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Rio de Janeiro
2013
Paula de Carvalho Neves
Rio de Janeiro
2013
Paula de Carvalho Neves
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Clara de Oliveira Araújo (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. José Eustáquio Diniz Alves (Co-orientador)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Maria Luiza Heilborn
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - UERJ
____________________________________________
Prof.ª Dra. Karen Mary Giffin
Escola Nacional de Saúde Pública
Rio de Janeiro
2013
DEDICATÓRIA
À Clara Araújo, que desde o início desse processo acreditou nos meus esforços e
possibilitou que eu pudesse alcançar vôos maiores na pesquisa. Suas atitudes firmes com
críticas justas e encorajamentos, me ajudaram a refinar a análise e refletir positivamente sobre
minha carreira.
Ao Prof. José Eustáquio Alves, mestre amigo, que com sua generosidade e
conhecimento do tema, trouxe reflexões importantes para o andamento da pesquisa. À Profª
Maria Luiza Heilborn, pela sua presença não somente na qualificação, pontuando questões
relevantes sobre o estudo, mas também ao longo da pesquisa com estimada atenção e
solidariedade. E, por fim, à Profª Karen Giffin, pela atenção e interesse dedicados a este
trabalho.
Aos meus amigos André, Tiago e Fábio, pelas inúmeras conversas, risadas e
discussões sobre o mundo e sobre a vida. Agradeço a vocês, de coração, por confiarem em
mim todo esse tempo que nos conhecemos, por me mostrarem pontos de vistas diferentes,
mas principalmente, por terem a grandeza de espírito para me oferecerem a oportunidade de
ver o mundo. A meu amigo carinhoso Pedro Belchior, que, para mim, é também uma
referência intelectual e traz um frescor a esse universo acadêmico, por vezes, rígido.
À querida amiga e feminista Maria José de Lima, que, com conselhos firmes e muito
éticos, aprendi a ter mais rigor nas minhas escolhas e decisões.
À grande mestre e amiga Thereza um agradecimento especial. Pois, sem a paciência,
confiança e os conselhos preciosos e estimulantes, estar aqui não seria possível. A sua
generosidade não tem preço. À querida Miriam, por me fazer sorrir de forma consciente e
libertadora em momentos de grandes dificuldades.
Ao meu querido amigo e companheiro Daniel. Como traduzir nossa relação? Só posso
agradecer por tudo e por estar presente em todos os momentos com sua imensa sabedoria.
À minha mãe Lucia, o agradecimento de toda uma vida. Uma mulher guerreira e com
grandeza de caráter, um exemplo em todos os sentidos. Às minhas queridas irmãs Flavia e
Claudia, por estarem presentes em todo o processo e pelo imenso carinho que dedicam a mim
acreditando no meu trabalho. A meu pai Ney, pelo exemplo de esforço e persistência nos seus
ideais. À minha madrinha Moema, pela leveza de sempre e por trazer as cores desse mundo
desde o meu tempo de criança.
Aos meus mentores espirituais, por me transmitirem calma e equilíbrio para oferecer o
melhor de mim na construção desse trabalho.
Ao aceitarmos as pessoas como indivíduos de personalidade própria, respeitando suas
opiniões, ideias e conceitos, até mesmos seus preconceitos, estaremos dando a elas um
fundamental apoio para que escutem o que temos para dizer ou esclarecer, deixando depois
que elas mesmas, conforme lhes convier, mudem ou não suas diretrizes vivenciais.
Hammed
RESUMO
NEVES, Paula Carvalho. PAISM: uma história com fim. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
This study examines the creation and implementation of the Program of Integral
Assistance to Women's Health in Rio de Janeiro, under the gaze of those who actively
participated in this process. The historical analysis lies since the creation in 1983 until
1995, the year of the Beijing Conference, which endorsed the rights of women and
printed, from that time, changes in the program studied. The focus of the analysis will
be the testimony of activists on the process, providing input to an interpretation of the
historical context that both involved the creation of the program, as the changed
political and social scenario in Brazil. With that, I intend to seek the limits that the
program had regarding their proposal and place it against a complex historical setting in
which it was inserted.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 9
1 QUEM SÃO OS ATORES ? ......................................................................................... 18
INTRODUÇÃO
é também assumir que não se sabe sobre tudo. Enquanto houver vida e lucidez,
aprender, sob esse aspecto, é a profissão que escolhi para mim.
O PAISM entra num dos complexos cenários da minha vida. Continuando do
ponto em que havia parado, minha monografia de história tratava sobre violência contra
as mulheres o que me levou a pensar um outro atributo da vivência das mulheres: a
saúde. Apareceu no trabalho de monografia o tema do PAISM, da criação desse
programa na década de 1980, e isso me intrigou de maneira tal que, não resolvida a
questão sobre violência, procurei saber que programa era esse, por quem foi criado e
tudo mais que envolva a curiosidade inicial.
Assim, quando iniciei as aulas, um adicional apareceu no processo de pesquisa
do PAISM. Fui diagnosticada com endometriose e alguns médicos me disseram que em
pouco tempo eu poderia não mais ter filhos. Eu, que nunca tinha pensado isso como
uma questão importante, passei a refletir com mais atenção. Passou-se o ano de 2011 e,
num périplo de inúmeros (as) médicos (as) ginecologistas, duas enfermeiras, uma
psicóloga e um homeopata acunpunturista - além do apoio incondicional dos amigos e
família -, quase sem esperanças procurei uma médica para novo diagnóstico. Eu não me
conformava com o resultado. Depois de uma consulta de duas horas, numa tarde de
sexta-feira em Copacabana, um bloco grande de anotações, mil exames espalhados na
mesa de madeira, ela baixa os óculos de leitura e fala para mim o novo diagnóstico: eu
não tinha endometriose, foi um erro de leitura do exame combinado com o resultado de
outro exame. Eu repeti os exames novamente e o resultado era o mesmo. Negativo.
Nada.
O laboratório que realizou meu primeiro exame, o mais importante de todos para
o diagnóstico, não tinha feito as perguntas certas no dia, e eles confundiram o resultado
de um processo natural de menstruação com vários cistos de endometriose. Isso me
levou a questionar o momento em que o médico tinha me pedido para realizá-lo. Ele se
esqueceu de dizer que não poderia ser realizado logo após o período da menstruação,
tinha que ser anterior a esse período. As dores que eu sentia eram resultado de um
problema de postura que ocasionava uma dor profunda na região da lombar irradiada
para a parte pélvica. Os (as) médicos (as) que me consultaram se esqueceram de
perguntar como era a minha rotina de trabalho. As dores nas costas resolveram o
problema da minha “endometriose”, e ao fim, um ortopedista e um mestre de Tai Chi
Chuan me ensinaram exercícios básicos de postura e alongamento associados à
respiração, que possibilitaram que eu pudesse escrever esse trabalho hoje.
10
E o que fazer com aquele ano em que planos mirabolantes acerca do meu futuro
e do futuro da minha relação afetiva foram feitos? Aprender é uma filosofia de vida. O
PAISM virou uma questão importante para ser estudada. Ainda que eu estivesse
envolvida totalmente com os acontecimentos e que os preceitos do PAISM depois do
novo diagnóstico me calassem fundo, eu tentei olhar esse processo como algo a ser
aprendido, mas, ainda assim, questionado.
Questionamento requereria da minha parte um distanciamento, uma suposta
neutralidade em relação ao assunto, algo que não poderia ser obtido como um todo.
Mas, o impulso dentro de mim de procurar pesquisar assuntos através dos caminhos das
ciências humanas e sociais foram maiores do que a vontade de querer me vingar
daqueles que me fizeram passar por esse processo doloroso. Não queria um estudo
militante, mas, ao mesmo tempo, digo que estão presentes nesta pesquisa, através da
forma de se analisar e das teorias utilizadas, os esforços para se entender também esses
processos todos dentro de mim. É por essa razão que afirmo fazer parte da minha
personalidade a profissão que escolhi.
A partir disso, como fui elaborando a pesquisa? Esse estudo sobre a criação e a
implantação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher está situado no
recorte temporal de 1983, data da sua criação, até 1995, ano da Conferência de Beijing.
Os debates dessa conferência estão ligados intimamente com a criação, em 1996, da Lei
do Planejamento Familiar no Brasil. Esse recorte foi feito por abarcar as discussões do
processo de redemocratização no Brasil e também pela criação do Sistema Único de
Saúde em 1988, na Constituição Federal. É um tempo que está entremeado de diferentes
formas de ativismo feminista, que combinadas com o próprio contexto, imprimem
caráter especial de análise sobre essa política pública. Outra justificativa é também pelo
limite que proponho para essa implementação e que está intimamente ligado com a
criação da Lei do Planejamento Familiar em 1996, o que será mais bem explicado no
segundo capítulo desse trabalho.
Para ler o PAISM nas décadas de 1980 a 1990 (considerando o recorte
temporal), busco o caminho principal das pesquisas qualitativas que me oferecem uma
análise sobre o processo de forma descritiva, a qual, segundo Godoy (1995, p.58)
Envolve a obtenção de dados descritivos sobre pessoas, lugares e processos
interativos pelo contato direto do pesquisador com a situação estudada,
procurando compreender os fenômenos segundo a perspectiva dos sujeitos,
ou seja, dos participantes da situação em estudo.
11
envolvidos para que fossem garantidos pelo Estado e de que maneira o PAISM se
encaixa nessa nova nomenclatura na década de 1990, já que os considero a partir das
Conferências do Cairo (1994) e de Beijing(1995).
Em relação às entrevistas, foram estruturadas na forma semi-diretiva, o que me
proporcionou trabalhar com eixos temáticos acerca dos principais assuntos envolvidos
com a pesquisa. A análise do conteúdo expressa na análise de avaliação foram os
instrumentos principais para a obtenção dos resultados oferecidos nessa pesquisa. Para
fundar o estudo dos testemunhos orais, utilizei a pesquisa de Quivy, Campenhoudt
(1992), Manual de Investigação em Ciências Sociais, a qual especifica que a análise da
avaliação incide sobre os juízos formulados pelo locutor. É calculada a freqüência dos
diferentes juízos (ou avaliações), mas também a sua direção (juízo positivo ou negativo)
e a sua intensidade.
Sobre análise de conteúdo, ainda esclarece que é aquela que incide sobre
mensagens tão variadas como as obras literárias, artigos de jornais, documentos oficiais,
programas audiovisuais, declarações políticas, atas de reuniões, ou relatórios de
entrevistas semi-diretivas (QUIVY; CAMPENHOUDT, 1992). Para o tratamento das
fontes orais recorri ás técnicas da história oral que traz também a perspectiva de um
olhar sobre os discursos, buscando seus lugares de fala, o contexto da entrevista em que
está inserido, bem como os assuntos levantados em cada fala.
Combinando uma análise de avaliação com as técnicas oferecidas pela história
oral, em perceber os discursos, consegui buscar as similitudes em cada fala e agrupar os
principais assuntos em relação aos eixos temáticos, e ao mesmo tempo, cotejados os
discursos com fontes documentais, me proporcionaram o mapeamento das falas em
relação às disputas e mediações em torno da criação e implementação do PAISM.
Sobre os eixos temáticos um esclarecimento. Analisar dessa forma, foi uma
escolha tomada dentro do processo de pesquisa. Pois, trabalhar com muitas perguntas
tomaria um tempo que não foi oferecido pelas ativistas feministas. Essa forma de
entrevista me permitiu ter um tempo médio de 50 minutos, e também de assimilar o
máximo de informações de cada entrevistada. Antes dessa escolha de pesquisa, estava
previsto um roteiro geral que incluía perguntas relacionadas com o período estudado, o
que não foi possível de ser trabalhado no tempo das entrevistas por englobarem quase
duas décadas da vida das entrevistadas.
Tendo em vista esse quesito elenquei os três eixos para as perguntas:
envolvimento com as causas feministas – quando cada uma começou o ativismo
15
1
O feminismo anterior a esse momento refere-se ao movimento das sufragistas inglesas no século XIX
que difere em muito das reivindicações feministas no século XX. A pauta das feministas sufragistas, no
geral, referia-se à necessidade das mulheres participarem da vida política através do voto, mas não estava
ligada à quebra de valores tradicionais que os feminismos depois tiveram. A partir da Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), a crescente participação das mulheres fora do meio doméstico na Europa
desencadeou também esse processo de contestação dos valores tradicionais de manutenção da família
aliada à figura central do homem. Caracterizando-se esse, como um dos aspectos centrais na pauta dos
feminismos no século XX. Sobre a influência desse movimento no Brasil: PINTO, C. R. Uma História do
Feminismo no Brasil. Coleção do Povo Brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
19
para a América Latina foi rapidamente absorvida pelas mulheres que aqui que se
encontravam e que contestavam o modelo vigente de dominação masculina.
As mulheres, de fato, conseguiram mostrar seu espaço através de muita luta num
ambiente masculino unilateral; contestaram, se uniram e assim conseguiram divulgar
outro universo ainda pouco explorado, o próprio. Mas, “o que é uma mulher?”, Simone
de Beauvoir já fazia essa pergunta em 1949, no seu livro O Segundo Sexo, o qual, a
partir de 1960, tornou-se à máxima tanto para as mulheres feministas como para aquelas
que não pertenciam a nenhum movimento.
Entretanto, a mesma pergunta implicava em outra quase diretamente: onde se
encontrava a mulher ou as mulheres, afinal? A temática era levantada quando se
questionava as sociedades por serem, em sua maioria, representadas pela figura do
homem. Onde estariam as mulheres dentro dessa representação?
O problema encontrado pelo feminismo em conceber o espaço das mulheres se
detêm no fato de que as mesmas não se encontram em posição diferenciada e
desagregada dos homens. O feminismo possui, então, um dilema a ser enfrentado: as
mulheres dispersas na sociedade podem conseguir ganhos que atribuem a elas uma
parcela maior de independência, mas o fato de serem mulheres não significa que se
identificarão com essa causa somente. A igualdade deve ser buscada na medida em que
favoreça às mulheres buscarem um espaço próprio: no entanto, qual seria esse espaço?
Na década de 1960, no Ocidente, a liberação do sexo e a valorização da
juventude promovidas pela revolução cultural, foram o marco para a mudança na
concepção dos valores tradicionais da sociedade. Segundo Hobsbawm (1996, p.327),
Assumia-se tacitamente que o mundo consistia em vários bilhões de seres
humanos definidos pela busca do desejo individual, incluindo desejos até
então proibidos ou mal vistos, mas agora permitidos – não porque se
houvessem tornado moralmente aceitáveis, mas porque tantos egos o tinham.
2
Sobre o feminismo na Europa e nos Estados Unidos, suas lutas, conceitos e organização nas décadas de
sessenta e setenta: DUBY, Georges, PERROT, Michelle. História das Mulheres no Ocidente. Edições
Afrontamento: Lisboa, 1991. Vol. v.
3
Sobre torturas, desaparecimento e mortes de mulheres no período da ditadura militar: MERLINO, T.,
OJEDA, I. (orgs.). Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo: Editora Caros
Amigos, 2010.
22
é bem verdade que a entrada das mulheres nos círculos universitários já vinha
produzindo uma certa feminização do espaço acadêmico e das formas de
produção dos saberes. Em outras palavras, desde os anos setenta, as mulheres
entravam maciçamente nas universidades e passavam a reivindicar seu lugar
na História. Juntamente com elas, emergiam seus temas e seus olhares
desconhecidos. Progressivamente, a cultura feminina ganhou visibilidade,
tanto pela simples presença das mulheres nos corredores e nas salas de aula,
como pela produção acadêmica que vinha à tona. Histórias da vida privada,
da maternidade, do aborto, do amor, da prostituição, da infância e da família,
24
Importante considerar naquele contexto, que a pressão dos Estados Unidos sobre
o Brasil para uma política de controle da natalidade tinha como princípios o
desenvolvimento econômico, baseado no controle da quantidade de filhos das mulheres,
em sua maioria pobres. Portanto, a ênfase em pesquisas que derivaram nesse momento
da questão materno-infantil e a criação de políticas de saúde que contemplassem esse
aspecto possuem também em sua origem uma pressão política externa. Outro ponto
relevante no contexto da época era a importância que os Estados Unidos tinham nesse
momento. A Guerra Fria (1945-1991) separava o mundo em duas esferas, uma
capitalista e outra socialista, e influenciava no Brasil de forma a se alinhar ao bloco
capitalista, ou seja, ao lado dos Estados Unidos.
No entanto, o olhar centrado das pesquisas sobre o grupo materno-infantil
oferecia uma posição pouco clara das autoridades brasileiras de saúde em se posicionar
efetivamente sobre o controle da natalidade. A posição dúbia referente ao controle da
natalidade consistia em não assumir diretrizes que possibilitassem esse controle, mas ao
mesmo tempo não se ofereciam serviços de informação para a população sobre métodos
25
4
Considero como feminismo de segunda onda aquele nascido no Seminário da ABI de acordo com Pedro
(2006) que em seu estudo faz essa distinção dentre outras narrativas sobre quando da ocorrência dessa
26
fase. Segundo a autora, o feminismo da primeira onda se configuraria como a luta das sufragistas, anterior
a esse momento da década de 1970.
27
5
Hobsbawm (1994).
28
Feminismos
6
Sobre dominação utilizo o conceito de Apfelbaum (2009): “Toda a relação de dominação, entre dois
grupos ou duas classes de indivíduos, impõe limites, sujeição e servidão àquele(a) que se submete. Ela
introduz uma dissimetria estrutural que é, simultaneamente, o efeito e o alicerce da dominação: um se
apresenta como representante da totalidade e o único depositário de valores e normas sociais impostas
como universais porque os do outro são explicitamente designados como particulares. [...] A dissimetria
constituinte da relação de dominação aparece não somente nas práticas sociais, mas também no campo da
consciência e até nas estratégias de identidade.” Esse conceito ajuda a entender as formas cristalizadas de
opressão que as radicais apontavam como meta a serem vencidas pelas mulheres. A dominação sob essa
perspectiva não possui em si um caráter móvel para aquele que está sendo subjugado, portanto a única
forma de superação seria através da conscientização e da liberação da opressão exercida.
7
Grifos da autora.
31
Sobre essa relação com o Estado, Kantola (2010) afirma que essa postura pode
reduzir a questão do poder a uma instância do Estado, o que, após os estudos de
Foucault e sua repercussão nas humanidades, passou a ser relativizado, uma vez que o
poder não existe de forma tão centrada. Quando Foucault faz uma análise dos poderes
disseminados na sociedade presente em todas as relações, o poder de opressão do
Estado não se configura como sendo a única fonte repressora. Sobre os estudos de
Foucault e sua discussão sobre o poder, Guareschi (2005, p.486) esclarece:
Por poder, Foucault entende ‘a multiplicidade das relações de força
imanentes ao campo em que se exercitam e constitutivas da sua organização’.
A operação preliminar dessa abordagem com relação aos sistemas
tradicionais é uma inversão, ao mesmo tempo, de escala e de sentido. A
chave da compreensão do poder não deve ser buscada nos planos da
Soberania, da Lei, da Autoridade, mas no nível molecular de uma
‘microfísica do poder’, atenta à pluralidade de relações que regem e
percorrem todas as relações caracterizadas por alguma forma de assimetria.
[...] O poder não possui nenhuma substancialidade, não é uma entidade
acumulável e capitalizável, ele só existe ‘em ato’, na passagem do seu
exercício concreto para o ato.
outro contexto de democracia que favorecesse que essas políticas pudessem ser criadas.
Nesse caso, ainda se encontrava um sistema ditatorial violento, sem chances para
negociação e pressão da sociedade civil.
Ainda nas críticas, apesar de as marxistas vincularem seus ativismos feministas à
militância na esquerda, o pano de fundo dessa discussão era a situação econômica do
Brasil, que não dava quaisquer sinais de distribuição de renda e melhorias para a
população. Aliado a isso, o regime de ditadura massacrava os movimentos sociais, o
que impedia por completo o desenvolvimento de pressões para que as mulheres
pudessem ter acesso a melhor qualidade de vida.
Dessa maneira, o feminismo brasileiro de segunda onda, em especial no Rio de
Janeiro, passava por impasses ideológicos que traduziam em muito o contexto histórico
e, além disso, enfrentava a dura realidade política e econômica da população brasileira.
Ao passo que as discussões acerca das mulheres especificamente traziam à tona a
denúncia sobre problemas graves – dentre eles, particularmente, a violência, o aborto e
o acesso a contracepção – , o olhar sobre o processo como um todo trazia também os
problemas sociais e econômicos que tanto caracterizaram esse momento. Esses
impasses aos poucos vão mudando de acordo com a abertura do processo democrático
brasileiro, que imprimia, sobretudo, um novo posicionamento em relação às ações
feministas e sobre a forma de ativismo.
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brasileiro desde 1974. Nomes importantes da política como Lysâneas Maciel do Rio de
Janeiro e Ulysses Guimarães, bem como Tancredo Neves, Franco Montoro e Mário
Covas participavam do MDB e pela destacada ação desses nomes, pode ser considerado
um ator político de peso que integra a conjuntura de efervescência democrática da
época. Franco Montoro quando governador de São Paulo em 1982 tem extrema
relevância para o debate das mulheres na época, pois em seu governo, dentre outras
ações, mantinha um diálogo com as feministas paulistas e foi o primeiro governador a
implementar no Brasil uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher em 1985.
O MDB foi o partido de oposição durante a ditadura e reunia diversas tendências
no seu interior, o que muitas vezes era também considerado por demais inconsistente
para atuar como uma esquerda ativa no período. A atuação do “grupo dos autênticos”
vinha exatamente de encontro a esse sentimento de insegurança daqueles que
partilhavam os ideais da esquerda. A esperança da esquerda por elegerem candidaturas
fazia com que militantes como do Partido Comunista atuassem no MDB para conquistar
a cena do processo democrático e tentar implementar mudanças a partir dos cargos de
representativos.
O movimento estudantil, citado por Maria Paula Araújo (2007) como um
segundo ator político na época, teve atuação destacada para o projeto democrático
brasileiro. As manifestações nas quais denunciavam as mortes e torturas dos presos
políticos, bem como a volta dos diretórios acadêmicos e da UNE como campos de luta,
imprimiram uma nova frente de atuação antes clandestina em organizações de esquerda
algumas de luta armada. Os estudantes se organizaram, principalmente, na Bahia, no
Rio de Janeiro e em São Paulo, para protestar contra os abusos da ditadura militar e suas
manifestações tiveram bastante ressonância e apoio da população em geral e do MDB
(ARAÚJO, M. 2007).
O movimento estudantil ganhou força também no momento das Diretas-Já em
1984 quando houve a famosa votação no Congresso da emenda Dante de Oliveira para
as eleições presidenciais. A atuação desses grupos, aqui brevemente citada, teve seu
início nos anos sessenta nos movimentos contestatórios que marcaram o cenário
mundial. O AI-5 foi um perverso instrumento do Estado brasileiro contra esse e outros
movimentos que denunciavam as disparidades desse regime. Muitos (as) estudantes que
seguiam os ideais da esquerda no momento da ditadura foram para as organizações de
36
8
Sobre a lista de mortos(as) e desaparecidos(as) pertencentes a organizações da esquerda, do movimento
estudantil e de outras organizações contrárias a ditadura militar brasileira(1964-1985):
http://www.torturanuncamais-rj.org.br/
37
O Mulherio foi criado em 1981 e seu último número foi publicado em 1988 e,
segundo Pinto (2003, p.86),
O jornal foi a mais importante publicação feminista da década, sendo leitura
obrigatória para todas as feministas brasileiras. Com uma comissão editorial
formada por destacadas feministas paulistas, o jornal ficou sediado na
fundação [Fundação Carlos Chagas] até 1983, tendo sido publicados 15
números.
O Mulherio desde a sua criação em 1981 conta com 38 números que vão até o
ano de 1988. Os assuntos eram sobre o cotidiano das mulheres em geral e assim como
outros jornais confeccionados pelas feministas, tinha como objetivo as idéias do
movimento e oferecer uma leitura na qual as mulheres pudessem se identificar.
Os jornais da imprensa alternativa divulgavam as idéias sob a ótica mais
próxima da esquerda e contestavam a ditadura militar. Eram jornais para um público
que buscava uma imprensa que contestasse as disparidades da ditadura militar e que
oferecessem atributos para uma leitura mais reflexiva acerca dos problemas políticos e
sociais da época.
A televisão no final da ditadura foi também para o feminismo, um canal de
discussão sobre a condição das mulheres com o seriado Malu Mulher, o qual tinha um
apoio para o roteiro de algumas feministas e retratava nos seus temas as experiências de
muitas ativistas na época. Sobre o seriado Malu Mulher Tabak (2002, p.55) analisa
É fato conhecido a repercussão que teve, não só no Brasil, mas em muitos
outros países (inclusive europeus), a série denominada Malu Mulher, que
apresentou uma nova imagem de mulher, graduada (socióloga), desquitada e
mãe de uma filha adolescente, e a maneira adulta, moderna e independente
com que ela enfrentou os problemas surgidos, após a separação do marido.
O Malu Mulher (1979-1980) foi protagonizado pela atriz Regina Duarte e trazia
à tona em sua problemática da separação e todos os temas envolvidos na trama, um
pouco da discussões feministas sobre a vida privada, os problemas que as mulheres
enfrentavam nas relações com os homens, enfim, foi muito importante para contribuir
para a difusão de todo um debate feminista. Outros programas voltados para as
mulheres também foram exibidos na época como o TV Mulher, que discutia temas da
esfera feminina com especialistas e o seriado Delegacia de Mulheres na década de 1990
que tratava o tema da violência contra a mulher.
O quinto ator político elencado por Maria Paula Araújo (2007) é a associação de
moradores, que segundo a autora tinha bastante destaque no cenário nacional,
mobilizando bairros e comunidades a reivindicarem seus direitos. A questão da moradia
39
Nessas associações a presença das mulheres era muito forte e muitas foram
aquelas que se colocaram a frente para a tomada de decisões em relação às
reivindicações. Em destaque também, na época, foram as associações das favelas que se
mobilizavam bastante em relação às remoções de populações pobres e à concessão do
direito à moradia em locais já ocupados.
O clima de redemocratização era constante com as atuações dos movimentos
populares que incluíam diversos setores políticos e sociais. Os profissionais liberais
tidos como um sexto ator político na análise de Maria Paula Araújo (2007), tiveram
importante atuação na denúncia de irregularidades do regime militar, bem como na
proposição de novos caminhos democráticos a partir de suas carreiras. Dentre as
associações desses profissionais, as que tiveram bastante destaque foram: a Ordem dos
Advogados no Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o Instituto dos
Arquitetos do Brasil (IAB), os Sindicatos dos Professores, os Sindicatos dos Médicos
(ARAÚJO, M. 2007).
Para o presente estudo, a atuação dos médicos teve bastante importância devido
ao movimento da Reforma Sanitária, que denunciava a falta de políticas que atendessem
a população de uma forma eficiente, com recursos necessários para uma um
atendimento de qualidade e que assistisse a todos. A partir das idéias da Reforma
Sanitária que o Sistema Único de Saúde foi instituído em 1988 na Constituição Federal
com uma proposta de atender a todos (as) cidadãos (ãs), que possuíam ou não carteira
assinada, comprometendo o Estado em fornecer como direito a saúde para todos. Isso
incluía oferecer políticas de saúde que demandassem a participação popular na gestão
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de saúde local, bem como abrir mão de uma medicina curativa para preventiva, com
vias de atender os problemas de saúde de forma integral visando o bem-estar dos seus
pacientes. As denúncias de sucateamento da saúde feitas pela Reforma Sanitária eram
também um reflexo de como os serviços públicos eram geridos durante a ditadura
militar, ou seja, com poucos recursos e muito pouca atenção às demandas de benefícios
à população.
Os movimentos das minorias políticas fecham o quadro de atores políticos do
final da ditadura da análise feita por Maria Paula Araújo (2007). A autora comenta
sobre a atuação de três importantes movimentos: o movimento feminista, o movimento
negro e o movimento gay. Sobre esses três diferentes movimentos, com diferentes
tendências entre si, a autora coloca como importante a divulgação de idéias através de
jornais e das denúncias feitas a partir desses grupos para alarmar a situação de
discriminação e opressão que atravessava cada segmento.
Levando-se em consideração a atuação relevante de cada grupo para a
divulgação das vozes democráticas no final da ditadura e para além desse momento,
prefiro me reservar ao uso do termo minorias, por não considerá-lo apropriado quando
relacionado a mulheres, negros, gays e lésbicas na sociedade. Pelo presente estudo
contemplar a atuação dos grupos feministas, no momento, destacarei brevemente a
atuação do movimento negro e dos movimentos gay e lésbico.
O movimento negro, considerado por Alberti e Pereira (2007) por movimento
negro contemporâneo aquele que surge em 1970 tem desde de seu início uma história de
lutas para colocar a público o racismo no Brasil. Os autores mostram que o mito da
democracia racial construído pela obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, no
Brasil, fez com que se acreditasse que as diferenças históricas enfrentadas por negros
(as) e brancos (as) fossem encobertas pela questão da miscigenação.
Tirar esse véu de opressão sobre atitudes que não são publicamente assumidas
como racistas foi a bandeira dos grupos negros que se formaram nesse período. Foram
criados muitos grupos por todo Brasil que a partir da criação, em 1978, do Movimento
Negro Unificado (MNU) em São Paulo, ganharam força para colocar a público suas
reivindicações. Sobre a criação do MNU os autores analisam
O ano de 1978 é um marco no movimento negro contemporâneo; no dia 7 de
julho, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, foi realizado um ato
público em protesto contra a morte de um operário negro em uma delegacia
de São Paulo e contra a expulsão de quatro atletas negros de um clube
paulista. O ato acabou resultando na formação, no mesmo ano, do
Movimento Negro Unificado (MNU), entidade que existe até hoje e cuja
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9
Sobre música negra e difusão de idéias no século XX da valorização do negro: GILROY, Paul. O
Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Universidade Cândido Mendes, Centro de
Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, 2001.
42
diminuídas por questões de gênero dentro do movimento e decidiram criar seus próprios
mecanismos de luta para tratar desses assuntos, como analisa Barreto (2007, p.460)
Lélia e outras mulheres negras decidem criar uma organização
exclusivamente de mulheres negras voltadas para as suas questões
específicas. Em 16 de junho de 1983, na Associação do Morro dos Cabritos
[Rio de Janeiro], fundou em conjunto com outras mulheres, o Nzinga –
Coletivo de Mulheres Negras, nele permanecendo até 1985. O coletivo
estruturava-se num trabalho político baseado nos campos de atuação das
militantes, as quais eram ligadas às associações de moradores, um
movimento com muita expressão na época.
Mais uma vez, a aliança dos movimentos sociais limita os ativismos em torno de
demandas específicas. Em se tratando das lésbicas era claro que não poderia encontrar
nessa arena política tão disputada as idéias de botar abaixo a heterossexualidade
obrigatória, bem como a visibilidade das lésbicas como atrizes participantes da
redemocratização. Suas atuações foram restritas à prática no campo feminista, em
encontros feministas nas décadas de 1980 e 1990, nas quais poderiam expor sua
sexualidade, pois não seria um impedimento para que a convivência de solidariedade e
experiência feminina pudessem se estabelecer. As demandas das lésbicas na década de
1990 ganham maior reconhecimento dentro dos grupos feministas também com a
realização do I Seminário Nacional de Lésbicas em 1996, no Rio de Janeiro, contando
com a participação de 100 lésbicas, onde foi escolhido o dia 29 de Agosto como o Dia
Nacional da Visibilidade Lésbica (SOARES; COSTA, 2012).
A política ditatorial no final da década de 1970 mostrava sinais de desgaste não
somente através das pressões dos movimentos sociais, mas também por questões de
ordem econômica. Apesar do clima de distensão proclamada no governo do general
Geisel (1974-1979), com o Pacote de Abril lançado em 1977 - uma série de medidas
para controlar o legislativo nacional e de restrições para as eleições de senadores e de
45
governadores em 1978 - o governo anunciava que essa abertura poderia ser mais
dificilmente alcançada, além de manter a atmosfera ditatorial presente em perseguições
e prisões de militantes contra a ditadura.
Nesse momento, cresce a luta dos movimentos pela anistia, que reivindicavam a
volta dos exilados políticos, a punição de perseguidores e torturadores da ditadura
militar, bem como informações sobre mortos e desaparecidos do regime e denúncias dos
assassinos. Sobre a anistia Maria Paula Araújo (2007, p.343) destaca:
A campanha nacional pela anistia começou a ser esboçada em 1975. Dois
episódios foram marcantes: o já mencionado culto ecumênico pela morte de
Vladimir Herzog, na Praça da Sé, e, também em São Paulo, a criação do
Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), liderado por Terezinha Zerbini.
Seguindo o exemplo de São Paulo, mães, mulheres e filhas de presos,
exilados, cassados e banidos políticos organizaram em outros estados do país
Movimentos Femininos pela Anistia. Helena Greco fundou o de Minas.
A lei da anistia não representou a luta anterior, por oferecer uma ambígua noção
de perdão àqueles que cometeram assassinatos, e muito pouco foi feito, desde então,
para apurar os crimes sangrentos da ditadura. Os arquivos da ditadura, muitos dos quais
fechados até os dias atuais, poderiam oferecer, no mínimo, uma reparação histórica
àqueles que perderam suas vidas para um regime perverso, como foi o período da
ditadura brasileira.
No entanto, a anistia foi uma grande vitória no sentido de poder trazer os
exilados (as) políticos (as), que logo se inseriram em um novo processo da
redemocratização brasileira: a volta das eleições. No caso das feministas, muitas
voltaram ao Brasil e com suas ideias e experiências bastante diferenciadas das que aqui
obtiveram, trouxeram novos ares para os feminismos brasileiros. Sobre a volta das
feministas Goldberg (1987, p.171) assinala:
O ano de 1979 foi muito importante para a vida política brasileira e também
para as feministas. A anistia permitiu o retorno ao país de muitas mulheres
que durante o exílio – seu ou de seus companheiros – haviam tomado contato
com a experiência dos movimentos de liberação europeus e que tinham se
‘convertido’ ao feminismo. Essas mulheres entraram nas associações
feministas e nos grupos de mulheres no interior dos quais o consenso político
estava há muito periclitante, contribuindo para a introdução de práticas
voltadas para a sexualidade, o aborto, a violência e trazendo elementos para
os debates sobre a relação entre feminismo e luta de classes, a autonomia, o
separatismo e o pluralismo. As reações foram imediatas as cisões
aconteceram em muitos grupos.
Foi assim com o carro do jornalista Hélio Fernandes, que explodiu assassinando-
o; com a carta bomba na ABI que matou a funcionária Lydia Monteiro, e com um cruel
atentado que, se fosse executado tal como planejado, seria uma mancha na história
brasileira: as bombas no Riocentro no Dia do Trabalhador, em 1981. Dentre outros
atentados e ameaças, ficou provado, com o episódio do Riocentro - no qual bombas
foram implantadas para detonarem durante a celebração, mas que acabaram explodindo
no carro de integrantes do governo militar - que havia uma forte oposição por parte da
linha dura à volta da democracia no Brasil.
A sociedade fazia muita pressão para a apuração do atentado e também para a
volta do regime democrático. Em 1979, o governo, então, anunciaria o fim do
bipartidarismo, surgindo no cenário político brasileiro novos partidos para as próximas
eleições. Segundo Carvalho (2002, p.176),
a Arena transformou-se no Partido Democrático Social (PDS), o MDB no
Partido do Movimento Democrático Brasileiro, os antigos trabalhistas do
PTB dividiram-se em dois partidos, PTB e Partido Democrático Trabalhista
(PDT), este último sob a liderança de Leonel Brizola [...] a grande novidade
no campo partidário, no entanto, foi a criação do Partido dos Trabalhadores
(PT) em 1980.
2. D ISCUTINDO OS DEBATES
Walzer (2008), portanto argumenta que, para ser sociedade civil, o caráter
fundamental é a livre associação, e que o Estado e as associações privadas não
ofereceriam oportunidades para tal. O que possui relação com a concepção de sociedade
civil para Young, mas a autora vai além nessa definição considerando a sociedade civil
como um terceiro setor. O Estado viria em primeiro, mantendo seu aparato institucional,
a economia viria em segundo, com o mercado regulando as relações, e a sociedade civil
diria respeito à vida diária, associações voluntárias que não são reguladas pelo aparato
institucional, nem pelo mercado, apesar de seus membros transitarem por essas duas
esferas. Dentro dessa perspectiva, Young (2002) ainda pontua que, dentro da distinção
de sociedade civil, há ainda subdivisões que são atribuídas ao caráter de cada
organização. No caso do feminismo, o caráter a ser assumido, seria das associações
políticas, que tem por finalidade tratar de assuntos políticos, ligados às concepções de
justiça, e que, por isso, forneceriam instrumentos para um debate de mudança de postura
do Estado perante essas demandas.
Essas associações, segundo a própria autora, estão localizadas na esfera pública.
Esfera pública, nesse sentido, abarcaria as questões que dissessem respeito a todos (as)
os (as) cidadãos (ãs), e que todos(as) deveriam ter acesso para definirem suas
reivindicações. O maior ou menor grau de influência dentro da esfera pública dos
grupos seria definido pelo empoderamento desses grupos, e que teria como papel
também importante a atuação do Estado para a defesa de um debate que favorecesse a
igualdade de oportunidades na esfera pública. Para isso, as pressões dos grupos
considerados minoria na esfera pública demandaria um atitude de reconhecimento por
parte do Estado para que pudessem ser atendidos.
Nesse universo, pode-se pensar como as reivindicações dos grupos feministas
atuam dentro da esfera pública. Se as demandas das mulheres estiverem no âmbito da
família, ou seja, na esfera privada, suas associações não são consideradas participantes
da sociedade civil. É justamente nesse ponto que o feminismo entra para descortinar
situações agravantes no tratamento dado às mulheres. Se o problema da violência contra
a mulher, em, sua maioria ocorre no ambiente doméstico e, essa situação é considerada
de foro privado, nem o Estado e nem a sociedade civil possuem acesso para deflagrá-lo
e buscar soluções possíveis. No entanto, se o problema da violência for suscitado pela
sociedade civil, movimentos de mulheres, e se o privado se tornar público, o Estado é
pressionado para desenvolver ações que atendam essa e outras demandas do tipo. O que
52
está implicado nesse tipo de ação é a organização das mulheres na sociedade civil e a
luta por direitos que concernem a elas através da pressão no Estado para que suas
reivindicações possam ser aceitas.
Na questão da saúde, se as mulheres tiverem poder de decisão sobre seus
próprios corpos, ou seja, o controle sobre a reprodução por meio de métodos
contraceptivos, e tiverem livre escolha para exercerem sua sexualidade, se o Estado
proporciona através de mecanismos que as asseguram tanto legalmente quanto
oferecendo serviços de saúde que promovam essa escolha, deixa de ser de foro privado
para ser uma questão de direitos a decisão sobre quando e como ter filhos e como isso
afeta a condição de vida das mulheres. A mudança se encontra na aquisição desses
direitos das mulheres em poderem fazer escolhas que dizem diretamente do seu bem-
estar e que isso deveria ser assegurado pelo Estado.
As articulações em torno desses assuntos estiveram em voga nos 1980 no Brasil.
No entanto, anteriormente a esse momento, não se poderia fazê-las com tanta
mobilidade. Em se tratando de um período específico para a política brasileira, foi de
grande repercussão ter a proteção da ONU para as ações do feminismo no Brasil a partir
de 1975, ano do seminário da ABI, que abriu um espaço democrático em um regime
fechado. Embora para que essa mobilização tivesse um caráter maior de difusão, a
participação dos aparatos do Estado em respaldar o movimento seria de grande
importância. O Estado não apresentava essa possibilidade e as feministas em sua
maioria pertenciam a partidos ou organizações também marginalizados pela política,
com ideias que diferiam do sistema político e econômico da época. Dessa forma, o
feminismo, enquanto movimento social, ganha sua acepção mais autônoma que tanto
caracterizou a década de 1970, muito diferente do momento vivido nos anos de 1980.
A luta das feministas a partir desse momento seria diferente da década anterior.
Com a reforma partidária, as feministas se dividiam entre os partidos representantes da
esquerda, e, isso, trouxe à tona uma forte tendência dos feminismos nesse período: a
ligação com os partidos políticos. O momento era de muita participação e as mulheres
viram uma possibilidade de entrarem para a política, o que não seria pensado
anteriormente.
Dentro dessa perspectiva, a participação em outras instâncias provocava um
contato maior com o Estado e a mudança que isso poderia gerar na organização dos
grupos era significativa. A possibilidade de participação dos movimentos sociais, em
específico do feminista, numa esfera pública que abarque a interação entre os indivíduos
53
10
Para o estudo da representação feminina no Brasil: ARAÚJO, C. M. O. Cidadania incompleta: o
impacto da lei de cotas sobre a representação política das mulheres brasileiras. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 1999.
56
Indo mais além no debate dos direitos das mulheres, a afirmação das diferenças
pode assumir contornos que atendem ou não aqueles que buscam reconhecimento
dependendo das políticas que são implementadas. Nancy Fraser (2002) ao estudar as
políticas de afirmação das diferenças faz uma distinção e uma crítica aos autores que
pensam o reconhecimento apenas como um mote a ser buscado estabelecendo uma
relação de dualidade com a redistribuição. Sua teoria envolve três esferas que se
relacionam simultaneamente: a representação, a redistribuição e o reconhecimento. E
oferece uma visão que amplia o debate, segundo a autora, para além, do dualismo sobre
aquilo que deva ser reconhecido e a redistribuição de recursos. A crítica principal que a
autora faz é tratar o reconhecimento sem a redistribuição, o qual não estabelece uma
transformação da realidade de desigualdade social.
57
Para entender que tipo de reconhecimento a autora menciona como uma das
metas a ser buscadas em conjunto das outras, Fraser (2002, p.10) observa que esse
reconhecimento não deve ser tido como políticas de identidade, mas como modelo de
status:
a aplicação do modelo de status exige que se examinem os padrões
institucionalizados de valor cultural para verificar seus efeitos sobre a
posição relativa dos atores sociais. Sempre que tais padrões constituírem os
atores como iguais, capazes de participar em condições de igualdade com os
outros na vida social, então poderemos falar de reconhecimento recíproco e
status de igualdade.11
11
Grifos da autora.
58
É significativo esse trecho, pois ajuda a refletir sobre a forma como as políticas
públicas da década de 1980 estavam sendo formuladas para pensar a condições das
mulheres. Pois, ter o reconhecimento na sociedade através de uma postura de iguais,
utilizando a categoria de status de Fraser, era de alguma maneira, serem reconhecidas
como sujeitos integrais, principalmente na área da saúde, levando-se em consideração
que as mulheres reivindicavam serem vistas não apenas como mães, mas como
mulheres num sentido mais abrangente, que devem ser atendidas de forma a terem todos
os períodos de suas vidas assistidos por um sistema de saúde que as contemplasse e
valorizassem suas demandas pessoais. Mas, ao mesmo tempo, se essa luta não
propiciasse um olhar sobre o aspecto financeiro das mulheres, principalmente as
mulheres pobres, a questão do controle da natalidade aparecia como um mecanismo, por
parte das empresas privadas que assumiam posturas anti-natalistas, de frear a quantidade
de filhos e a reservá-las a serem simples alvos de políticas de contracepção que
culpabilizavam as mesmas por serem responsáveis pela sua condição social ao terem
muitos filhos.
Utilizar as categorias de Fraser ajuda a refletir sobre a atuação dos grupos
feministas desse momento para reivindicação de políticas que afirmem a diferença entre
homens e mulheres, de maneira a contemplarem socialmente as mulheres e as ajudarem
obter um reconhecimento social. No entanto, entendo que os debates sobre
reconhecimento e justiça sociais têm muito mais profundidade do que foi exposto
aqui12, porém faço alusão somente às posições de Fraser sobre justiça, pois se
aproximam da minha análise sobre o período de criação dessas políticas.
12
Uma das críticas à Nancy Fraser que refuta a idéia de categoria dual de reconhecimento e redistribuição
se encontra no artigo: YOUNG, I. M. Categorias Desajustadas : Uma crítica à teoria dual de sistemas de
Nancy Fraser. Revista Brasileira de Ciência Política, nº2 Brasília, julho-dezembro de 2009, pp.193-214.
59
que atendessem a essas demandas. A saúde das mulheres sempre foi um tema pertinente
no feminismo. O tema da saúde perpassa as tendências feministas expostas
anteriormente de maneiras diversas, embora com maior ênfase nas tendências radical e
liberal. A questão da saúde das mulheres passa pelo caminho da descoberta dos corpos
como fontes de prazer, bem-estar e realização pessoal, bem como, no direito à posse
desses corpos pelas próprias mulheres, ou seja, na tomada de decisões que envolvem
também a reprodução e a sexualidade. Recuperar a memória e a história do Programa de
Assistência Integral à Saúde da Mulher (1983) é também contar um pouco do olhar para
o corpo das mulheres sob essas perspectivas.
Nos anos de 1970, o lema Nosso corpo nos pertence,traz a idéia de direito ao
corpo pelas mulheres através da luta pela descriminalização e legalização do aborto e o
acesso a métodos contraceptivos. No plano de atendimento médico, envolvia
reivindicações por pré-natal e parto com qualidade, mudança na qualidade da relação
médico-paciente e acesso à informação sobre anatomia e procedimentos médicos
(CORREA; ALVES; JANUZZI, 2006).
A legalização do aborto, que representava a opção de escolha sobre qual
momento deveria se estabelecer a concepção, foi um tema amplamente discutido e
reivindicado pelas feministas nesse momento e até os dias atuais. A temática era uma
discussão antiga dentro dos grupos feministas que englobava não somente o direito de
escolha das mulheres, bem como a saúde das mulheres que o realizavam em clínicas
clandestinas e prejudicavam sua integridade física por não terem, muitas vezes,
condições seguras para realizarem o procedimento. O debate foi até o Congresso
Nacional com um projeto de lei feito em um encontro realizado no Copacabana Palace
no Rio de Janeiro em 1983 com feministas como Danda Prado, Maria José de Lima
entre outras, que discutia o aborto em nível nacional. A prerrogativa do aborto como
uma questão forte dos grupos feministas é a necessidade de direito dos corpos das
mulheres, afirmação desses direitos, que estaria implícita a qualidade de vida das
mulheres, bem como as escolhas que deveriam ter acesso em suas vidas tendo o suporte
do Estado para a promoção desses direitos.
As ações do movimento feminista carioca giravam em torno de encontros,
seminários, campanhas e passeatas sobre os direitos da mulher com slogans e panfletos
a favor do aborto e da autonomia das mulheres em decidirem sobre seus corpos. A luta
das feministas foi também na defesa dos direitos das mulheres que sofriam as
61
conseqüências do aborto e que deveriam ser atendidas na rede pública. Sobre esse
assunto, Rachel Soihet (2005, p.48) analisa o episódio da
revogação da Lei 832/85, de autoria da deputada Lúcia Arruda, aprovada em
novembro de 1984 pelos deputados, sancionada pelo Governador, e
regulamentada pelo Secretário de Saúde em janeiro de 1985. A referida lei,
revogada em abril de 1985, obrigava a rede pública de Saúde do Estado do
Rio de Janeiro a prestar atendimento médico à mulher nos casos de aborto
permitidos pelo Código Penal: casos de risco de vida da mulher e em casos
de gravidez resultante de estupro. Por pressão direta do Cardeal D. Eugênio
Salles, o Governador e o Secretário de Saúde voltam atrás.
13
Continua sendo forte atualmente, no entanto, outros atores que não estavam presentes na época estão
engrossando esse debate de intervenção religiosa na esfera política. A figura polêmica do presidente da
Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados o deputado federal, e pastor evangélico,
Marco Feliciano do Partido Social Cristão, representa a entrada de evangélicos para o debate público
sobre o aborto e, principalmente, em relação aos direitos sexuais.
62
Dessa forma, a atenção estava voltada quase que exclusivamente para a saúde do
nascituro e não da mulher enquanto sujeito integral, ou seja, para além da questão
reprodutiva. Outro ponto interessante nesse trecho é a ligação que se estabelece entre as
mulheres e o meio doméstico através do cuidado com crianças e adolescentes. Na
medida em que as mulheres começam ocupar a esfera pública, deixando explícitos os
interesses em debates que vão além dos assuntos relacionados à esfera privada, o
reconhecimento dos direitos das mulheres devem também contemplar esse debate na
64
esfera pública. Nesse ponto, as políticas de saúde deveriam abarcar não somente o foco
materno-infantil, como também outras fases das vidas das mulheres.
O acesso a uma política de saúde baseada em práticas educativas que
informassem às mulheres sobre a sua saúde, os métodos contraceptivos e que
possibilitassem uma tomada de decisão das próprias mulheres sobre seus corpos era
uma forma de tentar uma política que não contemplasse somente os aspectos da
reprodução e do cuidado contidos no Programa Nacional de Saúde Materno-Infantil
lançado em 1977 pelo governo brasileiro. Sobre esse programa Tyrrell (1994, p.143)
comenta que a atenção dada pelo governo para o lançamento dessa política se baseava
em perspectivas demográficas que chamavam atenção para um número grande de
brasileiros que nela se enquadravam,
Segundo esses órgãos [Ministério da Saúde e Ministério da Previdência e
Assistência Social], o perfil demográfico caracteriza uma população jovem,
com mais de 50% dois indivíduos situados em faixa etária abaixo de 20 anos,
o que caracteriza uma situação oposta à dos países ricos. Para esses órgãos,
foram as características biopsicossociais e a magnitude deste grupo altamente
vulnerável e dependente que levou o Governo brasileiro a destacar o
atendimento como prioritária a esta faixa da população.
O que reitera uma visão fechada sobre as mulheres e o lugar reservado a elas no
desenvolvimento da sociedade. Faziam parte desse grupo materno-infantil crianças,
adolescentes, gestantes, parturientes, puérperas, nutrizes e mulheres em idade fértil
(TYRRELL, 1994), deixando de lado a fase do climatério, ou seja, mulheres que estão
passando pela menopausa e as mulheres da terceira idade, colocando num mesmo
conjunto mulheres e crianças, reservando às mulheres o cuidado e atenção de crianças e
adolescentes.
Outro ponto a ser discutido nessa visão do governo era o foco dado a essas
políticas de saúde, ou seja, eram fundadas na sua maioria em dados demográficos que
no momento atentavam a uma diferença significativa de países em desenvolvimento e
países ricos. Nos países em desenvolvimento, como o Brasil, o crescimento da
população jovem era alto, índice não percebido nas economias desenvolvidas. Sobre
isso, não se deve esquecer a pressão que o Brasil recebia externamente para que se
controlasse a natalidade a gerar desenvolvimento econômico. Nesse caldeirão de
intenções e de atenções voltadas para aspectos demográficos e pouco centradas num
cuidado primário e de acesso à prevenção, foi elaborado o PAISM pelas feministas que
muito contestavam esse sistema de saúde e que atuavam em grupos por todo o país
65
O assunto que ficou fora do texto final da Constituição de 1988, foi o aborto que
não conseguiu entrar no debate para a incorporação do texto, muito também por conta
de seu caráter polêmico e da já conhecida aliança entre esquerda política e Igreja. No
entanto, a ratificação dos direitos das mulheres em relação à saúde era o desejo de não
se perder a conquista amealhada pelo PAISM e pela atenção à mulher em todos os seus
aspectos. A força que essa política poderia ganhar com a implantação do SUS era
grande.
Mas, como foi implantado? No Rio de Janeiro, assim como em outros estados, a
experiência do PAISM durante a década de 1980 desde sua criação foi um tanto
decepcionante segundo os dados do estudo feito por Costa (1992) a partir da Comissão
de Cidadania e Reprodução ligada ao Ministério da Saúde. Essa Comissão criada em
1986 ficou responsável por verificar os resultados e o andamento da implantação do
PAISM no Brasil. As experiências que a autora demonstra terem maior sucesso devido à
gestão de saúde foram em São Paulo e Goiás, considerando os aspectos do programa
sendo oferecidos às mulheres de forma conjunta, ou seja, como próprio preconizado no
PAISM a idéia de implantação deveria atender a todos os aspectos da saúde das
mulheres de maneira a cobrir toda a demanda de mulheres nos serviços de saúde, bem
como as especificidades que poderiam ser apresentadas nesses atendimentos. É nesse
sentido que a pesquisa de Costa (1992) aponta como satisfatória a implementação da
PAISM, sendo não considerado como tal, aquelas que não cobrissem esses aspectos nos
atendimentos.
O órgão que respondeu ao questionário desse estudo e que se responsabilizou
por essa experiência no Rio de Janeiro foi a Secretaria Municipal de Saúde, que em
68
muitos aspectos não correspondeu aos critérios preconizados pelo programa. Nesse
estudo, a autora considerou as capitais brasileiras para a aplicação de questionários
referentes à cobertura de atendimento das mulheres nas unidades de saúde, ou seja, ao
percentual da população feminina atendida (qualquer forma de atendimento) pelas
secretarias (COSTA,1992). Das 57 capitais as quais foram distribuídos os questionários,
30 responderam se dividindo num total de 16 para secretarias estaduais e 14 para
secretarias municipais de saúde. Sobre as respostas dos questionários a autora analisa:
Tanto as secretarias municipais (44%) quanto as secretarias estaduais (42%)
oferecem entre 20 e 40% de cobertura assistencial em seus serviços.
Considerando que a população que potencialmente necessita recorrer aos
serviços públicos de saúde é em torno de 80% da população geral, esta
cobertura apresentada pelas secretarias é insatisfatória; pois no total, 81% das
secretarias municipais e 67% das estaduais realizam abaixo de 40% de
cobertura assistencial às mulheres (COSTA, 1992, p.45).
Os pontos considerados pela autora para que o PAISM possa ser implantado de
forma geral apontam para a consolidação do Sistema Único de Saúde e para a ampliação
das fontes de financiamentos nacionais e internacionais visando suprir o momento
crítico que passava o Sistema Único de Saúde, dentre outros fatores importantes como a
convocação de uma Conferência de Saúde da Mulher. Esse diagnóstico sobre o PAISM
mostra como a política de saúde estava desmantelada no país e como era difícil
implantar programas que visassem uma nova visão de saúde das mulheres naquele
momento.
Outro ponto questionado pela autora no estudo e que também figurou como uma
severa crítica ao sistema de saúde na época foram as esterilizações feitas nos hospitais
públicos nas mulheres sem qualquer regulamentação do Ministério da Saúde sob essa
prática. Esse assunto gerou grande destaque quando da ocorrência de uma CPI das
Esterilizações das mulheres em 1991. No país havia a denúncia por movimentos de
69
4.1 As vozes
Quem são essas vozes que trazem aqui seus sentimentos? Falo sentimentos, pois
a memória sobre o PAISM suscitou em primeiro lugar um olhar sobre os sentimentos
que as entrevistadas emitiram ao lembrarem das décadas de 1980 e 1990 no Rio de
Janeiro. Algumas lágrimas, rancores, decepções, nostalgias, sorrisos, silêncios e
desconfianças, essas impressões me levaram a buscar uma análise que não deixasse de
lado a via humana das percepções sobre o PAISM. As mulheres que falaram de suas
vidas falaram também de seus esforços de tornar possível o respeito aos direitos das
73
14
John Keats, poeta inglês que viveu entre os anos de 1795 a 1821. O trecho referido está no poema
Endimião, retirado do livro: PICKLES, S. A Linguagem das Flores. São Paulo: Melhoramentos, 1992.
74
Em relação às experiências das feministas com o PAISM, qual não foi minha
surpresa que, ao contrário do que pensava, apesar das profissões serem diferenciadas o
discurso não foi muito diversificado quanto às questões que tanto envolviam o PAISM
quanto ao ativismo feminista no período. Minhas expectativas em torno das feministas
da área da saúde eram de fornecer dados que estivessem ligados à rotina de trabalho das
mesmas e que me proporcionassem informações mais detalhadas sobre a implantação
do PAISM nos serviços de saúde. Os testemunhos não apontavam para esse foco, as
lembranças das entrevistadas estavam ligadas com um processo maior de implantação
do PAISM, que não se localizava apenas no Rio de Janeiro.
Essa visão geral sobre as experiências do PAISM no Rio de Janeiro me levou a
pensar estratégias para analisar os discursos. Algumas vezes, portanto as referências
estarão centradas na própria experiência da implantação do programa no Rio de Janeiro
e, de antemão digo, que essas experiências estão ligadas diretamente com a criação do
Espaço Mulher em 1992 na Secretaria Municipal de Saúde. Das entrevistadas, quatro
participaram efetivamente do Espaço Mulher na capacitação de profissionais de saúde
para as práticas educativas preconizadas no PAISM em relação à contracepção, são elas:
Cordélia, Júlia, Narcisa e Yde.
Com exceção dessas experiências, percebi que muito poucas vezes a cidade do
Rio de Janeiro era palco das memórias das entrevistadas sobre o PAISM. O que me
levou a pensar o projeto de analisar as falas de uma maneira macro, ou seja, partindo do
princípio que o ativismo feminista em várias áreas situava as lembranças do PAISM na
época, e não o contrário. Considerarei o PAISM dentro dessa perspectiva, como fazendo
parte de um complexo de questões e ações que estava sendo debatido nas décadas de
1980 e 1990.
Ainda que em alguns momentos nas entrevistas fosse insistido sobre os
acontecimentos no Rio de Janeiro em relação ao PAISM, o que aparecia era uma
lembrança sobre um processo maior do período de redemocratização e de mobilização
de forças para emplacar os direitos das mulheres no Brasil. O que me levou a pensar
outra forma de entender essas falas, pois a busca por um discurso maior de ativismo
feminista, marcado muitas vezes por uma fala de unicidade desse ativismo, ou seja, sem
tensões ou conflitos ressaltando os pontos positivos, é a lembrança que muitas delas
forneceram sobre esse período. O que significa dizer, que a procura por unir forças pela
luta dos direitos das mulheres nesse momento é que provocou essa lembrança nas
78
Bases da análise
Não há como negar que há uma diferença crucial entre os pilares do PAISM em
relação aos programas de saúde voltados para as mulheres anteriores a esse momento.
Esses pilares estão fundados nas críticas das ativistas feministas sobre o aspecto
materno-infantil desses programas e, trazer os quesitos de integralidade, de visão geral
sobre a saúde das mulheres, de ampliação de atendimento e de outros aspectos
relacionados à saúde foi, de fato, inovador e representou uma afirmação importante no
processo democrático que se descortinava no Brasil durante a década de 1980.
No entanto, assim como todo acontecimento histórico, as mãos e os pensamentos
que o criaram também obedecem às regras do tempo de serem situados em um
determinado contexto e conjunturas que permitiram que fosse criado. Sobre esse ponto
foram explorados os testemunhos que consegui para fazer a análise.
Quando questionadas sobre a criação do PAISM as entrevistadas se referiam
muitas vezes ao processo de implantação do programa, o que não posso aqui
desassociar esses dois pontos, a criação e a implantação. Essa implantação vinha
carregada de aspectos negativos que melhor investigados poderiam apontar quais
expectativas as entrevistadas possuíam em relação ao programa. Levando isso em
consideração, poderia então buscar que tipo de atuação elas tiveram na implantação do
programa para que suas expectativas aparecessem nas entrevistas como tentativas
frustradas. Para visualizar esse processo de análise, imagino um olhar sobre as ruínas de
uma civilização.
Ao ver as pedras soltas pelo chão, pedaços de colunas, estruturas sem,
aparentemente um significado, desafia aquele que olha uma idéia de qual história se
passou por aqueles blocos de pedra que não oferecem atualmente um significado tão
claro. Levantar a estrutura das paredes, para depois trazer à tona as cores e assim, as
histórias, os pensamentos e a vida daquele lugar, é o desafio que percebo ao trabalhar
com esse material tão rico de entrevistas que adquiri com essa pesquisa.
Dentro dessa perspectiva vou analisar os testemunhos a fim de procurar primeiro
as estruturas dessas ruínas, ou seja, o que significou a criação do PAISM e sua
implantação para as ativistas. O olhar sob essa questão trará as cores das paredes, ou
seja, o debate, as idéias em jogo, as disputas que esse processo de implantação sofreu
decorridos os anos da década de 1980 a 1990, o que estará imbuído nessas disputas o
meu olhar sobre as histórias e minha análise sobre esse momento.
A implantação do PAISM é sentida de diferentes formas pelas ativistas
feministas e sobre esse ponto algumas considerações podem ser feitas. Vou trabalhar
81
15
O Centro de Treinamento Espaço Mulher foi criado em 1992, pela Secretaria Municipal de Saúde do
Rio de Janeiro e foi extinto em 2008.
82
nostálgico sobre esse momento. Esses três ângulos regem a análise das entrevistas e, por
vezes, aparecem mais expostos ou mais implícitos na exposição dos assuntos.
O que procuro com essas pedras angulares, que selecionei para analisar o
PAISM a partir dos testemunhos das entrevistadas, é entender como cada uma está
percebendo esse processo de implantação, alinhando essas percepções com a conjuntura
histórica da época estudada. A intenção não é buscar uma verdade sobre os testemunhos
e nem traduzi-los em seu tempo procurando as causas do discurso, mas trazer assuntos
através desses testemunhos que cotejados com outras fontes estão suscitando a todo
tempo novas interpretações do tempo analisado.
O que se busca na fonte oral são as interpretações, o que se apreende do real, do
ocorrido, e aquilo que não pode ser palpável em termos de oficial, porque depende das
construções que cada um (a) faz na sua própria memória. Michel Pollack (1992) afirma
que a memória não é uma construção somente individual, está também intermediada por
outras vivências/experiências que se agregam aquilo que o indivíduo guarda como
lembrança do acontecimento:
Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória individual ou
coletiva? Em primeiro lugar são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em
segundo lugar, são os acontecimentos ‘vividos por tabela’, ou seja,
acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se
sente pertencer (POLLACK, 1992, p.201).
Partindo dessa análise, pode-se apreender que a memória é algo mais intenso e
complexo que depende de fatores internos e externos, como os lugares que refletem essa
memória, a cronologia que o próprio indivíduo estabelece através das suas reflexões
posteriores, os personagens ou pessoas que fizeram parte da construção da narrativa
pessoal, dentre muito outros aspectos. É um trabalho de sobrepor significados, buscar as
camadas que cada fonte se situa e, deixar clara a interpretação.
Analisar testemunhos orais demanda um estudo em situá-los frente a todo um
conteúdo adquirido por ele anteriormente para que os lugares de fala sejam
reconhecidos dentro de um campo de conhecimento, ou seja, mapear os atores e os
possíveis discursos por eles proferidos. Esse trabalho requer um olhar sensível também
ao tempo em que o testemunho está sendo reproduzido e qual a posição atual daquele
que o emite. Busco na minha análise os testemunhos, portanto, através dos seus lugares
de fala, daquilo que está sendo enunciado e qual o debate que suscita quando
confrontado com outras fontes acerca dos acontecimentos.
84
Saúde Materno-Infantil
Nós éramos formadas para serem feitoras, ainda mais eu que fui formada
numa escola muito tradicional e num período muito especial. Então, eu não
tinha dúvidas que eu estava me formando para manter o hospital em ordem e
submeter aqueles dóceis corpos na enfermagem a um modelo, a uma ordem
vigente. Então, até você acordar e ver que você está reproduzindo um modelo
torto, tacanho, foi uma luta muito grande. (CORDÉLIA)
Outro dado a complementar que tipos de ações estavam sendo destinadas para a
área da saúde nesse momento de final da década de 1970, a VI Conferência Nacional de
Saúde (1977) tinha como principal assunto o controle das grandes endemias, com o
discurso do Ministro de Estado da Saúde Paulo Machado em muito enfatizando esse
tipo ação do Ministério da Saúde:
Depois de Campos Salles [sic], raríssimas foram as oportunidades concedidas
à Saúde Pública Brasileira para assumir a responsabilidade por projetos de
vulto sem orientação e supervisão estrangeira. Talento e capacidade não
faltavam, o que se evidenciou na campanha contra a meningite, na elaboração
de toda a legislação básica de Saúde Pública e, em várias outras empreitadas
de vulto, confiadas por Vossa Excelência aos sanitaristas brasileiros.
(BRASIL, 1977, p.3)
16
Sobre o episódio da Revolta da Vacina: CARVALHO, J. M. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a
República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
89
Aí a Igreja que já tinha o seu poder na sociedade há muito tempo, estava aqui
e acolá, e estava dentro do Ministério da Saúde, questionou, obviamente, de
cabo a rabo. Nós tivemos dentro do Ministério da Saúde algumas pessoas que
ficaram conosco, nos ajudaram e algumas já faleceram, médicos que
enfrentaram essa briga e o programa saiu, e se tornou uma realidade. Aí eu te
digo o seguinte: nós mulheres, organizadas, com um processo de crescimento
que nunca para em nível de Brasil, na área de saúde, nós brigamos pela
implantação do PAISM em sua totalidade de 83 pra cá [2012]. (NÍSIA)
fazer um evento e dar o grito do novo. Aí a gente organizou esse espaço, com
o partido político [Partido Comunista] da época ajudando, com pessoas
influentes … e aí fomos até lá e fizemos uma discussão sobre nós, mulheres.
No final desse evento nós criamos o CMB – Centro da Mulher Brasileira.
(NÍSIA)
Tinham mulheres mães solteiras, tinham mulheres que tinham feito aborto e
foram abrindo essas intimidades para a gente. Teve um dia que uma médica
do grupo foi fazer uma palestra sobre o diafragma, e ela então pegava o mapa
do aparelho reprodutivo, “aqui então o diafragma!”, aí entra a Branca e diz,
“Não é nada disso, ela não está explicando nada direito! Aí é o útero, aqui
para baixo é o diafragma!”, aí a Branca abriu a bolsa dela, tirou o diafragma
dela e explicou com todas as letras como se usava o diafragma. Quer dizer,
pode ser uma coisa meio anedótica, mas mostra muito como era essa visão
estreita do que era político, estreita do que era a vida das mulheres, a vida das
mulheres não é só trabalho é muito mais! (HILDA)
Essas duas falas demonstram claramente como as ideias feministas que diferiam
do modelo marxista divergia dentro do Centro. A primeira fala de Cora, diz da criação
do Coletivo de Mulheres do Rio de Janeiro, um grupo dissidente do Centro da Mulher
Brasileira, formado por mulheres que em muito se identificavam com o feminismo
radical. Estava à frente desse Coletivo, dentre outras mulheres, Danda Prado, uma
feminista que tem sua trajetória marcada com a experiência do feminismo em Paris,
sendo ativista fortemente ligada às questões do cotidiano e da sexualidade das mulheres,
autora do livro Cícera um destino de Mulher, dentre outros livros que possuem uma
linha de liberação e de superação do patriarcado através da autonomia das mulheres
sobre suas vidas e sobre seus corpos.
Na fala de Hilda, percebe-se também essa crítica à postura marxista do CMB,
quando da qualificação de suas reuniões dentro do Grupo Ceres, um grupo de reflexão
que reunía feministas do Rio de Janeiro que buscavam uma discussão sobre as questões
sexuais e do cotidiano das mulheres. No início da década de 1980, esse grupo publica o
livro Espelho de Vênus – Identidade social e sexual da mulher, uma pesquisa através de
entrevistas a mulheres de diferentes classes sociais e de diferentes idades, sobre
questões da sexualidade e do cotidianos dessas mulheres. O livro tinha como objetivo
trazer essa reflexão de que os problemas de uma mulher em uma sociedade são
pertencentes a muitas mulheres quando sob alvo de uma hierarquia de gêneros, e que
mesmo que as experiências se diferenciassem, traziam à tona os questionamentos acerca
da sexualidade e da vida em sociedade das mulheres. A busca pela igualdade através da
supressão da dominação aparecia como um mote também para esse Grupo.
A partir dessas experiências diferenciadas de feminismo na década de 1970 e de
pontos de vistas bem distintos para tratar as questões das mulheres, a unicidade do
discurso em relação ao PAISM sugere interrogações. Em que momento se deu a “união”
de esforços para que as mulheres pudessem mudar o discurso das falas entremeadas por
posições políticas distintas? Sobre união de forças Soihet (2006, p.5) pontua:
94
17
Grifos da publicação.
95
provavelmente algum tema ligado ao PAISM, estava bem no início [...] Foi
bem interessante. (JOSEFINA)
Importante ressaltar que o jornal do Fórum Feminista era feito por feministas
que estavam ligadas - quando em contato com as causas feministas na década de 1970 -
com o feminismo radical. Não tive a oportunidade de entrevistar todas as ativistas sobre
esse seminário, mas percebi que aparecia em algumas falas essa mesma idealização do
passado que diferia do momento presente.
Vou destacar aqui outra fala que traz a perspectiva do feminismo marxista, mas
que também não coloca as diferenças dos grupos feministas como algo presente dentro
do debate tanto da VIII Conferência Nacional de Saúde (1986) quanto da Conferência
Nacional de Saúde da Mulher (1986), ocorrida no mesmo ano.
Quando saiu o PAISM foi uma vitória, nós estávamos felizes, em nível de
Brasil. Cada qual deu a sua contribuição aqui e acolá. Nós demos uma
proposta para o Ministério da Saúde, de que nós fizéssemos uma Conferência
Nacional de Saúde da Mulher. Em 86 aconteceu. Eu fiz parte da comissão
organizadora dessa conferência, aí a gente foi junto com a mulherada toda
que levantava a cabeça. Essa mulherada toda que deu um grito pela liberação
do PAISM. Essa mulherada toda que queria ver a mulher saudável, nunca
tinha tido uma Conferência Nacional da mulher no Brasil, e a primeira foi de
saúde. Aí nós conseguimos um financiamento dentro do próprio Ministério e
fizemos essa conferência, que foi uma coisa de uma beleza ímpar. Três mil
mulheres desse Brasil inteiro em Brasília, durante uns três, quatro dias,
discutindo a nossa saúde. Pessoas que nunca tinham se visto na vida, pessoas
que vieram sozinhas, pessoas que seus partidos políticos mandaram, partidos
políticos de esquerda, pessoas que tinham entidades que custearam, pessoas
de todas as espécies ... Era aquela mulherada que tu nunca tinha visto mais
gorda, aí a gente passou esse mês discutindo: “O que é a nossa saúde? O que
nós queremos? [...] A gente conseguiu na época, fazer cópia do PAISM, e
todo mundo pegou esse PAISM na mão e passamos a discutir esse texto. Aí
as pessoas para mim: “Isso nunca vai acontecer na minha cidade.” Fomos
vendo a dificuldade de implantação, nós terminamos o evento com o
programa falando “e nós vamos lutar para implantar o PAISM em cada lugar
desse país!”. Então, foi uma coisa de uma riqueza ímpar. Quando nós
realizamos a 8ª Conferência Nacional de Saúde, a mulherada já tinha se
organizado e já tinha feito o seu evento, então a gente já sabia o que queria.
(NÍSIA)
18
Ocorrida em outubro de 1986.
98
Eram mais de quatro mil pessoas daquele Brasil inteiro. Aí colocou Carmem
Barroso, ela: “O que eu digo?”. Aí a gente se organizou, não era assim uma
organização de tempo, era assim meia hora. Aí a gente: “Tu vai falar, isso,
isso e isso.” Aí ela pegou o microfone ... Então vamos passar a palavra para
uma representante das mulheres, para trazer a questão… Aí Carmem Barroso
vai e nós atrás do palco, dando força para ela, e ela vai e começa a falar. E foi
uma coisa muito bonita, então as palmas começaram assim: Pá, pá, pá, ….
[em um ritmo lento] e aquilo foi aumentando. Era uma voz nova, certo? Que
tinha que estar dentro da política nacional de saúde. Ali nasceu o SUS, certo?
Que ele é formalizado em 1990. (NÍSIA)
todas as presenças estão mediadas por interesses próprios para terem como aceitas as
suas reivindicações.
Nesse caso, o que está dimensionado na discussão sobre os direitos das mulheres
nos eventos aqui citados e também na conjuntura da década de 1980, é o jogo de
poderes e de resistências para estabelecimento de nova conjuntura com fins
democráticos. Quando Foucault (2011, p.103) analisa o poder coloca em evidência esse
fator correlacional,
O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provêm de
todos os lugares. E “o” poder, no que tem de permanente, de repetitivo, de
inerte, de auto-reprodutor, é apenas efeito do conjunto, esboçado a partir de
todas essas mobilidades, encadeamento que se apóia em cada uma delas e,
em troca, procura fixá-las. Sem dúvida, devemos ser nominalista: o poder não
é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma potência de que alguns
sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica numa sociedade
determinada.
Eles não conseguiam, na grande maioria, ver que nós éramos esse ser
integral. Tinha também uma coisa milenar, certo? O corpo da mulher, o
corpo feminino, certo? E este corpo doente, é do domínio da área médica e
não da mulher. Então, no momento que ele ia se separar daquilo, criou um
“frisson”. Quem são essas mulheres que querem conhecer o seu corpo e
definir sobre esse corpo mais do que eu, médico? Então, era o poder
lentamente saindo de mãos de médicos, para que nós pudéssemos entender
mais quem somos nós. Quando no início da década de 70, nós jogamos
aquela frase na rua – que vale até hoje – “Nosso corpo nos pertence”, é algo
de uma importância capital. Porque para muita gente, custou a entender e
custou a aceitar e até hoje tem gente que não aceita. Nosso corpo nos
pertence é meu! Eu faço dele o que eu quero, certo? Eu engravido, eu quero
ver o programa; eu não engravido; eu quero ter um espaço; alguém me ousa;
eu quero ter uma psicóloga; eu quero ter um excelente método contraceptivo,
acertado há muito e muito tempo; eu quero ter o direito de envelhecer.
Desculpa, mas eu faço o que eu quero! Eu quero transar com 70 anos de
idade e ninguém pode dizer não, porque esse corpo é meu e eu transo da
forma que eu quiser. Então essa frase, foi revolucionária no mundo inteiro.
As mulheres do mundo inteiro, cada qual trabalhava essa frase e trabalhava
durante muitos anos, porque era o maior grito nosso, entende? (NÍSIA)
102
Não sei se atualmente existe um estudo de como vai o PAISM. [...] Há uma
resistência ideológica muito grande dos profissionais de saúde, essa idéia de
que a mulher tem direito está muito longe da cabeça deles, bom na questão
do aborto eles dizem que é uma questão de escusa de consciência [...] tudo
bem, ele tem direito a escusa de consciência, mas a instituição não tem, tem
que ter um médico que faça o procedimento do aborto previsto em lei. [...] Eu
acho que tem uma coisa complicada mesmo, é um país grande, com um
sistema de saúde extremamente descentralizado... Como esses profissionais
de saúde percebem isso? Eles estão tendo treinamento para exercerem bem a
sua função, para conhecerem bem a lei, para conhecerem bem os direitos das
mulheres? Enfim, é um mundo que é bem estranho, que ao mesmo tempo
você tem um país muito moderno, e ao mesmo tempo você tem um país
muito atrasado, uma série de coisas, principalmente, as mentalidades [...]
Tem todas essas contradições que a gente não pode ao analisar a
implementação do PAISM isolar, é o Estado que é culpado, é isso aqui... não!
Eu acho que tem ainda a parcela de responsabilidade do Estado, ainda tem a
parcela de responsabilidade da sociedade que ainda vive em torno de valores
muito conservadores, ao mesmo tempo em que, ótimo as mulheres estão aí
dançando de biquíni na praia, e todo mundo diz “olha, a liberdade sexual!”,
mas não é! (HILDA)
Os três testemunhos aqui escolhidos trazem esse problema à tona com algumas
questões que analisarei mais profundamente. As três feministas tinham um ativismo
dentro feminismo que remontava à década de 1970, estavam presentes no seminário da
ABI e acompanhavam as questões em relação às mulheres no contexto brasileiro. No
entanto, as três não estavam diretamente envolvidas com a ponta e o lugar de fala das
críticas está ligado às capacitações dos profissionais de saúde que envolviam a
implementação do PAISM.
Um dos aspectos importantes para trabalhar as questões dos métodos
contraceptivos com as mulheres nos serviços de saúde era através de práticas educativas
que contemplavam uma visão horizontal entre profissionais de saúde e usuárias. Essa
visão dependia de os profissionais levarem em conta as vidas das mulheres, suas
especificidades, seus desejos, suas relações com os parceiros (as), suas sexualidades,
enfim, não somente as questões relacionadas a doenças. A implantação do PAISM
dependia de práticas educativas que levassem em conta as demandas das mulheres em
terem métodos contraceptivos de qualidade e ser uma opção para as mesmas, mediante
o conhecimento desses métodos, qual caminho a seguir na contracepção.
As práticas educativas que me centrarei nesse estudo são aquelas que visam,
principalmente, o olhar sobre o corpo das mulheres e da sua sexualidade. Antes vou
desmembrar algumas situações importantes para se ter em mente as questões da
dificuldade com os profissionais de saúde no sentido de aplicarem essas práticas.
103
Investigando as críticas
homens e mulheres no decorrer do séculos XVII até o XX, no mundo Ocidental. Seu
trabalho em desfazer essa hipótese está em demonstrar que o advento da medicina como
uma ciência não fez que esse conhecimento da sexualidade fosse liberado dos cânones
católicos repressivos, mas que o olhar exaustivo sobre o tema seria obra de uma
repressão invertida, de controle das práticas sexuais através do conhecimento das
mesmas. O discurso médico autoritário estaria ligado, principalmente, nessa vontade de
saber e de controlar ao mesmo tempo as práticas sexuais de homens e mulheres
Pois essa colocação do sexo em discurso não estaria ordenada no sentido de
afastar da realidade as formas de sexualidade insubmissas à economia estrita
da reprodução (dizer não às atividades infecundas, banir os prazeres
paralelos, reduzir ou excluir as práticas que não têm como finalidade a
geração)? Através de tais discursos multiplicaram-se as condenações
judiciárias das perversões de menores, anexou-se a irregularidade sexual à
doença mental; da infância à velhice foi definida uma norma do
desenvolvimento sexual e cuidadosamente caracterizados todos os desvios
possíveis; organizaram-se controles pedagógicos e tratamentos médicos; em
torno das mínimas fantasias, os moralistas e, também, sobretudo, os médicos,
trouxeram à baila todo o vocabulário enfático da abominação [...] Toda esta
atenção loquaz com que nos alvoroçamos em torno da sexualidade, há dois
ou três séculos, não estaria ordenada em função de uma preocupação
elementar: assegurar o povoamento, reproduzir a força de trabalho,
reproduzir a forma das relações sociais; em suma, proporcionar uma
sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora?
(FOUCAULT, 2011, p.43)
19
Sobre sexualidade refiro-me: “A sexualidade humana diz respeito aos usos do corpo e, em particular –
mas não exatamente – dos órgãos genitais, a fim de obter prazer físico e mental, e cujo ponto mais alto é
chamado por alguns de orgasmo. Fala-se de conduta, comportamento, relações, práticas e atos sexuais. De
uma maneira mais ampla, a sexualidade pode ser definida como a construção social desses usos, a
formatação e ordenação dessas atividades, que determina um conjunto de regras e normas, variáveis de
acordo com as épocas e as sociedades” (Lhomond, 2009). Com esse conceito consigo trabalhar tanto com
as falas das entrevistadas que dizem do processo das oficinas de práticas educativas que traziam o tema da
sexualidade, baseando-se nas práticas, regras e comportamentos que as feministas discutiam com as
usuárias de saúde, quanto com as acepções que aqui trago sobre a problemática do discurso médico
autoritário e toda a crítica de Foucault em cima das normas ditadas através do controle estabelecido pela
vontade de conhecer, que a medicina atribui às questões relacionadas à sexualidade.
105
Brasil estava envolta, entre outros assuntos, do debate de controle da natalidade, pressão
externa dos Estados Unidos.
Outro caminho que acaba cruzando essa perspectiva é o estudo de Thomas
Laqueur (1991), Inventando o Sexo, que em seu minucioso olhar para as práticas
médicas ao longo da história Ocidental, tendo como início o período correspondente à
Idade Média até o século XIX com as ideias de Freud, o conhecimento da medicina vai
investindo de significados a ideia de sexo, passando de um momento que se considerava
o sexo único, no qual os homens seriam os representantes e as mulheres como homens
imperfeitos - homens que literalmente tinham os órgãos masculinos virados para dentro
- para outro momento em que homens e mulheres teriam suas diferenças biológicas
acentuadas pela questão sexual e acompanhadas disso, a questão social. A forma como
coloca em seu livro essas questões, traz reflexões importantes sobre como os corpos
foram sendo imbuídos de significados ao longo dos anos e dos momentos históricos.
Cada momento histórico tinha a sua visão de mundo e trazia consigo as
concepções de mundo que visavam recolher significados políticos para as movimentos
de homens e mulheres no sentido de reproduzirem não só as teorias pensadas pelos
estudiosos, mas também de reproduzirem sistemas políticos. Daí se tira a grande
importância que teve no século XIX para pensadores como Rousseau e Hobbes, dentre
outros, de localizar as mulheres dentro da visão de mundo proposta por suas teorias. O
que trago para essa discussão aqui, é que as ideias Iluministas que nos influenciam até
os dias atuais, estão cheias de conteúdos que se entrelaçam para formar a sustentação de
um modelo de sociedade e sua tradição. Sobre esse ponto Lacqueur (2001) discute
bastante no seu livro as disputas que os significados do corpo adquiriram a partir das
ideias do Iluminismo no séxulo XVIII, no advento da Revolução Francesa:
As promessas da Revolução Francesa – onde a humanidade em todas as suas
relações sociais e culturais podia ser regenerada, que as mulheres podiam
atingir não só as liberdades civis, como também pessoais, que a família, a
moralidade e as relações pessoais podiam ser renovadas – fizeram surgir não
só um feminismo novo e genuíno como também um novo tipo de
antifeminismo, um novo medo das mulheres, e fronteiras políticas que
criaram fronteiras sexuais. A criação de uma esfera pública burguesa, em
outras palavras, levantou com violência a questão de qual sexo(s) deveria
ocupá-la legitimamente. E em todo lugar a biologia entrava no discurso.
Obviamente, os que se opunham a um crescente poder civil e privado das
mulheres – na grande maioria homens articulados – criaram a evidência da
inadequação física e mental das mulheres para esses avanços: seus corpos
não eram adequados aos espaços quiméricos que a revolução abrira
inadvertidamente (LACQUEUR, 2001, p.213).
106
20
Grifos da autora.
107
comportamento social de seres humanos. Sobre esse aspecto, Mathieu (2009, p.223)
continua em sua análise
A humanidade faz parte das espécies de reprodução sexuada, por isso ela tem
dois “sexos”, anatomofisiológicos com uma única função de sua perpetuação
física: a produção de novos indivíduos. No entanto, sua marca distintiva, já
detectável nos primatas superiores, é a perda do estro (coincidência entre
excitação sexual e período fértil, nas fêmeas animais). Donde, para as
mulheres, há possibilidades do desejo e das relações sexuais sem risco de
gravidez, mas também de gravidez sem desejo sexual (estupro, um ato social,
parece peculiar ao homem).
O que aparece nessa análise de Mathieu, é que para além de uma diferenciação,
existe uma série de significados imbuídos nos comportamentos sexuais que, nesse caso,
estão ilustrados pelo desejo sexual e pelo estupro. Esses significados assumem uma
hierarquia de valores sociais na forma de gênero, que nada tem de biológico e natural.
Gênero está ligado intimamente com o feminino e o masculino, ou seja, está
ligado à sociabilidade e suas atribuições ditas específicas. A idéia cristalizada de que
mulheres possuem um universo que está ligado à esfera familiar, reproduz uma
associação comum em tratar as questões relacionadas ao sexo como características
inerentes das mulheres. Adjetivos como pudico, escuro, misterioso, guardado, dentre
muitos outros, são encontrados frequentemente relacionados ao universo feminino se
configurando como aspectos da personalidade de mulheres.
Os estudos feministas da década de 1980 vão criticar fortemente essas e outras
associações do tipo que classificam as mulheres de acordo com os seus corpos e suas
funções reprodutivas. Aliados a isso, o mundo vivia um momento de ebulição dos
movimentos contestatórios reivindicando outras identidades e quebrando com as
tradições sociais o que endossava uma revisão das ideias acerca das relações entre
homens e mulheres, com novas vozes vindas também dos movimentos gays e lésbicos.
Scott (1986) conceitua gênero como uma categoria de análise para os estudos
sobre essas relações e propõe essa abordagem para abrir o horizonte das pesquisas
situadas no campo da história e das ciências humanas. Essa abertura propunha situar
historicamente as relações entre homens e mulheres, ou melhor, situar historicamente o
significado que essas relações poderiam ganhar em cada período, e o que isso dizia do
momento em relação a outros aspectos da sociabilidade humana, trazendo para o campo
do gênero a política que muito relutava em se apartar dos estudos que englobassem as
mulheres.
Utilizo aqui Joan Scott, mas tenho consciência que o debate em torno de gênero
é grande e ganha acepções diferentes de acordo com cada autora (or). Estou ciente
108
também das críticas que a categoria de gênero ganha quando vista sob os olhares de
pesquisadoras (es) do patriarcado, ou de outros estudos que procuram descortinar a
opressão das mulheres. No entanto, mais uma vez, o conceito é um instrumento, uma
ferramenta e se não se aplica a todos os processos, porque não possui força para isso, é
um caminho, uma escolha, que tem fundamento nas possíveis respostas que precisam
ser encontradas em cada investigação.
Com claras influências de Foucault e Derrida e autoras (es) que visam a
desconstrução de sistemas fixos baseando-se nas descontinuidades para pensar as
relações sociais, Scott (1991, p.21) define gênero como
O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas
proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado
nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de
significar as relações de poder. As mudanças na organização das relações
sociais correspondem sempre à mudança nas representações de poder, mas a
direção da mudança não segue necessariamente um sentido único.
Dentro dessa perspectiva, gênero diz não somente das relações entre mulheres e
homens, mas das relações de poder que estão inseridas nesse processo. Dessa forma,
Scott chama atenção que a política está também inserida nas representações que as
relações de gênero possuem em dada sociedade e em uma situação histórica. Esse
aspecto plástico do gênero é fundamental para minha análise e é, a partir desse olhar que
busco o que a autora coloca como os quatro elementos para esse tipo de análise:
representação simbólica, ou seja, os símbolos utilizados para representar as relações; os
conceitos normativos que são utilizados pelas instituições a fim de representar os
símbolos da diferenciação e hierarquização nas relações entre mulheres e homens; a
noção de fixidade, ou seja, o que torna essa representação tida como algo natural, sem
escolha, nas questões sociais; e, por último, a identidade subjetiva, que está implicada
com a construção do poder, ou seja, na sua legitimação.
A partir desses esclarecimentos teóricos para instrumentalizar a análise das
críticas que as feministas entrevistadas estavam fazendo ao discurso médico da época, é
preciso avançar na investigação, mas sem perder os fios que conduzem os caminhos da
pesquisa. Faltam algumas questões, portanto, a serem colocadas.
Para uma crítica à autoridade do discurso médico, é necessário entender que tipo
de saúde as feministas do PAISM estavam se apoiando para não identificarem na prática
médica as atitudes de mudança do modelo autoritário. Dentro dessa perspectiva, qual
modelo de saúde se esperava para imprimir mudanças.
109
O PAISM como já dito está situado no início dos anos de 1980, e dentro da sua
formulação está implícito o debate de uma noção de saúde que traz a ideia de bem-estar.
A saúde entendida como bem-estar, está no conceito da OMS de 1948 que Scliar (2007,
p.37) aponta:
O conceito de saúde da OMS, divulgado na carta de princípios de 7 de abril
de 1948 (desde então o Dia Mundial da Saúde), implicando o reconhecimento
do direito à saúde e da obrigação do Estado na promoção e proteção da saúde
diz que “Saúde é o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social
e não apenas ausência de enfermidade”. Esse conceito refletia, de um lado,
uma aspiração nascida dos movimentos sociais do pós-guerra: o fim do
colonialismo, a ascensão do socialismo. Saúde deveria expressar o direito a
uma vida plena, sem privações [...] A assistência médica, os serviços
ambulatoriais e hospitalares e os medicamentos são as primeiras coisas que
muitas pessoas pensam quando se fala em saúde. No entanto, esse é apenas
um componente do campo da saúde, e não necessariamente o mais
importante; às vezes é mais benéfico para a saúde ter água potável e
alimentos saudáveis do que dispor de medicamentos.
Esse valor foi defendido pelos (as) profissionais que fizeram parte da reforma
sanitária e está investido de muitos preceitos defendidos pelas organizações de esquerda
na época. O que se expressa também na própria formulação do SUS,
O que caracteriza esse Sistema Único de Saúde (que modo algum é o único
sistema de saúde no Brasil) é seu financiamento público. Esse sistema único
de saúde estaria organizado em torno de três diretrizes: a descentralização,
com direção única em cada esfera de governo; o atendimento integral; e a
participação da comunidade. (MATTOS, 2001, p.39)
não levava o seu nome, deixando uma pista de que medidas estavam sendo priorizadas
nesse programa:
O Ministério da Saúde exerce a coordenação nacional do PAISM, através da
Coordenação de Saúde Materno-Infantil, que é subordinada ao Departamento
Nacional de Programas de Saúde da Secretaria Nacional de Assistência de
Saúde. (COSTA, 1992, pp.36-37)
Ana Aurora é uma conhecida feminista que participou ativamente do SOS Corpo
de Recife, e endossa um discurso junto com outras mulheres entrevistadas do quanto foi
importante esse livro para a apreensão das questões relacionadas à saúde das mulheres.
A linha adotada pelo livro era conhecer os corpos das mulheres e trazer à tona os
assuntos relacionados à esfera feminina através do auto-conhecimento, do despertar de
uma consciência em que as mulheres pudessem ter acesso a esses corpos trabalhando os
115
21
Os encontros feministas das décadas de 1980 e 1990 foram de suma importância para a adoção de
práticas educativas ao tratar, especialmente, dos assuntos ligados à sexualidade, contracepção e aborto.
Havia encontros nacionais e internacionais como os encontros na América Latina e Caribe. Esses
encontros feministas tinham nas suas programações oficinas com objetivo de desenvolver a
expressividade das participantes e a discussão dos assuntos ligados às mulheres; exposição de vídeos e
produções; palestras; debates; dentre outras formas de expressão das mulheres na discussão dos assuntos.
Sobre encontros feministas na América Latina e Caribe: ALVAREZ, S. Encontrando os feminismos
latino-americanos e caribenhos. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 11, n. 2, Dec. 2003.
116
muito feminista. A gente teve uns duzentos que passaram pelo curso, com
recursos do Ministério né? Então, é um momento germinal do PAISM. (ANA
AURORA)
Apesar de essa experiência ter ocorrido em Recife, em outros lugares também
aconteceu com esse mesmo cunho, capacitar os profissionais de saúde a terem esse
olhar da integralidade no atendimento das mulheres. Em São Paulo, o Ministério da
Saúde recorreu à Fundação Carlos Chagas, conhecida por ter à frente feministas para a
produção de material educativo para as mulheres nas questões relativas à reprodução e
sexualidade. Essa experiência da capacitação deu ensejo a discussões dentro da área de
saúde para o recebimento dos métodos contraceptivos do Ministério da Saúde:
As formações continuaram [na década de 1990], com certeza, e para a gente
era uma maneira de operacionalizar o programa, não era a única, mas a gente
percebia que essa era uma forma dos profissionais e as profissionais se
conhecerem. Para esse tipo de relação que a gente achava que tinha que
acontecer tanto no face a face, quer dizer nas consultas, quanto na instituição
toda com as mulheres que chegavam [...] Enquanto teve área técnica [no
SUS] de saúde da mulher foi muito importante para gerar capacitação, da
formação, de gerar novas diretrizes que vinham do ministério. Eram
construídas em conjunto com a participação e crítica do movimento de
mulheres. Mas, acho que hoje perderam a força que elas tinham, apesar de
pouca, porque o orçamento para as áreas técnicas era irrisório. (LUCIE)
profissionais tinham em relação aos corpos das mulheres e quebrava com os paradigmas
de autoridade do saber médico, por eles (as) mesmos (as) passarem por esse processo.
Ou seja, as práticas educativas baseadas nesse processo de vivências eram não só para
as mulheres que seriam usuárias do PAISM nos serviços de saúde, como também para
os (as) profissionais que estavam trabalhando nesses serviços. O que não seria de
admirar que muitos (as) profissionais oferecessem resistências no sentido de passar por
essas práticas e adotá-las no cotidiano. O que Ana Aurora coloca na sua fala como
processo radical, é essa imersão subjetiva que os (as) profissionais de saúde deveriam
passar para não estabelecerem um atendimento vertical sobre as mulheres quando na
oferta dos métodos contraceptivos.
Levando em consideração que não era buscado por nenhuma das partes
envolvidas com a discussão da contracepção – sendo essas partes, as feministas, a Igreja
e a esquerda – a coerção para a postura de apresentar os métodos contraceptivos essas
práticas educativas eram uma resposta em provocar o movimento contrário desse tipo de
atitude. As resistências a esse método foram inúmeras, com justificativas inúmeras
também. No entanto, colocarei a seguir os testemunhos sobre a experiência das
capacitações no Rio de Janeiro, citada pelas falas das feministas envolvidas diretamente
com esse processo, para apreciar no momento seguinte que resistências apareceram ao
envolver a decisão das mulheres sobre métodos contraceptivos e práticas médicas
autoritárias.
No Rio de Janeiro, essa perspectiva de capacitação é vista pelas feministas da
área de saúde como momento crucial de implantação do PAISM. Ou seja, na contramão
dos testemunhos antes vistos, com claras críticas ao Ministério da Saúde e da alocação
de recursos, aqui as feministas trazem uma lembrança muito positiva e unificada sobre
esse processo.
Antes de colocar os testemunhos, relembro que, no Rio de Janeiro, o Espaço
Mulher foi criado em 1992 por feministas que estiveram na Secretaria Municipal de
Saúde do Rio de Janeiro e que coordenaram o programa. O Espaço Mulher era o lugar
de treinamento de profissionais de saúde para gerar atendimento integral às mulheres
nas questões relativas à contracepção e planejamento reprodutivo que recorressem aos
centros de saúde. Sobre essas experiências no Espaço Mulher:
Tinha um grande facilitador, que foi essa conjunção de mulheres na
Secretaria Municipal que foi muito rico [...] então a conjunção daquelas
mulheres com muito poder [...] nos ajudou muito, essas mulheres começam a
reformular, pelo menos com esse pedacinho que nos tocava né? O
planejamento familiar na rede básica, elas implantam o planejamento familiar
118
As capacitações, assim como nas outras falas, vêm de um mesmo mote, práticas
reflexivas e grupos que promoviam o encontro e o conhecimento dos profissionais de
saúde e das usuárias do serviço. O testemunho de Cordélia aponta para um momento de
grande atenção para o PAISM no Rio de Janeiro. Momento que ela aponta para uma
circunstância de mulheres que estavam afinadas com os preceitos do PAISM na época.
Esse aspecto é importante, pois aparece nas outras falas das mulheres que participaram
do Espaço Mulher, assim como as questões sobre as capacitações possuem o mesmo
discurso.
todos as pessoas que trabalhassem com contracepção na rede [...] Nós fomos
os precursores para os programas que vieram depois, com essa metodologia,
da forma de lidar com a clientela. Porque ali as pessoas abordavam tabus
como a homossexualidade, sexualidade, masturbação, prazer era muito... os
profissionais ficavam encantados e como isso repercutia na sua vida
profissional! (JÚLIA)
22
Grifo nosso.
120
ratificam o quadro penoso da busca por direitos das mulheres no Brasil. Os testemunhos
apontam essas portas abertas de discussões acerca do PAISM, mas são críticas que
estão constantemente penetradas nas discussões atuais sobre saúde das mulheres.
As questões relativas ao discurso médico autoritário, não só na área da
enfermagem, mas também da classe médica são concernentes a sucessivas quebras de
paradigmas dentro da medicina. As dificuldades da formação dos médicos (as) são
inúmeras quando especializam os campos da medicina, e o discurso “neutralizado” da
ciência influi nesses saberes, fazendo com que seja pouco reflexiva a prática médica. A
integralidade é um desafio não somente para pensar a saúde das mulheres, mas como
um todo. Outro testemunho que evidencia essa dificuldade com a formação de médicos
(as):
Esse aparelho formador, não prepara a pessoa para a igualdade de gênero. [...]
Entende? Esse é um dado muito importante. Hoje eu acho que… Nós
estamos solicitando isso na faculdade de medicina e de outras, mas
basicamente para mim o espaço mais gritante é a faculdade de medicina.
Como é que a gente vai apelar para esse discurso? Quando eu vou fazer
palestras em algumas faculdades de medicina, eu tenho vontade de sair
chorando de lá. As pessoas até aplaudem: “Legal [...] mas, eu não tenho nada
haver com isso, pois eu vou fazer neurologia.”. Mas o que tem haver isso?
Neurologia só dá em homem? Por que essa mulher está tendo um problema
neurológico? Então a pessoa não consegue saber que ela não está trabalhando
para uma sociedade de um sexo, ela está trabalhando para uma sociedade bi,
tri sexual. E eu tenho que trabalhar muito bem com isso. (NÍSIA)
23
Reconhecida antropóloga norte americana e feminista que estuda as relações de gênero e discursos
médicos acerca dos corpos das mulheres. Entre as suas obras mais importantes se encontra o livro:
MARTIN, E. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
128
Um tema importante que apareceu nas falas das entrevistadas, foi a ideia de ter a
época do PAISM um momento de glória para os feminismos, a qual se perdeu com o
passar do tempo e com a com a mudança das conjunturas históricas. A ideia que aqui
chamo do tesouro perdido, intriga, pois as discussões atuais possuem outro tônus, outra
forma de se pensar o ativismo feminista. Os grupos feministas se multiplicaram e
recriaram suas forças dentro da democracia, suas atuações estão presentes desde o
momento do PAISM, através de capacitações já citadas, além de encontros e muitas
outras formas de luta estratégica atualmente. O que faz do momento do PAISM um
tesouro perdido?
Os problemas enfrentados pelas feministas em buscar a igualdade das mulheres
através dos seus direitos na sociedade brasileira, possuem muitas continuidades em
relação ao período estudado: as disputas políticas e as questões com os setores
religiosos são ainda entraves para a discussão aberta sobre os direitos das mulheres. No
entanto, em se tratando de políticas públicas, há rupturas nesse processo que proclamam
um certo avanço nesse debate. A aprovação de leis que promovam o acesso a esses
direitos como a Lei Maria da Penha (2006), que trabalha com a questão da violência
contra a mulher - assunto intensamente debatido na década de 1980 pelos feminismos –;
a recente Lei das Domésticas que foi aprovada nesses instantes que escrevo esse
trabalho - que pode provocar uma reconfiguração na distribuição de tarefas no ambiente
doméstico, assim como, a garantia de direitos para aquelas que se enquadram
dentro dessas atividades -, como também a decisão do Supremo Tribunal Federal de
descriminalizar o aborto em caso de fetos anencéfalos em 2012, dentre outros exemplos.
129
Eu acho que na década de 90, sim. Mais hoje não, está muito diluído. Por que
eu acho que aquela questão do problema do PT, do movimento de mulheres,
as pessoas ficaram empacadas no aparelho de Estado. O mo vimento ficou a
parte [...] Eu acho que a gente não tem novas lideranças, não sei se as antigas
são tão fortes e tão pesadas que não conseguem fazer o pessoal mais jovem
aparecer no campo da liderança. Essa menina que saiu sem camiseta, com os
peitos de fora nos jornais. Muito bonita, mas chamou atenção por que ela é
bonita e por que... não nas demandas que ela estava levando, ninguém
discutiu. A imprensa não discutiu as demandas que ela colocava na prática.
(MARIA CAROLINA)
No final de 80, começo de 90 começa ter a idéia de que para ter um trabalho
mais competente tem que ter recursos, criar uma organização para poder
receber recursos, aí começam as empresas... Acho que foram contextos,
porque não tinha como não ser assim, tem o pessoal que fala assim “Ah o
movimento, ah as lutas!”, mas não tinha como não ser assim, então poder
continuar, mas tem que trabalhar, se manter. Nós trabalhávamos antes, mas
fazíamos aquilo em horas como ativistas, uma coisa um pouquinho
voluntária, à noite, dormia tarde acordava cedo, tinha uma outra vida, uma
outra dinâmica da vida. Eu, por exemplo, já tinha dois filhos, já trabalhava,
mas muita gente naquela época casou teve filhos começou a mudar de vida.
Antes era estudante, descompromissado, ou já trabalhava sem muita...
trabalhava no que dava para trabalhar, mas depois começou a se formar, teve
que casar a vida foi mudando né? Para continuar nesse ritmo tinha que entrar
para alguma coisa ou formar mais algumas coisas, porque tinha mais
autonomia, algumas pessoas foram trabalhar na FASE, no IBASE, no ISER e
outras que eu não me lembro agora... e outras que resolveram criar, que são
as áreas mais especificas que tinha um programa mais direitinho dentro da
organização. (JOSEFINA)
Eu acho que não tem haver com a fragmentação, acho que tem haver com as
diferentes interpretações. Com os diferentes processos de repressões que
existem entre as mulheres que vivem entre mulheres, que certamente podem
por força em uma determinada ação e não por em outras. O movimento
feminista, especialmente do movimento feminista de hoje está mais leve.
Certamente, não tem interesse nas mesmas coisas, hoje as jovens podem não
ter interesse nisso também. Cada movimento vê o que é prioritário. Tem
alguns temas que nunca saem da agenda, mas hoje cada seguimento desse
tem um modo de pensar e olhar esse processo. Eu vejo como positivos.
Porque, de certa forma, de 88 para cá, a sociedade deu como vitoriosa as
dimensões de democracia e de direitos a partir da constituição. Deu como
vitoriosa, mas não considerou que as disputas políticas seguiriam nos
diferentes setores para esse "patrimônio". De certa forma, os movimentos
sociais, eles se intercalam entre ações e lutas que nem sempre levam essas
dinâmicas como importantes. Como por exemplo, se você olhar as bandeiras
sindicais atuando na discriminação do trabalho entre mulheres, eles estão
atuando nas relacionadas à saúde nesse nível, os direitos sexuais e os direitos
reprodutivos não estão claramente enunciados. Então é mais fácil você ter
bandeiras, por exemplo, por direito à creche, pelo direito à amamentação e
aos seis meses de licença. Mas, muito pouco relacionados a dimensão da
sexualidade, dos seus direitos como mulher.(ELISA)
sobre esse tema está presente em todas as falas, o destaque para as cinco falas acima,
fica a cargo de elucidação dos principais pontos da análise.
É preciso atentar ao fato de que esse antes, dito pelas próprias feministas, estava
também inserido numa série de disputas que se ligavam às diferentes correntes dos
feminismos. A discussão atual tem uma característica distinta da anterior na década de
1980, pois é ancorada no amplo processo democrático que se descortinou desde o final
da ditadura e que, ao mesmo tempo em que abre caminhos para a discussão dos direitos
das mulheres fecha portas antes abertas pelos feminismos; retrocede em pontos já
conquistados e avança em outros pontos.
O que caracteriza como diferença do momento anterior para o momento atual,
analisando as falas das entrevistadas, é a falta de unicidade dos grupos feministas. Os
conflitos soterrados por essa referência linear do período escamoteiam situações que
aparecem, entretanto, em outras fontes. No Jornal do Brasil de abril de 1982, em meio
às discussões das eleições para governo do Estado do Rio de Janeiro a manchete
intitulada: “Feminismo Militante – Excesso de Entidades, Carência de Filiadas”, traz
um tema sugestivo para o momento desse estudo.
24
Grifos da publicação.
132
O que não correspondia ser um jornal que ao passar as informações para seus
leitores (as) estivesse também traduzindo opções políticas e acesso a matérias
privilegiadas por alguns setores. Esclareço, com isso, que não considero como
absolutamente “verdadeira” a matéria sobre os rachas do feminismo, mas integro essa
notícia como mais uma voz que possibilita a abertura desse debate feminista no presente
estudo.
O racha mencionado pela notícia se dá pela disputa dos feminismos em procurar
unificar a luta pelos direitos das mulheres dentro de um momento importante para a
conjuntura histórica brasileira, momento de abertura democrática e eleições estaduais.
Os feminismos disputavam dentre outras patentes as questões das mulheres de acordo
com as suas correntes, algo aqui já explicitado. No entanto, a armadilha que essa
possível estratégia gera é a homogeneização de discursos que privilegiam determinados
setores.
Ainda sobre essas disputas, um segundo aspecto importante na notícia é o
número de adeptas às causas feministas. Naquela época, eram contados 48 grupos
feministas no Brasil, com um ativismo de 500 mulheres e com dificuldades de
penetração na sociedade ao atrair as jovens para o debate feminista. Sobre esse ponto,
há uma crítica que citarei aqui da feminista Danda Prado sobre essa matéria, nota do
Jornal do Brasil do mesmo ano, que refuta a ideia do feminismo em si não penetrar na
sociedade brasileira e na população jovem, mas que seria resultado de um complexo de
questões que envolvem o percurso da história brasileira:
quando se trata da problemática das mulheres acresce a inexistência do Brasil
da tradição de associações femininas em geral, se nos compararmos à Europa
e aos Estados Unidos. Passa-se lá o contrário, devido talvez às guerras que
afastaram os homens da vida civil durante largos períodos, e existe o hábito
histórico das entidades sócio-políticos-culturais femininas. Isso facilitou a
formação dum senso de identidade das mulheres como categoria social com
problemas específicos. Exemplificando até onde vai essa diferença, constatei
133
25
Grifo nosso.
134
com intensidade, mas ele permitia, apoiava e financiava, não só ele como
organizações internacionais, as práticas nesse campo. (ELISA)
O grande marco, assim, desse debate, foi em 91. O primeiro ano dos anos 90,
não se chamava CPI, se chamava CPMI (Comissão Parlamentar de Inquérito
Mista), se definiu, depois de um longo embate, se definiu que teria que ser
legislado esse processo. Que estava acontecendo uma esterilização em massa
no país, das mulheres pobres [...] A culpa da pobreza é dos pobres. (ANA
MARIA)
A partir dessa Comissão Nacional [...] essa Comissão Nacional fez à época
16 reuniões no Brasil levando as questões, principalmente, a esterilização em
massa das mulheres. Aonde as mulheres eram esterilizadas à força, menores
onde a mãe não queria fazer mandava esterilizar, descobriu-se um monte de
abusos e na época éramos muito ameaçadas [...] Na televisão, nós fizemos
debates com os maiores especialistas da época, nós tivemos uma briga
danada com aquele cara que até hoje... qual o nome dele? Elzimar Coutinho.
Nós tivemos vários debates com ele, ele ganhava muito dinheiro com aquelas
135
Então esse controle da natalidade, com uma política voltada para o controle
da população, era o controle da "pobreza" das mulheres. Então esse é um
período muito fértil para isso, a expressão é dominação, mas é muito
verdadeira, muito fértil para essas práticas violadoras e representava... O que
vinha de internacional das mulheres era um problema para o seu
desenvolvimento pessoal, seu desenvolvimento econômico, tanto que a gente
chega hoje em 2012 com a gravidez como um problema. (ELISA)
O que você quer saber? ... Durante um tempo um tempo [...] era quase que
proibido falar de esterilização, porque nos éramos traumatizadas por
Bemfam, por CPAIMC por essas coisas... sabia de coisas que aconteciam no
nordeste de trocas como: me dê sua trompa e eu te dou um rádio de pilha, me
dê sua trompa e eu te dou uma dentadura, coisas absurdas né? E que ao
mesmo tempo, você já via o contraponto de mulheres [...] que já traziam a
linguagem dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, e falando desses
direitos sim, a ter uma informação a estar esclarecida a ter uma decisão um
pouco mais livre, um tanto quanto a gente consiga tomar uma decisão livre.
Eu acho que algumas mulheres, claro que se você perguntar hoje, quase 80%
das que estão tendo o segundo filho, vão te dizer que elas querem uma
cesárea e que elas querem ligar, se você perguntar para uma mulher que está
vendo seus filhos morrendo de fome, que está se vendo numa situação
absurda, se ela quer ligar as trompas, naquela época isso era muito mais forte
do que agora, ela diria que sim, “pode ligar essas trompas, pode me cortar da
cintura para baixo, eu não quero mais essa fatal fertilidade” [...] Então, eu não
quero demonizar a ligadura tubária, eu acho que ela é um método como outro
qualquer. Eu, como profissional de saúde é que tenho ser bastante
competente quando eu apresento os métodos para defender a reversibilidade
[...] Mas, eu acho que o nosso discurso é muito... é uma causa quase que
perdida não posso dizer que é perdida porque eu sou otimista, mas o modelo
de classe média influencia muito as classes mais populares, e as mulheres de
classe média, assumiram esse desenho, esse roteiro de um filho no máximo
dois e ligar (...) e as classes populares, até porque as mulheres das classes
populares estão trabalhando dentro das nossas casas, copiam nosso modelo.
(CORDÉLIA)
que estava acontecendo desde os anos 70, desde o final dos anos 70, e dada
ser a população numerosa mais pobre brasileira, ser a população mais parda e
negra, é evidente que a maioria das pessoas esterilizadas eram as mulheres
negras, daí a esterilização forçada o passo era um pouco grande, está certo?
Porque não estou te dizendo [...] que não houve abuso de esterilização, eu
acho que houve, por médicos financiados no exterior, esses programas de
planejamento familiar. Não a Bemfam propriamente dita, porque eu estava no
Recife, quando a Bemfam iniciou seu treinamento em laparoscopia, e que o
aconteceu é que os médicos entraram num terreno em que a esterilização já
era a opção preferencial. A Bemfam só veio colocar água no moinho,
entendeu? Em vez de fazer cesariana e depois a laqueadura, agora fazia
laqueadura pós-parto por laparoscopia, mas a realidade pela demanda da
laqueadura oferecida pelo médicos que não eram financiados pelo exterior,
que estavam trabalhando contratados pelo estado em 82 eu vi como era. O
médico diretor do hospital veio mostrar para mim e “é a gente pode ver, 60%
das mulheres que pariram no mês passado foram esterilizadas”, e disse isso
para mim sem problema e isso era pago pelos prefeitos, pelos candidatos,
então... a lógica que esses setores médicos é que a população pobre em geral
requeria uma solução definitiva da situação, então tinha uma coisa fascista,
racista, tinha essa coisa, mas o que eu quero dizer, que não era exatamente a
coisa dos estrangeiros esterilizando as mulheres negras brasileiras, era uma
cena muito mais complexa. Além disso, tinham estudos, todos, o meu que era
pequeno, mas os estudos da Berquó de quase dez anos depois mostravam que
havia uma restrição de ações, dificuldades de acesso aos métodos, problemas
no uso da pílula, efeitos colaterais, não pode dizer que era a livre escolha,
uma coisa fantasiosa das feministas, “ah vou experimentar tudo antes da
esterilização”. Então, as mulheres optavam pela esterilização, e havia uma
enorme dificuldade, e há ainda, de setores feminista e, particularmente, esse
debate de autonomia, agenciamento, falta de opção entendeu? Que as
mulheres pudessem em condições ideais de realmente decidir que elas não
optariam pela esterilização. É uma possibilidade contra factual, mas de fato, a
maioria das mulheres com raras exceções, que eu entrevistei no Recife em
1982, todas queriam fazer a esterilização. E você tinha a oferta desse
mercado. Então, o que eu quero dizer que tinha uma cena muito mais
complexa, do que “estão esterilizando”. Você tinha uma demanda por
regulação da fecundidade que não estava sendo bem adequadamente
respondida pelo Estado, o mercado tinha problemas e a opção apareceu,
como a Elza chamou de cultura da esterilização, foi se criando com a
contribuição de todo mundo, as mulheres de classe média se esterilizaram
primeiro, foi assim que as mulheres mais pobres aprenderam que a
esterilização existia. Eu conversei com várias mulheres e perguntei: “como
você soube que existia?” e elas respondiam “Ah eu estava lá na casa da Dona
Fulana e eu ficava olhando, ela tinha dois filhos e não tinha mais, e eu
perguntei um dia como ela fez e ela disse que tinha ligado as trompas. Ah eu
quero também!”. Entendeu? Então, tem esse efeito cascata, da classe média
se esterilizando no Brasil desde os anos 50, os médicos achando que óbvio
era mais fácil você fazer sem ter que ficar acompanhando. Os maridos que
não colaboram né? Os efeitos colaterais das pílulas, enfim, esse conjunto de
coisas que fazia com que as mulheres quisessem se esterilizar e se
esterilizava. Houve mulheres muito pobres que diziam “Aqui ó, daqui não sai
mais nada!”, uma maneira muito... [...] Mas, eu acho que esse outro lado, as
mulheres foram fazendo e tentando, caminhos para resolver seus problemas,
tinha uma demanda óbvio! [...] Nesse contexto, e nesse debate que resultou
na CPI da Esterilização, que resultou na lei de Planejamento Familiar. (ANA
AURORA)
desse conta dos problemas sexuais e reprodutivos dessas mulheres, além da influência
da classe média, aparecem como fatores que contra-argumentam as questões propostas
pelas feministas do movimento negro. Outro dado interessante é a referência dos
estudos da pesquisadora Elza Berquó nas falas tanto das feministas do movimento
negro, legitimando a denúncia de uma esterilização em massa, quanto na fala das outras
feministas que o utilizam legitimando os argumentos contra a essa esterilização em
massa. O que se pode apreender de antemão que, os estudos sobre esterilização no
Brasil na década de 1980 realizados pela pesquisadora Elza Berquó ganha acepções bem
diferentes quando situados em lugares de falas diversos e também estão entremeados
com a própria lembrança do processo de implantação do PAISM.
Dentre outras muitas questões apontadas pelas entrevistadas nesses testemunhos
- que resolvi deixá-los quase que na íntegra para que sejam apreciados vários pontos de
tensão nas falas - há um ponto que é colocado por Cordélia que traz uma perspectiva
muito relevante para análise da implantação do PAISM nesse estudo: os conceitos de
direitos sexuais e reprodutivos. Antes de continuar a analisar as falas, vou me
aprofundar um pouco nessa questão, que serve também de instrumento para analisar que
tipo de conflitos estão inseridos dentro das falas relacionadas à esterilização de
mulheres no Brasil na década de 1980.
Quando o PAISM foi criado, os temas que envolviam a construção dos direitos
reprodutivos e sexuais estavam sendo discutidos em 1984, no I Encontro Internacional
de Saúde da Mulher em Amsterdã. O que antes aqui estava sendo discutido era saúde
integral da mulher que apresenta bastantes diferenças conceituais para a formação de
políticas públicas direcionadas às mulheres no processo democrático brasileiro.
A saúde da mulher aparece como uma estratégia nos anos 1980 das feministas
brasileiras, pois era uma maneira de atentar às questões trabalhadas nos feminismos
alinhando-se ao conceito de saúde como bem-estar difundido pela ONU. Assim, trazia
as mulheres para o centro a discussão, a fim de proporcionarem políticas públicas que
estivessem diretamente ligadas ao seu bem-estar físico e mental. Dentro dessa
perspectiva, as feministas que emplacaram esse debate no Brasil estavam também
tornando políticas as reivindicações de serem atendidas as questões relativas à
sexualidade e à reprodução das mulheres.
O lema Nosso corpo nos pertence, entra então nessa discussão sobre saúde da
mulher, como uma forma de o Estado garantir que a saúde das mulheres fosse atendida,
e mais do que isso, que o olhar sobre essas mulheres pudessem vir das próprias, ou seja,
a partir de suas necessidades, tendo como premissa o conhecimento dos seus corpos e,
dessa forma, dos procedimentos médicos. Relembrando a discussão do controle da
natalidade, a saúde da mulher, contida no PAISM, está investida totalmente das ideias
feministas de quebrarem os paradigmas em relação às práticas médicas coercitivas na
contracepção, tendo como as práticas educativas o método participativo das usuárias
para tomarem a decisão acerca de que contraceptivo se alinhava com a perspectiva de
vida de cada mulher. Mais uma vez, estamos falando de saúde como bem-estar físico e
mental, e não de ausência de doença.
O que está implícito dentro da saúde da mulher é também a autonomia acerca de
seus corpos, quando na decisão sobre métodos contraceptivos e na quantidade e
espaçamento de filhos que desejariam ter. O aborto, portanto, é um assunto dentro do
PAISM não à toa, pois está dentro da estratégia em abordar a saúde aliada às questões
de decisões de vida das próprias mulheres a partir do olhar para os seus corpos.
O PAISM, é, dessa maneira, uma porta que se abre para a discussão na política
sobre assuntos que antes estavam confinados ao privado e cobra esforços do Estado
brasileiro em ter como importantes esses assuntos dentro das políticas de saúde e das
diretrizes de saúde, provocando assim, uma legitimação do discurso das feministas da
década de 1970. Apesar de esforços em divulgar o debate da saúde da mulher dentro da
140
O PAISM está envolvido nas mãos do tempo que o construiu e, assim, a sua
criação é um marco em abrir esse debate na sociedade brasileira, mas também o situa
em relação ao seu momento, pois a conjuntura histórica corresponde também aos
anseios que possibilitaram a sua criação. Desde a década de 1980, as mudanças no
cenário brasileiro e internacional foram se modificando, principalmente em relação às
questões reprodutivas e sexuais ligadas às mulheres. Na década de 1990,
principalmente, com o ciclo das conferências internacionais da ONU os direitos das
mulheres vão ganhando destaque pela ação dos grupos feministas em todo mundo e isso
se reflete no Brasil com a criação de políticas públicas relacionadas às mulheres já
permeadas por esse debate internacional.
O que atualmente se vê como ainda uma luta pelo PAISM, presente em algumas
falas das entrevistadas, em muito se confunde, para mim, com a luta por fazer valer os
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Situar o PAISM na discussão do conceito
de saúde da mulher difere em muito das questões que envolvem esses outros conceitos.
A definição do conceito de direitos sexuais e reprodutivos, legitimada em 1994
na Conferência de População do Cairo, abre o caminho para outras vozes se inserirem
nesse processo. Primeiramente, é importante separar os dois conceitos: direitos
141
26
A lista aqui enumerada está presente em uma discussão mais aprofundada em: VIANNA, Adriana e
LACERDA, Paula. Direitos e Políticas Sexuais no Brasil: o panorama atual. CEPESC. Rio de Janeiro,
2004. Coleção documentos: 1.
143
Vozes dissonantes
27
Os dados da pesquisa são de 1991.
145
5 CONSIDERAÇÕES FINAISs
Acerca do que foi trabalhado nesses dois anos de pesquisa, em vez de concluir
um estudo prefiro considerar que meu intento antes é abrir portas para que mais vozes
possam integrá-lo. Não o estou finalizando, porque pretendo trabalhar com esse tema
ainda por mais alguns anos que regem a carreira acadêmica da pós-graduação e,
portanto, as considerações finais aqui representam um primeiro ponto final sobre o que
foi realizado.
Como foi explicitado ao longo do texto, o PAISM representou uma porta aberta
de conflitos e foi de suma importância para se verificar situações em que os direitos das
mulheres estavam sendo violados. Trabalhar com todo o conteúdo que envolveu a
pesquisa foi ao mesmo tempo instigante e angustiante, porque demandou que houvesse
uma dedicação a mais sobre as muitas portas que se abriam quando cada ponto era
descoberto e analisado.
A análise dos testemunhos foi de grande surpresa para mim, tendo em vista a
diversidade dos assuntos que foram levantados. Interessante pensar que, os resultados
que tinha me proposto a chegar com a realização das entrevistas estavam na contramão
dos que apareceram - de serem testemunhos locais a respeito da implantação no Rio de
Janeiro. Quando cheguei ao campo encontrei uma ampla discussão de um processo que
envolve não apenas uma cidade, mas um debate que tem um pano de fundo abrangente,
que é a discusssão sobre a saúde das mulheres em termos nacionais.
A maneira como os testemunhos foram emitidos nas entrevistas também
formaram um quadro muito exemplar do conteúdo que estava sendo explicitado: a
multiplicidade das emoções me fez pensar que a recuperação e interpretação dessas
falas não poderiam ser feitas de maneira aprofundada com os prazos que tinha a
149
Sinalizo que são conclusões preliminares. O que significa que não são
conclusões fixas, pois foram caminhos e decisões de pesquisa que permitiram que o
presente trabalho pudesse ser feito, mas que estão no início de um estudo detalhado.
Considero importantes pontos a serem aprofundados após a apresentação desses
primeiros resultados: os debates que envolvem a construção dos direitos reprodutivos e
sexuais na década de 1990 e sua relação com a implantação do PAISM; e a relação das
autoridades de saúde do município do Rio de Janeiro com as frentes que emplacaram
desse programa, no caso, os movimentos feministas. São questões que de antemão vejo
como importantes para o aprofundamento desse estudo e que em outra ocasião pretendo
me debruçar.
No entanto, algumas considerações desejo fazer em relação ao que foi estudado.
Na literatura que consultei sobre o PAISM o recorte histórico sobre as circunstâncias
que o criaram e sobre a sua inserção no processo de redemocratização foram pouco
vistos. Por isso, minha ênfase sobre esses dois aspectos no decorrer do estudo. O que
pretendi era mostrar que não somente as feministas estavam envolvidas com as questões
relativas à saúde das mulheres, como também outros setores da sociedade, e, que isso
importava muito a diferentes interesses, inclusive internacionais.
O que essa escolha no estudo trouxe para análise como resultado foi: fazer uma
interpretação histórica que não fosse demasiadamente à luz do ativismo feminista e, ao
mesmo tempo, não desconsiderar a atuação feminista no momento que o processo de
redemocratização estava levantando as vozes abafadas da ditadura. O que transparece
com essa preocupação é que o momento pelo qual passava a política brasileira na
década de 1980 foi construído pela atuação de diversos movimentos, que inclui os
feministas, e que foram essas reivindicações somadas que deram ensejo ao que temos de
conquistas na história da nossa democracia. Ao mesmo tempo, quis mostrar que
também dentro de um grupo há ainda conflitos e cisões, o que não escaparia isso aos
movimentos feministas. As diversas alianças que os próprios grupos feministas
estabeleceram ao longo desse tempo, as divergências que enfrentaram no seu interior,
também fizeram parte desse processo democrático.
Não homogeneizar a redemocratização é, a meu ver, necessário para a crítica
sobre esse período, porque se encontrei literaturas que nem sequer mencionavam os
movimentos feministas como participantes nesse período, encontrei também outras
literaturas que privilegiavam esse aspecto somente da luta das mulheres e deixavam de
lado todo um contexto de uma época. É um desafio constante, porque, se
151
REFERÊNCIAS
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SENOTIER, D. Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: UNESP, 2009.
153
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das Letras, 1996.
KANTOLA, J. Gender and the State: Theories and Debates. In. KROOK, M. L.,
CHILDS, S. Women, Gender, and Politics: A Reader. New York: Oxford University
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28
APÊNDICE – Lista de Escritoras Brasileiras Homenageadas
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A ordem da lista segue a ordem das entrevistas da pesquisa. Sobre as escritoras homenageadas, foi
consultado, principalmente, o Catálogo de Escritoras Brasileiras do site:
www.amulhernaliterura.ufsc.br/catalogoIndex.html
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