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Revista Políticas Públicas & Cidades – ISSN: 2359 -1552

Boletim Semanal: Cidade e Pandemia


Ensaio

Lidando com a covid-19 no “interior do interior do Maranhão”1: mulheres e


resistência à precarização da vida

Amanda Gomes Pereira


Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Bernardo, Maranhão, Brasil. Coordenadora do Grupo de
Estudos de Gênero e Educação Chita/Gitã UFMA/CNPq. E-mail: ag.pereira@ufma.br

Tatiana Colasante
Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Bernardo, Maranhão, Brasil. E-mail:
tatiana.colasante@ufma.br

No meu caso, a pandemia trouxe muito essa questão de contingência, que é a gente ter que saber
lidar com toda essa pandemia. Lidar, no caso, o meu marido, por ele ser autônomo, ele trabalha com
costura, ele é professor de corte e costura também. Então ele, este ano, não pôde dar aula porque
ele dava aula particular de corte e costura. Aí, no caso, cortou essa questão da costura. E caíram
muito as vendas. A gente tinha até um comércio, tinha uma oficina. Tivemos que devolver o ponto
porque o aluguel já estava acumulando e o aluguel, por ser aqui em São Bernardo, às vezes sai caro.
Então a gente resolveu tirar tudo, as coisas... Está tudo aqui dentro de casa [...]. Trabalho como
professora, no ensino infantil, educação infantil. Então eu tenho minha renda, trabalhando como
auxiliar na sala de aula. Agora ele, no caso, ele praticamente está de bico [...] [Fala de Flávia durante
grupo focal realizado em junho de 2020].
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***
As expressões “lidar” e “lida” no cotidiano de famílias brasileiras adquire diferentes significados.
Pode significar “labuta”, “esforço”, “sacrifício”, “um empenho extraordinário”. Flavia, estudante
universitária, mãe de três filhes, negra e evangélica, destaca em sua fala como a pandemia amplia
o espectro semântico da palavra “lida”. Desde a chegada do vírus SARS-CoV-2 no Brasil, lidar com a
vida, e com as precariedades atreladas a ela, é também lidar com a morte e com a articulação de
estratégias para se contrapor a esta. Nesse cenário, o lidar com a contingência trouxe uma
sobrecarga de trabalho e de responsabilidades, sobretudo, para as mulheres.
Em muitas cidades brasileiras, a vida vai perecendo aos poucos, impondo a morte social de famílias
que se encontram em situações de extrema pobreza ou vivendo em locais com falta de saneamento
básico, desemprego, moradias precárias, sem acesso às condições mínimas de sobrevivência. Para
as mulheres, a pandemia mostrou o lado mais contundente da desigualdade social e de gênero, com
altos índices de violência doméstica e uma jornada de trabalho desumana, pois muitas mulheres
perderam seu emprego ou passaram a trabalhar em casa, permanecendo, assim, mais suscetíveis

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“Interior do interior do Maranhão” é uma expressão utilizada por pessoas de diferentes localidades do estado
maranhense para se referir às zonas rurais, povoados, buscando enfatizar as distâncias geográficas, mas não apenas,
dessas localidades em relação à capital, São Luís.
Volume Especial | Vol. 2 | N° 1 | 2021.
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às situações de vulnerabilidade e ao risco de contágio durante a pandemia – como apontam os
relatórios da Organização das Nações Unidas (2020).
E de que forma essas mulheres se mantêm resilientes com relação às incertezas do vírus? É no
intuito de buscar compreender o cotidiano de mulheres que vivem no interior do interior do
Maranhão, um dos estados brasileiros mais carentes de serviços básicos no país, que a pesquisa,
relacionada a este trabalho, se dedica. De acordo com dados do governo estadual, dos 217
municípios maranhenses, cerca de 140 possuem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo.
Além disso, o índice de extrema pobreza atinge mais de 20% da população, o que representa um
em cada cinco maranhenses sobrevivendo com menos de R$ 70 por mês. Soma-se a essa realidade
o fato de que 60% dos domicílios maranhenses encontram-se em algum nível de insegurança
alimentar (MARANHÃO, 2021).
A partir da fala de duas mulheres migrantes, obtidas no primeiro semestre de 2020 e no primeiro
semestre de 2021, a partir da metodologia de grupo focal – que consiste em promover uma
dinâmica com um grupo de pessoas que discutem temas diversos (GATTI, 2005) –, tivemos
informações sobre diferentes elementos das suas vidas sociais, alteradas em função da pandemia.
Embora tenham um perfil diferente, em muitos aspectos as vivências das estudantes convergem
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para as dificuldades de lidar com situações que se potencializam pelo fato de serem mulheres.
As nossas informantes são estudantes de ensino superior, casadas, com filhos, com faixa etária
acima de 40 anos, moradoras do município de São Bernardo, distante cerca de 400 quilômetros da
capital, São Luís. Flávia é natural do estado de São Paulo e tem três filhos. Já Bárbara tem dois filhos
e veio do Rio de Janeiro para o Maranhão. Ambas abandonaram pessoas, lugares e experiências
para uma vida nova no Nordeste, principalmente em função de buscar melhores condições de vida
para a família em uma cidade pequena, “com menos violência e mais calma”, como destacou Flávia.
Entendemos que os sujeitos se encontram em um conjunto de relações sociais, mesmo que de
forma inconsciente, que os levam a decidir ir para determinado território e/ou retornar para o
território de origem. São estruturas muito mais complexas que determinam as escolhas individuais.
Para Santos (1996), a mobilidade se tornou quase uma regra, de modo que os sujeitos se
assemelhariam a turistas que se deslocam constantemente, inseridos em um processo de
desterritorialização. Segundo ele, a desterritorialização significa, ao mesmo tempo, estranhamento
e desculturização. Isso porque, quando chegam a um lugar do qual não fazem parte e que não
ajudaram a criar, os sujeitos tendem a entrar em um processo de alienação.

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Em uma das falas de Flávia, que nasceu em São Paulo e veio buscar oportunidades de emprego no
Maranhão, isso se torna evidente quando, em meio às agruras da pandemia, afirma: “[...] às vezes
me pego olhando a vista da minha casa lá do alto do morro e vejo aquela imensidão e me pergunto
o que estou fazendo aqui”. Professora de educação infantil e com três filhos, desde o início da
pandemia se mostra apreensiva com relação ao seu futuro, uma vez que seu marido, por ser
autônomo, perdeu sua principal fonte de renda em 2020. O medo de exposição por parte dos
clientes fez com que seu trabalho passasse a ser dispensável.
O marido de Flávia é natural do interior do Maranhão, mas foi morar em São Paulo para trabalhar
nos comércios da rua 25 de Março. Após alguns anos nesse trânsito São Paulo-Maranhão, resolveu
retornar com a família para a cidade natal. Foi quando Flavia iniciou seus estudos na Universidade
Federal do Maranhão. Porém, os trânsitos e fluxos dessa família sempre foram constantes. Com a
pandemia, devido aos riscos relacionados às viagens e ao fechamento do comércio na 25 de março,
as alternativas de obtenção de renda informal por outras vias passaram a ficar ainda mais reduzidas.

A gente é engajado nessa questão da 25 de março, [ele] trabalhava na feirinha da madrugada, e de


lá ele veio embora justamente por causa da pandemia, porque lá tudo fechou. Lá as lojas, os donos
de loja entregaram seus pontos. Muitos agora estão trabalhando na rua pra poder pagar as dívidas.
Então ele veio embora pra cá porque, falei pra ele: “Se não fosse a pandemia, você estava lá ainda”, 3
e eu segurando as pontas aqui. Quer dizer, eu trabalhando, estudando e cuidando da casa (relato
de Flávia, grifo das autoras).

O percurso dos sujeitos que migram nem sempre é linear, compondo-se de um território de origem
e um território de destino. Essa trajetória implica em um movimento de espaço e tempo, no qual
existem intersecções com durações variadas e que agregam diferentes tipos de experiência aos
migrantes, ou seja, esse processo é marcado pela passagem por territórios de transição.
Entendemos que este estar-em-trânsito implica em múltiplas vivências, com experiências positivas
e/ou negativas, re-construção de laços sociais, assimilação cultural etc., que podem condicionar o
deslocamento do migrante para outras localidades ou ainda ser um fator de permanência por mais
tempo ou definitivo nesse interregno. Isso quer dizer que nem sempre o sujeito está em um
território de transição de forma consciente, com o objetivo de chegar a outro destino, mas pode
fazer isso em função de experiências negativas ou surgimentos de novas oportunidades.
Em 2021, com a falta de oportunidades de emprego no Maranhão, o marido e o filho mais velho de
Flávia decidiram morar em São Paulo. Agora, além do medo da pandemia, a angústia dessa mulher
é sobre a responsabilidade de segurar as pontas sozinhas “aqui”, garantindo uma estabilidade
familiar para os filhes, enquanto seu marido vive em trânsito e, na incerteza, demonstra aspectos

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já apontados na bibliografia sobre estudos de gênero, ou seja, que afeto e cuidado se misturam em
linguagens para camuflarem as opressões que incidem sobre um trabalho não remunerado
(FEDERICI, 2017).
No caso de Bárbara, observamos uma angústia em 2020 devido à responsabilidade de cuidar da
mãe idosa e dos filhos estando desempregada, com o marido sobrevivendo de “bicos”. Em um
contexto em que os bens são escassos, as incertezas advindas com a Covid-19 se somam ao
sentimento de desesperança. Assim, surgem questionamentos: “Como manter a nossa vida sem
trabalho? [...]. No início, eu fiquei com depressão, foi muito angustiante, eu não sabia o que eu ia
fazer, porque as contas... A gente tem que pagar, né?”. Aqui surge um novo desafio: lidar com as
contas que não param de chegar e com a redução da renda familiar assegurada pelo trabalho do
marido de manutenção em refrigeração – também autônomo, considerado de risco.
Para Bárbara, a saúde frágil do marido torna ainda mais perigosa e insegura à sobrevivência da
família durante a pandemia. Os clientes tinham receio e continuam tendo, mesmo após um ano de
pandemia e com vacina, de que, durante uma visita para a manutenção dos aparelhos
eletrodomésticos, ele acabe contraindo o vírus. No entanto, na dinâmica realizada em 2021, ela
relatou ter conseguido um emprego, o que trouxe novamente a esperança de ter projetos de vida.
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A esses percalços relatados pelas mulheres, que tornam a vida custosa, ampliando a lida, unem-se
as políticas de isolamento social e a interrupção das aulas presenciais. Sem os encontros nos espaços
de sociabilidade da universidade, e contíguos a ele, as vivências de Flavia e Bárbara se resumem ao
trabalho e às funções domésticas. A universidade, para essas mulheres, é a materialização de
sonhos que não puderam ter quando mais novas. Como relata Flávia:

[...] abraçamos com tudo, com garra a universidade como uma segunda mãe, que é ali que a gente
cresceu, que foi ali onde as pessoas enxergam a gente hoje com um olhar totalmente diferente. Vou
falar pra você que o pessoal fala: ‘Nossa! Você mora no Maranhão! Misericórdia’. Eu, aqui do
Maranhão, só tenho lembranças boas, tipo assim, se no caso eu for embora, vão ser recordações
boas, lembranças boas. Nem que eu tenha saudade de São Paulo, mas aqui, eu no Maranhão e
estudando em universidade, me fez refletir o quanto eu melhorei muito em muitas questões, como
mulher, como estudante, como dona de casa.

Se o acesso tardio à universidade, em um município pequeno e muito diferente das metrópoles em


que moravam antes (Rio de Janeiro e São Paulo), permitiu para essas mulheres experienciar
sentimentos ligados à mobilidade social, o distanciamento desse espaço coloca em aberto a
pergunta: onde habitar? Enquanto os ensinamentos da instituição superior de ensino as aproximam
das paisagens metropolitanas, o compasso do tempo em uma cidade distante da capital

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maranhense, localizada no leste do estado, se configurando como lugar de passagem, faz tudo
parecer rarefeito.

Referências Bibliográficas
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Ed.
Elefante, 2017.
GATTI, Bernadete Angelina. Grupo focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília:
Líber Livro, 2005.
MARANHÃO. Histórico. 2021. Disponível em: http://www.maisidh.ma.gov.br/o-
plano/contextualizacao/. Acesso em: 02 jun. 2021
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU Mulheres. Covid-19. 2020. Disponível em:
http://www.onumulheres.org.br/covid-19/. Acesso em 02 jun. 2021.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo:
Hucitec, 1996.

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