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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de Letras Orientais
Disciplina: Literatura Hebraica VI
Docente: Luis Sérgio Krausz

A Cena Interior de Marcel Cohen:

Um memorial familiar

São Paulo, dezembro de 2017

Mirella de Carvalho

Nº USP: 7613181

Período: noturno
Francês nascido em 1937, Marcel Cohen é um escritor judeu contemporâneo.
Sua primeira obra é da década de 1970, publicando alguns outros a partir de então,
inclusive na década de 2000 e a atual. Apesar de a maioria de seus trabalhos serem
escritos em francês, um de seus textos mais aclamados é uma carta escrita em Ladino ao
pintor espanhol Antonio Saura, publicada em 1977. Isso se deve ao fato de ele ter
crescido perto de seus avós maternos, judeus sefarditas.

Seus pais, judeus, emigraram da Turquia para Paris em busca de uma vida
melhor. Porém, foram deportados e mortos nos campos de concentração nazista. Marcel
escapou por pouco, pois havia saído com a babá no exato momento em que seus pais
foram capturados.

A Cena Interior, seu mais recente livro lançado em 2013, resgata momentos de
sua infância, anteriores a este trágico acontecimento. Em contradição aos testemunhos
de judeus sobreviventes do genocídio, que costumam relatar o horror que passaram em
campos de concentração e o que se perdeu com tudo isso, Cohen se detém no que
sobrou. De maneira muito delicada e bonita, vai construindo um memorial de sua
família, através de suas lembranças pueris e de outros familiares e amigos que se
despuseram a contar-lhe histórias relacionadas aos que se foram. Para caracterizar a
obra, Flávio Ricardo Vassoler comenta:

“É como se, insuflados pelo lirismo, os escombros da memória quisessem erigir


tanto uma barricada contra o esquecimento quanto um abrigo para aquele que se sente
coagido a se lembrar.”1

Somados à descrição dos fragmentos e de suas impressões de adulto, o autor


também insere na obra lampejos de seus pensamentos infantis diante daqueles episódios
que ele cita. E, materializando tais memórias, há algumas fotos de seus familiares e
fotos de objetos que pertenceram a alguns deles, e que puderam ser resgatados ou
mantidos no seio familiar. As fotos nos dá uma maior dimensão de quem eram tais
pessoas, fazendo com que nosso imaginário possa adentrar ainda mais os sentimentos
que a obra representa e provocando uma emoção ainda maior ao ler as histórias. É de
uma delicadeza ímpar.

1
VASSOLER, Flávio Ricardo. “Livro de memórias conta como autor judeu escapou dos nazistas”. In:
Aliás-Estadão, 2017.
Além disso, é impressionante a descrição do que parece ser um mero objeto, mas
que se revela como tendo uma importância extraordinária ao ser relacionado com
acontecimentos vividos pela pessoa lembrada. Um exemplo disso é o cachorro
improvisado feito pelo seu pai durante a guerra:

“Durante a guerra, como não podia me dar brinquedos, Jacques fabricou um


cachorrinho com um resto de oleado amarelo. O cachorrinho, forrado de crina, caberia
num maço de cigarros. A costura lembra os pontos de sutura dos cirurgiões. O fio preto
serve também para desenhar os olhos. Já me contaram cem vezes que dei o cachorrinho
de presente a uma das primas, pouco antes de partirem pra Itália (...). Elas o devolveram
há cerca de vinte anos. Tenho o cachorrinho diante dos olhos no momento em que
escrevo essas linhas. Mesmo sem me fazer lembrar de nada, ele me ensinou muito sobre
Jacques, em primeiro lugar sobre sua habilidade manual bastante incomum. Um homem
cujo pai empregou tanta minúcia, engenho e paciência para, apesar de tudo, dar um
brinquedo de presente ao filho, um homem assim sabe que tem em mãos a prova de uma
imensa ternura.”2

Com o mesmo cuidado na escolha das palavras, o primeiro capítulo fala sobre
sua mãe, Maria Cohen, havendo a retomada de sua trajetória através de diversas
histórias de sua adolescência até tornar-se adulta e casar-se com Jacques. Tudo contado
de forma muito amável, detalhando cada trejeito de sua mãe, desde suas vestimentas até
suas características mais marcantes. Observando fotos dela, Marcel Cohen a descreve,
em uma demonstração terna de admiração por ela:

“Marie dá o braço para Jacques na Promenade des Anglais, durante a viagem de


núpcias a Nice, em dezembro do mesmo ano (19363): longo casaco preto, forrado com
pele de raposa cinza. Gola ampla, também em raposa cinza. Escarpins pretos de salto
alto. Bolsinha de couro preto embaixo do braço. À cabeça, um chapeuzinho tirolês,
levemente inclinado, arrematado por uma pluma em ângulo reto. Marie sorri para o
fotógrafo. Seus trajes sempre me fizeram pensar no concurso de elegância
automobilística que se viam nos cinemas (...)”.4

Outro fator importante citado neste livro é a existência da memória olfativa, ou


seja, a lembrança de outrem ou de algum momento vivido através de determinado

2
COHEN, Marcel. A Cena Interior. São Paulo: Editora 34, 2013. pp. 52-53
3
Anotação minha
4
COHEN, Marcel. A Cena Interior. São Paulo: Editora 34, 2013. pp. 22
perfume. Ela se faz presente tanto nas lembranças sobre sua mãe Marie, como nas de
suas duas avós, ambas de mesmo nome Sultana.

“Cheiro inebriante, cada vez que Marie abria sua bolsa: mistura de pó de arroz,
perfume, batom. (...) Ainda hoje, nos mercados de pulgas, eu me pilho abrindo bolsas
velhas, como se persistisse ali o indício de uma presença.”5

“A cada nova viagem a Istambul, ao reencontrar o frescor da água de limón, eu


pensava em Sultana, mas também em minha avó materna, que viera viver em Paris
trinta e cinco anos mais tarde, no fim da década de 1950. Nascida nas mesmas margens
dos Bósforo, ela também se chamava Sultana. As duas Sultanas tinham a mesma
doçura, a mesma paciência sem limite com as crianças. Pareciam-se nos menores
detalhes: o mesmo hábito de esconder o lencinho sob o punho do vestido (como
também fazia Marie), a mesma dificuldade para suportar grandes calores, o mesmo uso
da água-de-colônia para se refrescar.”6

Importante apontar também que cada pessoa lembrada no livro é chamada pelo
nome no livro, e não de mãe, pai, avô, avó. Isso se deve ao fato de Marcel Cohen ter a
intenção de individualizá-los, colocando em evidência suas personalidades e não
somente suas funções familiares em relação a ele.

Quando sua família foi capturada, Marie estava grávida de Monique, sua irmã.
Ela foi levada ao hospital Rothschild, em que mulheres judias ficavam para terem seus
filhos e, posteriormente, serem deportadas. Enquanto esteve lá, seus tios o levavam para
vê-la, mas, depois de certas desconfianças, passaram a não entrar mais no hospital, e a
“falar” com Marie da calçada, em frente a janela do quarto em que estava. Para não
levantarem suspeitas, conversavam apenas por gestos, com o vidro fechado e
movimentando os lábios, sem voz, sem sussurro, ou seja, em silêncio.

Já adulto, o autor comparece a um evento em homenagem às mães e filhos que


estiveram neste hospital e que de lá foram deportados. Assim, quando avistou duas
enfermeiras postas exatamente na mesma janela que Marie ficava, Cohen foi tomado
por um sentimento de raiva e, em seguida, se deu conta de que:

“a presença das enfermeiras esclarecia um detalhe que permanecera nebuloso


nas minhas lembranças: mais que a largura da rua, era o barulho do salão e a vontade de

5
COHEN, Marcel. A Cena Interior. São Paulo: Editora 34, 2013. pp. 20-21
6
Idem. pp. 84
não chamar a atenção que forçavam Marie a só falar por gestos e a se contentar em
mexer os lábios atrás da janela. (...). Quando a janela se abriu, o silêncio profundo do
hospital, tomando o lugar dos gritos dos bebês, me abalou tanto quanto a aparição das
enfermeiras. Se aquele silêncio me parecia tão antinatural era porque confirmava, com
mais de cinquenta anos de atraso, a ausência de dezenas de jovens mães e de seus bebês.
Será disso que se trata o ‘silêncio ensurdecedor’?”7

Em consonância com o “silêncio ensurdecedor” citado por Cohen, Renato Lessa


comenta, em seu texto “O silêncio e sua representação”, que

“Auschwitz, em sua máxima expressão – a do aniquilamento de suas vítimas –,


pode ser imaginado como um experimento de vitória total do silêncio e como supressão
definitiva das vozes humanas.”.8

Podemos dizer que este silêncio se inicia antes mesmo da deportação para os
campos. No caso de Marie, o fato de não poder se comunicar com seus entes queridos já
configura o início de uma aniquilação, não somente a sua, mas a de todos os envolvidos,
inclusive a do próprio autor. No caso de Marcel Cohen, que assistiu a tudo sem entender
muito bem o que ocorria, por ser apenas uma criança de cinco anos e meio, foi um
silenciamento diferente, mas de mesma origem.

Alguém que precisou de muitos anos até que pudesse reunir os fragmentos de
memória de cada familiar ou amigo que sobreviveu, para poder finalmente romper o
silêncio. Somente 70 anos depois de ver seus pais serem presos e escapar de tudo por
conta de um passeio com a babá. Mas talvez tenham sido esses anos todos que
permitiram que o ressentimento pudesse dar lugar ao amor incondicional por sua família
e que ainda perdura em seu peito e nas lembranças que jamais serão esquecidas por ele.

7
COHEN, Marcel. A Cena Interior. São Paulo: Editora 34, 2013.
8
LESSA, Renato. “O Silêncio e sua representação”. In: Memórias e Cinzas – vozes do silêncio.
SCHWEIDSON, Edelyn (org.). São Paulo: Perspectiva, 2009.
BIBLIOGRAFIA

AARONS, Victoria. Third-Generation Holocaust Narratives: Memory in Memoir and


Fiction. Lexington Books, 2016.

COHEN, Marcel. A Cena Interior. São Paulo: Editora 34, 2013.

LESSA, Renato. “O Silêncio e sua representação”. In: Memórias e Cinzas – vozes do


silêncio. SCHWEIDSON, Edelyn (org.). São Paulo: Perspectiva, 2009.

VASSOLER, Flávio Ricardo. “Livro de memórias conta como autor judeu escapou dos
nazistas”. In: Aliás-Estadão, 2017.

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