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Chico Buarque
Resumo: O presente trabalho propõe-se apresentar uma leitura das obras literárias Fazenda
Modelo - novela pecuária (1974) e O Irmão Alemão (2014), ambas de Chico Buarque, a partir da
compreensão de que essas narrativas apresentam memórias ficcionais da ditadura civil-militar que se
instaurou no Brasil no período de 1964 - 1978. Para tanto, as discussões se fundamentam em
referenciais teóricos críticos que discutem sobre as relações entre literatura, história e memória. Em
ambas as obras, a ditadura civil-militar não só demarca a temporalidade do enredo, mas apresenta-
se como personagem da narrativa, que se impõe como testemunho ficcional de momentos históricos
a partir de paradigmas totalmente distintos dos utilizados pela história oficial. Considerando-se que a
memória se constrói a partir de movimentos de lembrança e esquecimento e que ainda é necessário
ratificar o compromisso ético de lembrar-se do horror para que este não volte a se repetir, refletir
sobre o modo como a literatura se enuncia na história, suplementando-a, é um exercício de extrema
relevância para os estudos literários contemporaneamente e sociais.
Abstract: The present work proposes to present a reading of the literary works Fazenda
Modelo - soap opera (1974) and O Irmão Alemão (2014), both by Chico Buarque, based on
the understanding that these narratives present fictional memories of the civil-military
dictatorship that it was established in Brazil in the period from 1964 - 1978. Therefore, the
discussions are based on critical theoretical references that discuss the relationships between
literature, history and memory. In both works, the civil-military dictatorship not only marks
the temporality of the plot, but presents itself as a character in the narrative, which imposes
itself as a fictional testimony of historical moments from paradigms totally different from
those used by official history. Considering that memory is built from movements of
remembering and forgetting and that it is still necessary to ratify the ethical commitment to
remember the horror so that it does not repeat itself, reflect on the way literature is
enunciated in History, supplementing it, is an exercise of extreme relevance for contemporary
and social literary studies.
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Discente do curso de Letras Vernáculas da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
brasileira - Campus dos Malês. Membro do Literarte - Grupo de estudos em literatura e outras linguagens
(DGP/CNPq/UNILAB) e Bolsista CNPq (2019-2020) de Iniciação Científica.
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Discente do curso de Letras Vernáculas da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
brasileira - Campus dos Malês. Membra do Literarte - Grupo de estudos em literatura e outras linguagens
(DGP/CNPq/UNILAB) e bolsista FAPESB (2019-2020).
Entender o espaço em que vivemos é um ato intrínseco aos indivíduos, que
desde o início procurava compreender o lugar em que vivia e a sua posição no mundo. No
processo de construção da consciência crítica do homem, a literatura se transformou em uma
ferramenta ambivalente, ao ponto de ser capaz de discutir e interpretar a sociedade. A
literatura é uma arte pautada nas preocupações e anseios sociais com posicionamento político
diante dos problemas vivenciados pela sociedade. Essa representação da “realidade” na obra
literária se dá através da mimesis, um conceito crítico e filosófico, que abarca uma variedade
de significados, representa o ato de se assemelhar, o ato de expressão e a representação do eu.
Segundo Reis (2014, p. 12), os relatos e as imagens ajudam a construir uma narrativa
mais polifônica, ampliando os sentidos da obra através das múltiplas camadas de vozes
que os personagens ecoam. Nesse sentido, a memória rompe a barreira de ser apenas uma
lugar de registro, mas um lugar de diversidade e de identidade, pois desvela as relações sócio-
culturais. O entrelaçamento da memória com a literatura pode ser compreendido na
construção da metaficção, que vai de encontro com outras áreas de estudo. Dentro da
perspectiva da literatura como representação social, é necessário também compreender o lugar
da memória na construção da escrita literária. Tal relação se estabelece através das
experiências vivenciadas pelo autor, que acabam por influenciar sua obra. Exemplo disso, são
as narrativas que misturam momentos históricos com elementos ficcionais, biográficos, e
autobiográficos, dentre outros. Nesse sentido, o objetivo central desta pesquisa é relacionar os
conceitos de literatura, história e memória nas obras literárias de Chico Buarque, tendo
como recorte a ditadura civil-militar que marcou toda sociedade brasileira. Como objeto de
pesquisa foram escolhidos os livros Fazenda Modelo: Novela Pecuária (1974) e o Irmão
Alemão (2014), que trazem a ditadura como plano de fundo que rege a vidas dos personagens.
A historiografia não consegue abranger realmente tudo o que aconteceu e/ou dar vozes
aos que não sobreviveram a esse período sombrio da história brasileira. Nesse viés, entende-
se, nesta pesquisa, que a literatura possui a capacidade recriar a história a partir subjetividade
do autor. Por meio dos artifícios literários, as dores e as vozes silenciadas no período
ditatorial podem ser ecoadas e ser resistência perante as forças do esquecimento.
FAZENDA MODELO
No ano de 1974, enquanto estava exilado na Itália, Chico Buarque escreveu o seu
primeiro livro literário, Fazenda Modelo: Novela Pecuária, inaugurando sua vida como autor
ficcionista. Para alguns críticos literários, a narrativa pode ser lida como uma alegoria,
parábola ou sátira. Sendo uma ferramenta de resistência política, pois no enredo as
características factuais e suas dimensões históricas são vistas como forma de representar
alegoricamente o cenário político do Brasil da década de 70, elaborando uma crítica ao regime
militar instalado com o golpe de 1964. Na época Fazenda Modelo foi o livro mais vendido de
acordo com a lista da revista Veja de 31 dezembro de 1975, desbancando Jorge Amado, até
então o autor mais lido.
Para Reimão (2011, p. 62) em 1970, as obras literárias se tornaram centro das
manifestações culturais, isso se deu por que eram pouco visadas pela censura e pela falta de
investimento do Estado nas produções literárias. Durante a década de 1960 as manifestações
culturais eram mais voltadas para os gêneros públicos, de teatro, música popular, cinema e
jornalismo, mas essa dinâmica vira em 1970 para o campo literário, por representar um local
das linguagens, produção e mercado, transformando a literatura nacional em um campo de
debate e resistência, pela efervescência do momento.
Nesse sentido, a obra se mostra como um espaço político, pois aborda as práticas
sociais e, ao mesmo tempo, argumenta contra a realidade de um determinado momento
histórico. Entende-se que Chico Buarque inspirou-se na realidade política brasileira da época,
frente a ditadura civil-militar, para elaborar Fazenda Modelo.
Eles não são assassinos, apenas torturadores, o estágio mais alto do sadismo.
Torturar é a dinâmica desse purgatório perene, onde tudo se sofre e nada se
purga (TAVARES, 2012, p. 29 apud REIS, 2017, p.77).
O controle que Juvenal tinha na fazenda era notório, não ficando restrito apenas a
manipulação do modo de pensar dos bovinos. Valendo-se do poder que obtinha, dominava os
meios de comunicação. Uma das passagens em que fica explícita essa dominação é no
capítulo da Tela Mágica, que faz uma alusão ao controle que a ditadura civil-militar tinha
sobre os meios de comunicação do país.
A obra Fazenda Modelo é construída com uma distopia, pois aborda um governo
totalitário, partindo do pressuposto que é o modelo ideal de sociedade, mas que vai se
deteriorando com o exercício do poder da instituição pública. Partindo disso, é fundamental
pensar no engajamento da literatura que tem um tom social. O modo como a sociedade é
representada ficcionalmente apresenta-se como acervo de movimentos históricos: político,
econômico e social, sob uma perspectiva que não tem os mesmos compromissos da História e
que, por isso, pode muitas vezes ecoar o que é silenciado. As transformações passaram
influenciar/residir na literatura, não expressando apenas o estético, mas apresentando sua
função social.
O IRMÃO ALEMÃO
Em 1967, na casa do escritor Manuel Bandeira, Chico Buarque descobre que o seu pai,
Sérgio Buarque de Holanda teve um filho enquanto residia na Alemanha entre os anos de
1929 e 1930. Essa descoberta serviu de inspiração para o seu quinto romance, O Irmão
Alemão, lançado em 2014 pela editora Companhia das Letras. Nesta obra, realidade e ficção
se misturam compondo uma narrativa autoficcional, termo criado por Doubrovsky (1977).
Anna Faedrich (2015) explica que na autoficção é estabelecido com o leitor um pacto
oximórico:
Chico Buarque rompe com os limites entre o real e o ficcional, pois o autor insere em
sua trama elementos biográficos - que são comprovados por meio de documentos e cartas
apresentados no livro - ao mesmo tempo em que ele apresenta ficções de sua memória. Desta
forma, o autor confunde o leitor e o faz se questionar sobre o que é verdade ou não, uma vez
que, “o romance se constrói na tensão permanente entre o que foi, o que poderia ter sido e a
pura fantasia”, explica Barros e Silva na orelha do livro (BUARQUE, 2014).
O golpe militar de 64 não aconteceu de repente. Pelo contrário, a ameaça era constante
desde o ano de 1950 até a posse de João Goulart, quando aconteciam várias manifestações e
pedidos de intervenção militar. Nessa época, o Brasil sofria as tensões de um mundo bipolar -
socialismo versus capitalismo - resultado da disputa ideológica da Guerra Fria protagonizada
pelas duas superpotências vencedoras da Segunda Guerra Mundial: URSS e EUA.
Kunz e Loro (2017 p. 348) apontam que a característica mais marcante da obra O
irmão Alemão é o fato de que a narrativa desnuda sem eufemismo os temas mais espinhosos,
como por exemplo, o assassinato de um cidadão em plena luz do dia, como na cena a seguir:
Guincham pneus na esquina e vejo um camburão que breca de repente. E
arranca um zás-trás, deixando um homem acocorado no meio da rua, um
rapaz de cabelos pretos mais ou menos da minha idade. Com o corpo teso e
as duas mãos no chão, como um corredor na linha de partida, o rapaz olha
para um lado e para o outro, olha para o céu sem arco-íris. E ao primeiro tiro
larga a mil em direção a rua em que veio, talvez no intuito de voltar para
casa dos amigos, da namorada, da mãe. Antes da esquina estaca, rodopia,
corre de volta para cá, e é quando a fuzilaria se intensifica. Eu não gostaria
de ver sua cara, e de fato não vejo porque explode, antes que eu possa fechar
os olhos. (...) Apesar do calor, visto o pulôver e ainda me estremeço inteiro,
olhando o vermelho do sangue apenas diluído nas poças d’água
(BUARQUE, 2014, p. 99).
O que chama atenção na narrativa é a forma direta que o autor utiliza para encenar a
violência e a sua banalização. Pouco a pouco a rua ganha movimento e a pessoas voltam a
sua rotina, sem comoção por aquele corpo massacrado. “Só eu que não consigo me mexer,
embora eu necessite falar com Minhoca” (BUARQUE, 2014, p. 100), diz o narrador-
personagem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fazenda Modelo: Novela Pecuária é uma narrativa construída alegoricamente para
expressar as mazelas e violências impetradas pela ditadura civil-militar brasileira. Escrita em
1974, sob regime de forte repressão, conseguiu driblar a censura e denunciar as barbaridades
institucionalizadas como instrumentos de governo, ainda no calor dos acontecimentos. Já em
O Irmão Alemão, o autor promove um jogo de espelhos, em que relato autobiográfico
alimenta o enredo ficcional, num processo de escrita que, ao mesmo tempo, rememora e tece
suas críticas ao governo ditatorial e as marcas que ele deixou na sociedade. Ambas as obras
apresentam enredos de memória que são fundamentais na guerra contra o esquecimento do
horror decorrente dos estados de exceção.
Referências
BUARQUE, Chico. Fazenda Modelo – novela pecuária. 17 ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.
KUNZ, M.A. & LORO, L.F. As memórias da dor no romance O irmão alemão, de Chico
Buarque. Revista de literatura, história e memória, n 13, p. 345-357, 2017.
OLIVEIRA, Thainá Aparecida Ramos de; SILVA, Agnaldo Rodrigues da. As estruturas de
fazenda modelo: entre poéticas e políticas. Revista de Estudos Acadêmicos de Letras,
ed.07, n, 1 – Agosto de 2014.
OLIVEIRA, Thainá Aparecida Ramos de. Animal farm e fazenda modelo: entre alegorias e
símbolos, literaturas e estéticas. Revista Athena, vol. 09, nº 2, 2017.
REIMÃO, Sandra. Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar. São Paulo:
Edusp/Fapesp, 2011.
REIS, Mírian Sumica Carneiro. Imagens e palavras no tecido de memórias tortuosas: Fazenda
Modelo: novela pecuária em tempos de golpe. Veredas: Revista da Associação
Internacional de Lusitanistas, n. 28, p. 73-88, jul./dez. 2017.
ZILBERMAN, Regina. Não é conversa mole pra boi dormir. In: FERNANDES, Rinaldo de.
Chico Buarque do Brasil: Textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista
brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: Fundação Biblioteca Nacional, 2004.