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FABIANA
_MORAES

Com corte nos auxílios,


universidade vai sendo
silenciosamente
devolvida às elites
Os recentes cortes no orçamento das
federais atingiram também os auxílios
de assistência e moradia, dificultando
estudo de jovens de baixa renda.
Fabiana Moraes
22 de Março de 2022, 6h00

FAÇA PARTE f t #

Estudantes protestam na Universidade Federal


de Pernambuco, em Recife, PE. Foto: Mateus La-
cerda/Photo Press/Folhapress

QUE A ENTRADA no ensi-


no superior é um sonho acalentado
por muitas pessoas a gente já sabe, e
que o aumento efetivo de uma popula-
ção mais pobre nas graduações é uma
realidade nacional, também: segundo
o Instituto Nacional de Estudos e Pes-
quisas Educacionais Anísio Teixeira, o
Inep, a presença das classes de menor
renda na universidade aumentou seis
vezes em 20 anos.

O que ainda é pouco discutido, porém,


é que ingressar na universidade é “só”
mais uma etapa na corrida por forma-
ção e melhores condições de vida no
país. Permanecer – ou não – durante,
em média, 4 anos de curso é outra
grande questão justamente para as
pessoas mais pobres. As razões são di-
versas: necessidade de conciliar em-
prego, estágio e aulas; eventuais defa-
sagens proporcionadas pelo ensino bá-
sico e/ou fundamental (público ou pri-
vado); falta de dinheiro; sofrimento
mental; dificuldades em obter auxílios
ou bolsas; etc.

Significa dizer que, se entre quem tem


menos dinheiro no bolso, chegar a
uma graduação é bem difícil, finalizar
o curso e sair com conhecimento na
cabeça e diploma na mão são outros
tantos quinhentos. Desde 2016, quan-
do, por exemplo, os arrochos começa-
ram ainda mais fortes nas federais, o
crescimento da baixa renda nas uni-
versidades está estagnado, como mos-
tram os dados do Inep. É o retorno de
uma sombra do passado, quando o en-
sino superior era benesse quase exclu-
siva dos mais ricos no país.

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Foi por muito pouco, por aquele triz


capaz de mudar completamente a vida
da gente, que a estudante Roberta Bolí-
var, 26 anos, não abandonou o curso
de medicina na Universidade Federal
de Pernambuco, a UFPE. Roberta, mi-
neira que saiu da periferia de Belo Ho-
rizonte em 2016 para vir estudar no
Nordeste, entrou no ensino superior
através do Sistema de Seleção Unifica-
da, o Sisu, do Ministério da Educação,
o MEC.

Filha de um PM de baixa patente e de


mãe professora do ensino fundamen-
tal, ela representava tanto orgulho
quanto um obstáculo naquele momen-
to: a renda familiar era de R$ 3 mil
brutos, pouco dinheiro para dar conta
de três pessoas (a estudante, sua irmã
e a mãe, que não chegou a morar com
o pai de Roberta). Dava ainda menos
conta da necessidade de pagar aluguel,
alimentação e transporte para a possí-
vel futura médica em outra cidade. A
mãe da jovem, aposentada, passou a
produzir artesanato para complemen-
tar a renda. Também recorreu a em-
préstimos e se endividou.

Roberta foi morar em Caruaru e divi-


dia um apartamento com mais duas
pessoas, o que barateava as despesas.
Mas a distância da família, o pouco di-
nheiro, a falta de uma rede mínima de
apoio por perto e a instabilidade na
nova residência provocaram arranhões
graúdos na saúde emocional da jovem.
Um ano depois, Roberta voltou para
BH e sofreu outro baque: a mãe a pro-
curou para dizer que já não tinha con-
dições de manter os custos da filha es-
tudando em outro domicílio. Ela teria
que abrir mão de todo esforço dedica-
do.

Foi a partir disso que ela procurou


uma advogada e, posteriormente, o
pai, que estava distante e pouco contri-
buía. Ele, que também estava aposen-
tado mas voltou a trabalhar, concor-
dou em pagar R$ 1 mil mensais para
que a filha conseguisse se manter. Esse
valor aumentava (ou não) a depender
dos ganhos que os pais da estudante
obtinham mês a mês.

A situação melhorou, mas não durante


muito tempo: as altas sucessivas na
inflação elevaram os custos de alimen-
tação, moradia, internet, energia elé-
trica, etc. O aperto, dividido com os
estudos intensos do curso de medicina,
voltou, mas Roberta não podia solici-
tar um dos auxílios estudantis ofereci-
dos pelo MEC. Segundo ela, a renda da
família era pouca para pagar todos os
compromissos, mas era alta para obter
ajuda financeira da instituição federal.
“Não se leva em consideração, por
exemplo, que você vem de outro esta-
do e consequentemente paga muito
mais por isso” (na verdade, existem
auxílios-moradia, como veremos, mas
os cortes orçamentários comuns nos
últimos anos limaram editais diversos
para obter os mesmos).

Estudante de medicina, Roberta trabalha como


modelo para custear as despesas de viver longe
de casa. Foto: Arquivo Pessoal/Roberta
Bolívar

A solução, para a estudante, foi reali-


zar alguns trabalhos como modelo,
renda fundamental para dar conta do
período pandêmico, quando a renda
familiar caiu mais ainda. Roberta, que
já estava trabalhando em hospitais
quando o vírus chegou, conseguiu con-
cluir a primeira etapa do curso em ja-
neiro deste ano e agora tem mais dois
anos de formação prática pela frente.
Pretende complementar a renda com
plantões e prestar concursos para resi-
dência médica.

É bem importante expor que casos


como o de Roberta não devem ser li-
dos pela chave de uma romântica “su-
peração” individual. Histórias como a
dela são coletivas e extremamente co-
muns. Posso contar várias estando po-
sicionada de dentro: faço parte do cor-
po docente da mesma UFPE, justamen-
te do campus de Caruaru, nascido den-
tro do Programa de Reestruturação e
Expansão das Universidades Federais,
o Reuni, criado em 2003. Com ele, fo-
ram inauguradas, até 2010, 14 novas
universidades e mais de 100 novos
campi. Foi uma das medidas mais efe-
tivas para a democratização do ensino
superior do Brasil, criando milhares de
novas vagas e proporcionando forma-
ção de qualidade também longe dos
centros e capitais.

Mas o cotidiano nessas instituições


mostra como essa chegada na universi-
dade pública não é o fim de um movi-
mento, mas ainda seu longo processo.
Posso citar, só de cabeça, vários casos
que tornam a permanência nos cursos
extremamente instável: lembro-me
bem quando diversos estudantes que
moravam em cidades vizinhas (Cupira,
Panelas, Sairé etc.) iam para o campus
com o transporte gratuito oferecido
pelas prefeituras de seus municípios.
Diversos chegavam cobertos de suor e
extenuados em sala de aula, isso por-
que muitos motoristas se recusavam a
sair da BR-104 e adentrar a pista que
leva até a universidade, um percurso
curto para quem estava motorizado,
mas longo e inseguro para quem esta-
va a pé e caminhando sob temperatu-
ras altas. Na volta para casa, quase noi-
te, o constrangimento se repetia, e era
preciso voltar para a BR e ali permane-
cer, sem ponto de parada ou qualquer
estrutura mínima de conforto e segu-
rança, à espera do transporte.

Quem conseguia pagar vans, cerca de


R$ 500 mensais à época, não enfrenta-
va o mesmo perrengue. Em 2017, fize-
mos, na Agência Experimental de Co-
municação da UFPE, a Aveloz, uma re-
portagem especial contando as tantas
dificuldades de várias alunas e alunos
do interior do estado em chegar à sala
de aula por conta do transporte.

“Muitos estudantes de baixa renda que


entram na universidade vêm de um
longo período de tentativas, são sobre-
viventes. Passam por uma série de fil-
tros. Quem mais conclui o ensino mé-
dio, e nas idades consideradas adequa-
das, ainda são as classes mais altas.
Pessoas pobres que chegam à universi-
dade conseguiram terminar a educa-
ção básica e assimilaram entrar no en-
sino superior”, diz o pesquisador Gus-
tavo Bruno de Paula, autor da tese “De-
sigualdades sociais e evasão no ensino
superior: uma análise em diferentes
níveis do setor federal brasileiro“, de-
fendida ano passado na UFMG. O ensi-
no médio é o período escolar com mai-
or taxa de evasão no Brasil: de acordo
com o IBGE, 11,8% dos jovens entre 15
e 17 anos estavam fora da escola em
2018, algo como 1,2 milhão de pessoas
sem atividade educacional.

O estudo da UFMG, baseado em dados


de ingressantes de 2016 (o mesmo de
Roberta), tinha como um dos intuitos
saber até que ponto a evasão estava
associada à origem social dos estudan-
tes das federais, o que nem sempre foi
uma realidade de acordo com os resul-
tados obtidos. A pesquisa adotou um
procedimento inovador, separando a
evasão do curso ou instituição da eva-
são do sistema do ensino superior.

Gustavo descobriu, por exemplo, que o


abandono de um curso universitário
pela escolha de outro é algo considerá-
vel nestes dados. Ou seja, o que a prin-
cípio parece evasão pode ser mobilida-
de. No entanto, essa realidade é mais
frequente justamente entre estudantes
de maior renda, que podem contar
com melhor estrutura e prolongar, por
exemplo, o tempo de formação até
conseguir lugar nos postos de traba-
lho.

Com estudantes de baixa renda o mo-


vimento é outro: quem consegue in-
gressar na universidade procura man-
ter a todo custo a vaga conquistada.
“Muitos estudantes são jovens adultos
e não estão certos sobre o que esco-
lher, boa parte pode não acertar de pri-
meira aquele curso e acaba se redireci-
onando. Muitas vezes essa mudança
pode ser positiva, uma correção da tra-
jetória para o que a pessoa deseja pro-
fissionalmente. Meu argumento na
tese é que são os estudantes com mais
vantagens sociais, com mais condições
socioeconômicas, que podem fazer
esse tipo de movimento, enquanto
para as camadas populares isso é mais
arriscado. Podem se arrepender de
novo, podem atrasar a entrada no mer-
cado de trabalho.”

É por conta de fenômenos assim, que


sugerem um olhar mais delicado sobre
a evasão universitária, que o pesquisa-
dor chama atenção: as bases de dados
podem esconder diversas dimensões
da desigualdade. “É necessário obser-
var a vivência acadêmica, perceber
como os estudantes estão sobreviven-
do, avaliar a qualidade dessa perma-
nência. A evasão não é a única forma
de estudar a questão”, continua ele,
para quem, neste sentido, os auxílios
estudantis são vitais para garantir a
estabilidade estudantil em uma série
de casos, mas não só.

“Percebemos que receber ou não o au-


xílio tem um impacto muito grande
sobre a chance de permanência do es-
tudante, é um dos principais efeitos
positivos. Mas eu acho que temos que
fazer mais pesquisas nessa direção. A
assistência precisa ser não só acadêmi-
ca, mas social também. Muitos profes-
sores assumem que estudantes entram
com autonomia escolar, e não é as-
sim.” Na tese, na qual há também 12
relatos de universitários evadidos da
UFMG, nos aproximamos dessa realida-
de através da experiência de Felipe,
filho de mãe doméstica e pai pedreiro.

A nota no Enem não permitia que Feli-


pe adentrasse o curso desejado, psico-
logia. Através do Sisu, ele optou, como
segundo curso, por estatística. Estava
convencido, através de relatos de ami-
gos, de que arrumaria emprego mais
rápido. Foi selecionado para a UFMG e
UFSCar. Escolheu a primeira. Já nos
primeiros seis meses de curso, ficou
claro que ele tinha não só muita difi-
culdade no domínio da matemática,
mas mesmo nas formas de estudar. Na
pesquisa de Gustavo, ele, que abando-
nou o curso rapidamente, conta:

“Eu acho que a grande frustração foi


que eu não pensei que precisaria estar
preparado o quanto eu precisava pra
fazer esse curso. Eu bem dizer nem sa-
bia estudar. Tipo, cheguei ali, fui ten-
tando fazer o que dava. Mas não tava
entendendo nada das aulas. Não tava
em condições pra fazer aquele curso
(…) Você vai precisar ter uma base, se-
não você não vai construir nada em
cima daquilo.”

Em 4 de fevereiro, estudantes protestam por


retorno presencial seguro na UFPE, em Recife.
Foto: Mateus Lacerda/Photo Press/Folhapress

Diploma em viração
A já citada interiorização dos cursos,
somada à mobilidade permitida pelo
Sisu, são responsáveis tanto por mu-
danças positivas na configuração uni-
versitária quanto exigem cuidados es-
pecíficos. Uma das questões mais co-
muns é a mudança de domicílio de es-
tudantes que, por conta disso, ou pre-
cisam morar em residências universi-
tárias ou alugar quartos ou apartamen-
tos. Por essa razão, as universidades
públicas também oferecem, via MEC,
auxílio complementar moradia (que
podem chegar a R$ 800 quando soma-
dos a auxílios como o alimentação, a
depender de cada instituição).

Mas os diversos cortes orçamentários


realizados nas instituições nos últimos
anos, esvaziando ou impedindo milha-
res pesquisas e muitas vezes o funcio-
namento básico das federais, também
chegou a estes incentivos cabais. Se-
gundo Jônatas Felix da Silva, da Pró-
Reitoria para Assuntos Estudantis da
UFPE, dois editais (de assistência estu-
dantil e de moradia) que regularmente
aconteceriam em 2020 foram suspen-
sos no primeiro semestre em virtude
da pandemia e não foram retomados
por conta dos cortes orçamentários. Os
editais do segundo semestre do mes-
mo ano não foram lançados. “Em 2021,
apenas um edital foi lançado, tendo
havido a inclusão de, até o momento,
640 estudantes. Normalmente, neste
período (2020-2021) haveria quatro edi-
tais, dois de assistência estudantil e
dois de moradia estudantil”, conta.

Segundo Jônatas, a UFPE não realizou


nenhum corte ou reduções de bolsas
em decorrência das tesouras no orça-
mento, o que chegou a ser cogitado. A
pandemia, no entanto, foi outro moti-
vo para a evasão, fazendo com que
houvesse mais saídas que ingressos de
estudantes no universo de pedidos de
auxílio. Em dezembro de 2021, a UFPE
realizou o pagamento de 7.211 bolsas e
auxílios para 4.736 estudantes (segun-
do dados de 2020, 28.989 estudantes de
graduação estavam matriculados na-
quele momento).

Hoje, para conseguir ingressar nos au-


xílios estudantis, os estudantes preci-
sam ter renda per capita inferior a um
salário mínimo e meio, como determi-
nado pelo Programa Nacional de Assis-
tência Estudantil (Pnaes). “A diferença
entre os estudantes de maior e menor
renda está no nível de bolsa em que
são classificados. As bolsas de manu-
tenção estudantil 2 são para os estu-
dantes menos vulneráveis e a bolsa de
manutenção estudantil 1 para os mais
vulneráveis”, explica.

Emanuele Santos, 25 anos, foi uma das


pessoas que precisou apertar os cintos
durante meses por conta da suspensão
dos editais. Aprovada no curso de co-
municação social da UFPE em 2019, ela
terminou reprovando o primeiro pe-
ríodo: não conseguiu cursar as discipli-
nas por conta de um trabalho que rea-
lizava na época. “Queria ser demitida,
mas não quis pedir a saída para não
perder os direitos trabalhistas. Estava
há 4 anos na empresa e precisava des-
se dinheiro”, conta.

Emanuele, estudante de Comunicação da UFPE,


não conseguiu conciliar trabalho e aulas no
primeiro semestre. Foto: Arquivo Pesso-
al/Emanuele Santos

Assim, no semestre posterior, ainda


sem ter sido desligada, conseguiu cur-
sar duas disciplinas, uma à noite e ou-
tra no dia da folga, para não atrasar
mais o curso. Em 2020, veio a pande-
mia e ela voltou para a cidade na qual
nasceu, Belo Jardim, a cerca de 50
quilômetros do campus. Ano passado,
na expectativa do retorno presencial,
voltou para a cidade – e para o aluguel
– e tentou o auxílio-moradia quando
teve a notícia da suspensão dos editais.
O salário mínimo de sua mãe, frente à
inflação, estava mais roído. “Me sus-
tentei com o seguro-desemprego e de-
pois com R$ 650 de um estágio. Conse-
gui me virar com o que tinha.”

Para saber mais:

1. Pobreza, permanência de
universitários e assistência
estudantil: um análise psicossocial
2. Pelos (des)caminhos da evasão
3. Evasão, retenção e permanência
no ensino superior: reflexões,
avanços e desafios

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