar, principalmente depois da última Resolução que passou a admitir a
possibilidade de... de fertilização nesse tipo de casal, né? Principalmente quando é
um casal homossexual feminino, o masculino fica um pouco mais difícil, porque
você tem quer ter ainda um outro de doação[...] mas no feminino isso facilitou.
Eventualmente a gente recebe casais aqui que vêm questionar querendo saber
como é que estão as coisas, ou como é que poderiam fazer para conseguir
engravidar.
Interessante que nesta clínica, com exceção de Sérgio, as demais profissionais dizem
que nunca atenderam casais de mulheres, fato que chama atenção, pois se estas mulheres
realizam o tratamento, certamente necessitam circular pelos demais setores da clínica 3, o que
necessariamente as obriga a entrar em contato com os demais profissionais. Contudo, falar
sobre isso para uma pesquisa como a nossa poderia ser um fator que gerasse certo
desconforto, inclusive profissional, pela exposição de informações sigilosas, que poderiam
chegar até estas profissionais, mesmo que através dos corredores, entre conversas de colegas
de serviço. Mesmo assim, ao longo das entrevistas, com a ampliação do contato, as
3
Todavia, pontuamos que embora tenham contato com demais profissionais, a revelação da homossexualidade
dessas clientes não necessariamente se faz necessária ou evidente.
79
profissionais deixaram escapar que sim, tiveram contato com casais de mulheres, o que parece
é que para evitar trazer suas suspeitas e desconfianças, inicialmente elas evitavam abordar o
assunto, como no caso de Paula, administradora do local. Quando perguntada sobre ter ou não
conhecimento desses casos ela responde que não, mas depois de algum tempo ela assume que
essas informações circulam e que por vezes acabam chegando a seu conhecimento:
Ah, às vezes na hora do pagamento, na recepção, que ficam as duas juntas. Mas eu
acredito que hoje em dia não haja qualquer preconceito com relação a isso não. As
pessoas... ainda mais aqui, que já estão acostumadas. Não tem nenhum
comentário (Paula, Administradora, 44 anos).
Da primeira vez, eu achei esquisito, eu achei estranho, fica meio esquisito você se
deparar com duas mulheres para fazer inseminação, uma fertilização, seja lá o que
for. Mas depois você se acostuma, começa a entender, elas querem ser mães, são
de sexos diferentes [iguais], mas, enfim... depois eu passei a não questionar
mais, mas no início eu questionava (Valéria, Auxiliar de Enfermagem, 41 anos).
Ainda que a maior parte dos profissionais entrevistados tenha dito que possuem pouco
ou nenhum contato com lésbicas que acessam o serviço, os relatos dos casais trazem
experiências distintas. Nas falas de muitas delas, o contato com demais profissionais parecia
maior. Todas as mulheres que entrevistamos disseram que se apresentavam como casal, sendo
que a maioria delas não percebia qualquer comentário ou tratamento discriminatório, era
comum elogiarem o tratamento que recebiam nas clínicas:
É, e aí ele foi super receptivo, era um médico ótimo[...]com a gente ela sempre foi
muito carinhoso, sempre abraçando. As enfermeiras... todo mundo. A bióloga...
todo mundo sempre com um sorriso (Carla, Mãe, 40 anos).
Algumas delas até retornavam depois, quando os filhos já tinham nascido, para
agradecer aos/às profissionais e mostrar seus filhos. Carla e Helena relatam que o álbum de
nascimento de seus filhos começa com as fotos tiradas em visita posterior que fizeram à
clínica:
O álbum deles começa com a bióloga que fez a FIV e com o médico, essa é a
primeira foto. Mas ai eles já estavam crescidos, mas a gente levou para que eles
tirassem fotos com os médicos (Carla, Mãe, 40 anos).
Outros casais, como Vivian e Marcela, também retornaram à clínica para tirar fotos
com os/as profissionais. Orgulhosa, Vivian trouxe a fotografia que seus filhos tiraram com o
médico responsável pelas fertilizações. Na foto, o médico, que usava jaleco branco, estava
sentado num sofá e segurava, sorrindo, Pedro e Bianca, um apoiado em cada braço do médico.
Ainda que o tratamento dispensado fosse percebido como positivo, mais uma vez,
Elizabeth faz interessante observação sobre isto:
A recepção foi boa, foi boa. O que acontece é que... a gente não é mal recebida,
não é isso, mas as pessoas não têm... é que não é algo comum, então elas não
sabem como lidar com a situação. Se a gente chega num hospital e fala: ah, são
duas mães. Daí falam: “como assim?” (Elizabeth, Mãe, 35 anos)
81
Já Marcela aponta que em uma das clínicas que procurou para fazer o tratamento, tanto
ela quanto Vivian percebia olhares de desconfiança por parte de algumas recepcionistas:
A gente tinha muito contato com a enfermagem. A que lidava diretamente com a
gente, foi super tranquilo. Mas a recepção dessa terceira clínica, eu achei que
umas olhavam meio esquisito, notava que uma meio que fofocava com a
outra, meio que os olhares apontavam, mas mais na recepção, com uma ou
duas... numa clínica enorme, com muitas pessoas, mas tinha umas duas que era
diferente. [...] Eram gestos, tinha o jeito dela atender também, que era diferente,
mas, elas não davam bola para a gente e a gente não dava bola para elas
[risos] (Marcela, Mãe, 38 anos).
Não sou uma estudiosa do assunto, então não estou vendo sob todos os aspectos,
acho que é um direito que ela tem [...] ela pode ser uma boa mãe, como qualquer
outra, biológica ou de casal heterossexual poderá ser boa ou não, depende de mil
outros fatores, não só da sexualidade, da opção sexual dela (Noely, Médica, 60
anos).
Para Valéria, auxiliar de enfermagem, receber casais de mulheres que querem ter
filhos é algo que desperta sua desconfiança, inclusive porque, para ela, o fato de ter duas mães
seria algo bastante difícil para uma criança entender:
Acho que fica complicado na cabeça de uma criança, até essa criança crescer e
entender... eu acho que é muito complicado. [...] Estranho, duas mulheres
chegarem a um consultório e quererem ser mães; uma tudo bem, mas a outra tem
mesmo, aí fica meio esquisito. “Ah, duas pessoas sentadas ali e querem ter filhos,
mas são marido e mulher...”, fica esquisito, mas depois tudo bem. Não sei, no
futuro, a cabeça da criança, eu acho que vai embaralhar, vai ficar complicado
entender isso, porque, para uma criança entender isso, só com uns 18 anos, na fase
adulta, porque antes disso, ela não vai entender não (Valéria, Auxiliar de
Enfermagem, 41 anos).
4
Ainda que caiba lembrarmos a discussão sobre este aspecto que abordamos anteriormente, o não “tratar mal”
entendido como “tratar bem”.
82
Desconfiança que não é apenas de Valéria, Bárbara, a bióloga, também fala sobre sua
preocupação com a formação da criança, para ela, homossexuais que resolvem ter filhos
tomam atitudes egoístas, pois não pensariam em como isto poderia trazer problemas sociais
para as crianças:
O que eu acho é assim, que as pessoas acham que podem manipular tudo e
colocar tudo de acordo com suas vontades e seus desejos, só que isso envolve
uma criança, e ninguém se pergunta que tipo de situação, que tipo de resposta
social essa criança vai ter. [...] O que a gente vê na reprodução assistida é que as
pessoas pensam que podem montar a situação que elas acham ideal, né? De
família, de filho, de... tudo mais, quando, na verdade, algumas situações precisam
ser revistas. [...] As pessoas querem realizar seus desejos, mas esses desejos, no
caso da reprodução, envolvem uma terceira pessoa, que é uma pessoa que não está
participando de nada daquilo [...] é uma estrutura diferente, de casais
homoafetivos, em tudo, é uma coisa que você tem que trabalhar com a família, é
um pouco complicado. [...] Apenas acho que as pessoas deveriam refletir um
pouco mais para verem a situação que está se criando para um outro indivíduo que
não está participando daquela decisão, não vai ser para aquela criança uma
situação normal, assim. [...] Enquanto você tem uma estrutura adulta, onde você
já está predisposta a levar esse tipo de situação à diante, a conviver, não há
problema nenhum, mas colocar um outro indivíduo que não tem nada a ver com
aquilo ali, eu acho que é um pouco de egoísmo. Um desejo de situações que... são
difíceis. [...] Um filho não é um objeto (Bárbara, Bióloga, 49 anos).
Olha, eu acho que isso aí é uma coisa que teria que ser trabalhada, que vai ter
que ter um suporte e tudo, porque eu acho que a criança em algum momento da
vida vai querer... vai perguntar: e aí, cadê meu pai? [...] têm que ter um suporte
mesmo, procurar profissionais, porque essas dúvidas, essas perguntam vão
aparecer, até mesmo os coleguinhas na escola... então, eu acho que tem que ser
uma coisa bem trabalhada [...], um profissional, um psicólogo, um assistente social
que possa mostrar o que é de fato, o que está acontecendo[...]. Você sabe que o
desenvolvimento da criança é meio complicado, por isso eu acho que tem que ter
83
Com a enfermeira Larissa as opiniões não foram muito diferentes. Para ela, pode ser
confuso para uma criança crescer num lar com duas mães:
Olha, não é uma questão de preconceito, não é isso, mas essa coisa de filho, da
família. Não sei como será quando essa criança crescer e perguntar: meu pai?
Como é crescer num lar e ver duas mulheres? Ai, eu acho, assim, é meio
confuso. [...] eu imagino, pelo o que vi, assim, de como é importante você ter a
figura do pai, a figura paterna, a figura materna. Eu acho que essas referências são
importantes. [...] Mas fica complexo, porque se eu der a minha opinião fica
parecendo que é a nível de preconceito, mas eu acho que deve ser, no mínimo,
confuso para essa criança. Porque, você imagina quando crescer: e seu pai? Ah,
não, eu moro como duas mães. Porque mais velho, vai para a escola e você sabe
como é, a sociedade, o meio faz uma pressão, tem um padrão, entre aspas, aí
(Larissa, Enfermeira, 42 anos).
Interessante pontuar que para Larissa o uso da reprodução assistida por casais de
lésbicas é algo bastante incompreensível, já que existiriam muitas crianças disponíveis para a
adoção. Neste caso, embora rejeite a maternidade lésbica como legítima, Larissaparece aceitar
a configuração em caso de crianças abrigadas, uma vez que diante da falta de opção seria
melhor oferecer a estas crianças lares homossexuais ao invés de lar algum, argumento
amplamente utilizado por aqueles que refutam o uso da reprodução assistida por
homossexuais e que Uziel (2007) apresenta como argumento do “mal menor”.
Já Sérgio diz que não vê problema no uso das técnicas por casais de mulheres. Em sua
opinião, o fato de ter mães lésbicas não seria em si algo que viesse a prejudicar o
desenvolvimento pleno da criança, mas ele também aponta o receio de que estas crianças
venham a ser discriminadas. Ainda para o médico, devido aos julgamentos que estarão
sujeitas, estas famílias deveriam pensar bastante antes de iniciarem o processo, inclusive para
conseguirem lidar com os olhares de desconfiança que virão:
Para os/as profissionais, como vimos, o receio que as crianças sejam discriminadas é
bastante forte, o que os faz desconfiar da legitimidade da maternidade lésbica. Todavia, vale
trazer o depoimento que Jaqueline e Nádia fizeram quando as encontramos:
Nádia: porque a gente já chegou expondo para o médico o nosso medo pelo fato de
que ele não teria pai, né?
Jaqueline: e aí ela falou: “olha, meninas, daqui a vinte anos, isso vai ser igual a
filhos de pais separados há vinte anos atrás, eu faço tantas inseminações em casais
gays e mulheres solteiras, que daqui a 20 anos, não ter o nome do pai, vai ser como
ser filho de pais separados. Então, vocês fiquem tranquilas”. Ele foi bastante
esclarecedor e acolhedor, nesse sentido, assim.
Portanto, concordando com o médico que recebeu Nádia e Jaqueline, embora não se
possa negar a possibilidade de estigmação social que uma criança filha de homossexuais
possa vir a sofrer, estas situações podem ser comparadas às discriminações que filhos de pais
separados eram sujeitas. Aos poucos, contudo, estas modificações foram incorporadas em
nossa sociedade, ao passo que são situações corriqueiras em nosso tempo (UZIEL, 2007). O
problema parece estar muito mais numa sociedade que discrimina do que numa família que
onde as responsáveis pelos cuidados parentais são lésbicas, famílias que em suas organizações
internas não destoam substancialmente das famílias heterossexuais.
Mas ainda que em suas crenças pessoais os profissionais de saúde possam trazer suas
incertezas e desconfianças ao olharem para a maternidade lésbica, estas desconfianças
parecem não chegar ao conhecimento das clientes. Sobre isto, interessante trazermos um
trecho da entrevista que fizemos com Larissa, onde a enfermeira resume bem esta tensão:
Da escolha por qual das parceiras iria gerar discutida no tópico anterior, foi possível
perceber que as negociações envolviam o fato de que naqueles pares conjugais, apenas uma
das parceiras, no momento da escolha pelo método, desejava engravidar. O passo seguinte é o
material necessário para a gravidez e o que se percebeu foi especial preocupação em achar
elementos físicos e não físicos do doador que se assimilassem às características da mãe que
não teria o DNA compartilhado por seus filhos. Dessas características, chama atenção a rede
de significação que estas mulheres compunham para eleger o doador que mais se aproximasse
do ideal de doador que construíram5. Ao final, os filhos dessa relação teriam as características
das duas mães, ou este seria o desejado por elas.
Os pares lésbicos aqui entrevistados trazem dinâmicas peculiares ao tratar deste
assunto. A seguir, vamos percorrer os relatos a este respeito, indo de casa em casa para
tentarmos pensar acerca dos processos eleitos para construir e significar estas escolhas.
No caso de Helena e Carla, como visto, esta última iria engravidar com seu próprio
óvulo. Alguns indícios sugerem que naquela época tanto Carla quanto Helena não cogitaram
utilizar a ovodoação da parceira através do método ROPA porque sequer imaginavam que ele
seria um recurso possível. De toda forma, cabe destacar que mesmo sendo um método
possível cada casal terá suas próprias escolhas e negociações neste sentido. Ao longo de nosso
encontro não contemplamos esse assunto, o que dificulta qualquer análise mais aprofundada a
este respeito. O relato de Carla nos revela que o casal imaginava que o serviço de reprodução
assistida fosse facultado apenas a casais heterossexuais inférteis, não podendo uma mulher
solteira fazer uso. Mesmo bem antes de iniciarem o processo de escolha pela clínica, o casal
já pensava em amigos do casal ou algum irmão delas como potencial doador. Interessante
destacar que quando finalmente buscaram o serviço, Carla e Helena expuseram a vontade de
ter o irmão de Helena como doador, a fim de que a criança também tivesse laços
consanguíneos com Helena. Diante desse pedido, o médico explicou sobre a impossibilidade
de se utilizar um doador conhecido e indicou os bancos de sêmen. Apesar de todas as
mudanças sociais, insistimos em continuar a genetizar o parentesco. Portanto, quando uma das
mães possuía laços biogenéticos com seus filhos, era bastante comum a ampliação de
estratégias informais para “naturalizar” a relação, escolhendo “características no futuro filho
5
O ideal do doador remetido às características que elegiam como necessárias que estes doadores tivessem para
que fossem transmitidas para os filhos do casal. Assim como Jones (2005), o que se enfatiza aqui são as
características do doador e não um doador em particular, visto que ao final, todas as entrevistadas escolheram
doadores anônimos e sequer desejam conhecer a identidade deles, ao invés disso, eram compreendidos “como
perfis de doadores que combinavam com as necessidades destas mulheres” (JONES, 2005, p. 224 – tradução
livre).
88
que, de alguma forma, vão ajudar a cimentar a relação duradoura de parentesco” (FONSECA,
2008, p. 775).
Não distante desta lógica, para Carla e Helena a comunhão do biológico era algo
bastante valorizado. Por isso, como Carla iria engravidar e seu óvulo seria o utilizado, o
doador anônimo deveria ter as características de Helena, características que escapam inclusive
à lógica biologizante do processo, uma vez que além de se parecer fisicamente com ela, o
doador deveria ter características que, necessariamente, não são transmitidas a partir do
sangue, como religião ou profissão.
Helena: eu acho que cada pessoa tem uma ligação com alguma coisa, né? A gente
se interessou muito por... quer dizer, eu sou judia, porque nasci judia, não
frequento nada. Ela é católica. De alguma maneira, tem uma raiz aí. Aí, vendo
isso eu falei: ah, queria que fosse judeu.
Carla: ela fez design de interiores e esse doador era judeu, olhos claros, porque
ela tem olhos claros, arquiteto, cabelos lisos, gostava de esportes, porque ela é
muito ligada a esportes. No questionário eles respondiam o que gostavam de
fazer nas horas de lazer, uns respondiam: teatro e livros, e a gente escolhia o que
gostava de esportes, só que nas quatro primeiras tentativas, nós fizemos seis
tentativas, mas nas quatro, com doador judeu, não deu certo. Aí, já não tinha mais
doador judeu ...
Helena: que se encaixasse com as outras características que a gente queria, a gente
queria com uma combinação de características...
Carla: é, um doador judeu, ele era muito claro, né? Loiro, olho azul...daí eu pensei:
nossa, vai ser muito diferente da gente.
Interessante perceber que embora tenha aberto mão do doador judeu ao final das
tentativas, o fato de ser judeu era algo valorizado por elas. Portanto, não se trata apenas de
características físicas, para que os filhos se pareçam com as duas, vai além, essas escolhas
tocam em símbolos de pertencimento, como no exemplo do doador judeu, que partilha a
mesma comunidade, origem e possivelmente valores. O que colocaria seu filho inclusive no
seio familiar de Helena, de família judia.
O mesmo é observado por Jones (2005) quando a autora entrevistou um casal de
lésbicas onde a escolha pelo doador anônimo de sêmen privilegiava o fato deste serjudeu, já
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que aquela que não teria qualquer laço consanguíneo com a criança era judia. Para a autora, a
escolha de um doador judeu facilitaria um link cultural entre a co-mãe e sua família extensa e
a criança. Todavia, antes de colocar este movimento como simples repetição de normas e
modelos heteronormativos, Caroline Jones faz uma importante observação: pela Lei Judaica, é
pelos genes da mãe (e gestação) e não pelos genes do pai biológico que a identidade judaica é
passada para os filhos, portanto, se faz de forma matrilinear. Ao recorrerem ao doador judeu,
tanto Helena quanto Carla, quanto Jane e Helen (ouvidas por Jones), mobilizam discursos que
giram em torno de construções genéticas, culturais e da própria identidade judaica, desafiando
esta norma, criando novos modos de significação.
No caso de Jaqueline e Nádia, embora Nádia não fosse exercer a maternidade,
conforme combinado por elas, ela também participou desta escolha. Todavia, buscavam
características que se aproximassem das de Jaqueline, que de origem libanesa buscava um
doador que fosse libanês, além de ter características físicas próximas as suas:
Jaqueline: pois é, se você esperar mais um pouquinho, você vai ver o que saiu (as
duas riem).
Jaqueline: ele parece comigo, mas ele é loiro de cabelos lisos. É loiro! É... é... vai
fazer o que? Você vai questionar isso? Não. Você escolheu um doador, aquele ali
que foi feita a fertilização em você, nasceu loiro, você vai falar o que para o
médico?
Jaqueline: queria, queria... queria, pra se parecer comigo, para ter uma
referência minha...
Nádia: tinha duas chances de se parecer com ela. Ele era libanês, né?
Também aqui percebemos que a escolha pelo doador envolveu laços de pertencimento.
Jaqueline, de família libanesa, busca alguém que agregasse, além das características físicas
suas, a mesma origem étnica. Chama atenção a observação de Nádia, que em tom de
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brincadeira revela que Jaqueline, ao escolher o doador com suas características e ao usar seu
próprio óvulo, tentaria ter certeza de que seu filho iria se parecer com ela.
Com Elizabeth e Gabriela as negociações também envolviam a busca por um doador
que tivesse as características de Gabriela, visto que o óvulo seria de Elizabeth, que também
geraria a criança. Também aqui percebemos que a escolha envolveu símbolos que colocavam
o doador e Gabriela num mesmo partilhamento de valores, ou crenças. Neste caso, Gabriela
buscava um doador católico, pois tanto ela quanto sua família se denominam católicas. Neste
casal, pude ter acesso à planilha com as características dos doadores. Até então, elas me
diziam que a busca visava contemplar as características físicas de Gabriela, mas, ao notar que
os doadores destacados por elas tinham em comum a religião católica, perguntei ao casal se
eram católicas, ao que Gabriela respondeu que sim, que era bastante católica, bem como sua
família.
Elizabeth: Para mim, o importante era o tipo sanguíneo, e para ela era... tipo,
religião, a parte de esportes. Então, a gente falou: vamos lá! Qual é o tipo
sanguíneo que eu quero? E já eliminou mais um monte. Porque se a gente fosse
ficar olhando cada um, aí surge muita dúvida.
Elizabeth: eu queria a meu. E o meu é o dela. Para não ter essa parte da
incompatibilidade que disseram que poderia existir.
Gabriela: daí foi por eliminação. Dos que a gente queria, que eram brancos...
Gabriela: A gente não queria ninguém com olhos claros, que eu não tenho e nem
ela...
Elizabeth: é... daí, tipo, em esportes, o cara gostava,tipo, de meditação (risos), daí
esse “tava” fora.
Gabriela: é o que te digo, qualquer pessoa poderia dizer que é católico e não
necessariamente ser um católico praticante, porque no catolicismo tem muito isso.
Você não vai ver um evangélico que dirá: ah, eu sou um evangélico não praticante.
Mas com católico tem isso. Mas, na minha viagem, ah, é do mesmo meio que eu,
tem as mesmas crenças, tinha coisas minhas, né? Era um pouquinho de mim ali.
Mas, é assim, o doador poderia mentir. As características físicas não, ela está
vendo, a altura, a cor dos olhos, cabelos, está medindo, mas o resto não.
Elizabeth: é, uma coisa que era muito importante para ela era a questão da massa
corporal...
91
Elizabeth: é, porque o cara poderia ter 1,85 m e 80 kg e... ah, é magro, mas poderia
ter 1,75 e 85 kg, ah, ele já seria mais gordinho. Então, está questão da obesidade
era importante para a gente. Mas, com essas informações daqui a gente não
consegue ver. A gente não tem a idade dele...
Gabriela: pois é, a gente não tem a idade, porque com a idade a gente consegue
fazer o IMC. E porque isso é importante? Para a saúde dele. Porque com pais
obesos, a probabilidade de ele ser obeso é maior.
Patrícia: é... o gostar de futebol era porque não era muito diferente de nossa
realidade...
Marcela: primeiro eu queria que tivesse uma faculdade, nível superior, e... já que
podia escolher (risos), já que a gente tinha essa vantagem, a gente queria um loiro,
de olhos azuis. [...] Os bancos de sêmen no Brasil são muito... são poucos. Porque
a gente queria que tivesse uma faculdade e eu queria que fosse relacionada à área
de saúde, que é minha área, como hobby música, que gostasse de viajar, que é o q
agente gosta... mas aí já era pedir demais, não tinha nada disso. [...] E aí a gente
pegou um que tivesse faculdade, um que não era tão alto, porque também... é bem
restrita a lista aqui no Brasil. Então, a gente pegou algumas características que a
gente queria, assim, era loiro, de olhos verdes, tinha faculdade, era baixinho
(risos).
uterina quando a doadora do óvulo não é parente de até segundo grau daquela que irá gerar a
criança.
A inclusão de um irmão/cunhado ou de um amigo entra como possibilidade, ao menos
inicial, quando o casal aventa a possibilidade de efetivar o projeto materno. Sobre o desejo de
incluir o gameta do irmão/cunhado, Grossi (2003) observa que a inseminação artificial com o
esperma daquele que seria seu cunhado teria como consequência garantir a consanguinidade
da criança e um local socialmente garantido no parentesco através da nominação dentro da
família da cada uma das parceiras. Mas essas solicitações são refutadas por muitos motivos:
um deles é a própria negativa das clínicas em realizar o procedimento, outro se refere ao papel
que esse doador conhecido iria desempenhar posteriormente. Seria ele pai da criança? Em
algum momento ele iria interferir nesta relação ou reivindicar a função parental? Aquela que
não compartilha do DNA com a criança estaria ou se sentiria ameaçada caso esse doador se
corporificasse? De fato, estes foram alguns dos receios que estas mulheres trouxeram.
Portanto, o apagamento desse doador como sujeito parece reforçar a lógica da família nuclear
nestes espaços, pensando ainda na reprodução da família monogâmica heterossexual. Pois
embora sejam compostas por um par conjugal feminino, estas famílias não necessariamente
destoam substancialmente em seu modo de agir, organizar ou de reproduzir modelos das
demais famílias que tenham como pares um homem e uma mulher.
As buscas e negociações sugerem inserir o doador de esperma como potencial
necessário a fim de dar conta do plano do casal lésbico em reproduzir os modelos de
reprodução sexuada heterossexual - uma vez que somente espermatozoide e óvulo podem
produzir bebês. Isto porque a escolha tanto por características físicas quanto por
características subjetivas visavam encontrar um equivalente masculino do par parental que
não gestaria ou, ainda que gestasse, não teria a comunhão da herança genética. Embora a
aceitação e reconhecimento social das crianças como fruto daquele casal, seja a partir de
características físicas, ou ainda por pertencimentos étnicos, raciais ou culturais, fosse
levantada como argumento para a escolha de características que se aproximassem, é
importante ter clareza de que o valor do que identificamos como biológico é uma construção
social de destaque na nossa sociedade.
Embora alguns autores apontem que mudanças sociais e avanços tecnológicos, como a
reprodução assistida, ajudaram a reduzir o peso que a ancestralidade teria como fator
constituinte do sujeito –aventando a destruição dos mecanismos sociais que vinculam as
experiências pessoais da cada sujeito às das gerações passadas (SZAPIRO; FÉRES-
CARNEIRO, 2002) –, é preciso lançar um olhar atento a esta observação. Embora o
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procedimento sugira este caminho, nota-se nos exemplos trazidos que a lógica da
ancestralidade ainda está presente no momento em que estas mulheres buscam encontrar no
doador anônimo linhas e redes que as conecte a elementos que deem conta de suas origens
para que os futuros filhos compartilhem suas características. Neste sentido, um doador judeu,
libanês, católico ou ainda “bem brasileirão” se desenvolve como artifício para aproximação
dessas mulheres e de suas famílias da criança que biologicamente não estará ligada a uma das
mães, embora não sejam atributos cuja herança dependa estrita e claramente do genético ou
do sangue. Importante destacar o valor da comunhão de símbolos de pertencimento e o peso
que o elemento sanguíneo ainda hoje fortemente possui em nossa sociedade quando entra em
discussão o reconhecimento de indivíduos a partir das linhagens genéticas. O se aventa é a
construção de significado que o sangue assume nestes jogos de força, sendo caracterizado
como o veículo de transmissão de características de pais para filhos e constituindo, portanto,
uma herança de família (LUNA, 2007), ideia que aparece disseminada em diversos locais e é
apropriada por múltiplos atores.
Luna (2007) aponta, em pesquisa realizada em centros reprodutivos, onde teve contato
tanto com profissionais de saúde quanto com usuárias do serviço, que a opção por clínicas de
reprodução assistida em detrimento da adoção, por exemplo, levava em conta, em certos
casos, o receio que alguns pais – heterossexuais e que não iriam recorrer a bancos de doadores
de gametas - tinham de que seus filhos herdassem características comportamentais ou
determinados desvios sociais dos pais biológicos. Uma das informantes da pesquisadora
chegou a afirmar que jamais adotaria uma criança da cidade de São Paulo, onde residia, pois
possivelmente ela seria filha de traficante. Em outro momento, a autora entrevistou um
médico que dizia que não mais indicava adoção aos casais com dificuldade reprodutiva, pois,
para ele, grande percentual dos casos que acompanhou indicava que estes filhos adotivos
possuíam baixo coeficiente de rendimento intelectual e se envolviam com drogas. Essas
afirmações chamam atenção pelo teor estigmatizante, que relaciona, em última instância,
classes sociais a desvios de conduta ou a desempenhos intelectuais, demonstrando uma lógica
que atribui forte peso ao componente sanguíneo ou genético, como se neles estivessem os
genes que dariam conta da constituição social do sujeito e das regras e relações que este iria
estabelecer consigo e com os demais.
Por tudo isso, percebe-se que o sangue abrange características físicas e sociais, e os
laços de sangue são construídos como símbolos de pertencimento entre pessoas (LUNA,
2007). Estes laços são, inclusive, evocados para dar conta de relações de parentesco ou
filiação entendidas como mais verdadeiras.
96
ideia de que ao buscar nas características do doador de sêmen elementos que se aproximem à
“segunda mãe” casais de lésbicas estariam reproduzindo irrestritamente modelos familiares
heteronormativos, pois, para ela, ao invés de uma fixação biológica, as escolhas destas
mulheres envolveriam processos que reconfigurariam os laços biogenéticos, que se
adaptariam às necessidades e desejos destas mães. Claudia Fonseca (2008), seguindo em
direção parecida, aponta que ao invés de se ater demasiadamente a invariantes simbólicas de
algum universo cultural, movimentos que apontem para as mudanças seriam pistas mais
promissoras a seguir. De fato, apontamos que nossos movimentos de lentes propõem
dirigirmos nossos olhares para diferentes locais, para aquilo que destoa e para aquilo retorna
ao hegemônico.
Sabemos que assuntos que versem sobre homossexualidades ainda geram bastante
burburinho em nosso país. Embora pretensamente laico, sabemos que crenças e preceitos
religiosos, seja de legisladores/legisladoras ou de juristas, ainda se configuram como forte
barreira quando entram em pauta discussões que se proponham a igualar direitos. A falta de
respaldo legal coloca essas relações em situação de vulnerabilidadee assimetria quando
comparadas a situações similares onde quem deseja acesso a direitos se assume heterossexual:
seja união civil, adoção de crianças, etc. Embora seja importante reconhecer que avanços
pontuais estejam ocorrendo - como a importante decisão de Supremo Tribunal Federal que, no
ano de 2011, numa votação histórica e unânime reconheceu a união estável entre pessoas do
mesmo sexo como legítima, ou mesmo quando antes dissoalguns juristas reconheciam a
legitimidade dessas uniões e deferiam estes pedidos, ou quando homossexuais (sozinhos ou
como casal) conseguiam adotar crianças ou acessar reprodução assistida - sabemos da
dificuldade de se colocar em pauta projetos de leis que abordem estas questões, pois embora
ocorram decisões favoráveis, é a falta de leis específicas queobriga homossexuais a acessarem
a justiça para ter seus direitos reconhecidos.
No caso das mulheres por nós entrevistadas, a luta pelo reconhecimento da
maternidade da “segunda mãe” mistura alguns elementos, que tocam no reconhecimento legal
desta relação, mas que tocam ainda na incorporação deste reconhecimento nas relações sociais
e familiares que estabelecem. Embora o estabelecimento de relações de afeto e sociabilidade
98
precedam a inclusão desta mulher na certidão de nascimento dos filhos, certamente esta
inclusão cimenta esta maternidade, solidificando esta relação, que, legitimada por códigos
sociais e jurídicos, passaria a ser inquestionável.
Este cenário que cerceia direitos às mães lésbicas que não geraram seus filhos fica
ainda mais complexo quando observamos os casais heterossexuais. No caso do uso da
reprodução assistida, por exemplo, por largo período, como discutimos anteriormente, a
mulher que fosse casada ou vivesse em união estável necessitava que seu marido assinasse o
consentimento informado, mesmo em caso onde o casal recorresse a bancos de sêmen. Com
isso, o que se presumia era que o companheiro da mãe seria o pai da criança. Caso fosse
utilizado material de doador, este não seria reconhecido como pai, inclusive pelo caráter de
anonimato da doação, que evitaria qualquer consequência neste sentido. O que fica evidente
aqui é ainda a predominância do modelo patriarcal como constituinte de diversos códigos que
regem os modelos de organização social e que elegem algumas formas como legítimas,
colocando outras à margem. Isto porque, se é pela afetividade – e pela moralidade – e não
apenas pelo sangue – tomando como exemplo o que acabamos de citar com o uso de doador
anônimo – que a presunção de paternidade é estabelecida, o reconhecimento, sem necessário
acesso à justiça, da mesma relação quando se trata de um casal de mulheres também poderia
se valer do mesmo argumento: da afetividade existente naquela relação. Se antes a presunção
de paternidade tinha a pretensa função de garantir a sucessão de bens dentro do casamento,
limitando-os aos filhos que dali surgissem (VEDOI, 2005), hoje, usando como exemplo os
casos que trazemos aqui, ela também nos revela uma sociedade onde o exercício da cidadania
ainda esbarra em códigos patriarcais e heteronormativos. Pois ainda que possa se valer do
princípio da afetividade, a requerente lésbica não irá apenas ao cartório para registrar seus
filhos, antes disto terá que acionar a justiça para garantir seu direito, que poderá ser deferido
ou não. Embora a existência de jurisprudência possibilite que deferimento seja real, o
caminho pode ser longo e dispendioso.
Sobre o afeto, Tartuce (2012) afirma que ele passou a ter valor fundamental na
doutrina contemporânea dos juristas quando entram em pauta assuntos que versam sobre
Direito de famílias. Afetividade, todavia, não se limita necessariamente ao amor, sendo, ainda
segundo o autor, relação de interação ou ligação entre pessoas. Embora a discussão sobre
afetividade ainda prossiga a seguir, propomos mover nossos olhos para outro importante
ponto desta discussão: mesmo que um homem não seja casado, ele pode ter sua relação
paterna reconhecida se assim o desejar, basta que se apresente como tal e queira registrar a
criança, estando ou não acompanhado da mãe da criança. No entanto, outra mulher, que não
99
aquela que pariu, não poderá solicitar ser também mãe da criança, estando ou não vivendo
com sua companheira, indo ou não acompanhada por esta. Quando existe um homem para
assumir a paternidade de alguém - e onde não haja recusa das partes envolvidas -, este
reconhecimento não precisa passar pelo crivo dos juristas, mas quando quem assume a voz é a
mulher - seja para nomear o pai de seu filho sem a presença deste ou ainda para nomear uma
segunda mãe para seu filho - esta voz é esvaziada de legitimidade.
Quadro que se acentua quando levamos em conta que além de patriarcal, nossas leis
ainda são fortemente heterocêntricas. Pois ainda que estas mulheres possam equilibrar este
jogo quando conquistam na justiça o direito à maternidade, o que se aponta vai além disto: o
que se coloca é que ao contrário do que a falta de amparo legal possa sugerir, estas mulheres
não figuram como coadjuvantes maternas. Elas participaram de todo o processo, foram ativas
nas escolhas e decisões, e construíram com suas companheiras o projeto de maternidade.
Como dito, para o afeto e demais relações estabelecidas entre essas mulheres e seus filhos não
seria necessária a chancela do Estado, mas para a rede de pertencimento social, familiar e
mesmo pessoal, o reconhecimento legal desta relação possuiria forte peso, e reduziria a
enorme assimetria de direitos entre famílias heteroparentais e homoparentais. Porém, na falta
de códigos que incluam estas pessoas, as lutas na justiça são caminhos bastante comuns.
Entre disputas judiciais e demais dinâmicas, as mães lésbicas parecem lançar mão de
alguns recursos para oficializar a maternidade, artifícios que muitas vezes parecem muito
dizer acerca de símbolos de pertencimento, como a constituição de redes de significação que
possuem alguns laços simbólicos que representam, solidificam e ajudam a constituir a
maternidade para si e para os demais.
Um dos recursos amplamente utilizado por casais de lésbicas que recorreram às
tecnologias reprodutivas é a inclusão do sobrenome da companheira que não pariu na certidão
de nascimento das crianças. Embora legalmente não seja permitido, todas as entrevistadas que
não deram a luz, com exceção de Nádia, que se coloca como madrinha, acrescentaram seus
sobrenomes na hora de registrarem as crianças. Cavadinha (2012), ao realizar pesquisa sobre
maternidade lésbica e uso de reprodução assistida, também observou que a inclusão do
sobrenome não era prática incomum dentre suas entrevistadas. Embora ilegal, muitos
cartórios acabavam não contestando a inclusão do sobrenome desconhecido nas certidões de
nascimento das crianças. Ao examinar estudos internacionais sobre o assunto, o autor
constatou ser esta uma das práticas mais comuns utilizadas pelas lésbicas que desejavam
construir os laços de reconhecimento pessoal e social da maternidade. Ainda que esse recurso
não garanta o reconhecimento legal da maternidade da “segunda mãe”, ele possui elevado
100
valor para elas que, de certa forma, também se reconhecem naquela relação. Pois pelo
sobrenome, essas mulheres ajudam a imprimir certos contornos nas dinâmicas que elas e seus
filhos estabelecerão, seja com a linhagem familiar, que pelo sobrenome pode se reconhecer
ali, ou seja, ainda, por conta dos enlaces que estabelecem com demais meios sociais, que
reconhecerão a filiação, antes, pelo sobrenome.
Embora a disputa judicial se configure como um importante processo, parece ainda
que a inclusão do sobrenome precede esta etapa. São construídas verdadeiras redes de
significação que justificam o valor que a inclusão de um sobrenome tem para estas mulheres,
pois se não carregam o sangue, o reconhecimento pode vir primeiro pelo sobrenome que
compartilham. Pensar que seus filhos carregarão seus sobrenomes pode significar para essas
mulheres que concretamente existe algo delas neles, se não é pelo sangue, haverá o nome para
garantir a filiação social. Pois, se a maternidade figura como um local não reconhecido, a
produção de sentido que a inclusão do sobrenome, que a escolha das características do
doador, que as formas eleitas de gestação, enfim, que todos estes processos representarão irão
significar tentativas de inserções simbólicas ou não dessas mulheres na maternidade e nas
relações que estabelecerão com seus filhos, além das relações que surgirão a partir daí, seja
com a família de sua companheira, seja com sua própria família extensa, com demais
conviventes, enfim. Pois, se com a mãe que gerou estes processos podem ocorrer de forma
autorizada e naturalizada, aquela que não gerou, ao contrário, terá que construir meios para
conquistar estas autorizações. A construção de elos que legitimem o materno será
potencializada, talvez mesmo pela própria mãe sem vínculo consanguíneo.
Nosso campo nos mostrou que a maioria dos casais lésbicos tinha na
gravidez/maternidade um projeto comum, portanto, todas essas se nomeavam mães, sem
qualquer distinção de tratamento ou pertencimento na relação que estabeleciam com seus
filhos, embora nem sempre essa relação tenha sido percebida ou reconhecida nas famílias
extensas daquelas que não possuíam laços consanguíneos com as crianças. Talvez o recurso
da inclusão do sobrenome passe pela tentativa de estabelecer laços de filiação, além, como
dito, de laços de reconhecimento social dessa maternidade, pois ao reconhecer esse
sobrenome como comum aos filhos e às mães, o reconhecimento social dessa parentalidade
pode se dar sem que haja a necessária revelação da conjugalidadeentre a “segunda mãe” e a
que consta oficialmente como tal. Além da criança com sobrenome possuir avós, tios, primos,
enfim, parentes que se reconhecerão a partir deste elo, poderá o sobrenome estabelecer
conexões entre os integrantes familiares da segunda mãe e seus filhos. Seja como for, o
101
caminho para a inclusão desse sobrenome se revela sinuoso para algumas e criativo para
todas.
Quem primeiro utilizou este recurso dentre nossas entrevistadas foi Helena. Consta
nos registros dos gêmeos Bruno e Daniel apenas o nome de Carla como mãe das crianças e
apenas os pais de Carla são reconhecidos legalmente como avós dos meninos. Até o momento
de nosso encontro, Helena não havia entrado com pedido de adoção unilateral dos gêmeos.
Quando indagada se um dia pretendia recorrer à justiça ela disse que sim, mas iria esperar as
“coisas ficarem um pouco mais fáceis”. O forte receio que o casal tem de ter seu pedido
negado é apontado como um dos fatores para esta espera:
Carla: eles ainda não foram registrados no nome dela, por isso, porque não sabe
por quantos juízes a gente vai ter que passar...
Helena: estamos esperando as coisas ficarem mais fáceis. Eles já têm o meu
nome, porque a gente acrescentou meu sobrenome ao nome deles, então, não vai
mudar muita coisa. Não vai mudar muita coisa não, não vai mudar o nome. Mas na
certidão, só ela aparece como mãe.
Gabriela: [...] esperei ela sair da maternidade e “vamos registrar”. O meu nome é
Gabriela Porto, o dela é Elizabeth Aguiar Souto, nós queríamos colocar Thiago
Porto Aguiar Souto, não conseguimos no primeiro, não conseguimos no
segundo...não conseguimos, não conseguimos... chegou o limite para fazer o
registro, no 20 º dia do nascimento, daí pensamos, bem, vamos ter que registrar
como Thiago Aguiar Souto, depois a gente entra com o processo, e fomos
registrar, muito nervosas para tentar pela última vez, inventamos uma história [...],
porque das outras vezes a gente chegou a falar a verdade: “olha, a gente é uma
casal, a gente se ama”... e a moça disse: “sinto muito, mas não posso”. Teve outra
que a gente mentiu, disse que era o nome do avô, mas não teve jeito. Nesse dia,a
gente entregou para Deus mesmo, e foi incrível! O cara entrou e, pronto, o nome
dele vai ser Thiago Porto Aguiar Souto! Nossa, menina, a gente saiu de lá...
Interessante que Gabriela usou diferentes artifícios para ter o seu pedido aceito,
inclusive fazendo menção ao amor que sentia por sua companheira, como se ao fazer alusão a
isto tentasse higienizar a sua relação lésbica ou direcionar a atenção para a afetividade e
cuidado e retirar do sexual e do desejo, ou porque, de fato, sua justificativa refletisse o que de
fato sentia: que seu filho era fruto de seu amor por sua companheira. Com Marcela, todavia, o
caminho foi menos árduo. Conforme conta, o fato de sua profissão ser socialmente valorizada
e respeitada, ela se apresentou como tal para dar solidez ao argumento que usava para tentar
102
Vivian: deu uma carteirada e funcionou (risos). E agora fica mais fácil, porque
na hora que saírem os documentos, de convênio e tal, eles já têm o meu
sobrenome. E eu fiquei feliz, eu fiquei super feliz quando isso aconteceu. É muito
louco, mas você fica feliz de saber que tem seu nome, seu sobrenome.
Embora para Vivian e Marcela a “carteirada” médica tenha se mostrado uma importante
saída, mais uma vez aqui colocamos nossas lentes direcionadas para as linhas de força que
constituem práticas e legitimam certas vozes. Neste caso, diante da lacuna produzida pelo não
pertencimento a um lugar específico, tanto Vivian quanto Gabriela – bem como suas
companheiras – precisavam buscar recursos para que conseguissem inserir seus nomes
familiares nos registros dos filhos, mas, como vimos, parecia que a profissão de Marcela
tornava seu discurso legítimo ou mais confiável que o de Elizabeth. Guiado pela moralidade
que hierarquiza discursos, o funcionário que atendeu Marcela ofereceu-lhe, inclusive, melhor
tratamento. Mas a questão que se coloca vai ainda além: o reconhecimento da maternidade
deveria passar por aí? Seria necessário reconhecer profissões, credos e condição social para
permitir a uma mulher reconhecer o filho que teve com sua companheira? Impasses que só
poderiam ser respondidos caso estas mulheres pudessem ser, de fato, cidadãs plenas de
direitos.
Para Bourdieu (1997) a família ao mesmo tempo é um princípio de construção
transcendente e imanente aos indivíduos. Ainda para o autor, ela teria fundamental papel na
manutenção da ordem social, reproduzindo a estrutura do espaço social e das relações sociais,
portanto, seria ela espaço privilegiado para acumulação de capital - de diferentes tipos - e para
sua transmissão entre as gerações, sendo a transmissão do nome de família, por exemplo, o
“elemento primordial do capital simbólico hereditário”(p.131), que embora fosse atribuído
pelos pais aos filhos, aqueles seriam apenas os sujeitos aparentes da nominação, pois estariam
operando princípios que não dominam e regras que não fizeram. Portanto, essa transmissão
103
simbólica que o nome familiar propicia conecta os elementos familiares a engrenagens bem
mais complexas que as aparentes. O nome reconhecido como filiação, além de elementos
simbólicos, transmite demais pertencimentos, como os sociais. Para Lídia Levy (2007), o
sobrenome - a partir de um sistema de regras juridicamente definidas - indica o pertencimento
a uma linhagem. A autora acredita que o nome e o sobrenome delineariam o destino daquele
que é nomeado, inserindo-o no lugar simbólico que este ocupará no parentesco. Embora seja
importante tensionar o teor determinista que esta sentença possa ter, importante
compreendermos o local simbólico que a inscrição do sobrenome tem para estas mulheres e
para suas famílias. Especialmente se levarmos em consideração que a luta para o
reconhecimento dessa relação enfrenta ingredientes peculiares, pois é pela homossexualidade
dessas mulheres que a parentalidade não é reconhecida como um direito que poderia ser
requerido, da mesma forma que ocorria com um pai, por exemplo, que desejasse reconhecer o
filho gerado por sua companheira, pois potencialmente esta paternidade é presumida, como
discutimos
Ainda para aquelas que recorrem à justiça, a inclusão do nome familiar da segunda
mãe facilita para que a criança não tenha que modificar seu nome futuramente, pois mesmo
com a inclusão da outra mãe, o nome com o qual a criança se reconhece não será alterado,
preocupação exposta pelas próprias mães que conhecemos. De fato, diante do cenário pouco
favorável, estas mulheres compõem roteiros criativos para conseguirem se incluir nos códigos
legais e sociais que não as permitem amplo acesso.
104
Ainda que o caminho até a gestação e o parto tenha sido longo, para muitas, ele não
será o único tortuoso. Além de ser uma família sob suspeita, a falta de reconhecimento legal
dessa relação e dos filhos originados a partir daí se configura como grande barreira a ser
vencida pelos casais que desejam partilhar a maternidade, de fato e de direito. Ter esse
reconhecimento garantido permite que diferentes elementos sejam incluídos na relação, como
veremos a seguir. Nosso último ajuste de lentes nos levará a percorrer estes caminhos, que
tocam no reconhecimento de direitos e construções de sentido e pertencimento que a luta pelo
reconhecimento da dupla maternidade ou da adoção unilateral acrescenta nestas famílias, bem
como de que forma reagem estas famílias diante de olhos que julgam e desconfiam.
5.1 “A gente tem que matar um leão por dia” – uma família sob suspeita
Ainda que a chegada dos filhos pareça melhorar a aceitação do casal no ambiente
familiar, não foram incomuns os relatos acerca de suspeitas levantadas, fosse por amigos ou
parentes, quando os casais manifestaram o desejo de ter filhos. Entram em cena diferentes
fatores, um deles é o próprio uso da reprodução assistida, recurso ainda bastante permeado
por crenças e desconfianças, outro, e possivelmente mais relevante ainda, o fato de duas
mulheres, enquanto casal, optarem por gerar e criar uma criança.
Essas famílias sob suspeita, onde homossexuais são responsáveis pelos cuidados
parentais de uma criança, são as famílias homoparentais. Embora não seja nenhuma novidade
famílias chefiada por homossexuais, a visibilidade se acentuou nas últimas décadas, seja por
conta de movimentos que reivindicam direitos ou ainda pela maior exposição pública da
acentuação do interesse lançado pelas mídias em geral, bem como por conta da ampliação de
estudos, especialmente sociais, que visavam dar conta desse fenômeno. Embora seja
importante pontuar que não se trata de uma novidade ou ainda da evolução de um modelo
familiar, já que isso significaria concordar que existiria um modelo único, ideal e nos daria,
ainda, a ideia de acontecimentos históricos que se dão em sentidos lineares, o que certamente
105
não trazemos aqui, o termo homoparentalidade surgiu apenas em 1996, sendo um neologismo
criado pela Associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas (APGL), criado para designar
a situação onde um homossexual é ou pretende ser responsável pelos cuidados parentais de,
no mínimo, uma criança (ZAMBRANO, 2006).
Apesar do uso do termo “homoparentalidade” suscitar inúmeros questionamentos, uma
vez que daria um especial enfoque à orientação homoerótica dos pais associada ao cuidado
com os filhos, Zambrano (2006) acrescenta que seu uso seria importante para nomear uma
família até então sem nome, colocando essa composição familiar em evidência e permitindo,
assim, a abertura para um espaço de discussão. Contudo, é importante verificar que o
exercício da sexualidade, seja homo ou heterossexual, não necessita estar presente quando
falamos em funções parentais, como nos lembraUziel (2007).
Entretanto, das configurações familiares que despontam em nossa sociedade, é a
homoparentalidade que figura como uma das mais polêmicas e rechaçadas socialmente.
Embora a organização e as relações internas destas famílias não destoem substancialmente do
modelo familiar burguês nuclear tradicional, o exercício da sexualidade dos pais e mães
homossexuais ainda gera desconfiança e desconforto de vários setores sociais, especialmente
os ligados a grupos religiosos. E é, principalmente, pela orientação sexual dos/das
responsáveis pelos cuidados parentais, e não pela qualidade das relações parentais, que a
homoparentalidade é posta em xeque. Suspeita sustentada em visões rasas ou homofóbicas da
situação. Inclusive porque a partir da década de setenta, especialmente nos Estados Unidos,
grande quantidade de pesquisas foi realizada a fim de verificar a adequação do funcionamento
das famílias homoparentais. Os resultados, ao final, mostraram não haver diferenças
significativas entre crianças criadas por famílias homoparentais e crianças que receberam os
cuidados parentais de heterossexuais (GARCIA et al, 2007).
Sob suspeita ou não, sabe-se que a homoparentalidade não é nenhuma novidade, foi e
continua sendo composta de diferentes formas: muitas vezes a pessoa teve uma relação
heterossexual anterior e os filhos são fruto dessa relação precedente, noutros casos ocorre uma
combinação entre uma mulher lésbica com um homem gay, numa co-parentalidade, existe
ainda a adoção, seja por um dos parceiros separadamente ou por ambos como casal e ainda a
chamada adoção à brasileira, uma prática ilegal, porém bastante difundida no Brasil
(GROSSI, 2003). E, como vimos, existe ainda a utilização das técnicas de reprodução
assistida, empregada especialmente por muitos casais de lésbicas que desejam engravidar,
como as informantes trazidas nesta pesquisa. Embora não seja exclusiva neste sentido, a
homoparentalidade nos ajuda a desmistificar a composição nuclear heterossexual
106
monogâmica como única configuração possível. Como nos lembra Berenice Bento (2012), “a
família nuclear é apenas uma, entre tantas outras possibilidades de se organizar a família” (p.
275). A autora prossegue lembrando, como visto anteriormente, que uma das grandes
contribuições do feminismo foi politizar o privado, tornando evidentes as relações
assimétricas que se efetivam em seu âmbito, além de permitir a visibilidade de arranjos
familiares “desencaixados” do padrão nuclear. Para ela:
Visibilidade que não vem sem olhares inquisitórios, olhares que desconfiam,
controlam, condenam, ou aceitam, com ou sem certa suspeita inicial. Nisto sim podemos
pensar que a homoparentalidade se diferencia dos demais arranjos familiares, pois antes
mesmo de nascerem, estas famílias já estão sob suspeita de muitos setores. E sabem disso,
tanto é assim que ao falar sobre as relações que sua família estabelecia com as demais
famílias e outros tipos de instituições, Jaqueline não se furtou em dizer: “nós matamos um
leão por dia”. Pensemos, então, na luta contra esses leões. Ao que parece, o primeiro combate
ocorre dentro delas próprias, que reavaliam conceitos e preconceitos quando decidem exercer
a maternidade:
É, e aí eu passei a ter medo de... é... não medo de ser mãe, mas medo, assim, de
todo preconceito que um filho poderia sofrer. Eu não conhecia ninguém de
minha rede social que, homo, de uma família homoafetiva que tivesse um filho
[...]. Eu tinha muito receio de como os meus filhos seriam recebidos pela
sociedade, os nossos filhos, assim...e aí eu tinha muito receio de engravidar. E
nessa minha crise eu decidi que queria ser mãe... não quero conhecer a Europa,
não quero... não queria nada, só queria ser mãe. Então, vou enfrentar. E aí a gente
decidiu(Carla, Mãe, 40 anos).
Para Jaqueline, reações homofóbicas direcionadas a ela nunca foram percebidas, mas
quando tiveram como projeto a maternidade, o casal passou a ter mais atenção quanto a isso:
Nádia: é,eu acho que antes dele, a gente nem pensa muito nisso, né?
107
Jaqueline: é...
Nádia: a gente não fica pensando no que as pessoas vão pensar ou no que vão
dizer, mas aí eu acho que depois que ele vem você começa a se questionar um
pouco...
Jaqueline: ah, isso sim, em relação ao medo do preconceito com ele é outro.
Embora Jaqueline nos lembrasse a todo instante que sua família fora bem recebida e
que nunca tiveram qualquer problema por conta de sua orientação sexual, é interessante
percebermos o quanto essas questões passam por esses lares, o quando entram nas dinâmicas
e negociações do casal parental. O fato de apenas Jaqueline ser reconhecida como mãe de
Gustavo também sugere que a aceitação dessa família passa por olhares mais duros, olhares
que às vezes são lançados por elas próprias:
Jaqueline: a gente achou que era muito duas mães também. Essa foi uma
decisão que a gente pensou muito. A gente achou que era muito, não ter pai e
ter duas mães. A gente achou que não era necessário, que era mais uma questão,
mais uma questão para os amigos, mais uma questão para se explicar, não são
poucas.
Carla: Mas, aí, quando eu resolvi engravidar, quando a gente resolveu ter filhos, a
gente resolveu que não iria contar para eles, porque a gente sabia que ia ser um
outro processo. Daí comentei com meu irmão, meus dois irmãos deram a
108
maior força... a minha irmã ficou: “ah, mas e aí, como vai ser?”. Com todos os
preconceitos que a gente levou anos para digerir, ela que começou: “ah, mas eles
vão ser discriminados, como você vai fazer isso com uma criança?”. Daí eu
pensei: nossa, minha irmã! Assim, né? Mas ela disse: “ah, mas você faz o que
quiser”. Mas eu percebi que ela “tava”... bem, então eu pensei: meu pai e minha
mãe, né? É melhor eu nem...
Carla:é...
Helena: é...é difícil, porque, eu não tenho dúvida nenhuma que ela gosta de mim,
da gente, sempre conviveu com a gente. Mas, na hora de uma decisão um pouco
mais séria...
Carla: é... mas a gente passou também por isso: o que é ter um filho?
Helena: é, mas eu acho que é isso, a gente teve tempo de pensar em tudo e passar
por cima de nossos próprios preconceitos também, e digeri-los também, até chegar
à conclusão do que a gente queria. E eu acho que quando a gente falou para ela, ela
já foi direto, com o susto dela e... não teve tempo de digerir a história...
Questionar o desejo por filhos e orientar para o enorme trabalho que tê-los implicaria
foi, como vimos, a reação que a irmã de Gabriela teve. Todavia, como a própria Gabriela
constatou, a reação de desconfiança de sua irmã estava muito mais ligada ao fato da criança
ter duas mães - ou da homossexualidade de sua irmã ficar evidente com o reconhecimento da
maternidade como um projeto comum de Gabriela e sua companheira, Elizabeth - do que com
a justificativa eleita para argumentar a recusa e estranhamento.
Com Clarisse e Patrícia as desconfianças partiram de suas mães, embora tenham
admitido que com a chegada dos filhos as relações tenham ficado mais próximas, antes da
chegada deles a maternidade era percebida com bastante suspeita. A relação de Patrícia com
sua mãe era difícil inclusive por ela não aceitar a homossexualidade da filha, a maternidade
seria uma decisão inconsequente do casal, na opinião da mãe de Patrícia. Já a mãe de Clarisse,
a exemplo da irmã de Gabriela, sinalizou quanto à dificuldade que a criação de filhos
envolveria:
Clarisse: ela me apoiou quando contei que queria engravidar, a única coisa que ela
ficou com medo foi de eu morrer no parto, porque eu sempre tive uma saúde muito
frágil, fora isso... não, né, vida?
Patrícia: é, ela dizia: “você tem certeza que é isso que você quer? Então tá bom”.
109
O fato é que a mãe de Clarisse possui outros netos, que vieram até antes de Fabrício e
Alice, o que não sabemos é se estas preocupações e orientações também foram dadas a eles,
ou se ao abordarem sobre as dificuldades que a parentalidade envolve, estariam estas pessoas
demonstrando seus receios acerca da homoparentalidade, mesmo que estes receios não fossem
trazidos explicitamente, mas de formas mais sutis, dadas as relações de afeto que possuem
com estas mulheres, a falta de coragem de pautar o assunto, tocar em pontos que podem
emergir fragilidades das relações.
Noutros momentos, certas desconfianças são reveladas apenas depois de um período,
quando o contato com a família autoriza perceber a não nocividade destas configurações
familiares, como trouxe Nádia, que já ao final do encontro fez questão de acrescentar uma
informação:
Nádia: e nós vimos lá vários pais, pais homens, que não vão a outras festas e que
na dele foram.
Jaqueline: isso não tem preço, porque você mata um leão por dia, você sendo
gay e tendo filho. Dentro de você, porque eu ainda não sofri nenhum tipo de
preconceito, mas tem a preocupação.
110
Preocupação que não é exclusiva de Jaqueline e Nádia, ou apenas das mulheres que
trazemos aqui. Parece, ainda, que é uma inquietação de pais e mães homossexuais. Para os
olhares que desconfiam, são frequentes respostas e tentativas de mostrar que são normais,
contatos e visibilizações, negociações e estratégias que visem proteger seus filhos e suas
famílias das duras críticas e pressões que possam sofrer; exige-se que sejam famílias que não
podem errar, jamais. Interessante que não é incomum ouvirmos daqueles que rechaçam a
homoparentalidade justificativas que tocam na questão dos preconceitos e discriminações que
estas crianças possam vir a sofrer nos colégios, por exemplo. Construções tão bem articuladas
e disseminadas que também passam por estes lares, antes ou depois do nascimento dos filhos,
a escola vira uma tensão. E a busca por locais onde se acredita que situações de preconceito e
discriminação são menos evidentes passa a ser uma das principais preocupações dessas mães,
ao menos para aquelas que podem pagar:
Acho que a gente tem dificuldade de ser maltratada e receber não (risos).
Então, essa escola tem trinta anos, é uma escola inclusiva, tem uma proposta de
uma escola que já existia, Aldeia Curumim, que têm muitas árvores, era uma
escola que já trabalhava com a diferença. Não haviam recebido, abertamente,
filhos de homossexuais, mas a tia de minha cunhada, que já tinha dado aulas
lá e que nos adora, tinha comentado com a diretora e ela disse: “ah, para mim
tudo bem”. A gente soube também que a filha da dona da escola estava se
descobrindo, também era homossexual. Então, nós achamos que as chances de
sermos bem recebidas eram grandes, e fomos muito bem recebidas(Carla,
Mãe, 40 anos).
Nádia: a gente tinha certeza de que não poderia ser nenhuma escola ligada à
religião, né? Esse tipo de escola a gente não colocaria de jeito nenhum.
Vivian: aí, eu tenho que contar isso... essa escola que eles iniciaram hoje, quem é
dona é uma senhora, bem senhora, e eu, vou confessar, na hora que ela desceu as
escadas para conversar com a gente, eu olhei e falei: vixe! Preconceito,
111
nosso!Daí, conhecemos a escola, daí fomos conversar com ela e quando nós
falamos, nossa, ela deu um baile, né? Quebrou as nossas pernas...
A gente escuta o preconceito, no trabalho, como muita gente não sabe, a gente
escuta o preconceito, no trabalho da Gabi, por ser uma instituição religiosa, o
pessoal abomina, falta colocar numa cruz e chicotear, e ela fica só escutando. No
meu ambiente de trabalho, como eu passo por muitas empresas, você escuta... por
exemplo, no último cliente que eu fui, tava passando a novela e o pessoal mete o
pau, “ah, porque aquela não sei o que, aquele não sei o que!”. A gente escuta
muito, mas eu falo. Eu falo: gente, olha o preconceito(Elizabeth, Mãe, 35 anos).
O receio apresentado por Jaqueline e Nádia de seu filho ter duas mães, as tensões e
preocupações que o casal traz para incluir Nádia nessa relação, o fato de abordarem que
existia uma figura masculina bastante presente na vida de Gustavo são alguns exemplos de
como a homoparentalidade é posta em suspeita e como a aproximação dessa família ao
modelo heterossexual – mesmo que discursivamente - parece, ainda, uma tentativa de
aproximá-la de uma acordada normalidade. No caso de Nádia, Jaqueline chega a afirmar que
Nádia seria com um pai para Gustavo:
Jaqueline: eu acho que a gente divide os cuidados, ela faz muito bem a função do
pai, querendo ou não, essa divisão existe muito aqui. Ela faz a função do... da
brincadeira, do levar para lá, levar para cá, do brincar, do vídeo game. Ela
está sempre junto na hora da... e eu não, eu sou a da comida, do remédio...
Nádia: olhar a mochila para ir para a escola.
A tensão em relação ater ou não um homem próximo foi abordada por outros casais.
Patrícia, por exemplo, após perguntar em qual curso eu era formada – psicologia -, logo fez
questão de dizer que seu cunhado, que estava presente no momento, era como um pai para as
crianças, ele era a figura masculina mais presente na vida das crianças. Disse, inclusive, que
sua filha o chamava de pai, às vezes. Essa menção à presença da figura masculina foi bastante
presente nas construções discursivas que produzimos nestes encontros, o fato de me
localizarem como profissional psi talvez tenha favorecido esta abordagem. Em muitos
momentos, eu era indagada sobre assuntos que envolviam a psicologia. Num dado momento,
por exemplo, Marcela me olhou e provocou sorrindo: “Por que para vocês psicólogos tudo era
relacionado à sexualidade? Acho que é onde tenho menos problemas”. Pouco antes, quando
falava da rotina do casal, ela nos disse que:
De todo o exposto, podemos perceber que esta família sob suspeita se arma de
diferentes mecanismos para se organizar e para responder a estas indagações. Que mesmo que
as práticas sexuais não sejam localizadas naquilo que é socialmente construído como modelo
hegemônico, as organizações internas não destoam sobremaneira do modelo de organização
centrado na heterossexualidade. Neste sentido, devemos problematizar que estas organizações
que poderiam ser mais criativas em certos sentidos, noutros parecem capturadas e postas a
113
“Daí ele dizia que não entendia o porquê da gente querer entrar na justiça, não
entendia o que mudaria na vida de nossos filhos o fato de eles terem duas
mães na certidão deles[disse um juiz]. O que mudaria?! Ora, mudaria tudo!”
Era uma tarde de sábado quando encontrei Clarisse e Patrícia num shopping da região
metropolitana de São Paulo. Pouco antes de começarmos a gravação da entrevista pude
acompanhar a família durante o almoço que fizeram no shopping. Enquanto Clarisse ajudava
os filhos durante a alimentação deles, Patrícia sentou-se ao meu lado, bastante atenciosa e
falante. Acostumada a falar sobre sua experiência em diferentes locais, ela, que parecia
bastante confortável com minha presença, comentava espantada o que ouvira certa vez de um
dos juízes que acompanhou seu caso no processo que moviam para o reconhecimento da
dupla maternidade de Alice e Fabrício. Para o magistrado, não fazia sentido essa luta toda. De
fato, Patrícia não precisava de seu nome em um documento para exercer a maternidade, que
extrapolaria as formalidades, mas o comentário do juiz foi imprudente quando o próprio sabe
que a inclusão de seu nome não ensejava acessar funções e afetividades próprias à
maternidade cotidiana, buscava permitir que seus filhos fossem oficialmente reconhecidos
como seus e que gozassem de todos os benefícios sucessórios que Patrícia pudesse oferecer, e
garantir, além disso, o fortalecimento da parentalidade, que não precisaria do casal conjugal
para existir. Depois de longa disputa, quando seus filhos já tinham dois anos, Patrícia
finalmente teve o reconhecimento da dupla maternidade garantido. O juiz citado, todavia, fora
substituído antes da decisão ser tomada.
O exemplo trazido nos permite apontar novamente a fragilidade que a falta de
legislação específica oferece a estas famílias, uma vez que os/as responsáveis pela decisão
podem se apoiar apenas em opiniões pessoais sobre o que é família, em muitos casos. Dos
cinco casais que entrevistamos, três recorreram à justiça para a inclusão da segunda mãe como
114
responsável pelos cuidados parentais de seus filhos, sem hierarquia qualquer com a mãe que
gerou.
Foi a partir da busca pelo reconhecimento de sua relação com seu filho que conheci
Gabriela e Elizabeth, pois foi através do contato que estabeleci com a advogada das duas que
cheguei até o casal. Ao contrário do que houve tanto com Vivian quanto com Patrícia,
Gabriela não tinha qualquer vínculo consanguíneo com Thiago. Posteriormente, tive alguns
contatos com a advogada do casal, que numa ocasião me explicou que ocorreu um pedido de
adoção unilateral onde a solicitante era Gabriela. Por não haver consanguinidade entre os
dois, a advogada optou pela adoção unilateral e não pela dupla maternidade6, pois acreditava
que seria mais fácil ter o deferimento do pedido, que ocorreu poucos meses após o nascimento
de Thiago. Orgulhosa, Gabriela fez questão de me mostrar o RG do menino, onde seu nome e
o de Elizabeth constam na parte destinada à filiação. Thiago, uma criança bastante
encantadora, brincava com o RG próximo à tela de proteção do apartamento da família,
depois de algum tempo, Gabriela, sorrindo, retirou o documento das mãos do menino,
dizendo: “Nossa, não joga fora. Não pode, deu um trabalho para conseguir”.
Interessante perceber como é afetiva a relação que se estabeleceu entre o casal e as
advogadas que aceitaram a causa. Embora fossem amigas, parece que Gabriela relata essa
relação com gratidão:
Daí eu liguei para as minhas amigas advogadas: [advogada 1] e [advogada 2], daí
entramos com o processo, a [advogada 1] abraçou a causa, você deveria conhecer
também, a [advogada 1] e a [advogada 2], que são pessoas incríveis. Daí elas
estudaram, nem era a área delas, elas estudaram e perguntaram: vocês topam? Vai
ser nosso primeiro caso assim. Daí a gente disse: a gente topa! A gente confiou
nelas e elas na gente... e, depois de seis meses, falamos com assistente social, com
psicólogo... tudo. A gente achou que seria super ruim e foi super legal. Depois de
seis meses, ele é meu filho. Ele era só de fato, agora é de fato e de direito(Gabriela,
Mãe, 36 anos).
Como não tiveram seu pedido negado como imaginaram que pudesse ocorrer, o casal
relata o processo de forma positiva. Com Patrícia, como já adiantamos anteriormente, o
pedido foi mais difícil. Elas demoraram dois anos para que a dupla maternidade fosse
reconhecida. Embora tanto a relação entre Patrícia e seus filhos quanto um exame de DNA
pudesse revelar a inegável maternidade, apenas Clarisse, que gerou as crianças, constava
6
A adoção unilateral acontece quando a criança é registrada apenas no nome do pai ou no nome da mãe e o/a
cônjuge do pai ou da mãe pretende ter legalmente a condição de filho daquela. É possível ainda se requerer
adoção unilateral quando existe o/a genitor/a, mas considera-se que a pessoa está sumida e sem dar atenção para
a criança. Esta avaliação é feita pela equipe técnica da Vara da Infância, ou Vara mista, quando não houver. A
dupla maternidade é o registro simultâneo do bebê no nome das duas.
115
como mãe de Fabrício e Alice. Quando decidiram pela FIV, as duas não imaginavam que
teriam como solicitar na justiça seus direitos:
Descobrimos quando li uma reportagem com a doutora Maria Berenice falando das
famílias homoafetivas e dos direitos e aí que eu: olha, nossa, a gente tem
direitos! Porque até então eu achava que ficariam no nome dela [...]. Eu nem sabia
que quando você entra com... que você também é... ai, esqueci o nome, mas você
também é corresponsável pela criança. É, porque eu sei que legalmente dá para
fazer isso. Mas aí eu falei: não, não quero ser corresponsável, eu quero ser
mãe. Então, ninguém sabia, ninguém sabia que tinha esse direito. Até a doutora
Maria Berenice que começou com essa história de que teria direitos. Ela foi a
nossa advogada, eu li a matéria, entrei em contato com o jornal, a repórter me deu
o contato dela, entramos em contato com ela, ainda não era essa coisa global,
sabe? De 400 consultas num dia. Então ela nos atendeu, conversou, tal... tem um
escritório em SP que nos recebeu, pegou nossas informações e disseram que iriam
avaliar tudo, mas que iriam nos atender. Daí eu disse que não teríamos dinheiro
paga pagar e perguntamos o valor. Eles nos disseram: olha, normalmente são
causas muito caras, que envolvem uma série de coisas. Ficava em torno de 60
mil, com ela, né? Daí eu disse: eu só posso pagar 3 mil, parcelados, pode ser? Daí
ele falou: pode. Porque também era uma boa causa para eles. “Vamos cutucar todo
mundo agora, né? Agora a gente tem algo aqui, vamos cutucar”. E, por fim, não
cobraram nada. A gente entrou numa situação financeira complicada, tudo dando
errado e eu disse que naquele mês não conseguiria fazer o depósito e perguntei se
poderia pagar em outro dia, daí me disseram: não precisa. Insisti e novamente: não
precisa(Patrícia, Mãe, 31 anos).
Mesmo com toda a repercussão que o caso ganhou e mesmo tendo como advogada
uma famosa jurista, o reconhecimento da dupla maternidade só veio dois anos mais tarde.
Durante este período, apenas Clarisse era a responsável legal pelas crianças. Elas relatam
algumas das dificuldades que enfrentaram por isso. Clarisse disse que à época da FIV
trabalhava numa empresa que oferecia um bom plano de saúde, mas a falta de reconhecimento
legal dessa relação poderia fazer com que tanto Clarisse quantos os filhos do casal não
pudessem fazer uso do benefício. Neste caso, foi aprópria empregadora de Patrícia que
estendeu o direitos à Clarisse e aos filhos, entendendo ser esta “uma composição familiar
legítima”, sem que houvesse a necessidade de acionar a justiça. Este exemplo nos foi contado
por elas especialmente porque Fabrício nasceu com uma síndrome que, dentre outras coisas,
compromete seu desenvolvimento ósseo, por este motivo, logo nos primeiros meses de vida o
menino precisou recorrer a uma cirurgia, dentre outras que se sucederam. O casal relata que
sem a cobertura do plano de saúde seria impossível custear esta cirurgia. Portanto, quando se
aborda a alteração de leis e ampliação de acesso, o que se discute é a igualdade de direitos,
pois embora tolhidos de direitos, estas mulheres não são isentas de suas obrigações sociais.
Com Vivian a advogada do casal também optou pela inclusão da dupla maternidade,
pois existiam laços consanguíneos dela com pelo menos uma das crianças. Portanto, as
116
estratégias eleitas até o momento, entre os casos aos quais tivemos acesso, costumam
considerar os vínculos consanguíneos para requerer ou não a dupla maternidade: quando a
consanguinidade não existe, o caminho parecer ser a adoção unilateral do filho da parceira.
Embora o processo de Vivian tenha iniciado antes do nascimento das crianças, até o momento
da entrevista, portanto, quando Pedro e Bianca já haviam nascido fazia alguns meses, o
deferimento do pedido não havia saído. O que ocorreu dois meses depois da entrevista, como
acompanhamos posteriormente. Durante nosso encontro, elas contaram que embora
imaginassem que o juiz fosse dar parecer favorável, segundo informações de sua advogada,
sabiam que havia um promotor contrário ao deferimento do pedido:
Vivian: para tentar fazer com que assim que eles nascessem já tivessem o nome no
registro, mas não deu...
Marcela: pra mim, eu acho que está sendo até mais fácil, porque tá lá o meu nome,
acho que o pior é para a Vivian.
Vivian: é, como conseguimos colocar meu sobrenome neles, só falta o meu nome
como mãe na certidão e o nome de meus pais [...] Agora o processo está parado,
está na mesa do juiz, desde o dia 25 de novembro, e ele está esperando um tempo
para...
Vivian: ele já falou para a nossa advogada que ele vai dar favorável, que... o
promotor foi contra, já era um senhor, ele foi contra, mas ele falou que vai dar
favorável e... principalmente depois que ele viu a reportagem que saiu com a
gente, que ele acabou lendo, ele disse que precisa escrever “a sentença”, porque
ele sabe que vai ter repercussão e tudo mais.
que seria a “lei natural”. Todavia, ao acessarem as técnicas de reprodução assistida essas
mulheres poderiam pôr fim ao pavor suscitado pela exterminação da espécie humana que a
falta de filhos poderia ocasionar, pois com o auxílio da ciência, a concepção e o ato sexual
deixam de ser necessariamente conectados. Mas, como percebemos, na prática essa realidade
não é observada por magistrados/magistradas mais conservadores/conservadoras. Neste caso,
o que se questiona é a capacidade de sujeitos homossexuais serem responsáveis pelos
cuidados de uma criança, sem que isto traga prejuízos ao pleno desenvolvimento desta.
Também aqui o que percebemos é a forte influência que o modelo heterossexual ainda hoje
tem quando se leva em consideração o modelo familiar “ideal” ou idealizado, entendendo esse
“ideal” como mais próximo possível ao que une um homem a uma mulher, pois ao contrário
do que ocorre com homossexuais que decidem ter filhos, heterossexuais sob condições
similares não possuem sua capacidade de cuidado questionada única e simplesmente pelo
exercício de sua heterossexualidade.
No contexto de outros países esta realidade assume tons distintos. Em alguns países da
Europa, por exemplo, Dinamarca, Espanha e Holanda não colocam qualquer impedimento ao
acesso às tecnologias reprodutivas por homossexuais, bem como reconhecem o direito dessas
pessoas adotarem crianças. Nos Estados Unidos, grande parte dos estados já emitiu regulações
garantindo o direito de gays e lésbicas adotarem os filhos de seus parceiros (FONSECA,
2008). Alguns críticos, todavia, argumentam que a busca pelo reconhecimento do Estado das
relações não-heterossexuais intensificaria a normalização, já que colocaria o Estado como
detentor de um direito que deveria ser de todos, sem distinção de orientação sexual
(BUTLER, 2003). Todavia, se a lei representa, em diferentes contextos, um instrumento
importante para cimentar relações de parentesco, reconhece-se que a validade de qualquer
contrato legal será limitada se não vier acompanhada das convicções pessoais dos envolvidos
(FONSECA, 2008). Embora as críticas ao poder atribuído ao Estado sejam válidas, é
importante destacar que reivindicações de igualdade, seja por homo ou heterossexuais, são
legítimas quando a diferença inferioriza, bem como são legítimas as reivindicações ao direito
à diferença, quando a igualdade descaracteriza, como pontua Mello (2005) ao mencionar
Santos (1997). Outra questão apontada é quea homossexualidade não é substancialmente
diferente da heterossexualidade, uma vez que compartilham os mesmos sistemas
simbólicos significativos, assim, o sujeito homossexual não é um transgressor de toda
e qualquer norma social simplesmente por conta do exercício de sua sexualidade
(FASSIN, 2004).
118
Para as mães que compõem esta pesquisa, a maternidade foi uma opção, opção que
envolveu e envolve negociações, lutas, gastos financeiros e emocionais e a composição de
estratégias para que estas famílias que nascem sob suspeita possam ser reconhecidas e
respeitadas.
Em alguns momentos, colocava em questão o porquê de estas mulheres permitirem
que entrássemos em suas casas e invadíssemos suas vidas privadas. Por que muitas delas,
algumas que nem possuem sua lesbianidade assumida em alguns ambientes, como o de
trabalho, por exemplo, concordavam em se expor, de certa forma? Embora a pesquisa
acadêmica conte com regulações éticas que resguardam o sigilo de seus nomes, por que
abriram as portas de seus lares para receberem pesquisadoras que não conheciam e tinham
poucas informações do que exatamente desejavam saber? Sem que fosse necessário perguntar,
essas informações eram oferecidas pelas próprias mulheres. Todas desejavam falar, todas
desejam demonstrar que suas famílias não eram anormais, que seus filhos não eram fruto do
pecado, que suas vidas não eram necessariamente desregradas e transgressoras. Abriram suas
portas para que conhecêssemos suas vidas e ajudássemos a “educar as pessoas”, nas palavras
119
de muitas. Para elas, a falta de informação era um dos principais motivos para que
pensamentos e atitudes homofóbicas fossem percebidas.
Antes de encontrarmos estes casais, fazíamos ao menos um contato telefônico e,
entusiasmadas com a receptividade delas, era comum agradecermos pela disponibilidade em
participarem da pesquisa. Em resposta, era comum ouvirmos retribuições desse
agradecimento, pois, para muitas, participar da pesquisa era um ato político, visto que a partir
de suas experiências esperavam poder oferecer ferramentas para um futuro menos
homofóbico e intolerante. Se antes estas preocupações não eram estendidas a estas mulheres,
parece que com a maternidade a conquista por direitos, ampliação de acesso a benefícios e,
principalmente, redução de atitudes homofóbicas passam a figurar como preocupações
políticas e sociais, principalmente quando a não conquista destes pilares coloca seus filhos em
relação de desconforto social ou desamparo legal. Parece que é, antes, pelos filhos, que
resolvem falar, que decidem trazer em seus depoimentos parte de suas experiências.
Das mulheres que entrevistamos, dois casais tiveram seus casos expostos em jornais,
um deles chegou a participar de programas de televisão. Em todos os momentos, os casais
recebiam opiniões acerca de suas vidas, escolhas e decisões. Em algumas ocasiões essas
opiniões eram bastante duras, não eram incomuns ataques pessoais e reações coléricas por
parte de leitores, expectadores e afins. Ao falarmos sobre essas reações, ambos os casais
expuseram que em muitos momentos era bastante difícil acompanhar estas opiniões, mas que
grande parte das pessoas que se manifestavam era defensora de suas famílias, por este motivo,
nunca precisaram se manifestar diretamente a este respeito. Quando indagadas sobre o motivo
de mostrarem seus rostos, histórias e nomes em jornais e revistas de grande circulação, tanto
Clarisse e Patrícia quanto Vivian e Marcela disseram que ao fazerem isso buscavam oferecer
às pessoas a possibilidade de conhecerem suas famílias, para ao final perceberem que não há
“anormalidades” nestas composições familiares. Com a maternidade essas preocupações se
mostraram emergentes, passaram a assumir posturas de lutas políticas, nem tanto por elas,
mas pelos filhos. Marcela chegou a dizer que ao permitir conhecer suas vidas, ela tinha
esperança que reações de desconfiança fossem reduzidas:
Marcela: [...] a gente tem uma família dessa e não pode sentir vergonha disso, da
nossa família, então, pra que esconder? Vamos mostrar que existe, até para... quem
sabe mostrando, as pessoas não acabem respeitando mais? Conhecendo os casos,
né? [...] Os comentários contrários incomodam um pouco, mas a gente sabe que
existe. Tanto é que quando a gente está na rua, e chama atenção o carrinho com
gêmeos, daí sempre perguntam: “ah, quem é a mãe?” E a gente responde: “as
duas”. Mas à vezes dá vontade de falar: “agora eu vou dar uma saidinha e vocês
podem fofocar à vontade” (risos). [...] Ninguém nunca falou alguma coisa
120
diretamente, não. Mas você percebe que quando você afasta, um ou outro dá uma
comentada...
Vivian: é, porque também sai sem entender... têm umas que falam: “ahhhh, que
legal!” Mas você percebe que não entenderam nada. Mas, também depende da
forma que a gente fala, né? Porque a pessoa não está esperando escutar aquilo, né?
Tem isso também...
Marcela: mas têm umas que não têm coragem de aprofundar o assunto... a gente
responde: “as duas”. E ficam: “ahhhhh, tá”... e ficam nisso, mas as que têm
coragem: “ah, mas como assim? Mas como que funciona, não entendi!” E quando
você explica tudo, elas dizem: “ah, que legal, não sabia que dava para fazer isso”.
Então, assim, a aceitação não está sendo ruim, não...
Embora nem todas desejem, ou possam, mostrar seus rostos e nomes, nem de qualquer
integrante de suas famílias, ouvimos de outras mulheres que desejavam participar da pesquisa
para que ao fazê-lo pudessem ajudar a conscientizar um pouco mais as pessoas, acreditando
que discussões que versassem sobre maternidades lésbicas ajudassem a colocar cada vez mais
o assunto em pauta. Neste sentido, cabe destacar a participação de Nádia e Jaqueline e Helena
e Carla, ambos os casais aceitaram participar da pesquisa mesmo já tendo participado de pelo
menos mais uma pesquisa sobre o tema. Ao falar sobre isso, as construções foram parecidas,
para elas quanto mais se permitissem conhecer, mais seriam aceitas socialmente e melhor
seria a recepção que seus filhos poderiam ter em diferentes ambientes.
Gabriela e Elizabeth também relatam a preocupação de que ao permitir contato, o
preconceito de algumas pessoas seja diminuído. Interessante como para todas é a falta de
conhecimento que motiva atitudes discriminatórias, e como assumem para si a tarefa de
“educar as pessoas”:
Elizabeth: A única coisa que me incomoda é o fato de que parece que as pessoas
vivem em outro mundo, sabe? Daí têm aqueles questionamentos: “ah, e o pai?”
Então, as pessoas não têm a sensibilidade ainda de pensar que você pode não ter
um marido...
Elizabeth: eu poderia ser simplesmente solteira e ter feito uma fertilização porque
quero muito ser mãe, entendeu? Não preciso ser gay.
Gabriela: Daí eu falei com ela: “vamos parar com isso e educar esse povo”. “Quem
é a mãe?”. Somos! E se perguntar: você é a mãe? Sou! Não tenho que ficar
explicando... “Quem é a mãe?”. Somos. A gente está num processo de educação,
por isso estamos dando essa entrevista, colocando uma sementinha.
A ideia de que ao ter contato com suas famílias, medos e receios de terceiros poderiam
ser eliminados ou reduzidos nos faz lembrar a potente e motivadora observação que Deleuze
(2002) traz no seu livro destinado a discutir as ideias de Espinosa: “basta não conhecer para
121
moralizar”(p.29). Embora a motivação dessas mulheres possa não ser filosófica, as táticas e
artifícios que lançam mão parecem dialogar com estas reflexões.
Interessante observarmos alguns movimentos que estas mulheres fazem para abrir
canais de comunicação e permitirem contato com demais pessoas, trazendo-as para seu
convívio, inclusive:
Carla: daí eu virei para ele e disse: “é que estão numa fase em que essas lutinhas
são comuns e tal”. E fui lá e separei os meninos e disse: “olha, sem segurar o
outro”. Aí, abriu um canal de comunicação e ele me perguntou: “você é o que dele,
tia?” E eu disse: “não, sou mãe” (risos). Daí eu vi que o olho dele deu uma
arregalada, assim...
Carla: daí eu virei e disse: “já sei, você está acostumado a conversar com a Helena,
né?” E ele: “é”. Mas, então, é que os meninos têm duas mães. Daí ele ficou...mas
puxou outro assunto, para dar uma aliviada para ele.
De fato, o contato com essas famílias pode ajudar a diminuir certos mitos e
desconfianças que cercam estes lares. Patrícia conta que certa vez soube que um vizinho seu
imaginava haver em sua casa pênis de plásticos espalhados pelos cômodos. Ao saber disso, o
casal tentou por diversas vezes convidar o vizinho para visitá-las, em diversas tentativas ele
escapou aos convites, mas certa vez resolveu aceitar. Patrícia disse que ele olhava curioso
para cada cômodo da casa, tentando achar qualquer objeto suspeito. Como não achara, o
vizinho percebeu que sua suspeita estava errada. O vizinho desconfiado tornou-se amigo do
casal posteriormente, conforme relataram. Por mais fantasiosa que fosse a suspeita da tal
vizinho, Patrícia e Clarisse parecem bastante satisfeitas com a educação prática que
empregaram ao cismado vizinho.
Embora estas mulheres pareçam fazer de suas preocupações elementos motivadores de
mudanças sociais, fazendo dessas produções de sentido plataformas para a criação de códigos
que garantam cidadania, é importante pontuarmos que preocupações que visem diminuir
preconceitos e equiparar direitos necessariamente não precisam ser bandeiras políticas apenas
de grupos incluídos nas minorias sociais. Sobre isso, cabe destacar o relato que Marcela fez
sobre uma amiga sua:
122
Por exemplo, eu tenho uma amiga heterossexual, casada, que tinha uma filha, aí, a
filha dela adorava a melhor amiguinha e ela falava, sei lá... tinha uns três anos,
quatro anos, e ela falava “a Bia é minha namorada, e a mãe dela, heterossexual,
falava: “ah, é? Essa Bia é sua namorada?”A menininha respondia: “é ela que é a
minha namorada”. E a mãe: “ah, tá bom”... mas num dia ela chegou e disse:
“porque o Rafael é o meu namorado.” E a mãe perguntou: “ué, e a Bia? Não era a
Bia a sua namorada?”E a menina: “ah, mas a professora falou que não pode,
porque ela é menina e eu sou menina”. Daí essa minha amiga foi lá e conversou
com a diretora, falou: “na minha casa eu crio a minha filha para não ter
preconceito de nada, não é na escola que ela vai aprender isso”(Marcela, Mãe, 38
anos).
A experiência de grupos militantes nos permite pensar que embora seja verdade que
alguns grupos enquadrados naquilo que denominamos minorias se reúnam a partir de
determinadas característica identitárias – seja pela cor da pele, de pertencimentos étnicos e
religiosos, orientação sexual, gênero, tec. -, isso não significa dizer que as formas de agir,
pensar, de existir, enfim, de cada sujeito dentro do grupo se faça de forma circunscrita a
quadros de referências prévios. Ao contrário, a produção de subjetividades, ou os elementos
que constituem estes sujeitos são flexíveis, móveis e se articulam com tantos outros elementos
(GUATTARI; ROLNIK, 1993). Portanto, pensar em colocar em xeque discriminações
quaisquer não deveria ser exclusivo daqueles que delas padecem. Embora seja verdade que a
insurreição de certos grupos, como os movimentos feministas e homossexuais, por exemplo,
tenha feito da identidade bandeira política e tenha alcançado conquistas importantes, pensar
além destas redes que nos capturam pode ser interessante caminho para colocarmos em
questão os equipamentos que operam em nossa sociedade, grandes máquinas produtoras de
subjetividades capitalísticas e de controle social (GUATTARI; ROLNIK, 1993). Organização
social que autoriza e produz desigualdades. Se são gays, lésbicas, negros, ateus ou tantas
outras formas de existir, estas pluralidades não deveriam autorizar assimetrias de direitos, até
mesmo porque, como vimos, estas formas não são vedadas em si, somos, enfim, atravessados
por devires múltiplos, e talvez seja esta a bandeira política.
123
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho trouxemos as histórias de mulheres que ainda que vivessem
práticas afetivas e sexuais não hegemônicas, assumindo-se lésbicas, tinham na maternidade,
ou – para algumas – na experiência da gestação, projeto comum. Embora a medicina
reprodutiva possibilite a realização deste desejo, apontamos que as tensões no campo não são
tão simples assim.
A primeira tensão diz respeito ao acesso, restrito apenas às que podiam pagar, já que a
falta de amparo do SUS restringe o serviço a uma classe bem específica. Para as que podiam
pagar, embora o tratamento oferecido nestes espaços não discriminasse ou agredisse estas
mulheres devido a sua lesbianidade, a agressão velada parecia vir pela invisibilização ou a
falta de um lugar definido que estes locais ofereciam a sexualidade dessas mulheres, que fazia
com que seus corpos passassem por intervenções e manipulações que não respeitavam as
especificidades de um corpo lésbico, tratado como uma massa homogênea para produzir
bebês. Embora sexualidades não hegemônicas e maternidades possam gerar tensões e
desconfianças, os/as profissionais de saúde buscavam oferecer um tratamento que
classificavam como profissional, ainda que muitos deles ouvidos por nós desconfiassem desta
composição familiar.
Embora as dificuldades e impasses fossem muitos, entre nossas entrevistadas a
maternidade era tão desejada que para muitas delas ela era colocada como projeto de
realização pessoal que precedia outros desejos, inclusive. Projeto que ressignifica as relações
destas mulheres com suas famílias de origem, pois se antes essa sexualidade, ou a
conjugalidade lésbica não era reconhecida, o projeto materno parece aproximar estas mães de
suas famílias de origem, fenômeno que, embora não seja novidade, merece destaque, pois nos
dá o tom do peso que a maternidade possui socialmente, transformando práticas profanas em
sagradas famílias.
Os caminhos percorridos durante o campo demonstraram diferentes arranjos
escolhidos pelos casais ao acessarem a reprodução assistida. Lembramos que a gravidez, a
experiência das transformações corporais, era desejo de apenas uma das mulheres que
compunham o casal, lembramos também que quando o projeto materno era compartilhado,
diversas negociações simbólicas entravam em cena para que emblemas de pertencimento
fossem construídos a fim de que houvesse inclusão de ambas na gestação das crianças, ou
antes disto, nas diversas etapas entre a decisão de ter o filho e o nascimento. Portanto, a
escolha do doador representava importante evento na maior parte dos casos. Nas casas que
124
visitamos, ao menos entre aquelas que se denominavam mães, não existia hierarquia de
tratamento entre elas para com elas e entre elas para com os filhos, ambas eram reconhecidas
e se reconheciam como igualmente mães. Mesmo nos casos onde não havia a necessária
consanguinidade este aspecto era observado. O que parece diferir das composições
heterossexuais, onde a paternidade ainda é fortemente reivindicada a partir dos enlaces
biológicos. Todavia, as negociações acerca da escolha do doador de sêmen podem funcionar
como tentativa de aproximação neste sentido, pois diante da impossibilidade para algumas de
transmitir laços consanguíneos, a escolha do doador pode representar uma tentativa de
compor uma saída que dê conta desse desejo de pertencimento - consanguíneo e simbólico.
Para outras, será a ROPA a saída eleita, onde uma irá gerar, mas a outra fornecerá seu óvulo,
e ambas se sentirão contempladas.
Portanto, as facilidades da tecnologia e a diversidade de desejos e expectativas
montaram diferentes cenários; em alguns momentos aquela que gerava não era a que fornecia
o óvulo, noutro caso, vimos dois óvulos fecundados pelo mesmo doador anônimo, mas que
eram de mulheres diferentes, um de cada mulher do par conjugal, implantados em uma das
mulheres ao mesmo tempo. Vimos ainda como as negociações para a inclusão das crianças
nas famílias de origem era atravessada por símbolos bastante específicos e contextualizados a
partir dos arranjos apresentados.
Ainda que maternidade tenha sido alcançada de fato, a luta pelo reconhecimento
jurídico e social desta família se desdobra num árduo e sinuoso caminho a ser seguido. O que
aponta o caráter patriarcal e heterocêntrico dos códigos legais e jurídicos que regem nossa
sociedade. Pois, se como vimos, é pelo princípio da afetividade que um homem pode registrar
o filho de sua companheira a partir do uso da reprodução assistida, por exemplo, sem que com
isso tenha que acionar a justiça, a falta de possibilidade do uso do mesmo argumento para a
mulher que desejasse registrar o filho da companheira aponta para uma assimetria de direitos.
A falta do equivalente da chamada presunção de paternidade nos aponta importantes reflexões
e acentua uma desigualdade bastante grande entre a legitimidade da voz feminina e da voz
masculina, pois, como dissemos, se existe uma figura masculina para assumir a paternidade
de uma criança, e quando esse reconhecimento está de comum acordo, não há a necessidade
desse reconhecimento passar pela esfera jurídica, mas este cenário muda de figura quando
quem assume a voz é a mulher, para nomear o pai de seu filho sem a presença deste ou para
nomear uma segunda mãe para seu filho, neste caso, sua palavra precisa passar pela avaliação
dos juristas.
125
Diante da falta de leis que protejam estas famílias e reconheçam seus direitos, como
vimos, será pelo crivo do judiciário que estas mulheres passarão para terem seus direitos e
para serem oficialmente reconhecidas com mães.
Muitos/muitas dos/dascontrários/contrárias tanto ao acesso às técnicas de reprodução
assistida quanto aos direitos civis por homossexuais argumentam temer o futuro da criança,
que já nasceria condenada a um destino que não poderia escolher: ter duas mães ou dois pais.
Alguns/algumas dirão que esta criança será discriminada, estigmatizada, que não será capaz
de entender sua própria família e em algum momento irá reivindicar a presença da figura
masculina ou feminina responsável pelo cuidado parental. Embora estas observações possam
figurar como preocupações legítimas, não podemos deixar de observar o teor falacioso por
trás dessas construções, principalmente porque as engrenagens que colocam estas construções
em movimentos se articulam de modo a capturar modos de vida diferentes do hegemônico.
Numa sociedade heteronormativa, qualquer forma de existir que destoe do esperado enfrenta
sanções e julgamentos de legisladores da moral. Ao final, cai-se nas armadilhas produzidas
pelas construções binárias de oposições e contradições, que classificam sujeitos que se
reconhecem ou são assim reconhecidos a partir de identidades, e que cujo atrito pode provocar
conflitos (ROLNIK, 1996). Portanto, para além de visões binárias, a luta para conquista e
reconhecimento de direitos deveria ser bandeira política de cada e qualquer cidadão, sem as
amarras de diferentes credos, cores, religiões e orientações sexuais.
Como vimos, a maternidade lésbica não destoa substancialmente da maternidade
heterossexual, ao menos no que diz respeito aos cuidados para com a prole. A
homossexualidade das mães acrescenta novos ingredientes às relações, tanto intrafamiliares
quanto extrafamiliares, seja para responder aos olhares de desconfiança, ou seja compondo
artifícios para se adequarem ao esperado socialmente. Por conta da sexualidade das mães, esta
acaba sendo vista como uma família que não pode errar, e elas sabem disso. Ainda que esta
composição provoque temor social, especialmente no tocante aos filhos, estes temores
parecem estar pautados em visões superficiais ou pouco profundas da situação. Como vimos,
até hoje não há qualquer pesquisa que constate que a parentalidade exercida por homossexuais
seja potencial ou efetivamente prejudicial aos filhos. Embora avanços pontuais tenham
ocorrido, a falta de legislação específica que ofereça direitos a esta família se configura como
um enorme impasse. A falta de reconhecimento social e jurídico das relações amorosas
estáveis entre gays e lésbicas como família é apontado por Mello (2005) como a principal
interdição – que está alicerçada na defesa irrestrita da conjugalidade e da parentalidade como
126
sendo uma opção válida somente para modelos heterossexuais - que atinge os homossexuais
no contexto da realidade brasileira, que inclui, inclusive, a socialização da criança.
Se antes as críticas aos homossexuais eram pautadas no temor da dissolução da
espécie, podemos concordar então que a solução foi encontrada, visto que cada vez mais
homossexuais querem ter filhos: basta constituir famílias. E as motivações não espantam tanto
assim: bem como heterossexuais, sujeitos homossexuais compartilham dos mesmos sistemas
de organização social. Agora o temor parece outro: a degeneração da família e os problemas
que pais gays e mães lésbicas podem trazer aos filhos. O que parece, todavia, é que as
famílias homoparentais estão cada vez mais sagradas do que profanas. Agora as mulheres
lésbicas podem até gerar seus filhos e estes terem vínculos consanguíneos com a companheira
da mãe, consanguinidade tão valorizada em nossa sociedade. Embora as escolhas e
negociações dessas mulheres possam gerar críticas e ponderações, sabemos ainda que é a
própria medicina reprodutiva que oferece inúmeras possibilidades de uso, respondendo ao
desejo por filhos e à necessária maternidade para a completude feminina, lésbica ou não.
Olharmos para este cenário sugere vários caminhos e possibilidades de reflexão. Como
ensaiamos no início de nossa viagem, o sentido do trabalho não era oferecer respostas simples
a questões complexas, era antes disparamos reflexões que atravessam a maternidade lésbica e
o meio eleito para seu fim, mas que não se limitam a eles, vão além, pondo em questão as
próprias máquinas que colocam nossa sociedade em funcionamento. Portanto, esperamos com
este trabalho ter contribuído para ampliar as discussões acerca do materno e do lugar que ele
desempenha em nossa sociedade, e de como ele tão bem se articula e se imbrica ao feminino,
lésbico ou não.
127
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ANEXO
Casais Idades Profissão Tempo Estado Métodos Como se denominam Filhos Idade dos filhos
de onde utilizados
relação residem e número
de
tentativas