Você está na página 1de 14

Memórias ficcionais da ditadura civil-militar em Fazenda Modelo e O irmão alemão, de

Chico Buarque

João Vitor Bispo Cerqueira (UNILAB)1


(jv.cerqueirasto@gmail.com)
Manoela Ventura Oliveira (UNILAB)2
(manoela.ventura08@gmail.com)

Resumo: O presente trabalho propõe-se apresentar uma leitura das obras literárias Fazenda
Modelo - novela pecuária (1974) e O Irmão Alemão (2014), ambas de Chico Buarque, a partir da
compreensão de que essas narrativas apresentam memórias ficcionais da ditadura civil-militar que se
instaurou no Brasil no período de 1964 - 1978. Para tanto, as discussões se fundamentam em
referenciais teóricos críticos que discutem sobre as relações entre literatura, história e memória. Em
ambas as obras, a ditadura civil-militar não só demarca a temporalidade do enredo, mas apresenta-
se como personagem da narrativa, que se impõe como testemunho ficcional de momentos históricos
a partir de paradigmas totalmente distintos dos utilizados pela história oficial. Considerando-se que a
memória se constrói a partir de movimentos de lembrança e esquecimento e que ainda é necessário
ratificar o compromisso ético de lembrar-se do horror para que este não volte a se repetir, refletir
sobre o modo como a literatura se enuncia na história, suplementando-a, é um exercício de extrema
relevância para os estudos literários contemporaneamente e sociais.

Palavras-chave: Literatura; História; Memória; Ditadura; Brasil.

Abstract: The present work proposes to present a reading of the literary works Fazenda
Modelo - soap opera (1974) and O Irmão Alemão (2014), both by Chico Buarque, based on
the understanding that these narratives present fictional memories of the civil-military
dictatorship that it was established in Brazil in the period from 1964 - 1978. Therefore, the
discussions are based on critical theoretical references that discuss the relationships between
literature, history and memory. In both works, the civil-military dictatorship not only marks
the temporality of the plot, but presents itself as a character in the narrative, which imposes
itself as a fictional testimony of historical moments from paradigms totally different from
those used by official history. Considering that memory is built from movements of
remembering and forgetting and that it is still necessary to ratify the ethical commitment to
remember the horror so that it does not repeat itself, reflect on the way literature is
enunciated in History, supplementing it, is an exercise of extreme relevance for contemporary
and social literary studies.

Keywords: Literature; Story; Memory; Dictatorship; Brazil.

1
Discente do curso de Letras Vernáculas da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
brasileira - Campus dos Malês. Membro do Literarte - Grupo de estudos em literatura e outras linguagens
(DGP/CNPq/UNILAB) e Bolsista CNPq (2019-2020) de Iniciação Científica.
2
Discente do curso de Letras Vernáculas da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
brasileira - Campus dos Malês. Membra do Literarte - Grupo de estudos em literatura e outras linguagens
(DGP/CNPq/UNILAB) e bolsista FAPESB (2019-2020).
Entender o espaço em que vivemos é um ato intrínseco aos indivíduos, que
desde o início procurava compreender o lugar em que vivia e a sua posição no mundo. No
processo de construção da consciência crítica do homem, a literatura se transformou em uma
ferramenta ambivalente, ao ponto de ser capaz de discutir e interpretar a sociedade. A
literatura é uma arte pautada nas preocupações e anseios sociais com posicionamento político
diante dos problemas vivenciados pela sociedade. Essa representação da “realidade” na obra
literária se dá através da mimesis, um conceito crítico e filosófico, que abarca uma variedade
de significados, representa o ato de se assemelhar, o ato de expressão e a representação do eu.

A literatura, pensada como representação social de um contexto histórico, possibilita


identificar o posicionamento do escritor em relação à situação vigente em certo
momento, articulado nas suas produções denúncias sociais, um tipo de provocação
em aberto de determinada situação calamitosa; a finalidade seria nesse caso, o
despertar da consciência crítica dos leitores (OLIVEIRA, 2015 p. 343).

Segundo Reis (2014, p. 12), os relatos e as imagens ajudam a construir uma narrativa
mais polifônica, ampliando os sentidos da obra através das múltiplas camadas de vozes
que os personagens ecoam. Nesse sentido, a memória rompe a barreira de ser apenas uma
lugar de registro, mas um lugar de diversidade e de identidade, pois desvela as relações sócio-
culturais. O entrelaçamento da memória com a literatura pode ser compreendido na
construção da metaficção, que vai de encontro com outras áreas de estudo. Dentro da
perspectiva da literatura como representação social, é necessário também compreender o lugar
da memória na construção da escrita literária. Tal relação se estabelece através das
experiências vivenciadas pelo autor, que acabam por influenciar sua obra. Exemplo disso, são
as narrativas que misturam momentos históricos com elementos ficcionais, biográficos, e
autobiográficos, dentre outros. Nesse sentido, o objetivo central desta pesquisa é relacionar os
conceitos de literatura, história e memória nas obras literárias de Chico Buarque, tendo
como recorte a ditadura civil-militar que marcou toda sociedade brasileira. Como objeto de
pesquisa foram escolhidos os livros Fazenda Modelo: Novela Pecuária (1974) e o Irmão
Alemão (2014), que trazem a ditadura como plano de fundo que rege a vidas dos personagens.

As obras literárias de Chico Buarque apresentam uma leitura histórica a contrapelo do


que a História tradicional conta. Para o teórico Seligmann-Silva (2012), após o fim da
ditadura houve um debate entre duas forças: o esquecimento - “virar página e enterrar a
memória” - e a cultura da memória.

Venceram as forças do esquecimento. Estas “forças” (que devem ser


nomeadas) são muitas vezes os defensores da memória encobridora do
“milagre econômico”, ou ainda, confundem-se com os que se aferram a uma
interpretação (totalmente improcedente do ponto de vista jurídico) da Lei de
Anistia como uma lei de perdão aos torturadores. (SELIGMANN-SILVA,
2012, p. 60, aspas do autor).

Ettore Finazzi-Agrò, ao escrever sobre a “desmemória e catástrofe” da ditadura,


aponta que :

Aquilo de que não se fala nem se deveria falar é, justamente, o nefas, ou


seja, os gestos nefandos que, no Brasil, a Lei da Anistia – emanada em 1979
pelo regime militar ainda vigente – procurou apagar, deixando que a história
fosse escrita pelos carrascos ou pelas vítimas, pela voz impudica dos
torturadores e pela vergonha dos sobreviventes (FINAZZI-AGRÒ, 2014,
180).

A historiografia não consegue abranger realmente tudo o que aconteceu e/ou dar vozes
aos que não sobreviveram a esse período sombrio da história brasileira. Nesse viés, entende-
se, nesta pesquisa, que a literatura possui a capacidade recriar a história a partir subjetividade
do autor. Por meio dos artifícios literários, as dores e as vozes silenciadas no período
ditatorial podem ser ecoadas e ser resistência perante as forças do esquecimento.

Só o dispositivo literário e a sua potência (eu não usaria, aqui, a palavra


“poder”) conseguem, então, falar, tanto em prosa quanto em verso, do
interdito, conseguem nos fazer intuir pela comoção e, eu acrescentaria, pela
compaixão o inexplicável da violência, sem regra e sem medida, do homem
sobre e contra o homem, se opondo assim ao dispositivo político-repressivo.
(FINAZZI-AGRÒ, 2014, 183)

FAZENDA MODELO

No ano de 1974, enquanto estava exilado na Itália, Chico Buarque escreveu o seu
primeiro livro literário, Fazenda Modelo: Novela Pecuária, inaugurando sua vida como autor
ficcionista. Para alguns críticos literários, a narrativa pode ser lida como uma alegoria,
parábola ou sátira. Sendo uma ferramenta de resistência política, pois no enredo as
características factuais e suas dimensões históricas são vistas como forma de representar
alegoricamente o cenário político do Brasil da década de 70, elaborando uma crítica ao regime
militar instalado com o golpe de 1964. Na época Fazenda Modelo foi o livro mais vendido de
acordo com a lista da revista Veja de 31 dezembro de 1975, desbancando Jorge Amado, até
então o autor mais lido.

Para Reimão (2011, p. 62) em 1970, as obras literárias se tornaram centro das
manifestações culturais, isso se deu por que eram pouco visadas pela censura e pela falta de
investimento do Estado nas produções literárias. Durante a década de 1960 as manifestações
culturais eram mais voltadas para os gêneros públicos, de teatro, música popular, cinema e
jornalismo, mas essa dinâmica vira em 1970 para o campo literário, por representar um local
das linguagens, produção e mercado, transformando a literatura nacional em um campo de
debate e resistência, pela efervescência do momento.

Na narrativa de Chico Buarque, os personagens são bois e vacas que residem na


Fazenda Modelo, tais personagens assumem posições humanas em um espaço narrativo que
resgata o ambiente de 1970 no Brasil. As ações da narrativa se referem alegoricamente a
ditadura civil-militar. No capítulo II – Ato II, a fazenda que antes era livre, se torna um
espaço regido pelo autoritarismo, comandado por Juvenal - o boi-mor, o Justo, o Tenaz.
Todas as suas ações são justificadas pelo avanço tecnológico, desenvolvimento e os bons
costumes. Esse capítulo, em específico, alude ao impacto do Ato Institucional Nª 05, de 09 de
abril de 1964. A narrativa tem seu espaço marcado pelo milagre econômico, quando se
acentuou o “crescimento econômico” em paralelo com a desigualdade social. Segundo Reis,

A publicação de Fazenda Modelo se apresentou, naquele contexto, não


apenas como a primeira incursão literária de Chico Buarque, mas como um
imperativo político de um autor engajado, militante da democracia, que fez
de sua arte um instrumento para a enunciação dos discursos silenciados pelo
regime (REIS, 2017. p.17).

A influência do contexto histórico é notória, pois a ditadura e o autoritarismo daquele


momento surgem como personagem principal, e o autor lança mão de diversos elementos
narrativos para tecer sua alegoria, pois mistura diversos gêneros textuais e dados pré-textuais
que deixam impressões marcantes na obra. Silva (2014), afirma que a alegoria não se limita
textualmente, pois trabalha com o jogo de sentidos. O autor utiliza da personificação e da
prosopopeia para construir o texto alegórico. Essas estratégias narrativas ficam evidentes em
Fazenda Modelo, na qual os animais ganham trejeitos humanos. A leitura de uma alegoria
deve ser feita pela intertextualidade, para identificar os sentidos dos símbolos presentes no
texto.

A representação do boi como emblema de submissão não é recente, pois


historicamente o país ou uma grande parte dele foi visto como espaço agrário - fazenda,
estância ou lavoura. A economia brasileira sempre foi pautada no agronegócio, na exploração
de matérias agrícolas, como a cana-de-açúcar no período colonial até metade do século XX, o
café durante a ampliação metropolitana e na época do Império e a Primeira República.
Segundo Zilberman (2004, p. 364), ao longo dos anos diversos movimentos artísticos foram
responsáveis por enaltecer as belezas naturais do Brasil, tais manifestações culturais
influenciaram na literatura, principalmente nos diferentes autores dos regionalismos,
abordando os diversos temas: geografia nacional, sociedade, propriedade rural, o latifúndio,
divisão social e trabalho escravo. Chico Buarque alia essa característica econômica ao sentido
irônico de gado, em que as pessoas se deixam conduzir sem questionar, ainda que sejam
levadas para o abatedouro. A idealização da paisagem/espaço da narrativa é pensada para
remeter a dominação que a sociedade brasileira sofreu no período da ditadura militar.

Nesse sentido, a obra se mostra como um espaço político, pois aborda as práticas
sociais e, ao mesmo tempo, argumenta contra a realidade de um determinado momento
histórico. Entende-se que Chico Buarque inspirou-se na realidade política brasileira da época,
frente a ditadura civil-militar, para elaborar Fazenda Modelo.

No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e


temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se,
comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-
se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do
tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é
medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais
caracterizam o cronotopo artístico (BAKHTIN, 1998. p. 211).

Essa combinação entre tempo de enredo e tempo histórico marcam a narrativa de


Fazenda Modelo. A presença da ditadura civil-militar na obra é invocada através das ações
autoritárias do Boi Juvenal, que manipulava a massa por meio dos discursos que tinha uma
entonação progressista e de desenvolvimento, que eram compradas por muitos que o
seguiam devotamente mesmo sabendo da sua crueldade com seus opositores. Assim como
na ditadura civil-militar, Juvenal também tinha seus aliados e correligionários que
desenvolviam diversas funções na fazenda, desde ajudar na companhia até aplicar as
medidas de correções - torturas - rigorosas contra os opositores.

As barbaridades cometidas na ditadura eram instrumentos do governo e tais ações


aparecem na obra Fazenda Modelo através do sadismo do ferreiro (torturador), um exemplo
disso é o artesão Karim, que é o responsável por ferrar, atravessando os limites de sua
atribuição ressignificando sua tarefa, atribuindo um valor estético. Para Reis (2017, p.77),
o óbito do boi não era aconselhável, pois tinha o papel fundamental como mão de obra que
pode ser manipulada.

Eles não são assassinos, apenas torturadores, o estágio mais alto do sadismo.
Torturar é a dinâmica desse purgatório perene, onde tudo se sofre e nada se
purga (TAVARES, 2012, p. 29 apud REIS, 2017, p.77).

O controle que Juvenal tinha na fazenda era notório, não ficando restrito apenas a
manipulação do modo de pensar dos bovinos. Valendo-se do poder que obtinha, dominava os
meios de comunicação. Uma das passagens em que fica explícita essa dominação é no
capítulo da Tela Mágica, que faz uma alusão ao controle que a ditadura civil-militar tinha
sobre os meios de comunicação do país.

Depois do pronunciamento a tela mágica permaneceu ligada. O próprio


Juvenal disse que era um modo da gente se habituar à linguagem e às
imagens dos novos tempos. Manter o povo instruído e ilustrado do que se
passa lá em cima: a lua, os tratores, as pastagens de acrílico. E vai dando
uma inveja na boca do povo, uma inveja sadia de também querer as coisas
boas (BUARQUE, 1975, p. 35).

No período da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), principalmente no ano de


1967, o processo de censura se tornou oficial, sendo executado pelo Ministério da Justiça que
supervisionava filmes, peças teatrais, discos, apresentações de grupos musicais, cartazes e
espetáculos públicos, com o auxílio do Serviço de Censura e Diversões Públicas (SCDP),
divisão do Departamento de Censura e Diversões Públicas (DCDP). Após o ano 1970, livros e
revistas foram examinados pelos censores. Segundo Reimão (2017), a censura é uma fração
de um aparelho de coerção e repressão que vai além de interferir no acesso e a distribuição
cultural, limitando produção e circulação da cultura, causando uma intensa mudança na
prática da cidadania e da cultura em geral.

No dia 26 de junho de 1968, na cidade do Rio de Janeiro ocorreu uma manifestação


que reuniu a classe teatral que se encontrava em ímpeto por conta da proibição de oito peças
teatrais, a passeata ficou conhecida como “A Passeata dos Cem Mil”. Outra manifestação que
foi contra a censura imposta na época foi o movimento “Cultura contra Censura”, em
fevereiro de 1968, os dois episódios buscavam denunciar as arbitrariedades do regime militar
que existia no Rio Janeiro, tais reações populares foram antes do Ato Institucional - nº 5, mais
conhecido com AI-5.

Coincidentemente no dia 13 de dezembro de 1968, uma sexta-feira, considerado no


Brasil uma data de azar, foram feitas pelo presidente Costa e Silva alterações no AI-5.
Segundo Reimão (2017, p. 25), essa alteração foi dada em nome da “autêntica ordem
democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à
subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo”. As mudanças propostas por
Costa e Silva possibilitaram a cassação de candidaturas, retiraram direitos políticos e
individuais, ocultando e alterando informações, proibindo a divulgação de opiniões e
produções artísticas, iniciando assim o que ficou conhecido com “anos de chumbo”. Essas
ações de repressão/manipulação aos meios de comunicação são representadas pelo Bom Boi
Juvenal em diversas passagens da obra.

Contudo, assim como a ditadura, a Fazenda Modelo, chegou ao fim devido à


instabilidade de continuar a oprimir o rebanho, assim como ocorreu com o regime militar que
se tornou insustentável mesmo com diversas tentativas de recuperar a imagem inicial de
“recuperar a moral e os bons costumes”, sob ameaça dos “comunistas”. No capítulo II- Ato II,
que narra brevemente o início da fazendo o capítulo XVII - Ato Final, aborda a decisão de
Juvenal em abandonar a experiência com a Fazenda Modelo e começar a plantação de soja.

Por meio de um ofício bastante complicado, como que encabulado, cheio de


acidentes gramaticais, acentos agudos, crases ameaçadoras, reticências,
parênteses e/ou hifens, aspas e mais vírgulas, sempre separando sujeito e
verbo, como se aquele sujeito não fizesse questão de assumir seu verbo,e,
através de um ato desse, que eu não gostaria de incluir aqui, mesmo porque
está dando praia, e eu não tenho nada com isso, isso é novela , é só
bestialógico, então Juvenal mandou liquidar o gado restante, ele
compreendido, decretando o fim da experiência pecuária, na fazenda
Modelo, e destinando seus pastos, a partir deste momento histórico, à
plantação de soja tão-somente, porque resulta mais barato, mais tratável e
contém mais proteína (BUARQUE, 1975, p.117).

A obra Fazenda Modelo é construída com uma distopia, pois aborda um governo
totalitário, partindo do pressuposto que é o modelo ideal de sociedade, mas que vai se
deteriorando com o exercício do poder da instituição pública. Partindo disso, é fundamental
pensar no engajamento da literatura que tem um tom social. O modo como a sociedade é
representada ficcionalmente apresenta-se como acervo de movimentos históricos: político,
econômico e social, sob uma perspectiva que não tem os mesmos compromissos da História e
que, por isso, pode muitas vezes ecoar o que é silenciado. As transformações passaram
influenciar/residir na literatura, não expressando apenas o estético, mas apresentando sua
função social.

O IRMÃO ALEMÃO

Em 1967, na casa do escritor Manuel Bandeira, Chico Buarque descobre que o seu pai,
Sérgio Buarque de Holanda teve um filho enquanto residia na Alemanha entre os anos de
1929 e 1930. Essa descoberta serviu de inspiração para o seu quinto romance, O Irmão
Alemão, lançado em 2014 pela editora Companhia das Letras. Nesta obra, realidade e ficção
se misturam compondo uma narrativa autoficcional, termo criado por Doubrovsky (1977).
Anna Faedrich (2015) explica que na autoficção é estabelecido com o leitor um pacto
oximórico:

que se caracteriza por ser contraditório, pois rompe com o princípio de


veracidade (pacto autobiográfico), sem aderir integralmente ao princípio de
invenção (pacto romanesco/ficcional). Mesclam-se os dois, resultando no
contrato de leitura, marcado pela ambiguidade, em uma narrativa intersticial
(FAEDRICH, 2015, p. 46).

Chico Buarque rompe com os limites entre o real e o ficcional, pois o autor insere em
sua trama elementos biográficos - que são comprovados por meio de documentos e cartas
apresentados no livro - ao mesmo tempo em que ele apresenta ficções de sua memória. Desta
forma, o autor confunde o leitor e o faz se questionar sobre o que é verdade ou não, uma vez
que, “o romance se constrói na tensão permanente entre o que foi, o que poderia ter sido e a
pura fantasia”, explica Barros e Silva na orelha do livro (BUARQUE, 2014).

O irmão alemão é narrado em primeira pessoa pelo personagem quase homônimo do


autor, Francisco Buarque de Hollander. Ciccio, como é conhecido, mora na cidade de São
Paulo com seus pais Sérgio e Assunta, e como seu irmão Domingos. O desenvolvimento do
enredo se dá quando o narrador-personagem encontra uma carta de Anne Ernst, ex-namorada
do seu pai, que revela a existência de um filho nascido na Alemanha. A partir dessa
descoberta, Ciccio, obsessivamente, vai em busca de pistas para desvendar o paradeiro do seu
meio irmão alemão, na tentativa de recuperar o elo perdido com o pa, uma vez que a relação
entre Ciccio e Sérgio era de distanciamento. A história acontece entre 1960 até os anos 2000 e
apresenta acontecimentos sócio-históricos do Brasil que foram inclusive vivenciadas pelo
próprio autor.

Festas entravam pela madrugada até as vésperas de 31 de março de 1964,


quando os militares tomaram o poder. Mas os acontecimentos eram bastante
previsíveis, mesmo para quem como eu não tinha o costume de ler os
noticiários (BUARQUE, 2014, p. 47).

O golpe militar de 64 não aconteceu de repente. Pelo contrário, a ameaça era constante
desde o ano de 1950 até a posse de João Goulart, quando aconteciam várias manifestações e
pedidos de intervenção militar. Nessa época, o Brasil sofria as tensões de um mundo bipolar -
socialismo versus capitalismo - resultado da disputa ideológica da Guerra Fria protagonizada
pelas duas superpotências vencedoras da Segunda Guerra Mundial: URSS e EUA.

(...) os EUA apresentavam-se como defensores do capitalismo, a URSS


defensora do socialismo e os ataques partiram de ambos os lados. Os EUA e
seus aliados afirmavam que Moscou – o perigo vermelho – arquitetava um
plano de dominação mundial, infiltrando no Ocidente os chamados
agitadores profissionais, cuja missão era estimular a subversão conquistando
as mentes para a defesa do totalitarismo soviético. Por subversão, os
defensores do capitalismo entendiam as greves, os movimentos sindicais e
quaisquer outras manifestações reivindicatórias ou de protesto. Para o bloco
liderado pela URSS, os EUA e seus aliados – chamados de imperialismo
ianque e seus lacaios – também pretendiam dominar o planeta, explorando
economicamente os outros países e submetendo-se aos seus interesses, o que
resultava na submissão de suas populações às injustiças do capitalismo
(PAES,1995, p. 5).

Em 31 de março de 1964, os militares tomavam o poder do país, apoiados pelos


governadores Adhemar de Barros, Carlos Lacerda e Magalhães Pinto. Além de diversos
outros setores conservadores da sociedade, como por exemplo, os grandes jornais da época:
Correio da Manhã (Rio), Folha de S. Paulo e O Estado de Minas. Para aqueles que eram a
favor da intervenção militar, acontecia no país uma “revolução” para salvar o Brasil do
comunismo, mas para aqueles que tiveram as suas vidas truncadas naquele momento, um
Golpe de Estado acontecia no país. Logo, os militares utilizavam os atos institucionais para
decretar medidas que sobrepunham a Constituição.

A ditadura civil-militar, para além de marcar a temporalidade da narrativa, é também


umas das personagens principais da obra literária, isso porque, enquanto o narrador-
personagem busca pistas sobre o seu irmão ausente, a ditadura vai se tornando presente. Os
primeiros sinais do regime autoritário são apresentados na narrativa quando a repressão
policial se intensifica, principalmente, em relação aos estudantes e população que promoviam
manifestações contra a ditadura. Embora o narrador-personagem se demonstre passivo em
relação aos acontecimentos históricos ao seu redor, a narrativa o insere em um cenário no qual
as monstruosidades da ditadura são reveladas pouco a pouco, principalmente após o Ato
Institucional Nº 5, em 1968. Nesse período, o regime havia endurecido e é considerado a fase
mais violenta da ditadura. “Muitas prisões, torturas, assassinatos e desaparecimento de presos
políticos foram praticados em nome de uma segurança nacional”. (PAES, 1995, p. 60).
“Acabaram-se as passeatas, bandeiras vermelhas dão cadeia, e nos bares onde ocasionalmente
apareço não se toca em política.” (BUARQUE, 2014, p.73).

Kunz e Loro (2017 p. 348) apontam que a característica mais marcante da obra O
irmão Alemão é o fato de que a narrativa desnuda sem eufemismo os temas mais espinhosos,
como por exemplo, o assassinato de um cidadão em plena luz do dia, como na cena a seguir:
Guincham pneus na esquina e vejo um camburão que breca de repente. E
arranca um zás-trás, deixando um homem acocorado no meio da rua, um
rapaz de cabelos pretos mais ou menos da minha idade. Com o corpo teso e
as duas mãos no chão, como um corredor na linha de partida, o rapaz olha
para um lado e para o outro, olha para o céu sem arco-íris. E ao primeiro tiro
larga a mil em direção a rua em que veio, talvez no intuito de voltar para
casa dos amigos, da namorada, da mãe. Antes da esquina estaca, rodopia,
corre de volta para cá, e é quando a fuzilaria se intensifica. Eu não gostaria
de ver sua cara, e de fato não vejo porque explode, antes que eu possa fechar
os olhos. (...) Apesar do calor, visto o pulôver e ainda me estremeço inteiro,
olhando o vermelho do sangue apenas diluído nas poças d’água
(BUARQUE, 2014, p. 99).

O que chama atenção na narrativa é a forma direta que o autor utiliza para encenar a
violência e a sua banalização. Pouco a pouco a rua ganha movimento e a pessoas voltam a
sua rotina, sem comoção por aquele corpo massacrado. “Só eu que não consigo me mexer,
embora eu necessite falar com Minhoca” (BUARQUE, 2014, p. 100), diz o narrador-
personagem.

Uma outra violência da ditadura que compõe a obra de Chico Buarque é o


desaparecimento de pessoas, financiado pelo Governo de forma legal e, frequentemente,
ilegal. Na narrativa, são apresentados o desaparecimento do Ariosto e Mimmo,
respectivamente, melhor amigo e irmão brasileiro do narrador-personagem. Essa violência,
para além de marcar as vítimas, marca também as famílias e os amigos que sofrem com
ausência do seus entes.

O Irmão Alemão, além de apresentar uma narrativa de memória e busca, apresenta-se


como testemunho de uma história diferente daquela contada pela história oficial, isso porque,
Chico Buarque escreve O irmão alemão sob um olhar contemporâneo, mas que está em
direção ao passado. “Em situações de repressão e de censura, os escritores por vezes são
impedidos de relatar suas experiências em autobiografias, recorrendo, então, à ficção na qual
as personagens têm a possibilidade de “rememorar” eventos passados “ (UMBACH, 2010, p.
107). A literatura é um meio de contar a história e ela abriu portas para que as vítimas desse
período tortuoso contassem a História sob a Luz de sua subjetividade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fazenda Modelo: Novela Pecuária é uma narrativa construída alegoricamente para
expressar as mazelas e violências impetradas pela ditadura civil-militar brasileira. Escrita em
1974, sob regime de forte repressão, conseguiu driblar a censura e denunciar as barbaridades
institucionalizadas como instrumentos de governo, ainda no calor dos acontecimentos. Já em
O Irmão Alemão, o autor promove um jogo de espelhos, em que relato autobiográfico
alimenta o enredo ficcional, num processo de escrita que, ao mesmo tempo, rememora e tece
suas críticas ao governo ditatorial e as marcas que ele deixou na sociedade. Ambas as obras
apresentam enredos de memória que são fundamentais na guerra contra o esquecimento do
horror decorrente dos estados de exceção.

No Brasil contemporâneo, a crueldade da ditadura civil-militar, apesar dos fatos


históricos, é negada por uma parcela da população que, inclusive, ocupa os espaços da rua e
das redes sociais para pedir novamente intervenção militar. Nesse sentido, muitos escritores,
como o Chico Buarque, que sofreram a repressão do Estado, utiliza a literatura testemunhal
como forma de resistência ao esquecimento de um período tão próximo e ao mesmo tempo
tão distante. Parece distante porque já não vemos mais os presos políticos sendo mortos,
censura de livros que antes era considerados “subversivos”, fechamento político e protestos
com palavras de ordem pedindo o fim da ditadura. Mas, ela encontra-se perto porque a tortura
e a violência policial continuam fazendo vítimas na sociedade, professores e estudantes ainda
lutam por melhorias na educação e, pessoas autodeclaradas conservadoras vão às ruas pedir
intervenção militar. A literatura é o elemento de memória que resiste ao esquecimento e
lembra, a este povo sem memórias, como o barulho democrático será sempre melhor do que o
silêncio da ditadura.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. Vários


tradutores. 4ª ed. São Paulo: Editora Unesp-Hucitec, 1998.

BUARQUE, Chico. Fazenda Modelo – novela pecuária. 17 ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.

_____. O irmão Alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.


FINAZZI- AGRÒ, Ettore. (Des)memória e catástrofe: considerações sobre a literatura pós-
golpe de 1964. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 43, p. 179-190, jan./jun.
2014.

KUNZ, M.A. & LORO, L.F. As memórias da dor no romance O irmão alemão, de Chico
Buarque. Revista de literatura, história e memória, n 13, p. 345-357, 2017.

OLIVEIRA, Thainá Aparecida Ramos de; SILVA, Agnaldo Rodrigues da. As estruturas de
fazenda modelo: entre poéticas e políticas. Revista de Estudos Acadêmicos de Letras,
ed.07, n, 1 – Agosto de 2014.

OLIVEIRA, Thainá Aparecida Ramos de. Animal farm e fazenda modelo: entre alegorias e
símbolos, literaturas e estéticas. Revista Athena, vol. 09, nº 2, 2017.

REIMÃO, Sandra. Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar. São Paulo:
Edusp/Fapesp, 2011.

REIS, Mírian Sumica Carneiro. Imagens e palavras no tecido de memórias tortuosas: Fazenda
Modelo: novela pecuária em tempos de golpe. Veredas: Revista da Associação
Internacional de Lusitanistas, n. 28, p. 73-88, jul./dez. 2017.

_____. Memória, história e escrita cinematográfica na literatura de Chico Buarque.


2014. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura). Programa de Pós-graduação em Ciência da
Literatura. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

PAES, Maria Helena Simões. Em nome da segurança nacional: do golpe de 64 ao início da


abertura. São Paulo: Atual, 1995.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrativas contra o silêncio: cinema e ditadura no Brasil. In:


GINZBURG, Jaime; HARDMAN, Francisco; SELIGMANN-SILVA, Márcio. Escritas da
Violência – Vol. II. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2012.

TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento: os segredos dos porões da ditadura. Ed.


amp. Porto Alegre: L&PM, 2012.

UMBACH, Rosani Ketzer. Literatura e história: os discursos da memória. Fragmentos,


número 39, p. 105/119 Florianópolis/ jul - dez/ 2010.
VENTURA, Zuenir. 1968, o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

ZILBERMAN, Regina. Não é conversa mole pra boi dormir. In: FERNANDES, Rinaldo de.
Chico Buarque do Brasil: Textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista
brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: Fundação Biblioteca Nacional, 2004.

Você também pode gostar