Você está na página 1de 14

“FORMAS DE VOLTAR PARA CASA”: HISTÓRIA, LITERATURA, MEMÓRIA E

DITADURA CHILENA EM ALEJANDRO ZAMBRA.

Bárbara Bruma Rocha do Nascimento


Mestra em História do Brasil-UFPI
Universidade Federal do Piauí
Email: brumabarbara@gmail.com

RESUMO
Este trabalho nasce do diálogo entre História e Literatura pensado a partir da obra Formas de
voltar para casa, do escritor chileno, Alejandro Zambra. Publicada no Brasil em 2014, esta
traz em sua narrativa as memórias e vivências da infância de um garoto no Chile na década
de 1980, período onde ainda se vivia a ditadura do general Augusto Pinochet. Partindo da
noção de testemunho na literatura, consideramos a obra de Zambra como ponte para uma
discussão sobre: história, memória e ditadura, compreendendo a complexidade do trabalho
de registrar o passado.A América Latina traz em suas “veias abertas”, memórias de vivências
traumáticas, entre elas a instauração de regimes autoritários. Nos últimos anos, as pesquisas
historiográficas vêm discutindo as possibilidades de compreender os regimes autoritários e
as ditaduras como construções sociais, complexas e ambivalentes. Contribuirão enquanto
referencial teórico e metodológico para o desenvolvimento deste artigo os trabalhos de:
Samantha Viz Quadrat, Emir Sader, Ana Amélia M. C. Melo, Márcio Selligman-Silva,
Michel Pollack, Jeanne Marie Gagnebin e Sidney Chalhoub.

PALAVRAS-CHAVE: História, Literatura, Ditadura Chilena

1 Formas de Voltar para casa

Me lembrava, em especial, do trecho baldio no fim do terreno onde brincávamos


nas horas livres e o muro rabiscado pelos meninos do ensino médio. Pensava em
todas aquelas mensagens voando em pedaços, espalhados nas cinzas do solo-
recados jocosos,frases a favor ou contra o Colo-Colo, a favor ou contra Pinochet.
Uma frase em especial me divertia muito. Pinochet gosta de pica. Na época eu
estava e sempre estive e sempre estarei a favor de Colo-Colo. Quanto a Pinochet,
para mim era um personagem da televisão que conduzia um programa sem
horário fixo, e eu o odiava por isso, pelos aborrecidos pronunciamentos em
cadeia nacional que interrompiam a programação nas melhores partes.
Tempos depois o odiei por ser filho da puta, por ser assassino, mas na época o
odiava somente por aqueles intempestivos shows que meu pai olhava sem dizer
palavra, sem conceder mais gestos que uma tragada mais intensa no cigarro que
levava sempre grudado na boca. (ZAMBRA, 2014,p.10, grifo nosso)
Em 2014, tivemos a publicação da edição brasileira da obra Formas de voltar para
casa, que apesar do autor não definí-la enquanto um romance geracional1, temos uma mescla
de passado e presente, memórias individuais e coletivas sobre o violento regime ditatorial
vivido no Chile, partindo das lembranças da infância do narrador-personagem, dos
personagens secundários apontados na obra e dos rastros deixados na geração filha da
ditadura2.
Os debates orientados pelo fazer historiográfico acerca das múltiplas relações que a
História pode estabelecer com a Literatura, nos dão embasamento para essa pesquisa. Como
afirma Michel Volvelle: “a literatura instrumento eletroscópico, vibra e registra prontamente
os frêmitos da sensibilidade coletiva” (VOLVELLE,1991,p.55), é essa sensibilidade coletiva
que nos orienta para o desenvolvimento deste trabalho. A Literatura nos oferece chaves para
a interpretação de um contexto histórico, aqui refletiremos sobre o que particulariza a escrita
de Alejandro Zambra.
Para o historiador Sidney Chalhoub, é preciso ponderar as características específicas
da fonte literária, interregando-a e compreendendo que “autores e obras literárias são
acontecimentos datados, historicamente condicionados e valem pelo o que expressam aos
seus contemporâneos” (CHALHOUB, 1998, p. 8). Assim, dialogamos com a Literatura
enquanto fonte para a História, procurando compreendê-la como forma de expressão que
contribui para aproximar os múltiplos significados da realidade histórica.
Ainda em 2016, tivemos contato com um livro intitulado A vida privada das árvores,
com uma narrativa singular, descobrimos que o autor era chileno e se dizia fã de Clarice
Lipector, Walter Benjamin e Belchior. A partir de então, tivemos acesso a duas outras obras

1
Aqui faremos uma aproximação do conceito de romance geracional com o que os estudos literários vêm
categorizando como romance memorial: “O romance memorial ou de filiação, que emerge nas três últimas
décadas, apresenta-se como uma forma narrativa centrada na anterioridade, ou seja, para entender-se enquanto
indivíduo social e cultural, o narrador necessita reconstruir a trajetória de vida dos seus ascendentes, fazendo
uso da memória como elemento principal desse acesso ao passado.” BERND, Zilá. SOARES, Tanira Rodrigues.
Modos de transmissão intergeracional em romances da literatura brasileira atual. ALEA, Rio de Janeiro.
Vol.18/3. p. 405-421. set-dez.2016.
2
Ao considerarmos o recorte proposto na obra de Alejandro Zambra, o que aqui consideraremos filhos da
ditatura serão aqueles que viveram a infância no período ditatorial e que carregam consigo as memórias
individuais e,memórias por tabela, herdadas dos seus pais que também viveram esse período.
do autor Bonsai e Formas de Voltar para casa. Observamos que Zambra construiu uma escrita
muito característica, sua capacidade de transformar a linguagem e a partir de então criar
narrativas trabalhando com o mise en abyme3 apresentando a memória, a escrita de si e as
imbricações entre passado e presente.
Como Formas de voltar para casa se apresenta ao leitor? Comecemos pelo título,
que evoca uma metáfora e aqui interpretaremos como um retorno ao passado, lembranças de
uma infância na ditadura, feridas que permaneceram abertas, exilados que retornaram ao país
de origem e os personagens secundários que precisam lidar com suas memórias
traumáticas(POLLACK,1989), retornar ao passado, dialogar com o passado, formas de se
relacionar com o passado.
A partir de dois narradores que buscam compreender as lacunas individuais e
coletivas, deixadas pelos anos do regime ditatorial no Chile,os personagens que vão surgindo
trazem consigo suas lembranças que compõe também a história do país, as crianças, as pais,
os exilados, os assassinados, os que foram chamados de comunistas, os professores, os que
assistiam com distanciamento aos discursos aclamados do General Pinochet na televisão.
Micro-histórias que se entrelaçam e memórias que contracenam, desta forma apresentamos
o livro em dois momentos, em duas narrativas:
Nos capítulos II (A literatura dos pais) e IV (Estamos bem), conhecemos o narrador
protagonista(sem nome), que esclarece ser um escritor produzindo um livro de memórias da
infância na época da ditadura, nos deparamos com o anseio por se preencher as lacunas nas
relações com a mãe, o pai, a ex mulher e com a escrita:

Não quero falar de inocência nem de culpa: não quero mais do que iluminar
alguns recantos, os recantos onde estávamos. Mas não estou seguro de fazer isso
bem. Sinto-me próximo demais daquilo que conto. Abusei de algumas lembranças,
saqueei a memória e também de certo modo, inventei demais. Estou de novo em
branco, como a caricatura do escritor que contempla impotente a tela do
computador. (ZAMBRA, 2014, p.60, grifo nosso)

3
Quando o narrador se propõe a “iluminar alguns recantos”, nos identificamos com
esse fazer, afinal, as narrativas historiográficas também são marcadas por lacunas e
incompletudes, aqui dialogaremos com a Literatura, evocando memórias e representando o
passado. Os intempestivos shows que eram frequentes na televisão chilena, marcaram a
infância do narrador-personagem, que ao amadurecer ressignifica aquela figura a qual o pai
assistia sem, aparentemente, esboçar nenhum sentimento. Esse é um dos traumas
apresentados no livro, o narrador que acompanhou seus pais viverem “à margem” dos
horrores que aconteceram na ditadura. Num diálogo com a personagem Ximena, ela expõe
isso de forma ríspida: “naquele tempo as pessoas procuravam outras pessoas, procuravam
corpos de pessoas que haviam desaparecido. Com certeza naqueles anos você procurava
gatinhos ou cachorrinhos” ( ZAMBRA, 2014, p. 85).E por isso, o narrador-adulto, sente a
necessidade de fazer as pazes com o passado, retornar ao passado e compreendê-lo, “para
onde quer que eu olhe, há alguém renovando votos com o passado” (ZAMBRA, 2014, p. 58).
Os capítulos I (Personagens secundários) e III (A literatura dos filhos), trazem o livro
produzido pelo narrador adulto, que retoma suas memórias de infância, para nos explicar o
contexto social do Chile que vivenciava uma ditadura, somos apresentados a situações e
detalhes desencadeados a partir de eventos que aparecem como detonadores de memória. Ao
narrar a história de um terremoto que assolou o Chile em 1985, o narrador-personagem
apresenta Cláudia e Raul, dois personagens secundários que se fazem importantes nessa
cadeia narrativa. Num momento de brincadeira entre as crianças do bairro, Cláudia se
aproxima do narrador e lhe pede para espiar o seu tio Raul, a princípio é uma proposta
intrigante, parace-lhe uma brincadeira e este aceita, com a evolução da narrativa,
compreendemos que na verdade, Raul era pai de Cláudia, havia assumido uma outra
identidade pois estava sendo perseguido pelas forças militares chilenas, somente na vida
adulta, o narrador-personagem vai compreender que compartilhou com Cláudia experiências
traumáticas. Ao trazer uma passagem sobre a vida adulta e as marcas indeléveis na memória
coletiva dos chilenos, deixadas pelo período ditatorial, o narrador faz uma reflexão:
Eu tinha passado a tarde junto a um grupo de companheiros de curso trocando
relatos familiares nos quais a morte aparecia como insistência opressiva. De todos
os presentes eu era o único que provinha de uma família sem mortos, e essa
constatação me encheu de uma estranha amargura: meus amigos tinham crescido
lendo os livros que seus pais ou seus irmãos mortos tinham deixado em casa. Mas
na minha família não havia mortos nem havia livros. (ZAMBRA,2014, p.58, grifo
nosso)

As experiências compartilhadas por aqueles que tiveram seus familiares assassinados


na ditadura chilena aparecem no livro como uma forma de reivindicação do passado
traumático, o narrador-personagem ao se sentir deslocado procura uma maneira de pertencer
à memória coletiva. O Chile apresentado no livro de Alejandro Zambra e que tomamos com
ponto de partida para a construção deste trabalho é o Chile da ditadura de Pinochet. Antes de
sofrer o golpe, Salvador Allende fez um último discurso ainda como presidente do Chile,
transmitido pela Rádio Magallanes em 11 de setembro de 1973, às 10:00 horas, na ocasião,
Allende negou a oferta de exílio e permaneceu resistindo junto a sua guarda e apoiadores, o
presidente falou sobre decepção e sobre a “encruzilhada histórica” na qual se encontrava:

Seguramente, esta será a última oportunidade em que poderei dirigir-me a vocês.


A Força Aérea bombardeou as antenas da Rádio Magallanes. Minhas palavras não
têm amargura, mas decepção. Que sejam elas um castigo moral para quem traiu
seu juramento: soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante
Merino, quese auto designou comandante da Armada, e o senhor Mendoza, general
rastejante que ainda ontem manifestara sua fidelidade e lealdade ao Governo, e que
também se auto denominou diretor geral dos carabineros. Diante destes fatos só me
cabe dizer aos trabalhadores: Não vou renunciar! Colocado numa encruzilhada
histórica, pagarei com minha vida a lealdade ao povo. E lhes digo que tenho a
certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e
milhares de chilenos, não poderá ser ceifada definitivamente. [Eles] têm a força,
poderão nos avassalar, mas não se detém os processos sociais nem com o crime
nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos.Trabalhadores de minha
Pátria: quero agradecer-lhes a lealdade que sempre tiveram, a confiança que
depositaram em um homem que foi apenas intérprete de
grandes anseios de justiça, que empenhou sua palavra em que respeitaria a
Constituição e a lei, e assim o fez...A história os julgará. (ALLENDE, 1973)

Salvador Allende apresenta em seu último discurso a insatisfação com aqueles que
planejaram o golpe de 1973, se dirige à classe trabalhadora que apoiou o seu governo e faz
um apelo à história. Procurando compreender a memória-histórica e suas particularidades,
apresentamos em contraponto um discurso do general Augusto Pinochet, de 11 de março de
1981, numa tentativa de tomada da narrativa histórica para si enquanto “salvador da pátria
chilena” que “salvou o Chile de um passado tenebroso”:

...Ferido gravemente pela ideologia marxista-leninista, o país sofreu até 1973 a dor
de ver dividios seus filhos, que foram arrastados em direção a uma guerra civil. Foi
necessário recorrer as reservas do patriotismo para, com a intervenção das Forças
Armadas e de Ordem, impedir a caída no abismo. Tendo transcorrido mais de sete
anos de aqueles dias dolorosos, o Chile é novamente um país aberto ao mundo e
com o espírito criador dos seus melhores tempos. Aqueles dias negros pertencem
hoje ao passado, mas um passado que não devemos esquecer. Por outro lado, eles
nos permitiram voltar à realidade e redescobrimos as raízes de nossa autêntica
indiossincracia chilena. (PINOCHET, 1980)

Salvador Allende fez o seu apelo à democracia, Augusto Pinochet representou a sua
ditadura enquanto a melhor escolha para o Chile, nessa proposta de pesquisa compreendemos
memória enquanto espaço de disputas, faremos um cruzamento de narrativas, tomando o
narrador-personagem de Alejandro Zambra ao construir a sua representação sobre a figura
do General Augusto Pinochet, na infância e na vida adulta.
Em tempos de negação do conhecimento e de revisionismos violentos, aprendemos,
“que os bons sentimentos nunca bastam para reparar o passado”(GAGNEBIN, 2018, p.50) e
que o passado reconstruído nas narrativas históricas e literárias atendem às demandas do
tempo presente. Considerando que a Literatura interage com os contextos históricos,
pretendemos fazer um estudosobre o regime ditatorial chileno a partir dos traumas
geracionais apresentados numa narrativa literária marcada por medos, fracassos e gestos.

2 “Para onde quer que eu olhe, há alguém renovando votos com o passado”

Em 2019, o mundo assistiu a uma grande mobilização de protestos no Chile, que


dentre as pautas principais estava a formação de uma Assembléia Constituinte para formular
uma nova Constituição, tendo em vista que a atual Constituição Chilena data de 1980 e é
uma herança do regime militar de Augusto Pinochet. Pensando essa questão da herança
geracional como algo que ainda precisa ser trabalhado dentro dos regimes traumáticos que
são as ditaduras militares na América Latina, é preciso então, considerando o presente do
passado também nas construções das narrativas históricas, abordar o que seriam as ditaduras
a partir das memórias e como essas memórias se constroem em outros espaços, além dos dos
sujeitos, como na música, na arte, na literatura. Dentro dessa perspectiva, apresentamos assim
um estudo da ditadura chilena, seus intercâmbios com as forças de repressão dos regimes
autoritários da América Latina e as imbricações entre memória individual e memória coletiva
a partir da obra literária Formas de Voltar para casa do escritor chileno Alejandro Zambra.
As experiências traumáticas vividas a partir da instituição dos regimes autoritários
na América Latina interferiram nas formas de compreender e representar o passado, nas artes,
na História e na Literatura, assim observamos uma renúncia às formas tradicionais de
representação. Márcio Selligma-Silva, afirma que não há como assimilar uma experiência
traumática sem sofrer seu impacto. Ao trabalhar com a reflexão sobre o trauma e como este
se faz presente nas representações literárias o autor dialoga com a teoria produzida pela
psicanálise e compreende o trauma como “uma incapacidade de recepção de um evento que
vai além dos limites da nossa percepção e torna-se, para nós, algo sem forma”(SELLIGMAN-
SILVA,1999, p.15). Neste trabalho, problematizaremos como a narrativa literária aparece
enquanto tentativa de se processar experiências traumáticas e como essa narrativa se constrói
a partir de um contexto histórico.
Com efeito, consideramos necessário compreender como se deu o processo de
instauração da ditadura chilena, ressaltamos que o recorte temporal aqui elencado(1970-
1990), contempla como se foi gestado o novo regime no seio da própria democracia
parlamentar. No Chile, em 11 de setembro de 1973, o então presidente eleito por vias
democráticas, Salvador Allende, foi deposto por um golpe apoiado pelas forças armadas e a
colaboração da extrema direita, assume então o general Augusto Pinochet, com um projeto
de governo autoritário e com uma política exterior anticomunista. Salvador Allende, trazia
em suas propostas a nacionalização das minas de cobre e a aceleração da reforma agrária.
Considerando o contexto de Gerra Fria é importante destacar o apoio finaceiro dos EUA para
a formação de regimes que se estabeleceram para ficar um longo período no controle do
aparato do Estado da América Latina. A profundidade das transformações que a ditadura de
Pinochet introduziu no Chile e a violência brutal 23 que as forças antidemocráticas tiveram
de utilizar para chegar ao poder e se preservar nele, deixaram na memória coletiva chilena,
aquilo que Michel Pollack nomeia por lembranças traumatizantes,“lembranças que esperam
o momento propício para serem expressas” (POLLACK, 1989, p.03), nesse sentido, nossa
problemática inicial é: como a narrativa literária de Alejandro Zambra se constrói a partir de
lembranças traumatizantes?
Consideramos a obra de Zambra como ponte para uma discussão sobre: história,
memória e ditadura no Chile, compreendendo a complexidade do trabalho de registrar o
passado. Em Formas de voltar para casa , somos confrontados sobre se assumimos ou não
o protagonismo das nossas vidas e de nossas lembranças, o narrador-personagem nos faz
refletir sobre como nos relacionamos com o passado, em especial, como nós e os nossos nos
comportamos diante de tempos extremos. Em certo momento da obra nos deparamos com
um incômodo por parte do narrador-personagem com a falta de posicionamento político e
para isso retoma um diálogo com o professor de educação física sobre a gravidade de ser
comunista:
O professor Morales, em compensação, gostou de mim desde o começo, e eu
confiava nele o bastante para perguntar numa manhã, enquanto caminhávamos até
o ginásio para a aula de educação física, se era muito grave ser comunista. Por
que você está me perguntando isso?, questionou ele. Acha que sou comunista?
Não, respondi. Tenho certeza de que o senhor não é comunista. E você é
comunista? Eu sou só um menino, disse eu. Mas se teu pai fosse comunista,
talvez você também fosse. Não acho, porque meu avô é comunista e meu pai não.
Meu pai não é nada, respondi com firmeza. Não é bom que fale essas coisas, ele
disse, depois de me fitar por um tempo. Só o que posso te dizer é que vivemos
num momento em que não é bom falar sobre essas coisas. Mas um dia
poderemos falar disso e de tudo. Quando a ditadura acabar, disse eu, como que
completando a frase num controle de leitura. (ZAMBRA, p. 36, grifo nosso)

Dentro da narrativa da obra aqui apontada, muitas vezes encontramos essa discussão
sobre a fala e o silenciamento, “vivemos num momento em que não é bom falar sobre essas
coisas”, o narrador na infância e o narrador na vida adulta se confrontam e nos apontam sobre
a necessidade de rememoração e de discutir sobre aquilo que foi silenciado por conta do
momento em que se vivia. Por que o narrador adulto, decide escrever sobre as memórias
traumáticas da infância na ditadura? Logo, serão problematizadas as possibilidades de
interpretação históricas sobre a relação entre memórias traumáticas e a literatura.
Ao discutir sobre o conceito de rastro trabalhado por Paul Ricoer, Jeanne Marie
Gagnebin nos conduz a uma reflexão sobre a fragilidade da memória, e como esta vive entre
presença e ausência. Essa proposta de pesquisa se constrói dentro dessa trama complexa que
envolve a memória, aqui trabalharemos como as experiências traumáticas contribuem para a
construção de narrativas, como o processo de rememoração (e aqui Jeanne Marie Gagnebin
traz o conceito de Walter Benjamin), faz com que lutemos contra o esquecimento e a
denegação, apresentando assim a escrita como trabalho do luto, “que deve nos ajudar, nós,
os vivos, a nos lembrarmos do mortos para melhor viver hoje” (GAGNEBIN,2018,p.47).
Quando lemos Formas de voltar para casa, temos a sensação de uma tentativa de acerto de
contas, ou pelo menos nota-se uma necessidade de preencher lacunas, em uma entrevista no
ano de 2014, o escritor Alejandro Zambra afirma sobre o discurso que se instaurou na década
de 1990 no Chile, sobre “as feridas cicatrizadas” do período da ditadura e como isso
despertou um incômodo, pois para ele as feridas permaneciam abertas e era preciso partir
para o enfrentamento das feridas-passado. Essa sensação é a mesma que nos trouxe até aqui,
uma necessidade de falar, uma necessidade de não silenciar.

3 “Decidimos que qualquer frase era melhor que o silêncio”

Michel Pollack, afirma que a memória para além de ser um fenômeno social coletivo
(aqui toma as discussões de Maurice Halbwachs), é também caracterizada por sua
capacacidade de se tranformar, de sofrer flutuações e mudanças constantes e mesmo assim,
toda memória carrrega consigo pontos invariantes, marcos. Ao se questionar sobre os
elementos constitutivos da memória individual e coletiva e afirma: os elementos vividos
pessoalmente,os acontecimentos vividos por tabela e aqui onde nós vamos nos ater. Pollack,
nos convida a pensar sobre acontecimentos vividos por um grupo ao qual pertencemos,
vivido de forma coletiva, também constituem nossas memórias, assim, tomaremos esse
conceito para pensarmos sobre a forma como algumas memórias evidenciadas pelo narrador-
personagem do livro de Zambra, podem ser consideradas memórias vividas por tabela,
memórias vividas por Eme (esposa do narrador-adulto), mas que ao serem compartilhadas
com o narrador-adulto lhe dão a sensação de partilha e pertencimento, como se compartilhar
memórias o fizesse compreender ou fazer parte daquele passado, o fizesse “voltar para casa”.
Ainda no espaço dessa discussão recorremos a Michel Pollack, para pensarmos uma
categoria conceitual necessária para essa pesquisa: as memórias traumáticas. Para o
autor,lembranças traumatizantes que em sua grande maioria estão relacionadas a fenômenos
de violência e dominação, passam um bom tempo confinadas ao silêncio e normalmente são
trasmitidas de uma geração a outra oralmente, esse processos não levam ao esquecimento,
pelo contrário, “é uma forma de resistência que uma sociedade civil impotente impõe ao
excesso de discursos oficiais”(POLLACK, 1989, p.03), é como se esperassem um momento,
ou “a hora da verdade”, o momento para serem expressas. Na América Latina, as últimas
décadas trouxeram a necessidade de se trabalhar com as memórias traumáticas dos regimes
ditatoriais, mesmo com as ações dos Estados que visavam impunidade e silenciamento, as
lembranças traumáticas vieram à tona, na Arte, na História, na Literatura. O contato com a
literatura de Alejandro Zambra nos fez refletir sobre como toda escrita está sempre enraizada
numa sociedade, ao narrar sobre “A literatura dos pais” o autor apresenta memórias
traumáticas compartilhadas por aqueles que viveram a ditadura chilena.
Márcio Seligman-Silva, propõe uma discussão conceitual da forma literária que
surgiu na América Latina na década de 1960, que apresenta as narrativas de memórias
traumáticas dos que viveram sob as condições violentas dos regimes totalitários e períodos
ditatoriais, chamada literatura de testemunho. Essa abordagem da literatura, traz consigo um
caráter social, numa tentativa de reconstrução e representação de fatos históricos e a busca
pelo o que Seligmann-Silva nomeia por teor testemunhal, afirma o autor: “Nos estudos de
testemunho deve-se buscar caracterizar o “teor testemunhal” que marca toda a obra literária,
mas que aprendemos a detectar a partir da concentração desse teor na literatura e escritura do
século XX...” (SELLIGMAN-SILVA,2016, p.85). Para o autor há uma necessidade de
recordar para esquecer, mas como esse processo de esquecimento é interrompido, é preciso
construir narrativas. Seligmann-Silva discute também os elos entre memóriaesquecimento, e
como eles se fazem presentes dentro das narrativas literárias traumáticas, para o autor “a arte
da memória, assim com a literatura, é uma arte de leitura de cicatrizes” (SELLIGMAN-
SILVA,2016, p.56) . Ao apronfundar a discusssão sobre literatura e trauma, afirma que “o
elemento traumático do movimento histórico penetra nosso presente tanto quanto serve de
cimento para nosso passado e essa representação se faz também a partir das narrativas
literárias”(SELLIGMAN-SILVA,2016, p.138).
Para a pesquisadora, Samantha Viz Quadrat, na América Latina a democracia deixou
de ser vista como a melhor maneira de se combater o comunismo, “o autoritarismo foi
desejado e alguns ditadores foram e são queridos e percebidos como salvadores da
pátria”(QUADRAT, 2010,p. 526).A pesquisadora,nos convida a compreender como se
estabeleceu ointercâmbio de forças de repressão e informações entre os países do Cone Sul,
tendo como base a Ideologia de Segurança Nacional, evidenciando a disposição de governos
ditatoriais em colaborar uns com os outros, no caso do Chile, como o envio de agentes do
Serviço Nacional de Informação Brasileiro ao Chile em 1971, tinha como intenção
desestabilizar a política chilena, a autora observa que no período anterior ao golpe, foi
realizada por grupos golpistas uma intensa campanha contra estrangeiros no Chile e também
a criação de uma rede de disseminação de informações falsas. Com o golpe de 1973, a
repressão no Chile foi imediata, o maior índice de mortos no governo Pinochet está
compreendido nos dois primeiros anos de ditadura, o Estádio Nacional é transformado numa
grande prisão, cenário para fuzilamentos sumários e aqui gostaríamos de fazer uma
interlocução interessante com a narrativa de Alejandro Zambra, quando uma de suas
personagens, Cláudia, traz uma recordação de infância relacionada à esse Estádio :

Em 1977 anunciou-se que Chespirito, o comediante mexicano, viria com todo o


elenco de seu programa para dar um espetáculo no Estádio Nacional. Cláudia tinha
então quatro anos, via o programa e gostava muito. Seus pais se negaram, e m
princípio a levá-la, mas no fim cederam. Foram os quatro, e Cláudia e Ximensa se
divertiram bastante. Muitos anos mais tarde Claudia soube que aquele dia tinha
sido, para seus pais, um suplício. Que a cada minuto pensaram no absurdo que
era ver o estádio cheio de gente rindo. Que durante todo o espetáculo eles
tinham pensado apenas, obsessivamente nos mortos.( ZAMBRA, 2014, p. 62,
grifo nosso)
Assim, podemos observar como literatura e história dialogam entre si, tendo a
memória como elo e compreendendo que “a lembrança é resultado de um processo social
coletivo e está inserida num contexto específico”. Samantha Viz Quadrat, ao narrar esse
contexto histórico que foi o processo de instalação da ditadura no Chile, dá destaque às ações
do Chile para criar uma integração entre as forças de repressão do Cone Sul.

4 Conclusão
Pensar a Literatura enquanto fonte para a História foi o que nos motivou para o
desenvolvimento deste trabalho, suas formas de representar o mundo, as particularidades da
expressão escrita. Formas de voltar para casa, nos trouxe reflexões sobre como nos
relacionamos com os nossos passados traumáticos, violentos, não somente o Chile, mas
também em toda a América Latina, que traz as marcas de uma passado recente que ainda não
foi superado. A Literatura contribui para pensarmos as múltiplas possibilidades de existência
e a História nos ensina sobre essa possibilidades.

6 FONTES
6.1 Discursos presidenciais

CHILE. Presidente (1970-1973: Salvador Allende). Último discurso proferido por Salvador
Allende. Santiago,11 set. 1973. Disponível em: http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-
channel.html . Acesso em: 29. jul.2020.

CHILE. Presidente (1973-1990: Augusto Pinochet). Ocasião do início do período


presidencial estabalecido na Constituição Política da República do Chile do ano 1980.
Santiago,11 març. 1981. Disponível em: http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-
channel.html. Acesso: 29. jul.2020.

6.2 Links de acervos digitais

http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-channel.html

http://arquivonacional.gov.br/br/consulta-ao-acervo
6.4 LIVROS

ZAMBRA, Alejandro. Formas de voltar para casa. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo:
CosacNaif, 2014.
ZAMBRA, Alejandro. Formas de volver a casa. Chile: Anagrama-narrativas hispânicas,
2011.

7 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN,Giorgio. Por uma ontologia e uma política do gesto. Trad. Vinícius Honesko.
Série intempestiva. Caderno de Leituras, n°76; abr. 2018.

AVELAR, Idelber. Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na


América Latina. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2003.p. 59.

BOISARD, Stépahne.; BOHOLASVKY, Ernesto.; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Pensar


as direitas na América Latina. São Paulo: Alameda, 2020.

CEIA, Carlos.s.v. Mise em Abyme, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de


Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9.

CHALHOUB, Sidney e PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (Org.) A História


Contada: capítulos de História Social da Literatura no Brasil. 2ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998.

GABGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia
das Letras, 200 7

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

MAUAD,Ana Maria. Na fronteira da história: cinema e exílio, um exemplo Chileno. In:


QUADRAT, Samantha Viz(org.). Caminhos cruzados: história e memória dos exílios
latino americanos no século XX.Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.

MELO, Ana Amélia M. C. Intelectuais e política no Chile: apontamentos sobre a revista


Aurora de Chile (1938-1940). Varia História, Belo Horizonte, vol. 34, n° 64 p.261-291, jan-
abr. 2018.

NASCIMENTO, Bárbara Bruma Rocha do Nascimento. “Afetiva Tranquila e pitoresca”:


Teresina Literária de Arimathéa Tito Filho nas décadas de 1950 a 1970. 2012. 54 f. Trabalho
de conclusão de curso (Graduação em História)- Universidade Federal do Piauí, Teresina.
2012.

NASCIMENTO, Bárbara Bruma Rocha do. História, cidade e literatura em A. Tito Filho
(1970-1975). 2015. 104f. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-graduação em História
do Brasil)- Universidade Federal do Piauí, Teresina. 2015.

POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio.” In: Estudos Históricos, Rio de


Janeiro: vol. 2, n° 3, 1989.

QUADRAT, Samantha Viz. Operação condor: o Mercosul do Terror. Revista Estudos Ibero-
Americanos. PUCRS, v. XXVIII, n. 1, p.167-182, junho 2002.

QUADRAT, Samantha Viz. A oposição Juvenil à Unidade Popular. In: A construção social
dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira,2010.

SADER, Emir. Chile (1818-1990): da independência à redemocratização. São Paulo:


Brasiliense, 1991.

SADER,Emir. Democracia e ditadura no Chile. São Paulo: Brasilisense, 1984.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura e trauma. Revista Pro-posições. Vol. 13, ṇ ° 3. Set-


dez, 2002.
TODOROV, Tzvetan. Em face do extremo. Tradução de Egon O. Rangel e Enid A.
Dobránszky. Campinas,SP:Papirus, 1995.

VOVELLE, Michel. Ideologia e Mentalidades. 2. ed. São Paulo: brasiliense, 1991.

Você também pode gostar