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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Paula de Carvalho Neves

PAISM: uma história com fim

Rio de Janeiro
2013
Paula de Carvalho Neves

PAISM: uma história com fim

Dissertação apresentada, como requisito


parcial, para a obtenção do título de
Mestre, ao Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Prof.ª Dra. Clara de Oliveira Araújo


Co-orientador: Prof. Dr. José Eustáquio Diniz Alves

Rio de Janeiro
2013
Paula de Carvalho Neves

PAISM: uma história com fim

Dissertação apresentada, como requisito


parcial, para a obtenção do título de
Mestre, ao Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 24 de maio de 2013.


Banca Examinadora:

_____________________________________________
Prof.ª Dra. Clara de Oliveira Araújo (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. José Eustáquio Diniz Alves (Co-orientador)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Maria Luiza Heilborn
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - UERJ
____________________________________________
Prof.ª Dra. Karen Mary Giffin
Escola Nacional de Saúde Pública

Rio de Janeiro
2013
DEDICATÓRIA

À minha família, com amor, que sempre me ensina


o valor do esforço e da persistência.
AGRADECIMENTOS

À Clara Araújo, que desde o início desse processo acreditou nos meus esforços e
possibilitou que eu pudesse alcançar vôos maiores na pesquisa. Suas atitudes firmes com
críticas justas e encorajamentos, me ajudaram a refinar a análise e refletir positivamente sobre
minha carreira.
Ao Prof. José Eustáquio Alves, mestre amigo, que com sua generosidade e
conhecimento do tema, trouxe reflexões importantes para o andamento da pesquisa. À Profª
Maria Luiza Heilborn, pela sua presença não somente na qualificação, pontuando questões
relevantes sobre o estudo, mas também ao longo da pesquisa com estimada atenção e
solidariedade. E, por fim, à Profª Karen Giffin, pela atenção e interesse dedicados a este
trabalho.
Aos meus amigos André, Tiago e Fábio, pelas inúmeras conversas, risadas e
discussões sobre o mundo e sobre a vida. Agradeço a vocês, de coração, por confiarem em
mim todo esse tempo que nos conhecemos, por me mostrarem pontos de vistas diferentes,
mas principalmente, por terem a grandeza de espírito para me oferecerem a oportunidade de
ver o mundo. A meu amigo carinhoso Pedro Belchior, que, para mim, é também uma
referência intelectual e traz um frescor a esse universo acadêmico, por vezes, rígido.
À querida amiga e feminista Maria José de Lima, que, com conselhos firmes e muito
éticos, aprendi a ter mais rigor nas minhas escolhas e decisões.
À grande mestre e amiga Thereza um agradecimento especial. Pois, sem a paciência,
confiança e os conselhos preciosos e estimulantes, estar aqui não seria possível. A sua
generosidade não tem preço. À querida Miriam, por me fazer sorrir de forma consciente e
libertadora em momentos de grandes dificuldades.
Ao meu querido amigo e companheiro Daniel. Como traduzir nossa relação? Só posso
agradecer por tudo e por estar presente em todos os momentos com sua imensa sabedoria.
À minha mãe Lucia, o agradecimento de toda uma vida. Uma mulher guerreira e com
grandeza de caráter, um exemplo em todos os sentidos. Às minhas queridas irmãs Flavia e
Claudia, por estarem presentes em todo o processo e pelo imenso carinho que dedicam a mim
acreditando no meu trabalho. A meu pai Ney, pelo exemplo de esforço e persistência nos seus
ideais. À minha madrinha Moema, pela leveza de sempre e por trazer as cores desse mundo
desde o meu tempo de criança.
Aos meus mentores espirituais, por me transmitirem calma e equilíbrio para oferecer o
melhor de mim na construção desse trabalho.
Ao aceitarmos as pessoas como indivíduos de personalidade própria, respeitando suas
opiniões, ideias e conceitos, até mesmos seus preconceitos, estaremos dando a elas um
fundamental apoio para que escutem o que temos para dizer ou esclarecer, deixando depois
que elas mesmas, conforme lhes convier, mudem ou não suas diretrizes vivenciais.
Hammed
RESUMO

NEVES, Paula Carvalho. PAISM: uma história com fim. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

O presente estudo analisa a criação e implementação do Programa de Assistência


Integral à Saúde da Mulher no Rio de Janeiro, sob o olhar daquelas que participaram
ativamente nesse processo. O recorte histórico da análise se situa desde a criação, em 1983,
até 1995, ano da Conferência de Beijing, que ratificou os direitos das mulheres e imprimiu, a
partir desse momento, mudanças em relação ao programa estudado. O foco da análise será nos
testemunhos das ativistas sobre o processo, que fornecerá elementos para uma interpretação
da conjuntura histórica que tanto envolvia a criação do programa, quanto mudava o cenário
político e social brasileiro. Com isso, pretendo buscar os limites que o programa possuía em
relação à sua proposta e situá-lo frente a um complexo cenário histórico no qual estava
inserido.

Palavras-chave: Gênero. Feminismo. Direitos sexuais. Direitos reprodutivos.


Redemocratização brasileira.
ABSTRACT

NEVES, Paula Carvalho. PAISM: a history with a end. Dissertação (Mestrado em


Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

This study examines the creation and implementation of the Program of Integral
Assistance to Women's Health in Rio de Janeiro, under the gaze of those who actively
participated in this process. The historical analysis lies since the creation in 1983 until
1995, the year of the Beijing Conference, which endorsed the rights of women and
printed, from that time, changes in the program studied. The focus of the analysis will
be the testimony of activists on the process, providing input to an interpretation of the
historical context that both involved the creation of the program, as the changed
political and social scenario in Brazil. With that, I intend to seek the limits that the
program had regarding their proposal and place it against a complex historical setting in
which it was inserted.

Keywords: Gender. Feminism. Sexual rights. Reproductive rights. Brazilian democracy


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 9
1 QUEM SÃO OS ATORES ? ......................................................................................... 18

1.1 Política e Feminismos .......................................................................................... 18


1.2 Redemocratizando as Discussões ........................................................................ 34
2 D ISCUTINDO OS DEBATES ....................................................................................... 49
2.1 Redemocratizando: uma análise ......................................................................... 49
3 SAÚDE DAS MULHERES ........................................................................................... 59

3.1 Uma Demanda por Reconhecimento ................................................................... 59


4 VOZES PARA O PAISM ..................................................................................... 72
4.1 As vozes .................................................................................................................. 72
4.2 Aberto o debate! .................................................................................................... 85
4.3 Criação e Implantação .......................................................................................... 90
4.4 O tesouro perdido do feminismo? ...................................................................... 128
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 148
R EFERÊNCIAS ....................................................................................................... 152
APÊNDICE – Lista de Escritoras Brasileiras Homenageadas .............................. 158
ANEXO A – Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher : Bases
Programáticas (1984). ........................................................................................... 159
ANEXO B - Discurso de Carmem Barroso nos Anais da VIII Conferência
Nacional de Saúde (1986) ..................................................................................... 160
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INTRODUÇÃO

Quando começa a minha busca pessoal por entender a criação e implementação


do PAISM? No período de 5 de julho a 20 de agosto de 2010, abriram as inscrições para
o mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Ali, nos corredores do nono andar da “minha” antiga UERJ,
uma porta bem conhecida eu atravessei e com os documentos nas mãos trêmulas, fiz a
minha inscrição. Esse dia que não é muito distante da data em que estamos, é uma
lembrança forte para mim. Parece que se passaram muitos anos, muitas coisas
aconteceram nesse percurso, mas aquele dia é ainda um momento muito importante
nesse processo todo.
Quando eu decidi na minha derradeira graduação em História a fazer o mestrado,
eu também estava dando um passo à frente na minha formação, mas, além disso, estava
tornando real o sonho de poder me expressar através da profissão que havia encontrado
como âncora de muitos sonhos que ainda tenho na minha vida. Pesquisar os fenômenos
sociais, as pessoas e o tempo, faz parte da minha personalidade, e me expressar através
desse espaço é, sim, a realização de um dos meus sonhos. Todas essas ideias que aqui se
encontram são buscadas o tempo todo na minha vida, e, para mim, não tem sentido
poder fazer algo que não tenha aplicabilidade alguma em relação ao meu
comportamento. Pois as ideias nunca estão perdidas, e as teorias, no meu entender, são
fruto de esforços pessoais para compreender esse mundo que, ao mesmo tempo em que
nos acolhe, oferece inúmeros desafios para a nossa sobrevivência. Ainda que eu traga da
minha formação em História o tempo como o maior enigma, que pode ser entendido de
diversas formas seja qual for o caminho a ser escolhido, essa escolha nunca será inócua
- sempre estará pautada pelos esforços pessoais daquele que se propõe analisar os
processos.
O que pode ser ao mesmo tempo angustiante - por aflorar em muitos momentos
aquilo que não percebo em mim mesma e, assim escondo - e libertador é perceber que
esse processo me faz manter viva, atenta a tudo o que acontece, aos processos atuais,
políticos, e sociais e às minhas críticas sobre o que me rodeia e o que conheço de mim
mesma. Pesquisar nesse sentido é avançar, porque estar na posição daquele que aprende
9

é também assumir que não se sabe sobre tudo. Enquanto houver vida e lucidez,
aprender, sob esse aspecto, é a profissão que escolhi para mim.
O PAISM entra num dos complexos cenários da minha vida. Continuando do
ponto em que havia parado, minha monografia de história tratava sobre violência contra
as mulheres o que me levou a pensar um outro atributo da vivência das mulheres: a
saúde. Apareceu no trabalho de monografia o tema do PAISM, da criação desse
programa na década de 1980, e isso me intrigou de maneira tal que, não resolvida a
questão sobre violência, procurei saber que programa era esse, por quem foi criado e
tudo mais que envolva a curiosidade inicial.
Assim, quando iniciei as aulas, um adicional apareceu no processo de pesquisa
do PAISM. Fui diagnosticada com endometriose e alguns médicos me disseram que em
pouco tempo eu poderia não mais ter filhos. Eu, que nunca tinha pensado isso como
uma questão importante, passei a refletir com mais atenção. Passou-se o ano de 2011 e,
num périplo de inúmeros (as) médicos (as) ginecologistas, duas enfermeiras, uma
psicóloga e um homeopata acunpunturista - além do apoio incondicional dos amigos e
família -, quase sem esperanças procurei uma médica para novo diagnóstico. Eu não me
conformava com o resultado. Depois de uma consulta de duas horas, numa tarde de
sexta-feira em Copacabana, um bloco grande de anotações, mil exames espalhados na
mesa de madeira, ela baixa os óculos de leitura e fala para mim o novo diagnóstico: eu
não tinha endometriose, foi um erro de leitura do exame combinado com o resultado de
outro exame. Eu repeti os exames novamente e o resultado era o mesmo. Negativo.
Nada.
O laboratório que realizou meu primeiro exame, o mais importante de todos para
o diagnóstico, não tinha feito as perguntas certas no dia, e eles confundiram o resultado
de um processo natural de menstruação com vários cistos de endometriose. Isso me
levou a questionar o momento em que o médico tinha me pedido para realizá-lo. Ele se
esqueceu de dizer que não poderia ser realizado logo após o período da menstruação,
tinha que ser anterior a esse período. As dores que eu sentia eram resultado de um
problema de postura que ocasionava uma dor profunda na região da lombar irradiada
para a parte pélvica. Os (as) médicos (as) que me consultaram se esqueceram de
perguntar como era a minha rotina de trabalho. As dores nas costas resolveram o
problema da minha “endometriose”, e ao fim, um ortopedista e um mestre de Tai Chi
Chuan me ensinaram exercícios básicos de postura e alongamento associados à
respiração, que possibilitaram que eu pudesse escrever esse trabalho hoje.
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E o que fazer com aquele ano em que planos mirabolantes acerca do meu futuro
e do futuro da minha relação afetiva foram feitos? Aprender é uma filosofia de vida. O
PAISM virou uma questão importante para ser estudada. Ainda que eu estivesse
envolvida totalmente com os acontecimentos e que os preceitos do PAISM depois do
novo diagnóstico me calassem fundo, eu tentei olhar esse processo como algo a ser
aprendido, mas, ainda assim, questionado.
Questionamento requereria da minha parte um distanciamento, uma suposta
neutralidade em relação ao assunto, algo que não poderia ser obtido como um todo.
Mas, o impulso dentro de mim de procurar pesquisar assuntos através dos caminhos das
ciências humanas e sociais foram maiores do que a vontade de querer me vingar
daqueles que me fizeram passar por esse processo doloroso. Não queria um estudo
militante, mas, ao mesmo tempo, digo que estão presentes nesta pesquisa, através da
forma de se analisar e das teorias utilizadas, os esforços para se entender também esses
processos todos dentro de mim. É por essa razão que afirmo fazer parte da minha
personalidade a profissão que escolhi.
A partir disso, como fui elaborando a pesquisa? Esse estudo sobre a criação e a
implantação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher está situado no
recorte temporal de 1983, data da sua criação, até 1995, ano da Conferência de Beijing.
Os debates dessa conferência estão ligados intimamente com a criação, em 1996, da Lei
do Planejamento Familiar no Brasil. Esse recorte foi feito por abarcar as discussões do
processo de redemocratização no Brasil e também pela criação do Sistema Único de
Saúde em 1988, na Constituição Federal. É um tempo que está entremeado de diferentes
formas de ativismo feminista, que combinadas com o próprio contexto, imprimem
caráter especial de análise sobre essa política pública. Outra justificativa é também pelo
limite que proponho para essa implementação e que está intimamente ligado com a
criação da Lei do Planejamento Familiar em 1996, o que será mais bem explicado no
segundo capítulo desse trabalho.
Para ler o PAISM nas décadas de 1980 a 1990 (considerando o recorte
temporal), busco o caminho principal das pesquisas qualitativas que me oferecem uma
análise sobre o processo de forma descritiva, a qual, segundo Godoy (1995, p.58)
Envolve a obtenção de dados descritivos sobre pessoas, lugares e processos
interativos pelo contato direto do pesquisador com a situação estudada,
procurando compreender os fenômenos segundo a perspectiva dos sujeitos,
ou seja, dos participantes da situação em estudo.
11

Dessa maneira, a pesquisa seguirá os rumos propostos através da análise de


testemunhos orais das ativistas feministas que participaram do processo de criação e
implantação do PAISM. Decorre desse ponto a necessidade de alguns esclarecimentos.
As perguntas de partida da minha análise sobre o PAISM eram: Qual a
repercussão que o PAISM obteve na sociedade brasileira? Qual a eficácia desse
programa em relação ao público que deveria atender? A partir das leituras relacionadas
ao tema as quais dariam ensejo à elaboração das entrevistas, as perguntas de partida
foram sendo refinadas a fim de abordar pontos mais palpáveis relacionados ao tempo
possível de realização da pesquisa. Reduzi, portanto, à parte concernente a implantação
para ser analisada somente no município do Rio de Janeiro. Assim, a combinação de
fontes documentais e orais me traria uma perspectiva dessa experiência local, bem como
um olhar sobre a criação do programa de forma geral.
O processo de leitura e reconhecimento do campo a ser analisado me trouxe
outra chave para entender esse recorte temporal. Como a conjuntura de criação e
implantação do PAISM envolve o movimento de redemocratização brasileira, considero
ampla essa implantação, pois não está subscrita somente às diretrizes preconizadas no
programa, como também faz parte de um processo maior que inscreve várias disputas
políticas e sociais dos movimentos no momento estudado.
Outro dado que obtive com as leituras, principalmente o estudo de Costa (1992),
PAISM: uma política a ser resgatada, e de Valladares (1999), Ações de Contracepção e
Assistência ao Parto: a experiência do Rio de Janeiro, foi que a implantação do
programa no Rio de Janeiro apontava para dois aspectos dentro do hall de ações
preconizadas pelo PAISM: planejamento reprodutivo e período gravídico puerperal.
Dentro desse universo a pesquisa mudou seus contornos: por que no Rio de
Janeiro o PAISM assumiu seu foco de implantação nessas duas questões? De que
maneira estavam ligadas essas prioridades em relação ao período estudado? Assim, qual
seria a visão das feministas que participaram do processo de criação e implantação do
PAISM no Rio de Janeiro nesse momento? O objetivo da pesquisa é, portanto, buscar
apontar possíveis caminhos para essas perguntas.
E quais os instrumentos para analisar esse objetivo? Tendo em vista que a
pesquisa envolve uma leitura sobre o tema e a coleta de testemunhos orais, antes de me
debruçar especificamente sobre esses, exponho os conceitos com os quais trabalhei para
instrumentalizar minha análise. Porém, digo de antemão que o fato de o PAISM ser
considerado de forma ampla nesse estudo, e de sua implantação envolver outros
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aspectos que não circunscritos às políticas de saúde, as entrevistas foram semi-diretivas,


ou seja, possuíam eixos de análise, mas procuravam a fala das entrevistadas a fim de
captar as tensões e as disputas que esse processo de implantação oferecia.
Em relação aos conceitos trabalhados na pesquisa, defendo que as suas análises
estão presentes dentro do corpo do texto, assim acredito que os mesmos sejam
instrumentos que me ajudaram a pensar o objetivo da pesquisa. Não vislumbro a
possibilidade de trazer a essa pesquisa a discussão dos conceitos sem que estejam
situados no momento em que são requisitados para iluminar os pontos da análise. Trago
nessa introdução os principais conceitos que utilizei para dar sentido ao meu estudo,
mas a discussão sobre as especificidades de cada um estão presentes ao longo do
trabalho, principalmente na segunda parte.
Um dos referenciais mais utilizados foi o conceito de poder de Foucault (2011),
que traz uma dimensão relacional aos atores e à dinâmica em que o poder se manifesta.
O contexto pelo qual o PAISM passava envolvia disputas que não se restringiam ao
Estado, porque inseria diversos atores móveis que também estavam presentes nos
movimentos feministas.
O que considero acerca dos processos históricos dentro dessa perspectiva é que
não estão subjugados a uma noção de causa e efeito e que não possuem encadeamento
em uma história linear dos fatos. O que proporcionou que a implantação estivesse ligada
a esse processo maior de contexto social e político brasileiro foi a dimensão relacional
das forças que envolviam os atores no contexto. É dessa forma que considero o PAISM
e o momento de sua implantação dentro do período estudado.
Para entender o processo de redemocratização e as ações feministas, busquei a
discussão sobre esfera pública e esfera privada trazendo a noção de direitos das
mulheres. Essa discussão é comandada pela perspectiva de Young (2002) sobre a
inclusão dos movimentos sociais no processo democrático conforme o livro Inclusion
and Democracy. Os conceitos de esfera pública e sociedade civil que a autora propõe
são importantes componentes para pensar as formas dos ativismos feministas nas
décadas de 1970, 1980 e 1990 no contexto brasileiro e a relação com a criação de
políticas públicas direcionadas às mulheres. Esse entendimento permite mapear as
disputas e tensões dentro dos grupos feministas a pensar na reivindicação de suas
causas.
Sobre políticas públicas direcionadas às mulheres me apoio no estudo de Nancy
Fraser (2002) que trabalha com essas questões sobre as esferas de representação,
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redistribuição e reconhecimento. Essa discussão trará elementos importantes também


para a análise dos testemunhos orais, na medida em que poderá ser um contrapeso para
se entender como as feministas viam a própria criação do PAISM como uma política
afirmativa em relação às mulheres.
Para buscar uma percepção sobre as mudanças reivindicadas pelos grupos
feministas com o PAISM, no conceito de gênero trago um caminho para pensar esse
momento. Trabalho com a noção de gênero de Joan Scott (1986), a qual relaciona
aspectos sociais e históricos para pensar o comportamento de homens e mulheres, o que
também está postulada sobre a dimensão relacional de poder de Foucault. Na discussão
que busco sobre a categoria de gênero estão subsumidas as questões de corpo e sexo e,
para isso, trago o estudo de Thomas Lacqueur (2001), Inventando o Sexo, que considera
essas questões inseridas num processo político e social que não corresponde somente
aos processos biológicos. Dessa forma, procuro entender as posições feministas que
refutam toda e qualquer concepção sobre as mulheres sob a perspectiva materno-
infantil, presente nos programas de saúde anteriores ao PAISM.
Para especificar os direitos das mulheres no campo da saúde, debate levantado
pelos grupos feministas na década de 1980 na criação e implantação do PAISM,
trabalho primeiro com o conceito de saúde como bem-estar da Organização Mundial da
Saúde de 1948, que traz a perspectiva de saúde a ser promovida, e não de ausência de
doença. Isso me proporciona o entendimento sobre em que bases o PAISM estava
fundamentado para o atendimento das mulheres a partir da promoção de saúde, ao invés
de uma assistência baseada em doenças. A diferença que se propõe ao assinalar esse
conceito é a mudança de uma assistência curativa para uma assistência de saúde
preventiva, que quebra a noção de autoridade do discurso médico para com os (as)
usuários(as) de saúde.
Em segundo, a perspectiva de integralidade que o programa trazia - retomada
com a criação do SUS - o que para isso Mattos (2001) oferece um estudo de várias
formas de se entender essa integralidade, a fim de oferecer uma luz sobre que pontos as
feministas consideravam ser atendimento integral de saúde da mulher. E em terceiro, a
discussão sobre direitos reprodutivos e direitos sexuais feita por Correa, Alves, Januzzi
(2006), que me traz elementos importantes para o entendimento dos aspectos
relacionados no programa, principalmente em relação à autonomia reprodutiva e à luta
por justiça que a promoção desses direitos deve oferecer através de aparatos do Estado.
Em relação aos direitos reprodutivos e sexuais, pretendo perceber os atores políticos
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envolvidos para que fossem garantidos pelo Estado e de que maneira o PAISM se
encaixa nessa nova nomenclatura na década de 1990, já que os considero a partir das
Conferências do Cairo (1994) e de Beijing(1995).
Em relação às entrevistas, foram estruturadas na forma semi-diretiva, o que me
proporcionou trabalhar com eixos temáticos acerca dos principais assuntos envolvidos
com a pesquisa. A análise do conteúdo expressa na análise de avaliação foram os
instrumentos principais para a obtenção dos resultados oferecidos nessa pesquisa. Para
fundar o estudo dos testemunhos orais, utilizei a pesquisa de Quivy, Campenhoudt
(1992), Manual de Investigação em Ciências Sociais, a qual especifica que a análise da
avaliação incide sobre os juízos formulados pelo locutor. É calculada a freqüência dos
diferentes juízos (ou avaliações), mas também a sua direção (juízo positivo ou negativo)
e a sua intensidade.
Sobre análise de conteúdo, ainda esclarece que é aquela que incide sobre
mensagens tão variadas como as obras literárias, artigos de jornais, documentos oficiais,
programas audiovisuais, declarações políticas, atas de reuniões, ou relatórios de
entrevistas semi-diretivas (QUIVY; CAMPENHOUDT, 1992). Para o tratamento das
fontes orais recorri ás técnicas da história oral que traz também a perspectiva de um
olhar sobre os discursos, buscando seus lugares de fala, o contexto da entrevista em que
está inserido, bem como os assuntos levantados em cada fala.
Combinando uma análise de avaliação com as técnicas oferecidas pela história
oral, em perceber os discursos, consegui buscar as similitudes em cada fala e agrupar os
principais assuntos em relação aos eixos temáticos, e ao mesmo tempo, cotejados os
discursos com fontes documentais, me proporcionaram o mapeamento das falas em
relação às disputas e mediações em torno da criação e implementação do PAISM.
Sobre os eixos temáticos um esclarecimento. Analisar dessa forma, foi uma
escolha tomada dentro do processo de pesquisa. Pois, trabalhar com muitas perguntas
tomaria um tempo que não foi oferecido pelas ativistas feministas. Essa forma de
entrevista me permitiu ter um tempo médio de 50 minutos, e também de assimilar o
máximo de informações de cada entrevistada. Antes dessa escolha de pesquisa, estava
previsto um roteiro geral que incluía perguntas relacionadas com o período estudado, o
que não foi possível de ser trabalhado no tempo das entrevistas por englobarem quase
duas décadas da vida das entrevistadas.
Tendo em vista esse quesito elenquei os três eixos para as perguntas:
envolvimento com as causas feministas – quando cada uma começou o ativismo
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feminista; criação e implementação do PAISM na década de 1980 – como cada uma


vivenciou esse momento e como viam a implantação do PAISM no Rio de Janeiro;
atuação feminista na década de 1990, até 1995 – de que forma continuaram seus
ativismos em se tratando do contexto de criação de ONGs feministas nessa década.
O grupo de entrevistadas no total somam 17, sendo a maioria do Rio de Janeiro e
algumas poucas de fora. A metodologia utilizada para buscar os testemunhos foi mista,
tanto utilizei a chamada “bola de neve”, na qual uma entrevistada indica outra que
estaria afinada com o objetivo da pesquisa, quanto à busca de nomes na literatura sobre
o PAISM para possíveis contatos. A indicação das entrevistadas me auxiliou a pensar as
possíveis redes de contatos entre as feministas durante a época de implantação do
PAISM no Rio de Janeiro e a busca de nomes na literatura trouxe também o testemunho
daquelas que estavam já publicamente ligadas com esse processo.
A idéia de se ter uma rede de contatos entre as feministas é importante para
entender que tipo de memória foi construída a partir do grupo que estava sendo
indicado. A busca dos nomes também envolve possíveis idéias divergentes que
poderiam acrescentar para a análise dos testemunhos. As entrevistas foram realizadas no
período de junho a agosto, sendo a última entrevista concedida em dezembro de 2012.
O desenvolvimento dessa análise será feito no quarto capítulo. Desde já destaco que,
nem todos os testemunhos aparecem no corpo da análise para que não fique repetitivo
em relação às pontuações feitas pelas entrevistadas. No entanto, todos os testemunhos
foram importantes para servirem de base para o estudo e, para fins de registro, possuo
gravadas todas as entrevistas.
As fontes documentais aqui utilizadas são anais e relatório de conferências
nacionais de saúde que perpassaram o período analisado e recortes de jornal e informes
feministas do acervo pessoal da feminista Maria José de Lima; as fontes secundárias
estão relacionadas à vasta literatura sobre o PAISM e o período, contidos em diversos
artigos disponíveis no meio acadêmico.
As fontes primárias fornecem atributos importantes para trazer um debate junto
às fontes orais. Os anais e relatório das conferências de saúde me ajudaram a entender
as críticas das feministas sobre os programas de saúde relacionados às mulheres do
Ministério da Saúde anteriores ao PAISM, e os recortes de jornais e informes me
auxiliaram na compreensão de alguns posicionamentos das feministas nos testemunhos
orais. Sendo os testemunhos a fonte privilegiada, deixo aberto para um próximo estudo
o olhar mais aprofundado sobre as fontes documentais do período, que trarão novos
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pontos de vista acerca do conteúdo estudado. As fontes secundárias foram de suma


importância para tecer a conjuntura histórica das décadas de 1980 e 1990, bem como de
me fornecer instrumentos teóricos para analisar as fontes orais.
Antes de fechar a parte conceitual e metodológica, exponho os referenciais
ligados ao estudo das falas. Primeiro, o conceito de memória coletiva de Michel Pollack
(1992) – decorrente dos estudos de Maurice Halbswachs - , que me fornece atributos
importantes para pensar as estratégias discursivas acerca dos ativismos feministas das
décadas de 1980 e 1990. Em segundo, a noção de discurso de Foucault (1996) a qual o
discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,
mas aquilo, por que, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar. Esse
conceito é importante para a análise dos testemunhos orais, quando alinha os discursos
com a perspectivas de relações de poder através das falas dos interlocutores e não busca
dessa forma, trazer o que está por trás, uma origem nesses discursos, mas traz a idéia de
quais relações estão sendo estabelecidas, a própria forma a qual é enunciado traduz uma
perspectiva de tensões e conflitos que estão presentes na sua formulação.
Dessa maneira, encerro nessa breve introdução a parte teórica trabalhada na
dissertação e parto para apresentação dos capítulos que conduzem o estudo.
A dissertação está dividida em quatro capítulos que, em linhas gerais,
apresentam o panorama histórico acerca do período estudado e a análise das entrevistas.
O que pretendo não é confrontar duas versões sobre o processo de criação e
implementação do PAISM, mas trazer os debates envolvidos com a conjuntura histórica
em que trará elementos relevantes para pensar as falas das entrevistadas. O olhar sobre
os fenômenos políticos e sociais permearão as análises sobre as conjunturas históricas.
O primeiro capítulo intitulado Quem são os atores?, procura apresentar os diversos
atores que estão em disputa no meio político e social no período que vai de meados da
década de 1960 até a década de 1980. Alargo os limites temporais da pesquisa em
relação às décadas de 1960 e 1970, pelo envolvimento de muitas entrevistadas com o
feminismo nessa época. Portanto, o panorama se configura desde a década de 1960, com
os movimentos contestatórios do mundo, tendo como marco 1968, e o que representou
essa década também no Brasil com o golpe da ditadura militar em 1964; passando pela
conturbada década de 1970, momento de surgimento da segunda onda do feminismo,
com o marco de 1975, o seminário na ABI – Associação Brasileira de Imprensa - no Rio
de Janeiro e a inauguração da Década da Mulher; o período de abertura política que vem
do final da década de 1970 e toma corpo na década de 1980 com os diversos
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movimentos sociais no cenário político e social brasileiro e a conjuntura de criação do


PAISM.
O segundo capítulo, intitulado Discutindo os Debates utilizo a análise de Young
(2002) para embasar uma discussão sobre o processo de redemocratização brasileira e a
inserção de uma pauta dos movimentos feministas nesse debate. O que também
imprimiu mudanças nas formas de ativismo feminista e que permitiu que se criassem
políticas públicas direcionadas à mulheres na década de 1980 e em diante. Nesse
capítulo, também se encontra a referência dos estudos de Fraser (2002) sobre as
políticas afirmativas para as mulheres e a sua importância para a promoção dos direitos
das mulheres em regimes democráticos.
No terceiro capítulo intitulado, Saúde das Mulheres, faço um breve
levantamento sobre as conjuturas históricas de criação do PAISM na década de 1980,
tanto do ponto de vista do Brasil quanto do Rio de Janeiro. Continuo essa conjuntura
até o período limite de recorte histórico no estudo, ou seja, 1995, ano da Conferência de
Beijing (1995), com a criação de ONGs feministas e aparelhos do Estado para a
promoção dos direitos das mulheres.
No quarto capítulo intitulado Vozes para o PAISM, trago a análise das
entrevistas com as impressões do campo e a discussão acerca das falas. Essa análise em
muito se conjuga com o panorama feito nos capítulos anteriores, contudo, é mais
minuciosa e foca os conteúdos trazidos nas falas das feministas para discutir e situar o
contexto histórico. São interpretações sobre as falas e possíveis formas de entender os
ativismos feministas no período estudado. Nesse último capítulo também se encontram
as considerações finais do trabalho.
18

1 QUEM SÃO OS ATORES ?

1.1 Política e Feminismos

A história das mulheres não desassociada da história do feminismo se traduz,


dentre muitos outros significados, como uma busca das próprias mulheres em se
entenderem, enfrentando conflitos e trilhando outros caminhos a partir da construção do
passado e do presente. Na segunda metade do século XX, no mundo ocidental, ressurgia
o feminismo 1, que mudaria de vez o curso da história. Esse movimento teve seus
epicentros na França e nos Estados Unidos, no entanto sua disseminação para o Brasil e

1
O feminismo anterior a esse momento refere-se ao movimento das sufragistas inglesas no século XIX
que difere em muito das reivindicações feministas no século XX. A pauta das feministas sufragistas, no
geral, referia-se à necessidade das mulheres participarem da vida política através do voto, mas não estava
ligada à quebra de valores tradicionais que os feminismos depois tiveram. A partir da Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), a crescente participação das mulheres fora do meio doméstico na Europa
desencadeou também esse processo de contestação dos valores tradicionais de manutenção da família
aliada à figura central do homem. Caracterizando-se esse, como um dos aspectos centrais na pauta dos
feminismos no século XX. Sobre a influência desse movimento no Brasil: PINTO, C. R. Uma História do
Feminismo no Brasil. Coleção do Povo Brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
19

para a América Latina foi rapidamente absorvida pelas mulheres que aqui que se
encontravam e que contestavam o modelo vigente de dominação masculina.
As mulheres, de fato, conseguiram mostrar seu espaço através de muita luta num
ambiente masculino unilateral; contestaram, se uniram e assim conseguiram divulgar
outro universo ainda pouco explorado, o próprio. Mas, “o que é uma mulher?”, Simone
de Beauvoir já fazia essa pergunta em 1949, no seu livro O Segundo Sexo, o qual, a
partir de 1960, tornou-se à máxima tanto para as mulheres feministas como para aquelas
que não pertenciam a nenhum movimento.
Entretanto, a mesma pergunta implicava em outra quase diretamente: onde se
encontrava a mulher ou as mulheres, afinal? A temática era levantada quando se
questionava as sociedades por serem, em sua maioria, representadas pela figura do
homem. Onde estariam as mulheres dentro dessa representação?
O problema encontrado pelo feminismo em conceber o espaço das mulheres se
detêm no fato de que as mesmas não se encontram em posição diferenciada e
desagregada dos homens. O feminismo possui, então, um dilema a ser enfrentado: as
mulheres dispersas na sociedade podem conseguir ganhos que atribuem a elas uma
parcela maior de independência, mas o fato de serem mulheres não significa que se
identificarão com essa causa somente. A igualdade deve ser buscada na medida em que
favoreça às mulheres buscarem um espaço próprio: no entanto, qual seria esse espaço?
Na década de 1960, no Ocidente, a liberação do sexo e a valorização da
juventude promovidas pela revolução cultural, foram o marco para a mudança na
concepção dos valores tradicionais da sociedade. Segundo Hobsbawm (1996, p.327),
Assumia-se tacitamente que o mundo consistia em vários bilhões de seres
humanos definidos pela busca do desejo individual, incluindo desejos até
então proibidos ou mal vistos, mas agora permitidos – não porque se
houvessem tornado moralmente aceitáveis, mas porque tantos egos o tinham.

A liberação sexual levantou a questão do indivíduo em detrimento da sociedade.


Acompanhado a isso houve um crescimento tecnológico acelerado que facilitou a
difusão das ideias e que contribuiu para que mais pessoas pudessem questionar os
padrões sociais em que se encontravam. A ideia da juventude era mais forte também por
esse motivo, os jovens conseguiam se adaptar melhor às novas tecnologias que se
apresentavam. Nisso apareceram o rock, o jeans e a liberdade sexual que se tornaram,
de uma forma geral, a marca de independência e rebeldia contra os valores
conservadores.
20

Dentro dessa perspectiva de mudanças e contestação dos valores conservadores


na sociedade, Hall (2001, p.43) comenta que os movimentos sociais que surgiram nessa
época, inclusive o feminista, deram ensejo a uma série de reivindicações de grupos
marginalizados das discussões políticas e que mereciam destaque. Sobre o surgimento
desses movimentos contestatórios no mundo,
o feminismo faz parte daquele grupo de ‘movimento sociais’ que emergiram
nos anos sessenta (o grande marco da modernidade tardia) juntamente com as
revoltas estudantis, os movimentos juvenis contraculturais e antibelicistas, as
lutas pelos direitos civis, os movimentos revolucionários do ‘Terceiro
Mundo’, os movimentos pela paz e tudo aquilo que está associado com
‘1968.

O autor, ao comentar o surgimento desses movimentos, faz alusão às suas


reivindicações, que gradativamente estavam modificando a forma como o ser humano
se posicionava no mundo. Eles questionavam a política da época, tanto do lado
capitalista quanto do lado soviético socialista, e reivindicavam suas identidades para
também serem debatidas pela sociedade não somente na esfera política, enfatizando a
tomada de decisões que visassem a introdução dessas discussões, como socialmente
quebrando paradigmas e consensos.
Para as feministas dessa época, principalmente na Europa e nos Estados Unidos,
a luta se engajava sobre o lema “o pessoal é político”. Os debates giravam em torno da
saúde da mulher, da família e da violência relacionada às mulheres. A necessidade de se
transformar aquilo que era considerado privado para a esfera pública, trazia à tona
questionamentos sobre como a política tratava os assuntos relacionados às mulheres e as
formas de poder que eram utilizadas para manter um sistema de pensamento pautado no
masculino, principalmente dentro da família.
No Brasil, algumas feministas também buscaram esse lema e, como primeiro
resultado - à custa de reivindicações -, conseguiram aprovar o Estatuto da Mulher
Casada em 1962. O aspecto político desse Estatuto se refere à divisão de
responsabilidades entre homens e mulheres no meio doméstico, esfera antes dominada
por decisões relegadas ao privado. A mulher dividiria junto com o homem a “chefia” da
casa, o que se refletia diretamente nas escolhas baseadas na educação dos filhos. Sobre
o Estatuto da Mulher Casada, Bandeira e Melo (2010, p.26) comentam,
Em relação à família, as mulheres lutaram pela alteração do item do Código
Civil que tornava as mulheres casadas incapazes, tal como os menores de
idade. Só em 1962, esta legislação foi mudada com a promulgação do
Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121) que as igualava aos maridos. Nesta
luta, destacaram-se as advogadas Romy Medeiros (1921- ) e Orminda Bastos
(1899-1971).
21

A década de 1960, no Brasil, representou um momento de instabilidade política.


A renúncia de Jânio Quadros em 1961, e todo alvoroço político da direita conservadora
em relação a João Goulart e suas tendências vistas como comunistas, culminou no golpe
militar de 1964, no qual o legislativo foi restringido, ou seja, era instalada a ditadura
militar no Brasil. A ação dos grupos feministas a partir dessa época foi extremamente
tolhida pela sua aproximação com a esquerda política. Com a criação do SNI (Sistema
Nacional de Informações), posteriormente do DOI- Codi (Destacamento de Operações
de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna) e outros órgãos de controle
social, as perseguições aos opositores do governo se tornaram uma prática comum
durante o período.
Muitas intelectuais militantes tiveram que se ausentar do país e, dessa forma,
entraram em contato, na Europa e nos Estados Unidos com organizações feministas.
Essa aproximação foi fundamental para o crescimento da luta feminista no Brasil, uma
vez que essas mulheres participaram de debates e estudos e viram um movimento de
ideias crescente e atuante, muito diferente da realidade que viviam no Brasil2.
Aqui muitas barreiras lhes eram impostas: como poderiam seguir o exemplo de
fora de tratar de assuntos sobre o corpo da mulher, a saúde e o aborto, se o momento era
de luta contra o governo dos militares e seus abusos? Indo mais além nessa discussão,
muitas reivindicavam mudanças de ordem social, ou seja, na economia, na política, nas
diferenças de classes, nas discriminações. Não havia qualquer indício de mudança sem
que houvesse pressão naquele contexto em que viviam. O governo, por sua vez, era
composto por homens militares que torturavam muitas mulheres de maneira cruel
exacerbando ao máximo todas as formas de abusos, o que gerava total indignação e
revolta3.
Esse era um grande entrave; no entanto, outros vieram a exemplo, nos partidos
políticos mesmo de esquerda, a presença da mulher era muito condicionada a
comportamentos sexistas adotados na sociedade, como elucida Goldberg (1987, p.57)
nessas organizações, muitas daquelas jovens ‘transgressoras’ dos anos 60,
desejosas de agir socialmente enquanto sujeitos, tiveram de moderar suas
ambições. As injunções do contexto e da ‘natureza feminina’, mal adaptada

2
Sobre o feminismo na Europa e nos Estados Unidos, suas lutas, conceitos e organização nas décadas de
sessenta e setenta: DUBY, Georges, PERROT, Michelle. História das Mulheres no Ocidente. Edições
Afrontamento: Lisboa, 1991. Vol. v.
3
Sobre torturas, desaparecimento e mortes de mulheres no período da ditadura militar: MERLINO, T.,
OJEDA, I. (orgs.). Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo: Editora Caros
Amigos, 2010.
22

às dificuldades e aos perigos da ação revolucionária, transformaram suas


aspirações ao papel de protagonistas em aceitação tácita dos postos de
‘coadjuvantes’ em missões de alto risco, sobre as quais, na maior parte dos
casos, não opinavam.

Segundo Goldberg(1987), essas mulheres “transgressoras” presentes nas


organizações da esquerda nas quais atuavam algumas com seus companheiros, relatam a
dificuldade que tinham de lidar com a militância e seus atributos relacionados ao âmbito
feminino, como ter filhos. A análise que a autora faz sobre essa época mostra uma
esquerda que era pensada por homens, em sua maioria, e a atuação das mulheres era
lateral para a realização das ações. Portanto, ao mesmo tempo em que no Brasil via-se
um movimento crescente em relação às concepções feministas em suas diferentes
correntes, dentro da esquerda - na qual participavam muitas mulheres que estavam
quebrando os padrões sociais da época – essas ideias não permeavam os debates e a
atuação nas organizações passava por diversos problemas de gênero que essas mulheres
enfrentavam.
A reflexão sobre a condição das mulheres nesse momento de ditadura, apesar de
ser tolhida pelos aparatos de repressão do Estado, conseguiu brechas importantes para
se disseminar na sociedade brasileira. Em 1972, a advogada Romy Medeiros, ligada ao
Conselho Nacional de Mulheres do Brasil (fundado em 1947), organizou o I Congresso
de Mulheres, que foi patrocinado pelo Bemfam (Sociedade de Bem-Estar da Família,
fundação norte-americana com grande atividade no campo do planejamento familiar e
controle de natalidade durante toda a ditadura militar), Coca-Cola e o alto clero católico.
Esse congresso discutiu a atuação da mulher na sociedade brasileira e também
algumas práticas de planejamento familiar para famílias de renda baixa. O que pode ter
permitido a Romy Medeiros ter conseguido realizar o evento em pleno governo do
General Garrastazu Médici (1969-1974), foi a sua aproximação com pessoas influentes
que estavam no governo. Outro ponto que pode ter favorecido a realização desse
seminário foi o patrocínio de organizações estrangeiras que atuaram durante a ditadura
militar à frente de práticas de planejamento familiar, como a Bemfam.
O governo de Médici foi o período de maior repressão durante a ditadura militar.
Em 13 de dezembro de 1968, foi instituído pelo general o Ato Institucional nº 5
que colocou em recesso o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas
estaduais, passando a ter plenos poderes para cassar mandatos eletivos,
suspender direitos políticos dos cidadãos, demitir ou aposentar juízes e outros
funcionários públicos, suspender o habeas corpus em crimes contra segurança
nacional, legislar por decreto, julgar crimes políticos em tribunais militares,
dentre outras medidas autoritárias (DELGADO; FERREIRA, 2003, p.152).
23

Médici se utilizou desse recurso para perseguir, torturar e prender qualquer


movimento de direitos humanos, além de militantes pertencentes à classe artística, às
universidades e à esquerda.
A maioria das mulheres para se organizarem, durante esse período, tiveram que
recorrer a outras formas de reunião, pois muitas delas faziam parte da esquerda política
ou temiam a repressão por discordarem do modelo político vigente. Nessa época, foram
criados os grupos de reflexão, à moda norte-americana para discutir os assuntos
relacionados à condição feminina. Os grupos tinham como característica as reuniões
informais, realizadas nos domicílios das participantes e a participação se dava apenas
por convite. Eram mulheres geralmente de classe média e de diferentes idades. Essas
reuniões foram importantes, pois discutiam conceitos e análises que mais tarde
estiveram presentes nas ações dos grupos feministas.
O primeiro grupo de reflexão foi criado em São Paulo, em 1972, e depois foi se
multiplicando por todo país, em especial, no Rio de Janeiro. As mulheres perceberam
que nesses grupos as diferentes idades eram um fator que muito mostrava da
experiência feminina. Os problemas eram os mesmos, havia muita discriminação por
parte dos homens e a questão da violência sempre gerava polêmicas. O tema do sexo –
prazer, desejo e corpo - se tornava então, a maior questão, pois era algo difícil de ser
resolvido por envolver temas complicados de serem discutidos na sociedade.
Na década de 1970, há também o contexto de muitas mulheres ocuparem as
cadeiras das universidades de forma expressiva. A saída para o mercado de trabalho e a
entrada para o meio universitário ocasionaram mudanças na sociedade, e nos assuntos
abordados no meio acadêmico, a respeito da maneira como a mulher deveria ser vista e
sua atuação fora do meio doméstico.
Os temas das pesquisas acadêmicas não encontravam seus destinos em questões
femininas e não imprimiam identidade a essas próprias mulheres, que não se viam
representadas por uma história que analisasse somente os fatos políticos e as esferas
sociais. Sobre a entrada no meio acadêmico, Rago (1998, p.90) comenta:

é bem verdade que a entrada das mulheres nos círculos universitários já vinha
produzindo uma certa feminização do espaço acadêmico e das formas de
produção dos saberes. Em outras palavras, desde os anos setenta, as mulheres
entravam maciçamente nas universidades e passavam a reivindicar seu lugar
na História. Juntamente com elas, emergiam seus temas e seus olhares
desconhecidos. Progressivamente, a cultura feminina ganhou visibilidade,
tanto pela simples presença das mulheres nos corredores e nas salas de aula,
como pela produção acadêmica que vinha à tona. Histórias da vida privada,
da maternidade, do aborto, do amor, da prostituição, da infância e da família,
24

das bruxas e das loucas, das fazendeiras, empresárias, enfermeiras ou


empregadas domésticas, fogões e panelas invadiram a sala e o campo de
observação intelectual ampliou-se consideravelmente. O mundo acadêmico
ganhava, assim, novos contornos e novas cores.

A área da pós-graduação no Brasil na época da ditadura militar ganhava também


novo fôlego. Contraditoriamente, apesar da perseguição a professores e a alunos e do
fechamento dos diretórios acadêmicos, o governo militar deu mais atenção à
universidade por meio do incentivo para a abertura de cursos de pós-graduação e para
novas pesquisas, que ganhavam recursos por todo país nessa época. Algumas das
pesquisas recebiam recursos de empresas privadas norte-americanas. Goldberg (1987)
assinala ter havido, naquele momento, um crescente número de “estudos sobre mulher”.
Esses estudos, como analisa a autora, são divididos em duas linhas temáticas, a
reprodução humana e a força de trabalho. Sobre a reprodução humana, Goldberg (1987,
p.85) destaca:

No início dos anos 70 estimava-se que 50% da mortalidade geral do país


referia-se aos grupos materno, pré-escolar e infantil e, como dentro do clima
geral da época, a proteção materno-infantil passou a ser considerada pelo
governo militar como uma questão da ‘política de desenvol vimento e
segurança’, esse fato origem a programas específicos de assistência à
gestantes e crianças.

Importante considerar naquele contexto, que a pressão dos Estados Unidos sobre
o Brasil para uma política de controle da natalidade tinha como princípios o
desenvolvimento econômico, baseado no controle da quantidade de filhos das mulheres,
em sua maioria pobres. Portanto, a ênfase em pesquisas que derivaram nesse momento
da questão materno-infantil e a criação de políticas de saúde que contemplassem esse
aspecto possuem também em sua origem uma pressão política externa. Outro ponto
relevante no contexto da época era a importância que os Estados Unidos tinham nesse
momento. A Guerra Fria (1945-1991) separava o mundo em duas esferas, uma
capitalista e outra socialista, e influenciava no Brasil de forma a se alinhar ao bloco
capitalista, ou seja, ao lado dos Estados Unidos.
No entanto, o olhar centrado das pesquisas sobre o grupo materno-infantil
oferecia uma posição pouco clara das autoridades brasileiras de saúde em se posicionar
efetivamente sobre o controle da natalidade. A posição dúbia referente ao controle da
natalidade consistia em não assumir diretrizes que possibilitassem esse controle, mas ao
mesmo tempo não se ofereciam serviços de informação para a população sobre métodos
25

contraceptivos. O vazio que gerava esse posicionamento contribuía para o crescimento


de empresas como a Bemfam e de seus procedimentos indutivos de utilização de
contraceptivos, bem como de esterilizações femininas, afinados com as políticas anti-
natalistas norte- americanas.
Sobre essa discussão, é relevante considerar que na metade da década de 1970
ocorreram debates internacionais neomalthusianos, que ligavam as causas da pobreza ao
crescimento acelerado de filhos, nas economias em desenvolvimento. A Conferência
Mundial de População de Bucareste (1974), numa rápida análise, representou um
momento em que os países em desenvolvimento rebateram essas teses e aderiram às
ideias desenvolvimentistas de que, quanto maior a população, maior a possibilidade de
crescimento político e econômico. Segundo Alves (2006, p.24)
muitos países do Terceiro Mundo, apoiados pelos países socialistas, passaram
a denunciar a política de controle de natalidade como uma medida
imperialista que visava ao controle das populações pobres do mundo [...]
Propugnar o controle da natalidade era ser de direita, enquanto as forças de
esquerda defendiam o desenvolvimentismo como solução para a superação
da pobreza e da miséria. Este debate esteve presente na Conferência
Internacional sobre População e Desenvolvimento ocorrida em Bucareste em
1974.

O posicionamento do Brasil em ficar ao lado de países como a Índia e apoiar o


desenvolvimento através do crescimento da população é o que impossibilitava, de certa
forma, a criação de políticas que visassem a informação sobre métodos contraceptivos.
No ano de 1975, a Organização das Nações Unidas, atendendo a uma demanda
mundial de reivindicações das mulheres, inaugurou o Ano Internacional da Mulher e a
Década da Mulher (1975-1985), com conferências internacionais na Cidade do México
(1975), Copenhagen (1980) e Nairóbi (1985). A partir dessa data, foi um momento de
boom do feminismo no Brasil. Em julho desse ano, algumas feministas cariocas
realizaram o congresso que marcaria os rumos do feminismo brasileiro: “O papel e o
comportamento da mulher na realidade brasileira”. O evento aconteceu num auditório
cedido pela ABI (Associação Brasileira de Imprensa), no Rio de Janeiro. Estavam
presentes feministas como Maria do Espírito Santo - a Santinha -, Moema Toscano,
Diva Múcio, Maria Luiza Heilborn, Carmen da Silva, Leila Linhares Barsted, Maria
José de Lima, entre outras, e foi tamanha a repercussão que algumas narrativas
consideram como o momento de início da segunda onda do feminismo 4 no Brasil.

4
Considero como feminismo de segunda onda aquele nascido no Seminário da ABI de acordo com Pedro
(2006) que em seu estudo faz essa distinção dentre outras narrativas sobre quando da ocorrência dessa
26

Nota-se a diferença de repercussão desse seminário em relação ao evento da


advogada Romy Medeiros, em 1972, na forma como ele foi concebido, ou seja, pela
aproximação com a esquerda política e pela atuação da ONU na proteção dessas ações.
Das feministas que participaram, algumas pertenciam a organizações de esquerda, e
viram na oportunidade uma forma de se expressarem em um período tão conturbado
politicamente. A proteção da ONU garantia também que algumas delas pudessem
difundir a militância de esquerda a outras que não estavam envolvidas na luta. Enfim, o
congresso da ABI, foi muito importante por esses e vários outros motivos, como a
discussão de temas polêmicos: o aborto, o lesbianismo, o trabalho e a violência contra a
mulher.
Além dos estudos desenvolvidos para repensar o comportamento das mulheres
sob diversos aspectos, com grupos e palestras de profissionais de diferentes áreas, este
seminário também teve como marco, a criação do Centro da Mulher Brasileira – CMB.
O Centro da Mulher Brasileira foi criado em 1975 e permaneceu enquanto instituição
voltada aos assuntos das mulheres até 1979, tendo sido importante para conscientizar as
mulheres independentemente de classes sociais, dos seus direitos e da sua participação
no desenvolvimento da sociedade. No entanto, o CMB como reflexo do movimento, era
repartido por algumas linhas de pensamento.
Sobre as correntes feministas que estavam presentes no CMB no momento de
sua criação, a representante maior nesse momento era a corrente do feminismo marxista.
No entanto, mulheres que se alinhavam com o feminismo radical também estavam
presentes e proporcionavam um outro campo de discussão que destoava do discurso
marxista. Para dimensionar essas duas vertentes, trago aqui uma reflexão sobre as
estruturas de pensamento dos feminismos que influenciaram as feministas que
participaram do CMB. Acrescenta-se a essa reflexão o fato de esses feminismos terem
influência direta de situações vividas fora do contexto brasileiro. Ou seja, ainda que
estivessem no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, foram influenciados pelas
feministas que estavam fora do país e traziam, assim, perspectivas que condiziam com
as experiências fora do contexto de ditadura brasileira.
Se as influências vinham principalmente dos Estados Unidos e da França os
contextos que marcavam essas duas democracias imprimiam condições bem
diferenciadas em relação ao Brasil. Os anos de ouro das décadas de 1960 e 1970 das

fase. Segundo a autora, o feminismo da primeira onda se configuraria como a luta das sufragistas, anterior
a esse momento da década de 1970.
27

economias norte-americana e da Europa Ocidental representaram um aumento no


padrão de vida dos cidadãos destes países, o que muito os diferenciava da situação
vivida nos países em desenvolvimento. Segundo Hobsbawm (1996, p.259)
O que antes era um luxo tornou-se o padrão de conforto desejado, pelo menos
nos países ricos: a geladeira, a lavadora de roupas automática, o telefone. Em
1971, havia mais de 270 milhões de telefones no mundo, quer dizer,
esmagadoramente na América e na Europa Ocidental, e sua disseminação
acelerava. Dez anos depois, esse número quase dobrara [...] Em suma, era
agora possível o cidadão médio desses países viver como só os muito ricos
tinham vivido no tempo dos seus pais – a não ser claro, pela mecanização que
substituíra os criados pessoais.

O Estado de bem-estar social das economias em expansão ocidentais revelavam


experiências muito diferentes das vividas no Brasil, em que os gastos públicos desses
países chegavam quase a 40% do Produto Interno Bruto 5, o que favoreceu a melhoria de
vida dos cidadãos e endossou os debates acerca dos valores da classe média com o
marco de 1968 dos movimentos contestatórios no mundo.
Portanto, ao entrar em contato com essa realidade e de intensa contestação dos
valores tradicionais, apoiada numa classe média emergente e na melhoria dos padrões
de vida população, as correntes feministas assumiam contornos próprios de cada
experiência, e aqui também estavam imprimindo as lutas particulares que se situavam
no próprio contexto político-econômico.
No CMB, havia mulheres que traziam consigo a militância de esquerda, mas
existiam outras tendências que abriam o leque de ativismo feminista na época, como a
liberal, a marxista e a radical. Sobre essas tendências, Pinto (2003, p.60) comenta:
A partir de 1977, o centro [CMB] foi largamente dominado por mulheres
marxistas ligadas ao Partido Comunista pró-soviético. Mesmo assim, pelo
menos em seu primeiro momento, abrigava as três grandes tendências do
feminismo: a marxista, a liberal e a radical. As duas primeiras, apesar de suas
óbvias diferenças, tinham uma natureza mais política e tendiam a ver os
problemas enfrentados pelas mulheres como questões coletivas com uma
dimensão que extrapolava a luta específica da mulher. As marxistas tendiam
a reduzir a luta das mulheres às lutas de classes, e as liberais, à luta por
direitos individuais. O terceiro grupo, o que mais dificuldade teve de se
manter na organização, era composto por mulheres que colocavam sua
própria condição de mulher no centro da discussão; levantando questões
menos aceitas, expunham de forma aberta a condição de opressão e não
apresentavam uma plataforma coletiva para justificar a sua própria militância.

Essas tendências mostravam como o feminismo era dividido na forma de colocar


sua atuação e de construir sua agenda. Para além de limites sobre essas três principais
tendências, é importante salientar que o pertencimento a uma corrente não

5
Hobsbawm (1994).
28

necessariamente significava falta de diálogo com as outras correntes. Pensar a


emancipação feminina é um dos atributos do feminismo, e a forma de buscar essa
emancipação é o que diferencia uma tendência da outra. Segundo Alves e Pitanguy
(2003, p.55), o feminismo
refuta a ideologia que legitima a diferenciação de papéis, reivindicando a
igualdade em todos os níveis, seja no mundo externo, seja no âmbito
doméstico. Revela que esta ideologia encobre na realidade uma relação de
poder entre os sexos, e que a diferenciação de papéis baseia-se mais em
critérios sociais do que biológicos.

Nas três tendências concorrentes - a marxista, a liberal e a radical - a diferença se


encontra na forma de se estabelecer a atuação perante os pontos explicitados, entrando
principalmente na discussão a relação do movimento com o Estado. Busco essa reflexão
dos feminismos com o Estado para mapear essas correntes, a fim de perceber, através da
discussão sobre esses feminismos, de que forma os debates em torno das mulheres no
CMB se colocavam. Trazer essa reflexão teórica a meu ver ajuda a ter mais
instrumentos para entender um pouco dos debates entre as feministas brasileiras e, a
partir disso, que peso algumas correntes ganhavam em detrimento de outras.

Feminismos

Para discutir as diferenças entre as correntes do feminismo, utilizo o estudo de


Kantola (2010), que faz uma síntese geral da relação dos feminismos com o Estado e
quais as principais críticas que as tendências fazem na inserção desse ator na plataforma
de ação feminista. A escolha por esse estudo se faz por estarem contidos nele as críticas
sobre cada corrente, o que me ajuda a refletir sobre as discussões dentro do CMB e as
posições assumidas pelas feministas no decorrer desse período.
Em seu artigo “Gender and the State: Theories and Debates”, do livro Women,
Gender, and Politics: A Reader, a autora analisa os feminismos e suas relações com o
Estado de cinco formas: o Estado considerado neutro, o Estado Patriarcal, o Capitalismo
de Estado, o Welfare State e o Estado Diferenciado. Como a sua análise é atual, ela
considera outra tendência que veio a surgir no feminismo: o pós-estruturalismo.
Centralizo no estudo as análises feitas por essa autora sobre as três tendências
supracitadas que figuravam o feminismo brasileiro à época do CMB.
Sobre o Estado neutro, a autora considera a reflexão das feministas liberais, que
buscam o fortalecimento das mulheres através da aquisição dos seus direitos
29

reivindicando do Estado uma neutralidade em relação aos diferentes grupos da


sociedade. Nesse ínterim, é considerada, acima de tudo, a procura pela igualdade de
homens e mulheres perante as leis. Essa igualdade deve ser buscada através de normas
que resultem no estabelecimento de direitos em relação aos cidadãos. Ou seja, mulheres
e homens são iguais perante à lei e a plataforma de ação deve ser pautada na não
discriminação. Sobre o feminismo liberal, Goldberg (1987, p.114) complementa ainda
que esse movimento “enfatiza as possibilidades de realização pessoal, de conquista das
liberdades e de emancipação para mulheres ‘exemplares’ sendo [...] a tendência que
mais se aproxima do individualismo contemporâneo”.
Na relação com o Estado, Kantola (2010) oferece como crítica a dificuldade de
aplicação das leis, sendo que essas podem ser importante instrumento estratégico para a
afirmação da igualdade; no entanto, se não ultrapassarem o campo normativo não
transformarão a realidade das mulheres como um todo.
Outro ponto a ser a ser discutido em relação a essa corrente é pensar que tipo de
igualdade está sendo proposta. Quando pensado o direito natural da igualdade entre
seres humanos por autores como Locke e Rousseau, esta se encontrava pautada sobre
um universo determinado: os cidadãos livres, ou seja, o grupo masculino. As mulheres
não fariam parte desse pensamento por serem consideradas dependentes dos homens,
sendo atribuído, portanto, aos homens a condição de estabelecer a igualdade. Nessa
lógica, as mulheres devem ser iguais aos homens. Sobre a discussão da igualdade entre
homens e mulheres, Varikas (2009, p.118) coloca
Por um lado, o pleno reconhecimento político e social das mulheres significa
que elas devem se adaptar à norma masculina, ‘tornar-se (como) homens’.
Por outro lado, sua demanda: serem admitidas ‘como são’, numa organização
social que leve em conta suas diferenças em relação aos homens (por
exemplo, a maternidade, o cuidado das crianças), reforça o regime de
exceção do qual elas são objeto e as condena a uma ‘incorporação’ específica
como mulheres, ou seja, ‘homens imperfeitos’.

A desigualdade entre homens e mulheres dentro do pensamento liberal, deve ser


sanada pela busca de direitos através de um movimento organizado que tem como
função garantir que os cidadãos partilhem da igualdade, e o Estado deve proporcionar
esse direito a todos os cidadãos. Nesse pensamento, o Estado neutro não é discutido
segundo as diferenças e as relações de poder presentes na sociedade, o que pode ser um
tanto limitado para o entendimento das relações de gênero, pautadas em construções
sociais sobre o comportamento de homens e mulheres.
30

Na análise do Estado patriarcal, Kantola (2010) discute a atuação das feministas


radicais, que consideram o Estado como uma das fontes de opressão das mulheres. Para
isso, utilizam-se do conceito de patriarcado, sobre o qual Delphy (2009, p.175)
esclarece
Em relação a seus quase sinônimos ‘dominação masculina’ e ‘opressão das
mulheres’, ele apresenta duas características: por um lado designa, no espírito
daquelas que o utilizam, um sistema e não relações individuais ou um estado
de espírito; por outro lado, em sua argumentação, as feministas opuseram
‘patriarcado’ a ‘capitalismo’ – o primeiro é diferente do segundo, um não se
reduz ao outro.

O patriarcado, entendido como um sistema de dominação 6, colocando homens


numa posição de prestígio em relação às mulheres, deve ser combatido através da
conscientização daquelas que por ele são atingidas diretamente. Quando se diferencia
patriarcado de capitalismo, está se diferenciando também a luta em diferentes vertentes:
as feministas que buscam a liberação feminina em qualquer sistema que oprima as
mulheres e aquelas que buscam uma mudança social partindo de um sistema econômico
que se reflete nas relações sociais.
A conscientização, partindo da premissa das radicais, levaria à liberação
feminina e, consequentemente, a uma mudança em escala maior na sociedade. Sobre
feminismo radical Goldberg(1987, p.111) complementa
Os movimentos de liberação das mulheres do começo dos anos 70 foram
movidos pela utopia radical segundo a qual seria possível mudar
qualitativamente as relações entre as mulheres e entre os sexos no imediato,
desde que assumisse a luta contra as atitudes autoritárias e as práticas
opressoras em todas as instâncias da vida privada e pública, sem o que,
inclusive, não se poderia conceber nenhuma revolução de ordem social. 7

Nesse ínterim, as feministas radicais não estreitam relações com o Estado


para promover um diálogo e nem se inserem no aparato de governo, pois entendem que
o lugar de luta se encontra na sociedade civil e na autonomia do movimento em relação
às instituições de poder.

6
Sobre dominação utilizo o conceito de Apfelbaum (2009): “Toda a relação de dominação, entre dois
grupos ou duas classes de indivíduos, impõe limites, sujeição e servidão àquele(a) que se submete. Ela
introduz uma dissimetria estrutural que é, simultaneamente, o efeito e o alicerce da dominação: um se
apresenta como representante da totalidade e o único depositário de valores e normas sociais impostas
como universais porque os do outro são explicitamente designados como particulares. [...] A dissimetria
constituinte da relação de dominação aparece não somente nas práticas sociais, mas também no campo da
consciência e até nas estratégias de identidade.” Esse conceito ajuda a entender as formas cristalizadas de
opressão que as radicais apontavam como meta a serem vencidas pelas mulheres. A dominação sob essa
perspectiva não possui em si um caráter móvel para aquele que está sendo subjugado, portanto a única
forma de superação seria através da conscientização e da liberação da opressão exercida.
7
Grifos da autora.
31

Sobre essa relação com o Estado, Kantola (2010) afirma que essa postura pode
reduzir a questão do poder a uma instância do Estado, o que, após os estudos de
Foucault e sua repercussão nas humanidades, passou a ser relativizado, uma vez que o
poder não existe de forma tão centrada. Quando Foucault faz uma análise dos poderes
disseminados na sociedade presente em todas as relações, o poder de opressão do
Estado não se configura como sendo a única fonte repressora. Sobre os estudos de
Foucault e sua discussão sobre o poder, Guareschi (2005, p.486) esclarece:
Por poder, Foucault entende ‘a multiplicidade das relações de força
imanentes ao campo em que se exercitam e constitutivas da sua organização’.
A operação preliminar dessa abordagem com relação aos sistemas
tradicionais é uma inversão, ao mesmo tempo, de escala e de sentido. A
chave da compreensão do poder não deve ser buscada nos planos da
Soberania, da Lei, da Autoridade, mas no nível molecular de uma
‘microfísica do poder’, atenta à pluralidade de relações que regem e
percorrem todas as relações caracterizadas por alguma forma de assimetria.
[...] O poder não possui nenhuma substancialidade, não é uma entidade
acumulável e capitalizável, ele só existe ‘em ato’, na passagem do seu
exercício concreto para o ato.

Aliado a esse problema, outro ponto de discussão é a posição na qual a opressão


das mulheres pelo poder do Estado não engloba as diferenças que existem entre essas
mesmas mulheres. A opressão exercida sobre as mulheres negras é diferente daquela
exercida sobre mulheres brancas, e, por isso a plataforma de ação não pode ser a
mesma.
A terceira vertente encontrada no CMB, e com forte repercussão entre as
mulheres que o compunham, é a marxista, que tem em seus fundamentos a revolução do
sistema capitalista, por conseguinte, das estruturas sociais que ao se modificarem
tirariam o véu opressor das mulheres. Sobre marxismo feminista, Goldberg (1987,
pp.116-117) afirma
O pensamento marxista clássico localiza a origem da opressão feminina no
sistema capitalista de produção. Engels considerava que a emancipação das
mulheres dependia do seu acesso ao trabalho assalariado, da sua participação
na força de trabalho e conseqüente adesão à luta pelo socialismo conduzida
pelo proletariado contra a exploração, pela instauração de um sistema social
que liberaria homens e mulheres.

Importante considerar que nessa vertente, a valorização do trabalho feminino se


encontra com uma das formas de liberação da opressão exercida sobre as mulheres, o
que não configuraria como simples coincidência no CMB o fato de muitos trabalhos
estarem voltados para essa área.
Analisando o capitalismo de Estado, Kantola (2010) identifica nessa tendência
uma luta contra o Estado na forma como executa as suas políticas, tendo como princípio
32

a família e o bem-estar mantendo as desigualdades sociais através desse modelo. A luta


pelo trabalho feminino seria uma forma de desmantelar o modelo do Estado de bem-
estar social em que a mulher é a responsável pela casa e pela criação dos filhos,
enquanto o homem seria o provedor.
A autora ainda acrescenta que a luta das feministas socialistas misturaria um
pouco do enredo marxista com idéias radicais, que colocariam o Estado como fonte de
opressão, ou seja, considerava o patriarcalismo, mas que pouco diferiam das marxistas
pelo fato de a luta se concentrar com demasiada ênfase nos aspectos econômicos.
Sobre as feministas marxistas, que Goldberg (1987) denomina como marxistas
ortodoxas, a crítica muitas vezes recai sobre a forma pouco focada de tratar os
problemas das mulheres. Se as atenções se voltam para a questão do trabalho e a luta
das mulheres em si não é levada ao centro, as marxistas primam pela luta das
desigualdades sociais como um todo, não tendo como maior bandeira as mulheres e
suas especificidades.
Havia muita influência marxista no CMB e no contexto histórico pelo qual
estavam passando as feministas brasileiras. Se muitas das mulheres do CMB estavam
ligadas às organizações de esquerda e essas organizações tinham como frente o
pensamento marxista, a busca pelas questões das mulheres era considerada menor diante
do cenário que enfrentavam, e, entrando de acordo com as ideias proferidas nos
partidos, a luta pela melhoria deveria ser pela revolução e pela não exploração, ou seja,
pelo fim da luta de classes.
A partir dessas questões, as ideias das radicais de trazerem as discussões acerca
do aborto, da sexualidade das mulheres e da violência, seriam em muito contrastante
com os ideais de trabalho e mudança social e econômica da corrente marxista. Esse
embate de idéias que permeou no CMB levou à criação de grupos feministas como o
Coletivo de Mulheres do Rio de Janeiro e o Grupo Ceres, que reuniam feministas
alinhadas com a perspectiva radical.
A experiência brasileira não poderia se comparar com as experiências norte-
americana e francesa. O Estado de bem-estar social era realidade longe da conjuntura
econômica e política. Ao denunciar o patriarcado, as feministas estavam denunciando,
ao mesmo tempo, a reprodução de um modelo de bem-estar da família, no qual as
mulheres seriam identificadas com a esfera privada. Nesse ínterim, a importância que se
dá nessa corrente a trazer assuntos da esfera privada para a política, como a criação de
políticas públicas que promovam os direitos das mulheres, deveria estar situada em um
33

outro contexto de democracia que favorecesse que essas políticas pudessem ser criadas.
Nesse caso, ainda se encontrava um sistema ditatorial violento, sem chances para
negociação e pressão da sociedade civil.
Ainda nas críticas, apesar de as marxistas vincularem seus ativismos feministas à
militância na esquerda, o pano de fundo dessa discussão era a situação econômica do
Brasil, que não dava quaisquer sinais de distribuição de renda e melhorias para a
população. Aliado a isso, o regime de ditadura massacrava os movimentos sociais, o
que impedia por completo o desenvolvimento de pressões para que as mulheres
pudessem ter acesso a melhor qualidade de vida.
Dessa maneira, o feminismo brasileiro de segunda onda, em especial no Rio de
Janeiro, passava por impasses ideológicos que traduziam em muito o contexto histórico
e, além disso, enfrentava a dura realidade política e econômica da população brasileira.
Ao passo que as discussões acerca das mulheres especificamente traziam à tona a
denúncia sobre problemas graves – dentre eles, particularmente, a violência, o aborto e
o acesso a contracepção – , o olhar sobre o processo como um todo trazia também os
problemas sociais e econômicos que tanto caracterizaram esse momento. Esses
impasses aos poucos vão mudando de acordo com a abertura do processo democrático
brasileiro, que imprimia, sobretudo, um novo posicionamento em relação às ações
feministas e sobre a forma de ativismo.
34

1.2 Redemocratizando as Discussões

Os anos da década de 1970 foram conturbados no Brasil. Com a posse do


presidente militar Ernesto Geisel (1974-1978), vinha o discurso de abertura política
capitaneada pelo governo. As tentativas na época do governo de abrir a política foram: a
demissão do comandante do II Exército, general Ernesto d’Ávila, bem como o inquérito
sobre as mortes de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho - o que significava um
pequeno avanço na repressão política - ; a anistia dos exilados políticos - algo bastante
criticado pelos generais da linha dura - ; revogação do AI-5 e o fim da censura prévia.
O período que vai do final da década de 1970 com a decisão da distensão
política abre caminho para os grupos sociais na época ganharem visibilidade permitindo
espaços antes não imaginados para a reivindicação de suas frentes. Ao analisar o
processo de redemocratização Maria Paula Araújo (2007) elenca os atores políticos que
se formaram nesse período mapeando as forças que estavam atuando para que o
processo de abertura política ganhasse corpo e tivesse a marca da participação popular.
Os novos atores políticos, como a própria autora faz menção, são novos por se
configurarem diante do cenário de repressão em que o Brasil estava passando, são eles:
o MDB, o movimento estudantil, a Igreja Católica, a imprensa alternativa, as
associações de moradores, as associações de profissionais liberais e o movimento de
minorias políticas.
Segundo a autora o MDB (Movimento Democrático do Brasil) se tornou uma
frente importante de atuação para a redemocratização, pois a aproximação da esquerda
no chamado “grupo dos autênticos” ganhava cada vez mais a cena no cenário político
35

brasileiro desde 1974. Nomes importantes da política como Lysâneas Maciel do Rio de
Janeiro e Ulysses Guimarães, bem como Tancredo Neves, Franco Montoro e Mário
Covas participavam do MDB e pela destacada ação desses nomes, pode ser considerado
um ator político de peso que integra a conjuntura de efervescência democrática da
época. Franco Montoro quando governador de São Paulo em 1982 tem extrema
relevância para o debate das mulheres na época, pois em seu governo, dentre outras
ações, mantinha um diálogo com as feministas paulistas e foi o primeiro governador a
implementar no Brasil uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher em 1985.
O MDB foi o partido de oposição durante a ditadura e reunia diversas tendências
no seu interior, o que muitas vezes era também considerado por demais inconsistente
para atuar como uma esquerda ativa no período. A atuação do “grupo dos autênticos”
vinha exatamente de encontro a esse sentimento de insegurança daqueles que
partilhavam os ideais da esquerda. A esperança da esquerda por elegerem candidaturas
fazia com que militantes como do Partido Comunista atuassem no MDB para conquistar
a cena do processo democrático e tentar implementar mudanças a partir dos cargos de
representativos.
O movimento estudantil, citado por Maria Paula Araújo (2007) como um
segundo ator político na época, teve atuação destacada para o projeto democrático
brasileiro. As manifestações nas quais denunciavam as mortes e torturas dos presos
políticos, bem como a volta dos diretórios acadêmicos e da UNE como campos de luta,
imprimiram uma nova frente de atuação antes clandestina em organizações de esquerda
algumas de luta armada. Os estudantes se organizaram, principalmente, na Bahia, no
Rio de Janeiro e em São Paulo, para protestar contra os abusos da ditadura militar e suas
manifestações tiveram bastante ressonância e apoio da população em geral e do MDB
(ARAÚJO, M. 2007).
O movimento estudantil ganhou força também no momento das Diretas-Já em
1984 quando houve a famosa votação no Congresso da emenda Dante de Oliveira para
as eleições presidenciais. A atuação desses grupos, aqui brevemente citada, teve seu
início nos anos sessenta nos movimentos contestatórios que marcaram o cenário
mundial. O AI-5 foi um perverso instrumento do Estado brasileiro contra esse e outros
movimentos que denunciavam as disparidades desse regime. Muitos (as) estudantes que
seguiam os ideais da esquerda no momento da ditadura foram para as organizações de
36

luta armada ou para organizações de esquerda e na lista de mortos (as) e desaparecidos


(as) da ditadura estão os nomes de vários deles (as)8.
A Igreja Católica elencada por Maria Paula Araújo (2007, p.339) como um
terceiro ator no cenário da redemocratização teve sua atuação importante ao não apoiar
as ações militares contra civis na época, segundo a própria autora:
Uma parte da Igreja Católica, portanto, alinhou-se com as forças de oposição
na luta contra a ditadura. A partir dessa experiência prática nascerá mais tarde
toda uma reflexão que se incorporaria ao processo de elaboração da chamada
Teologia da Libertação, sistematizada no Brasil, entre outros, por Leonardo
Boff e Frei Betto, como conseqüência direta da atuação social da Igreja no
Brasil ao longo da década de 1970.

A Igreja que em muitas situações se coloca em posição contrária à luta das


feministas, durante a ditadura manteve certa concordância ao denunciar a ação de
empresas privadas, como a Bemfam no Brasil no controle da natalidade. Por diferentes
razões a Igreja e as feministas discordaram do controle da natalidade e da falta de uma
posição assumida do governo em relação ao assunto. No entanto, esse estreitamento de
opiniões não se deu somente ao plano das denúncias contra as posturas anti-natalistas
como Alves (2006, p.28) complementa:
as questões da sexualidade e da reprodução passaram ao primeiro plano na
luta da segunda onda do feminismo que teve lugar em todo mundo durante a
chamada ‘revolução sexual’ dos anos de 1960. Mas o movimento feminista
brasileiro encontrou um grande obstáculo que foi a falta de opções devido às
restrições à liberdade de expressão e manifestação impostas pela ditadura
militar. [...] Assim, as mulheres se engajaram na luta pelas liberdades
democráticas, pela anistia e contra a carestia. Na luta política contra a
ditadura, o movimento feminista se aliou com setores da Igreja Católica e as
reivindicações ligadas à reprodução e à liberdade sexual ficaram subsumidas
na luta política mais geral.

O que se percebe a partir dessa análise de Alves (2006) é a aliança de setores


contrários à ditadura para a deposição da mesma. Isso nos remete a pouca circulação
dentro do próprio CMB dos assuntos ligados à esfera reprodutiva, bem como das
liberdades sexuais. Nesse ínterim, a pouca ventilação das idéias das radicais feministas
no Rio de Janeiro no CMB, se dá no momento repressivo ao qual os movimentos sociais
estavam passando e a união que eles deveriam fazer para um inimigo comum.
Alinhar forças diferentes, como a esquerda política, a Igreja Católica e o
feminismo, bem como outros movimentos, diluía a luta por liberdades sexuais por
considerarem esse tema de menor importância frente ao cenário da época, uma luta por

8
Sobre a lista de mortos(as) e desaparecidos(as) pertencentes a organizações da esquerda, do movimento
estudantil e de outras organizações contrárias a ditadura militar brasileira(1964-1985):
http://www.torturanuncamais-rj.org.br/
37

demais específica dentro de um universo de complexidades que o cenário apresentava.


A conjuntura histórica brasileira desse período era complicada, pois além da situação
política extremamente marcada pelos abusos dos governos militares, a população sofria
ainda com a instabilidade econômica que aumentava cada vez mais a concentração de
renda no Brasil. Em contrapartida, o peso político de certas opiniões em detrimento de
outras no momento, é que levava a esse julgamento de subsumir os problemas do
cotidiano das mulheres denunciados, principalmente, pelas radicais.
Segundo Maria Paula Araújo (2007, p.339) um quarto ator político na época da
ditadura a influenciar a redemocratização foi a imprensa alternativa que
Eram jornais de formato tablóide ou minitablóide, muitas vezes de tiragem
irregular, alguns vendidos em bancas, outros de circulação restrita e, sempre,
de oposição. Eram jornais políticos, outras vezes de crítica comportamental,
com charges e caricaturas. [...] Entre os mais importantes: estavam Pasquim,
Opinião, Movimento, Em Tempo, O Companheiro, Versus. Havia também
jornais feministas, como Brasil Mulher, Nós Mulheres e Mulherio; jornais do
movimento negro, como Sinba, Tição, Coisa de Crioulo, e jornais ligados ao
movimento gay, como O Lampião.

Sobre os jornais feitos pelas feministas que circulavam na época merecem


destaque os jornais Brasil Mulher e o Nós Mulheres, ambos de São Paulo que
divulgavam as notícias do movimento, bem como suas idéias. As características desses
jornais eram de pouca divulgação no meio social, por serem clandestinos, quase
artesanais, e serem distribuídos durante a militância do movimento feminista. O Brasil
Mulher foi editado no período entre 1975 a 1980 em 16 números oficiais, pois contam
mais quatro considerados “extras” e foi confeccionado pela Sociedade Brasil Mulher, o
Nós Mulheres foi editado em 8 números entre 1976 e 1978 e distribuído pela
Associação de Mulheres (LEITE, 2003).
O Brasil Mulher resumia seus temas na luta da emancipação feminina de uma
forma militante. Isso decorre das influências da Sociedade Brasil Mulher, feministas da
esquerda política na sua maioria participantes do Partido Comunista. Já o Nós Mulheres,
da Associação de Mulheres, era composto por feministas que voltaram ao Brasil depois
de 1976 e vinham com uma outra imagem de ativismo feminista desassociada da visão
marxista. O Nós Mulheres reivindicava a autonomia do movimento, tentando chegar às
suas leitoras discutindo problemas enfrentados no cotidiano. Segundo Leite (2003), os
temas mais tratados nos dois jornais eram eleições, movimento pela anistia, direitos da
mulher no campo da reprodução, violência doméstica, creches, direitos trabalhistas,
entre outros.
38

O Mulherio foi criado em 1981 e seu último número foi publicado em 1988 e,
segundo Pinto (2003, p.86),
O jornal foi a mais importante publicação feminista da década, sendo leitura
obrigatória para todas as feministas brasileiras. Com uma comissão editorial
formada por destacadas feministas paulistas, o jornal ficou sediado na
fundação [Fundação Carlos Chagas] até 1983, tendo sido publicados 15
números.

O Mulherio desde a sua criação em 1981 conta com 38 números que vão até o
ano de 1988. Os assuntos eram sobre o cotidiano das mulheres em geral e assim como
outros jornais confeccionados pelas feministas, tinha como objetivo as idéias do
movimento e oferecer uma leitura na qual as mulheres pudessem se identificar.
Os jornais da imprensa alternativa divulgavam as idéias sob a ótica mais
próxima da esquerda e contestavam a ditadura militar. Eram jornais para um público
que buscava uma imprensa que contestasse as disparidades da ditadura militar e que
oferecessem atributos para uma leitura mais reflexiva acerca dos problemas políticos e
sociais da época.
A televisão no final da ditadura foi também para o feminismo, um canal de
discussão sobre a condição das mulheres com o seriado Malu Mulher, o qual tinha um
apoio para o roteiro de algumas feministas e retratava nos seus temas as experiências de
muitas ativistas na época. Sobre o seriado Malu Mulher Tabak (2002, p.55) analisa
É fato conhecido a repercussão que teve, não só no Brasil, mas em muitos
outros países (inclusive europeus), a série denominada Malu Mulher, que
apresentou uma nova imagem de mulher, graduada (socióloga), desquitada e
mãe de uma filha adolescente, e a maneira adulta, moderna e independente
com que ela enfrentou os problemas surgidos, após a separação do marido.

O Malu Mulher (1979-1980) foi protagonizado pela atriz Regina Duarte e trazia
à tona em sua problemática da separação e todos os temas envolvidos na trama, um
pouco da discussões feministas sobre a vida privada, os problemas que as mulheres
enfrentavam nas relações com os homens, enfim, foi muito importante para contribuir
para a difusão de todo um debate feminista. Outros programas voltados para as
mulheres também foram exibidos na época como o TV Mulher, que discutia temas da
esfera feminina com especialistas e o seriado Delegacia de Mulheres na década de 1990
que tratava o tema da violência contra a mulher.
O quinto ator político elencado por Maria Paula Araújo (2007) é a associação de
moradores, que segundo a autora tinha bastante destaque no cenário nacional,
mobilizando bairros e comunidades a reivindicarem seus direitos. A questão da moradia
39

popular se tornou um problema durante a ditadura militar pela instabilidade econômica


que elevava a inflação a níveis absurdos e pela dificuldade de pagamento daqueles que
estavam comprometidos com os financiamentos. A moradia, bem como a melhoria dos
bairros pela preservação da natureza, como aconteceu na zona sul do Rio de Janeiro,
foram temas que mobilizaram muitos moradores a reivindicarem seus direitos mesmo
num contexto de ditadura. Sobre a questão da moradia Tabak (2002, p.61) complementa
Na realidade, ao longo dos 20 anos de regime militar, o BNH [Banco
Nacional de Habitação] transformou-se em verdadeiro pesadelo para seus
‘mutuários’, isto é, aqueles que compraram uma casa ou apartamento, de
acordo com os planos de financiamento impostos pelo Banco e que
envolviam juros muito elevados, além de uma correção monetária que, nas
condições de uma inflação galopante (acima de 200% ao ano em 1983/1984),
tornou-se impossível o pagamento das prestações mensais para aqueles que
perderam o emprego como resultado da recessão econômica, a partir de 1980,
ou viram seu poder aquisitivo diminuir cada vez mais.

Nessas associações a presença das mulheres era muito forte e muitas foram
aquelas que se colocaram a frente para a tomada de decisões em relação às
reivindicações. Em destaque também, na época, foram as associações das favelas que se
mobilizavam bastante em relação às remoções de populações pobres e à concessão do
direito à moradia em locais já ocupados.
O clima de redemocratização era constante com as atuações dos movimentos
populares que incluíam diversos setores políticos e sociais. Os profissionais liberais
tidos como um sexto ator político na análise de Maria Paula Araújo (2007), tiveram
importante atuação na denúncia de irregularidades do regime militar, bem como na
proposição de novos caminhos democráticos a partir de suas carreiras. Dentre as
associações desses profissionais, as que tiveram bastante destaque foram: a Ordem dos
Advogados no Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o Instituto dos
Arquitetos do Brasil (IAB), os Sindicatos dos Professores, os Sindicatos dos Médicos
(ARAÚJO, M. 2007).
Para o presente estudo, a atuação dos médicos teve bastante importância devido
ao movimento da Reforma Sanitária, que denunciava a falta de políticas que atendessem
a população de uma forma eficiente, com recursos necessários para uma um
atendimento de qualidade e que assistisse a todos. A partir das idéias da Reforma
Sanitária que o Sistema Único de Saúde foi instituído em 1988 na Constituição Federal
com uma proposta de atender a todos (as) cidadãos (ãs), que possuíam ou não carteira
assinada, comprometendo o Estado em fornecer como direito a saúde para todos. Isso
incluía oferecer políticas de saúde que demandassem a participação popular na gestão
40

de saúde local, bem como abrir mão de uma medicina curativa para preventiva, com
vias de atender os problemas de saúde de forma integral visando o bem-estar dos seus
pacientes. As denúncias de sucateamento da saúde feitas pela Reforma Sanitária eram
também um reflexo de como os serviços públicos eram geridos durante a ditadura
militar, ou seja, com poucos recursos e muito pouca atenção às demandas de benefícios
à população.
Os movimentos das minorias políticas fecham o quadro de atores políticos do
final da ditadura da análise feita por Maria Paula Araújo (2007). A autora comenta
sobre a atuação de três importantes movimentos: o movimento feminista, o movimento
negro e o movimento gay. Sobre esses três diferentes movimentos, com diferentes
tendências entre si, a autora coloca como importante a divulgação de idéias através de
jornais e das denúncias feitas a partir desses grupos para alarmar a situação de
discriminação e opressão que atravessava cada segmento.
Levando-se em consideração a atuação relevante de cada grupo para a
divulgação das vozes democráticas no final da ditadura e para além desse momento,
prefiro me reservar ao uso do termo minorias, por não considerá-lo apropriado quando
relacionado a mulheres, negros, gays e lésbicas na sociedade. Pelo presente estudo
contemplar a atuação dos grupos feministas, no momento, destacarei brevemente a
atuação do movimento negro e dos movimentos gay e lésbico.
O movimento negro, considerado por Alberti e Pereira (2007) por movimento
negro contemporâneo aquele que surge em 1970 tem desde de seu início uma história de
lutas para colocar a público o racismo no Brasil. Os autores mostram que o mito da
democracia racial construído pela obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, no
Brasil, fez com que se acreditasse que as diferenças históricas enfrentadas por negros
(as) e brancos (as) fossem encobertas pela questão da miscigenação.
Tirar esse véu de opressão sobre atitudes que não são publicamente assumidas
como racistas foi a bandeira dos grupos negros que se formaram nesse período. Foram
criados muitos grupos por todo Brasil que a partir da criação, em 1978, do Movimento
Negro Unificado (MNU) em São Paulo, ganharam força para colocar a público suas
reivindicações. Sobre a criação do MNU os autores analisam
O ano de 1978 é um marco no movimento negro contemporâneo; no dia 7 de
julho, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, foi realizado um ato
público em protesto contra a morte de um operário negro em uma delegacia
de São Paulo e contra a expulsão de quatro atletas negros de um clube
paulista. O ato acabou resultando na formação, no mesmo ano, do
Movimento Negro Unificado (MNU), entidade que existe até hoje e cuja
41

formação parece ter sido responsável pela difusão da noção de ‘movimento


negro’ com designação genérica para diversas entidades e ações a partir
daquele momento (ALBERTI; PEREIRA, p.642).

Em linhas gerais, os grupos negros a partir desse momento faziam um trabalho


de reconhecimento da negritude, uma atitude de conscientização da história na qual
faziam parte e também do ambiente que os oprimia. O segundo trabalho era denunciar
esse ambiente opressor valorizando a presença do negro na sociedade brasileira. Assim
como os movimentos sociais da época, publicavam jornais e boletins alguns para a
divulgação das suas idéias e denúncias de atos de racismo. Os grupos do Rio de Janeiro
citados por Alberti e Pereira (2007) são: a Sociedade Intercâmbio Brasil-África (Sinba)
(1974); o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) (1975); o Grupo André
Rebouças (1975), em Niterói; e o Centro de Estudos Brasil-África (Ceba) (1975) em
São Gonçalo.
Os grupos negros brasileiros tinham influência das suas idéias em geral
provindas do movimento negro nos Estados Unidos que na época tinham bastante
repercussão no mundo. A música negra 9 e a valorização do negro no Black Power,
foram importantes atributos para grupos negros brasileiros que estavam pensando um
racismo aqui bem diferente dos Estados Unidos, mas com características semelhantes
quanto ao trabalho de conscientização. Outro ponto relevante na ebulição de idéias do
movimento negro brasileiro é a independência dos países africanos em relação aos
países europeus durante as décadas de 60 e 70. Na época do Brasil Colônia muitos
negros africanos escravizados vinham desses países que estavam lutando pela
independência no século XX como Angola e Moçambique que obtiveram em 1975 a
independência através de uma luta sangrenta.
Sobre o movimento negro uma personagem que merece destaque que aliou às
reivindicações contra o racismo com as lutas das mulheres foi Lélia Gonzales. Assim
como as organizações de esquerda durante a ditadura que não reconheciam como central
a presença das mulheres na coordenação das ações, o movimento negro de alguma
maneira seguiu esse viés valorizando a discriminação entre negros e brancos
diminuindo a luta pelas questões das mulheres. Lélia Gonzales, assim como outras
mulheres negras ativistas que participaram do MNU viram suas plataformas femininas

9
Sobre música negra e difusão de idéias no século XX da valorização do negro: GILROY, Paul. O
Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Universidade Cândido Mendes, Centro de
Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, 2001.
42

diminuídas por questões de gênero dentro do movimento e decidiram criar seus próprios
mecanismos de luta para tratar desses assuntos, como analisa Barreto (2007, p.460)
Lélia e outras mulheres negras decidem criar uma organização
exclusivamente de mulheres negras voltadas para as suas questões
específicas. Em 16 de junho de 1983, na Associação do Morro dos Cabritos
[Rio de Janeiro], fundou em conjunto com outras mulheres, o Nzinga –
Coletivo de Mulheres Negras, nele permanecendo até 1985. O coletivo
estruturava-se num trabalho político baseado nos campos de atuação das
militantes, as quais eram ligadas às associações de moradores, um
movimento com muita expressão na época.

A atuação de Lélia Gonzales para atentar ao fato da discriminação sofrida pelas


mulheres negras em muitos pontos batia de frente com os outros grupos feministas no
Rio de Janeiro, denunciando uma falta que as feministas brancas tinham com essa luta.
Como explicita Barreto (2007,p.461)
De acordo com Lélia, as análises feministas sobre as desigualdades não
apontavam para a dimensão racial das mesmas, por ainda estarem presas ao
mito da democracia racial e à ideologia do branqueamento. [...] Sem dúvida,
o tema mais polêmico levantado por Lélia no movimento feminista foi a
afirmação de que a emancipação econômica e social das mulheres brancas
fora feita à custa da exploração das mulheres negras, como domésticas.

A atuação de Lélia e das mulheres negras foi de muita importância no período


da redemocratização não só denunciando o racismo que estava velado tanto na direita
quanto na esquerda, mas também em outros pontos, como na questão da saúde. O
sistema de saúde que contemplava a população pobre, bem como muitas mulheres
negras, era excludente por ser de difícil acesso e de pouca qualidade no atendimento das
suas usuárias. A denúncia da realização de esterilizações em mulheres negras como
forma de controle da natalidade e como uma prática de racismo foi também uma
bandeira levantada pelo movimento negro de mulheres.
O movimento de homossexuais no Brasil também teve intensa participação nos
debates democráticos do final da década de 1970. Os interesses desse grupo ainda muito
difusos, composto por intelectuais do Rio de Janeiro e São Paulo, gays e lésbicas,
propagavam através de suas idéias sobre sexualidade uma nova voz nesse cenário
democrático. Como analisa Green (2000, p.274) a afirmação pública do grupo
organizado se deu em 1979 em um acalorado debate na Universidade de São Paulo:
O nome final – Somos: Grupo de Afirmação Homossexual – foi o meio
termo que o grupo adotou e estreou durante um debate em 6 de fevereiro de
1979, no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. O
debate foi parte de uma série de discussões sobre o tema de organização das
“minorias” brasileiras – em referência às mulheres, os negros, os povos
indígenas, e os homossexuais – e acabou sendo também o evento em que o
movimento de gays e lésbicas do Brasil “se assumiu” [...] a discussão que se
seguiu foi eletrizante, com troca de farpas e acusações dos estudantes de
43

esquerda e os representantes homossexuais. Pela primeira vez lésbicas


falavam abertamente sobre a discriminação que encontravam. Estudantes
gays falavam que a esquerda era homofóbica.

Os embates com a esquerda, assim como no feminismo em muito se dava pelas


lutas particulares que gays e lésbicas consideravam importante para emplacarem os
movimentos. Green (2000) pontua nesse estudo, que a esquerda temia fissuras na luta
maior contra a ditadura e que as questões específicas não seriam interessantes naquele
momento. Assim, o movimento de alguma maneira ganha ares novos a partir da década
de 1980 quando acontecem os encontros dos grupos homossexuais no Brasil e que
desponta, portanto, a luta pelos direitos dos homossexuais desse momento em diante.
Os grupos homossexuais decorrentes da década de 1970 tinham algumas
características em relação a seus participantes. Lésbicas e gays estariam juntos nessa
luta, no início, buscando a igualdade como ideal máximo do movimento. Havia uma
aproximação com o feminismo contra o machismo, segundo Fry e MacRae (1985), com
intenção de anular os paradigmas de dominador/dominado buscando ao máximo que os
estereótipos sociais atribuídos ao feminino e masculino fossem quebrados e não
reproduzidos no meio homossexual. Essa pretensa união em relação a lésbicas e gays é
quebrada na década de 1980, com o surgimento do Grupo de Ação Lésbico-Feminista
em São Paulo, que dissidente do grupo SOMOS, pautava a discussão sobre as lésbicas
sem os preconceitos dos colegas homossexuais sobre seus comportamentos. Ainda que
a luta contra os paradigmas do machismo fosse presente em cada grupo, os estereótipos
em cima das lésbicas com a utilização de termos pejorativos, não conseguia
desestabilizar esse sistema de pensamento. Segundo Fry e MacRae (1985, p.28),
Deste contato, resultou uma aguçada sensibilidade das sutilezas do machismo
até enxergarem a sua presença mesmo no movimento homossexual.
Começava a ficar evidente para elas que, mesmo entre os militantes
homossexuais, apesar da ideologia da igualdade, eram os homens que
dominavam as discussões e as tomadas de decisão. Além disso, elas
reclamavam da misoginia pouco disfarçada nas brincadeiras e nas formas de
tratamento usadas pelo homem. Especialmente irritante para elas era o uso
freqüente do termo “racha” para designar qualquer mulher e a mania dos
homens de tratarem uns aos outros como se fossem eles próprios mulheres .

Não somente com os gays as lésbicas reivindicavam espaço. A busca por


reconhecimento de demandas específicas também assumiam situação de desconforto
com as feministas heterossexuais. Fry e MacRae (1985, p.102) analisam que as lésbicas
traziam essa sensação de desconforto com as feministas heterossexuais pelos
44

preconceitos sociais que sofriam ao tentarem se afirmar como lésbicas e feministas na


sociedade brasileira.
Nos primeiros anos de existência da gigantesca organização feminista
“moderada” americana NOW, a própria fundadora e então presidenta da
organização, Betty Friedan, se colocou fortemente contra um posicionamento
favorável ao lesbianismo por parte daquela entidade. Sua atuação oportunista,
para não dizer preconceituosa, foi justificada sob a alegação de que era
necessário preservar a imagem das feministas.

Com a conhecida influência que as feministas norte-americanas tinham em


relação aos grupos feministas no Brasil, era de se esperar que essa atitude repercutisse
aqui também de forma a subsumir a luta das lésbicas num contexto geral feminista,
pautado pela heterossexualidade. Nesse sentido, Soares e Costa (2012), apontam para a
aliança entre feminismos com outros atores sociais na redemocratização que
invisibilizavam as demandas lésbicas dentro do movimento:
Os feminismos resistiram incorporar as questões das mulheres lésbicas em
sua produção teórica e agenda política. Boa parte dos movimentos se deixou
intimidar pela pressão social da conjuntura da época que exigiu aos
feminismos o silêncio sobre lesbiandade e sua invisibilização pensando ser,
minimamente, respeitado pela esquerda brasileira, pela intelectualidade
acadêmica, pela Teologia da Libertação, pela mídia, pela sociedade, em geral,
no momento pós-ditadura no Brasil.

Mais uma vez, a aliança dos movimentos sociais limita os ativismos em torno de
demandas específicas. Em se tratando das lésbicas era claro que não poderia encontrar
nessa arena política tão disputada as idéias de botar abaixo a heterossexualidade
obrigatória, bem como a visibilidade das lésbicas como atrizes participantes da
redemocratização. Suas atuações foram restritas à prática no campo feminista, em
encontros feministas nas décadas de 1980 e 1990, nas quais poderiam expor sua
sexualidade, pois não seria um impedimento para que a convivência de solidariedade e
experiência feminina pudessem se estabelecer. As demandas das lésbicas na década de
1990 ganham maior reconhecimento dentro dos grupos feministas também com a
realização do I Seminário Nacional de Lésbicas em 1996, no Rio de Janeiro, contando
com a participação de 100 lésbicas, onde foi escolhido o dia 29 de Agosto como o Dia
Nacional da Visibilidade Lésbica (SOARES; COSTA, 2012).
A política ditatorial no final da década de 1970 mostrava sinais de desgaste não
somente através das pressões dos movimentos sociais, mas também por questões de
ordem econômica. Apesar do clima de distensão proclamada no governo do general
Geisel (1974-1979), com o Pacote de Abril lançado em 1977 - uma série de medidas
para controlar o legislativo nacional e de restrições para as eleições de senadores e de
45

governadores em 1978 - o governo anunciava que essa abertura poderia ser mais
dificilmente alcançada, além de manter a atmosfera ditatorial presente em perseguições
e prisões de militantes contra a ditadura.
Nesse momento, cresce a luta dos movimentos pela anistia, que reivindicavam a
volta dos exilados políticos, a punição de perseguidores e torturadores da ditadura
militar, bem como informações sobre mortos e desaparecidos do regime e denúncias dos
assassinos. Sobre a anistia Maria Paula Araújo (2007, p.343) destaca:
A campanha nacional pela anistia começou a ser esboçada em 1975. Dois
episódios foram marcantes: o já mencionado culto ecumênico pela morte de
Vladimir Herzog, na Praça da Sé, e, também em São Paulo, a criação do
Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), liderado por Terezinha Zerbini.
Seguindo o exemplo de São Paulo, mães, mulheres e filhas de presos,
exilados, cassados e banidos políticos organizaram em outros estados do país
Movimentos Femininos pela Anistia. Helena Greco fundou o de Minas.

Terezinha Zerbini organizou a partir de 1975 o Movimento Feminino pela


Anistia, que pedia a volta de políticos exilados e amparava suas famílias, bem como as
famílias daqueles que desapareceram nas perseguições políticas. O MFPA lançou na
imprensa alternativa o jornal Maria Quitéria que divulgava os interesses do movimento.
A campanha pela anistia política de Terezinha, apesar de se situar no ano de 1975,
marco para as feministas brasileiras com o seminário da ABI, não tinha um cunho
feminista na sua bandeira. O próprio CMB não foi criado com esse título na época pela
imagem pouco positiva que o termo feminismo oferecia para as ativistas durante a
ditadura. Sobre a relação do Movimento Feminino pela Anistia de Terezinha e seu
distanciamento quanto às causas feministas Pinto (2003, p.64) esclarece que:
o feminismo era malvisto no Brasil, pelos militares, pela esquerda, por uma
sociedade culturalmente atrasada e sexista que se expressava tanto entre os
generais de plantão como de uma esquerda intelectualizada cujo melhor
representante era justamente o jornal Pasquim, que associava a liberalização
dos costumes a uma vulgarização na forma de tratar a mulher e a um
constante deboche em relação a tudo que fosse ligado ao feminismo. Era
nesse ambiente que um movimento como o das mulheres pela anistia tinha
que buscar adeptos para a sua causa.

A campanha pela anistia seguiu caminho durante os derradeiros anos da década


de 1970, unindo forças pouco solúveis da própria esquerda contra a ditadura. Em 1978,
foi criado o Comitê Brasileiro da Anistia em São Paulo e, no mesmo ano, foi realizado
também em São Paulo o I Congresso Nacional pela Anistia. A anistia que era
reivindicada em 1978 e que tratava da punição dos assassinos e torturadores de Estado,
não era a mesma que foi sancionada pela Lei 6683, de agosto de 1979, conhecida como
a Lei da Anistia. Segundo a própria lei
46

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre


02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos
ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos
suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações
vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e
Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos
com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (BRASIL, 1979 ).

A lei da anistia não representou a luta anterior, por oferecer uma ambígua noção
de perdão àqueles que cometeram assassinatos, e muito pouco foi feito, desde então,
para apurar os crimes sangrentos da ditadura. Os arquivos da ditadura, muitos dos quais
fechados até os dias atuais, poderiam oferecer, no mínimo, uma reparação histórica
àqueles que perderam suas vidas para um regime perverso, como foi o período da
ditadura brasileira.
No entanto, a anistia foi uma grande vitória no sentido de poder trazer os
exilados (as) políticos (as), que logo se inseriram em um novo processo da
redemocratização brasileira: a volta das eleições. No caso das feministas, muitas
voltaram ao Brasil e com suas ideias e experiências bastante diferenciadas das que aqui
obtiveram, trouxeram novos ares para os feminismos brasileiros. Sobre a volta das
feministas Goldberg (1987, p.171) assinala:
O ano de 1979 foi muito importante para a vida política brasileira e também
para as feministas. A anistia permitiu o retorno ao país de muitas mulheres
que durante o exílio – seu ou de seus companheiros – haviam tomado contato
com a experiência dos movimentos de liberação europeus e que tinham se
‘convertido’ ao feminismo. Essas mulheres entraram nas associações
feministas e nos grupos de mulheres no interior dos quais o consenso político
estava há muito periclitante, contribuindo para a introdução de práticas
voltadas para a sexualidade, o aborto, a violência e trazendo elementos para
os debates sobre a relação entre feminismo e luta de classes, a autonomia, o
separatismo e o pluralismo. As reações foram imediatas as cisões
aconteceram em muitos grupos.

A volta das feministas ao Brasil significou também um momento de novos


ventos para os feminismos brasileiros. O processo de redemocratização no âmbito da
política estabelecia novas formas de organização dos grupos e nova relação com Estado.
O que ficou mais claro nas eleições subseqüentes a 1979, e com o fim do
bipartidarismo.
O ambiente de pressão crescia nas ruas, os movimentos sociais se manifestavam
em favor da democracia e a imprensa divulgava as manifestações da população. A
direita política, aliada aos militares conservadores, descontente com a falta de controle
que reivindicava cada vez mais o iminente fim de seu poderio, começou a organizar
atentados contra a população.
47

Foi assim com o carro do jornalista Hélio Fernandes, que explodiu assassinando-
o; com a carta bomba na ABI que matou a funcionária Lydia Monteiro, e com um cruel
atentado que, se fosse executado tal como planejado, seria uma mancha na história
brasileira: as bombas no Riocentro no Dia do Trabalhador, em 1981. Dentre outros
atentados e ameaças, ficou provado, com o episódio do Riocentro - no qual bombas
foram implantadas para detonarem durante a celebração, mas que acabaram explodindo
no carro de integrantes do governo militar - que havia uma forte oposição por parte da
linha dura à volta da democracia no Brasil.
A sociedade fazia muita pressão para a apuração do atentado e também para a
volta do regime democrático. Em 1979, o governo, então, anunciaria o fim do
bipartidarismo, surgindo no cenário político brasileiro novos partidos para as próximas
eleições. Segundo Carvalho (2002, p.176),
a Arena transformou-se no Partido Democrático Social (PDS), o MDB no
Partido do Movimento Democrático Brasileiro, os antigos trabalhistas do
PTB dividiram-se em dois partidos, PTB e Partido Democrático Trabalhista
(PDT), este último sob a liderança de Leonel Brizola [...] a grande novidade
no campo partidário, no entanto, foi a criação do Partido dos Trabalhadores
(PT) em 1980.

As eleições para governadores em 1982 refletiram esse momento de ascensão


dos interesses da população elegendo governadores que se aproximavam com a
esquerda política, mas a maior batalha a ser enfrentada seria em 1984, para a volta das
eleições para presidente da República, e esta foi perdida com o veto da emenda Dante
de Oliveira. As eleições presidenciais ocorreram em 1989 e representaram junto com a
Constituição de 1988, o fim de um período obscuro e triste em todos os sentidos para a
história brasileira.
Com a abertura democrática, como ficaram as formas de ativismo dos grupos
feministas brasileiros? Como atuaram na década de 1980 para que tivessem suas
demandas atendidas? O que diferenciou esse momento da conjuntura da década de
1970?
Para dar ensejo a essas perguntas, no próximo capítulo, utilizo os estudos de
Young, sobre movimentos sociais e reconhecimento na esfera pública que
proporcionarão bases reflexivas para pensar esse momento de organização das causas
feministas. Ao estudar a atuação dos movimentos sociais na esfera pública, Young traça
três formas de inclusão das demandas: o self-organization; o self-determination; e o
self-development. A definição dessas três formas me ajudará a pensar a organização dos
48

grupos feministas no período entre as décadas de 1970 e 1990, para implementar


políticas públicas relacionadas às mulheres. Dessa forma, buscarei aliar os pontos
principais ressaltados pelas feministas em relação às mulheres com a análise de Young e
pensar essa conjuntura sobre as políticas públicas relacionadas às mulheres.
49

2. D ISCUTINDO OS DEBATES

2.1 Redemocratizando: uma análise

O feminismo da década de 1970 seria diferente desse novo campo de atuação


oferecido pelo processo de redemocratização política. As eleições e o fim do
bipartidarismo representavam outras arenas de luta e participação feminista. Não se
pode deixar de mencionar, ainda na década de 1970, a luta das feministas pelas causas
das mulheres, e, como essa luta se tornou aos poucos mais incrementada pelos
mecanismos de diálogo com o Estado.
No final da década de 1970, os feminismos conseguiam maior espaço de atuação
frente à sociedade carioca, o que causou uma intensa denúncia dos abusos sofridos pelas
mulheres. Em 1976, o caso de Doca Street, que assassinou a sua namorada Ângela
Diniz e foi absolvido no seu primeiro julgamento, gerou grande repercussão em órgãos
da imprensa. Nessa época, surgiu o lema Quem ama não mata!, e as feministas saíram
pelas ruas, picharam muros e denunciaram aí uma realidade muito comum na sociedade
brasileira, a máxima de matar por amor.
Ângela Diniz tinha decidido terminar seu relacionamento com o namorado Doca
Street, no município de Cabo Frio, e foi encontrada morta a tiros por ele não ter aceitado
essa condição. O caso foi repudiado abertamente pelas feministas e, nessas discussões,
outros casos semelhantes apareceram e que não haviam sido noticiados. O problema da
violência contra a mulher estava deflagrado. A busca por solucioná-lo foi a tônica a
partir disso.
Nesse momento, percebe-se uma forte tendência do feminismo em associar-se
sem a interlocução do Estado. Essa mobilização desprovida do aparato institucional
fornecia autonomia para o movimento, o que Young (2002) denomina self-organization,
uma “auto-governação” que favorece grupos marginalizados, mas não oferece uma
capacidade de articulação maior se estivessem na alçada do Estado. O self-organization,
ou seja, a capacidade de associação dos membros de uma comunidade a formar um
grupo em que possam debater os assuntos relativos às suas demandas por
reconhecimento, é uma porta que a sociedade civil abre para que grupos marginalizados
das discussões gerais possam participar e acrescentar suas reivindicações de forma a
melhorarem o acesso a todos na sociedade.
50

Dentro dessa perspectiva, o self-organization não fornece atributos que


promovam a interlocução direta dos movimentos através de parcerias com o Estado. O
que assinalou a organização do movimento feminista naquela época.
O momento enfrentado pelas feministas era de ditadura militar e o quadro se
completava por muitas pertencerem ou acreditarem em propostas políticas baseadas nos
ideais marxistas, ou seja, as mudanças a serem impressas teriam um caráter estrutural e
não poderiam se situar apenas em uma esfera social. Dentro desse debate, como
movimento se articulava para serem atendidas as suas reivindicações?
A pressão através de atos públicos e campanhas de informação era a maneira
pela qual as feministas cobravam o Estado. As desigualdades sociais concernentes às
mulheres enraizadas profundamente na cultura brasileira são criticadas pelas feministas
de modo a oferecer uma outra visão e a conscientizar as mulheres dos seus direitos e da
sua porção ativa na sociedade, bem como cobrar esforços do Estado em proporcionar
mecanismos de atendimento às mulheres em relação aos seus direitos. A mobilização
em torno de passeatas, campanhas e associações oferece uma resposta de pressão
necessária para o desenvolvimento da democracia e comunicanilidade dos indivíduos
dentro da esfera pública.
É importante ressaltar que o lema adotado por muitas feministas na década de
1970 era o pessoal é político, o que significava deflagrar as questões da esfera privada
trazendo-as para a pública. Dessa forma, os limites sobre aquilo que poderia ser
considerado de foro íntimo e aquilo que estaria no âmbito político são muito tênues. O
que garantia o esforço por atentar para essa demanda eram as pressões dos grupos
feministas, o que os situaria na esfera pública como movimentos ativos da sociedade
civil. Para elucidar melhor o conceito de sociedade civil e sua diferença em relação à
esfera privada, utilizarei as análises de Walzer (2008, p.95):
A sociedade civil é um termo descritivo, uma construção sociológica é um
sonho liberal. O sonho é um prolongamento da teoria da associação
voluntária: ele evoca um mundo que inclui todos os grupos nos quais a
associação é livremente escolhida e não-coercitiva – e apenas esses. A
família cujos membros não são voluntários, é excluída, assim como o Estado,
que brande seu poder coercitivo sobre seus membros, embora sua
legitimidade dependa do consentimento deles (...) Os indivíduos são
motivados por interesse, convicção ou pela identidade cultural ou religiosa;
buscam a riqueza (nas sociedade e empresas), o poder político (nos partidos e
movimentos) ou a salvação (nas igrejas e congregações reunidas); ou
procuram promover algum bem específico (nos grupos de interesse ou
sindicatos), distribuir algum benefício geral (nas organizações filantrópicas e
fundações), ou prevenir algum mal (nas organizações para prevenção disso
ou daquilo) [...] Isso significa que ela abrange a política e a economia, bem
como as inúmeras atividades sociais distintas de ambas.
51

Walzer (2008), portanto argumenta que, para ser sociedade civil, o caráter
fundamental é a livre associação, e que o Estado e as associações privadas não
ofereceriam oportunidades para tal. O que possui relação com a concepção de sociedade
civil para Young, mas a autora vai além nessa definição considerando a sociedade civil
como um terceiro setor. O Estado viria em primeiro, mantendo seu aparato institucional,
a economia viria em segundo, com o mercado regulando as relações, e a sociedade civil
diria respeito à vida diária, associações voluntárias que não são reguladas pelo aparato
institucional, nem pelo mercado, apesar de seus membros transitarem por essas duas
esferas. Dentro dessa perspectiva, Young (2002) ainda pontua que, dentro da distinção
de sociedade civil, há ainda subdivisões que são atribuídas ao caráter de cada
organização. No caso do feminismo, o caráter a ser assumido, seria das associações
políticas, que tem por finalidade tratar de assuntos políticos, ligados às concepções de
justiça, e que, por isso, forneceriam instrumentos para um debate de mudança de postura
do Estado perante essas demandas.
Essas associações, segundo a própria autora, estão localizadas na esfera pública.
Esfera pública, nesse sentido, abarcaria as questões que dissessem respeito a todos (as)
os (as) cidadãos (ãs), e que todos(as) deveriam ter acesso para definirem suas
reivindicações. O maior ou menor grau de influência dentro da esfera pública dos
grupos seria definido pelo empoderamento desses grupos, e que teria como papel
também importante a atuação do Estado para a defesa de um debate que favorecesse a
igualdade de oportunidades na esfera pública. Para isso, as pressões dos grupos
considerados minoria na esfera pública demandaria um atitude de reconhecimento por
parte do Estado para que pudessem ser atendidos.
Nesse universo, pode-se pensar como as reivindicações dos grupos feministas
atuam dentro da esfera pública. Se as demandas das mulheres estiverem no âmbito da
família, ou seja, na esfera privada, suas associações não são consideradas participantes
da sociedade civil. É justamente nesse ponto que o feminismo entra para descortinar
situações agravantes no tratamento dado às mulheres. Se o problema da violência contra
a mulher, em, sua maioria ocorre no ambiente doméstico e, essa situação é considerada
de foro privado, nem o Estado e nem a sociedade civil possuem acesso para deflagrá-lo
e buscar soluções possíveis. No entanto, se o problema da violência for suscitado pela
sociedade civil, movimentos de mulheres, e se o privado se tornar público, o Estado é
pressionado para desenvolver ações que atendam essa e outras demandas do tipo. O que
52

está implicado nesse tipo de ação é a organização das mulheres na sociedade civil e a
luta por direitos que concernem a elas através da pressão no Estado para que suas
reivindicações possam ser aceitas.
Na questão da saúde, se as mulheres tiverem poder de decisão sobre seus
próprios corpos, ou seja, o controle sobre a reprodução por meio de métodos
contraceptivos, e tiverem livre escolha para exercerem sua sexualidade, se o Estado
proporciona através de mecanismos que as asseguram tanto legalmente quanto
oferecendo serviços de saúde que promovam essa escolha, deixa de ser de foro privado
para ser uma questão de direitos a decisão sobre quando e como ter filhos e como isso
afeta a condição de vida das mulheres. A mudança se encontra na aquisição desses
direitos das mulheres em poderem fazer escolhas que dizem diretamente do seu bem-
estar e que isso deveria ser assegurado pelo Estado.
As articulações em torno desses assuntos estiveram em voga nos 1980 no Brasil.
No entanto, anteriormente a esse momento, não se poderia fazê-las com tanta
mobilidade. Em se tratando de um período específico para a política brasileira, foi de
grande repercussão ter a proteção da ONU para as ações do feminismo no Brasil a partir
de 1975, ano do seminário da ABI, que abriu um espaço democrático em um regime
fechado. Embora para que essa mobilização tivesse um caráter maior de difusão, a
participação dos aparatos do Estado em respaldar o movimento seria de grande
importância. O Estado não apresentava essa possibilidade e as feministas em sua
maioria pertenciam a partidos ou organizações também marginalizados pela política,
com ideias que diferiam do sistema político e econômico da época. Dessa forma, o
feminismo, enquanto movimento social, ganha sua acepção mais autônoma que tanto
caracterizou a década de 1970, muito diferente do momento vivido nos anos de 1980.
A luta das feministas a partir desse momento seria diferente da década anterior.
Com a reforma partidária, as feministas se dividiam entre os partidos representantes da
esquerda, e, isso, trouxe à tona uma forte tendência dos feminismos nesse período: a
ligação com os partidos políticos. O momento era de muita participação e as mulheres
viram uma possibilidade de entrarem para a política, o que não seria pensado
anteriormente.
Dentro dessa perspectiva, a participação em outras instâncias provocava um
contato maior com o Estado e a mudança que isso poderia gerar na organização dos
grupos era significativa. A possibilidade de participação dos movimentos sociais, em
específico do feminista, numa esfera pública que abarque a interação entre os indivíduos
53

e grupos e que descentralize o Estado, fornece canais de comunicação que propiciam a


circularidade de ideias e maior participação na construção da democracia.
Esse processo significava para as feministas uma abertura para tratar seus
interesses de forma mais abrangente dentro da sociedade, o que propiciava uma difusão
maior de suas ideias e um alcance, em relação às mulheres, antes não obtido. Essa
participação mais efetiva no andamento das discussões da sociedade se concretizava, no
que Young (2002) denomina como self-determination, “auto-determinação” para os
movimentos sociais, ou seja, liberdade na sociedade para tomarem decisões acerca dos
conteúdos debatidos. Esse fator é fundamental no sentido de incorporar outras vozes na
construção do processo democrático. Nessa época, não somente o feminismo ganhava
esse espaço como outros movimentos sociais, a exemplo, o movimento negro. Esse
processo de abertura democrática no início da década de 1980 foi relevante para os
debates mais tarde em torno da constituinte de 1988.
No entanto, o self-determination no contexto de reivindicações próprio do
feminismo não se tornava de todo suficiente, pois para que suas reivindicações
chegassem com maior repercussão na sociedade era necessário outros artifícios no
sentido de oferecer articulação com outras áreas que não somente aquelas pertencentes à
sociedade civil. Mudanças concernentes na área da saúde e da segurança sem o apoio
do Estado seriam muito difíceis de serem realizadas. O apoio fornecido pelo Estado às
reivindicações dos movimentos sociais, incluindo-os na sua agenda política, produz o
que Young (2002) denomina de self-devolopment, “auto-desenvolvimento”, ou seja, a
capacidade do movimento se reproduzir de forma abrangente e com alcance maior de
suas demandas dentro da sociedade.
O self-devolopment para os movimentos sociais é muito necessário para alcançar
a sociedade de forma a transformar ideias enraizadas e de ganhar uma cobertura de ação
que a sociedade civil somente não fornece. O que não significa que dependa
exclusivamente dos recursos materiais do Estado, mas de transformações estruturais, de
mecanismos que promovam espaço na sociedade.
Devido às reivindicações de mudanças expressivas tanto no tocante a assuntos
relacionados à violência contra a mulher, quanto na área da saúde em se tratando da
sexualidade e do corpo das mulheres, os feminismos não poderiam ficar apartados por
muito tempo do Estado. A desenvoltura desse tipo de envolvimento em larga escala
com a sociedade não pode ser feita somente por entidades autônomas, pois se o perigo é
54

institucionalizar e engessar o movimento como um todo, a fragmentação total por si só,


não consegue o alcance necessário para que mudanças profundas possam ser realizadas.
O envolvimento das mulheres com a política a partir dos anos de 1980 nos
remete a esse tipo de situação. Se a busca por maior repercussão do movimento, bem
como a resolução dos problemas enfrentados pelas mulheres se posicionam num
contexto de abertura de um regime político, a aliança com os partidos e a construção de
órgãos que viabilizem esse projeto aos poucos se tornaram realidades que marcaram
uma nova fase dos feminismos no Rio de Janeiro e em outras partes do país.
Entretanto, não cabe aos aparatos do Estado serem meros canalizadores de
energias que envolva os dois lados da política: a sociedade e as instituições. Bem
verdade, a neutralidade do Estado não é incontestável, e as dificuldades dentro do
aparato estatal fornecidas para demandas desse tipo, se configuram também como
entraves para que as políticas públicas voltadas para os interesses das mulheres possam
ser uma realidade. A captação de recursos provindos do Estado fornece ao menos para
os movimentos sociais, uma paridade mínima na disputa de interesses dentro da
sociedade, que abre espaço para que possam dialogar sem serem marginalizados a
pretexto de uma suposta maioria de interesses.
A transformação que os feminismos brasileiros sofreram na década de 1970 a
1980 passa por esse viés da institucionalização em conformidade com o andamento do
processo de redemocratização. A autonomia conquistada anteriormente, de alguma
forma, reivindicava um espaço com regras próprias e que não se alinhava nem com a
política, nem com a economia apresentadas pelo Estado na época. À medida que as
feministas conseguiram chegar a outras instâncias e realizar duas importantes políticas
públicas, como o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (1983) e as
Delegacias Especiais de Atendimento às Mulheres (1985), bem como a criação dos
Conselhos Estaduais da Condição Feminina (1983), o caminho a seguir dependeria
também dos recursos e da participação do Estado. O que não impediu de serem criadas
outras organizações independentes, como as ONGs na década 1990 em prol dos direitos
das mulheres e a rede de atendimento às mulheres fornecida por essas ONGs até os dias
atuais.
Os acontecimentos da década de 1980 desencadearam um processo de
envolvimento cada vez maior das feministas com as instituições políticas. Um dos
marcos de entrada para as feministas na esfera do Estado foram as eleições de 1982 para
55

governadores no Rio de Janeiro. Sobre a participação feminina nas eleições, Tyrrell


(1994, p.138) comenta,
a campanha eleitoral de 1982, trouxe modificações quanto à participação da
mulher na política a qual foi bastante significativa não só no âmbito estadual
como no federal, aumentando o número de candidatas femininas, bem como
o número de eleitoras femininas. Para exemplificar citamos que em 1978
somente 87 candidatas femininas apresentaram-se para as esferas estaduais e
federais, em 1982 os partidos políticos contaram com 218 candidatas a nível
estadual e federal. Este aumento ocorreu nos Estados mais industrializados,
em consequência de uma maior conscientização.

As mulheres na sua maioria se dividiam entre o PT e o PMDB na luta pela


aquisição de cargos representativos do governo e também nas instituições políticas. A
representação atingia assim, um nível de institucionalização das feministas que, de
alguma maneira, desejavam ter suas reivindicações atendidas pelas políticas desse novo
momento democrático. Sobre representação feminina, Clara Araújo (2011, p.94)
complementa:
Certamente esse déficit histórico de acesso ao poder, reforçado por outros
tipos de obstáculos, têm impactos profundos sobre a vida das mulheres em
suas diferentes dimensões. Daí se conclui que estar presente ou se fazer
presente é, portanto, crucial para definir políticas de justiça e de equidade de
gênero, melhorar a vida e influenciar o futuro do país.

A representação feminina se torna, portanto, um canal de interlocução com o


Estado que pode ou não atrelar as idéias do movimento com as da agenda política de
governo. A discussão sobre representação inclui um debate intenso por aqueles que
estudam esse tema 10, sobre aquilo que deva ser representado e o quê está sendo
representado, dentre outros questionamentos. Para o presente estudo refiro-me apenas a
parte tocante ao diálogo que essas mulheres estabeleceram com os aparatos do Estado
dentro do contexto histórico aqui retratado. Importante salientar que a participação das
mulheres na representação pode provocar, de certa maneira, uma diferenciação na forma
como as mulheres são vistas, ou seja, para além de categorias, as mulheres se tornam
sujeitos alvos de políticas públicas e, nesse ínterim, a questão da diferença entra como
um ponto para entender as políticas públicas voltadas para as mulheres na década de
1980. Sobre a questão da diferença e afirmação dessa diferença, Clara Araújo (1999,
p.27) esclarece:
As políticas de diferença que emergem nos países ocidentais em torno de
gênero, raça, por exemplo, tendem a assumir a crítica ao indivíduo abstrato

10
Para o estudo da representação feminina no Brasil: ARAÚJO, C. M. O. Cidadania incompleta: o
impacto da lei de cotas sobre a representação política das mulheres brasileiras. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 1999.
56

do liberalismo clássico [...] a igualdade torna-se emblemática da afirmação


do ser sujeito político como sinônimo do masculino, com a consequente
invisibilidade do feminino. Superar tal distorção implicaria buscar novas
formas de afirmação desses sujeitos (mulheres), não mais na condição de
indivíduos abstratos, mas, sobretudo como coletivos configurados por um
pertencimento de gênero. Nesse sentido, a diversidade ou a diferença, e não
mais a igualdade, oferecerá uma via para pensar a inclusão das mulheres
como sujeitos políticos.

Nos anos 80 e 90 no Rio de Janeiro, as feministas buscaram a discussão na


esfera pública de suas reivindicações abrindo portas para a criação de políticas que
estivessem voltadas para as questões das mulheres e que as afirmassem como sujeitos
detentores de direitos próprios. As políticas públicas específicas em relação às mulheres
não se traduziam em colocar a mulher em um estado de privilégios em relação aos
homens, mas como seus direitos não eram atendidos pelas instituições de forma a
valorizarem sua presença, a igualdade deveria ser baseada na busca de direitos
pertinentes a elas, ou seja, na diferença em relação aos homens. Foi assim tanto na área
da saúde quanto na segurança. A afirmação dessas diferenças propiciou a abertura de
um diálogo entre movimentos sociais e Estado nas políticas públicas, que favoreceu não
somente as questões relacionadas às mulheres, mas também aos outros movimentos na
época, que reivindicavam e reivindicam até a atualidade, assim como as feministas, o
reconhecimento por parte do Estado.

Afirmação das diferenças e as políticas públicas para as mulheres

Indo mais além no debate dos direitos das mulheres, a afirmação das diferenças
pode assumir contornos que atendem ou não aqueles que buscam reconhecimento
dependendo das políticas que são implementadas. Nancy Fraser (2002) ao estudar as
políticas de afirmação das diferenças faz uma distinção e uma crítica aos autores que
pensam o reconhecimento apenas como um mote a ser buscado estabelecendo uma
relação de dualidade com a redistribuição. Sua teoria envolve três esferas que se
relacionam simultaneamente: a representação, a redistribuição e o reconhecimento. E
oferece uma visão que amplia o debate, segundo a autora, para além, do dualismo sobre
aquilo que deva ser reconhecido e a redistribuição de recursos. A crítica principal que a
autora faz é tratar o reconhecimento sem a redistribuição, o qual não estabelece uma
transformação da realidade de desigualdade social.
57

Para entender que tipo de reconhecimento a autora menciona como uma das
metas a ser buscadas em conjunto das outras, Fraser (2002, p.10) observa que esse
reconhecimento não deve ser tido como políticas de identidade, mas como modelo de
status:
a aplicação do modelo de status exige que se examinem os padrões
institucionalizados de valor cultural para verificar seus efeitos sobre a
posição relativa dos atores sociais. Sempre que tais padrões constituírem os
atores como iguais, capazes de participar em condições de igualdade com os
outros na vida social, então poderemos falar de reconhecimento recíproco e
status de igualdade.11

Ao estabelecer o modelo de status, Fraser (2002, p.13) está criticando a


constituição de padrões fechados na identidade de um grupo, e sobre status a autora
esclarece:
Status corresponde à dimensão do reconhecimento, que se refere aos efeitos
dos significados e normas institucionalizados sobre a posição relativa dos
atores sociais. Em contrapartida, classe corresponde à dimensão distributiva,
que se refere à alocação de recursos econômicos e riqueza.
Conseqüentemente, cada categoria está associada a um tipo analiticamente
distinto de injustiça. Em termos de injustiça, o status é paradigmático e o
reconhecimento inapropriado, enquanto a típica injustiça de classe é a má
distribuição – ainda que uma possa estar acompanhada da outra.

Portanto, ao delinear as duas categorias status e classe, a autora tem em sua


teoria que um não pode ser reconhecido em detrimento do outro, pois com padrões
culturais tão complexos que são formadas as nossas sociedades, há aqueles que
conseguem status, mas carecem da justiça de classe e aqueles que possuem os recursos,
mas pelos padrões injustos institucionalizados, não alcançam o reconhecimento de
status (FRASER, 2002).
A perspectiva de mudança na realidade social deve ser acompanhada pelas duas
categorias e, para isso, Fraser oferece um exemplo da distribuição de recursos para o
bem-estar social: a ‘seguridade social’. Nesse exemplo, a distribuição de recursos chega
às camadas mais pobres da população e, principalmente, às mulheres que recebem esses
recursos para cuidar dos seus filhos melhorando a condição de vida das mesmas, mas
ainda assim não consegue mudar a relação: mulheres e cuidado. Sobre redistribuição e
reconhecimento em relação às mulheres a autora analisa
A premissa subjacente é que as injustiças de distribuição baseadas em gênero
e as injustiças de reconhecimento estão de tal forma complexamente
entrelaçadas que nenhuma pode ser totalmente resolvida sem a outra. Assim,
os esforços pela redução da diferença salarial entre os gêneros não podem ser
totalmente bem-sucedidos se, continuando totalmente ‘econômicos’,
deixarem de questionar os significados de gênero que codificam as ocupações

11
Grifos da autora.
58

de trabalho [...] de modo similar, esforços para reavaliar os traços codificados


como femininos, tais como uma sensibilidade interpessoal e uma pendência
para cuidar dos outros, não terão sucesso se, continuando totalmente
‘culturais’, deixarem de questionar as condições econômicas estruturais que
vinculam esses traços com dependência e impotência (FRASER, 2002, p.26).

É significativo esse trecho, pois ajuda a refletir sobre a forma como as políticas
públicas da década de 1980 estavam sendo formuladas para pensar a condições das
mulheres. Pois, ter o reconhecimento na sociedade através de uma postura de iguais,
utilizando a categoria de status de Fraser, era de alguma maneira, serem reconhecidas
como sujeitos integrais, principalmente na área da saúde, levando-se em consideração
que as mulheres reivindicavam serem vistas não apenas como mães, mas como
mulheres num sentido mais abrangente, que devem ser atendidas de forma a terem todos
os períodos de suas vidas assistidos por um sistema de saúde que as contemplasse e
valorizassem suas demandas pessoais. Mas, ao mesmo tempo, se essa luta não
propiciasse um olhar sobre o aspecto financeiro das mulheres, principalmente as
mulheres pobres, a questão do controle da natalidade aparecia como um mecanismo, por
parte das empresas privadas que assumiam posturas anti-natalistas, de frear a quantidade
de filhos e a reservá-las a serem simples alvos de políticas de contracepção que
culpabilizavam as mesmas por serem responsáveis pela sua condição social ao terem
muitos filhos.
Utilizar as categorias de Fraser ajuda a refletir sobre a atuação dos grupos
feministas desse momento para reivindicação de políticas que afirmem a diferença entre
homens e mulheres, de maneira a contemplarem socialmente as mulheres e as ajudarem
obter um reconhecimento social. No entanto, entendo que os debates sobre
reconhecimento e justiça sociais têm muito mais profundidade do que foi exposto
aqui12, porém faço alusão somente às posições de Fraser sobre justiça, pois se
aproximam da minha análise sobre o período de criação dessas políticas.

12
Uma das críticas à Nancy Fraser que refuta a idéia de categoria dual de reconhecimento e redistribuição
se encontra no artigo: YOUNG, I. M. Categorias Desajustadas : Uma crítica à teoria dual de sistemas de
Nancy Fraser. Revista Brasileira de Ciência Política, nº2 Brasília, julho-dezembro de 2009, pp.193-214.
59

3. SAÚDE DAS MULHERES

3.1 Uma Demanda por Reconhecimento

A questão do corpo e da saúde da mulher, desvencilhados da esfera reprodutiva,


viraram uma reivindicação forte nos anos oitenta para que houvesse políticas públicas
60

que atendessem a essas demandas. A saúde das mulheres sempre foi um tema pertinente
no feminismo. O tema da saúde perpassa as tendências feministas expostas
anteriormente de maneiras diversas, embora com maior ênfase nas tendências radical e
liberal. A questão da saúde das mulheres passa pelo caminho da descoberta dos corpos
como fontes de prazer, bem-estar e realização pessoal, bem como, no direito à posse
desses corpos pelas próprias mulheres, ou seja, na tomada de decisões que envolvem
também a reprodução e a sexualidade. Recuperar a memória e a história do Programa de
Assistência Integral à Saúde da Mulher (1983) é também contar um pouco do olhar para
o corpo das mulheres sob essas perspectivas.
Nos anos de 1970, o lema Nosso corpo nos pertence,traz a idéia de direito ao
corpo pelas mulheres através da luta pela descriminalização e legalização do aborto e o
acesso a métodos contraceptivos. No plano de atendimento médico, envolvia
reivindicações por pré-natal e parto com qualidade, mudança na qualidade da relação
médico-paciente e acesso à informação sobre anatomia e procedimentos médicos
(CORREA; ALVES; JANUZZI, 2006).
A legalização do aborto, que representava a opção de escolha sobre qual
momento deveria se estabelecer a concepção, foi um tema amplamente discutido e
reivindicado pelas feministas nesse momento e até os dias atuais. A temática era uma
discussão antiga dentro dos grupos feministas que englobava não somente o direito de
escolha das mulheres, bem como a saúde das mulheres que o realizavam em clínicas
clandestinas e prejudicavam sua integridade física por não terem, muitas vezes,
condições seguras para realizarem o procedimento. O debate foi até o Congresso
Nacional com um projeto de lei feito em um encontro realizado no Copacabana Palace
no Rio de Janeiro em 1983 com feministas como Danda Prado, Maria José de Lima
entre outras, que discutia o aborto em nível nacional. A prerrogativa do aborto como
uma questão forte dos grupos feministas é a necessidade de direito dos corpos das
mulheres, afirmação desses direitos, que estaria implícita a qualidade de vida das
mulheres, bem como as escolhas que deveriam ter acesso em suas vidas tendo o suporte
do Estado para a promoção desses direitos.
As ações do movimento feminista carioca giravam em torno de encontros,
seminários, campanhas e passeatas sobre os direitos da mulher com slogans e panfletos
a favor do aborto e da autonomia das mulheres em decidirem sobre seus corpos. A luta
das feministas foi também na defesa dos direitos das mulheres que sofriam as
61

conseqüências do aborto e que deveriam ser atendidas na rede pública. Sobre esse
assunto, Rachel Soihet (2005, p.48) analisa o episódio da
revogação da Lei 832/85, de autoria da deputada Lúcia Arruda, aprovada em
novembro de 1984 pelos deputados, sancionada pelo Governador, e
regulamentada pelo Secretário de Saúde em janeiro de 1985. A referida lei,
revogada em abril de 1985, obrigava a rede pública de Saúde do Estado do
Rio de Janeiro a prestar atendimento médico à mulher nos casos de aborto
permitidos pelo Código Penal: casos de risco de vida da mulher e em casos
de gravidez resultante de estupro. Por pressão direta do Cardeal D. Eugênio
Salles, o Governador e o Secretário de Saúde voltam atrás.

A partir disso, percebe-se que a presença da Igreja Católica nos debates


referentes à saúde da mulher era muito forte 13, principalmente, na questão do aborto. O
que também se evidencia é o próprio tratamento dado ao estupro por parte das
autoridades, pois mesmo que as mulheres tivessem sofrido um ato de violência, não lhes
seria concedido a escolha de serem atendidas na rede estadual caso quisessem
interromper a gestação. Dessa forma, compreende-se que a saúde é conjunta também às
reivindicações relacionadas à violência contra as mulheres.
As questões de saúde das mulheres eram abordadas, na época, por muitas
feministas a partir de campanhas que, tanto envolviam campanhas a favor do aborto,
quanto a reivindicações em relação à contracepção. Surgiram no Brasil grupos que
atuavam nesses assuntos e que ficaram famosos pelo seu trabalho na área como, o SOS
Recife e o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, em São Paulo. Ambos discutiam
abertamente na sociedade as questões relacionadas à saúde das mulheres,
principalmente, na esfera reprodutiva. Esses e outros grupos por todo o Brasil se
organizaram com a esfera federal e formularam o Programa de Assistência Integral de
Saúde da Mulher, o PAISM, criado em 1984, para que os direitos das mulheres em
relação à saúde fossem assegurados pelo Estado. Pela primeira vez, feministas e Estado
se organizaram para elaborar uma política voltada às mulheres, estritamente, e isso,
representou uma afirmativa de vitória no reconhecimento dos direitos das mulheres.
Mas, o que garantia essa afirmativa de vitória do PAISM? Para buscar as
respostas sobre essa pergunta, é necessário um entendimento de quais os aspectos que o
PAISM representava uma inovação e avanço para a saúde das mulheres. Nesse ínterim,
explicitarei alguns pontos que estavam diretamente relacionados à criação do PAISM.

13
Continua sendo forte atualmente, no entanto, outros atores que não estavam presentes na época estão
engrossando esse debate de intervenção religiosa na esfera política. A figura polêmica do presidente da
Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados o deputado federal, e pastor evangélico,
Marco Feliciano do Partido Social Cristão, representa a entrada de evangélicos para o debate público
sobre o aborto e, principalmente, em relação aos direitos sexuais.
62

Como apontado anteriormente, o seminário da ABI em 1975, foi um marco para


o feminismo brasileiro e propiciou a discussão de temas pertinentes também à saúde das
mulheres. Nesse seminário, foram discutidos diversos aspectos sobre as mulheres, que
tinham em algumas das suas temáticas o corpo e a sexualidade. Sobre as exposições e
os debates na ABI, Goldberg(1987) lista a programação do evento e dentre outros
assuntos a saúde das mulheres foi debatida através da exposição de temas como: a
maternidade no Brasil; aspectos psico-fisiológicos do prazer feminino; problemas do
controle da natalidade; a família e os papéis sexuais.
Sobre os temas expostos, dois aspectos que merecem destaque são: a
maternidade e o controle da natalidade. Durante a ditadura militar, como já foi
especificado, as autoridades que geriam a saúde no Brasil adotavam uma postura dúbia
perante a saúde das mulheres, não assumiam publicamente o controle da natalidade pelo
Estado, mas deixava que empresas privadas pudessem se estabelecer e oferecer
mecanismos de controle através da imagem de planejamento familiar.
A falta de uma política que contemplasse a contracepção no Brasil, com vistas a
atender às demandas da população, se dava em parte pela postura natalista da ditadura
em não oferecer mecanismos de regulação da fecundidade para a população, mas ao
mesmo tempo, não dava respaldo quanto ao uso de contraceptivos aqueles que estavam
interessados. O que se tornava muito prejudicial para a população, pois sem o acesso às
práticas educativas para a utilização desses contraceptivos pouco se sabia dos efeitos
colaterais que os medicamentos poderiam trazer às mulheres, bem como qual o melhor
contraceptivo deveria ser adequado à realidade de cada usuária.
Não eram somente as mulheres que mais sofriam nesse momento com a falta de
políticas que visassem um resultado mais eficiente em relação às demandas de saúde na
época. O sistema de saúde brasileiro, de forma geral, não atendia à população na
maneira de proporcionar o cuidado e a prevenção de doenças.
Na década de 1980, o movimento da reforma sanitária dos médicos contestou de
maneira enfática o modelo de saúde adotado pelas autoridades brasileiras até então. A
saúde durante o período do “milagre econômico” – na década de 1970 - ganhou força
nos setores especializados propiciando um aumento de empresas privadas que
referendassem o cuidado de saúde especializado, em detrimento de uma saúde voltada
às necessidades preventivas da população. Esse quadro brasileiro se completava ainda
pela falta de acesso da população aos serviços de saúde oferecidos pelo governo, ou
seja, na época havia poucas unidades de saúde para atender toda população. Outros
63

fatores importantes eram: a inflação dos alimentos, pois aumentava a carestia, e o


aumento do trabalho informal dado ao período recessivo econômico dos anos 1980 que,
por conseguinte, diminuía o número de trabalhadores registrados que partilhavam do
sistema previdenciário.
Havia muita agitação de setores médicos contestando a falta de assistência do
governo em relação à saúde. As críticas se centravam na pouca atenção dada aos setores
públicos, à falta de recursos e ao sucateamento da previdência social. A recessão
econômica no início da década de 1980 mostrava sua face mais perversa em relação à
população brasileira. O fracasso do “milagre econômico” se dava, principalmente, na
pouca distribuição de renda que dificultou cada vez mais o acesso a melhores condições
de vida dos (as) brasileiros(as).
O Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) nasceu nesse
momento de crise de setores da saúde em 1983, quando decorrente das intensas
denúncias das feministas da pouca atenção dada à saúde das mulheres. Com grupos e
associações feministas por todo país que se voltavam para essa discussão, a política do
PAISM foi elaborada a fim de atender a todas as demandas das mulheres desvinculando
a imagem somente reprodutiva das ações de saúde do governo, o que correspondia aos
ideais feministas de descoberta do corpo das mulheres como fonte de prazer, bem-estar
e como direito. Para isso, a implementação de políticas públicas voltadas à saúde de
forma integral das mulheres eram importantes, pois atenderiam a saúde do corpo e das
demandas pessoais de todos os momentos da vida das mulheres. Sobre os programas de
saúde nacionais voltados para o público feminino antes do PAISM, Pedrosa (2005,
p.76) comenta
Os programas materno-infantis, atualizados nos anos de 1950 e 1970,
mantiveram a visão estreita sobre a mulher, reproduzindo a visão e
especificidade biológica, o seu papel social de reprodutora e mantenedora de
indivíduos saudáveis e, portanto, de mãe e doméstica, responsável pela
criação, pela educação e pelo cuidado com a saúde dos filhos.

Dessa forma, a atenção estava voltada quase que exclusivamente para a saúde do
nascituro e não da mulher enquanto sujeito integral, ou seja, para além da questão
reprodutiva. Outro ponto interessante nesse trecho é a ligação que se estabelece entre as
mulheres e o meio doméstico através do cuidado com crianças e adolescentes. Na
medida em que as mulheres começam ocupar a esfera pública, deixando explícitos os
interesses em debates que vão além dos assuntos relacionados à esfera privada, o
reconhecimento dos direitos das mulheres devem também contemplar esse debate na
64

esfera pública. Nesse ponto, as políticas de saúde deveriam abarcar não somente o foco
materno-infantil, como também outras fases das vidas das mulheres.
O acesso a uma política de saúde baseada em práticas educativas que
informassem às mulheres sobre a sua saúde, os métodos contraceptivos e que
possibilitassem uma tomada de decisão das próprias mulheres sobre seus corpos era
uma forma de tentar uma política que não contemplasse somente os aspectos da
reprodução e do cuidado contidos no Programa Nacional de Saúde Materno-Infantil
lançado em 1977 pelo governo brasileiro. Sobre esse programa Tyrrell (1994, p.143)
comenta que a atenção dada pelo governo para o lançamento dessa política se baseava
em perspectivas demográficas que chamavam atenção para um número grande de
brasileiros que nela se enquadravam,
Segundo esses órgãos [Ministério da Saúde e Ministério da Previdência e
Assistência Social], o perfil demográfico caracteriza uma população jovem,
com mais de 50% dois indivíduos situados em faixa etária abaixo de 20 anos,
o que caracteriza uma situação oposta à dos países ricos. Para esses órgãos,
foram as características biopsicossociais e a magnitude deste grupo altamente
vulnerável e dependente que levou o Governo brasileiro a destacar o
atendimento como prioritária a esta faixa da população.

O que reitera uma visão fechada sobre as mulheres e o lugar reservado a elas no
desenvolvimento da sociedade. Faziam parte desse grupo materno-infantil crianças,
adolescentes, gestantes, parturientes, puérperas, nutrizes e mulheres em idade fértil
(TYRRELL, 1994), deixando de lado a fase do climatério, ou seja, mulheres que estão
passando pela menopausa e as mulheres da terceira idade, colocando num mesmo
conjunto mulheres e crianças, reservando às mulheres o cuidado e atenção de crianças e
adolescentes.
Outro ponto a ser discutido nessa visão do governo era o foco dado a essas
políticas de saúde, ou seja, eram fundadas na sua maioria em dados demográficos que
no momento atentavam a uma diferença significativa de países em desenvolvimento e
países ricos. Nos países em desenvolvimento, como o Brasil, o crescimento da
população jovem era alto, índice não percebido nas economias desenvolvidas. Sobre
isso, não se deve esquecer a pressão que o Brasil recebia externamente para que se
controlasse a natalidade a gerar desenvolvimento econômico. Nesse caldeirão de
intenções e de atenções voltadas para aspectos demográficos e pouco centradas num
cuidado primário e de acesso à prevenção, foi elaborado o PAISM pelas feministas que
muito contestavam esse sistema de saúde e que atuavam em grupos por todo o país
65

reivindicando fortemente uma política que visasse aspectos integrais da clientela de


saúde, nesse caso, as mulheres. Sobre a criação do PAISM, Osis (1998, p.26) comenta:
Em 21 de junho de 1983 por ocasião de seu depoimento na Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado que investigava o crescimento
populacional, o então Ministro da Saúde Wladyr Arcoverde apresentou a
proposta de criação do PAISM [...] fora preparada por uma comissão
especialmente convocada pelo Ministério da Saúde (MS) para a redação do
Programa, em abril de 1983, e constituída por três médicos e uma socióloga:
Ana Maria Costa, da equipe do MS e fortemente identificada com o
movimento de mulheres; Maria da Graça Ohana, socióloga da Divisão
Nacional de Saúde Materno-Infantil (DINSAMI); Aníbal Faúndes e Osvaldo
Grassioto, ginecologistas e professores do Departamento de Tocoginecologia
da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) indicados pelo Dr. José
Aristodemo Pinotti.

O PAISM, enquanto política pública que visava atender às mulheres em todas as


fases de suas vidas, promovendo acesso a saúde e possibilitando através de práticas
educativas a opção de métodos para a regulação da fecundidade e abrindo espaço nos
serviços de saúde para que as mulheres pudessem ter um atendimento de qualidade, era
uma proposta que rompia com todo o processo anterior e inaugurava debates em torno
da saúde das mulheres no Brasil. Em anexo, para a apreciação do programa como um
todo está o documento, Assistência Integral à Sáude, Bases de Ação Programática
(1984).
A meta a ser alcançada era bastante inovadora e ambiciosa, pois exigiria uma
mudança por parte das autoridades governamentais em gerir a saúde de suas
localidades, bem como uma mudança por parte dos profissionais de saúde em
reconhecer esses direitos. A capacitação de profissionais e a instalação de Ações
Integradas de Saúde eram importantes instrumentos para a viabilização do PAISM em
escala nacional.
O tema da integralidade tão relevante contido no PAISM foi um aspecto que
também mobilizou os médicos participantes da reforma sanitária a construir um novo
modelo de saúde que acima de tudo visasse os (as) usuários (as) em seus aspectos
integrais, ou seja, na contramão da especialização já citada das tendências médicas dos
anos de 1980. Tarefa quase impossível é pensar a implementação do PAISM
desvinculada da reforma sanitária e implantação do SUS a partir da Constituição de
1988. Apesar de se encontrarem situados em processos diferentes, o PAISM – que em
sua elaboração contava com maciça presença das feministas – e a reforma sanitária -
que mobilizava, principalmente, profissionais de saúde ligados, na sua maioria com a
66

esquerda política contra o sucateamento da saúde no Brasil -, a integralidade era ponto


de intercessão desses dois caminhos nos anos 1980 na saúde brasileira.
A reforma sanitária foi um movimento de setores médicos que preconizava a
saúde como um direito de todos. Um dos aspectos principais do novo modelo de saúde
proposto pela reforma sanitária era a descentralização, ou seja, o sistema de saúde
deveria ser um serviço estabelecido de acordo com as demandas locais de atendimento
com participação ativa da população. A descentralização vinha em contraposição às
políticas nacionais postuladas pelo Ministério da Saúde que visavam apenas os pontos
nacionais, distantes das peculiaridades de cada região, estado ou município. Qualquer
reivindicação para um programa local deveria passar pelo Ministério da Saúde para que
fosse aprovado e financiado, gerando morosidade nas ações de saúde locais, pois havia
as prioridades do ministério a serem custeadas dando pouca atenção às essas demandas.
Um modelo de saúde autoritário que refletia o próprio contexto político, ou seja,
baseado na centralização em um momento de nenhuma participação democrática como
foi a ditadura militar brasileira.
Os princípios da reforma sanitária traduziam em muito o processo de
redemocratização que vinha passando o Brasil desde o final da década de 1970. São as
vozes desse momento que atentam para os absurdos na área da saúde gerados pela falta
de recursos e pouca atenção aos funcionários públicos alijados das políticas econômicas
que privilegiavam os setores privados. O movimento sanitário da década de 1980 teve
seu ponto alto quando da realização em 1986, da VIII Conferência Nacional de Saúde
que estabeleceu os princípios da reforma sanitária para uma mudança no sistema de
saúde brasileiro. No ano seguinte, foram eleitos os candidatos para a Constituinte e
esses princípios estiveram na pauta para a entrada no novo texto constitucional.
O PAISM, portanto, dependia desses aspectos também para a sua
implementação, já que nenhum ponto do programa podia ser considerado isoladamente.
A implantação do Sistema Único de Saúde a partir de 1988 seria um veículo para a
possível viabilização em escala nacional desse programa. A saúde como um direito de
todos (as) garantido pelo Estado foi um avanço para que a rede de saúde pudesse se
expandir de forma a possibilitar maior acesso às unidades de saúde por parte da
população.
A Constituição de 1988, também foi um capítulo a parte nas mobilizações
nacionais. Foi um momento de intensa participação popular em que as mulheres
conseguiram bastante destaque por conta, principalmente, da atuação do Conselho
67

Nacional dos Direitos da Mulher (1985-1989). A campanha do CNDM Constituinte sem


Mulher fica pela Metade mobilizou os movimentos de mulheres a fazerem suas
propostas para o texto constitucional. A Carta das Mulheres foi o documento que
englobou praticamente todas as reivindicações feministas para entrarem na
Constituição, e sobre esse documento, Pinto (2003, p.75) comenta:
A ‘Carta das mulheres’, promovida pelo CNDM, mas de autoria de um
conjunto muito amplo de mulheres chamadas a Brasília, foi o documento
mais completo e abrangente produzido na época, e possivelmente um dos
mais importantes elaborados pelo feminismo brasileiro contemporâneo [...] O
documento defendia a justiça social, a criação do Sistema Único de Saúde, o
ensino público e gratuito em todos os níveis, autonomia sindical, reforma
agrária, reforma tributária, negociação da dívida externa entre outras
propostas. Na segunda parte, o documento detalhava as demandas em relação
aos direitos da mulher no que se referia a trabalho, saúde, direitos de
propriedade, sociedade conjugal entre outros.

O assunto que ficou fora do texto final da Constituição de 1988, foi o aborto que
não conseguiu entrar no debate para a incorporação do texto, muito também por conta
de seu caráter polêmico e da já conhecida aliança entre esquerda política e Igreja. No
entanto, a ratificação dos direitos das mulheres em relação à saúde era o desejo de não
se perder a conquista amealhada pelo PAISM e pela atenção à mulher em todos os seus
aspectos. A força que essa política poderia ganhar com a implantação do SUS era
grande.
Mas, como foi implantado? No Rio de Janeiro, assim como em outros estados, a
experiência do PAISM durante a década de 1980 desde sua criação foi um tanto
decepcionante segundo os dados do estudo feito por Costa (1992) a partir da Comissão
de Cidadania e Reprodução ligada ao Ministério da Saúde. Essa Comissão criada em
1986 ficou responsável por verificar os resultados e o andamento da implantação do
PAISM no Brasil. As experiências que a autora demonstra terem maior sucesso devido à
gestão de saúde foram em São Paulo e Goiás, considerando os aspectos do programa
sendo oferecidos às mulheres de forma conjunta, ou seja, como próprio preconizado no
PAISM a idéia de implantação deveria atender a todos os aspectos da saúde das
mulheres de maneira a cobrir toda a demanda de mulheres nos serviços de saúde, bem
como as especificidades que poderiam ser apresentadas nesses atendimentos. É nesse
sentido que a pesquisa de Costa (1992) aponta como satisfatória a implementação da
PAISM, sendo não considerado como tal, aquelas que não cobrissem esses aspectos nos
atendimentos.
O órgão que respondeu ao questionário desse estudo e que se responsabilizou
por essa experiência no Rio de Janeiro foi a Secretaria Municipal de Saúde, que em
68

muitos aspectos não correspondeu aos critérios preconizados pelo programa. Nesse
estudo, a autora considerou as capitais brasileiras para a aplicação de questionários
referentes à cobertura de atendimento das mulheres nas unidades de saúde, ou seja, ao
percentual da população feminina atendida (qualquer forma de atendimento) pelas
secretarias (COSTA,1992). Das 57 capitais as quais foram distribuídos os questionários,
30 responderam se dividindo num total de 16 para secretarias estaduais e 14 para
secretarias municipais de saúde. Sobre as respostas dos questionários a autora analisa:
Tanto as secretarias municipais (44%) quanto as secretarias estaduais (42%)
oferecem entre 20 e 40% de cobertura assistencial em seus serviços.
Considerando que a população que potencialmente necessita recorrer aos
serviços públicos de saúde é em torno de 80% da população geral, esta
cobertura apresentada pelas secretarias é insatisfatória; pois no total, 81% das
secretarias municipais e 67% das estaduais realizam abaixo de 40% de
cobertura assistencial às mulheres (COSTA, 1992, p.45).

O que corresponde também a um sucateamento da saúde por parte dos setores


públicos e pouca vontade política dos gestores de saúde dos estados. Costa (1992) ainda
aponta o envolvimento direto das feministas e movimentos de mulheres para a
implementação do PAISM através de oficinas e capacitação dos profissionais, mas não
lança um olhar positivo sobre a penetração desse programa nos órgãos responsáveis pela
saúde no Brasil:
A constatação desse estudo é de que o PAISM não está implantado na rede
pública e nem existem sinais de que isto suceda a curto prazo, embora nos
níveis diretivos da Secretaria de Saúde sejam realizadas discussões neste
sentido (COSTA, 1992, p.60).

Os pontos considerados pela autora para que o PAISM possa ser implantado de
forma geral apontam para a consolidação do Sistema Único de Saúde e para a ampliação
das fontes de financiamentos nacionais e internacionais visando suprir o momento
crítico que passava o Sistema Único de Saúde, dentre outros fatores importantes como a
convocação de uma Conferência de Saúde da Mulher. Esse diagnóstico sobre o PAISM
mostra como a política de saúde estava desmantelada no país e como era difícil
implantar programas que visassem uma nova visão de saúde das mulheres naquele
momento.
Outro ponto questionado pela autora no estudo e que também figurou como uma
severa crítica ao sistema de saúde na época foram as esterilizações feitas nos hospitais
públicos nas mulheres sem qualquer regulamentação do Ministério da Saúde sob essa
prática. Esse assunto gerou grande destaque quando da ocorrência de uma CPI das
Esterilizações das mulheres em 1991. No país havia a denúncia por movimentos de
69

mulheres e grupos feministas, principalmente ligados ao movimento negro, que estaria


ocorrendo uma esterilização em massa de mulheres, especialmente negras, para controle
da população. O resultado dessa CPI foi que não havia uma prevalência de um discurso
racial para a realização dessas esterilizações, no entanto as altas taxas de esterilizações
preocupavam as mulheres ligadas aos movimentos tanto na área de saúde da mulher
quanto aqueles ligados ao movimento negro. Nessa época, a prática da esterilização no
Brasil não estava regulamentada em lei. A regulamentação da esterilização no Brasil
veio com a Lei do Planejamento Familiar em 1996 que contempla as questões relativas
ao planejamento familiar e à esterilização de mulheres e homens no Brasil.
No Rio de Janeiro, a influência do PAISM se deu na capacitação de profissionais
de saúde em 1991 que objetivava o resgate dessa política. Essa capacitação foi
fundamental para a criação do Espaço Mulher ligado à Secretaria Municipal de Saúde.
A implantação do PAISM no município do Rio de Janeiro manteve, inicialmente, as
características de assistência clínico-ginecológicas, baseando-se no tratamento de
patologias do aparelho reprodutor e da assistência pré-natal (PEREIRA; RANGEL,
2004).
As práticas educativas voltadas para a contracepção ganharam no Espaço Mulher
uma atenção destacada. Era urgente a necessidade de capacitar os profissionais de saúde
para lidar com o material de contraceptivos distribuídos pelo Ministério da Saúde e
oferecer informações às mulheres que utilizassem as unidades do município. Nesse
aspecto, a experiência do Espaço Mulher avançou bastante para trazer aos profissionais
conhecimento sobre os métodos, elaborando oficinas de conscientização para melhor
atendimento das usuárias. O Espaço Mulher existiu até 2009, para o treinamento dos
profissionais de saúde e teve como princípio atender aos problemas enfrentados pelas
mulheres no cotidiano e suas questões relacionadas ao uso de cada método
contraceptivo. Sobre essa experiência Pereira (2008, p.240) afirma:
O Centro de Treinamento em Atenção Integral à Saúde da Mulher Espaço
Mulher iniciou suas atividades em 1993, com o objetivo de capacitar
profissionais para o trabalho educativo na área da contracepção. A proposta
educativa do Centro considera não apenas os aspectos técnicos/biológicos,
mas antes de tudo, as questões relativas à gênero, à sexualidade, à autonomia
e à liberdade da mulher.

Sob esse ponto, pode-se considerar como positiva a experiência carioca em se


tratando de estabelecer práticas educativas, mas não pode assim ser considerada em se
tratando dos aspectos integrais preconizados no programa. Ainda sobre o Espaço
Mulher, Pereira (2008) aponta, que nem todos os profissionais participaram dessa
70

capacitação o que gerou um déficit no atendimento em todas as unidades de saúde


ligadas à Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.
Na época de criação do Espaço Mulher, é nítida a presença do debate das
feministas sobre os problemas encontrados pelas mulheres nas questões relativas à
sexualidade e reprodução. A isso se atribuiu a composição daquelas que estavam a
frente desse projeto, como a socióloga Diana Valladares, a médica Kátia Ratto, a
enfermeira Monique Miranda dentre outras importantes figuras que coordenaram os
cursos de capacitação e que participavam dos debates feministas em relação à saúde das
mulheres.
O PAISM foi assumindo os contornos próprios daqueles que geriram a saúde no
Brasil, isso aconteceu tanto no Rio de Janeiro quanto em outros estados. Vários são os
pontos em que o programa esbarrou para que sua implantação pudesse seguir aquela
prevista no programa. De uma forma geral, no Rio de Janeiro a implantação integral,
não pôde ser feita e as prioridades assumidas pela Secretaria Municipal de Saúde foram
as práticas educativas de contracepção e as ações ligadas ao período gravídico-
puerperal. As entrevistas feitas nessa pesquisa com as feministas que participaram da
implantação do PAISM no Rio de Janeiro fornecerão mais elementos para essa
discussão a pensar das prioridades assumidas por essa secretaria.
Um aspecto importante para a implantação do PAISM foram as ONGs
feministas da década de 1990. A presença dessas organizações muito contribuíram para
endossar o debate na esfera pública dos direitos das mulheres com destaque para a Rede
Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos criada em 1991 e a Cepia (1990), dentre
outros importantes grupos, que buscavam e buscam até hoje um atendimento integral às
mulheres nos serviços de saúde. O contexto político-social brasileiro foi mudando a
partir do processo de redemocratização e a luta por não perder os direitos das mulheres
adquiridos não só pelo PAISM, mas por uma luta geral a favor das mulheres se
constituíram como uma máxima para os grupos feministas nos anos subseqüentes.
Na década de 1990, o contexto mundial de pós-Guerra Fria e o Ciclo Social da
ONU, uma série de conferências internacionais sobre população, direitos humanos,
desenvolvimento, direitos das mulheres, dentre outros, se tornou um momento
favorável à reivindicações dos grupos feministas através da assinatura do Brasil nesses
tratados. A pauta dos grupos feministas nessa época era, principalmente, fazer valer os
direitos das mulheres, enquanto parte importante dos direitos humanos. Os temas
centrais eram violência, direitos reprodutivos e sexuais, como fazendo parte da
71

responsabilidade do Estado em prover melhores condições de vida e exterminar todas as


formas de discriminação em relação às mulheres.
Na Conferência do Cairo (1994), na qual o tema central foi a população, os
direitos reprodutivos e sexuais foram proeminentes para gerar um debate mais preciso
acerca de políticas públicas que os contemplassem. Sobre a Conferência do Cairo
(1994), Ventura (2009, p.36) comenta
O documento do Cairo destaca como direitos humanos básicos:
 decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a
oportunidade de ter filhos;
 ter acesso à informação e aos meios para decidir e gozar do mais elevado
padrão de saúde sexual e reprodutiva, livre de discriminações, coerções ou
violências.
O Plano de Ação Cairo não reconhece como sujeitos de direitos reprodutivos
apenas os casais, mas também adolescentes, mulheres solteiras, homens e
pessoas idosas.

Nesse sentido, abre os caminhos possíveis para políticas que contemplem o


planejamento reprodutivo. A Conferência do Cairo (1994) da qual o Brasil é signatário
reacendeu o debate sobre os direitos reprodutivos no Brasil e muitas mulheres
participantes de grupos feministas se mobilizaram tanto para essa Conferência quanto
para a Conferência de Beijing (1995) a fim de discutirem as propostas que seriam
levadas às conferências e cobrar um posicionamento das autoridades brasileiras. No
mesmo ano do Cairo houve uma reunião no Rio de Janeiro, na qual várias mulheres que
participariam da conferência provindas de diversos países formularam as propostas para
a conferência. Esse debate intenso também foi levado para Beijing (1995).
Na Conferência de Beijing (1995), as mulheres foram o centro da discussão, o
que representou um enorme avanço nas discussões internacionais acerca da sua
condição. A grande importância de Beijing se faz pelos temas abordados: educação,
economia,mercado de trabalho, meio ambiente, direitos humanos, violência, situações
de conflito, comunicação e mídia e a condição específicas das meninas (CORREA;
ALVES; JANUZZI, 2006). Temas esses tão difundidos anteriormente pelo grupos
feministas não somente no Brasil como no meio internacional. O debate dos direitos
reprodutivos e sexuais do Cairo foi levado para Beijing para reforçar a necessidade de
políticas públicas voltadas para essa questão. Sobre os direitos reprodutivos e sexuais
em Beijing(1995), Ventura (2009, p.37) comenta
O documento de Pequim, da IV Conferência Mundial da mulher, enfatiza a
importância de garantir os direitos de autonomia e autodeterminação,
igualdade e segurança sexual e reprodutiva das mulheres – que afetam
diretamente sua saúde sexual e reprodutiva – como determinantes para a
efetivação dos Direitos Reprodutivos para o segmento feminino. No plano
72

jurídico-normativo, recomenda aos países que adotem todas as medidas


efetivas para a redução do número de abortos, por meio da ampliação ao
acesso ao aborto seguro nos casos que a legislação local permitir, e também,
ao acesso aos métodos e informações sobre contracepção.

No Brasil, a assinatura desses dois documentos se refletiu na criação da Leido


Planejamento Familiar, em 1996, que garantia como direito o acesso às práticas
contraceptivas a todos os cidadãos, sem coerção, por métodos e práticas médicas
específicas. Apesar do quadro positivo gerado por essas duas conferências, pela
confluência de fatores internacionais que possibilitaram um diálogo sobre as questões
reprodutivas e sexuais mobilizando grupos de mulheres e feministas pelo mundo todo a
reivindicarem seus direitos, o resultado desse empenho no Brasil é ainda pouco sentido
quanto à prática dessas leis no cotidiano da população. As dificuldades de acesso aos
métodos contraceptivos são, na sua maioria, da população pobre que carecem de
informação sobre a utilização desses meios, bem como da oferta de todos os meios
disponíveis para uma escolha consciente.

4. VOZES PARA O PAISM

4.1 As vozes

Recria tua vida, sempre, sempre.


Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Cora Coralina

Quem são essas vozes que trazem aqui seus sentimentos? Falo sentimentos, pois
a memória sobre o PAISM suscitou em primeiro lugar um olhar sobre os sentimentos
que as entrevistadas emitiram ao lembrarem das décadas de 1980 e 1990 no Rio de
Janeiro. Algumas lágrimas, rancores, decepções, nostalgias, sorrisos, silêncios e
desconfianças, essas impressões me levaram a buscar uma análise que não deixasse de
lado a via humana das percepções sobre o PAISM. As mulheres que falaram de suas
vidas falaram também de seus esforços de tornar possível o respeito aos direitos das
73

mulheres na sociedade brasileira, falaram de suas percepções acerca de si mesmas,


reinventaram e revisitaram seus passados e me propuseram um campo de análise que ao
mesmo tempo em que produziu uma intensa inquietação em estudá-lo, por resultar em
conteúdo vasto, me fez refletir acerca dos meus próprios esforços e lutas particulares.
Por isso, trago junto das vozes dessas feministas a minha voz também assumindo
claramente minha participação na tecitura dessa trama de discursos que envolvem o
PAISM.
O que não significa que estarei trabalhando a favor, contra ou qualquer coisa do
tipo em relação ao programa e às falas. Os meus sentimentos em relação a essa pesquisa
estão intrinsecamente traduzidos nas inúmeras interrogações que deixo ao longo do
texto que dizem da apaixonante escolha por estudar os fenômenos sociais e o tempo que
perpassa esses fenômenos. Isso é o que move sempre a refletir sobre minhas convicções,
pois os testemunhos orais me dão uma idéia acerca do meu próprio olhar sobre o
passado, lembranças, memórias e minha atual situação. Cada trabalho de pesquisa é um
encontro com as minhas percepções e escolhas de vida e, assim, vamos tecendo os
ramos de flores que nos prendem à terra, como diria Keats14.
Sobre o grupo de entrevistadas, são no total 17 que possuem diferentes lugares
de fala. O número estabelecido anteriormente para o grupo de entrevistadas era de
aproximadamente 15 ativistas, para que pudesse ser feita a pesquisa no tempo proposto
e que a análise fosse mais aprofundada em relação às falas. Um número muito grande de
entrevistas demandaria um tempo maior para que o estudo fosse realizado, a fim de não
prejudicar os conteúdos trazidos em cada fala. Sendo a pesquisa qualitativa, acredito
que um grupo grande prejudicaria o ponto fundamental que caracteriza esse tipo de
pesquisa: a análise sobre as perspectivas dos sujeitos.
Mapeei os lugares de fala a partir de dois critérios para a compreensão da
análise: localização física, quando envolvidas no processo de criação e implantação do
PAISM, e a influência de correntes feministas. Esses dois critérios me permitiram
perceber as referências citadas pelas feministas sobre as lembranças do período e do
PAISM. Os nomes que são atribuídos às entrevistadas preservam suas identidades, por
se tratar de muitas estarem envolvidas diretamente com organizações importantes no
meio feminista atual. Os pseudônimos são de escritoras brasileiras do século XIX e XX,
e foram escolhidos de acordo com algumas características pessoais que apareceram nas

14
John Keats, poeta inglês que viveu entre os anos de 1795 a 1821. O trecho referido está no poema
Endimião, retirado do livro: PICKLES, S. A Linguagem das Flores. São Paulo: Melhoramentos, 1992.
74

entrevistas. A lista de escritoras homenageadas se encontra como apêndice no final do


trabalho.
Situando as falas, das 17 feministas entrevistadas, 12 falam a partir de suas
experiências no Rio de Janeiro, o que aqui me interessa de sobremaneira, pois está em
conformidade com o objetivo do trabalho. Das 5 entrevistadas que compõem o grupo de
fora do Rio de Janeiro: 3 falam a partir de Brasília, uma de Recife e uma de São Paulo.
As falas provindas do Rio de Janeiro foram privilegiadas na pesquisa e utilizei as falas
de fora para endossar debates e trazer maior reflexão para determinados assuntos que
apareceram no campo. Nem todos os testemunhos apareceram na análise desse capítulo,
pois pela peculiaridade de cada fala e pela diversidade de assuntos que suscitaria,
poderia tornar o estudo extenso e cansativo, no entanto, me baseei em todas as falas
para fazer a elaboração do trabalho e, para fins de registro, possuo gravadas todas as
entrevistas.
No quadro abaixo, estão relacionados os nomes das entrevistadas, com a
localidade em que situaram seu ativismo no período da pesquisa (décadas de 1980 a
1990) e com a profissão exercida. Essas duas primeiras formas de pensar a análise das
entrevistas me ajudaram a refletir como foram construídas as falas de acordo com o
lugar a partir do qual tiveram atuação feminista e a profissão de cada uma. Os nomes
das entrevistadas estão organizados em ordem de entrevista. As entrevistas foram
realizadas no período de junho a setembro de 2012, com exceção da última entrevista
que foi realizada em dezembro do mesmo ano.

Relação das entrevistadas de acordo com a localidade no período de 1980-1990 e a


profissão exercida.
Entrevistadas Localidade Profissão
Nísia Rio de Janeiro Médica Sanitarista
Ana Maria Rio de Janeiro Psicóloga
Alzira Rio de Janeiro Professora de Português
Maria Carolina Rio de Janeiro Médica Sanitarista
Josefina Rio de Janeiro Jornalista
75

Hilda Rio de Janeiro Advogada


Georgina Brasília Socióloga
Elisa Rio de Janeiro Assistente Social
Cordélia Rio de Janeiro Enfermeira
Cora Rio de Janeiro Enfermeira
Carmem Brasília Médica Sanitarista
Júlia Rio de Janeiro Enfermeira
Narcisa Rio de Janeiro Médica Sanitarista
Yde Rio de Janeiro Socióloga
Ana Aurora Recife Socióloga
Adalgisa Brasília Médica Pediatra
Lucie São Paulo Socióloga

A metodologia utilizada, para buscar os testemunhos foi a “bola de neve” e


também a busca de nomes na literatura sobre o tema da pesquisa. Essa duas formas de
entrar em contato com as ativistas que comporiam meu campo ofereciam ,tanto nomes
que não teria encontrado na literatura, mas que tivessem relação com o momento
estudado, quanto com possíveis testemunhos diferenciados acerca da época pesquisada,
acrescentando outras formas de perceber o período para o estudo.
Em um primeiro momento da pesquisa foi formulado um roteiro geral de
perguntas que direcionava as respostas das feministas para o período que estava sendo
estudado, bem como em relação ao objetivo da pesquisa. Esse roteiro geral estava
fundado na construção do projeto de pesquisa e tinha sido pensado a trazer as
experiências do envolvimento das entrevistadas com o feminismo, para depois buscar a
lembrança e atuação de cada uma sobre a criação e implantação do PAISM e em um
terceiro momento a visão sobre ativismo feminista nos anos 90 com a criação das
ONGs. O que pretendi com esse roteiro foi aliar ativismo feminista e processo de
implantação do programa que teve vulto por ser formulado por feministas e possuir na
sua implantação a participação direta das mesmas.
No entanto, de acordo com o tempo destinado em cada entrevista, reformulei o
roteiro – demasiadamente detalhado sobre o período - e busquei trabalhar com eixos
temáticos que trariam a fala das entrevistadas, o máximo possível, conduzida pelas
perspectivas próprias da pesquisa. Trabalhar com eixos temáticos me permitiu menor
76

intervenção na entrevista ao mesmo tempo em que possibilitava inserir os principais


temas elencados no roteiro geral, só que de maneira menos detalhada. Os eixos
temáticos são: 1)envolvimento com as causas feministas – que traria uma idéia de como
elas vêem o próprio ativismo feminista e as correntes feministas seguidas a partir desse
envolvimento - ; 2) PAISM na década de 1980 – dentro desse eixo as perguntas
estariam envolvidas com o contexto de saúde na década de 1980, criação, implantação
do PAISM no Rio de Janeiro e o tipo de atuação das entrevistadas para essa implantação
- ; 3) Atuação na década de 1990 até 1995 – de que maneira as ativistas atuaram na
década de 1990, tendo em vista a criação de ONGs feministas no contexto brasileiro.
O tempo médio das entrevistas foi de 50 minutos de duração e algumas sendo
feitas nos locais de trabalho das próprias feministas. Como algumas pertencem a ONGs
atuantes na luta pelos direitos das mulheres no Rio de Janeiro, e são muitas requisitadas
devido a esse trabalho, o tempo que me foi cedido para as entrevistas não permitiu que
explorasse outras questões mais a fundo. Esses eixos trabalhados com cada uma me
forneceriam quadros gerais das experiências das entrevistadas com o processo de
criação e implantação do PAISM no Rio de Janeiro.
Por fim, as mulheres entrevistadas possuem em média 50 anos, a maioria com
pós-graduação e, dentro do grupo, há ativistas que ocupam hoje posições importantes no
debate brasileiro pela busca dos direitos das mulheres.
Analisando as falas e o momento em que as ativistas entraram em contato com o
feminismo posso relacionar como principais correntes feministas presentes no campo:
radical, marxista e do movimento negro de mulheres. No geral, quase todas as mulheres
foram influenciadas pelos conteúdos do livro Our Bodies, Ourselves (1970), do Boston
Collective. Duas entrevistadas tiveram a experiência direta com esse grupo na década de
1970 nos Estados Unidos e as outras tiveram conhecimento através do pertencimento a
grupos feministas que recebiam tanto dos Estados Unidos, quanto da Europa influências
sobre o ativismo feminista. Em relação ao livro ressalto a grande importância que teve
para a saúde das mulheres sob a ótica feminista:
O manual de saúde buscava desmistificar a medicina, equipando as mulheres
com os instrumentos necessários para fazer escolhas informadas sobre os
cuidados com a saúde [...] O Coletivo de Boston fez a reivindicação
revolucionária de que as próprias mulheres eram fonte de conhecimento
sobre seus corpos, bem como os agentes de mudança, mediante o
empowerment individual e um processo coletivo no qual problemas pessoais
eram transformados em questões públicas.(THAYER, 1999, p.205)
77

Em relação às experiências das feministas com o PAISM, qual não foi minha
surpresa que, ao contrário do que pensava, apesar das profissões serem diferenciadas o
discurso não foi muito diversificado quanto às questões que tanto envolviam o PAISM
quanto ao ativismo feminista no período. Minhas expectativas em torno das feministas
da área da saúde eram de fornecer dados que estivessem ligados à rotina de trabalho das
mesmas e que me proporcionassem informações mais detalhadas sobre a implantação
do PAISM nos serviços de saúde. Os testemunhos não apontavam para esse foco, as
lembranças das entrevistadas estavam ligadas com um processo maior de implantação
do PAISM, que não se localizava apenas no Rio de Janeiro.
Essa visão geral sobre as experiências do PAISM no Rio de Janeiro me levou a
pensar estratégias para analisar os discursos. Algumas vezes, portanto as referências
estarão centradas na própria experiência da implantação do programa no Rio de Janeiro
e, de antemão digo, que essas experiências estão ligadas diretamente com a criação do
Espaço Mulher em 1992 na Secretaria Municipal de Saúde. Das entrevistadas, quatro
participaram efetivamente do Espaço Mulher na capacitação de profissionais de saúde
para as práticas educativas preconizadas no PAISM em relação à contracepção, são elas:
Cordélia, Júlia, Narcisa e Yde.
Com exceção dessas experiências, percebi que muito poucas vezes a cidade do
Rio de Janeiro era palco das memórias das entrevistadas sobre o PAISM. O que me
levou a pensar o projeto de analisar as falas de uma maneira macro, ou seja, partindo do
princípio que o ativismo feminista em várias áreas situava as lembranças do PAISM na
época, e não o contrário. Considerarei o PAISM dentro dessa perspectiva, como fazendo
parte de um complexo de questões e ações que estava sendo debatido nas décadas de
1980 e 1990.
Ainda que em alguns momentos nas entrevistas fosse insistido sobre os
acontecimentos no Rio de Janeiro em relação ao PAISM, o que aparecia era uma
lembrança sobre um processo maior do período de redemocratização e de mobilização
de forças para emplacar os direitos das mulheres no Brasil. O que me levou a pensar
outra forma de entender essas falas, pois a busca por um discurso maior de ativismo
feminista, marcado muitas vezes por uma fala de unicidade desse ativismo, ou seja, sem
tensões ou conflitos ressaltando os pontos positivos, é a lembrança que muitas delas
forneceram sobre esse período. O que significa dizer, que a procura por unir forças pela
luta dos direitos das mulheres nesse momento é que provocou essa lembrança nas
78

feministas ainda que se estivesse perguntando especificamente sobre a implantação do


PAISM no Rio de Janeiro.
Essa mudança crucial no olhar da pesquisa trouxe questões muito interessantes
para a análise e me proporcionou a estabelecer algumas restrições sobre o que seria esse
PAISM que elas trouxeram e o que o programa, sob esse viés, sinalizava sobre a época
que foi criado. O que corresponde também à minha procura por explicitar todos os
pontos recorrentes que apareceram nos testemunhos, em detrimento de fazer uma
análise centrada em um ponto apenas.
O conteúdo me ajudou a buscar uma forma também macro de pensar o PAISM
como objeto de análise, o que indica que esse trabalho não é um fim em si mesmo, é o
início de um aprofundamento maior sobre essas questões que farei em posterior estudo.
Como indico ao longo do texto, a partir das falas, estou apontando caminhos para que
em outro momento possa trabalhar em favor de aprofundá-los.
A hipótese que levanto sobre essa maneira de se pronunciar acerca do ativismo
feminista baseado em um passado de grande vulto em contraste com o presente que não
corresponderia a esse momento, é de que haveria na época uma estratégia de
mobilização feminista em buscar um consenso baseado num discurso unificado de
expressar esse ativismo para emplacar políticas públicas em relação às mulheres. Esse
consenso estaria originado nas falas com pouca ou nenhuma menção aos conflitos e
tensões que a mediação entre grupos de feministas pelo Brasil a fora estariam sujeitos
na busca por implementar políticas públicas para as mulheres.
O que me ajudou a procurar as fissuras desse discurso afinado foram as vozes
dissonantes das mulheres do movimento negro, que trouxeram lugares de fala
diferenciados para pensar as questões relacionadas à implantação do PAISM. No grupo
de entrevistadas, três mulheres tinham na sua trajetória de ativismo a passagem pelo
movimento negro – Ana Maria, Alzira e Elisa - e criaram a partir dessas experiências
grupos feministas voltados para a discussão das mulheres negras. Apesar de serem
poucas dentro de um universo de 17 mulheres entrevistadas, as características trazidas
pelos seus testemunhos suscitaram dificuldades nas outras feministas em alinhar essas
questões com as falas sobre esse momento. Não estou buscando assim, uma verdade em
torno de quais falas representavam o momento, ao contrário, reconheço que a imagem
do consenso de um lado e do dissenso do outro é que caracterizaram os debates desse
período.
79

O objetivo da pesquisa é analisar o PAISM, sua criação e implantação nas


décadas de 1980 e 1990, sob a ótica das mulheres feministas que participaram
ativamente nesse período para que pudesse ser implantado. A partir das respostas
obtidas no campo, vejo a necessidade de me posicionar de forma diferenciada que
anteriormente no projeto de pesquisa. Ao invés de procurar quais os pontos do PAISM
foram implantados no Rio de Janeiro, estou procurando com esse estudo, quais os
debates que essa implantação estava inserida. O que é inteiramente diferente da situação
anterior, pois o que será visto nessa análise não é um diagnóstico da experiência do Rio
de Janeiro, mas uma interpretação do debate sobre os direitos das mulheres a partir do
Rio de Janeiro.

Bases da análise

Um dos atributos prometidos na formulação do Programa de Assistência Integral


à Saúde da Mulher é o fato de ser um atendimento que contemple a todas as mulheres
brasileiras, ou melhor, um programa que promova saúde a todas as mulheres brasileiras.
No entanto, analisando bem de perto essa afirmativa são perceptíveis os recortes
implícitos que essa ambição pode almejar. Quem são essas mulheres?
Minha intenção em propor esse debate se faz para tentar entender as declarações
que as entrevistadas me fizeram a respeito da criação do programa em 1983 e sua
diferença em relação aos programas de saúde anteriores ao PAISM. Que tipo de
significado a palavra mulher assume no título do programa? O que esse significado
propõe de novo para um momento que posso caracterizar de efervescência democrática,
quando se levantaram os gritos abafados da ditadura?
Essas perguntas ao mesmo tempo se desdobraram em outros campos análise ao
mergulhar mais fundo nas falas das entrevistadas. Entrando em contato com o meu
campo, percebi ao longo das entrevistas que as lembranças do PAISM, no aspecto da
criação do programa, suscitava diferentes falas a respeito da suposta “conquista” que a
literatura proclamava sobre o programa. Em vasta literatura relacionada ao PAISM, a
idéia que principalmente veicula sobre sua criação é a de um programa que representou
as mulheres, um primeiro programa que atendeu às mulheres, uma conquista de direitos,
um divisor de águas nas políticas relacionadas às mulheres no Brasil.
80

Não há como negar que há uma diferença crucial entre os pilares do PAISM em
relação aos programas de saúde voltados para as mulheres anteriores a esse momento.
Esses pilares estão fundados nas críticas das ativistas feministas sobre o aspecto
materno-infantil desses programas e, trazer os quesitos de integralidade, de visão geral
sobre a saúde das mulheres, de ampliação de atendimento e de outros aspectos
relacionados à saúde foi, de fato, inovador e representou uma afirmação importante no
processo democrático que se descortinava no Brasil durante a década de 1980.
No entanto, assim como todo acontecimento histórico, as mãos e os pensamentos
que o criaram também obedecem às regras do tempo de serem situados em um
determinado contexto e conjunturas que permitiram que fosse criado. Sobre esse ponto
foram explorados os testemunhos que consegui para fazer a análise.
Quando questionadas sobre a criação do PAISM as entrevistadas se referiam
muitas vezes ao processo de implantação do programa, o que não posso aqui
desassociar esses dois pontos, a criação e a implantação. Essa implantação vinha
carregada de aspectos negativos que melhor investigados poderiam apontar quais
expectativas as entrevistadas possuíam em relação ao programa. Levando isso em
consideração, poderia então buscar que tipo de atuação elas tiveram na implantação do
programa para que suas expectativas aparecessem nas entrevistas como tentativas
frustradas. Para visualizar esse processo de análise, imagino um olhar sobre as ruínas de
uma civilização.
Ao ver as pedras soltas pelo chão, pedaços de colunas, estruturas sem,
aparentemente um significado, desafia aquele que olha uma idéia de qual história se
passou por aqueles blocos de pedra que não oferecem atualmente um significado tão
claro. Levantar a estrutura das paredes, para depois trazer à tona as cores e assim, as
histórias, os pensamentos e a vida daquele lugar, é o desafio que percebo ao trabalhar
com esse material tão rico de entrevistas que adquiri com essa pesquisa.
Dentro dessa perspectiva vou analisar os testemunhos a fim de procurar primeiro
as estruturas dessas ruínas, ou seja, o que significou a criação do PAISM e sua
implantação para as ativistas. O olhar sob essa questão trará as cores das paredes, ou
seja, o debate, as idéias em jogo, as disputas que esse processo de implantação sofreu
decorridos os anos da década de 1980 a 1990, o que estará imbuído nessas disputas o
meu olhar sobre as histórias e minha análise sobre esse momento.
A implantação do PAISM é sentida de diferentes formas pelas ativistas
feministas e sobre esse ponto algumas considerações podem ser feitas. Vou trabalhar
81

com o início do período de implantação do PAISM desde a sua criação, ou seja, em


1983. Ainda que os acontecimentos como a VIII Conferência Nacional de Saúde (1986)
e a Conferência Nacional de Saúde da Mulher (1986), bem como as movimentações
sociais em torno da Constituição Brasileira em 1988 - que instituiu o SUS, Sistema
Único de Saúde –, afirmassem a pouca relevância dada à implementação do PAISM
nesse período, como mesmo constata Costa (1992), no estudo PAISM: uma Política de
Assistência Integral a ser Resgatada, considerarei esse período de implementação por
compreender os esforços não só das entrevistadas direta ou indiretamente com esse
processo, mas também de outras personagens que estavam envolvidas durante a década
de 1980.
Enfatizo que essa implementação vem desde a década de 1980, pois a criação do
Centro de Treinamento Espaço Mulher no Rio de Janeiro data de 1992 15, o qual
segundo as entrevistadas que participaram ativamente nesse processo relatam ser o
início da implantação do PAISM nesse município. Sob esse ponto, sublinho que a partir
dessas falas, a implementação do PAISM no Rio de Janeiro se configura já
comprometida tendo em vista, que a referida pesquisa de Costa (1992) aponta resultados
insatisfatórios para o Rio de Janeiro desde a criação do PAISM.
Analisando os testemunhos em relação à implantação, é notório o
descontentamento das entrevistadas sobre esse processo nas décadas de 1980 e 1990.
No entanto, essa insatisfação possui caminhos de pesquisa que precisam ser mais bem
investigados.
Em algumas falas percebe-se que a implementação do PAISM está em vias de se
completar, o que gera uma ideia de que o PAISM ainda precise ser conquistado. A
maioria das entrevistadas acredita que houve um momento em que o PAISM foi
debatido e reuniu esforços para a sua implantação, contudo, o olhar daquelas que
procuram dar continuidade a esse processo abre um ponto de interrogação sobre essa
política. Exponho essas falas:
Houve o PAISM, houve um momento em que existiu o PAISM. Eu acho que
se a gente olhar o texto do PAISM, que é um texto que eu gosto muito, uma
série de coisas que lá estão, ainda não avançamos, então para mim, talvez
seja uma coisa que ainda tenha que implantar na sua totalidade. (YDE)

O PAISM era um programa de governo do Mistério da Saúde, você ainda


tinha muita política vertical. Mesmo que não tivesse a política vertical, fosse
regionalizada, discutida entre os Estados todos … você tinha assim; uma
política de governo, um programa de governo. Por ser um programa de

15
O Centro de Treinamento Espaço Mulher foi criado em 1992, pela Secretaria Municipal de Saúde do
Rio de Janeiro e foi extinto em 2008.
82

governo, é obrigado que os 27 estados implantem e os 5.600 municípios [...]


Todos os seus pontos e seus subprogramas, esse é que até hoje nós brigamos
para que se implante. (NÍSIA)

Algumas vezes [...] quando eu já estava dando aulas na faculdade de


enfermagem na UERJ algumas alunas me criticavam: “Mas, o PAISM está
tão velho, você ainda está falando de PAISM?”, eu digo:“ Olha o PAISM é
tão velho que ele é muito novo, ele é absolutamente novo, ele não está todo
ainda implantado, o PAISM é implantado a cada dia nos nossos plantões, nos
nossos trabalhos,então ele é o novo, ele é o que a gente ainda tem que fazer”.
Eu sou apaixonada pelo PAISM! (CORDÉLIA)

Apesar de ser um grupo pequeno dentro do universo de 17 entrevistadas na


minha pesquisa, considero que seja uma questão importante essa fala da continuidade,
porque mesmo que esteja situada em três discursos, de mulheres que atuam na área da
saúde e que estão trabalhando na ponta com esses princípios que invocam o PAISM
pelo ativismo feminista, percebo que há uma prevalência de continuidade sobre uma
“época de ouro” feminista que está também associada à imagem que ganha o programa.
A continuidade presente na tardia implantação do PAISM ainda nos dias atuais, a meu
ver, tem estreita relação com as falas da “época de ouro” dos feminismos da década de
1980.
Ou seja, analisando as falas do PAISM, pela amplitude de assuntos que gera essa
implementação tanto na década de 1980 quanto nos anos 1990, vou considerá-lo como
um ícone desse tempo, o que significa dizer que nas falas da implantação do PAISM
estão contidas as lembranças sobre a década de 1980, sobre os ativismos feministas
desse período e que tem o PAISM como um dos pontos que foram intensamente
debatidos dentre muitos outros que estavam em voga na época. Essa rede de assuntos
que envolvem o PAISM no meu entender, e, como tentarei demonstrar, tem ligação
intrínseca com a sua implantação.
Mais do que implantação de um programa, o PAISM envolvia disputas de
diversos matizes dentro dos feminismos brasileiros, em especial pertencentes ao Rio de
Janeiro que estão sob análise aqui, e também envolvia outras disputas acirradas que
envolviam o processo de redemocratização brasileira. Considero como implantação do
PAISM um contexto amplo desse período tão particular da história brasileira.
Em suma, considerarei como questões de fundo, ou seja, pontos-chave no
entendimento da análise aqui exposta: a palavra mulher que está no título do programa,
que tem um significado importante para a sua implantação; a ideia de implantação
ampla do PAISM, envolvendo toda uma conjuntura de disputas políticas; e o olhar
83

nostálgico sobre esse momento. Esses três ângulos regem a análise das entrevistas e, por
vezes, aparecem mais expostos ou mais implícitos na exposição dos assuntos.
O que procuro com essas pedras angulares, que selecionei para analisar o
PAISM a partir dos testemunhos das entrevistadas, é entender como cada uma está
percebendo esse processo de implantação, alinhando essas percepções com a conjuntura
histórica da época estudada. A intenção não é buscar uma verdade sobre os testemunhos
e nem traduzi-los em seu tempo procurando as causas do discurso, mas trazer assuntos
através desses testemunhos que cotejados com outras fontes estão suscitando a todo
tempo novas interpretações do tempo analisado.
O que se busca na fonte oral são as interpretações, o que se apreende do real, do
ocorrido, e aquilo que não pode ser palpável em termos de oficial, porque depende das
construções que cada um (a) faz na sua própria memória. Michel Pollack (1992) afirma
que a memória não é uma construção somente individual, está também intermediada por
outras vivências/experiências que se agregam aquilo que o indivíduo guarda como
lembrança do acontecimento:
Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória individual ou
coletiva? Em primeiro lugar são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em
segundo lugar, são os acontecimentos ‘vividos por tabela’, ou seja,
acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se
sente pertencer (POLLACK, 1992, p.201).

Partindo dessa análise, pode-se apreender que a memória é algo mais intenso e
complexo que depende de fatores internos e externos, como os lugares que refletem essa
memória, a cronologia que o próprio indivíduo estabelece através das suas reflexões
posteriores, os personagens ou pessoas que fizeram parte da construção da narrativa
pessoal, dentre muito outros aspectos. É um trabalho de sobrepor significados, buscar as
camadas que cada fonte se situa e, deixar clara a interpretação.
Analisar testemunhos orais demanda um estudo em situá-los frente a todo um
conteúdo adquirido por ele anteriormente para que os lugares de fala sejam
reconhecidos dentro de um campo de conhecimento, ou seja, mapear os atores e os
possíveis discursos por eles proferidos. Esse trabalho requer um olhar sensível também
ao tempo em que o testemunho está sendo reproduzido e qual a posição atual daquele
que o emite. Busco na minha análise os testemunhos, portanto, através dos seus lugares
de fala, daquilo que está sendo enunciado e qual o debate que suscita quando
confrontado com outras fontes acerca dos acontecimentos.
84

Sobre as fontes documentais utilizo anais e relatório das conferências nacionais


de saúde, os quais me fornecem um panorama geral de diretrizes brasileiras sobre a
saúde no momento em que foram realizadas essas conferências. Considero esses
documentos importantes, pois tendo em vista o sistema de saúde baseado em ações
centralizadas preconizadas pelo Ministério da Saúde anteriormente à criação do SUS,
imprimiam um diagnóstico geral dos serviços de saúde nesse momento. São os
documentos: Anais da V Conferência Nacional de Saúde (1975); Relatório Final da VI
Conferência Nacional de Saúde (1977) e Anais da VIII Conferência Nacional de Saúde
(1986).
Os recortes de jornal e informes feministas do acervo pessoal da feminista Maria
José de Lima gentilmente cedidos para esse estudo são documentos que aqui estão
pinçados para oferecerem um elemento a mais no debate das vozes sobre o PAISM. A
presença desses documentos indica, portanto, uma vontade posterior minha de trabalhar
com o tema do PAISM através também de periódicos feministas para serem cotejados
junto às falas das entrevistadas. Os documentos são: Jornal do Brasil de 4 de abril de
1982, com a reportagem sobre “Feminismo Militante”, a qual aborda as questões sobre
os grupos feministas desse momento e atuação desses grupos na sociedade carioca; a
nota também do Jornal do Brasil de 16 de abril de 1982, escrita pela feminista Danda
Prado sobre essa reportagem; o informe do IBASE nº24 de novembro e dezembro de
1986, o qual aborda a Conferência Nacional dos Direitos da Mulher; o periódico do
Fórum Feminista do Rio de Janeiro, Mulher é Vida, de maio de 1988, que aborda as
questões relativas à saúde das mulheres; e o Informe Mulher - Informativo do Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher(CNDM), de agosto de 1986, que trata especialmente
sobre o Encontro Nacional Mulher e Constituinte em 26 de agosto de 1986, dentre
outras questões que estavam na pauta de ações do CNDM.
Esclarecidas essas questões importantes da análise, abro para a apreciação o
estudo sobre a implantação do PAISM a partir do olhar das ativistas feministas que
participaram intensamente desse processo.
85

4.2 Aberto o debate!

Atualmente, o cenário de políticas em relação à saúde das mulheres é muito


diverso dos anos da década de 1980. O processo democrático está sempre se
reconfigurando. Se em um momento de final da ditadura e abertura democrática o
objetivo era lutar contra um inimigo comum – o regime ditatorial - e trazer de volta as
vozes que antes estavam abafadas - esse grito de liberdade teve sua maior repercussão
com a Constituição Brasileira em 1988 – hoje percebemos que essa característica não
comanda os debates em torno dos direitos das mulheres como outrora.
O fato da “união de forças” também dos feminismos, tendo em vista cada um em
sua esfera de luta e brigando por suas demandas, reflete a meu ver a abrangência de
temas que o próprio PAISM ganha. O programa reúne em si diversas questões
relacionadas às mulheres que se constituía um desafio a ser implementado para
proporcionar e refletir todos debates que as ativistas feministas tinham antes do
programa ser criado.
Sobre esses debates, o grupo de entrevistadas possui uma heterogeneidade
ímpar, cada uma falando a partir de suas experiências com o feminismo e posso aqui
apontar para algumas correntes: feminismo norte-americano, com influência por vezes
direta em algumas do Boston Collective, sendo o livro Our Bodies, Our Selves, como já
citado; influência do feminismo marxista, que buscava unir as duas militâncias a partir
de ações que também favorecessem as lutas das organizações de esquerda, tendo como
marco de ação nesse sentido o seminário da ABI em 1975 e a criação do Centro da
Mulher Brasileira; influência do feminismo radical, nos grupos de autoconsciência, nos
quais a principal ação era buscar a reflexão a partir de temas do cotidiano das mulheres
e nesse movimento tirar do individual as questões de opressão para passar a uma luta de
todas as mulheres contra o patriarcado, incluindo nesses grupos como principais temas o
aborto e a sexualidade, sendo seu movimento mais sentido com a volta das feministas
86

da Europa e do Estados Unidos em fins da década de 1970; e mulheres do movimento


negro, buscando assuntos específicos das mulheres dentro do próprio movimento que ao
mesmo tempo em que procurava tornar pública a questão do racismo, diluía a luta das
mulheres por seus direitos específicos dentro do movimento, tendo como marco, o final
da década de 1970, no qual surge com maior expressão o movimento negro nos debates
democráticos.
Essas influências nas falas das entrevistadas proporcionaram um campo amplo
de análise e que com experiências pessoais bem diferentes trazem o olhar sobre o
PAISM carregado de ideias e concepções que ora tem a raiz nas correntes assumidas,
ora possuem uma agência que é própria do indivíduo e retira a noção de linearidade do
discurso. Por isso, vou buscar alguns temas que soaram como principais nesse debate e
que mudaram os cursos da pesquisa durante o desenvolvimento das entrevistas.
Apesar de correntes bem diferentes e com objetivos parecidos, ou seja, retirar as
mulheres da desigualdade de gênero estabelecida a partir de padrões masculinos
privilegiados dentro da sociedade brasileira, a busca por uma saúde que favorecesse a
todas e que trouxesse as especificidades das questões relacionadas às mulheres foi de
certa forma unânime o que traz perspectivas interessantes para a análise.

Saúde Materno-Infantil

Nas entrevistas todas concordaram que o PAISM significava um avanço dentro


da realidade dos programas anteriores. As principais críticas apontadas são tidas como
unânimes em dizer que os programas de saúde, tanto o Materno-Infantil (1977) quanto o
Programa de Gravidez de Alto Risco (1977), imprimiam uma visão demasiadamente
reducionista sobre as mulheres gerando uma assistência que primava pelo período
gravídico-puerperal. Ainda aparecem também críticas das feministas profissionais de
saúde aqui entrevistadas, ao modelo autoritário do discurso médico sobre as mulheres.
Sobre as críticas aos programas de saúde anteriores ao PAISM, alguns testemunhos:
A mulher era só barriga e a mulher não é só a barriga. Só que o foco da
saúde da mulher era a gravidez e muito pouco depois do parto. E com o
movimento de mulheres, a discussão e tal... não dá! Peraí [sic] está
deslocado! (JOSEFINA)
87

Enfim, existiam assim denúncias de mulheres não atendidas, mulheres que


não eram atendidas na hora do parto, mulheres senhoras que eram largadas
para lá, mulheres ... muitas mortes maternas, né? Muita mortalidade materna
e a gente tinha essas coisas. Isso, na década de 80. As mulheres foram,
principalmente essas mulheres, foram muito massacradas. As mulheres que
não estavam no período de gestação, essas nem eram vistas pelo Estado.
(ALZIRA)

É interessante, principalmente nessa questão da saúde, que ainda dentro do


governo do Figueiredo, na ditadura, o governo lançou alguns programas
voltados para o planejamento familiar, teve o Programa de Prevenção da
Gravidez de Alto Risco, e esse programas na realidade, eram programas que
eram absolutamente errôneos, porque o que se propunha para a prevenção da
gravidez de alto risco eram métodos que as mulheres de alto risco não
poderiam ter acesso, por exemplo, a pílula anticoncepcional não pode para a
mulher fumante, mulheres a cima de 35 anos, enfim, essa coisa toda.
(HILDA)

Nós éramos formadas para serem feitoras, ainda mais eu que fui formada
numa escola muito tradicional e num período muito especial. Então, eu não
tinha dúvidas que eu estava me formando para manter o hospital em ordem e
submeter aqueles dóceis corpos na enfermagem a um modelo, a uma ordem
vigente. Então, até você acordar e ver que você está reproduzindo um modelo
torto, tacanho, foi uma luta muito grande. (CORDÉLIA)

Eu fui usuária do CPAIMC, porque eu com 22 anos queria experimentar o tal


do diafragma (...)Aí eu fui no tal de CPAIMC, aí fiz meu cartãozinho, era na
Avenida Brasil. Eu lembro, eu já tinha um olhar crítico né? Era um salão com
quarenta mulheres e a enfermeira lá com aquele álbum grande [...] Então, ela
com o álbum passava rápido falando de todos os métodos em uma hora e
meia e ela falando do diafragma “mas, isso não funciona!” e passava a
página, “porque isso é método natural” e passava a página, era assim! Eu tive
que insistir ali, “porque eu quero o diafragma!” [...] Isso não era trabalho
educativo. Porque eu era muito pentelha e peguei o diafragma, era até de
látex. (JÚLIA)

Então nós tínhamos naquela época o Programa Materno Infantil. O Programa


Materno Infantil, ele visava, antes de mais nada, um programa de
planejamento familiar, como era chamado, visando diminuir a natalidade,
entende? Esse era um programa que era investido muito dinheiro, porque era
necessário diminuir essa natalidade, basicamente de pessoas pobres e pessoas
negras [...] não vamos deixar mais nascer pobres e negros. O Brasil é um país
que tem um leque muito grande de nascimentos, desses nascimentos tem todo
o leque de negras e é necessário diminuir essa natalidade. Era um controle de
natalidade mesmo. (NÍSIA)

Os testemunhos demonstram que esse período anterior ao PAISM, representava


um momento de intensas críticas das feministas ao modelo materno-infantil tendo como
premissa as questões voltadas para um olhar diferenciado sobre a saúde das mulheres.
Sobre o Programa Materno-Infantil, no relatório da V Conferência Nacional de Saúde
em 1975, aparece como importante esse tema a fim de levantar maiores recursos para
essa população e mais do que isso, o coloca como parcela quantitativa relevante que
deve ter um olhar atento sobre sua condição:
Considerado em seu sentido mais amplo o grupo materno-infantil (mulher em
idade fértil, gestante, parturiente, puérpera, criança e adolescente), abrange
88

cerca de 70% da população total do País. A importância biológica e sócio-


econômica do grupo em pauta levou o Ministério da Saúde a destacá-lo como
de prioridade para efeito das ações integradas de saúde de interesse
coletivo.(BRASIL, 1975, p.49)

Outro dado a complementar que tipos de ações estavam sendo destinadas para a
área da saúde nesse momento de final da década de 1970, a VI Conferência Nacional de
Saúde (1977) tinha como principal assunto o controle das grandes endemias, com o
discurso do Ministro de Estado da Saúde Paulo Machado em muito enfatizando esse
tipo ação do Ministério da Saúde:
Depois de Campos Salles [sic], raríssimas foram as oportunidades concedidas
à Saúde Pública Brasileira para assumir a responsabilidade por projetos de
vulto sem orientação e supervisão estrangeira. Talento e capacidade não
faltavam, o que se evidenciou na campanha contra a meningite, na elaboração
de toda a legislação básica de Saúde Pública e, em várias outras empreitadas
de vulto, confiadas por Vossa Excelência aos sanitaristas brasileiros.
(BRASIL, 1977, p.3)

Esses dois trechos, da 5ªCNS e da 6ªCNS traduzem em muito as ações de saúde


que estavam sendo financiadas pelo governo brasileiro. O suposto elogio ao presidente
Ernesto Geisel na ocorrência da 6ªCNS, proferido pelo Ministro Paulo Machado traz a
característica do perfil de políticas que estavam sendo implementadas para a saúde.
O presidente Campos Sales, que governou o país entre os anos de 1898 a 1902,
teve sob seu mandato graves questões de saúde pública que culminaram em 1904 na
Revolta da Vacina 16, lamentável episódio ocorrido no Rio de Janeiro no qual cidadãos
eram obrigados a serem vacinados por conta da epidemia de varíola. O momento da
Revolta da Vacina se deu em meio a um contexto de boom demográfico da população
do Rio de Janeiro em que as autoridades não ofereceram condições de higiene para a
população mais pobre aqui residente. Nesse mesmo governo, foi criado o Instituto
Soroterápico Federal em 1900, que se transformou em Instituto Manguinhos em 1907,
conhecido como Fundação Oswaldo Cruz em honrosa menção a Oswaldo Cruz que foi
seu Diretor-geral de Saúde Pública em 1903.
Hoje em nada pode se comparar a Fundação Oswaldo Cruz com o momento de
sua criação. Além de setores da reforma sanitária na década de 1970 fazerem parte desta
instituição propagando os já discutidos princípios de uma saúde que contemplasse a
população em geral, essa instituição é de grande peso político e social atualmente na
formação de profissionais de saúde e na atuação em diversas pesquisas que são muito
importantes para o desenvolvimento brasileiro na promoção de saúde.

16
Sobre o episódio da Revolta da Vacina: CARVALHO, J. M. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a
República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
89

No entanto, a figura de Oswaldo Cruz no episódio da Revolta da Vacina, com a


obrigação de vacinação dos cidadãos brasileiros com pena de prisão para aqueles que
não cumprissem essa lei, isso apoiado pelas autoridades políticas brasileiras, reforça
dois aspectos essenciais do discurso do Ministro Paulo Machado: as ações pontuais de
saúde para prevenção de doenças e o discurso autoritário de médicos e profissionais de
saúde em relação a essa população.
O que de alguma maneira reforça as críticas que as feministas estavam fazendo
aos programas Materno-Infantil e Programa de Gravidez de Alto Risco, bem como à
postura autoritária dos profissionais de saúde. Sobre essa questão trago aqui um trecho
retirado do PAISM que propõe que a promoção de saúde não seja atribuída a ações
pontuais:
Em relação à atenção à mulher - objeto primordial desta proposta - os
serviços de saúde devem ser dotados de meios adequados, articulando-se os
esforços do governo federal, dos estados e municípios, com o objetivo de
oferecer atividades de assistência integral clínico-ginecológica e educativa,
voltadas para o aprimoramento do controle pré-natal, do parto e do puerpério;
a abordagem dos problemas presentes desde a adolescência até a terceira
idade; o controle das doenças transmitidas sexualmente, do câncer cérvico-
uterino e mamário, e a assistência para concepção e contracepção (BRASIL,
1984, p.6).

O PAISM portanto, assinala duas diferenças fundamentais em relação ao


programa Materno-Infantil: é destinado às mulheres e não se propõe a ser uma ação
isolada de forma a buscar solucionar problemas do grupo, mas de promoção de saúde e
atenção ao grupo para atendimento de suas necessidades. Esse trecho reforça a ideia de
promoção de saúde do PAISM quebrando com as típicas ações pontuais do Ministério
da Saúde. Outro ponto a ser considerado no PAISM é a atenção que se dedica à mulher,
o que não está explícito no materno-infantil, que como o próprio nome traduz não inclui
todas as fases da vida das mulheres e nem as suas necessidades de saúde.
Essas primeiras discussões em torno do materno-infantil em relação à criação do
PAISM corroboram a minha hipótese de que o PAISM faz parte de um movimento
muito maior de ações em relação não só aos direitos das mulheres, mas que estão
inscritas no processo de redemocratização brasileira no início da década de 1980.
Marcar esse momento com a diferença em relação ao materno-infantil, a meu ver é
também trazer uma diferença fundamental em que tipo de política o PAISM deveria
estar inserido para que pudesse ser implementado.
Se as ações pontuais de saúde estão intimamente ligadas a um modelo autoritário
de saúde por parte dos profissionais, o PAISM representava também as vozes de uma
90

participação da sociedade em quebrar essa autoridade de saúde, para uma ideia de


promoção de saúde, e a essas ideias estavam intimamente ligadas à participação popular
na construção da democracia. O fato de o programa marcar essa diferença está em ser
situado nesse contexto, sinalizando que ainda que a ditadura estivesse presente, a sua
saída estaria sendo marcada por programas como este que previa um olhar diferenciado
sobre saúde e cidadania e que também deixava claro que os movimentos sociais - em
especial no caso do PAISM – e os movimentos feministas, eram vozes fortes para as
mudanças do modelo ditatorial para um modelo político mais democrático.
Nesse sentido, vejo como importantíssimas as ações das feministas em
implementarem esse programa, ao passo que essas e outras ações dos movimentos
feministas afirmavam uma postura de participação democrática e representavam uma
parcela muito importante no processo democrático que se desenrolou na década de 1980
culminando principalmente na Constituição de 1988.

4.3 Criação e Implantação

O que percebi de forma geral é que o processo de implantação foi lembrado


como uma memória negativa e os pontos que se repetiam nas críticas ao PAISM estão
centrados em problemas como: envolvimento da Igreja com os assuntos ligados à
contracepção e ao aborto; a gestão política de saúde tanto dentro do Ministério da
Saúde, quanto no município do Rio de Janeiro; e resistência dos profissionais de saúde
em relação aos conceitos do programa. Vamos a algumas percepções sobre esse
processo.
Então, em 1986 ou 1987, foi formalmente implementado o PAISM, então
você vê, muitos anos depois. Foi lá na cidade [centro da cidade do Rio de
Janeiro] naquele antigo prédio que funcionava o Ministério da Saúde, na Rua
México, lá no auditório em cima numa mesa, estou vendo a cena, Dr. Hésio
Cordeiro, [...] alguns deputados, pessoal de saúde e tal, alguns do governo, e
a presença de religiosos. Mostrando claramente essa dificuldade de você
efetivamente trabalhar com esse conceito de estado laico. Nós estávamos ali,
num evento absolutamente secular para a saúde e tinha a presença da CNBB
e, inclusive, eu me lembro da presença de uma religiosa, e a influência da
Igreja no PAISM fica clara porque dentro dos métodos contraceptivos tinham
que ser colocados todos os métodos ditos naturais, como o muco, a
temperatura e... foi assim, um momento muito exemplar, tanto inaugural
quanto marcando também o que vem sendo ao longo de tudo, todas essas
décadas, já podemos falar em décadas, dessa relação entre o Estado,
sociedade civil e a Igrejas no que se refere à saúde sexual e reprodutiva e nos
91

direitos sexuais e reprodutivos no Brasil. E você vê um padrão que sempre


resiste, a presença da Igreja ali marcando fortemente. Essa é uma memória
muito vívida que eu tenho do PAISM. (GEORGINA)

Aí a Igreja que já tinha o seu poder na sociedade há muito tempo, estava aqui
e acolá, e estava dentro do Ministério da Saúde, questionou, obviamente, de
cabo a rabo. Nós tivemos dentro do Ministério da Saúde algumas pessoas que
ficaram conosco, nos ajudaram e algumas já faleceram, médicos que
enfrentaram essa briga e o programa saiu, e se tornou uma realidade. Aí eu te
digo o seguinte: nós mulheres, organizadas, com um processo de crescimento
que nunca para em nível de Brasil, na área de saúde, nós brigamos pela
implantação do PAISM em sua totalidade de 83 pra cá [2012]. (NÍSIA)

A presença maciça da Igreja nos debates relacionados às questões da sexualidade


contidos nos princípios do programa é algo extremamente questionado pelas feministas
em relação ao PAISM. No entanto, é importante lembrar que a Igreja somava forças na
ditadura com as organizações de esquerda contra o governo dos militares e somava
forças no debate do controle da natalidade - por motivos diferentes daqueles
apresentados pelas feministas, mas estava presente. No momento de criação do PAISM
e no decorrer dos anos seguintes até as eleições diretas para presidente da República em
1989, as organizações de esquerda transformadas algumas em partidos políticos como o
PT e o PMDB, faziam frente contra a ditadura e precisavam de apoio para
permanecerem ativamente dentro do processo democrático.
Em relação aos testemunhos, o lugar de fala das duas feministas, apesar de
diferentes trajetórias: no primeiro caso o feminismo radical e no segundo um feminismo
marxista, no entanto, não diferem muito uma da outra quanto à crítica dos setores
religiosos nos assuntos políticos. O que faz pensar uma possível aliança de forças
também das feministas na década de 1980 para realizarem as políticas públicas
relacionadas às mulheres, para além das diferenças das correntes dentro dos
movimentos.
As diferenças entre as correntes feministas era um fator importante de
identificação nas falas em um primeiro momento antes da abertura democrática,
contudo, no momento após a pergunta sobre a criação do PAISM não apareceram mais
as mesmas rivalidades que antes haviam aparecido sobre o contato inicial com as causas
feministas. As diferenças entre os ativismos se pronunciavam principalmente entre as
correntes marxista e radical, e se referem nas falas principalmente ao ativismo dentro e
fora do Centro da Mulher Brasileira na metade da década de 1970. Trago aqui esses
testemunhos para contrastar com a mudança nas falas após a pergunta sobre o PAISM:
Aí a gente organizou na ABI … Que a ABI na época, Associação Brasileira
de Imprensa, era o grande passo da esquerda brasileira, onde todo mundo ia
92

fazer um evento e dar o grito do novo. Aí a gente organizou esse espaço, com
o partido político [Partido Comunista] da época ajudando, com pessoas
influentes … e aí fomos até lá e fizemos uma discussão sobre nós, mulheres.
No final desse evento nós criamos o CMB – Centro da Mulher Brasileira.
(NÍSIA)

Nesse testemunho é notória a ligação do Partido Comunista na formação do


Centro da Mulher Brasileira. Esse dado está presente também na pesquisa de Goldberg
(1987), na qual são entrevistadas as mulheres que participaram do Centro da Mulher
Brasileira e trabalha com essa influência direta do Partido Comunista nas discussões
sobre as mulheres. Em outro estudo Soihet (2006) que analisa também testemunhos de
mulheres feministas da segunda onda, aponta para essa ligação como uma característica
do momento histórico brasileiro de ditadura e as dificuldades que as questões das
mulheres tinham para conquistarem seus espaços:
Embora com influência das experiências européia e norte-americana, os
primeiros anos deste movimento feminista no Brasil foram marcados de
forma significativa por esforços de contestação à ordem política vigente no
país. De um lado, enfrentou o feminismo aqui instaurado a oposição do
governo que via com desconfiança qualquer forma de organização da
sociedade; de outro, dos grupos de esquerda que consideravam que a luta
deveria se polarizar contra o governo autoritário e a desigualdade de classes
aqui vigente, além de inúmeros desses grupos considerarem o feminismo
como um fenômeno burguês. Acresce o fato de que particularmente, com
relação ao Partido Comunista, observa-se a iniciativa deste em tornar aquelas
que dele faziam parte um instrumento para implementação de suas propostas
no CMB (SOIHET, 2006, p.3).

Sobre essa ligação, os testemunhos das ativistas radicais criticam o


envolvimento com a esquerda como limitador para os assuntos das mulheres:
Porque o que aconteceu com o Centro é que ficou manipulado pelos grupos
políticos que estavam clandestinos, então elas representavam essas pessoas.
Aí, tinha assuntos que discutiam numa reunião, que depois não podiam
discutir: “isso não pode, aborto não pode falar!”, “isso é coisa de burguês
feminista!”, “isso é coisa de ‘bucetista [sic]’!”, tinha muito preconceito. E
nós fomos vendo que não dava para continuar lá, então nós fizemos o
Coletivo de Mulheres do Rio que é um grupo que teve também uma boa
atuação. (CORA)

Mas, havia essa identidade do feminismo com a esquerda e em determinados


momentos ela foi limitadora, porque o tema da sexualidade, por exemplo, foi
um tema considerado enviesado, a questão da mulher era o trabalho né? O
Centro da Mulher Brasileira se caracterizou muito por essa questão entre
aspas mais política, como se a sexualidade não tivesse nesse terreno [...] No
Centro da Mulher Brasileira, eu nunca me esqueço que uma ocasião que elas
diziam que nos éramos burguesas que tomávamos chá para falar de sexo.
Elas foram fazer um debate no morro do Chapéu Mangueira e me pediram
para falar sobre direitos do trabalho, tudo bem vamos lá, eu peguei uma
porção de coisas, fiz um roteirinho imaginando que as mulheres iam me
perguntar sobre o trabalho. Bom, nenhuma me perguntou sobre trabalho, o
que elas queriam do direito era sobre família, “porque o pai que sumiu, como
eu faço!”, naquela época não tinha exame de DNA, então as perguntas eram
da família. Dito isso, elas começaram a entrar na questão da sexualidade.
93

Tinham mulheres mães solteiras, tinham mulheres que tinham feito aborto e
foram abrindo essas intimidades para a gente. Teve um dia que uma médica
do grupo foi fazer uma palestra sobre o diafragma, e ela então pegava o mapa
do aparelho reprodutivo, “aqui então o diafragma!”, aí entra a Branca e diz,
“Não é nada disso, ela não está explicando nada direito! Aí é o útero, aqui
para baixo é o diafragma!”, aí a Branca abriu a bolsa dela, tirou o diafragma
dela e explicou com todas as letras como se usava o diafragma. Quer dizer,
pode ser uma coisa meio anedótica, mas mostra muito como era essa visão
estreita do que era político, estreita do que era a vida das mulheres, a vida das
mulheres não é só trabalho é muito mais! (HILDA)

Essas duas falas demonstram claramente como as ideias feministas que diferiam
do modelo marxista divergia dentro do Centro. A primeira fala de Cora, diz da criação
do Coletivo de Mulheres do Rio de Janeiro, um grupo dissidente do Centro da Mulher
Brasileira, formado por mulheres que em muito se identificavam com o feminismo
radical. Estava à frente desse Coletivo, dentre outras mulheres, Danda Prado, uma
feminista que tem sua trajetória marcada com a experiência do feminismo em Paris,
sendo ativista fortemente ligada às questões do cotidiano e da sexualidade das mulheres,
autora do livro Cícera um destino de Mulher, dentre outros livros que possuem uma
linha de liberação e de superação do patriarcado através da autonomia das mulheres
sobre suas vidas e sobre seus corpos.
Na fala de Hilda, percebe-se também essa crítica à postura marxista do CMB,
quando da qualificação de suas reuniões dentro do Grupo Ceres, um grupo de reflexão
que reunía feministas do Rio de Janeiro que buscavam uma discussão sobre as questões
sexuais e do cotidiano das mulheres. No início da década de 1980, esse grupo publica o
livro Espelho de Vênus – Identidade social e sexual da mulher, uma pesquisa através de
entrevistas a mulheres de diferentes classes sociais e de diferentes idades, sobre
questões da sexualidade e do cotidianos dessas mulheres. O livro tinha como objetivo
trazer essa reflexão de que os problemas de uma mulher em uma sociedade são
pertencentes a muitas mulheres quando sob alvo de uma hierarquia de gêneros, e que
mesmo que as experiências se diferenciassem, traziam à tona os questionamentos acerca
da sexualidade e da vida em sociedade das mulheres. A busca pela igualdade através da
supressão da dominação aparecia como um mote também para esse Grupo.
A partir dessas experiências diferenciadas de feminismo na década de 1970 e de
pontos de vistas bem distintos para tratar as questões das mulheres, a unicidade do
discurso em relação ao PAISM sugere interrogações. Em que momento se deu a “união”
de esforços para que as mulheres pudessem mudar o discurso das falas entremeadas por
posições políticas distintas? Sobre união de forças Soihet (2006, p.5) pontua:
94

Na verdade, na década de 1980, os movimentos feministas no país tornavam-


se uma força social consolidada, em que as relações de gênero assumiram
primeiro plano. Campanhas contra os abusos em relação às mulheres no que
tange a temas até então ignorados como a violência física e simbólica, assim
como a questão do aborto, merecem espaço cada vez mais amplo nos meios
de comunicação, como resultado da mobilização das feministas e da própria
modernização da sociedade brasileira. Assim, a partir desse momento,
questões antes colocadas em segundo plano, vistas como próprias da esfera
privada, tais como as relativas ao corpo, ao desejo, à sexualidade, à violência,
foram legitimadas e trazidas à esfera pública, reconhecendo-se sua dimensão
política.

O reconhecimento pelas feministas da desigualdade de gênero presente na


sociedade brasileira suscitou campanhas sobre a violência contra a mulher e sobre saúde
da mulher. Mas, essa força consolidada que Soihet comenta sobre a situação dos
feminismos na década de 1980, também pode se referir a uma possível união de forças
dos grupos feministas para conseguirem suas demandas em relação às mulheres. No
entanto, dentro desse universo estavam também várias vozes se comunicando e trazendo
perspectivas diferenciadas sobre o momento. Essas vozes inquietantes do PAISM
aparecerão mais a frente no avançar da análise sobre as entrevistas.
Em outros documentos essa “união estratégica” aparece também com força para
explicitar esse momento dos feminismos. No periódico Informe Mulher do Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher em 1986 essa questão é buscada para justificar uma
luta das mulheres:
A Campanha “CONSTITUINTE PARA VALER TEM QUE TER
PALAVRA DE MULHER”, lançada em Brasília no dia 06 de novembro de
1985, está nas ruas. Em 11 estados, com o apoio dos movimentos de
mulheres e dos Conselhos Estaduais e Municipais, atos públicos, debates e
seminários formalizaram o lançamento da Campanha, que é uma das
prioridades dos trabalhos do Conselho Nacional dos Direitos das Mulher,
neste ano de 1986 [...] O “Comitê de Mulheres pela Constituinte do Rio de
Janeiro”, que reúne integrantes de 50 entidades, com o CNDM promoveu o
lançamento da Campanha no Estado em ato público, na Assembleia
Legislativa no dia 14 de abril. Esse Comitê realizou em maio, com a
participação de representantes de todas as entidades que o integram, um
seminário para debater as proposições à Constituinte. 17

A característica da unicidade não significa que não houve disputa entre as


feministas por reivindicações próprias de cada grupo. Apenas não aparece como um
fator na fala das entrevistadas sobre implementação do PAISM essas possíveis disputas.
Sobre discursos baseados na unicidade, Voldman (2006) alerta que personagens que
tenham participado ativamente da história de um grupo tendem a supervalorizar

17
Grifos da publicação.
95

determinados momentos, tornando homogêneas as ações daquele coletivo através de


uma fala estruturada:
Consciente de ter uma mensagem a comunicar, a testemunha fala
apropriando-se do passado e do grupo; ela seleciona as lembranças de modo a
minimizar os choques, as tensões e os conflitos internos da organização,
diminuindo a importância dos oponentes [...] Assim, elas costumam
apresentar uma história do seu movimento unânime e sem falha
(VOLDMAN, 2006, p.40).

As falas estruturadas sem rupturas aparecem sobremaneira quando os assuntos


ligados à implementação do PAISM envolvem a experiência das entrevistadas na busca
pelos dos direitos das mulheres. Esse mesmo mote está presente também nos
documentos escritos, que aqui pinçados não oferecem uma análise aprofundada sobre
esse ponto, mas ilustram essa estratégia de se pensar essa parte da história feminista da
década de 1980. Em mais dois testemunhos essa fala homogênea aparece com força.
Em um primeiro momento teremos a fala de Josefina, que estava diretamente
envolvida com o mandato da Deputada Lucia Arruda (PT- RJ), em 1982, no qual,
quando feita a pergunta sobre a implementação do PAISM, uma das lembranças
referidas a esse momento é o Seminário Direitos da Reprodução, ocorrido em 1984 na
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, sob a égide da deputada e de influentes
feministas do Rio de Janeiro. Sobre esse seminário trarei uma nota do jornal Mulher é
Vida do Fórum Feminista do Rio de Janeiro de maio de 1988, que o sinaliza na coluna
Ações Feministas como uma das atuações de destaque do feminismo carioca na década
de 1980. Esses dois documentos, o jornal e o testemunho, tem por função trazer essa
reflexão de Voldman (2006) para a fala das feministas, como um caminho a ser pensado
na construção da memória da história dos feminismos no Rio de Janeiro.
O gabinete da Lucia passou a ser o escritório do movimento feminista do Rio
de Janeiro. Era uma coisa muito engraçada, uma coisa muito inusitada, já me
entrevistaram sobre isso. Porque o mandato da Lucia era um mandato fora de
série, um mandato coletivo, o grupo que apoiou que tinha poder de decisão,
discutia tudo, no primeiro mandato [...] Mas, teve um seminário
emblemático, um seminário dentro da Assembleia Legislativa, com 300
mulheres que nós convocamos e era sobre saúde, sexualidade e direitos
reprodutivos, nessa época não se falava em direitos reprodutivos, se falava
em direitos da mulher. Tinha publicações, eram em caderninhos, porque
caderninhos eram mais baratos né? Tinha uma lá que desenhava, era para
mulheres populares que não podia ter muita coisa escrita. [...] Pelos
corredores eram mesas para falar. Esse seminário era organizado em
plenárias e em grupos, para que todos pudessem falar né? No inicio todos
ficaram meio assim, mas depois esqueceram disso parecia uma reunião
dentro de um sindicato rural uma coisa assim, nos apropriamos totalmente.
Foi emblemático do mandato da época, que tinha a ver não diretamente com
o PAISM, mas que discutia saúde, sexualidade, direitos das mulheres,
reprodução. Deve ter discutido alguma coisa do tema, mas eu não me lembro,
96

provavelmente algum tema ligado ao PAISM, estava bem no início [...] Foi
bem interessante. (JOSEFINA)

jornal Mulher é Vida do Fórum Feminista do Rio de Janeiro em 1988:


1984 - Seminário “Direitos da Reprodução” na Assembleia Legislativa,
idealizado por Lucia Arruda, Fernanda Carneiro e Angela Borba, aplicando a
técnica Linha da Vida, em grupos com coordenação de feministas e com a
participação de 300 mulheres. Seminário patrocinado pelos deputados Lucia
Arruda e Godofredo Pinto.

Importante ressaltar que o jornal do Fórum Feminista era feito por feministas
que estavam ligadas - quando em contato com as causas feministas na década de 1970 -
com o feminismo radical. Não tive a oportunidade de entrevistar todas as ativistas sobre
esse seminário, mas percebi que aparecia em algumas falas essa mesma idealização do
passado que diferia do momento presente.
Vou destacar aqui outra fala que traz a perspectiva do feminismo marxista, mas
que também não coloca as diferenças dos grupos feministas como algo presente dentro
do debate tanto da VIII Conferência Nacional de Saúde (1986) quanto da Conferência
Nacional de Saúde da Mulher (1986), ocorrida no mesmo ano.
Quando saiu o PAISM foi uma vitória, nós estávamos felizes, em nível de
Brasil. Cada qual deu a sua contribuição aqui e acolá. Nós demos uma
proposta para o Ministério da Saúde, de que nós fizéssemos uma Conferência
Nacional de Saúde da Mulher. Em 86 aconteceu. Eu fiz parte da comissão
organizadora dessa conferência, aí a gente foi junto com a mulherada toda
que levantava a cabeça. Essa mulherada toda que deu um grito pela liberação
do PAISM. Essa mulherada toda que queria ver a mulher saudável, nunca
tinha tido uma Conferência Nacional da mulher no Brasil, e a primeira foi de
saúde. Aí nós conseguimos um financiamento dentro do próprio Ministério e
fizemos essa conferência, que foi uma coisa de uma beleza ímpar. Três mil
mulheres desse Brasil inteiro em Brasília, durante uns três, quatro dias,
discutindo a nossa saúde. Pessoas que nunca tinham se visto na vida, pessoas
que vieram sozinhas, pessoas que seus partidos políticos mandaram, partidos
políticos de esquerda, pessoas que tinham entidades que custearam, pessoas
de todas as espécies ... Era aquela mulherada que tu nunca tinha visto mais
gorda, aí a gente passou esse mês discutindo: “O que é a nossa saúde? O que
nós queremos? [...] A gente conseguiu na época, fazer cópia do PAISM, e
todo mundo pegou esse PAISM na mão e passamos a discutir esse texto. Aí
as pessoas para mim: “Isso nunca vai acontecer na minha cidade.” Fomos
vendo a dificuldade de implantação, nós terminamos o evento com o
programa falando “e nós vamos lutar para implantar o PAISM em cada lugar
desse país!”. Então, foi uma coisa de uma riqueza ímpar. Quando nós
realizamos a 8ª Conferência Nacional de Saúde, a mulherada já tinha se
organizado e já tinha feito o seu evento, então a gente já sabia o que queria.
(NÍSIA)

A Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher (CNSDM) relatada por


Nísia é também citada no informe do IBASE também do ano de 1986,
A CNSDM – nasceu na estruturação da 8ª Conferência Nacional de Saúde
(8ªCNS), realizada em março passado. Naquela ocasião o Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher (CNDM) negocia com o Ministério da Saúde um
espaço especial para o trato das questões ligadas à saúde mulher. O espaço
97

conquistado na 8ª CNS evolui para a realização de uma conferência nacional


específica sobre a saúde e os direitos da mulher. Dá-se a união de dois
aspectos fundamentais da vida: saúde e trabalho [...] O momento é de se
ouvir os problemas e encontrar, em conjunto, soluções para eles. A
compreensão de que questões complexas como saúde e direito da mulher
necessitam de soluções conjuntas fez com que precedessem a CNSDM, 26
outras conferências estaduais. As conferências estaduais cumpriram seu papel
de integrar mulheres do setor público com mulheres organizadas em
sindicatos, associações e movimento feminista.

O IBASE já conhecido por ter à frente o sociólogo Betinho, associado à


tendências da esquerda política, em muitos momentos estava ligado às causas feministas
na década de 1980. Corresponde, portanto, a mais um elemento dentro do universo
histórico que a história do PAISM e do processo democrático, em pleno vapor nos anos
1980, representa. Nesse trecho, um aspecto interessante a ser observado é a preocupação
em situar o nascimento da Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher 18 após o
debate da 8ª CNS. Correspondendo a isso, uma necessidade específica de trabalhar as
questões ligadas à saúde das mulheres e também a questão do trabalho. Os dois temas
antes vistos como correspondentes a duas correntes do feminismo, respectivamente,
radical e marxista, aqui se encontram no mesmo campo de ação pela busca dos direitos
das mulheres nesse momento. O discurso é ainda reforçado pela ação conjunta das
mulheres em torno de direitos comuns a todas, tendo como premissa a saúde e o
trabalho o que, a meu ver, evidencia uma pista de quais negociações estavam em curso
para que a pauta dos direitos das mulheres fosse organizada naquele período.
Sobre a VIII Conferência Nacional de Saúde, Nísia continua em seu testemunho
trazendo elementos que tornam mais aparente essas negociações em torno das causas
feministas:
Como eu era do “partidão”, era do Partido Comunista, e como eu estava
entrando na parte das mulheres, e como eu tinha entrado na área de medicina
social, eu já tinha outro olhar para esse mundo que eu queria mudar. Quem
estava na reforma sanitária, era todo um pessoal mais antigo, que estava
entendendo este outro mundo e que estava em busca dessa nova sociedade
igualitária [...] Então a gente [as mulheres] sabia o que a gente queria. Todo
mundo chegou no evento da 8ª Conferência Nacional de Saúde, com o papel
na mão. Papel esse que nós construímos coletivamente quando fizemos a
Conferência Nacional da Mulher, entende?[...] Quando chegamos na 8ª
Conferência, obviamente, não tinha mulher sentada na mesa de abertura. Não
tinha nenhuma mesa para discutir a saúde da mulher, não tinha nada. Tudo
estava em processo de mudança na sociedade. E nós fomos lá para dentro e
brigamos com toda a direção: “Ô, Arouca, nós temos que colocar uma
mulher” [...], “Cara se você me bota uma mulher nessa abertura, certo? Essa
8ª Conferência vai por água abaixo.” Aí eu peguei ele, peguei alguns que
estavam na organização, e fizemos uma reunião de “anti-conferência” .
Aquela reunião que você senta no beco: “E isso aqui não está dando certo”,
“Isso aqui não está funcionando”… “Então vamos, quem vai falar?” [...]

18
Ocorrida em outubro de 1986.
98

Eram mais de quatro mil pessoas daquele Brasil inteiro. Aí colocou Carmem
Barroso, ela: “O que eu digo?”. Aí a gente se organizou, não era assim uma
organização de tempo, era assim meia hora. Aí a gente: “Tu vai falar, isso,
isso e isso.” Aí ela pegou o microfone ... Então vamos passar a palavra para
uma representante das mulheres, para trazer a questão… Aí Carmem Barroso
vai e nós atrás do palco, dando força para ela, e ela vai e começa a falar. E foi
uma coisa muito bonita, então as palmas começaram assim: Pá, pá, pá, ….
[em um ritmo lento] e aquilo foi aumentando. Era uma voz nova, certo? Que
tinha que estar dentro da política nacional de saúde. Ali nasceu o SUS, certo?
Que ele é formalizado em 1990. (NÍSIA)

Nesse testemunho é notória a presença das organizações de esquerda, como o


Partido Comunista nas negociações relativas às causas feministas através do duplo
ativismo da entrevistada, no marxismo e no feminismo. Outro aspecto importante é a
referência de data que a entrevistada fornece para os dois eventos, colocando a
Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher anterior à 8ªCNS. Sobre esse
ponto, Portelli (2006) afirma que aquilo que está “referendado oficialmente” como
memória, não necessariamente produz a mesma memória para aqueles que participaram
do processo
Quando falamos numa memória dividida, não se deve pensar apenas num
conflito entre a memória comunitária pura e espontânea e aquela memória
“oficial” e “ideológica”, de forma que, uma vez desmontada essa última, se
possa implicitamente assumir a autenticidade não-medida da primeira. Na
verdade, estamos lidando com uma multiplicidade de memórias fragmentadas
e internamente divididas, todas de uma forma ou de outra, ideológica e
culturalmente mediadas(PORTELLI, 2006, p.106).

A alocação da Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher em


momento anterior è 8ª CNS pode ser um indício de que a afirmação de ter pronto um
discurso sobre os direitos das mulheres seria um sinal de organização e unicidade para
mediá-lo com as outras reivindicações que a esquerda estabelecia nesse momento.
Sobre a fala de Carmem Barroso citada por Nísia, esse discurso aparece nos
Anais da 8ª CNS, realizada em março de 1986. Carmem Barroso a época era conselheira
do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Destacarei partes do discurso relativas às
questões de saúde, que estão sob análise na pesquisa, mas coloco em anexo esse texto
na íntegra para a apreciação de sua fala, que além de ser um documento escrito do
período diz muito sobre as mediações que os feminismos estavam fazendo para terem
em pauta os direitos das mulheres.
O direito à saúde implica no direito a participar ativamente da formulação de
políticas de saúde. E se vamos ultrapassar o nível da retórica vazia, que
repete inúmeras boas intenções sem jamais agir no sentido de concretizá-las,
ou seja, se há realmente a vontade política de democratizar a saúde, esta
Conferência não pode terminar sem medidas concretas e imediatas para
combater a quase total ausência de mulheres na definição das políticas de
saúde. Aqui, apesar de cumprimentar a Comissão Organizadora da
99

Conferência, gostaria de chamá-la a uma autocrítica. Se olharmos o programa


da Conferência, vamos contar 52 participantes como apresentadores ou
debatedores. Desses 52, apenas duas mulheres [...] Esta é uma sociedade
patriarcal, onde até homens que se dizem progressistas consideram natural
sobrecarregar suas companheiras, deixando quase inteiramente sobre os
ombros femininos as responsabilidades domésticas. Não se pode negar que
há uma minoria de mulheres que enfrenta desafios e luta contra todos os
obstáculos. A existência dessas mulheres é alvissareira, mas não pode servir
de álibi para a situação em que se encontra a imensa maioria das
trabalhadoras de saúde neste País [...] mas vou me concentrar na questão dos
direitos reprodutivos, porque são objeto de controvérsia. Há muitos anos que
o movimento de mulheres tem desenvolvido uma luta em duas direções. De
um lado, contra a ideologia controlista que tem inspirado entidades de
planejamento familiar que vêem na mulher apenas a sua função reprodutora,
em desrespeito aos seus direitos como ser humano integral. De outro lado, a
favor da implantação pelo Estado, de serviços de saúde integral que atendam
à mulher em todas as fases de sua vida [...] Constituem como graves
problemas de saúde pública não só o aborto clandestino como o uso
indiscriminado de pílulas sem acompanhamento médico; o recurso extremo é
a esterilização por falta de alternativas [...] Já está na hora de revermos
posições supostamente progressistas, mas que se mantem atreladas aos
setores mais retrógrados da Igreja Católica, não os setores progressistas da
Igreja que defendem a paternidade responsável, mas os que nunca admitiram
o direito à liberdade de opção em qualquer domínio, que determinam que
filmes podemos ver e que não admitem sexualidade desligada da
reprodução.(BRASIL, 1986, pp.116-118)

Esse discurso de Carmem Barroso é significativo em vários sentidos. Primeiro


uma denúncia às organizações de esquerda - aliás uma crítica que repetidas vezes estava
entre as feministas não só pertencente às organizações de esquerda quanto aquelas que
se distanciavam desse ativismo - de que os homens dessas organizações possuíam um
olhar sexista sobre a militância das mulheres. Setores da esquerda a fim de
estabelecerem novas posições políticas no contexto brasileiro organizam a reforma
sanitária, ao mesmo tempo em que estão negociando com os movimentos feministas
para ganhar apoio para suas causas, ou seja, dissolver e enterrar a estrutura autoritária.
As tensões que podem ser apreciadas nesse estudo aparecem quando enunciados os
problemas mais diretamente específicos das mulheres.
Segundo aspecto interessante desse evento, é o fato de estar presente na mesa
debatedora, na qual fala Carmem Barroso, o padre Pedrinho Guareschi, representante da
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) presença única da Igreja em toda
Conferência. A mesa se chamava Saúde como Direito Inerente à Cidadania e à
Personalidade.
Essa presença permitida de setores da Igreja nas questões de saúde no momento
da efervescência democrática é um indicador de que o apoio de todos na construção de
uma voz mais forte no processo democrático era de extrema importância. No entanto,
100

todas as presenças estão mediadas por interesses próprios para terem como aceitas as
suas reivindicações.
Nesse caso, o que está dimensionado na discussão sobre os direitos das mulheres
nos eventos aqui citados e também na conjuntura da década de 1980, é o jogo de
poderes e de resistências para estabelecimento de nova conjuntura com fins
democráticos. Quando Foucault (2011, p.103) analisa o poder coloca em evidência esse
fator correlacional,
O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provêm de
todos os lugares. E “o” poder, no que tem de permanente, de repetitivo, de
inerte, de auto-reprodutor, é apenas efeito do conjunto, esboçado a partir de
todas essas mobilidades, encadeamento que se apóia em cada uma delas e,
em troca, procura fixá-las. Sem dúvida, devemos ser nominalista: o poder não
é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma potência de que alguns
sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica numa sociedade
determinada.

Apoiando-me nessa definição de Foucault, transporto para a minha análise essa


ideia do poder sendo exercido de diversas formas e atos em diferentes momentos.
Dentro do próprio feminismo disputas e tensões procuram espaço para as suas
reivindicações serem atendidas; quando em contato com as organizações de esquerda, à
frente, o Partido Comunista, novos embates são travados que também geram novas
necessidades através da busca por tornarem aparentes seus discursos; dessas
necessidades há o confronto com os setores religiosos da Igreja Católica, que também
travam entre si disputas de interesses para a conquista de apoio político para as
demandas próprias baseadas na sua doutrina; e que todos (as) ao mesmo tempo estão
permanentemente negociando entre si para uma outra disputa maior com os
representantes da ditadura brasileira. Dentre outras batalhas que aqui não tiveram
espaço.
As relações de poder baseadas na acepção de Foucault, não possuem um núcleo
somente, são diversas e estão disseminadas por uma rede de poderes e resistências que
não possuem um ponto de tensão, como a classe ou o Estado. O que não significa uma
total relativização das situações e processos históricos, investigar sob essa premissa gera
uma necessidade de não procurar uma origem ou uma causa nos processos históricos,
mas visões sobre esse mesmo processo, percebendo rupturas e resistências, excluindo a
possibilidade de uma essência sobre aquilo que deva ser analisado. Entendo o conceito
de poder formulado por Foucault como instrumento importante para analisar as
disputas feministas dentro do meu campo de análise. A ideia de que poder se exerce a
partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis (FOUCAULT,
101

2010) me ajuda a compreender como as diversas vozes do processo democrático


estavam atuando para terem suas demandas políticas assistidas e com presença no
debate da efervescência democrática.
As falas que denunciam a dificuldade do PAISM em ser implantado com relação
às questões religiosas, denunciam não somente essa questão, mas uma série de conflitos
que estão imbricados nessa relação da Igreja com a política brasileira. Mais uma vez, o
PAISM e sua implantação são o reflexo desse momento e as disputas que dele suscitam
são também parte desse momento histórico em que as vozes estão em muito dissonantes
para procurarem obter êxito nas suas demandas. No entanto, quando a fala voltada para
a unicidade nesse momento é evocada durante as entrevistas, sugere que mesmo que
houvessem acirradas disputas no interior desse processo democrático, a busca pela
unicidade para terem à frente as demandas das mulheres era uma necessidade
estratégica dos esforços feministas em buscarem o consenso para ocuparem espaços
relevantes no processo democrático.
Dando continuidade à análise das entrevistas, as críticas sobre a implantação do
PAISM apontavam também para diversas dificuldades dos profissionais de saúde em
trabalhar com as questões propostas do programa. Essas dificuldades citadas pelas
feministas se situavam na base do discurso médico, fundamentado na autoridade em
relação ao “paciente”:
A batalha foi implementar. Era a maior dificuldade, porque tinha o programa,
estava escrito, mas os funcionários não queriam mudar suas práticas, não
queriam saber daquilo não! Não era fácil. (JOSEFINA)

Eles não conseguiam, na grande maioria, ver que nós éramos esse ser
integral. Tinha também uma coisa milenar, certo? O corpo da mulher, o
corpo feminino, certo? E este corpo doente, é do domínio da área médica e
não da mulher. Então, no momento que ele ia se separar daquilo, criou um
“frisson”. Quem são essas mulheres que querem conhecer o seu corpo e
definir sobre esse corpo mais do que eu, médico? Então, era o poder
lentamente saindo de mãos de médicos, para que nós pudéssemos entender
mais quem somos nós. Quando no início da década de 70, nós jogamos
aquela frase na rua – que vale até hoje – “Nosso corpo nos pertence”, é algo
de uma importância capital. Porque para muita gente, custou a entender e
custou a aceitar e até hoje tem gente que não aceita. Nosso corpo nos
pertence é meu! Eu faço dele o que eu quero, certo? Eu engravido, eu quero
ver o programa; eu não engravido; eu quero ter um espaço; alguém me ousa;
eu quero ter uma psicóloga; eu quero ter um excelente método contraceptivo,
acertado há muito e muito tempo; eu quero ter o direito de envelhecer.
Desculpa, mas eu faço o que eu quero! Eu quero transar com 70 anos de
idade e ninguém pode dizer não, porque esse corpo é meu e eu transo da
forma que eu quiser. Então essa frase, foi revolucionária no mundo inteiro.
As mulheres do mundo inteiro, cada qual trabalhava essa frase e trabalhava
durante muitos anos, porque era o maior grito nosso, entende? (NÍSIA)
102

Não sei se atualmente existe um estudo de como vai o PAISM. [...] Há uma
resistência ideológica muito grande dos profissionais de saúde, essa idéia de
que a mulher tem direito está muito longe da cabeça deles, bom na questão
do aborto eles dizem que é uma questão de escusa de consciência [...] tudo
bem, ele tem direito a escusa de consciência, mas a instituição não tem, tem
que ter um médico que faça o procedimento do aborto previsto em lei. [...] Eu
acho que tem uma coisa complicada mesmo, é um país grande, com um
sistema de saúde extremamente descentralizado... Como esses profissionais
de saúde percebem isso? Eles estão tendo treinamento para exercerem bem a
sua função, para conhecerem bem a lei, para conhecerem bem os direitos das
mulheres? Enfim, é um mundo que é bem estranho, que ao mesmo tempo
você tem um país muito moderno, e ao mesmo tempo você tem um país
muito atrasado, uma série de coisas, principalmente, as mentalidades [...]
Tem todas essas contradições que a gente não pode ao analisar a
implementação do PAISM isolar, é o Estado que é culpado, é isso aqui... não!
Eu acho que tem ainda a parcela de responsabilidade do Estado, ainda tem a
parcela de responsabilidade da sociedade que ainda vive em torno de valores
muito conservadores, ao mesmo tempo em que, ótimo as mulheres estão aí
dançando de biquíni na praia, e todo mundo diz “olha, a liberdade sexual!”,
mas não é! (HILDA)

Os três testemunhos aqui escolhidos trazem esse problema à tona com algumas
questões que analisarei mais profundamente. As três feministas tinham um ativismo
dentro feminismo que remontava à década de 1970, estavam presentes no seminário da
ABI e acompanhavam as questões em relação às mulheres no contexto brasileiro. No
entanto, as três não estavam diretamente envolvidas com a ponta e o lugar de fala das
críticas está ligado às capacitações dos profissionais de saúde que envolviam a
implementação do PAISM.
Um dos aspectos importantes para trabalhar as questões dos métodos
contraceptivos com as mulheres nos serviços de saúde era através de práticas educativas
que contemplavam uma visão horizontal entre profissionais de saúde e usuárias. Essa
visão dependia de os profissionais levarem em conta as vidas das mulheres, suas
especificidades, seus desejos, suas relações com os parceiros (as), suas sexualidades,
enfim, não somente as questões relacionadas a doenças. A implantação do PAISM
dependia de práticas educativas que levassem em conta as demandas das mulheres em
terem métodos contraceptivos de qualidade e ser uma opção para as mesmas, mediante
o conhecimento desses métodos, qual caminho a seguir na contracepção.
As práticas educativas que me centrarei nesse estudo são aquelas que visam,
principalmente, o olhar sobre o corpo das mulheres e da sua sexualidade. Antes vou
desmembrar algumas situações importantes para se ter em mente as questões da
dificuldade com os profissionais de saúde no sentido de aplicarem essas práticas.
103

Investigando as críticas

Quando se comenta a autoridade médica sobre os corpos na medicina,


precisamente os corpos das mulheres, o que significa essa autoridade? Mais do que uma
atitude é uma tradição que ganhou força no século XIX quando a ciência ganha
proporções inimagináveis através do método científico e da razão em contraposição aos
preceitos religiosos para se entender o mundo, os acontecimentos, bem como os eventos
da natureza e tudo o mais que dissesse da existência de homens e mulheres.
A ciência e a razão abriram literalmente os corpos, antes sagrado campo dos
cânones católicos, para buscar o seu funcionamento, suas reações e o próprio mistério
das doenças e, por fim, dos comportamentos humanos. Dos barbeiros cirurgiões na
Idade Média Ocidental, dos médicos que aplicavam técnicas de cura baseadas em
sangrias e humores na Renascença, aos procedimentos cirúrgicos e medicalização
conhecidos até os dias atuais, são séculos de conhecimento acumulados e que em
diferentes momentos ganharam acepções diversas, entretanto, as rupturas desse
processo contam com uma continuidade importante para a formulação desse
conhecimento: a clássica separação entre médico e “paciente”.
Mais do que uma separação entre esferas diferentes, dentro desses meandros há
uma outra separação baseada em questões de gênero que traduz uma relação de
desigualdade hierarquizada: médicos homens e “pacientes” mulheres. Nesse ínterim, as
relações de gênero reforçam as ideias de quais espaços ocupavam as mulheres no século
XIX nas sociedades ocidentais desse período e o que proporcionava aos homens se
debruçarem sobre a medicina se apropriando desse discurso para gerar hierarquias de
gênero sobre o comportamento das mulheres e sua ligação com o sexo e funcionamento
do corpo.
Embora a discussão sobre esse tema seja alvo de muitos trabalhos e, ainda que
essa discussão seja de tal ponto crucial para a análise das falas inquietantes sobre o
PAISM e os profissionais de saúde, não tenho a intenção de me aprofundar
demasiadamente no assunto. Isso o faço por dois motivos, o espaço pequeno que tenho
para divulgar essas discussões nos limites da dissertação e seu objetivo; segundo, pelo
correr dos ponteiros para apresentar os resultados dessa pesquisa. Aponto caminhos.
Na trilogia dos livros História da Sexualidade, Foucault, apresenta argumentos
interessantes para se pensar a chamada hipótese repressiva sobre a sexualidade de
104

homens e mulheres no decorrer do séculos XVII até o XX, no mundo Ocidental. Seu
trabalho em desfazer essa hipótese está em demonstrar que o advento da medicina como
uma ciência não fez que esse conhecimento da sexualidade fosse liberado dos cânones
católicos repressivos, mas que o olhar exaustivo sobre o tema seria obra de uma
repressão invertida, de controle das práticas sexuais através do conhecimento das
mesmas. O discurso médico autoritário estaria ligado, principalmente, nessa vontade de
saber e de controlar ao mesmo tempo as práticas sexuais de homens e mulheres
Pois essa colocação do sexo em discurso não estaria ordenada no sentido de
afastar da realidade as formas de sexualidade insubmissas à economia estrita
da reprodução (dizer não às atividades infecundas, banir os prazeres
paralelos, reduzir ou excluir as práticas que não têm como finalidade a
geração)? Através de tais discursos multiplicaram-se as condenações
judiciárias das perversões de menores, anexou-se a irregularidade sexual à
doença mental; da infância à velhice foi definida uma norma do
desenvolvimento sexual e cuidadosamente caracterizados todos os desvios
possíveis; organizaram-se controles pedagógicos e tratamentos médicos; em
torno das mínimas fantasias, os moralistas e, também, sobretudo, os médicos,
trouxeram à baila todo o vocabulário enfático da abominação [...] Toda esta
atenção loquaz com que nos alvoroçamos em torno da sexualidade, há dois
ou três séculos, não estaria ordenada em função de uma preocupação
elementar: assegurar o povoamento, reproduzir a força de trabalho,
reproduzir a forma das relações sociais; em suma, proporcionar uma
sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora?
(FOUCAULT, 2011, p.43)

Em parte esses argumentos combinam com minha análise e posso utilizá-los no


sentido de oferecer um caminho para pensar por que motivos as mulheres brasileiras
apontadas pelas entrevistadas seriam alvo de práticas médicas autoritárias no campo da
contracepção. O não saber da “paciente”, coloca nas mãos de médicos (as), enfermeiras
(os), além de outros (as) profissionais de saúde, o controle do uso de contraceptivos,
quais contraceptivos, quais os usos e de que forma isso seria administrado pela
“paciente”. Outro ponto interessante na crítica contundente de Foucault é o
envolvimento da política nos assuntos do campo da sexualidade 19, o que em muito
traduz o momento que as entrevistadas estavam denunciando. A década de 1980 no

19
Sobre sexualidade refiro-me: “A sexualidade humana diz respeito aos usos do corpo e, em particular –
mas não exatamente – dos órgãos genitais, a fim de obter prazer físico e mental, e cujo ponto mais alto é
chamado por alguns de orgasmo. Fala-se de conduta, comportamento, relações, práticas e atos sexuais. De
uma maneira mais ampla, a sexualidade pode ser definida como a construção social desses usos, a
formatação e ordenação dessas atividades, que determina um conjunto de regras e normas, variáveis de
acordo com as épocas e as sociedades” (Lhomond, 2009). Com esse conceito consigo trabalhar tanto com
as falas das entrevistadas que dizem do processo das oficinas de práticas educativas que traziam o tema da
sexualidade, baseando-se nas práticas, regras e comportamentos que as feministas discutiam com as
usuárias de saúde, quanto com as acepções que aqui trago sobre a problemática do discurso médico
autoritário e toda a crítica de Foucault em cima das normas ditadas através do controle estabelecido pela
vontade de conhecer, que a medicina atribui às questões relacionadas à sexualidade.
105

Brasil estava envolta, entre outros assuntos, do debate de controle da natalidade, pressão
externa dos Estados Unidos.
Outro caminho que acaba cruzando essa perspectiva é o estudo de Thomas
Laqueur (1991), Inventando o Sexo, que em seu minucioso olhar para as práticas
médicas ao longo da história Ocidental, tendo como início o período correspondente à
Idade Média até o século XIX com as ideias de Freud, o conhecimento da medicina vai
investindo de significados a ideia de sexo, passando de um momento que se considerava
o sexo único, no qual os homens seriam os representantes e as mulheres como homens
imperfeitos - homens que literalmente tinham os órgãos masculinos virados para dentro
- para outro momento em que homens e mulheres teriam suas diferenças biológicas
acentuadas pela questão sexual e acompanhadas disso, a questão social. A forma como
coloca em seu livro essas questões, traz reflexões importantes sobre como os corpos
foram sendo imbuídos de significados ao longo dos anos e dos momentos históricos.
Cada momento histórico tinha a sua visão de mundo e trazia consigo as
concepções de mundo que visavam recolher significados políticos para as movimentos
de homens e mulheres no sentido de reproduzirem não só as teorias pensadas pelos
estudiosos, mas também de reproduzirem sistemas políticos. Daí se tira a grande
importância que teve no século XIX para pensadores como Rousseau e Hobbes, dentre
outros, de localizar as mulheres dentro da visão de mundo proposta por suas teorias. O
que trago para essa discussão aqui, é que as ideias Iluministas que nos influenciam até
os dias atuais, estão cheias de conteúdos que se entrelaçam para formar a sustentação de
um modelo de sociedade e sua tradição. Sobre esse ponto Lacqueur (2001) discute
bastante no seu livro as disputas que os significados do corpo adquiriram a partir das
ideias do Iluminismo no séxulo XVIII, no advento da Revolução Francesa:
As promessas da Revolução Francesa – onde a humanidade em todas as suas
relações sociais e culturais podia ser regenerada, que as mulheres podiam
atingir não só as liberdades civis, como também pessoais, que a família, a
moralidade e as relações pessoais podiam ser renovadas – fizeram surgir não
só um feminismo novo e genuíno como também um novo tipo de
antifeminismo, um novo medo das mulheres, e fronteiras políticas que
criaram fronteiras sexuais. A criação de uma esfera pública burguesa, em
outras palavras, levantou com violência a questão de qual sexo(s) deveria
ocupá-la legitimamente. E em todo lugar a biologia entrava no discurso.
Obviamente, os que se opunham a um crescente poder civil e privado das
mulheres – na grande maioria homens articulados – criaram a evidência da
inadequação física e mental das mulheres para esses avanços: seus corpos
não eram adequados aos espaços quiméricos que a revolução abrira
inadvertidamente (LACQUEUR, 2001, p.213).
106

Ordenando as ideias aqui propostas: o discurso médico autoritário ligado à


sexualidade no sentido de conhecer e ao mesmo tempo propagar um controle propõe
uma visão diminuída da participação das mulheres, ou seja, de não estar preocupado
com as situações que as mesmas colocam como questões de suas vidas; e a investigação
científica sobre o sexo, dentro da perspectiva hierarquizada de gênero, se torna uma
chave importante para legitimar as questões comportamentais das mulheres e homens
nas sociedades, produzindo assim, novos discursos médicos que não levam em
consideração a participação das mulheres enquanto agentes de promoção de saúde e que
devem estar em conformidade com esses cânones científicos para adequarem suas vidas
e objetivos de vida, buscando dessa forma manter sistemas políticos que correspondam
à sujeição das mesmas.
No entanto, o que considero aqui gênero? O conceito de gênero, amplamente
divulgado nas pesquisas acadêmicas, segundo Joan Scott (1986),vem primeiro da
negação de uma idéia bem difundida nas tradições humanistas do século XIX de se
considerar o estudo do comportamento de homens e mulheres a partir dos aspectos
biológicos. Essa negação de Scott, e de muitas (os) autoras (es) do campo das Ciências
Humanas, é fruto de diversas análises acerca do que seria, de fato, sexo e sobre que
premissa as características biológicas possuem em si poderes para determinar
comportamentos sociais.
Negar esse pensamento é também negar a racionalidade que no século XIX
confinou o olhar sobre as mulheres no campo da natureza e seus comportamentos
alinhados com as questões sexuais enfaticamente ligadas à reprodução. Como já
explicitado, a ciência racional procurou a diferenciação sexual a partir de explicações
biológicas que são em muito discutidas e rejeitadas até hoje: os homens com inclinação
a serem fortes e objetivos, as mulheres fracas e sensíveis. Nesse caldeirão de questões
estão envolvidos aspectos religiosos, e, em se tratando da cultura Ocidental,
relacionados à Igreja Católica que muito contribuiu para a difusão dessas idéias.
O sexo tem o seu significado ligado às questões de diferenciação biológicas de
seres humanos, segundo Mathieu (2009), na Biologia, a diferenciação é a aquisição de
propriedades funcionais diferentes por células semelhantes. A diferença é o resultado de
uma diferenciação 20. Essa definição ajuda a explicar em parte os comportamentos
“biológicos” ligados às diferenças, mas não explica outras diferenças em relação ao

20
Grifos da autora.
107

comportamento social de seres humanos. Sobre esse aspecto, Mathieu (2009, p.223)
continua em sua análise
A humanidade faz parte das espécies de reprodução sexuada, por isso ela tem
dois “sexos”, anatomofisiológicos com uma única função de sua perpetuação
física: a produção de novos indivíduos. No entanto, sua marca distintiva, já
detectável nos primatas superiores, é a perda do estro (coincidência entre
excitação sexual e período fértil, nas fêmeas animais). Donde, para as
mulheres, há possibilidades do desejo e das relações sexuais sem risco de
gravidez, mas também de gravidez sem desejo sexual (estupro, um ato social,
parece peculiar ao homem).

O que aparece nessa análise de Mathieu, é que para além de uma diferenciação,
existe uma série de significados imbuídos nos comportamentos sexuais que, nesse caso,
estão ilustrados pelo desejo sexual e pelo estupro. Esses significados assumem uma
hierarquia de valores sociais na forma de gênero, que nada tem de biológico e natural.
Gênero está ligado intimamente com o feminino e o masculino, ou seja, está
ligado à sociabilidade e suas atribuições ditas específicas. A idéia cristalizada de que
mulheres possuem um universo que está ligado à esfera familiar, reproduz uma
associação comum em tratar as questões relacionadas ao sexo como características
inerentes das mulheres. Adjetivos como pudico, escuro, misterioso, guardado, dentre
muitos outros, são encontrados frequentemente relacionados ao universo feminino se
configurando como aspectos da personalidade de mulheres.
Os estudos feministas da década de 1980 vão criticar fortemente essas e outras
associações do tipo que classificam as mulheres de acordo com os seus corpos e suas
funções reprodutivas. Aliados a isso, o mundo vivia um momento de ebulição dos
movimentos contestatórios reivindicando outras identidades e quebrando com as
tradições sociais o que endossava uma revisão das ideias acerca das relações entre
homens e mulheres, com novas vozes vindas também dos movimentos gays e lésbicos.
Scott (1986) conceitua gênero como uma categoria de análise para os estudos
sobre essas relações e propõe essa abordagem para abrir o horizonte das pesquisas
situadas no campo da história e das ciências humanas. Essa abertura propunha situar
historicamente as relações entre homens e mulheres, ou melhor, situar historicamente o
significado que essas relações poderiam ganhar em cada período, e o que isso dizia do
momento em relação a outros aspectos da sociabilidade humana, trazendo para o campo
do gênero a política que muito relutava em se apartar dos estudos que englobassem as
mulheres.
Utilizo aqui Joan Scott, mas tenho consciência que o debate em torno de gênero
é grande e ganha acepções diferentes de acordo com cada autora (or). Estou ciente
108

também das críticas que a categoria de gênero ganha quando vista sob os olhares de
pesquisadoras (es) do patriarcado, ou de outros estudos que procuram descortinar a
opressão das mulheres. No entanto, mais uma vez, o conceito é um instrumento, uma
ferramenta e se não se aplica a todos os processos, porque não possui força para isso, é
um caminho, uma escolha, que tem fundamento nas possíveis respostas que precisam
ser encontradas em cada investigação.
Com claras influências de Foucault e Derrida e autoras (es) que visam a
desconstrução de sistemas fixos baseando-se nas descontinuidades para pensar as
relações sociais, Scott (1991, p.21) define gênero como
O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas
proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado
nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de
significar as relações de poder. As mudanças na organização das relações
sociais correspondem sempre à mudança nas representações de poder, mas a
direção da mudança não segue necessariamente um sentido único.

Dentro dessa perspectiva, gênero diz não somente das relações entre mulheres e
homens, mas das relações de poder que estão inseridas nesse processo. Dessa forma,
Scott chama atenção que a política está também inserida nas representações que as
relações de gênero possuem em dada sociedade e em uma situação histórica. Esse
aspecto plástico do gênero é fundamental para minha análise e é, a partir desse olhar que
busco o que a autora coloca como os quatro elementos para esse tipo de análise:
representação simbólica, ou seja, os símbolos utilizados para representar as relações; os
conceitos normativos que são utilizados pelas instituições a fim de representar os
símbolos da diferenciação e hierarquização nas relações entre mulheres e homens; a
noção de fixidade, ou seja, o que torna essa representação tida como algo natural, sem
escolha, nas questões sociais; e, por último, a identidade subjetiva, que está implicada
com a construção do poder, ou seja, na sua legitimação.
A partir desses esclarecimentos teóricos para instrumentalizar a análise das
críticas que as feministas entrevistadas estavam fazendo ao discurso médico da época, é
preciso avançar na investigação, mas sem perder os fios que conduzem os caminhos da
pesquisa. Faltam algumas questões, portanto, a serem colocadas.
Para uma crítica à autoridade do discurso médico, é necessário entender que tipo
de saúde as feministas do PAISM estavam se apoiando para não identificarem na prática
médica as atitudes de mudança do modelo autoritário. Dentro dessa perspectiva, qual
modelo de saúde se esperava para imprimir mudanças.
109

O PAISM como já dito está situado no início dos anos de 1980, e dentro da sua
formulação está implícito o debate de uma noção de saúde que traz a ideia de bem-estar.
A saúde entendida como bem-estar, está no conceito da OMS de 1948 que Scliar (2007,
p.37) aponta:
O conceito de saúde da OMS, divulgado na carta de princípios de 7 de abril
de 1948 (desde então o Dia Mundial da Saúde), implicando o reconhecimento
do direito à saúde e da obrigação do Estado na promoção e proteção da saúde
diz que “Saúde é o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social
e não apenas ausência de enfermidade”. Esse conceito refletia, de um lado,
uma aspiração nascida dos movimentos sociais do pós-guerra: o fim do
colonialismo, a ascensão do socialismo. Saúde deveria expressar o direito a
uma vida plena, sem privações [...] A assistência médica, os serviços
ambulatoriais e hospitalares e os medicamentos são as primeiras coisas que
muitas pessoas pensam quando se fala em saúde. No entanto, esse é apenas
um componente do campo da saúde, e não necessariamente o mais
importante; às vezes é mais benéfico para a saúde ter água potável e
alimentos saudáveis do que dispor de medicamentos.

Nesse sentido, saúde exige muito mais do que atendimento médico


especializado, exige escuta e, principalmente, o olhar sensibilizado dos (as)
profissionais de saúde às demandas pessoais dos (as) usuários (as). Inverte quase que
totalmente a posição de profissionais de saúde detentores do conhecimento ao passo que
os (as) usuários (as) não possuem conhecimento nenhum. Para gerar bem-estar é
necessário uma consulta que prima pela qualidade do atendimento e da adequação dos
serviços para a promoção da saúde, prevenindo doenças e situações que gerem mal-estar
aos usuários (as).
Esse conceito está também carregado de tensões políticas. O fim do
colonialismo e a influência do socialismo estão diretamente ligados às políticas
assistenciais de direitos do Welfare State. Ou seja, a postura do Estado perante um
conceito como esse é promover direitos aos seus cidadãos. Deixar clara e aberta essa
situação nos faz lembrar sobre qual momento estamos analisando a história brasileira.
No regime ditatorial o modelo neoliberal assumido pelo Estado brasileiro em especial
na economia, além da perseguição política daqueles que estariam contra esse modelo na
máquina pública – e em todos cantos da sociedade brasileira - , provocou um desarranjo
nos serviços públicos herdeiros da “Era Vargas”. Aliado a isso, a entrada maciça de
capital norte americano e do olhar especializado das práticas de saúde transformaram
muito o cenário brasileiro. No momento de abertura democrática os ideais da reforma
sanitária vieram à tona também de uma maneira política, imprimindo a visão daqueles
que a proclamavam contra as políticas neoliberais.
110

Esse conceito de saúde está impresso na Constituição de 1988, colocando a


noção de direito e de responsabilidade do Estado em assegurar esse direito para seus
cidadãos. Embora esse princípio seja de fato um avanço para a sociedade brasileira, a
maneira como é impresso no cotidiano dos serviços de saúde vai depender de uma série
de fatores que dentre eles estão às questões econômicas e políticas. É importante não
esquecer que apesar de todos os esforços políticos do processo democrático na década
de 1980 e, para além desse momento, o Brasil passava por uma recessão que se
configurou como uma das piores da história brasileira e teve como principal ajuda
econômica os Estados Unidos. A dívida externa contraída pelo governo brasileiro
durante a ditadura dava sinais de quais políticas deveriam ser seguidas, o que
significava um gasto menor com as instituições públicas; políticas ditas menos
assistenciais, ou seja, menos investimentos para a saúde, para a educação e moradia,
bem como, aumento nos investimentos voltados para exportação.
Ainda falando do PAISM, vem em conjunto da ideia de saúde aliada ao bem-
estar a noção de integralidade que tanto o torna diferencial dentro dos outros programas
relacionados à mulher:
O conceito de saúde integral, aqui preconizado, envolve a oferta de ações
globalmente dirigidas ao atendimento de todas as necessidades de saúde do
grupo em questão, onde todo e qualquer contato que a mulher venha a ter
com os serviços de saúde seja utilizado em benefício da promoção, proteção
e recuperação de saúde. (BRASIL, 1984, p.15)

A integralidade do PAISM está ligada, portanto, à promoção de saúde das mulheres.


Mas, como seriam os serviços ditos integrais? Sobre esses questionamentos, o próprio
PAISM esclarece
As proposições básicas de ação formuladas pelo Ministério da Saúde para a
assistência integral à saúde da mulher, devem ser situadas no contexto da
política de expansão e consolidação dos serviços básicos de saúde,
propugnada em conjunto com o Ministério da Previdência e Assistência
Social e as secretarias estaduais de saúde, com vistas à adequação da oferta
de serviços, de modo que se concentrem recursos, corretamente
dimensionados, para a solução de problemas mais prementes e de maior
prevalência. Apesar da denominação frequente de Programa de Assistência
Integral à Saúde da Mulher, a compreensão maior da proposta é a de que as
ações previstas fazem parte de um programa global de assistência primária à
saúde da população.(BRASIL, 1984, p.14)

A concepção de integralidade nesse trecho transporta a uma ideia de


integralidade do sistema de saúde, nos níveis federais, estaduais e municipais, para a
reunião de esforços no sentido de adequar as estruturas para um atendimento de saúde
que visasse às questões primárias da população e que oferecesse um leque maior de
possibilidades de promoção de saúde para os (as) usuários (as) da rede.
111

Em um primeiro momento a atenção seria dirigida às mulheres, embora a


reformulação do sistema fosse uma meta a ser alcançada para o atendimento a todos
(as). O que se estava propagando como mudança era uma promoção de saúde através de
uma rede básica de serviços que ao invés de traduzir políticas dos níveis federais para as
localidades, se conjugaria na necessidade de acompanhamento dessa população e a
oferta de mecanismos de saúde que aumentassem a prevenção, proporcionando uma
qualidade de vida melhor para aqueles que procurassem os serviços de saúde. Para isso,
a ampliação da rede de saúde que abarcasse a população era urgente, no sentido de ter
espaço nesse sistema todas e todos, pois o acompanhamento da rede básica deveria
incorporar a todas e todos.
Bom, mas se integralidade pode ser um conceito amplo em que tanto engloba
um sistema de saúde, quanto às práticas dos profissionais de saúde, o que de fato, era
integralidade na época de criação do PAISM e para depois desse momento quando
criado o SUS? Mattos (2001), ao estudar a integralidade e sua força nos debates tanto
da década de 1970 quanto até os dias atuais, traz a perspectiva da integralidade, dentre
outras acepções, como um valor:
A meu ver, cabe defender a integralidade como um valor a ser sustentado e
defendido nas práticas dos profissionais de saúde, ou seja, um valor que se
expressa na forma como os profissionais respondem aos pacientes que o
procuram [...] A razão da medicina, da qual extrai sua legitimidade social, é
a capacidade de responder ao sofrimento humano [...] A atitude do médico
que, diante de um encontro com o paciente motivado por algum sofrimento,
aproveita o encontro para apreciar fatores de riscos de outras doenças que não
envolvidas no sofrimento concreto daquele paciente, e/ou investigar a
presença de doenças que ainda não se expressaram em sofrimento, ilustra um
dos sentidos de integralidade (MATTOS, 2001, p.48).

Esse valor foi defendido pelos (as) profissionais que fizeram parte da reforma
sanitária e está investido de muitos preceitos defendidos pelas organizações de esquerda
na época. O que se expressa também na própria formulação do SUS,
O que caracteriza esse Sistema Único de Saúde (que modo algum é o único
sistema de saúde no Brasil) é seu financiamento público. Esse sistema único
de saúde estaria organizado em torno de três diretrizes: a descentralização,
com direção única em cada esfera de governo; o atendimento integral; e a
participação da comunidade. (MATTOS, 2001, p.39)

A mudança era ambiciosa no meio da saúde. Primeiro, a relação médico-


paciente e também com os (as) profissionais de saúde deveria ser modificada a ponto de
se ter uma participação da população, bem como um acompanhamento da mesma
através de uma escuta qualificada e que direcionasse a serviços que contemplassem o
bem-estar das (os) cidadãs (os) que procurassem os serviços de saúde. Segundo, as
112

esferas governamentais descentralizadas teriam acesso às demandas das localidades que


estariam necessitando maior atenção e poderiam, assim, exigir apoio e recursos do
governo federal a fim de melhorarem seus serviços de atendimento.
A postura de se aumentar o acesso dos serviços de saúde seria a primeira para
contemplar a todas (os) brasileiras (os) com finalidades de manter uma atenção de saúde
e dar espaço para que a população pudesse expressar seus anseios de atenção em saúde.
O que seria proporcionado pelo dinheiro público, pois, na medida em que se configura
como direito está ligado ao uso do dinheiro público arrecadado pelo Estado brasileiro. O
que volta ao problema das políticas adotadas pelo governo brasileiro em relação ao
gasto com serviços públicos para a adoção de medidas que incluam a população
brasileira e melhore a qualidade de vida daqueles que procuram os serviços públicos de
saúde.
Com um olhar atento a esses fatores da integralidade podemos perceber alguns
caminhos para a insatisfação das entrevistadas perante o PAISM na sua implantação. As
dificuldades com os profissionais de saúde estão em não dar margens as suas práticas
para um atendimento integral às mulheres, não perceberem as demandas da sexualidade
das mulheres como uma questão importante dentro do contexto de saúde, mas há
também outros aspectos nas falas que apontam para uma pouca atenção das gestões
políticas para o programa.
A partir dos esclarecimentos aqui propostos na discussão tanto de sexo, gênero,
poderes, saúde e integralidade, vejo como conjuntas as críticas em relação aos
profissionais de saúde e as críticas relacionadas à gestão política, por pensar que as duas
dimensões estão intimamente ligadas. O próximo item buscará, portanto, aliar as já
citadas dificuldades dos (as) profissionais de saúde com as críticas das entrevistadas à
gestão política do programa.

Refletindo sobre as dificuldades

Eu cometi um erro, porque o novo Ministro que assumiu, na Nova República,


me chamou porque ele estava sendo cobrado porque o programa não tinha
acontecido, e eu disse “não está dando, o programa é difícil, são diretrizes
novas”, e ele disse, “o que eu quero saber é: o que você vai mudar?”, e eu
falei que não tinha nada que mudar no programa, a implementação, o
problema não tinha origem ali... e eu assinei a minha demissão ali [...] Aí
começa uma pressão para mudar de coordenação e nós saímos do Ministério
113

da Saúde e fomos alocadas no INAMPS, saímos da Secretaria de Programas


Especializados, porque nós queríamos fazer programas que rompessem, nós
queríamos integrar, então eu fui negociar no Ministério o programa de
hipertensão para o programa de saúde da mulher, programa de diabetes para
o programa de saúde da mulher, [...] então nós não queríamos um programa
cada um picadinho, queríamos tudo isso dentro do programa de saúde da
mulher, a mulher não é um útero! Mulher é um todo! [...] Nós de alguma
maneira queríamos atravessar o Ministério, então, foi automático
“atravessou, fora!” [...] Então, depois disso houve um retrocesso no programa
de saúde da mulher, porque começaram as prioridades do programa, que era
o pré-natal, parte reprodutiva, materno-infantil de volta e a via da
integralidade foi para as cucuias. Foi um período da minha vida muito difícil.
(ADALGISA)

Esse testemunho é importante para se analisar a dificuldade de implantação do


programa e suas vias integrais a partir do Ministério da Saúde e as barreiras que foram
colocadas dentro desse momento. A intenção de buscar esforços de outras partes que
não fossem somente do materno-infantil para trabalhar os pressupostos do PAISM,
esbarrou em disputas políticas no próprio Ministério a propor então, as prioridades a
serem implantadas o que ocasionou a volta, repetida, nas falas das entrevistadas do
materno-infantil. A saída da entrevistada do programa se deu em 1985, ou seja, apenas
dois anos depois da criação do PAISM.
Nesta fala também está presente a dificuldade de se estabelecer uma implantação
dentro das outras perspectivas que o governo traçava como prioritárias para o
atendimento das mulheres. Novamente as disputas políticas entram como uma chave
para entender esse processo. No entanto, para além dessa experiência de Adalgisa,
Costa (1992) já sinalizava que as disputas políticas em muito estavam atrapalhando o
processo de implantação do PAISM
Grandes esforços foram empreendidos pelos movimentos sociais,
particularmente o de mulheres, visando a implantação daquela prática
assistencial, convencidos de que aquele modelo assistencial proposto pelo
PAISM, é capaz de atender às necessidades globais de saúde da mulher. As
alternâncias e descontinuidades na condução do processo de implantação,
tanto no Ministério da Saúde como nos Estados e Municípios, tem
comprometido bastante o resultado esperado por quase uma década de sua
formulação (COSTA, 1992, p.1).

No estudo de Costa (1992), a implantação do PAISM estava comprometida em


todos os seus aspectos inclusive aqueles que se englobavam no grupo materno-infantil.
Um dos argumentos utilizados pela autora foi o sucateamento da área da saúde pelo
governo brasileiro, com poucos recursos para a adoção de posturas a contemplar toda a
população brasileira na promoção de saúde. O que chama atenção também nesse estudo
é o fato de o próprio PAISM ser coordenado por uma área do Ministério da Saúde que
114

não levava o seu nome, deixando uma pista de que medidas estavam sendo priorizadas
nesse programa:
O Ministério da Saúde exerce a coordenação nacional do PAISM, através da
Coordenação de Saúde Materno-Infantil, que é subordinada ao Departamento
Nacional de Programas de Saúde da Secretaria Nacional de Assistência de
Saúde. (COSTA, 1992, pp.36-37)

Ainda que estivessem à frente feministas para a implantação do programa, o fato


de se ter ainda uma coordenação desse programa com o nome materno-infantil
demonstra claramente que havia imensas dificuldades de mudança dentro dos setores
políticos, no caso, o Ministério da Saúde, para considerar as quebras de paradigmas que
o programa propunha.
Sobre a fala de Adalgisa, apesar de sua curta passagem pela coordenação do
programa, a entrevistada atribui como um momento de extrema importância na sua vida,
em que ela conseguiu vislumbrar uma situação de mudança dentro daquilo que ela tinha
visto nos Estados Unidos de sua experiência com o Boston Collective e com os grupos
de reflexão que estudavam o livro Our Bodies, Ourselves no final da década de 1970. A
decepção da entrevistada se deu também pela impossibilidade de se trazer uma
experiência vivida nos Estados Unidos para o Brasil, a qual a realidade brasileira
imprimia um contexto muito diferente dos Estados Unidos na época e que as
dificuldades se davam principalmente pelas questões políticas do final da ditadura.
Outras feministas entrevistadas que também entraram em contato com o livro
Our Bodies, Ourselves, começaram a olhar para a experiência brasileira de feminismo
de uma forma muito diferente, como se fosse um despertar em relação às questões de
saúde das mulheres:
A gente estava em comunicação... uma outra referência muito grande é do
Boston Collective, que escreveu uma espécie de bíblia do campo que é o Our
Bodies, Ourselves, no final dos anos 70. Nós estávamos em comunicação
com essas redes internacionais, usamos esse material, esse material nos
inspirava muito e claro também situado no contexto e na própria experiência
brasileira que tinha características muito peculiares. (ANA AURORA)

Ana Aurora é uma conhecida feminista que participou ativamente do SOS Corpo
de Recife, e endossa um discurso junto com outras mulheres entrevistadas do quanto foi
importante esse livro para a apreensão das questões relacionadas à saúde das mulheres.
A linha adotada pelo livro era conhecer os corpos das mulheres e trazer à tona os
assuntos relacionados à esfera feminina através do auto-conhecimento, do despertar de
uma consciência em que as mulheres pudessem ter acesso a esses corpos trabalhando os
115

assuntos relacionados à sexualidade, contracepção, aborto, bem-estar físico e


emocional, dentre muitos outros assuntos.
Os materiais educativos preconizados pelo PAISM, bem como as capacitações
dos profissionais de saúde, estiveram alinhados nesse sentido com a perspectiva do
livro, na medida em que eram formulados e organizados por mulheres feministas que
também passavam por oficinas em encontros e seminários feministas e que adotavam
essa metodologia de trabalho 21. A realização de oficinas que propusessem uma prática
horizontal de conhecimento, no qual as mulheres pudessem se colocar de forma
afirmativa sem os medos e as dúvidas acerca de sua sexualidade, dos seus corpos e das
suas buscas individuais era fundamental para a implantação do PAISM, tendo em vista
que no programa estavam presentes as práticas educativas para as questões relacionadas
à contracepção. Essa “metodologia feminista” para discutir saúde das mulheres é
apontada por algumas feministas como experiências muito positivas com o trabalho
com mulheres durante a implantação do PAISM, nas décadas de 1980 e 1990.
No mesmo período citado por Adalgisa, sobre as oficinas de capacitação, Ana
Aurora acrescenta:
Na lógica pré-SUS, o Estado era o grande gestor, o Estado que se vinculava
ao Ministério da Saúde para oferecer os serviços à população que não
pertenciam a hospitais de serviço melhor qualificado do INSS. Eu me lembro
em 86, a médica responsável pela área materno-infantil, que continuava com
o nome materno-infantil e que continua até hoje, ela sentou com a gente no
SOS para fazer a planilha de distribuição dos métodos porque tinha chegado
de Brasília pela primeira vez. E aí o que vamos fazer? Como a gente vai
discutir? Ela sentou com a gente né? O que indica a incapacidade do próprio
sistema de tratar a questão! Quer dizer, tem um lado interessante que é o lado
da parceria, mas tem um lado super problemático, porque isso mostra que o
aparato do Estado não tinha capacidade para sustentar a política, porque ela
precisou recorrer à gente. Então, eu acho que isso é um traço que, está lá trás
e continua e que não se apagou. Claro, os fatores, as causas, as questões vão
mudando, mas eu acho que é um problema que persiste. A incapacidade do
aparelho formativo, do aparato do Estado de responder a uma política com
essa perspectiva mais democrática e mais aberta com essa integralidade. Isso
é uma das razões porque o materno-infantil retorna sistematicamente, não é a
única, mas é uma delas [...] Nós recebemos recursos do Ministério para
capacitar profissionais de saúde. A gente teve um ciclo de formação para os
profissionais de saúde na região nordeste, um treinamento muito radical.
Muito radical. Você colocava o pessoal para desenhar, para fazer massinha,
uma radicalidade total! Fazer dramatização, um treinamento muito radical,

21
Os encontros feministas das décadas de 1980 e 1990 foram de suma importância para a adoção de
práticas educativas ao tratar, especialmente, dos assuntos ligados à sexualidade, contracepção e aborto.
Havia encontros nacionais e internacionais como os encontros na América Latina e Caribe. Esses
encontros feministas tinham nas suas programações oficinas com objetivo de desenvolver a
expressividade das participantes e a discussão dos assuntos ligados às mulheres; exposição de vídeos e
produções; palestras; debates; dentre outras formas de expressão das mulheres na discussão dos assuntos.
Sobre encontros feministas na América Latina e Caribe: ALVAREZ, S. Encontrando os feminismos
latino-americanos e caribenhos. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 11, n. 2, Dec. 2003.
116

muito feminista. A gente teve uns duzentos que passaram pelo curso, com
recursos do Ministério né? Então, é um momento germinal do PAISM. (ANA
AURORA)
Apesar de essa experiência ter ocorrido em Recife, em outros lugares também
aconteceu com esse mesmo cunho, capacitar os profissionais de saúde a terem esse
olhar da integralidade no atendimento das mulheres. Em São Paulo, o Ministério da
Saúde recorreu à Fundação Carlos Chagas, conhecida por ter à frente feministas para a
produção de material educativo para as mulheres nas questões relativas à reprodução e
sexualidade. Essa experiência da capacitação deu ensejo a discussões dentro da área de
saúde para o recebimento dos métodos contraceptivos do Ministério da Saúde:
As formações continuaram [na década de 1990], com certeza, e para a gente
era uma maneira de operacionalizar o programa, não era a única, mas a gente
percebia que essa era uma forma dos profissionais e as profissionais se
conhecerem. Para esse tipo de relação que a gente achava que tinha que
acontecer tanto no face a face, quer dizer nas consultas, quanto na instituição
toda com as mulheres que chegavam [...] Enquanto teve área técnica [no
SUS] de saúde da mulher foi muito importante para gerar capacitação, da
formação, de gerar novas diretrizes que vinham do ministério. Eram
construídas em conjunto com a participação e crítica do movimento de
mulheres. Mas, acho que hoje perderam a força que elas tinham, apesar de
pouca, porque o orçamento para as áreas técnicas era irrisório. (LUCIE)

No testemunho de Lucie, percebe-se que ao mesmo tempo em que a lembrança


sobre a implantação do PAISM é algo positiva, pelo trabalho exercido nas capacitações,
a crítica sobre os recursos é recorrente não somente nessa fala como em outras.
As capacitações dos profissionais de saúde pela “metodologia feminista” tinham
na sua base de reflexão as concepções de desigualdade de gênero que desfavorecia as
mulheres na sociedade brasileira. Essa metodologia procurava desvelar situações do
privado - como dificuldades com a sexualidade, percepção do corpo sem medos e
dúvidas, auto-estima, dentre outros assuntos -, atribuindo não ao sexo as questões
sociais das mulheres, mas aos comportamentos de gênero que classificavam homens e
mulheres dentro de limites impostos pelas padronagens sociais. A autoconsciência nesse
ponto era fundamental para que as mulheres pudessem assumir autonomia nas suas
decisões, autonomia essa baseada na concepção de oferecer liberdade e conhecimento
sobre suas próprias vidas e, particularmente, sobre as questões reprodutivas.
Identificar os silêncios e os medos em relação, por exemplo, à sexualidade como
fenômenos que são concernentes a todas as mulheres tinham como função tirar da esfera
individual a carga emocional que esses comportamentos ofereciam e proporcionar uma
esfera de ação para aquelas que passassem por esse processo. Essa forma de trabalhar
com os (as) profissionais de saúde expunha as questões que os (as) próprios (as)
117

profissionais tinham em relação aos corpos das mulheres e quebrava com os paradigmas
de autoridade do saber médico, por eles (as) mesmos (as) passarem por esse processo.
Ou seja, as práticas educativas baseadas nesse processo de vivências eram não só para
as mulheres que seriam usuárias do PAISM nos serviços de saúde, como também para
os (as) profissionais que estavam trabalhando nesses serviços. O que não seria de
admirar que muitos (as) profissionais oferecessem resistências no sentido de passar por
essas práticas e adotá-las no cotidiano. O que Ana Aurora coloca na sua fala como
processo radical, é essa imersão subjetiva que os (as) profissionais de saúde deveriam
passar para não estabelecerem um atendimento vertical sobre as mulheres quando na
oferta dos métodos contraceptivos.
Levando em consideração que não era buscado por nenhuma das partes
envolvidas com a discussão da contracepção – sendo essas partes, as feministas, a Igreja
e a esquerda – a coerção para a postura de apresentar os métodos contraceptivos essas
práticas educativas eram uma resposta em provocar o movimento contrário desse tipo de
atitude. As resistências a esse método foram inúmeras, com justificativas inúmeras
também. No entanto, colocarei a seguir os testemunhos sobre a experiência das
capacitações no Rio de Janeiro, citada pelas falas das feministas envolvidas diretamente
com esse processo, para apreciar no momento seguinte que resistências apareceram ao
envolver a decisão das mulheres sobre métodos contraceptivos e práticas médicas
autoritárias.
No Rio de Janeiro, essa perspectiva de capacitação é vista pelas feministas da
área de saúde como momento crucial de implantação do PAISM. Ou seja, na contramão
dos testemunhos antes vistos, com claras críticas ao Ministério da Saúde e da alocação
de recursos, aqui as feministas trazem uma lembrança muito positiva e unificada sobre
esse processo.
Antes de colocar os testemunhos, relembro que, no Rio de Janeiro, o Espaço
Mulher foi criado em 1992 por feministas que estiveram na Secretaria Municipal de
Saúde do Rio de Janeiro e que coordenaram o programa. O Espaço Mulher era o lugar
de treinamento de profissionais de saúde para gerar atendimento integral às mulheres
nas questões relativas à contracepção e planejamento reprodutivo que recorressem aos
centros de saúde. Sobre essas experiências no Espaço Mulher:
Tinha um grande facilitador, que foi essa conjunção de mulheres na
Secretaria Municipal que foi muito rico [...] então a conjunção daquelas
mulheres com muito poder [...] nos ajudou muito, essas mulheres começam a
reformular, pelo menos com esse pedacinho que nos tocava né? O
planejamento familiar na rede básica, elas implantam o planejamento familiar
118

na rede básica com uma metodologia que vinha do movimento de mulheres: a


prática reflexiva fazendo treinamento dos profissionais, porque precisavam
ser treinados especificamente para atuarem nessas práticas, faziam coisas
absolutamente ensandecidas para aquela época né? Colocavam médicos e
enfermeiras numa mesma sala, quer dizer, ensandecidas de bom né? E
discutiam sexualidade, discutiam o uso dos métodos, discutiam formas de
tornar os métodos lúdicos, formas de colocar a camisinha com a boca, você
imagina o que era isso? Mandava todo mundo de saia para aprender a se auto
colocar o diafragma, colocar umas nas outras, ver o seu colo do útero que
nunca tinham visto... e, obviamente, acontecia de tudo nos comentários, “ah
aquilo não é aula, aquilo é putaria!”. Como elas tinham muito poder e ter
poder é bom, elas conseguiram implantar o que elas queriam. Então, durante
muitos anos, o planejamento familiar na cidade do Rio de Janeiro foi
referência no Brasil pela qualidade. Ao mesmo tempo, nas maternidades elas
entram com muita força na questão da humanização do nascimento e parto e
reformulando as práticas do nascer e do parir... esse grupo se mantém por
muito tempo [...] Então, foram muitos anos de continuidade para você ter um
grande programa da mulher.(CORDÉLIA)

As capacitações, assim como nas outras falas, vêm de um mesmo mote, práticas
reflexivas e grupos que promoviam o encontro e o conhecimento dos profissionais de
saúde e das usuárias do serviço. O testemunho de Cordélia aponta para um momento de
grande atenção para o PAISM no Rio de Janeiro. Momento que ela aponta para uma
circunstância de mulheres que estavam afinadas com os preceitos do PAISM na época.
Esse aspecto é importante, pois aparece nas outras falas das mulheres que participaram
do Espaço Mulher, assim como as questões sobre as capacitações possuem o mesmo
discurso.

Eu acho que se desdobra essa coisa da década de 80 até a primeira metade da


década de 90 do movimento feminista, a relação dos técnicos que estavam
aqui com as outras coisas que estavam acontecendo em suas vidas. Algumas
militavam no movimento feminista, outras faziam psicodrama, as outras
faziam teatro, então assim, vivências como mulheres, vivências pessoais. Não
sei como teve essa confluência de mulheres que não consideravam o aborto
um pecado, que achava que o aborto deveria ser uma política pública, que a
sexualidade deveria ser exercida totalmente, com prazer, discutia os papéis de
gênero [...] O que eu queria deixar marcado é que como eu fiquei 10 anos
coordenando o Espaço Mulher com uma equipe menor que fazia parte dessa
equipe do eixo central e que estava entrecruzada com várias profissionais de
saúde da nossa rede, eu acho que foi fundamental nessa implantação do
PAISM possibilitar que os profissionais de saúde tivessem um espaço de
reflexão e troca de suas vivências na área da sexualidade, do ser homem e do
ser mulher, porque isso foi fundamental, porque se não tivesse acontecido,
uma metodologia que a gente implantou [...] uma metodologia participativa
de grupo, se não tivesse esse espaço, essa oportunidade eu não vejo como
esse trabalho educativo, dessa qualidade cujo o objetivo, um deles era que ela
tivesse auto-estima, o conhecimento, a reflexão, para que ela como usuária,
ela optar pelo seu método e ela ter a sustentação pra adesão desse método,
porque entra a relação do casal, entra várias coisas, então, se o profissional
não tivesse sentido... porque quando a gente fala treinamento, é uma palavra
pobre, porque eram oficinas que juntava vários profissionais de saúde de
poder fazer alguma vivência, alguma dinâmica, alguma capacitação, é um
espaço tão delicado, tão rico, tão criativo e tão fundamental de troca entre as
pessoas [...] Porque era um espaço de muita alegria e de criatividade para
119

todos as pessoas que trabalhassem com contracepção na rede [...] Nós fomos
os precursores para os programas que vieram depois, com essa metodologia,
da forma de lidar com a clientela. Porque ali as pessoas abordavam tabus
como a homossexualidade, sexualidade, masturbação, prazer era muito... os
profissionais ficavam encantados e como isso repercutia na sua vida
profissional! (JÚLIA)

Nesse testemunho, a implantação do PAISM estava ligada, principalmente, na


capacitação dos profissionais de saúde para a área de contracepção, na qual, os
profissionais de saúde que passavam por esse treinamento, ao terem essas vivências
através dos grupos e oficinas, conseguiam ter um atendimento de saúde na parte relativa
à contracepção, com olhar diferenciado, buscando essa visão mais aberta sobre
sexualidade e prazer, atributos pensados pelos movimentos feministas da época. Dando
continuidade a esses testemunhos sobre a experiência do Espaço Mulher, Narcisa
afirma:

Esse trabalho que nós tivemos oportunidade de realizar, tanto na década de


90, quanto no inicio de 2000, foi um trabalho único, onde a gente teve uma
conjunção, que propiciaram encontros e associações ideológicas, encontros
de mulheres que permitiram trazer para dentro de uma instituição publica, a
política e uma proposição de uma ação dentro da política que foi definida
como Programa de Assistência Integral a Saúde da Mulher. Era mais do que
implantação do PAISM, a gente vivia um momento de ethos de democracia,
movimentos sociais organizados fortes no país, movimentos de mulheres que
é um movimento importante, significativo, corajoso, de trazer lutas e
questões que a sociedade nem sempre costumava ouvir, questões do aborto,
questões do prazer, o que eu faço com o meu corpo, a sexualidade, a escolha
de contratar ou não contratar, eram escolhas que faziam parte do cotidiano
das mulheres brasileiras que éramos nós [...] Em 90, nós tínhamos na nossa
Secretaria essas pessoas que traziam essa coisa mais arejada dos movimentos
de esquerda, movimentos sociais e que nos tínhamos a grata satisfação de
poder estar trabalhando com eles [...] o primeiro seminário eu lembro que
quando a gente foi preparar, eu lembro que a primeira reunião foi preparar
um seminário sobre sexualidade, essa era uma pauta, onde também se
discutiam a falta de dinheiro, a falta da compra da cama, maca de não sei o
quê, mas sexualidade era uma pauta! E nós fechamos a sala, era um encontro
onde a gente começou a trabalhar o corpo, a discutir essa modelagem que
permeou as discussões até a criação do Espaço Mulher [...] Então, assim, eu
acho que a gente teve oportunidade de dizer “a gente era feliz e sabia!”, a
gente tinha tanto as questões sociais e políticas tem avanços e retrocessos, a
gente viveu isso o tempo todo, mas acho que a gente pode deixar essa
Secretaria com uma marca onde a área de materno-infantil, [...] que é um
diferencial ainda hoje, que é a enfermagem obstétrica nas portas de entrada
qualificando, nós temos uma política de humanização que percebia numa
medicina baseada em evidências, dos excessos de cesariana e de assistência
ao parto, nós qualificamos também as UTIs, também usamos a tecnologia
dura, havia a necessidade de ampliação de UTIs Neonatais, isso foi feito ao
longo desses anos [...] Eu acho que a novidade do PAISM é essa participação
popular [...] esse foi um tom diferente. 22 (NARCISA)

22
Grifo nosso.
120

No testemunho de Narcisa, vemos algumas questões importantes para o processo


de implantação do PAISM. Primeiro, ela atribui o momento do PAISM como um ethos,
uma efervescência de movimentos sociais que estavam em conjunto para construção da
democracia. Esse conjunto de movimentos sociais lembra a discussão que aqui foi
colocada quanto às disputas que os movimentos estavam travando pela
redemocratização nos anos de 1980. A ligação com as organizações de esquerda
novamente é colocada, só que como um fator positivo do processo de implantação do
PAISM. Mas, ao mesmo tempo em que vemos uma homogeneização do discurso,
buscando o consenso, há algumas disputas que estavam em voga na época e, por isso,
meu intento aqui em colocar a fala de Narcisa, por completo.
Ainda que se estivesse discutindo sexualidade, a marca de sua lembrança sobre o
PAISM no Rio de Janeiro está em destaque sublinhada por mim, por evidenciar algo
que antes era tanto contestado: o foco materno-infantil no atendimento de saúde
relacionado às mulheres. Se o Espaço Mulher estava alinhado, segundo as entrevistadas,
com os feminismos cariocas - trazendo dos encontros feministas as técnicas das
capacitações, oficinas de construção de conhecimento, a busca pela não autoridade na
relação com as usuárias - , onde estavam os outros preceitos do PAISM que deveriam
ser atendidos na rede de saúde? No testemunho de Yde, há uma declaração sobre esse
sentido
Porque na época a gente tinha muito claro que não dava para trabalhar todas
as questões do PAISM ao mesmo tempo, era impossível, a gente ia se perder,
a gente tinha que priorizar, nós priorizamos o chamado planejamento familiar
que nós nunca chamamos de planejamento familiar, sempre fomos contra
essa expressão porque é uma expressão do Bemfam e do CPAIMC, não era
nossa. Eram Ações de Contracepção, essa era a nossa linguagem ao invés de
planejamento familiar, e a gente priorizou por quê? Porque primeiro, era uma
demanda da população que o poder público não respondia, mal ou bem as
mulheres pariam no serviço público né? Os serviços em si por pior que
fossem eles existiam, as políticas do Ministério tinham sido por muitos anos
voltadas para o materno-infantil, o PAISM rompeu com isso e foi o grande
movimento do PAISM, sair do foco materno-infantil e ir para uma coisa
muito mais abrangente. Então, a gente viu que iria priorizar naquele
momento a contracepção, porque era uma demanda das mulheres a terem
acesso e se não foi o primeiro, foi um dos primeiros municípios a comprar
contraceptivos, porque o ministério mandava, mas não mandava tudo, então
foi uma decisão política importantíssima com muitas resistências internas.
Porque, você gastar dinheiro comprando diafragma, a gente comprava pílula,
enfim, até porque era uma questão estratégica, porque como a gente definiu
que a gente ia montar esse serviço na rede ela permitia a você que o
feminismo queria que as mulheres tivessem a oportunidade de discutir, então
as Ações de Contracepção eram uma forma de você poder discutir
sexualidade, violência, então para discutir isso, você tinha que ter formação,
a gente criou um lugar para formar [...] Uma vez estruturado isso, já estava
encaminhado, a gente estruturou a questão da assistência ao parto, eu acho
que dentro dos cânones do PAISM nós tivemos muitos pontos que
121

avançaram, a gente avançou com a discussão da violência institucional, a


gente avançou com a insistência de trazer a enfermagem obstétrica para os
partos, com a permanente ênfase na diminuição da cesariana, com a questão
do acompanhante não só como um direito, mas como um fator de melhoria a
assistência ao parto e facilitador da assistência ao parto normal. (YDE)

Nesse testemunho de Yde, as prioridades do PAISM são justificadas de forma a


pensar que tipo de disputas estava sendo travada quando da implementação do
programa.Voltando à discussão sobre as negociações com esquerda e as alianças da
esquerda com a Igreja para pensar a implantação do PAISM, bem como a aliança dos
movimentos para levantarem o processo democrático, temos uma visão de como esse
processo pôde ser problemático.
Em um testemunho, vemos uma direta ligação do PAISM com o materno-
infantil por uma das diretoras desse programa na época da implantação. No último
testemunho as ações do PAISM estão claramente justificadas com a parte da
contracepção e atendimento no período gravídico-puerperal, isso tendo como referência
a possíveis pressões feministas pela implantação do PAISM. Sobre esses nós da trama,
teço algumas considerações.
As prioridades da implantação contidas nas falas das feministas cariocas não
estão fora do contexto da análise. Voltando para a discussão sobre controle da
natalidade, o PAISM representava uma resposta e, mais do que isso, um posicionamento
do país no cenário internacional em relação ao controle de natalidade exercido em
alguns países sob a batuta dos Estados Unidos. O Brasil na época da ditadura, por
diferentes motivos aqui já analisados, não possuía uma posição sobre esse assunto, o
que deixava o livre acesso a agências privadas como Bemfam e CPAIMC atuarem na
distribuição de métodos contraceptivos sem qualquer exercício de reflexão por parte das
usuárias. Dessa forma, o programa é uma afirmação do governo brasileiro em
proporcionar esses serviços para as usuárias do sistema de saúde, de maneira a que
pudessem tomar a “decisão” sobre quais métodos adotariam, tendo acesso também a
uma prática reflexiva de saúde que tivesse como tema forte essa questão do
planejamento familiar. Sendo essa discussão de caráter urgente para o governo
brasileiro pelas pressões sociais que estava sofrendo, vejo que nas prioridades do
PAISM, o planejamento familiar, assim chamado no texto do programa, seria uma
questão latente a ser atendida e que atenderia a diversas pressões.
No que diz respeito à relação entre eleição de prioridades para a implantação
e a perspectiva da assistência integral, defende-se que nenhuma das áreas de
atuação ou grupos de atividades propostas deva ser implantada isoladamente.
No entanto, considerando que, algumas dessas ações, em especial a
122

assistência pré-natal, ao parto e puerpério, já fazem parte do repertório da


rede de serviços públicos, com maior ou menor grau de distorção, investir na
adoção de medidas que venham a resultar na melhoria da qualidade dessas
ações pode ser visto como o início da implementação gradativa de uma
assistência integral. Ao mesmo tempo reafirma-se que nunca a organização
das atividades referentes à concepção e contracepção poderá ser encarada de
forma isolada, nem aceita num serviço que responde às necessidades de
saúde em seus outros aspectos. (BRASIL, 1984, p.23)

A crítica tecida pelas demais entrevistadas ao PAISM é a de atenção somente no


período gravídico-puerperal, que pode ser aliada à questão de como o PAISM foi
tomando forma a partir das prioridades do programa. Mas, o que garantia como
prioridades as questões do planejamento familiar e o período gravídico-puerperal?
Além das discussões relacionadas ao controle da natalidade e dentro desses
debates a crescente esterilização das mulheres como um fator preponderante para que o
Brasil assumisse uma postura efetiva nas questões relativas ao planejamento
reprodutivo, tendo em vista que estavam preconizados não só no PAISM, mas inseridos
também em uma conjuntura internacional, outro caminho para pensar as prioridades do
PAISM apontadas pelas feministas do Espaço Mulher, pode ser o alto índice de
mortalidade materna que o Brasil possuía – e possui até os dias atuais – em relação aos
países desenvolvidos na época. Considero aqui morte materna o que Costa (1992, p.11)
conceitua
A morte materna é definida como a morte de uma mulher durante a gestação
ou dentro de um período de 42 dias após o término da gestação,
independentemente da duração ou localização da gravidez, devida a causa
relacionada com ou agravada pela gravidez. Inclui-se ainda causa relacionada
por medidas tomadas em relação à gravidez excluindo-se as causas acidentais
ou incidentais. Assim como se diz em relação à mortalidade infantil, que
nenhuma criança menor de 1 no deveria morrer, exceto em caso de anomalia
congênita cuja prevenção é difícil, nenhuma mulher deveria morrer por
complicações da gravidez, parto ou puerpério.

Os dados obtidos nessa pesquisa oferecem um panorama da situação de morte


materna no país no período de 1979 a 1987: uma média de 100 mortes por 100.000 n.v.
e na região norte do país, superando a média de todas as regiões e indicando 450 mortes
por 100.000 n.v.(COSTA, 1992). O que evidencia um grave problema de saúde pública
no Brasil nesse período. Dentre as causas das mortes maternas, Costa aponta: toxemia
(complicações para a mãe e para o feto derivadas da hipertensão na gravidez),
hemorragias, infecção, outras complicações obstétricas diretas e o aborto. Os problemas
apontados, portanto estão na ordem de cuidados voltados para mulheres no período
gravídico-puerperal. Dentro desse universo, o aborto é indicado como um fator
importante e como uma das principais causas de mortes maternas, mas a atuação em
123

torno desse assunto é demasiadamente discutida na sociedade brasileira. As questões


com setores religiosos, na época, a Igreja Católica, eram de sobremaneira difíceis de
serem solucionadas, pois a já comentada atuação da Igreja nos assuntos relacionados à
esfera reprodutiva e sexual das mulheres provocava muitos retrocessos nos debates
políticos – fenômeno sentido até os dias atuais.
Na época, foram criados os Comitês de Mortes Maternas, que tinham como
compromisso avaliar que medidas estavam sendo tomadas para que os dados pudessem
apresentar uma queda nas estatísticas e melhorar as condições de vida das mulheres, já
que a maioria das mulheres que utilizavam os serviços públicos de saúde eram pobres e
as mais afetadas pelas mortes maternas em relação às mulheres de classe média. Os
Comitês de Mortes Maternas – ainda existentes - , são de natureza interinstitucional e
multiprofissional e se propõem a analisar todos os óbitos maternos, guardando
confidencialidade, mas apontando medidas de intervenção para a sua prevenção (REIS;
PEPE; CAETANO, 2011).
Outro dado que apontava para o caminho do combate para a mortalidade
materna no Brasil é a pressão externa, para que as estatísticas pudessem ser diminuídas
e que os direitos das mulheres pudessem ser assegurados. Como coloca Alves (2010,
p.1):
No 5º Encontro Internacional Mulher e Saúde (São José da Costa Rica,
1987), delineou-se a Campanha Mundial pela Saúde da Mulher e de Combate
à Morbimortelidade Materna, iniciada em 1988, tendo como meta a
instalação de comitês de prevenção da mortalidade na estrutura dos governos.
A Organização Mundial de Saúde – OMS, lançou a campanha “Maternidade
sem riscos”, tendo como ponto de partida a conferência “Iniciativa à
Maternidade Segura (1987, Quênia). No Brasil, o Ministério da Saúde, em
1994, oficializou o 28 de maio como o Dia Nacional da Redução de
Mortalidade Materna, juntando-se à mobilização internacional.

Dentro dessa perspectiva, esse contexto de campanha para a redução da


mortalidade materna pode ser um fator que influenciou as prioridades do PAISM. Como
as ações eram focadas no período gravídico-puerperal - atendimento ineficiente não só
no Rio de Janeiro como em todo o país, reflexo direto do sucateamento dos serviços de
saúde brasileiros -, esse fator poderia ter influenciado às tomadas de decisão sobre esse
ponto por também ser uma campanha que englobasse uma pressão externa,
internacional, sobre a política brasileira. Mas, sem escorregar nesse caminho, é
necessário ressaltar que, mesmo que as ações fossem voltadas para combater a
mortalidade materna não significaram que esse índice tenha tido uma queda expressiva
desde a década de 1990. Tanto constatado esse quadro que em 2004 é lançado o Pacto
124

Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, ratificando esforços para


reduzir os índices de mortalidade materna no Brasil.
As duas vias apontadas para a reflexão sobre as prioridades do PAISM presente
nas falas das entrevistadas podem indicar caminhos de análise, mas estão também
inseridos no contexto político na época. Coloco aqui apenas esses dois pontos, mas
tenho consciência que como o PAISM representava um aspecto de um debate muito
maior dentro da política brasileira, outros fatores como as disputas políticas seriam de
sobremaneira interessantes para avaliar em que medida os recursos destinados às ações
do PAISM representavam também as negociações que estavam sendo feitas pelos
políticos que eram eleitos na década de 1980 e em 1990 para o município e governo do
estado.
No entanto, faço essa escolha porque vejo como influências diretas dentro das
questões que envolviam a implantação do PAISM e as ditas prioridades que foram
adotadas para a sua implementação. Uma análise atenta às eleições, aos partidos que
foram assumindo tanto o governo do estado quanto da prefeitura, poderiam me oferecer
outras pistas das posturas assumidas pelas feministas da Secretaria Municipal de Saúde.
Infelizmente, essa análise não poderá aqui ser feita pelo espaço e objetivo da minha
pesquisa. O volume de informações que proporcionaria seria fruto de outro estudo sobre
o período.
Retornando às críticas sobre a implementação do PAISM, um dos pontos
fundamentais já apontados pelas próprias feministas era a dificuldade dos profissionais
de saúde em atender às mudanças que o programa propunha sobre as práticas de saúde.
As causas que as mesmas dão como resposta são as críticas sobre o aparelho formador
desses profissionais:
Voltando para a saúde, você tinha a contra reação, você tinha as unidades de
trabalho engajadas de verdade e que sabiam o que estavam fazendo contra o
quê estavam reagindo, e tinha um grupo que fazia questão de dizer aquelas
bobagens dizendo “eu sou feminina, não sou feminista”, “ah isso é papo de
porra louca!”, “ah aquele tipo de médica que anda de brincão, saião, o
pessoal meio haribo”. Então, tinha esse estigma, tinha o grupo consciente que
sabia a quem estava servindo e tinha o grupo que era só para manter o status
quo né? Paralelo a isso, eu ainda vivi uma outra confusão interna na área da
saúde, porque eu venho de uma profissão subalterna, uma profissão feminina,
e que vivia e que vive até hoje uma discussão com a profissão dominante que
é a profissão médica. E dentro da minha profissão ainda tinha mais um
problema, que é a única profissão da área da saúde dividida em classes, então
você não tem auxiliar de médica, você não tem assistente de fonoaudióloga,
mas na enfermagem você tem enfermeira, técnica de enfermagem e auxiliar
de enfermagem, a opressão de mulheres em cima de mulheres. Essa divisão
social do trabalho dentro da enfermagem né? Pesada né?(CORDÉLIA)
125

Nesse ponto, a entrevistada Cordélia coloca as dificuldades da própria profissão


de enfermagem e da sua formação que não contribuía para uma visão feminista dentro
da prática de enfermagem. Ainda dentro do discurso médico autoritário, qual parcela da
sociedade que busca a profissão de enfermagem e que comportamento se espera da
enfermeira perante seus “pacientes”? O cuidado na enfermagem é uma dimensão que
sugere inúmeras discussões acerca de qual comportamento a ser adotado perante os (as)
“pacientes”. As mulheres engrossam a maioria dos profissionais de enfermagem e a
própria história da enfermagem no Brasil indica uma tradição na relação das
enfermeiras com a profissão médica. Uma profissão desvalorizada socialmente frente à
profissão médica dentro dos serviços de saúde. O que também está inserido nas
discussões acerca do cuidado e da relação das mulheres de forma geral nas sociedades
ocidentais. Por que as atividades do cuidado não são valorizadas dentro da cultura
ocidental? E por que as mulheres são identificadas com essa causa?
A enfermagem no Brasil tem a sua história em muito marcada pela religiosidade
e pelo aspecto da caridade para o exercício e reconhecimento da sua função. Lopes e
Leal (2005) apontam para questões de gênero quando abordam a relação da enfermagem
com o cuidado e a pouca visibilidade que a profissão tem dentro da área de saúde:
A relação que existe entre as práticas médicas (tratamento) e as da
enfermagem (cuidado) traduz, por exemplo, as ligações que existem entre
natureza e legitimidade, entre gênero, classe e poder. A (re)construção
cotidiana do poder médico e a dominação que exercem as práticas do tratar
sobre as práticas do cuidado se articulam na dupla conjunção entre sexo e
classe. Esta conjunção define o conteúdo das primeiras – masculinas,
científicas, portadoras de valores de verdadeira qualificação profissional –
frente às segundas – associadas às “qualidades” femininas, empíricas, etc.
Assim, se constituem os espaços que são caracteristicamente aqueles dos
experts, do trabalho valorizado, científico, profissional, e os de suporte
(mesmo que indispensáveis) massivos, rotineiros, taylorizados, exigentes em
presença constante (24 horas) e também ditos de hotelaria (LOPES; LEAL,
2005, p.112).

O PAISM, portanto, é uma porta aberta de conflitos internos tanto da esfera da


saúde como de outras esferas. A luta por desconstruir a autoridade nos serviços de saúde
previa que as relações dentro desses serviços deveriam também ser revistas e
reformuladas, para que médicos (as) e enfermeiras (os) pudessem trabalhar de forma
integrada e inserir as usuárias nessa relação de cuidado e prevenção através de suas
necessidades. As dificuldades eram sinais de disputas profundas dentro da área da
saúde. Disputas essas que envolvem também a desigualdade de gênero. A discussão das
mulheres integrais propõe a quebra de muitos valores tradicionais há muito arraigados
na cultura brasileira. Dentro dessa perspectiva, ainda possuem as disputas políticas que
126

ratificam o quadro penoso da busca por direitos das mulheres no Brasil. Os testemunhos
apontam essas portas abertas de discussões acerca do PAISM, mas são críticas que
estão constantemente penetradas nas discussões atuais sobre saúde das mulheres.
As questões relativas ao discurso médico autoritário, não só na área da
enfermagem, mas também da classe médica são concernentes a sucessivas quebras de
paradigmas dentro da medicina. As dificuldades da formação dos médicos (as) são
inúmeras quando especializam os campos da medicina, e o discurso “neutralizado” da
ciência influi nesses saberes, fazendo com que seja pouco reflexiva a prática médica. A
integralidade é um desafio não somente para pensar a saúde das mulheres, mas como
um todo. Outro testemunho que evidencia essa dificuldade com a formação de médicos
(as):
Esse aparelho formador, não prepara a pessoa para a igualdade de gênero. [...]
Entende? Esse é um dado muito importante. Hoje eu acho que… Nós
estamos solicitando isso na faculdade de medicina e de outras, mas
basicamente para mim o espaço mais gritante é a faculdade de medicina.
Como é que a gente vai apelar para esse discurso? Quando eu vou fazer
palestras em algumas faculdades de medicina, eu tenho vontade de sair
chorando de lá. As pessoas até aplaudem: “Legal [...] mas, eu não tenho nada
haver com isso, pois eu vou fazer neurologia.”. Mas o que tem haver isso?
Neurologia só dá em homem? Por que essa mulher está tendo um problema
neurológico? Então a pessoa não consegue saber que ela não está trabalhando
para uma sociedade de um sexo, ela está trabalhando para uma sociedade bi,
tri sexual. E eu tenho que trabalhar muito bem com isso. (NÍSIA)

O desafio da formação de médicos (as) está ligado principalmente com a


discussão aqui proposta sobre saber médico e desigualdade de gênero. Esse saber foi
construído em cima de uma diferenciação sexual, baseada em hierarquias de gênero, e
legitima seu discurso em uma ciência “neutra”, que abre dificuldades não só com o
PAISM, mas com questões relacionadas às mulheres de uma forma geral. Essas
dificuldades estarão presentes até que os paradigmas tradicionais da medicina sejam
desconstruídos, de forma a pensar não os problemas decorrentes das doenças, mas as
questões envolvidas na saúde, bem como as questões sociais que envolvem essa saúde e
a forma de ver as doenças.
Dentro dessa discussão, Citelli (2001) mostra que o lado neutro da ciência é
demais investido de significados sociais e culturais, e que as pesquisas em torno das
temáticas de diferenciação sexual estão muito permeadas pela legitimação de discursos
acerca de comportamentos de homens e mulheres. Quanto a esse, fator Citelli demonstra
que a linguagem inclusive dessas pesquisas está permanentemente sinalizando que a
127

associação entre sexo e comportamento de homens e mulheres é presente e, para isso,


ela utiliza os estudos de Emily Martin23
que examinando textos utilizados em cursos de medicina, aponta o contraste
presente na linguagem científica para descrever a relação entre o
espermatozóide – invariavelmente ativo, ágil, com caudas rápidas e fortes – e
o óvulo – passivo, à espera do espermatozóide, e depois fecundado
transportado, varrido, arrebatado, seguindo à deriva pela trompa de Falópio,
quase uma bela adormecida [...] esta imagem literária baseava-se em
pesquisas segundo as quais parte do revestimento interno do óvulo, chamada
“zona”, formaria uma barreira quase impenetrável, levando espermatozóides
a utilizar meios mecânicos (a força propulsora da cauda) e químicos (uma
enzima) para superá-la (CITELLI, 2001, p.136).

O desafio lançado para quebrar paradigmas dentro do saber médico se configura


como um problema constante e muito presente nas discussões atuais sobre o corpo das
mulheres, direitos reprodutivos, direitos sexuais, racismo e outras muitas faces que se
envolvem nesse processo.
Ainda sobre o PAISM, tem as disputas brasileiras que concernem à parte da
política, correntes políticas, acordos e concessões que transformam os programas de
saúde no Brasil, bem como imprimem uma marca muito pessoal nas gestões políticas.
Se os profissionais de saúde que ocupam essas gestões não possuem em suas histórias
pessoais reflexões sobre suas práticas, a repetição de um modelo que não contemple as
mulheres de uma forma integral representarão também os retrocessos nessas políticas.

23
Reconhecida antropóloga norte americana e feminista que estuda as relações de gênero e discursos
médicos acerca dos corpos das mulheres. Entre as suas obras mais importantes se encontra o livro:
MARTIN, E. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
128

4.4 O tesouro perdido do feminismo?

Eu não tinha esse rosto de hoje,


Assim calmo, assim, triste, assim magro,
[...]
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil;
- Em que espelho ficou perdida a minha face?
Cecília Meireles

Um tema importante que apareceu nas falas das entrevistadas, foi a ideia de ter a
época do PAISM um momento de glória para os feminismos, a qual se perdeu com o
passar do tempo e com a com a mudança das conjunturas históricas. A ideia que aqui
chamo do tesouro perdido, intriga, pois as discussões atuais possuem outro tônus, outra
forma de se pensar o ativismo feminista. Os grupos feministas se multiplicaram e
recriaram suas forças dentro da democracia, suas atuações estão presentes desde o
momento do PAISM, através de capacitações já citadas, além de encontros e muitas
outras formas de luta estratégica atualmente. O que faz do momento do PAISM um
tesouro perdido?
Os problemas enfrentados pelas feministas em buscar a igualdade das mulheres
através dos seus direitos na sociedade brasileira, possuem muitas continuidades em
relação ao período estudado: as disputas políticas e as questões com os setores
religiosos são ainda entraves para a discussão aberta sobre os direitos das mulheres. No
entanto, em se tratando de políticas públicas, há rupturas nesse processo que proclamam
um certo avanço nesse debate. A aprovação de leis que promovam o acesso a esses
direitos como a Lei Maria da Penha (2006), que trabalha com a questão da violência
contra a mulher - assunto intensamente debatido na década de 1980 pelos feminismos –;
a recente Lei das Domésticas que foi aprovada nesses instantes que escrevo esse
trabalho - que pode provocar uma reconfiguração na distribuição de tarefas no ambiente
doméstico, assim como, a garantia de direitos para aquelas que se enquadram
dentro dessas atividades -, como também a decisão do Supremo Tribunal Federal de
descriminalizar o aborto em caso de fetos anencéfalos em 2012, dentre outros exemplos.
129

Intrigante é pensar que, mesmo no contexto de ditadura, de grupos feministas


que se reuniam dentro de uma perspectiva de medo da repressão, enfrentando
dificuldades maiores na política brasileira, esse momento seja considerado como
tesouro perdido quando referido à luta dos direitos das mulheres. O que me leva a
pensar que a decepção sobre o momento passado, relacionada também à lembrança do
próprio PAISM, está de alguma maneira ligada ao momento atual das lutas no contexto
das ONGs feministas. Para dar ensejo a essa idéia, perguntei às entrevistadas como
percebiam o momento de institucionalização dos movimentos através de ONGs em
favor das mulheres. Os testemunhos revelam algumas insatisfações:
Eu faço parte da Rede Nacional Feminista, direitos sexuais e direitos
reprodutivos, que tem 21 anos – completa 22 agora – foi a primeira entidade
no Brasil já voltada para a saúde da mulher. Rede Nacional Feminista de
Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Ela congrega todos os
outros grupamentos que estão preocupados com a questão da saúde [...] A
gente fez uma reunião a uns cinco anos atrás, onde um dos temas que nós
colocamos para discutir foi essa “onguinização”, ela não acabou com o
movimento porque ele é muito forte, agora ele desarticulou a mulherada.
Porque os interesses, eu não digo que passaram a ser diferentes, pela
melhoria da qualidade de vida de uma mulher no país, esse continua igual,
agora as formas para encontrá-lo são diferentes. Aqui eu crio uma ONG,
solicito recursos nacionais ou internacionais, contrato umas cinco ou seis
pessoas e desenvolvo o projeto. Um projeto bonito, na grande maioria das
vezes. Transformo aquele projeto em um “big tudo” e seria uma publicação.
Excelente! [...] Agora aquilo ali não chega para a mulher que está lá na base,
ela nem sabe que diabo é ONG, ela nem sabe o que é essa pesquisa, ela às
vezes não consegue nem ler, entende? Antes de chegarmos até elas, entende?
No Brasil nós temos um leque de publicação intenso, sobre a mulher e sobre
a saúde da mulher em todas as áreas, mas nós lemos entre nós, nós chamamos
as pessoas para a mesa da discussão … mas, não vamos até a mulher [...] Nós
temos essa mulherada toda espalhada pelo Brasil inteiro. É como se dividisse,
vocês fazem e nós escrevemos para vocês fazerem. Isso desarticulou um
pouco, mas acho que o movimento passou a ter outra cara, porque hoje a
gente se encontra buscando aprofundar tudo aquilo que a gente vivia no
passado que é uma coisa muito importante. (NÍSIA).

Outro momento, né? Aqueles.... eu nem lamento, é diferente. Mas, eu acho


que não tem volta, não tem como fazer de novo. O mundo é outro, a vida é
outra, as necessidades são outras, naquela época muita gente não trabalhava,
muita gente só estudava. Você ia até os parlamentares com R$10 aqui, R$20
ali, eles falavam assim: "Pô [sic] cara tem uma reunião em Brasília" e a gente
ia de ônibus. Eu já fui ao Ceará de ônibus, várias vezes, e fui para Salvador
de ônibus umas 10 vezes. E era assim, a gente ia para os gabinetes. Um dava
R$20, outro dava R$30 e outro R$40, a gente juntava tudo e ia. Botava uma
calça jeans, um tênis e vamos embora! Dorme no Ciep, dorme no chão. Mas
enfim, eu acho que a “onguização” foi uma forma internacional não local, de
acordo com o terceiro setor ainda hoje ele é empregador, emprega mulheres
no Brasil e no mundo. As pessoas falam: "Ah, aquelas mulheres lá nos
Estados Unidos fazem isso e mandam dinheiro para elas.". Elas trabalham
naquilo, ora. Se a gente não fizer projetos e mandar para lá elas vão ficar
desempregadas, entendeu? Aquilo é emprego e aqui também. O pessoal
trabalha com isso. O terceiro setor é um terceiro setor de empregos, todo
mundo olha e fala: "É dinheiro do governo". É distribuição de renda, isso que
eles tem que entender. Não dá mais para você ficar só fazendo política sem...
130

na porta do deputado pedindo, isso também não dá mais. Não dá mais.


(ALZIRA)

Eu acho que na década de 90, sim. Mais hoje não, está muito diluído. Por que
eu acho que aquela questão do problema do PT, do movimento de mulheres,
as pessoas ficaram empacadas no aparelho de Estado. O mo vimento ficou a
parte [...] Eu acho que a gente não tem novas lideranças, não sei se as antigas
são tão fortes e tão pesadas que não conseguem fazer o pessoal mais jovem
aparecer no campo da liderança. Essa menina que saiu sem camiseta, com os
peitos de fora nos jornais. Muito bonita, mas chamou atenção por que ela é
bonita e por que... não nas demandas que ela estava levando, ninguém
discutiu. A imprensa não discutiu as demandas que ela colocava na prática.
(MARIA CAROLINA)

No final de 80, começo de 90 começa ter a idéia de que para ter um trabalho
mais competente tem que ter recursos, criar uma organização para poder
receber recursos, aí começam as empresas... Acho que foram contextos,
porque não tinha como não ser assim, tem o pessoal que fala assim “Ah o
movimento, ah as lutas!”, mas não tinha como não ser assim, então poder
continuar, mas tem que trabalhar, se manter. Nós trabalhávamos antes, mas
fazíamos aquilo em horas como ativistas, uma coisa um pouquinho
voluntária, à noite, dormia tarde acordava cedo, tinha uma outra vida, uma
outra dinâmica da vida. Eu, por exemplo, já tinha dois filhos, já trabalhava,
mas muita gente naquela época casou teve filhos começou a mudar de vida.
Antes era estudante, descompromissado, ou já trabalhava sem muita...
trabalhava no que dava para trabalhar, mas depois começou a se formar, teve
que casar a vida foi mudando né? Para continuar nesse ritmo tinha que entrar
para alguma coisa ou formar mais algumas coisas, porque tinha mais
autonomia, algumas pessoas foram trabalhar na FASE, no IBASE, no ISER e
outras que eu não me lembro agora... e outras que resolveram criar, que são
as áreas mais especificas que tinha um programa mais direitinho dentro da
organização. (JOSEFINA)

Eu acho que não tem haver com a fragmentação, acho que tem haver com as
diferentes interpretações. Com os diferentes processos de repressões que
existem entre as mulheres que vivem entre mulheres, que certamente podem
por força em uma determinada ação e não por em outras. O movimento
feminista, especialmente do movimento feminista de hoje está mais leve.
Certamente, não tem interesse nas mesmas coisas, hoje as jovens podem não
ter interesse nisso também. Cada movimento vê o que é prioritário. Tem
alguns temas que nunca saem da agenda, mas hoje cada seguimento desse
tem um modo de pensar e olhar esse processo. Eu vejo como positivos.
Porque, de certa forma, de 88 para cá, a sociedade deu como vitoriosa as
dimensões de democracia e de direitos a partir da constituição. Deu como
vitoriosa, mas não considerou que as disputas políticas seguiriam nos
diferentes setores para esse "patrimônio". De certa forma, os movimentos
sociais, eles se intercalam entre ações e lutas que nem sempre levam essas
dinâmicas como importantes. Como por exemplo, se você olhar as bandeiras
sindicais atuando na discriminação do trabalho entre mulheres, eles estão
atuando nas relacionadas à saúde nesse nível, os direitos sexuais e os direitos
reprodutivos não estão claramente enunciados. Então é mais fácil você ter
bandeiras, por exemplo, por direito à creche, pelo direito à amamentação e
aos seis meses de licença. Mas, muito pouco relacionados a dimensão da
sexualidade, dos seus direitos como mulher.(ELISA)

As questões trazidas nos testemunhos estão evidenciando a maioria das críticas


nas entrevistas sobre o momento atual. Aponto necessariamente que, o caráter efusivo
131

sobre esse tema está presente em todas as falas, o destaque para as cinco falas acima,
fica a cargo de elucidação dos principais pontos da análise.
É preciso atentar ao fato de que esse antes, dito pelas próprias feministas, estava
também inserido numa série de disputas que se ligavam às diferentes correntes dos
feminismos. A discussão atual tem uma característica distinta da anterior na década de
1980, pois é ancorada no amplo processo democrático que se descortinou desde o final
da ditadura e que, ao mesmo tempo em que abre caminhos para a discussão dos direitos
das mulheres fecha portas antes abertas pelos feminismos; retrocede em pontos já
conquistados e avança em outros pontos.
O que caracteriza como diferença do momento anterior para o momento atual,
analisando as falas das entrevistadas, é a falta de unicidade dos grupos feministas. Os
conflitos soterrados por essa referência linear do período escamoteiam situações que
aparecem, entretanto, em outras fontes. No Jornal do Brasil de abril de 1982, em meio
às discussões das eleições para governo do Estado do Rio de Janeiro a manchete
intitulada: “Feminismo Militante – Excesso de Entidades, Carência de Filiadas”, traz
um tema sugestivo para o momento desse estudo.

Sete anos depois da reunião que marcou o movimento feminista no Brasil – a


8 de março de 1975, na ABI, quando a platéia ainda se chocava com a
sugestão de homem para trocar fraldas de bebês e preparar o jantar – as
mulheres perderam a conta dos núcleos de discussão e ação criados a partir
de então [...] Foi neste ano [1982] em que mais se discute a dupla militância –
feminista e política – que se criou a Federação há um mês com o protesto do
movimento “que não pretende utilizar a mulher para fins eleitorais: a
Federação foi criada por grupo do PMDB, PP e militantes da Hora do
Povo”. Ontem mulheres de várias entidades se reuniram com as descontentes
ou contrárias à formação da Federação para encaminhá-las a grupos de
trabalho qualificados de “genuinamente feministas”. Esses grupos fazem
questão de afirmar como política a luta da mulher e de deixar claro que, com
todos os rachas, está na hora de “a nossa luta específica se vincular, de forma
madura, à luta geral” (...) Embora nos últimos sete anos o movimento se
tenha espalhado para atender às suas múltiplas nuances ou reivindicações de
como seria a luta por um verdadeiro feminismo, no Brasil todas as mulheres
em real atividade talvez não passassem das 500, somando pouco mais de 100
no Rio. Mesmo que os núcleos de ação reforcem a importância “do espaço
político sendo criado nas próprias casas de cada uma”, não se pode esconder
o pequeno número de mulheres que integro (sic) muitas vezes vários grupos
feministas e com muito esforço e lentidão vence suas pequenas batalhas
ainda sem atrair as muitas jovens, na faixa dos 20 anos. São 48 organizações
feministas para pouco mais de 500 efetivas militantes. 24

Algumas considerações acerca dessa notícia. O Jornal do Brasil na década de


1980 foi um jornal do Rio de Janeiro que era conhecido por oferecer uma crítica
influenciada pela esquerda política, rivalizando com o jornal O Globo, muitas vezes

24
Grifos da publicação.
132

acusado de favorecer setores da ditadura brasileira. Em um dos testemunhos da pesquisa


aparece, inclusive, uma menção a essa rivalidade desses dois jornais na forma como
cunhavam suas notícias acerca dos assuntos que estavam relacionados com as
reivindicações da esquerda. Nesse testemunho, Cordélia faz menção aos dois jornais
quando das notícias publicadas sobre a reforma sanitária na década de 1970:
Era uma referência linda, era o Sérgio Arouca fazendo discurso, Lucia Souto
e aquela luta pelo jornal, porque a gente tinha o Jornal do Brasil que era mais
progressista, Jornal O Globo absolutamente fechado com a ditadura e você
via artigos um e no outro e você via artigos defendendo a reforma sanitária e
você via nos artigos do Globo debochando da reforma sanitária, era a turma
da “água sanitária”, com deboche, uma coisa muito escachada. (CORDÉLIA)

O que não correspondia ser um jornal que ao passar as informações para seus
leitores (as) estivesse também traduzindo opções políticas e acesso a matérias
privilegiadas por alguns setores. Esclareço, com isso, que não considero como
absolutamente “verdadeira” a matéria sobre os rachas do feminismo, mas integro essa
notícia como mais uma voz que possibilita a abertura desse debate feminista no presente
estudo.
O racha mencionado pela notícia se dá pela disputa dos feminismos em procurar
unificar a luta pelos direitos das mulheres dentro de um momento importante para a
conjuntura histórica brasileira, momento de abertura democrática e eleições estaduais.
Os feminismos disputavam dentre outras patentes as questões das mulheres de acordo
com as suas correntes, algo aqui já explicitado. No entanto, a armadilha que essa
possível estratégia gera é a homogeneização de discursos que privilegiam determinados
setores.
Ainda sobre essas disputas, um segundo aspecto importante na notícia é o
número de adeptas às causas feministas. Naquela época, eram contados 48 grupos
feministas no Brasil, com um ativismo de 500 mulheres e com dificuldades de
penetração na sociedade ao atrair as jovens para o debate feminista. Sobre esse ponto,
há uma crítica que citarei aqui da feminista Danda Prado sobre essa matéria, nota do
Jornal do Brasil do mesmo ano, que refuta a ideia do feminismo em si não penetrar na
sociedade brasileira e na população jovem, mas que seria resultado de um complexo de
questões que envolvem o percurso da história brasileira:
quando se trata da problemática das mulheres acresce a inexistência do Brasil
da tradição de associações femininas em geral, se nos compararmos à Europa
e aos Estados Unidos. Passa-se lá o contrário, devido talvez às guerras que
afastaram os homens da vida civil durante largos períodos, e existe o hábito
histórico das entidades sócio-políticos-culturais femininas. Isso facilitou a
formação dum senso de identidade das mulheres como categoria social com
problemas específicos. Exemplificando até onde vai essa diferença, constatei
133

que mesmo os grupos homossexuais no Rio são mistos (homens e


mulheres). 25

Essa crítica ao texto do Jornal do Brasil, sobre o “Feminismo Militante”, mostra


em um dos seus aspectos a dificuldade das feministas brasileiras em ganhar adeptas
paras as questões relativas às mulheres e, ainda dentro dessa perspectiva, mostra um
pouco do cenário de disputas que se travava no interior dos feminismos brasileiros em
manter seus ideais sem estarem misturados com outras lutas e de criarem seus próprios
espaços de discussão. Isso implica na chamada autonomia do movimento, muito
reivindicada por grupos feministas antes do processo de redemocratização. No entanto,
o grifo sobre a crítica de Danda sublinha uma forma de pensar o feminismo, sob o viés
radical que considera a luta das mulheres como pertinente a esse senso de identidade. O
que se entende é que essa identidade levaria ao pensamento de uma classe de mulheres
que possuem a marca da opressão.
Nas falas do PAISM, o discurso utilizado pelas feministas pertencentes ao
movimento negro denuncia como um todo essa identificação das mulheres, e
desconstrói essa lembrança do PAISM como algo que favorecia e estabelecia um
discurso unificado de ativismo das feministas para implementá-lo. As críticas das
feministas do movimento negro recaem enfaticamente sobre um episódio que apareceu
muito controverso nas entrevistas: a CPI da Esterilização em 1991.
Importante para essa análise é que, quando foi perguntado às feministas negras
sobre a implantação do PAISM e a opinião delas sobre a experiência no Rio de Janeiro,
a CPI da Esterilização aparece como um marco para se tratar as questões relativas às
mulheres negras dentro do feminismo, um discurso muito diferente das outras
feministas que não estavam vinculadas com o movimento negro. Para analisar esse
aspecto, perguntei a essas outras feministas sobre a CPI da esterilização e o que
apareceu nas falas foi um certo incômodo ao tratar desse assunto.
Sobre essas ideias difusas trago aqui os testemunhos das feministas do
movimento negro:

Isso começa no começo da década de 90, uma denúncia que mulheres


estavam sendo esterilizadas mesmo quando não queriam. Isso se torna uma
CPI, também é a base de organização da nossa fundação [ONG Criola]. Ela
foi fundada nesse período das denúncias, do levantamento das situações e dos
casos de esterilização, e depois a gente foi vendo que tem uma política
estruturada para isso que passa pela saúde, que passa por uma ação das
organizações não governamentais como, Bemfam etc, e que no fundo essa
política não tinha um nome, claro e objetivo, não era assumida pelo Estado

25
Grifo nosso.
134

com intensidade, mas ele permitia, apoiava e financiava, não só ele como
organizações internacionais, as práticas nesse campo. (ELISA)

Eu estava, digamos, no final dos anos 80 e no início dos anos 90, na


discussão da CPMI. Eu acompanhei bem de perto até a CPI, então existe todo
um contexto histórico que na época ... havia todo um contexto histórico da
época, a época havia o Conselho Nacional de Mulheres Negras e o Encontro
Nacional de Mulheres Negras, no final da década de 80, isso em 88. Esse
Encontro Nacional de Mulheres Negras e eu fiz parte da Comissão Nacional
de Mulheres Negras. E na Comissão nós trouxemos para discutir em nível
nacional, a esterilização em massa das mulheres negras com a discriminação
racial. Uma vez que nós fizemos um levantamento, com o auxilio da
demógrafa Elza Berquó, de que a esterilização... o mapa do Brasil da
esterilização seguia o mapa da pobreza brasileira, das mulheres que eram
mais esterilizadas e coincidência eram as mulheres mais pobres [...] Na
época, também, no reinício das eleições, essas ligações primárias eram feitas
por políticas públicas em de trocas de votos. Isso cabe aqui uma ratificação.
Tudo isso naquela época era feito por causa mesmo do plano de controle da
natalidade. Por causa das grandes fundações americanas aqui no Brasil [...]
Foi um plano, né? De controle de natalidade, não foi assim aleatório é um
plano que deu muito certo. Foi a primeira política pública sacana que atingiu
as mulheres, para combater a pobreza. Não é a má distribuição de gênero, é a
mulher pobre que não poderia ter filhos. O pior que você mulher concorda
com tudo isso, você mulher pobre entra nessa política. Então um país que as
mulheres tinham de 8, 9 e 10 filhos, um país que não tinha uma realidade que
tem hoje que caí para um filho. (ALZIRA)

O grande marco, assim, desse debate, foi em 91. O primeiro ano dos anos 90,
não se chamava CPI, se chamava CPMI (Comissão Parlamentar de Inquérito
Mista), se definiu, depois de um longo embate, se definiu que teria que ser
legislado esse processo. Que estava acontecendo uma esterilização em massa
no país, das mulheres pobres [...] A culpa da pobreza é dos pobres. (ANA
MARIA)

Nesses três testemunhos, a CPI da Esterilização aparece como uma questão de


visibilidade das mulheres negras dentro do debate da saúde das mulheres. Nesse
quesito, é interessante notar como forte argumento o controle da natalidade e a
participação dos Estados Unidos como um financiador desse processo de esterilização.
Outro atributo importante nessas falas é o olhar para aquelas que estavam sendo alvo
desse controle: as mulheres negras, que dentro da falas são vistas como vítimas desse
processo muito maior, que envolve tanto a política nacional – compra de votos através
da esterilização – como a política internacional – controle da natalidade. Essa ligação
de mulheres negras vítimas de esterilização ganha maiores proporções no
desenvolvimento das falas de algumas das entrevistadas do movimento negro:

A partir dessa Comissão Nacional [...] essa Comissão Nacional fez à época
16 reuniões no Brasil levando as questões, principalmente, a esterilização em
massa das mulheres. Aonde as mulheres eram esterilizadas à força, menores
onde a mãe não queria fazer mandava esterilizar, descobriu-se um monte de
abusos e na época éramos muito ameaçadas [...] Na televisão, nós fizemos
debates com os maiores especialistas da época, nós tivemos uma briga
danada com aquele cara que até hoje... qual o nome dele? Elzimar Coutinho.
Nós tivemos vários debates com ele, ele ganhava muito dinheiro com aquelas
135

propagandas radicalistas. Inclusive à época ele só fazia campanhas assim


muito radicais... tinha uma campanha no Bahia, que eu me lembro, que vinha
uma mulher negra enrolada em um lençol no corpo, bem barriguda. Aí tinha
assim: "Defeito de fábrica", na barriga da mulher. Recentemente o Cabral
[Sérgio Cabral, governador do Estado do Rio de Janeiro] falou sobre as
mulheres pobres, que ele era à favor do aborto, por que as mulheres eram
marginais. Imagina? (ALZIRA)

Então esse controle da natalidade, com uma política voltada para o controle
da população, era o controle da "pobreza" das mulheres. Então esse é um
período muito fértil para isso, a expressão é dominação, mas é muito
verdadeira, muito fértil para essas práticas violadoras e representava... O que
vinha de internacional das mulheres era um problema para o seu
desenvolvimento pessoal, seu desenvolvimento econômico, tanto que a gente
chega hoje em 2012 com a gravidez como um problema. (ELISA)

A presença do argumento de controle da natalidade relacionado à esterilização é


uma marca forte desses discursos. As feministas apontam com o discurso do controle
que as mulheres negras estariam sendo atendidas nos serviços de saúde sob permanente
olhar de preconceito, trazendo a questão racial para o debate da saúde das mulheres. No
entanto, as outras feministas que não possuíam em suas trajetórias um ativismo no
movimento negro por vezes contestavam esse argumento da esterilização vitimar
mulheres negras. Colocarei aqui algumas falas sobre esse ponto:
Por que a demanda pela esterilização era muito grande, eu acho que pela
própria condição de vida de miséria da população. Depois nos anos 80, a
questão é que se você for ver os dados, tem uma pesquisa grande do IBGE na
época mostrando a alta preferência pela esterilização. Como método, as
mulheres que podiam pagar tinham acesso, a classe média que tinha dinheiro
contratava com o seu médico obstetra a esterilização cirúrgica. Essa
praticidade era uma prática comum das mulheres de classe média, classe
média que tinha um respaldo financeiro. Só quem não tinha acesso a isso era
o povo. Na verdade dentro da visão que o planejamento familiar depende de
um processo educativo, as mulheres de classe média com maior escolaridade
eram as que faziam a opção pela cesariana e a laqueadura no segundo filho.
Imagina as mulheres do povo? Todas queriam. Elas viam, perguntavam e
viviam essa realidade, agora a gente conhecia a legislação e conhecia os
impedimentos. Procurava explicar e orientar a população de trabalhar dentro
daquilo que era possível. [...] Eu discuto as questões enquanto visão
profissional, por causa da saúde da mulher e enquanto teve o momento de
discussão da lei, inclusive, né? A lei é de 96, a lei do Planejamento Familiar.
Eu era à favor da regulamentação da esterilização cirúrgica, sim. Quando a
lei foi promulgada, muitas feministas se colocaram contra a lei. Eu era à
favor da lei por que era uma questão profissional, por conta do meu processo
de trabalho [...] Eu não tinha o porquê ser crítica, tinha uma opção que
precisava ser também colocada pela sociedade das mulheres e não trabalhada
dessa forma selvagem. Selvagem que eu digo é como era dentro da área
médica [...] Mesmo hoje que você tem a lei do planejamento familiar, até
hoje os serviços não se cadastram para fazer a esterilização cirúrgica é difícil.
Até hoje, ou seja... bom, aí... eu não tenho problema para falar...Eu vou falar!
Se você quiser fica a seu critério. Meu entendimento é o seguinte: esse
procedimento... tem um procedimento de um contrato particular entre a
paciente e o médico, mesmo aonde o médico tirava a...mesmo pago por fora.
Por parte podia ser o SUS, mas por fora era cesárea, ele recebia e tirava
proveito. Quando você legaliza isso e cadastra os serviços você tira essa
possibilidade desse ganho adicional, desse ganho por fora. A minha
136

interpretação é essa, então não há um grande interesse de cadastrar por fora


[...] São questões de linha, que era uma questão muito polêmica e acho que
continua sendo até hoje. (MARIA CAROLINA)

A questão da laqueadura foi uma coisa muito debatida dentro do movimento


feminista, eu lembro [...] a gente foi uma das poucas vozes que se colocaram
a favor do direito a laqueadura, porque havia uma pressão muito grande,
principalmente, de movimentos de mulheres negras, porque havia toda uma
discussão, se as mulheres negras estavam sendo as prioridades na laqueadura
né? Era forma quase que de genocídio, essa denuncia foi relativizada pelo
trabalho da Elza Berquó, ela mostrava que na realidade que naquela época
que a laqueadura tubária não era de fácil acesso no serviço publico, a maior
parte das mulheres que vinham buscar a laqueadura eram mulheres que
tinham renda para tal, então são as mulheres negras mais pobres, eram as
exatamente que não tinham. Então, houve uma discussão muito grande com
uma proposta de grupos feministas que queriam criminalizar a prática da
laqueadura tubária e nós dizíamos o seguinte “olha, é uma loucura, porque se
a gente quer descriminalizar a prática do aborto, como vamos criminalizar a
prática da laqueadura tubária? O que vai acontecer é que as mulheres que vão
querer a laqueadura tubária vão procurar clínicas clandestinas que façam e
vão morrer da mesma maneira que acontece com o aborto né? (HILDA)

O que você quer saber? ... Durante um tempo um tempo [...] era quase que
proibido falar de esterilização, porque nos éramos traumatizadas por
Bemfam, por CPAIMC por essas coisas... sabia de coisas que aconteciam no
nordeste de trocas como: me dê sua trompa e eu te dou um rádio de pilha, me
dê sua trompa e eu te dou uma dentadura, coisas absurdas né? E que ao
mesmo tempo, você já via o contraponto de mulheres [...] que já traziam a
linguagem dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, e falando desses
direitos sim, a ter uma informação a estar esclarecida a ter uma decisão um
pouco mais livre, um tanto quanto a gente consiga tomar uma decisão livre.
Eu acho que algumas mulheres, claro que se você perguntar hoje, quase 80%
das que estão tendo o segundo filho, vão te dizer que elas querem uma
cesárea e que elas querem ligar, se você perguntar para uma mulher que está
vendo seus filhos morrendo de fome, que está se vendo numa situação
absurda, se ela quer ligar as trompas, naquela época isso era muito mais forte
do que agora, ela diria que sim, “pode ligar essas trompas, pode me cortar da
cintura para baixo, eu não quero mais essa fatal fertilidade” [...] Então, eu não
quero demonizar a ligadura tubária, eu acho que ela é um método como outro
qualquer. Eu, como profissional de saúde é que tenho ser bastante
competente quando eu apresento os métodos para defender a reversibilidade
[...] Mas, eu acho que o nosso discurso é muito... é uma causa quase que
perdida não posso dizer que é perdida porque eu sou otimista, mas o modelo
de classe média influencia muito as classes mais populares, e as mulheres de
classe média, assumiram esse desenho, esse roteiro de um filho no máximo
dois e ligar (...) e as classes populares, até porque as mulheres das classes
populares estão trabalhando dentro das nossas casas, copiam nosso modelo.
(CORDÉLIA)

Teve uma CPI da esterilização... Esse foi um debate caloroso... Porque...


Claro, começou a se tornar evidente [...] os casos de esterilização, e que...
isso se colou muito rapidamente com o discurso global sobre controle
populacional, racismo, genocídio, sobretudo nos Estados Unidos, quer dizer,
um discurso americano, da esterilização forçada nos Estados Unidos. E claro,
tinha evidências e a realidade da esterilização forçada na Índia, África do Sul,
tudo isso mais ou menos, começava vir à tona nos 70 e começava vir à tona
no Brasil, construiu-se uma argumentação da esterilização forçada das
mulheres negras, em cima do discurso do genocídio, que você sabe, mobiliza
muito corações e mentes. É evidente que na medida em que, as taxas de
esterilizações estavam acontecendo entre as mulheres mais pobres, era isso
137

que estava acontecendo desde os anos 70, desde o final dos anos 70, e dada
ser a população numerosa mais pobre brasileira, ser a população mais parda e
negra, é evidente que a maioria das pessoas esterilizadas eram as mulheres
negras, daí a esterilização forçada o passo era um pouco grande, está certo?
Porque não estou te dizendo [...] que não houve abuso de esterilização, eu
acho que houve, por médicos financiados no exterior, esses programas de
planejamento familiar. Não a Bemfam propriamente dita, porque eu estava no
Recife, quando a Bemfam iniciou seu treinamento em laparoscopia, e que o
aconteceu é que os médicos entraram num terreno em que a esterilização já
era a opção preferencial. A Bemfam só veio colocar água no moinho,
entendeu? Em vez de fazer cesariana e depois a laqueadura, agora fazia
laqueadura pós-parto por laparoscopia, mas a realidade pela demanda da
laqueadura oferecida pelo médicos que não eram financiados pelo exterior,
que estavam trabalhando contratados pelo estado em 82 eu vi como era. O
médico diretor do hospital veio mostrar para mim e “é a gente pode ver, 60%
das mulheres que pariram no mês passado foram esterilizadas”, e disse isso
para mim sem problema e isso era pago pelos prefeitos, pelos candidatos,
então... a lógica que esses setores médicos é que a população pobre em geral
requeria uma solução definitiva da situação, então tinha uma coisa fascista,
racista, tinha essa coisa, mas o que eu quero dizer, que não era exatamente a
coisa dos estrangeiros esterilizando as mulheres negras brasileiras, era uma
cena muito mais complexa. Além disso, tinham estudos, todos, o meu que era
pequeno, mas os estudos da Berquó de quase dez anos depois mostravam que
havia uma restrição de ações, dificuldades de acesso aos métodos, problemas
no uso da pílula, efeitos colaterais, não pode dizer que era a livre escolha,
uma coisa fantasiosa das feministas, “ah vou experimentar tudo antes da
esterilização”. Então, as mulheres optavam pela esterilização, e havia uma
enorme dificuldade, e há ainda, de setores feminista e, particularmente, esse
debate de autonomia, agenciamento, falta de opção entendeu? Que as
mulheres pudessem em condições ideais de realmente decidir que elas não
optariam pela esterilização. É uma possibilidade contra factual, mas de fato, a
maioria das mulheres com raras exceções, que eu entrevistei no Recife em
1982, todas queriam fazer a esterilização. E você tinha a oferta desse
mercado. Então, o que eu quero dizer que tinha uma cena muito mais
complexa, do que “estão esterilizando”. Você tinha uma demanda por
regulação da fecundidade que não estava sendo bem adequadamente
respondida pelo Estado, o mercado tinha problemas e a opção apareceu,
como a Elza chamou de cultura da esterilização, foi se criando com a
contribuição de todo mundo, as mulheres de classe média se esterilizaram
primeiro, foi assim que as mulheres mais pobres aprenderam que a
esterilização existia. Eu conversei com várias mulheres e perguntei: “como
você soube que existia?” e elas respondiam “Ah eu estava lá na casa da Dona
Fulana e eu ficava olhando, ela tinha dois filhos e não tinha mais, e eu
perguntei um dia como ela fez e ela disse que tinha ligado as trompas. Ah eu
quero também!”. Entendeu? Então, tem esse efeito cascata, da classe média
se esterilizando no Brasil desde os anos 50, os médicos achando que óbvio
era mais fácil você fazer sem ter que ficar acompanhando. Os maridos que
não colaboram né? Os efeitos colaterais das pílulas, enfim, esse conjunto de
coisas que fazia com que as mulheres quisessem se esterilizar e se
esterilizava. Houve mulheres muito pobres que diziam “Aqui ó, daqui não sai
mais nada!”, uma maneira muito... [...] Mas, eu acho que esse outro lado, as
mulheres foram fazendo e tentando, caminhos para resolver seus problemas,
tinha uma demanda óbvio! [...] Nesse contexto, e nesse debate que resultou
na CPI da Esterilização, que resultou na lei de Planejamento Familiar. (ANA
AURORA)

Nesses quatro testemunhos, a situação de conflito com respeito às esterilizações


salta aos olhos. Um dado importante que é refutado nessas falas é a não vitimização das
mulheres pobres que procuravam a esterilização. A busca por uma esterilização que
138

desse conta dos problemas sexuais e reprodutivos dessas mulheres, além da influência
da classe média, aparecem como fatores que contra-argumentam as questões propostas
pelas feministas do movimento negro. Outro dado interessante é a referência dos
estudos da pesquisadora Elza Berquó nas falas tanto das feministas do movimento
negro, legitimando a denúncia de uma esterilização em massa, quanto na fala das outras
feministas que o utilizam legitimando os argumentos contra a essa esterilização em
massa. O que se pode apreender de antemão que, os estudos sobre esterilização no
Brasil na década de 1980 realizados pela pesquisadora Elza Berquó ganha acepções bem
diferentes quando situados em lugares de falas diversos e também estão entremeados
com a própria lembrança do processo de implantação do PAISM.
Dentre outras muitas questões apontadas pelas entrevistadas nesses testemunhos
- que resolvi deixá-los quase que na íntegra para que sejam apreciados vários pontos de
tensão nas falas - há um ponto que é colocado por Cordélia que traz uma perspectiva
muito relevante para análise da implantação do PAISM nesse estudo: os conceitos de
direitos sexuais e reprodutivos. Antes de continuar a analisar as falas, vou me
aprofundar um pouco nessa questão, que serve também de instrumento para analisar que
tipo de conflitos estão inseridos dentro das falas relacionadas à esterilização de
mulheres no Brasil na década de 1980.

Direitos sexuais e reprodutivos: fios da trama

Discutir a criação e implantação do PAISM nas décadas de 1980 e 1990 é de


sobremaneira importante para as lutas pelos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres brasileiras, ainda que na época de criação do programa esses direitos não
estivessem em voga e legitimados como atualmente. No meu entender, na história dos
conceitos de direitos sexuais e reprodutivos o PAISM se configura como um elemento
introdutor dessa linguagem no Brasil, abrindo caminhos para que estrategicamente esses
direitos pudessem assumir posições diferenciadas dentro do ativismo feminista
brasileiro, frente às demandas por justiça e igualdade das mulheres.
139

Quando o PAISM foi criado, os temas que envolviam a construção dos direitos
reprodutivos e sexuais estavam sendo discutidos em 1984, no I Encontro Internacional
de Saúde da Mulher em Amsterdã. O que antes aqui estava sendo discutido era saúde
integral da mulher que apresenta bastantes diferenças conceituais para a formação de
políticas públicas direcionadas às mulheres no processo democrático brasileiro.
A saúde da mulher aparece como uma estratégia nos anos 1980 das feministas
brasileiras, pois era uma maneira de atentar às questões trabalhadas nos feminismos
alinhando-se ao conceito de saúde como bem-estar difundido pela ONU. Assim, trazia
as mulheres para o centro a discussão, a fim de proporcionarem políticas públicas que
estivessem diretamente ligadas ao seu bem-estar físico e mental. Dentro dessa
perspectiva, as feministas que emplacaram esse debate no Brasil estavam também
tornando políticas as reivindicações de serem atendidas as questões relativas à
sexualidade e à reprodução das mulheres.
O lema Nosso corpo nos pertence, entra então nessa discussão sobre saúde da
mulher, como uma forma de o Estado garantir que a saúde das mulheres fosse atendida,
e mais do que isso, que o olhar sobre essas mulheres pudessem vir das próprias, ou seja,
a partir de suas necessidades, tendo como premissa o conhecimento dos seus corpos e,
dessa forma, dos procedimentos médicos. Relembrando a discussão do controle da
natalidade, a saúde da mulher, contida no PAISM, está investida totalmente das ideias
feministas de quebrarem os paradigmas em relação às práticas médicas coercitivas na
contracepção, tendo como as práticas educativas o método participativo das usuárias
para tomarem a decisão acerca de que contraceptivo se alinhava com a perspectiva de
vida de cada mulher. Mais uma vez, estamos falando de saúde como bem-estar físico e
mental, e não de ausência de doença.
O que está implícito dentro da saúde da mulher é também a autonomia acerca de
seus corpos, quando na decisão sobre métodos contraceptivos e na quantidade e
espaçamento de filhos que desejariam ter. O aborto, portanto, é um assunto dentro do
PAISM não à toa, pois está dentro da estratégia em abordar a saúde aliada às questões
de decisões de vida das próprias mulheres a partir do olhar para os seus corpos.
O PAISM, é, dessa maneira, uma porta que se abre para a discussão na política
sobre assuntos que antes estavam confinados ao privado e cobra esforços do Estado
brasileiro em ter como importantes esses assuntos dentro das políticas de saúde e das
diretrizes de saúde, provocando assim, uma legitimação do discurso das feministas da
década de 1970. Apesar de esforços em divulgar o debate da saúde da mulher dentro da
140

sociedade brasileira com a criação do PAISM, o conceito em si apresentava uma


limitação quando o assunto era englobar os homens nas questões reprodutivas e sexuais
em relação às mulheres.
Ainda que a autonomia fosse uma estratégia de sublinhar como importante o
Estado legitimar as decisões das mulheres acerca de seus corpos, a participante do
homem nas questões reprodutivas e sexuais não estava sendo considerada nesse
momento. O que mais tarde, na linguagem dos direitos sexuais e reprodutivos, aparece
de forma clara que também os homens são portadores de direitos que concernem tanto à
reprodução quanto aos direitos sexuais, abrindo o leque para a discussão das políticas
públicas que contemplem esse viés mais abrangente.
Ainda dentro da saúde da mulher, a limitação que esse conceito apresenta em
não discutir as outras questões envolvidas na contracepção está na sua definição
“saúde da mulher” era uma palavra de ordem radical para o seu tempo e se
desdobrava em dois campos. No plano das reivindicações políticas, envolvia
demandas sobre o Estado, tais como a discriminação e legalização do aborto
e o acesso a métodos contraceptivos. No plano do atendimento médico,
envolvia reivindicações por pré-natal e parto com qualidade, mudança na
qualidade da relação médico-paciente e acesso à informação sobre anatomia e
procedimentos médicos. (CORREA; ALVES; JANUZZI, 2006, p.42)

O PAISM está envolvido nas mãos do tempo que o construiu e, assim, a sua
criação é um marco em abrir esse debate na sociedade brasileira, mas também o situa
em relação ao seu momento, pois a conjuntura histórica corresponde também aos
anseios que possibilitaram a sua criação. Desde a década de 1980, as mudanças no
cenário brasileiro e internacional foram se modificando, principalmente em relação às
questões reprodutivas e sexuais ligadas às mulheres. Na década de 1990,
principalmente, com o ciclo das conferências internacionais da ONU os direitos das
mulheres vão ganhando destaque pela ação dos grupos feministas em todo mundo e isso
se reflete no Brasil com a criação de políticas públicas relacionadas às mulheres já
permeadas por esse debate internacional.
O que atualmente se vê como ainda uma luta pelo PAISM, presente em algumas
falas das entrevistadas, em muito se confunde, para mim, com a luta por fazer valer os
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Situar o PAISM na discussão do conceito
de saúde da mulher difere em muito das questões que envolvem esses outros conceitos.
A definição do conceito de direitos sexuais e reprodutivos, legitimada em 1994
na Conferência de População do Cairo, abre o caminho para outras vozes se inserirem
nesse processo. Primeiramente, é importante separar os dois conceitos: direitos
141

reprodutivos e direitos sexuais, imprimem características diversas nas suas definições, e,


ainda que usualmente sejam utilizados juntos, as vozes que os criam soam em lugares
diferentes.
O fundamento dos direitos reprodutivos é a autonomia de decidir sobre a
procriação. No que diz respeito à esfera pública, implica a restrição tanto a
qualquer tipo de controle coercitivo da natalidade quanto a qualquer tipo de
imposição natalista que implique a proibição de usos de métodos
contraceptivos. No mundo privado, respeitar os direitos reprodutivos implica
que maridos e companheiros, esposas e companheiras, familiares e redes
comunitárias não obriguem ninguém a engravidar, a usar métodos
anticoncepcionais, a não abortar, ou a realizar um aborto forçado [...] Uma
questão importante dos direitos reprodutivos é que eles não devem se
restringir às mulheres, mas também incluem os homens, suas
responsabilidades e capacidades de decisão no âmbito da reprodução e de
regulação da fecundidade. (CORREA; ALVES; JANUZZI, 2006, p.48)

Sobre direitos reprodutivos, portanto, a autonomia de decisão sobre a esfera


reprodutiva se conduz como uma questão principal, mas a não priorização somente das
mulheres, nesse sentido, é que situa o debate de políticas públicas que visem somente a
parte das mulheres nas questões relativas à reprodução. Ainda que o PAISM possa ser
englobado a posteriori dentro dos direitos reprodutivos, ele não inclui em si todos esses
atributos. O que não quer dizer, que as mulheres não sejam as mais afetadas no grupo
dos direitos reprodutivos. A desigualdade de gênero afeta, principalmente, as mulheres
ainda mais quando se trata de uma realidade brasileira de programas que não
contemplam em total os direitos reprodutivos das mulheres, como o aborto seguro e o
acesso facilitado de métodos contraceptivos promovendo decisão das usuárias, dentre
outras inúmeras deficiências do sistema de saúde público e privado brasileiros que tem
por função proporcionar acesso a esses direitos às mulheres.
A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (2008) do
Ministério da Saúde, a meu ver é um campo de discussão que pode abrir esse debate dos
direitos reprodutivos no Brasil, tendo como premissa que não somente as mulheres
possuem responsabilidade sobre as questões reprodutivas, avaliando a possibilidade de
inserção dos homens dentro dessa perspectiva. Embora, ressalvo que essa abertura do
debate não representa uma ameaça para os princípios dos direitos reprodutivos para as
mulheres, principalmente no pilar principal que é a autonomia.
Os direitos sexuais, ainda que se encontrem ao lado dos direitos reprodutivos,
estão em patamar diferenciado. Saindo da concepção somente heterossexual, os direitos
sexuais são o caminho para as identidades que a todo tempo reivindicam
reconhecimento nas sociedades ocidentais e que buscam através do reconhecimento
142

justiça e igualdade perante a sociedade e o Estado. Os homossexuais são os principais


atores nessa discussão dos direitos sexuais atualmente.
Assim como os direitos reprodutivos, os direitos sexuais devem comportar
uma face pública e outra privada. Na esfera pública, implicam um arcabouço
legal e uma atmosfera moral que, gradativamente, permitam superar uma
longa tradição de tratar as práticas sexuais que não se conformam às normas
dominantes como patologia (...) Já na esfera privada, os direitos sexuais
requerem respeito à privacidade e intimidade, assim como o consentimento
mútuo nas relações interpessoais. (CORREA; ALVES; JANUZZI, 2006,
p.51)

As discussões em torno dos direitos sexuais no Brasil apontam para alguns


caminhos para que sejam reconhecidos como detentores desses direitos, como: a não
discriminação; a união legal das relações afetivas de homossexuais, com os direitos
legais que essa união possa proporcionar aos parceiros (as); o reconhecimento da
violência contra homossexuais como crime; direito de presos (as) homossexuais
receberem a visita íntima; a não discriminação de homossexuais no regime militar; a
garantia de hospitais públicos realizarem as operações de mudança de sexo e, por
conseguinte, a mudança da identidade formal; dentre muitas outras reivindicações que
também são discutidas no interior de cada segmento desses movimentos e que avançam
e retrocedem dentro da dinâmica política brasileira.26
Dessa forma, a liberdade sexual relativa aos direitos sexuais engloba as mulheres
em diferentes faces e, no estudo que aqui desenvolvo o PAISM não abriga em si essa
linguagem. Ainda que promova debates em torno da sexualidade, atribuir o conceito de
direitos sexuais ao PAISM, a meu ver, não é apropriado, no sentido de que, no
programa original e nos debates da época, as discussões em torno dos direitos sexuais
não estiveram, como atualmente estão, desenvolvidas, na medida em que os
movimentos LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - ganharam
reconhecimento cada vez maior na sociedade brasileira, desde a década de 1970 até
hoje. Mesmo que as oficinas e capacitações do PAISM debatessem questões da
sexualidade, isso não quer dizer, que a gama de significados que os direitos sexuais
carrega, estaria presente nesse debate.
Estabelecer esses pontos é importante para minha análise, pois na medida em
que traço as linhas divisórias do que considero PAISM, teço também algumas

26
A lista aqui enumerada está presente em uma discussão mais aprofundada em: VIANNA, Adriana e
LACERDA, Paula. Direitos e Políticas Sexuais no Brasil: o panorama atual. CEPESC. Rio de Janeiro,
2004. Coleção documentos: 1.
143

considerações sobre as interpretações das falas das entrevistadas e minha própria


interpretação do período.

Vozes dissonantes

Retomando as falas das feministas, temos em especial a fala de Cordélia que


alimenta a polêmica da CPI da Esterilização dentro do meio feminista. Sua fala se
respalda na concepção dos direitos reprodutivos trazidos por algumas feministas que
consideram a esterilização um problema quando fere a autonomia das mulheres em
decidir sobre seus corpos e sobre quais métodos deveriam escolher para regular a
fecundidade. Essa fala vem bastante ao encontro de outras mulheres entrevistadas que
consideram que ao mesmo tempo em que havia uma coerção em determinadas situações
para que as mulheres pobres fizessem a esterilização, as mesmas tinham poder de
decisão para saírem da posição de apenas vítimas desse processo e serem responsáveis
pelas suas decisões em relação à fecundidade.
Os estudos de Berquó, portanto, são utilizados tanto para situar as falas que
consideravam as mulheres negras vítimas da esterilização em massa, quanto daquelas
que situavam as mulheres negras em posição de atuantes na decisão de procurarem
soluções para as questões relativas à regulação da fecundidade. Antes de me debruçar
aqui sobre as discussões da esterilização, faço uma ressalva que considero importante.
O debate da esterilização nesse estudo apareceu como um ponto não pensado
antes das entrevistas. Mas, após o campo, considero que esse assunto está também
permeado com a concepção linear da lembrança feminista do momento do PAISM. A
polêmica em torno do debate em muito vem contribuir para quebrar a noção de
unicidade das falas e de verificar uma estratégia sobre essa memória coletiva de se
estabelecer homogeneidade através do ativismo. O que se pretende com isso? Procurar
as tensões, pontos de conflitos que traduzem as lutas e resistências da época para
também analisar um período e trazer as continuidades desses discursos atuais e as
rupturas desses processos.
Utilizando o estudo de Berquó (1993) contemporâneo ao momento das
discussões da CPI da Esterilização, uma das pistas que os estudos divulgados pela
pesquisadora tenha tamanha repercussão dentro da lembrança da CPI e, por conseguinte
144

do PAISM é a existência da Comissão de Estudos sobre Direitos da Reprodução


Humana, criada em 1987 no Ministério da Saúde, tendo como uma das participantes a
pesquisadora e sobre qual citarei um trecho
A Comissão de Estudos dos Direitos da Reprodução Humana também teve
origem na articulação das feministas, de profissionais da área de saúde e do
Ministério da Saúde. Criada em 1987 ao nível do Ministério da Saúde,
constituiu-se em órgão de deliberação coletiva de caráter técnico-consultivo
com atribuições de fazer amplo diagnóstico da situação da reprodução
humana no país, não só do ponto de vista da saúde, mas de seus aspectos
sociais, econômicos, éticos e políticos, e oferecer subsídios para a proposta
de uma política para o setor da saúde na área de reprodução. Constituídas de
pessoas de notório saber, na sua grande maioria mulheres, a Comissão se
propunha também a acompanhar as ações do Ministério da Saúde no
processo de articulação com os diferentes setores sociais e de entrosamento
com as diversas instituições envolvidas na questão da reprodução humana.
(BERQUÓ, 1993, p.367)

A confiança inspirada pela Comissão de Estudos dos Direitos da Reprodução


Humana através de seus diagnósticos explica a fundamentação tanto das feministas do
movimento negro quanto das outras feministas de se basearem nesses estudos
divulgados pela demógrafa em relação à CPI da Esterilização. No entanto, a disputa em
torno dos resultados que favoreciam ambas as partes está envolvida em um processo
mais complexo dentro do universo feminista brasileiro, representado aqui pelos
movimentos do Rio de Janeiro, que justificavam suas lutas em diferentes níveis de
atuação em favor das mulheres.
Os dados demonstrados nessa pesquisa de 1993, apontam para uma afirmação
das mulheres expressarem o direito a não quererem mais filhos. Fato que se constitui
bem diferente do momento anterior em 1986, quando as mulheres alegavam recorrerem
à esterilização por “problemas de saúde”, discurso esse reiterado por médicos para
fazerem as laqueaduras, segundo a própria pesquisadora. A explicação desse fenômeno
de afirmação das mulheres é feita pela recorrente linguagem dos direitos reprodutivos
que a pesquisadora chama atenção ser divulgada pelos movimentos feministas. Em
outro trecho, Berquó (1993, p.373) aponta para uma diferença pouco significativa entre
a recorrência de mulheres negras e brancas para cirurgias de laqueadura:
Tanto no Nordeste quanto em São Paulo não houve diferença para mulheres
brancas e negras. Foram de 38,5% e 37,5%, respectivamente, no Nordeste as
proporções de laqueadas no total de mulheres brancas e negras, alguma vez
unidas. Em São Paulo, estas prevalências corresponderam a 28% e 27,2%
pela ordem. Neste caso, a prevalência das negras superou a das brancas. 27

27
Os dados da pesquisa são de 1991.
145

Os números, entretanto são altos. A “cultura da esterilização” indicada por


Berquó aponta para um grande número de mulheres esterilizadas afirmarem esse
método como positivo dentro dos outros métodos contraceptivos. Os argumentos
variavam entre os efeitos colaterais da pílula e a não disposição de outros métodos pela
rede pública para a regulação da fecundidade. A esse fator se encontra como mal
sucedida a implantação do PAISM e o desrespeito aos direitos reprodutivos por setores
médicos brasileiros apontados pela pesquisadora. Aliado a esse problema, vinha a
questão do aumento das cesáreas para a realização da cirurgia de laqueadura,
configurando como “pagamento por fora” aos médicos que realizassem tal
procedimento devido à proibição da laqueadura no Brasil.
A discussão sobre as esterilizações suscitou por meio da CPI da Esterilização um
debate de muitas ações e intenções dentro meio feminista e também na sociedade em
geral, nos anos 1980 e 1990. O que aqui pode ser tirado desse momento sobre as falas
das feministas é a dificuldade de consenso acerca de problema tão grandioso dentro das
questões relativas aos direitos reprodutivos no Brasil. Os números eram altíssimos de
mulheres laqueadas e, para além de serem negras ou brancas, demonstrava um claro
vazio nas políticas de contracepção no país e, em consequência disso, um abandono nas
questões relativas ao PAISM. Esse abandono que pode ser justificado por razões
políticas, gestões políticas que não priorizavam os atributos do PAISM; pela atitude dos
profissionais de saúde de oferecerem dificuldades para promoverem atendimento
integral às mulheres; e também de setores religiosos intervindo nas práticas de saúde,
que aqui foram explicitados pelas falas das feministas. Dentre outros motivos, que
estavam envolvidos com a conjuntura política e social brasileira na época e que
ofereciam barreiras para que esse programa fosse implantado.
Essa falta de consenso em relação aos feminismos implica também às disputas
das próprias feministas para emplacarem os direitos reprodutivos das mulheres
representados nesse caso pelo PAISM.
Na medida em que o processo de democratização vai apontando para uma nova
dinâmica política no cenário brasileiro, a mudança de ativismo dessas mulheres vai
fazendo com que o discurso estratégico de unicidade perca força, abrindo o leque de
ativismo com a criação de ONGs que vão modificando a postura dos movimentos e
situando-os dentro de um processo muito maior e com batalhas diferentes que é o
reconhecimento dentro da esfera pública das demandas das mulheres organizadas na
sociedade civil. As políticas afirmativas são o reflexo dessa intensa busca por
146

reconhecimento e abrem mais ainda os preceitos da unicidade antes escamoteados por


uma estratégia discursiva.
A crescente reivindicação de outros movimentos sociais na sociedade, mesmo
dentro dos feminismos que também se ampliaram, como as ONGs voltadas para as
mulheres negras, para as lésbicas - essa luta por vezes vindo em conjunto numa mesma
organização - dentre outras diversas ONGs que hoje proclamam lugares de fala
diferenciados e propõem muitas pautas de discussão acerca das mulheres, configuram
momento completamente diferente do estudado aqui. O que também suscita conflitos e
dificuldades e tem outra face que traduz um contexto de ruptura com aquele que o
PAISM foi criado. Os desafios atuais são outros e proclamam outras atitudes perante
eles. O que aponto pela conjuntura atual de luta pelos direitos das mulheres é a
crescente demanda em legitimar os direitos sexuais e reprodutivos através de leis que
avancem nesse debate. Isso pode ser um indicativo de novas estratégias de luta pelos
direitos das mulheres no Brasil, mas que não posso senão indicar, pois não contemplam
o período estudado.
Considero que possa fazer uma diferença importante nesse processo de análise
da implantação do PAISM é marcar os limites para que ele tenha seu significado:
primeiro, é a Lei do Planejamento Familiar em 1996, que vem abrigar algumas questões
de dentro do PAISM e que as regulamenta de forma a normatizar uma diretriz
programática do Ministério da Saúde. A criação da lei está em muito afinada com o
conceito de direitos reprodutivos sancionado pela Conferência do Cairo em 1994.
Um outro limite importante é a Política Nacional de Assistência Integral de
Saúde da Mulher (2004) , sendo que estiveram presentes na sua criação diversos setores
da sociedade, em especial o movimento de mulheres, o movimento negro e o de
trabalhadoras rurais, sociedades científicas, pesquisadores e estudiosos da área,
organizações não-governamentais, gestores do SUS e agências de cooperação interna-
cional (BRASIL, 2004).
O que pretendo com esses limites sobre o PAISM, que podem ser mais bem
revisados e aprofundados num estudo que decorra dessa temática, é a ruptura com uma
dada situação histórica. Ainda que dentro PAISM estivesse uma atenção à saúde da
mulher e às questões integrais que envolvem essa atenção, não estão contidas no
programa especificamente quem são essas mulheres, que promoção de saúde envolve os
direitos sexuais – esses principalmente – e reprodutivos. Acredito que a abertura do
debate feminista a partir da década de 1990, mais precisamente com o aparecimento de
147

outros grupos a compor o universo feminista brasileiro na forma de ONGs, ampliou o


campo de discussões para que outras identidades pudessem contribuir nas questões
relacionadas aos direitos das mulheres. Essas identidades contribuem para descortinar
formas de opressões diferenciadas, pois situadas em ambientes e condições
diferenciadas, e foram abrindo o leque de ações para a criação de políticas e programas
que abrangessem esses debates.
Nesse sentido, parafraseando o título do artigo de Corrêa(1992), PAISM: uma
história sem fim, proponho utilizar o título PAISM: uma história com fim, já que
passados 21 anos da publicação desse artigo, podemos situar o PAISM como um marco
para a saúde das mulheres no Brasil, um movimento que proporcionou intensos debates
sobre as mulheres na sociedade brasileira, que deflagrou inúmeros casos de
irregularidades em relação à saúde das mulheres, que possibilitou disputas e rearranjos
para que seus princípios pudessem ser implantados, mas que também se situa no tempo
em que foi feito, nas conjunturas que o criaram e nos debates que suscitou.
148

5 CONSIDERAÇÕES FINAISs

Acerca do que foi trabalhado nesses dois anos de pesquisa, em vez de concluir
um estudo prefiro considerar que meu intento antes é abrir portas para que mais vozes
possam integrá-lo. Não o estou finalizando, porque pretendo trabalhar com esse tema
ainda por mais alguns anos que regem a carreira acadêmica da pós-graduação e,
portanto, as considerações finais aqui representam um primeiro ponto final sobre o que
foi realizado.
Como foi explicitado ao longo do texto, o PAISM representou uma porta aberta
de conflitos e foi de suma importância para se verificar situações em que os direitos das
mulheres estavam sendo violados. Trabalhar com todo o conteúdo que envolveu a
pesquisa foi ao mesmo tempo instigante e angustiante, porque demandou que houvesse
uma dedicação a mais sobre as muitas portas que se abriam quando cada ponto era
descoberto e analisado.
A análise dos testemunhos foi de grande surpresa para mim, tendo em vista a
diversidade dos assuntos que foram levantados. Interessante pensar que, os resultados
que tinha me proposto a chegar com a realização das entrevistas estavam na contramão
dos que apareceram - de serem testemunhos locais a respeito da implantação no Rio de
Janeiro. Quando cheguei ao campo encontrei uma ampla discussão de um processo que
envolve não apenas uma cidade, mas um debate que tem um pano de fundo abrangente,
que é a discusssão sobre a saúde das mulheres em termos nacionais.
A maneira como os testemunhos foram emitidos nas entrevistas também
formaram um quadro muito exemplar do conteúdo que estava sendo explicitado: a
multiplicidade das emoções me fez pensar que a recuperação e interpretação dessas
falas não poderiam ser feitas de maneira aprofundada com os prazos que tinha a
149

cumprir. Somente um estudo mais longo e detalhado poderia fornecer os cenários, os


quais tantos sentimentos foram suscitados.
O ganho que se tem com um resultado como esse é ampliar o leque de
possibilidades de se estudar um determinado tema e ter as pistas para se aprofundar
sobre as questões mencionadas. Tentei, portanto, cobrir as arenas de lutas mencionando
parte de algumas discussões que estavam em voga no momento de criação e
implantação do PAISM. O que me levaria depois a separar esse estudo e pensar as
partes apontadas como um início a serem mais bem estudadas.
A partir desse recorte, chegamos a um resultado de imediato sobre o conteúdo: o
contexto histórico que envolvia as ativistas feministas - o momento político permeado
por debates da esquerda e ainda setores da ditadura, bem como a presença da Igreja – é
muito amplo e tem um dos seus retratos nessa política pública tão importante que foi o
PAISM. Nesse sentido, chego a preliminares conclusões sobre o que o PAISM
representava e sobre como foi implantado.
A implantação do PAISM no Rio de Janeiro, no município, esteve concentrada
em pontos que atendiam às mulheres nas principais demandas da época, como a
contracepção e as práticas educativas para que isso pudesse ocorrer, bem como a
regulamentação da esterilização. Entrava nessa discussão as principais reivindicações
das feministas, que primavam pela autonomia baseada na conscientização, bem como,
as práticas educativas, que aqui ocorreram, também discutiam os outros temas tão
difudidos pelo ativismo feminista como a violência e questões relativas à sexualidade.
No entanto, a implantação do PAISM na sua totalidade - enquanto uma política pública
que buscasse a integralidade do sistema para o atendimento das mulheres - dependia de
uma conjuntura que tentei mostrar também a partir dos testemunhos: uma realidade
nacional de problemas do setor da saúde e de disputas políticas. Por isso, o texto ora
está centrado no Rio de Janeiro, ora busca um olhar mais macro sobre as questões que o
envolve.
Quando estudados os conceitos de direitos reprodutivos e sexuais à luz do que
foi contemplado no PAISM, como saúde da mulher, o intento foi trazer os debates
atuais do que se entende de direitos das mulheres após a Conferência de Beijing (1995)
e o que esse debate está permeado de questões que foram abordadas anteriormente. O
que evidenciou ainda mais as continuidades dos problemas enfrentados para a
implantação de políticas públicas para as mulhres à realidade que temos hoje.
150

Sinalizo que são conclusões preliminares. O que significa que não são
conclusões fixas, pois foram caminhos e decisões de pesquisa que permitiram que o
presente trabalho pudesse ser feito, mas que estão no início de um estudo detalhado.
Considero importantes pontos a serem aprofundados após a apresentação desses
primeiros resultados: os debates que envolvem a construção dos direitos reprodutivos e
sexuais na década de 1990 e sua relação com a implantação do PAISM; e a relação das
autoridades de saúde do município do Rio de Janeiro com as frentes que emplacaram
desse programa, no caso, os movimentos feministas. São questões que de antemão vejo
como importantes para o aprofundamento desse estudo e que em outra ocasião pretendo
me debruçar.
No entanto, algumas considerações desejo fazer em relação ao que foi estudado.
Na literatura que consultei sobre o PAISM o recorte histórico sobre as circunstâncias
que o criaram e sobre a sua inserção no processo de redemocratização foram pouco
vistos. Por isso, minha ênfase sobre esses dois aspectos no decorrer do estudo. O que
pretendi era mostrar que não somente as feministas estavam envolvidas com as questões
relativas à saúde das mulheres, como também outros setores da sociedade, e, que isso
importava muito a diferentes interesses, inclusive internacionais.
O que essa escolha no estudo trouxe para análise como resultado foi: fazer uma
interpretação histórica que não fosse demasiadamente à luz do ativismo feminista e, ao
mesmo tempo, não desconsiderar a atuação feminista no momento que o processo de
redemocratização estava levantando as vozes abafadas da ditadura. O que transparece
com essa preocupação é que o momento pelo qual passava a política brasileira na
década de 1980 foi construído pela atuação de diversos movimentos, que inclui os
feministas, e que foram essas reivindicações somadas que deram ensejo ao que temos de
conquistas na história da nossa democracia. Ao mesmo tempo, quis mostrar que
também dentro de um grupo há ainda conflitos e cisões, o que não escaparia isso aos
movimentos feministas. As diversas alianças que os próprios grupos feministas
estabeleceram ao longo desse tempo, as divergências que enfrentaram no seu interior,
também fizeram parte desse processo democrático.
Não homogeneizar a redemocratização é, a meu ver, necessário para a crítica
sobre esse período, porque se encontrei literaturas que nem sequer mencionavam os
movimentos feministas como participantes nesse período, encontrei também outras
literaturas que privilegiavam esse aspecto somente da luta das mulheres e deixavam de
lado todo um contexto de uma época. É um desafio constante, porque, se
151

academicamente criticamos posturas positivistas em relação aos processos históricos e


sociais, velhos vícios não são fáceis de serem mudados. Estão presentes em pequenos
gestos e pouco vistos.
No meu entendimento, a construção de uma memória sobre feminismos de
segunda onda no Brasil não pode simplesmente repetir fatos privilegiados. A análise
precisa ser inserida no contexto geral, confrontada, vista de outros pontos e acima de
tudo, em conjunção com outras partes que digam desse processo.
Essa tentativa de buscar outros pontos de vista sobre esse aspecto dos grupos
feministas me levou a construir também um panorama histórico que tivesse a
característica de ser extenso pensando outras discussões que pudessem estar
conversando com as ações das feministas. O que pode ter sido um pouco exaustivo,
tendo em vista que o assunto principal eram as ações dos feminismos de segunda onda
no Rio de Janeiro em relação à construção de uma política pública que contemplasse à
saúde das mulheres. Mas, esse esforço era uma forma também de sair desse lugar
comum de “história feminista” e tentar contemplar diferentes aspectos do contexto
histórico.
A tentativa de sair desses extremos e construir um trabalho que apontasse para
uma conjunção de fatores que entremeados pudessem trazer elementos interessantes
para a análise das falas sobre a implantação do programa, foi a tarefa que me propus ao
estudar esse tema. O PAISM, portanto, para mim, é um ícone dentro desse processo
todo. Um ícone porque conjuga em si diversos conflitos e disputas, mas também porque
é uma célula em que estão presentes todos os debates do período ao mesmo tempo,
tanto da área da saúde quanto da política em geral.
152

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28
APÊNDICE – Lista de Escritoras Brasileiras Homenageadas

Nísia Floresta (1810 - 1885)

Ana Maria Gonçalves (1970 - )

Alzira Rufino (1949 - )

Maria Carolina Wanderley (1891 - 1975)

Josefina Álvares de Azevedo (1851 - ?)

28
A ordem da lista segue a ordem das entrevistas da pesquisa. Sobre as escritoras homenageadas, foi
consultado, principalmente, o Catálogo de Escritoras Brasileiras do site:
www.amulhernaliterura.ufsc.br/catalogoIndex.html
159

Hilda Hilst (1930 - 2004)

Georgina Mongruel (1861 - 1953)

Elisa Lucinda (1958 - )

Cordélia Sylvia (1888 - 1931)

Cora Coralina (1889 - 1985)

Carmem Dolores (1852 - 1910)

Júlia da Costa (1844 - 1911)

Narcisa Amália de Campos (1852 - 1924)

Yde Schloenbach Blumenschein (1882 - 1963)

Ana Aurora do Amaral Lisboa (1860 - 1951)

Adalgisa Nery (1905 - 1980)

Lucie Laval (1895 - 1914)

ANEXO A – Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher : Bases


Programáticas (1984).
160

ANEXO B – Discurso de Carmem Barroso nos Anais da VIII Conferência Nacional


de Saúde (1986)
161
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