Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Tatiana Colasante
Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Bernardo, Maranhão, Brasil. E-mail:
tatiana.colasante@ufma.br
No meu caso, a pandemia trouxe muito essa questão de contingência, que é a gente ter que saber
lidar com toda essa pandemia. Lidar, no caso, o meu marido, por ele ser autônomo, ele trabalha com
costura, ele é professor de corte e costura também. Então ele, este ano, não pôde dar aula porque
ele dava aula particular de corte e costura. Aí, no caso, cortou essa questão da costura. E caíram
muito as vendas. A gente tinha até um comércio, tinha uma oficina. Tivemos que devolver o ponto
porque o aluguel já estava acumulando e o aluguel, por ser aqui em São Bernardo, às vezes sai caro.
Então a gente resolveu tirar tudo, as coisas... Está tudo aqui dentro de casa [...]. Trabalho como
professora, no ensino infantil, educação infantil. Então eu tenho minha renda, trabalhando como
auxiliar na sala de aula. Agora ele, no caso, ele praticamente está de bico [...] [Fala de Flávia durante
grupo focal realizado em junho de 2020].
1
***
As expressões “lidar” e “lida” no cotidiano de famílias brasileiras adquire diferentes significados.
Pode significar “labuta”, “esforço”, “sacrifício”, “um empenho extraordinário”. Flavia, estudante
universitária, mãe de três filhes, negra e evangélica, destaca em sua fala como a pandemia amplia
o espectro semântico da palavra “lida”. Desde a chegada do vírus SARS-CoV-2 no Brasil, lidar com a
vida, e com as precariedades atreladas a ela, é também lidar com a morte e com a articulação de
estratégias para se contrapor a esta. Nesse cenário, o lidar com a contingência trouxe uma
sobrecarga de trabalho e de responsabilidades, sobretudo, para as mulheres.
Em muitas cidades brasileiras, a vida vai perecendo aos poucos, impondo a morte social de famílias
que se encontram em situações de extrema pobreza ou vivendo em locais com falta de saneamento
básico, desemprego, moradias precárias, sem acesso às condições mínimas de sobrevivência. Para
as mulheres, a pandemia mostrou o lado mais contundente da desigualdade social e de gênero, com
altos índices de violência doméstica e uma jornada de trabalho desumana, pois muitas mulheres
perderam seu emprego ou passaram a trabalhar em casa, permanecendo, assim, mais suscetíveis
1
“Interior do interior do Maranhão” é uma expressão utilizada por pessoas de diferentes localidades do estado
maranhense para se referir às zonas rurais, povoados, buscando enfatizar as distâncias geográficas, mas não apenas,
dessas localidades em relação à capital, São Luís.
Volume Especial | Vol. 2 | N° 1 | 2021.
DOI:
Revista Políticas Públicas & Cidades – ISSN: 2359 -1552
Boletim Semanal: Cidade e Pandemia
às situações de vulnerabilidade e ao risco de contágio durante a pandemia – como apontam os
relatórios da Organização das Nações Unidas (2020).
E de que forma essas mulheres se mantêm resilientes com relação às incertezas do vírus? É no
intuito de buscar compreender o cotidiano de mulheres que vivem no interior do interior do
Maranhão, um dos estados brasileiros mais carentes de serviços básicos no país, que a pesquisa,
relacionada a este trabalho, se dedica. De acordo com dados do governo estadual, dos 217
municípios maranhenses, cerca de 140 possuem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo.
Além disso, o índice de extrema pobreza atinge mais de 20% da população, o que representa um
em cada cinco maranhenses sobrevivendo com menos de R$ 70 por mês. Soma-se a essa realidade
o fato de que 60% dos domicílios maranhenses encontram-se em algum nível de insegurança
alimentar (MARANHÃO, 2021).
A partir da fala de duas mulheres migrantes, obtidas no primeiro semestre de 2020 e no primeiro
semestre de 2021, a partir da metodologia de grupo focal – que consiste em promover uma
dinâmica com um grupo de pessoas que discutem temas diversos (GATTI, 2005) –, tivemos
informações sobre diferentes elementos das suas vidas sociais, alteradas em função da pandemia.
Embora tenham um perfil diferente, em muitos aspectos as vivências das estudantes convergem
2
para as dificuldades de lidar com situações que se potencializam pelo fato de serem mulheres.
As nossas informantes são estudantes de ensino superior, casadas, com filhos, com faixa etária
acima de 40 anos, moradoras do município de São Bernardo, distante cerca de 400 quilômetros da
capital, São Luís. Flávia é natural do estado de São Paulo e tem três filhos. Já Bárbara tem dois filhos
e veio do Rio de Janeiro para o Maranhão. Ambas abandonaram pessoas, lugares e experiências
para uma vida nova no Nordeste, principalmente em função de buscar melhores condições de vida
para a família em uma cidade pequena, “com menos violência e mais calma”, como destacou Flávia.
Entendemos que os sujeitos se encontram em um conjunto de relações sociais, mesmo que de
forma inconsciente, que os levam a decidir ir para determinado território e/ou retornar para o
território de origem. São estruturas muito mais complexas que determinam as escolhas individuais.
Para Santos (1996), a mobilidade se tornou quase uma regra, de modo que os sujeitos se
assemelhariam a turistas que se deslocam constantemente, inseridos em um processo de
desterritorialização. Segundo ele, a desterritorialização significa, ao mesmo tempo, estranhamento
e desculturização. Isso porque, quando chegam a um lugar do qual não fazem parte e que não
ajudaram a criar, os sujeitos tendem a entrar em um processo de alienação.
O percurso dos sujeitos que migram nem sempre é linear, compondo-se de um território de origem
e um território de destino. Essa trajetória implica em um movimento de espaço e tempo, no qual
existem intersecções com durações variadas e que agregam diferentes tipos de experiência aos
migrantes, ou seja, esse processo é marcado pela passagem por territórios de transição.
Entendemos que este estar-em-trânsito implica em múltiplas vivências, com experiências positivas
e/ou negativas, re-construção de laços sociais, assimilação cultural etc., que podem condicionar o
deslocamento do migrante para outras localidades ou ainda ser um fator de permanência por mais
tempo ou definitivo nesse interregno. Isso quer dizer que nem sempre o sujeito está em um
território de transição de forma consciente, com o objetivo de chegar a outro destino, mas pode
fazer isso em função de experiências negativas ou surgimentos de novas oportunidades.
Em 2021, com a falta de oportunidades de emprego no Maranhão, o marido e o filho mais velho de
Flávia decidiram morar em São Paulo. Agora, além do medo da pandemia, a angústia dessa mulher
é sobre a responsabilidade de segurar as pontas sozinhas “aqui”, garantindo uma estabilidade
familiar para os filhes, enquanto seu marido vive em trânsito e, na incerteza, demonstra aspectos
[...] abraçamos com tudo, com garra a universidade como uma segunda mãe, que é ali que a gente
cresceu, que foi ali onde as pessoas enxergam a gente hoje com um olhar totalmente diferente. Vou
falar pra você que o pessoal fala: ‘Nossa! Você mora no Maranhão! Misericórdia’. Eu, aqui do
Maranhão, só tenho lembranças boas, tipo assim, se no caso eu for embora, vão ser recordações
boas, lembranças boas. Nem que eu tenha saudade de São Paulo, mas aqui, eu no Maranhão e
estudando em universidade, me fez refletir o quanto eu melhorei muito em muitas questões, como
mulher, como estudante, como dona de casa.
Referências Bibliográficas
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Ed.
Elefante, 2017.
GATTI, Bernadete Angelina. Grupo focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília:
Líber Livro, 2005.
MARANHÃO. Histórico. 2021. Disponível em: http://www.maisidh.ma.gov.br/o-
plano/contextualizacao/. Acesso em: 02 jun. 2021
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU Mulheres. Covid-19. 2020. Disponível em:
http://www.onumulheres.org.br/covid-19/. Acesso em 02 jun. 2021.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo:
Hucitec, 1996.