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FINITUDE, MEMÓRIA E

INTERTEXTUALIDADE:
UMA LEITURA DE A
MÁQUINA DE FAZER
ESPANHÓIS, DE
VÁLTER HUGO MÃE

Maria Carolina Cysneiros

Universidade Federal Fluminense | Instituto de Letras


Departamento Letras Clássicas e Vernáculas

Trabalho final da disciplina Literatura Portuguesa II

Professora Dra. Ida Alves


“o nosso inimigo é o corpo. ser velho é viver contra o corpo até chegarmos a um
momento em que a luz do sol nos parece uma dádiva inestimável e vale a pena
viver apenas para fazermos a fotossíntese das tardes”
(MÃE, 2010, p. 146)

A proposta do presente trabalho é explorar os temas da velhice, época da vida em


naturalmente se contempla com mais atenção a questão da finitude, da manutenção/perda da
subjetividade e dos diálogos com Fernando Pessoa abordados por Valter Hugo Mãe em A máquina
de fazer espanhóis (2010).

Introdução: O espaço do asilo como local de apagamento e finitude

O romance é narrado por António Jorge da Silva, um homem de 84 anos. Viúvo, é


abandonado pela família no asilo Feliz Idade e, junto com seus companheiros relembra o passado,
buscando (re)significar sua existência atual.
O nome do asilo, que remete à um momento feliz da vida, contrasta com a realidade de
seus residentes, um grupo marginalizado, sem lugar social. O espaço físico em que se encontram é
retratado de maneira impessoal e opressora. Local controlado e ordenado (não pelos idosos, que
não tem voz no que diz respeito ao que acontece em suas vidas) que propele seus habitantes para a
perda de suas individualidades, de si mesmos como sujeitos, apenas “um conjunto de abandonados
a descontar pó ao invés de areia na ampulheta do pouco tempo”. É nesse ambiente que os idosos
criam uma pequena sociedade, formam afetos, partilham suas experiências durante a ditadura
salazarista e produzem uma narrativa a partir do fio condutor da memória de António.
É a perspectiva individual do personagem sobre eventos da memória coletiva portuguesa
no contexto ditatorial do Estado Novo que conduzem a narrativa, que alterna eventos do presente
no asilo com o passado. Num ambiente de abandono e esquecimento, rumo à inexistência, António
se apega às lembranças para tentar manter sua própria identidade, entre trechos metaliterários que
fazem referência a figuras essenciais da cultura portuguesa (como por exemplo o Esteves,
personagem que o sujeito poético de Álvaro de Campos vê de sua janela em Tabacaria).
Análise: A memória como construção de identidade coletiva e o diálogo com Pessoa

O discurso da memória é proferido por um idoso que, privado de liberdade no asilo,


relembra em silêncio enquanto espera seu fim. A temática da memória é o eixo da construção
do romance, interpretando e reconstruindo a identidade do narrador e dos demais moradores
da casa de repouso. António reflete a respeito da manipulação do sentimento coletivo e ideais
impostos pelo regime autoritário a que esteve submetido na juventude. Ele fala do controle
centrado na figura de Salazar, exercido no âmbito das relações entre os portugueses, como um
pai, um chefe que, de cima, observava e regulava.

prudência, uma sabedoria que vinha de família, de colocar a família no centro das
coisas. eu deixava que a sociedade fosse apodrecendo sob aquele tecido de famílias de
bem, um mar imenso de famílias de aparências, todas numa lavagem cerebral social
que lhes punha o mundo diante dos olhos sublinhado à lápis azul, para melhor vermos
o que melhor queriam que apreciássemos. ai as glorias de salazar, eram tão grandes as
pontes e longas as estradas (...) parecíamos um grande cenário de lego. (MÃE, 2010,
p. 133)

Revolvendo o passado (seu e dos outros), António remenda um tecido de detalhes e


costura uma versão alternativa daquela oferecida pela memória coletiva, que por muito tempo
se sustentou. Acessando um banco de dados coletivo, com os outros “Silvas” do asilo, o
narrador seleciona e combina fatos quase esquecidos, desmascarando os tendenciosos
esquemas de opressão salazarista, preenchendo algumas lacunas dos registros da história
recente de Portugal. Enquanto três de seus companheiros estabelecem uma relação com a
figura de Salazar – numa representação da manipulação da história no âmbito político - o
personagem João da Silva Esteves (“o sem metafísica”) se relaciona com a figura de Fernando
Pessoa para representar o poder da manipulação da memória no âmbito da literatura.

era notório que seguíamos estúpidos com a maravilha de termos diante de nós
tal figura. pasmávamos ainda como se não fosse coisa de acreditar que o joão
esteves um dia tivesse vivido em lisboa e frequentado a tabacaria alves com
naturalidade suficiente para ser genuíno dentro de um poema do fernando
pessoa. o anísio finalmente disse, que filho da mãe sortudo. nem rimos.
estávamos demasiado atónitos para beliscarmos aquela fantasia tão grande
(MÃE, 2011, p. 127).

A obra dialoga com o poema Tabacaria de Álvaro de Campos – heterônimo de


Fernando Pessoa - desde a epígrafe. A simbologia dos nomes sugere que António manipula o
discurso dos outros personagens, se valendo da técnica literária dos heterônimos do poeta
quando utiliza as memórias de seus homônimos (“Silvas”). Numa tentativa de retardar o
esquecimento perto do fim eminente de sua vida, o narrador se dedica ao exercício da
metaficção e a manipulação da memória através do ofício literário. Em suas reminiscências,
falando de si, António Silva deixa de ser ele mesmo, torna-se personagem da própria história,
reunindo memórias, construindo imagens, manipulando fatos e contando ao leitor apenas o
que lhe interessa.
No célebre poema, o sujeito poético de Álvaro de Campos observa a Tabacaria Alves
- espaço de prazer e ilusão, a realidade burguesa - através de sua janela. Após divagar sobre o
mal-estar coletivo e o pessimismo diante da noção socialmente difundida de uma existência
metafísica, o poeta introduz a figura de um homem comum com uma história trivial.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).


Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
(PESSOA, 1965, p. 366.)

A imagem (composta quase como uma cena, com caráter dramático) descrita no
poema de Álvaro de Campos é retomada pelo romance de Hugo Mãe e apresentada como
relato da memória daquele que teria vivido a situação ficcional. Uma rememoração de
memória do outro, lembranças depositadas como bonecas russas, umas dentro das outras.
António dá vida e história ao personagem de Pessoa, transbordando dos versos.

subitamente ocorreu-me que não faláramos ao anísio acerca do grande


figurão do lar. era imperdoável que estivéssemos em deambulação havia
tanto tempo e não nos houvéssemos lembrado de que também no lar da feliz
idade havia mitologia viva e pronta a abrir bocarras de espanto. o elegante e
eterno esteves sem metafísica que vivia ainda, falando e contando as suas
aventuras como se os livros aumentassem. como se a tabacaria e o álvaro de
campos e o fernando pessoa tivessem uma continuação (MÃE, 2011, p. 95).

O aspecto intertextual do diálogo com a obra pessoana funciona como uma chave
interpretativa da narrativa, que fornece novas perspectivas sobre a manipulação da memória
coletiva.
era exatamente como ler a tabacaria parte dois, ou frequentar a tabacaria e
estarmos oitenta anos antes a confraternizar com os génios numa das histórias
mais históricas da nação. (...) em mil novecentos e trinta e três saiu a
tabacaria na capa da maior revista de literatura portuguesa, dirigida com
importância pelo josé régio. eu soube já em trinta e cinco. senti-me afundado
na metafísica. (...) o fernando pessoa havia morrido e o poema ficou para
sempre a fazer que éramos amigos, com aquele cumprimento no fim, como
regozijando por me ver. uma mentira qualquer, ou não? (MÃE, 2011, p. 96-
7).

António usa as informações do poema para reconfigurar a memória de seu amigo,


criando uma ramificação do poema e trazendo-a para a realidade. Aparece aí uma nova
história, intrinsecamente ligada à literatura e à memória, transformada em inspiração de um
dos mais emblemáticos poemas pessoanos.

Conclusão:

A eminência da morte, o apagamento do eu e a marginalização de todo um grupo


social são temáticas levantadas na obra de Valter Hugo Mãe, que aborda a fragilidade do
sujeito a partir do relato de múltiplas vozes (históricas e literárias).
Lembranças individuais nascem de textos anteriores, resgatam e criam novos
significados para eles, e para sua própria memória. A máquina de fazer espanhóis suscita
ainda complexos debates sobre questões nacionais relativas ao trauma recente do Salazarismo,
doloridas até hoje no Portugal democratizado.

Referências bibliográficas:

MÃE, Valter Hugo. A máquina de fazer espanhóis. Lisboa: Objetiva, 2010.


PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1965.
FRANZ, Marcelo. “Os imaginativos meios que a natureza tem para extrair a vida de alguém”
– Representação do corpo envelhecido em A máquina de fazer espanhóis. Revista do Núcleo
de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana (NEPA) da UFF. Niterói, v. 9, n.18, p.
141-164, jan/jun, 2017.

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