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Usualmente a chamada Literatura de Testemunho diz respeito fundamentalmente a narrativas criadas
nestes dois contextos. Ocorre que, do ponto de vista teórico, vem sendo feito um esforço em ampliar essa
categoria, de modo que ela o instrumental teórico produzido possa dar conta também de toda uma
literatura que surge da violência estatal. Um maior desenvolvimento deste argumento pode ser lido no
artigo de Valéria de Marco, disponível no endereço eletrônico http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0102-64452004000200001&lng=en&nrm=iso.
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Segundo Eneida Leal Cunha, a novidade dessas memórias do final da década de 70, em relação à
tradição memorialista iniciada na década de 30, está amparada no caráter documental de vidas não
autorizadas anteriormente, ou seja, que expunham “vidas minoritárias ou marginalizadas sem a
intermediação erudita”. Já as narrativas memorialistas de 30, se legitimavam, justamente, pelo
“reconhecimento prévio de seus autores” pelo cânone literário. Eneida Leal Cunha. “Memórias de 1968”.
In: Semear – Revista da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses, n.10, Rio de Janeiro:
Nau, 2004. p. 126.
Como narrar o inenarrável? Como representar o terror? Quais os
limites que a violência impõe às formas de representação? Pois é preciso
lembrar, como o faz incansávelmente José Cardoso Pires, que “as
sociedades do terror se servem dos crimes avulsos para justificarem o crime
social que elas representam por si mesmas e que em todos esses crimes a
sua mão está presente, em todos”.
São narrativas, pois, tecidas de situações-limite que colocam o
homem numa posição bem próxima de uma completa passividade. É
justamente este traço em negativo – da falta, da escassez, do não-
assimilável – que cria uma espécie de elo entre o autor e o leitor, que faz
com que o testemunho individual torne-se testemunho geracional – é como
se ali, naquelas palavras, ou naqueles silêncios, a sociedade buscasse sua
própria memória, ou seja, sua própria história. Ou, se preferirem, a
contrapartida do compromisso social da escrita, a do leitor que se
compromete com a matéria narrada. São também palavras do nosso autor:
“O drama de quem escreve não é o que escreve, mas o que apaga”.
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Eric Hobsbawm. A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia.das Letras, 1995.
possibilidades que acabou por desapropriar o homem de sua própria
experiência. Este fenômeno notado por Benjamin e que ele chamou de
“pobreza de experiência”, vincula-se não somente ao febril cotidiano das
cidades grandes, mas fundamentalmente aos espetáculos de guerra. Ao
homem expropriado de sua própria linguagem m(é disto que estamos
falando) resta apenas, então, fazer uso de uma memória ativa que interfira e
que possa transformar seu presente. E é este o ensinamento que vemos
desdobrar-se nas múltiplas narrativas de sofrimento de experiências
traumáticas – experiências que rompem com a capacidade de elaboração
simbólica do sujeito que viveu a dor, mas que se impõe como um “dever de
memória”, que se estabelece como uma espécie de elo de ligação, não
apenas com aqueles que morreram e, portanto, não podem mais
testemunhar, mas fundamentalmente com aqueles que sobreviveram e
precisam saber o que aconteceu. É neste sentido que Huyssen afirma,
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Citado por Maria Helena Werneck em “Depois da Barca, cenas de outros infernos nas dramaturgias de
Oduvaldo Vianna Filho e José Cardoso Pires”, Semear, n.8, Rio de Janeiro, 2003, Pp 229-248.
hegemonia discursiva próprias dos Estados totalitários. 5 É que a literatura
possui a virtude de vocalizar sujeitos sociais geralmente excluídos das
grandes narrativas.
É neste sentido que, lutar contra o esquecimento, é afirmar uma
memória, é ter a chance de olhar para o passado sabendo que ele não é um
todo fechado e irreversível, confinado ao já acontecido. Pois, “o passado é
um campo de citações, atravessado tanto de continuidades, quanto de
descontinuidades.” As rasuras ou lacunas voluntárias dos arquivos recentes
apontam assim, para questões de nosso tempo histórico. A supressão da
memória, forma suprema da violência é, no pensamento de Hannah Arendt,
um desdobramento das práticas de censura totalitárias, que negavam a
palavra aos “inimigos da ordem”. O modus-operandi da historiografia
clássica, que sempre contou a história dos vencedores, é uma realidade. É
pois, nas brechas deste discurso hegemônico, que buscamos encontrar
vozes dissonantes que nos contem um pouco da história dos vencidos – a
dos homens infames. Vejamos como Cardoso Pires explicita este projeto.
5
Nelly Richard. “Políticas da Memória e técnicas do esquecimento”. In: Wander Melo Miranda (org).
Narrativas da Modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
José Cardoso Pires dedicou grande parte de sua vida à escrita. Não
que isso seja uma novidade. A grande maioria dos escritores também o
fizeram. A novidade está em jamais separar o ofício do escritor da
prática da cidadania, daí se auto-intitular cidadão-escritor.6
Este epíteto funciona também como um modus operandi de sua
escrita. Para o autor, criador de textos ficcionais, mas que também
atuou como jornalista, cronista e autor de textos de intervenção – o foco
de sua obra foi sempre a busca incansável pela produção de liberdade. 7
O que se torna ainda mais carregado de significações se lembrarmos
que Cardoso Pires, tendo nascido em 1925, viveu quase que a totalidade
de sua vida sob o domínio da ditadura salazarista.8
Este fato deixou marcas bastante precisas na sua vida e,
conseqüentemente, na sua escrita. No seu Auto-Retrato, publicado no
volume intitulado Cardoso Pires por Cardoso Pires, ele nos diz:
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José Cardoso Pires, ‘Nós, aqui por entre o fumo’, In. O Burro-em-pé, Lisboa, Publicações Dom
Quixote, 1999.
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José Cardoso Pires, 1999, p. 60
Pois, “sabiam que a bola é redonda, e que tanto pára na algibeira do
pobre como no cofre do rico, a questão estava em arriscar.”14
Neste sentido o conto torna-se paradigmático dos anos de ditadura
salazarista, cuja forja de chumbo gera uma desconfiança no poder das
palavras.
É aqui que fica mais claro o importante papel que o escritor pode e
deve exercer numa sociedade. Ele deve, de antemão, desconfiar. Nas
palavras do próprio Cardoso Pires, em entrevista ao Jornal Leia:
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José Cardoso Pires, ´Gloria Te Ipsum` In. E Agora, José ? Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999,
p.33
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Esta expressão, Cardoso Pires a emprega num texto intitulado “Conversações com o homem a propósito
dos outros”, quando está a discorrer sobre o escritor italiano Elio Vittorini.
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Sempre que lemos qualquer testemunho ou mesmo opinião sobre Cardoso Pires, ele sempre é
representado ou apresentado como alguém que tem com a cidade de Lisboa e seus habitantes um vínculo
bastante forte, impossível de ser desfeito. Por exemplo, na crônica de António Lobo Antunes, intitulada
'Crónica muito antiga que eu julgava perdida', ele nos diz: "Quando anoitece Cardoso Pires começa a
ganhar consistência no interior da roupa, íntimo de barmen e do labirinto estranho em que Lisboa se
transforma, balizada de chafarizaes e polícias que perderam, desde há séculos, o costume de sorrir. (...) E
ele é o único de nós que voa por cima das mandíbulas das camionetas do lixo e dos pesadelos dos
escriturários, tripulando a nuvem de um Renault branco que se some, a tremer, sobre os telhados, rumo às
folhas de papel A4 que são os lençóis em que por fim nos deitamos, a rechear de ossos o pijama e de
palavras adiadas os rectângulos das páginas."
“... o que me faz escrever é isso, cada livro é uma
busca da minha identificação com o País e comigo
próprio”20.
20
Arthur Portela, Cardoso Pires por Cardoso Pires, Lisboa, Publicações Dom Quixote,
1990, p. 50
estamos falando quando afirmamos que a principal característica do
século XX é a paixão pelo Real. Em contraposição às aspirações
utópicas do século anterior, cujo imaginário operava sempre a partir da
crença num futuro melhor, o terrível século XX solapou de vez esta
eterna e progressiva busca de um realidade nunca existente, porque
sempre imaginada, introduzindo uma experiência direta do Real,
experiência esta de uma violência extrema, incapaz de ser nublada pelas
várias camadas que encobrem o núcleo duro da vida. Esta obsessão pelo
Real apresenta uma contraface bastante evidente, que é justamente a
espetacularização do Real. Longe de serem excludentes, estes dois
movimentos de aproximação com o real são complemantares – a
espetacularização cria um efeito de realidade que nos permite, não
captura-lo, mas reconhecê-lo, circunscreve-lo e, fundamentalmente,
mantê-lo afastado de nós. Representar o passado hoje é, torna-lo
novamente presente, é termos a oportunidade de compartilhar
experiências com os homens de outrora.
Há uma urgência, portanto, em se falar deste passado. São as tais
memórias nada memoráveis de um Portugal sombrio que clama por não
ser colocada no baú dos sobrantes da história, para usar uma expressão
de Cardoso Pires.
Talvez por isso que seu auto-retrato inicia-se com a retomada de
um poema de Drummond que diz:
E agora, José?
A festa acabou,
A luz acabou
O povo sumiu
A noite esfriou
E agora, José?
E agora, responde Cardoso Pires no país dos vinte capitães,
acabada a festa, é preciso urgentemente que não se deixem os cravos
murcharem – é para isso que Cardoso Pires escreve.