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O modo de escrever realista não significa a renúncia à

fantasia nem ao autêntico virtuosismo artístico. Também não


há nada que impeça os realistas Cervantes e Swift de fazer com
que os cavaleiros lutem com moinhos de ventos e que cavalos
constituam estados. Não o conceito de estreiteza, mas o de
amplitude combina com o realismo.
Brecht

Esta comunicação sobre a obra do escritor português José Cardoso


Pires inscreve-se num primeiro esforço de tentar articular alguns dos
conceitos trabalhados pela literatura de testemunho com a literatura
portuguesa contemporânea, com as suas cicatrizes de guerras coloniais e as
seqüelas dos asfixiantes anos da ditadura salazarista. Pensar nas
contribuições da literatura de testemunho, não no sentido primeiro que lhe
é dado, no pragmatismo de um gênero circunscrito aos relatos produzidos
por sobreviventes da Shoah ou dos testimonios latino-americanos1, mas
pela particularidade de ser constituída por uma narrativa onde vida e texto
são indissociáveis. É preciso salientar, entretanto, que não se trata jamais
de uma narrativa autobiográfica ou memorialística, pois ao contrário destas,
o que marca a literatura de testemunho é precisamente a falta de
informações precisas, a pouca coerência interna do fato narrado, a
constância de questões não resolvidas, ou seja, a explicitação de tudo
aquilo que não pode ser processado pelo indivíduo que se vê, quando
atravessado por essas experiências de violência extrema, destituído de sua
condição humana2.

1
Usualmente a chamada Literatura de Testemunho diz respeito fundamentalmente a narrativas criadas
nestes dois contextos. Ocorre que, do ponto de vista teórico, vem sendo feito um esforço em ampliar essa
categoria, de modo que ela o instrumental teórico produzido possa dar conta também de toda uma
literatura que surge da violência estatal. Um maior desenvolvimento deste argumento pode ser lido no
artigo de Valéria de Marco, disponível no endereço eletrônico http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0102-64452004000200001&lng=en&nrm=iso.
2
Segundo Eneida Leal Cunha, a novidade dessas memórias do final da década de 70, em relação à
tradição memorialista iniciada na década de 30, está amparada no caráter documental de vidas não
autorizadas anteriormente, ou seja, que expunham “vidas minoritárias ou marginalizadas sem a
intermediação erudita”. Já as narrativas memorialistas de 30, se legitimavam, justamente, pelo
“reconhecimento prévio de seus autores” pelo cânone literário. Eneida Leal Cunha. “Memórias de 1968”.
In: Semear – Revista da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses, n.10, Rio de Janeiro:
Nau, 2004. p. 126.
Como narrar o inenarrável? Como representar o terror? Quais os
limites que a violência impõe às formas de representação? Pois é preciso
lembrar, como o faz incansávelmente José Cardoso Pires, que “as
sociedades do terror se servem dos crimes avulsos para justificarem o crime
social que elas representam por si mesmas e que em todos esses crimes a
sua mão está presente, em todos”.
São narrativas, pois, tecidas de situações-limite que colocam o
homem numa posição bem próxima de uma completa passividade. É
justamente este traço em negativo – da falta, da escassez, do não-
assimilável – que cria uma espécie de elo entre o autor e o leitor, que faz
com que o testemunho individual torne-se testemunho geracional – é como
se ali, naquelas palavras, ou naqueles silêncios, a sociedade buscasse sua
própria memória, ou seja, sua própria história. Ou, se preferirem, a
contrapartida do compromisso social da escrita, a do leitor que se
compromete com a matéria narrada. São também palavras do nosso autor:
“O drama de quem escreve não é o que escreve, mas o que apaga”.

O terrível século XX, hoje já podemos afirmar, reconfigurou as


tradicionais formas de representação, encerrando com isto todo um ciclo de
entendimento historiográfico.
Nas palavras de Hobsbawn,

O colapso de uma parte do mundo revelou o mal-estar


do resto. À medida que a década de 1980 passava para a de
1990, foi ficando evidente que a crise mundial não era geral
apenas no sentido econômico, mas também no político. (...)
Contudo, a crise moral não dizia respeito apenas aos supostos
da civilização moderna, mas também às estruturas históricas
das relações humanas que a sociedade moderna herdara de um
passado pré-industrial e pré-capitalista e que, agora vemos,
haviam possibilitado seu funcionamento. Não era a crise de
uma forma de organizar sociedades, mas de todas as formas. 3

Ao transladarmos estas aporias apocalípticas do fim da história para


o campo da chamada literatura contemporânea, evidenciamos pelo menos
duas questões essenciais – a do fim da narrativa tradicional, trabalhada de
maneira exemplar por Walter Benjamin e a da literatura de testemunho,
sustentada por narrativas impossíveis mas necessárias, fruto de uma
memória traumática. Elie Wiesel, autor paradigmático dos sobreviventes de
Auswitch, afirmou:

Se os gregos inventaram a tragédia, os romanos a


epístola e a Renascença o soneto, nossa geração inventou uma
nova literatura, aquela do testemunho.

A partir dos ensinamentos de Benjamin, especialmente em dois de


seus textos mais lidos – o “Narrador” e “Experiência e Pobreza”, podemos
configurar duas possíveis entradas à chamada literatura de testemunho. Se
por um lado, constatamos que o fim da narrativa tradicional rompeu um
elo fundamental de sua própria razão de ser, que era justamente a
capacidade de transmitir uma experiência, o que temos desde então é o
esboço de uma narrativa que se alimenta de sua própria ruína, ou seja, que
se ergue a partir e com seus próprios cacos e/ou fragmentos. É neste
sentido que todas as sobras dos discursos oficiais ou da tradição canônica
passam a ser centrais a partir da tese benjaminiana.
A outra questão levantada por Benjamin nos ajuda a delimitar com
mais precisão algumas das possíveis brechas de atuação do homem
contemporâneo. Segundo o autor, vivemos num mundo já tão saturado de

3
Eric Hobsbawm. A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia.das Letras, 1995.
possibilidades que acabou por desapropriar o homem de sua própria
experiência. Este fenômeno notado por Benjamin e que ele chamou de
“pobreza de experiência”, vincula-se não somente ao febril cotidiano das
cidades grandes, mas fundamentalmente aos espetáculos de guerra. Ao
homem expropriado de sua própria linguagem m(é disto que estamos
falando) resta apenas, então, fazer uso de uma memória ativa que interfira e
que possa transformar seu presente. E é este o ensinamento que vemos
desdobrar-se nas múltiplas narrativas de sofrimento de experiências
traumáticas – experiências que rompem com a capacidade de elaboração
simbólica do sujeito que viveu a dor, mas que se impõe como um “dever de
memória”, que se estabelece como uma espécie de elo de ligação, não
apenas com aqueles que morreram e, portanto, não podem mais
testemunhar, mas fundamentalmente com aqueles que sobreviveram e
precisam saber o que aconteceu. É neste sentido que Huyssen afirma,

As memórias do século XX nos confrontam, não com


uma vida melhor, mas com uma histórias única de genocídio e
destruição em massa, a qual, a priori, barra qualquer tentativa
de glorificar o passado.

É neste contexto que recupera-se a tão citada frase de Adorno sobre o


fazer poético após Auswicht. Na realidade o que o filósofo propõe como
aporia não é de modo algum a impossibilidade do fazer artístico, mas
efetivamente o contrário – como pode a arte e a filosofia tornar-se uma
força de resistência aos empreendimentos totalitários? Como podem tornar-
se o que ele chama de “documento da barbárie”? Vale lembrar que todo o
esforço de Adorno é mostrar como Auswicht operou uma ruptura essencial
e definitiva com as formas canônicas de representação – o que nos restou
foram seus destroços. Não se trata, portanto, de negar a tradição, mas sim
de ressemantizá-la.
José Cardoso Pires dedicou grande parte de seus escritos à esses
exercícios necessários de rememoração. É justamente contra o que ele
chamou de “memória frágil da política”, que Cardoso Pires buscou
incansavelmente criar esferas de memórias reais, de um Portugal nada
memorável. Apreender as “ficções” que compõem o real ou denunciar o
real por meio de ficções, eis a tarefa assumida por Cardoso Pires.
São suas as palavras:

De modo que entre o facto e a ficção há


distanciamentos e aproximações a cada passo, e tudo se
pretende num paralelismo autônomo e numa confluência
conflituosa, numa verdade e numa dúvida que não são
pura conscidência.

A postura literária de Cardoso Pires inscreve-se justamente na


possibilidade de se reconstituir os nexos de um processo histórico, a partir
de seus detritos. Lutar contra a política de esquecimento, resquício do
regime salazarista, se impõe como urgência a Cardoso Pires, pois “a PIDE
e o fascismo são componentes solidários, a desmemoria de um arrasta a do
outro”. Tarefa tanto mais difícil porque a chamada ditadura branda de
Portugal promoveu uma espécie de “burocratização” do terror. Nas
palavras de Eduardo Lourenço:

“Entre o mundo da Pide e a cidade (e o cidadão) a


osmose era perfeita.”4

Nelly Richards nos ensina que, contra as políticas de esquecimento


levadas a cabo pelos regimes pós-ditatoriais é preciso escrever, escrever
muitas histórias, para dar voz àquelas que foram silenciadas. É só através
da escrita de relatos, acredita a intelectual chilena, que se pode desafiar a

4
Citado por Maria Helena Werneck em “Depois da Barca, cenas de outros infernos nas dramaturgias de
Oduvaldo Vianna Filho e José Cardoso Pires”, Semear, n.8, Rio de Janeiro, 2003, Pp 229-248.
hegemonia discursiva próprias dos Estados totalitários. 5 É que a literatura
possui a virtude de vocalizar sujeitos sociais geralmente excluídos das
grandes narrativas.
É neste sentido que, lutar contra o esquecimento, é afirmar uma
memória, é ter a chance de olhar para o passado sabendo que ele não é um
todo fechado e irreversível, confinado ao já acontecido. Pois, “o passado é
um campo de citações, atravessado tanto de continuidades, quanto de
descontinuidades.” As rasuras ou lacunas voluntárias dos arquivos recentes
apontam assim, para questões de nosso tempo histórico. A supressão da
memória, forma suprema da violência é, no pensamento de Hannah Arendt,
um desdobramento das práticas de censura totalitárias, que negavam a
palavra aos “inimigos da ordem”. O modus-operandi da historiografia
clássica, que sempre contou a história dos vencedores, é uma realidade. É
pois, nas brechas deste discurso hegemônico, que buscamos encontrar
vozes dissonantes que nos contem um pouco da história dos vencidos – a
dos homens infames. Vejamos como Cardoso Pires explicita este projeto.

5
Nelly Richard. “Políticas da Memória e técnicas do esquecimento”. In: Wander Melo Miranda (org).
Narrativas da Modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
José Cardoso Pires dedicou grande parte de sua vida à escrita. Não
que isso seja uma novidade. A grande maioria dos escritores também o
fizeram. A novidade está em jamais separar o ofício do escritor da
prática da cidadania, daí se auto-intitular cidadão-escritor.6
Este epíteto funciona também como um modus operandi de sua
escrita. Para o autor, criador de textos ficcionais, mas que também
atuou como jornalista, cronista e autor de textos de intervenção – o foco
de sua obra foi sempre a busca incansável pela produção de liberdade. 7
O que se torna ainda mais carregado de significações se lembrarmos
que Cardoso Pires, tendo nascido em 1925, viveu quase que a totalidade
de sua vida sob o domínio da ditadura salazarista.8
Este fato deixou marcas bastante precisas na sua vida e,
conseqüentemente, na sua escrita. No seu Auto-Retrato, publicado no
volume intitulado Cardoso Pires por Cardoso Pires, ele nos diz:

“E então, por mais que a gente diga que não, começam


a aparecer as pegadas históricas do Dinossauro que nos
andou a foder a vida durante cinqüenta anos. Adivinhamo-
6
Quanto ao epíteto de cidadão-escritor, Cardoso Pires o utiliza num texto sobre Literatura e Revolução
dos Cravos, “Nós, isto é, os escritores. Mais propriamente: os cidadãos-escritores – porque é isso que
agora somos, finalmente.” José Cardoso Pires, op. cit, p.227
Ao longo de toda a sua carreira, Cardoso Pires sempre teve uma preocupação muito grande com a
coerência de suas idéias. Temos inúmeros exemplos desta conduta, mas para ilustrar o que digo basta
lembrar do discurso proferido quando da promulgação da lei de imprensa de 1971, intitulado “Atento,
Venerador e Obrigado”, e incluído no livro E Agora, José? Nele lemos: “.o declarante remeteu-se, com o
preço das inevitáveis segregações, à condição de cidadão à margem, que é aquela para que certos Estados
impelem o escritor que crê na independência do espírito. Assim, jamais concorreu a qualquer iniciativa
oficial ou para-oficial (...) e tão-pouco solicitou, mas antes recusou, o apoio de instituições formalmente
independentes que nalguns sectores praticam uma política comprometida com as directrizes culturais do
Governo, como é o caso, entre outros, das Bibliotecas Móveis da Fundação Calouste Gulbenkian.” José
Cardoso Pires, E Agora, José?, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999, p.19
7
Idem, p.230
8
Em 1926, Portugal encerra um capítulo de sua história, fundamentalmente de experiência liberal, com a
derrocada da I República por um golpe militar que iria dar lugar ao advento do estado novo em 1933. Na
realidade, o que diz a historiografia do período, é que este movimento militar de 1926 foi uma preparação
de terreno para o regime salazarista. “O Salazarismo, na sua marcha para o Poder, foi um hábil processo
de eliminações, integrações e compromissos, conduzido por mão segura e com notável sentido de
oportunidade, por entre as curvas e contracurvas da política da ditadura , no quadro mais ou menos
caótico e pulverizado do que eram as direitas portuguesas e no emaranhado de interesses contraditórios
que dividiam as ´forças vivas`.” Fernando Rosas, "Da Ditadura Militar ao Estado Novo: A “Longa
Marcha” de Salazar". In: José Mattoso (Dir), História de Portugal. SétimoVolume, O Estado Novo
(1926-1974). Lisboa: Editorial Estampa, 1998. p.142
las à superfície do vidro, são manchas fósseis, gretadas,
então não se vê logo ? e, escuta à distância, ouve-se o
carrossel do medo. Aqui e ali vão-se levantando farrapos do
muito que em nós se adiou e do muito que em nós se morreu,
e nalguns casos podemos até distinguir o traço de liberdade
que abrimos com os nossos livros nessa desolação
prolongada. De agora em diante começa a rememorar, já
devias saber. Certo, cinquentas é muito ano. Muito silêncio,
muita humilhação.”9

Data de 197010 a primeira versão de sua fábula sobre o


Salazarismo – Dinossauro Excelentíssimo, escrita originalmente à sua
filha Rita. Considerada um grande retrato de Portugal do século XX, o
que primeiro chama a atenção para a obra é a necessidade urgente de
testemunhar o regime totalitário do Estado Novo português,
evidenciando às novas gerações (na pessoa de sua filha) o absurdo desta
história. Este exercício de contra-relatar as verdades oficiais para que
não roubem nossa história, nossa memória, é um traço característico do
conjunto da obra cardosiana. Não à toa a fabula se inicia com as
seguintes palavras:

“Hoje em dia pode roubar-se tudo a um homem, até a


morte. Rouba-se-lhe a morte com a mesma facilidade com
que se lhe rouba a vida, a face ou a palavra, que são coisas
mais que tudo inestimáveis – disse o contador de estórias à
sua filha Ritinha”11.

Logo na primeira apresentação que faz do Dinossauro (leia-se


Salazar), Cardoso Pires diz que o pior mal do ditador era “matar as
palavras no falar de cada um”. Esta discussão sobre os usos das
9
Artur Portela, Cardoso Pires por Cardoso Pires, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991, p.89
10
Segundo Cardoso Pires, está fábula foi escrita em Londres, em 1969, como um presente de Natal às
filhas Rita e Ana. A opção pelo gênero da fábula está vinculado ao fato de que a “estória se passa no
tempo em que os animais falavam e os homens sufocavam”.
11
José Cardoso Pires, Dinossauro Excelentíssimo, Moraes Editores, S.A.R.L., 1973, p.9
palavras está diretamente relacionada com a capacidade do homem de
criar verdades nas quais acreditar. E esta é, como veremos ao longo
deste trabalho, uma temática constante de sua obra.
No conto intitulado “Nós, aqui por entre o fumo” 12, José Cardoso
Pires cria uma personagem castigada “por quilômetros de palavras de
chumbo”.
A história gira em torno de um tipógrafo, “gutembergue de
província”, nascido e criado entre alfabetos de chumbo. Na realidade, o
conto inteiro é uma alegoria da repressão, dos assim chamados anos de
chumbo. Acostumado a lidar com estas palavras de aço “que cantavam
eternamente, a cegarrega da paz e da felicidade”, o tipógrafo já não
mais podia acreditar na sua eficácia, pois há anos que este “operário das
letras marteladas” apenas,

“trabalhava em elogios de inauguração, história pátria,


linguagem de verso amador e mistérios de mais ou menos
religião. Inclusivamente, as poucas notícias bancárias que
lhe tinham passado pela forma vinham carregadas de poesia
heróica”13.

O núcleo central da história se desenrola durante as refeições, onde


a fumaça da comida quente, cria uma espécie de bruma que, somada aos
comentários da família – além do tipógrafo, sua mulher e dois filhos –
sobre planos e projetos futuros, evidenciam o tempo todo os limites de
horizonte desta família portuguesa que não se permitia nem sequer
sonhar alto. O máximo a que podiam aspirar era a uma comida um
pouco mais encorpada e a aquisição de um carro velho de segunda mão.
E vale lembrar que nem mesmo a esperança vinha de uma aposta na
transformação conquistada, mas sim, da crença na “lógica da loteria”.

12
José Cardoso Pires, ‘Nós, aqui por entre o fumo’, In. O Burro-em-pé, Lisboa, Publicações Dom
Quixote, 1999.
13
José Cardoso Pires, 1999, p. 60
Pois, “sabiam que a bola é redonda, e que tanto pára na algibeira do
pobre como no cofre do rico, a questão estava em arriscar.”14
Neste sentido o conto torna-se paradigmático dos anos de ditadura
salazarista, cuja forja de chumbo gera uma desconfiança no poder das
palavras.
É aqui que fica mais claro o importante papel que o escritor pode e
deve exercer numa sociedade. Ele deve, de antemão, desconfiar. Nas
palavras do próprio Cardoso Pires, em entrevista ao Jornal Leia:

“Eu ponho sempre em dúvida o que eu escrevo... É


como duvidar da imagem dum país. O meu livro pretende
que a pessoa diga: “Em que país eu estou”?”15

Segundo Cardoso Pires, o “Estado de Mentira”, característico da


Ditadura Salazarista, se distingue, pelo empenho na fabricação de uma
verdade, como por exemplo, o esforço permanente do salazarismo em
fazer da censura uma sintaxe do pensamento coletivo, criando com isso
formas de mentalidade adaptadas ao poder.
Se pensarmos que são as palavras a matéria-prima básica do
escritor, e que elas são mais que simples palavras, esta manipulação
torna-se ainda mais inescrupulosa.
Baudrillard afirma, num breve ensaio intitulado Senhas, que são

"as próprias palavras que geram ou regeneram as idéias,


que fazem o papel de embreagens. Nos momentos em que
assim atuam, as idéias se entrelaçam, se misturam ao nível
da palavra, que serve, então, de operadora - mas uma
operadora não-técnica - em uma catálise em que a própria
linguagem está em jogo. Isso faz dela (da palavra) um
investimento pelo menos tão importante quanto as idéias"16.
14
Idem, p.64
15
Citado por Alexandre Montaury, O Delfim, narrativa de entrelinhas, SEMEAR 5, Rio de Janeiro, NAU,
2001, p.229
16
J. Baudrillard, Senhas, São Paulo, Difel, 2001.
Parece ser esta também a leitura que Cardoso Pires faz das
palavras: “me foi concedido o gosto de admirar a palavra e de a sentir
como coisa viva, pegada ao tempo.”17 Ou seja, este enigma da palavra,
do qual nos falava Baudrillard, encontra eco nos escritos de Cardoso
Pires: como trabalhar as palavras, ou melhor como animá-las numa
temporalidade específica?
É nesse sentido que nosso autor afirma que cada escritor deve
possuir uma caligrafia moral18, uma maneira própria de fazer uso desta
arte, sempre levando em conta, ou tendo em mente, um conjunto de
regras de conduta consideradas como válidas, quer de modo absoluto
para qualquer tempo ou lugar, quer para cada grupo ou pessoa
determinada.
No seu caso específico, a sua escrita necessariamente dialoga,
participa do debate ativo de seu país19, e isto porque para Cardoso Pires,
a profissão de escritor tem uma função bastante clara na sociedade que
é a de “testemunhar e alertar para o futuro qualquer que seja a perfeição
do sistema”. Daí afirmar que o escritor, como narrador de uma
sociedade, exerce uma profissão de interesse coletivo.

17
José Cardoso Pires, ´Gloria Te Ipsum` In. E Agora, José ? Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999,
p.33
18
Esta expressão, Cardoso Pires a emprega num texto intitulado “Conversações com o homem a propósito
dos outros”, quando está a discorrer sobre o escritor italiano Elio Vittorini.
19
Sempre que lemos qualquer testemunho ou mesmo opinião sobre Cardoso Pires, ele sempre é
representado ou apresentado como alguém que tem com a cidade de Lisboa e seus habitantes um vínculo
bastante forte, impossível de ser desfeito. Por exemplo, na crônica de António Lobo Antunes, intitulada
'Crónica muito antiga que eu julgava perdida', ele nos diz: "Quando anoitece Cardoso Pires começa a
ganhar consistência no interior da roupa, íntimo de barmen e do labirinto estranho em que Lisboa se
transforma, balizada de chafarizaes e polícias que perderam, desde há séculos, o costume de sorrir. (...) E
ele é o único de nós que voa por cima das mandíbulas das camionetas do lixo e dos pesadelos dos
escriturários, tripulando a nuvem de um Renault branco que se some, a tremer, sobre os telhados, rumo às
folhas de papel A4 que são os lençóis em que por fim nos deitamos, a rechear de ossos o pijama e de
palavras adiadas os rectângulos das páginas."
“... o que me faz escrever é isso, cada livro é uma
busca da minha identificação com o País e comigo
próprio”20.

Na realidade, os acontecimentos em paralelo em violência,


brutalidade e banalidade que tiveram lugar no século XX,
reconfigurarm as tradicionais formas de representação – é disso que

20
Arthur Portela, Cardoso Pires por Cardoso Pires, Lisboa, Publicações Dom Quixote,
1990, p. 50
estamos falando quando afirmamos que a principal característica do
século XX é a paixão pelo Real. Em contraposição às aspirações
utópicas do século anterior, cujo imaginário operava sempre a partir da
crença num futuro melhor, o terrível século XX solapou de vez esta
eterna e progressiva busca de um realidade nunca existente, porque
sempre imaginada, introduzindo uma experiência direta do Real,
experiência esta de uma violência extrema, incapaz de ser nublada pelas
várias camadas que encobrem o núcleo duro da vida. Esta obsessão pelo
Real apresenta uma contraface bastante evidente, que é justamente a
espetacularização do Real. Longe de serem excludentes, estes dois
movimentos de aproximação com o real são complemantares – a
espetacularização cria um efeito de realidade que nos permite, não
captura-lo, mas reconhecê-lo, circunscreve-lo e, fundamentalmente,
mantê-lo afastado de nós. Representar o passado hoje é, torna-lo
novamente presente, é termos a oportunidade de compartilhar
experiências com os homens de outrora.
Há uma urgência, portanto, em se falar deste passado. São as tais
memórias nada memoráveis de um Portugal sombrio que clama por não
ser colocada no baú dos sobrantes da história, para usar uma expressão
de Cardoso Pires.
Talvez por isso que seu auto-retrato inicia-se com a retomada de
um poema de Drummond que diz:

E agora, José?
A festa acabou,
A luz acabou
O povo sumiu
A noite esfriou
E agora, José?
E agora, responde Cardoso Pires no país dos vinte capitães,
acabada a festa, é preciso urgentemente que não se deixem os cravos
murcharem – é para isso que Cardoso Pires escreve.

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