Você está na página 1de 6

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO DE ADMINISTRAÇÃO ESCOLAR E ECONOMIA DA EDUCAÇÃO
POLÍTICA E ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA BRASILEIRA (POEB)
PROF. DANIEL CARA

DIREITO À EDUCAÇÃO
NA PANDEMIA

São Paulo, dezembro de 2020

Mirella de Carvalho
Nº USP: 7613181

Período: matutino

mirella.carvalho@usp.br
Pandemia e Educação: o escancaramento da desigualdade social e a
negação do direito de estudar.

O ano de 2020 está sendo marcado por uma pandemia global do chamado
coronavírus, responsável por milhões de infectados e milhares de vítimas fatais. Para
diminuir a chance de contágio, medidas preventivas foram tomadas pelos governos
locais, como o isolamento social, quarentena dos doentes, uso de máscara para quem
precisa sair e fechamento de comércios e serviços não essenciais. Escolas e
universidades também foram fechadas e, assim, o ensino remoto foi a solução
encontrada pelos governantes e diretores de escolas privadas para darem continuidade
às aulas.

É notório que, por si só, este método é problemático, por não ser capaz de
proporcionar uma interação igual à da aula presencial. Pesquisas internacionais afirmam
que em transmissões online, videoconferências e similares, perde-se uma das três
dimensões da comunicação, pois a linguagem não-verbal fica demasiadamente limitada,
exigindo mais atenção para o entendimento, e, portanto, tornando a interação mais
cansativa (EL PAÍS, 2020). Somando-se a isso, o confinamento por conta da quarentena
e o estado de alerta por causa da pandemia nos deixa psicologicamente exaustos e
dispersos, com dificuldade de concentração.

Mas esse é o menor dos problemas quando se pensa na enorme desigualdade


social do nosso país. E o ensino remoto para a rede pública, implantado às pressas,
escancara essa realidade, agravada pela pandemia.

Boa parte dos alunos da rede pública não possui meios tecnológicos para acessar
a plataforma digital do governo de seus respectivos estados. Estima-se que 1 em cada 4
brasileiros não possui acesso à internet (Agência Brasil, 2020). E mesmo que alguns
estados tenham firmado acordo com canais da televisão aberta, muitas famílias não
possuem estrutura habitacional para que seus filhos possam se concentrar nas aulas ou
mesmo fazer as atividades.

No estado de São Paulo, apesar do fornecimento de plano de dados de internet,


muitas famílias não possuem computador e dependem de um único celular para que
todos os filhos possam executar as atividades. Quando as crianças são menores, a
situação complica, porque é necessário que haja o suporte de um adulto, o que nem
sempre é possível. Devido a esses problemas, professores relatam que a frequência dos
alunos tem sido cada vez mais baixa e inconstante (Brasil de Fato, 2020).

De acordo com Carolina Figueiredo Filho, professora da rede pública do Estado


de São Paulo, o aplicativo fornecido pelo governo, o “Centro de Mídias SP”, ao ser
implementado, não permitia que cada docente ministrasse aulas para suas respectivas
turmas, havendo apenas aulas genéricas, ministrada por um professor muitas vezes
desconhecido dos alunos. E o trabalho do docente era acompanhar essas aulas, durante
todo o período, para depois preparar atividades baseadas nelas. Dentro do próprio
aplicativo, não é possível se comunicar com sua turma, havendo a necessidade de outros
meios não oficiais para isso.

Ao longo do ano, em algumas regiões, os professores passaram a dar suas


próprias aulas, mas mesmo assim sobrecarregados de trabalho, por terem que se
comunicar com os alunos através de outros meios, pois não é possível o envio de
material complementar via Centro de Mídias SP.

Diante deste cenário, fica evidente que o fornecimento do direito básico à


educação tem sido negado. A escola, ao invés de cumprir sua função social, acaba por
escancarar ainda mais a desigualdade socioeconômica do país. E, apesar de alguns
estados estarem fornecendo equipamentos e acesso à internet, ou mesmo
disponibilizando material impresso enviados pelos correios ou disponibilizados na
escola, o fornecimento tem sido parcial.

É preciso enfatizar que a Educação é um direito fundamental previsto em nossa


Constituição Federal. Constituição essa que, antes da pandemia, já era violada
diariamente. Violada quando crianças estão fora da escola, seja por falta de vaga, seja
por ser longe de sua casa e não haver transporte público; ou quando, mesmo
frequentando a escola, o governo atrasa a entrega do material didático por meses. São
inúmeros os exemplos da violação desse direito. Como bem aponta Carlos Roberto
Jamil Cury:

“A declaração e a garantia de um direito tornam-se imprescindíveis no caso de países,


como o Brasil, com forte tradição elitista e que tradicionalmente reservam apenas às camadas
privilegiadas o acesso a este bem social. Por isso, declarar e assegurar é mais do que uma
proclamação solene. Declarar é retirar do esquecimento e proclamar aos que não sabem, ou
esqueceram, que eles continuam a ser portadores de um direito importante. Disso resulta a
necessária cobrança deste direito quando ele não é respeitado.” (CURY, 2002)

Ou seja, apesar de ser um direito reconhecido, isso não garante o seu


cumprimento. Para tal, é necessário que ele seja exigido através de políticas públicas e
cobrado pela sociedade civil. Porém, ao passo que a educação de qualidade é negada à
boa parte da população, não há o conhecimento de que este é um direito que pode e
deve ser reivindicado, por meio de instituições jurídicas as quais assegurem que a lei
será cumprida com vigor. (CURY, 2002).

Outro fator que devemos considerar é a isonomia do ensino e a qualidade social


da educação, que se refere à garantia de “padrões mínimos de qualidade de ensino,
definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos
indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.” (art. 4° LDB
/ CURY, 2014), atrelado ao direito à educação através da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB).

O que fica implícito é que os governos estaduais, ao viabilizarem o ensino


remoto através de aplicativos e programas de televisão, consideram que já estão
cumprindo o seu dever de fornecer o ensino, porém se eximem de fornecê-lo com um
padrão de qualidade igualitário, ao não disponibilizarem equipamentos tecnológicos e
financeiros na sua totalidade.

Se antes, com as escolas abertas e funcionando normalmente, o ensino público já


deixava a desejar por falta de investimentos e gestão apropriada, agora tudo piora.
Muitos professores, que já não tinham o suporte necessário para conseguir desenvolver,
em sua plenitude, experiências significativas que despertam a curiosidade e o senso
crítico do aluno, neste contexto de aulas remotas, em que a interação é inadequada, se
torna inviável para o docente garantir um ensino qualitativo.

Paulo Freire defende que, para um ensino efetivo, é necessário que ele seja
humanizador e libertador. Porém, a prática mais comum é a que ele define como
“concepção bancária”, na qual o educador faz o papel de transmissor de saberes, de um
narrador, enquanto o educando, um mero ouvinte.
“Nela [concepção bancária], o educador aparece como seu indiscutível agente,
como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é ‘encher’ os educandos dos conteúdos
de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade
em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. (...) Desta maneira, a
educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o
educador o depositante. (...) Na visão ‘bancária’ da educação, o ‘saber’ é uma doação
dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber.” (FREIRE, 2005)

Partindo dessa definição, podemos afirmar que o ensino remoto têm exacerbado
essa lógica da educação bancária, pois, em muitos casos, como em algumas escolas
públicas do estado de São Paulo, estudantes não estão tendo aulas com seus respectivos
docentes e não estão em um grupo separado para sua turma.

Desta forma, conclui-se que essa nova realidade escolar não abarca toda a
complexidade e subjetividade da comunidade estudantil e pressupõe que todos têm as
mesmas condições habitacionais, estruturais e psicológicas, não considerando,
principalmente, as diversas necessidades inerentes às camadas mais baixas da
população. Além disso, mina qualquer possibilidade de diálogo entre educador e
educando, tornando o ensino um mero ato de transmissão de conhecimento, no qual o
aluno se transforma apenas em um “depósito de conteúdo” (FREIRE, 2005) sem
desenvolver seu pensamento crítico.

Portanto, o ensino remoto estabelecido na rede pública se mostrou extremamente


deficiente. Por esse motivo, não há a menor possibilidade de retorno às aulas presenciais
enquanto o vírus estiver circulando. Apenas com a aplicação da vacina e a confirmação
da comunidade científica de que não há mais perigo, é que se pode retornar. Enquanto
isso, esperamos que os governos estaduais possam estruturar melhor o ensino remoto
para que o direito à educação não continue sendo violado.
BIBLIOGRAFIA

CURY, Carlos Roberto Jamil. Direito à Educação: direito à igualdade, direito à


diferença. In: Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002 p. 245-262, julho/2002.

__________. A qualidade da educação brasileira como direito. In: Educ. Soc.,


Campinas, v. 35, nº. 129, p. 1053-1066, out.-dez./2014.

FILHO, Carolina Figueiredo. Mitos e verdades sobre a política de educação remota da


rede estadual de SP. 14 de maio de 2020. Disponível em:
<https://campanha.org.br/analises/carolina-figueiredo-filho/mitos-e-verdades-sobre-
politica-de-educacao-remota-da-rede-estadual-de-sp/>. Acesso em 22/11/2020.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

SUDRÉ, Lu. “Mais trabalho, alunos sem acesso e incertezas: a realidade do "ensino"
pelo Whatsapp”. In: Brasil de Fato: São Paulo. 15 de outubro de 2020. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2020/10/15/mais-trabalho-alunos-sem-acesso-e-
incertezas-a-realidade-do-ensino-pelo-whatsapp>. Acesso em: 01/11/2020.

TOKARNIA, Mariana. “Um em cada 4 brasileiros não têm acesso à internet, mostra
pesquisa”. In: Agência Brasil: Rio de Janeiro. 29 de abril de 2020. Disponível em:
<https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-
brasileiros-nao-tem-acesso-internet>. Acesso em: 01/11/2020.

VESPA, Talyta. “SP: só metade dos alunos acessa aula online; professores relatam
sobrecarga”. In: UOL, 29 de maio de 2020. Disponível em:
<https://educacao.uol.com.br/noticias/2020/05/29/sp-metade-dos-alunos-acessam-aulas-
online-professores-relatam-sobrecarga.htm>. Acesso em: 29/10/2020

ZURIARRAIN, José Mendiola. “Por que as videoconferências nos esgotam


psicologicamente?”. In: El País, 06 de maio de 2020. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-06/por-que-as-videoconferencias-nos-
esgotam-psicologicamente.html> . Acesso em 28/10/2020.

Você também pode gostar