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Um memorial familiar
Mirella de Carvalho
Nº USP: 7613181
Período: noturno
Francês nascido em 1937, Marcel Cohen é um escritor judeu contemporâneo.
Sua primeira obra é da década de 1970, publicando alguns outros a partir de então,
inclusive na década de 2000 e a atual. Apesar de a maioria de seus trabalhos serem
escritos em francês, um de seus textos mais aclamados é uma carta escrita em Ladino ao
pintor espanhol Antonio Saura, publicada em 1977. Isso se deve ao fato de ele ter
crescido perto de seus avós maternos, judeus sefarditas.
Seus pais, judeus, emigraram da Turquia para Paris em busca de uma vida
melhor. Porém, foram deportados e mortos nos campos de concentração nazista. Marcel
escapou por pouco, pois havia saído com a babá no exato momento em que seus pais
foram capturados.
A Cena Interior, seu mais recente livro lançado em 2013, resgata momentos de
sua infância, anteriores a este trágico acontecimento. Em contradição aos testemunhos
de judeus sobreviventes do genocídio, que costumam relatar o horror que passaram em
campos de concentração e o que se perdeu com tudo isso, Cohen se detém no que
sobrou. De maneira muito delicada e bonita, vai construindo um memorial de sua
família, através de suas lembranças pueris e de outros familiares e amigos que se
despuseram a contar-lhe histórias relacionadas aos que se foram. Para caracterizar a
obra, Flávio Ricardo Vassoler comenta:
1
VASSOLER, Flávio Ricardo. “Livro de memórias conta como autor judeu escapou dos nazistas”. In:
Aliás-Estadão, 2017.
Além disso, é impressionante a descrição do que parece ser um mero objeto, mas
que se revela como tendo uma importância extraordinária ao ser relacionado com
acontecimentos vividos pela pessoa lembrada. Um exemplo disso é o cachorro
improvisado feito pelo seu pai durante a guerra:
Com o mesmo cuidado na escolha das palavras, o primeiro capítulo fala sobre
sua mãe, Maria Cohen, havendo a retomada de sua trajetória através de diversas
histórias de sua adolescência até tornar-se adulta e casar-se com Jacques. Tudo contado
de forma muito amável, detalhando cada trejeito de sua mãe, desde suas vestimentas até
suas características mais marcantes. Observando fotos dela, Marcel Cohen a descreve,
em uma demonstração terna de admiração por ela:
2
COHEN, Marcel. A Cena Interior. São Paulo: Editora 34, 2013. pp. 52-53
3
Anotação minha
4
COHEN, Marcel. A Cena Interior. São Paulo: Editora 34, 2013. pp. 22
perfume. Ela se faz presente tanto nas lembranças sobre sua mãe Marie, como nas de
suas duas avós, ambas de mesmo nome Sultana.
“Cheiro inebriante, cada vez que Marie abria sua bolsa: mistura de pó de arroz,
perfume, batom. (...) Ainda hoje, nos mercados de pulgas, eu me pilho abrindo bolsas
velhas, como se persistisse ali o indício de uma presença.”5
Importante apontar também que cada pessoa lembrada no livro é chamada pelo
nome no livro, e não de mãe, pai, avô, avó. Isso se deve ao fato de Marcel Cohen ter a
intenção de individualizá-los, colocando em evidência suas personalidades e não
somente suas funções familiares em relação a ele.
Quando sua família foi capturada, Marie estava grávida de Monique, sua irmã.
Ela foi levada ao hospital Rothschild, em que mulheres judias ficavam para terem seus
filhos e, posteriormente, serem deportadas. Enquanto esteve lá, seus tios o levavam para
vê-la, mas, depois de certas desconfianças, passaram a não entrar mais no hospital, e a
“falar” com Marie da calçada, em frente a janela do quarto em que estava. Para não
levantarem suspeitas, conversavam apenas por gestos, com o vidro fechado e
movimentando os lábios, sem voz, sem sussurro, ou seja, em silêncio.
5
COHEN, Marcel. A Cena Interior. São Paulo: Editora 34, 2013. pp. 20-21
6
Idem. pp. 84
não chamar a atenção que forçavam Marie a só falar por gestos e a se contentar em
mexer os lábios atrás da janela. (...). Quando a janela se abriu, o silêncio profundo do
hospital, tomando o lugar dos gritos dos bebês, me abalou tanto quanto a aparição das
enfermeiras. Se aquele silêncio me parecia tão antinatural era porque confirmava, com
mais de cinquenta anos de atraso, a ausência de dezenas de jovens mães e de seus bebês.
Será disso que se trata o ‘silêncio ensurdecedor’?”7
Podemos dizer que este silêncio se inicia antes mesmo da deportação para os
campos. No caso de Marie, o fato de não poder se comunicar com seus entes queridos já
configura o início de uma aniquilação, não somente a sua, mas a de todos os envolvidos,
inclusive a do próprio autor. No caso de Marcel Cohen, que assistiu a tudo sem entender
muito bem o que ocorria, por ser apenas uma criança de cinco anos e meio, foi um
silenciamento diferente, mas de mesma origem.
Alguém que precisou de muitos anos até que pudesse reunir os fragmentos de
memória de cada familiar ou amigo que sobreviveu, para poder finalmente romper o
silêncio. Somente 70 anos depois de ver seus pais serem presos e escapar de tudo por
conta de um passeio com a babá. Mas talvez tenham sido esses anos todos que
permitiram que o ressentimento pudesse dar lugar ao amor incondicional por sua família
e que ainda perdura em seu peito e nas lembranças que jamais serão esquecidas por ele.
7
COHEN, Marcel. A Cena Interior. São Paulo: Editora 34, 2013.
8
LESSA, Renato. “O Silêncio e sua representação”. In: Memórias e Cinzas – vozes do silêncio.
SCHWEIDSON, Edelyn (org.). São Paulo: Perspectiva, 2009.
BIBLIOGRAFIA
VASSOLER, Flávio Ricardo. “Livro de memórias conta como autor judeu escapou dos
nazistas”. In: Aliás-Estadão, 2017.