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Guto Leite
Quero partir daquilo que hoje chamamos de modernidade, que em sentido lato se
inicia nas primeiras empresas proto-burguesas, como as Grandes Navegações ou a
peculiar sociedade de cristãos novos que se formou na Holanda, com Spinoza, Vermeer
e outros, e finda em meados do século XX, com a maturação da indústria cultural, da
cultura de massas e certa organização do capitalismo tardio que hierarquicamente
coloca as pessoas em condição subalterna às coisas. Mas não se assustem, ainda, porque
não vou falar sobre isso. Esses são só os marcos temporais pelos quais estou me
guiando.
Meu ponto, e finalmente chego a ele, é pensar a autonomia do que está sendo
dito dentro da forma estética frente ao cotidiano ordinário da sociedade. Ou, em outros
termos, qual é a relação da experiência estetizada com a experiência não estetizada? O
que pode a escritora ou o escritor dizer dentro da forma estética, ou qual o grau e o tipo
de controle da sociedade sobre isso? Em certa medida, estou me perguntando sobre a
espessura do estético, como limite, na separação do território das obras em relação ao
território da vida. Não é possível, por óbvio, elencar todos os momentos de tensão
dessas relações. Sem qualquer reflexão, somente a listagem desses momentos excederia
o tempo que tenho aqui de fala. Creio, contudo, ser possível construir um arco, uma
curva em um gráfico, uma parábola, que nos ajude a pensar um pouco no assunto e, com
sorte, enxergar os desdobramentos de algumas transformações recentes como indícios
importantes de modificações sociais decisivas.
Trata-se, antes, da possibilidade de se viver duas vidas, uma literária e outra real,
ou muitas vidas, do que só viver uma ou outra vida, a literária ou a real. “A literatura é o
sonho acordado das civilizações”, diz Candido, uma prática que nos confirmaria em
nossa humanidade. Ou como diz George Eliot, em meados do dezenove, sobre a arte,
mas podemos pensar na literatura em específico: “é um modo de aumentar a experiência
e ampliar nosso contato com os semelhantes para além do nosso destino pessoal”. Algo
semelhante está em A origem dos outros, de Morrison, sobre a força da literatura em
consolidar perspectivas, que, evidentemente, não coincidem com a perspectiva do leitor,
e que isso expandiria, em um sentido político, a concepção de humanidade das pessoas.
Aqui tem uma tensão importante, que gostaria de marcar, abrindo a parte final da
minha fala: é possível olhar para essa acumulação que permitiu a existência da literatura
nesses termos como um privilégio gerado pela sociedade burguesa, por mais que não
tenha sido, sobretudo nos primeiros momentos do século XX, quando a espessura do
estético parece ser a mais espessa possível, um privilégio restrito a burgueses ou mesmo
a pequeno-burgueses. (Forçando muito a nota, por meio de uma série de mediações que
não conseguirei fazer aqui, eu poderia dizer que a popularização do cinema fez com que
a literatura certamente chegasse às massas). Esse mesmo privilégio, portanto, de ter um
espaço de vida experimentada, de imaginação, de fantasia, de entretenimento, de
conhecimento, pode ser também concebido como um direito, como um direito de todas
as pessoas de usufruírem da literatura nesses termos. Haja vista que o capitalismo é
também uma máquina de transformar direitos em privilégios, acho importante certa
cautela no exercício dessa taxonomia.
O que estou tentando dizer, e talvez esteja aqui dando voltas, é que estamos
assistindo à estruturação de um novo paradigma que tem por base uma nova
configuração social. Deixando de lado o horizonte de catástrofes, natural ou nuclear,
estamos lidando com um tempo de acirramento diante das possibilidades efetivas de
ascensão – diversos trabalhos indicam que, na ausência de possibilidade efetiva de
ascensão, o que temos é rixa e supremacias quaisquer (como compensações simbólicas
à impotência). Nesse lugar de migalhas, é necessário capitalizar tudo, sendo também o
neoliberalismo e a subjetivação de sua lógica um sistema que distribui de maneira mais
capilarizada os valores. Ou seja, a transformação do capitalismo, como forma de
produção, é provocada pela concentração crescente do capital.
No nosso campo, não basta o livro ser mercadoria, é preciso acrescentar novos
produtos à cesta, como um tema que também acrescenta certo valor, uma história
pessoal que também me permita valorizar o produto, uma linguagem acessível a um
público cada vez menos leitor, uma posição política capaz de tornar o autor mais valioso
para seu público etc. Volto a dizer, em ambiente muito mais inóspito aos “unhappy few”
consumidores de cultura em países periféricos, para citar C. Wright Mills, da abertura de
“A revolução de 1930 e a cultura”, se pensarmos na concepção antiga de literatura, a
burguesa. Agora o equipamento cultural atende a círculos muito mais amplos, “these
happy many”, embora se possa questionar essa felicidade, ponto a que voltarei em
seguida.
Para voltar ao início, ao chiste lacaniano com o qual abri o texto, talvez essa
saturação do simbólico esteja nos deixando cada vez mais longe do real, o que torna o
ambiente muito menos propício à literatura. Talvez os mecanismos reais, da atribuição
dos valores às coisas conforme a organização de valores do mundo contemporâneo,
estejam dificultando, senão objetando, a prática literária tal como praticada antes, sob a
visão de mundo burguesa. Uma parte importante da literatura produzida hoje constrói
espaços de reconhecimento e de pertencimento. Relações que poderiam ser íntegras em
seus círculos, mas que não estão imunes ao mundo real, ou seja, espaços incapazes de
proporcionar profundas transformações sociais. Sua possibilidade de existir advém
justamente do fato de que a margem é mínima ou inexistente para que as estruturas
possam ser transformadas por dentro. Assusta, ademais, que boa parte dos escritores e
escritoras não entenda o caldo ideológico em que estão imersos ou sejam cínicos em
relação a ele, jogando o jogo. Afinal, são próprios dos xamãs, pajés, sacerdotes,
escritores etc., os atos de enxergar e traduzir. Que lugar teriam se não são capazes de ver
e traduzir? Atravessados por práticas neoliberais, não há a possibilidade de que essas
antigas figuras performem seus ofícios, senão ideologicamente.
Muito obrigado.