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Conferência: Literatura e realidade

Guto Leite

Se eu fosse um lacaniano obtuso e radical, diria que não há nenhuma relação


entre literatura e realidade, ou melhor, que a literatura começa alguns centímetros,
metros ou quilômetros depois das fronteiras do que podemos, não podemos, chamar de
real. Sendo menos obtuso, diria que a literatura, na sua condição de tratamento radical
do simbólico, permite ao menos que apontemos na direção do real. Sendo menos
radical, valeria comentar que são milhares as formas como a literatura, não somente a
literatura de livro, e a realidade se relacionaram nas sociedades humanas.

Porque o tema proposto é vasto, inabarcável, realidade e ficção me permiti fazer


um singelo recorte para avaliar as implicações, que me parecem interessantes, de um
único aspecto dessas relações. Escolho comentar algo da tradição ocidental greco-latina,
mas deixando de lado a tão conhecida distinção aristotélica entre historiador e poeta
(“Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa;
diferem sim em que um diz as coisas que sucederam e outro as que poderiam suceder.”;
na Poética, em tradução de Eudoro de Souza) e as formas como a literatura assumiu
grande importância ritualística ao longo da Idade Média, seja na incorporação mítica
dos medos quanto ao cotidiano perigoso daquelas comunidade, seja na exploração de
aspectos da linguagem depois triados pela invenção da prensa móvel, como a
musicalidade, o ritmo, a encenação etc. – como nos ensina, dentre outros, o trabalho de
Zumthor.

Quero partir daquilo que hoje chamamos de modernidade, que em sentido lato se
inicia nas primeiras empresas proto-burguesas, como as Grandes Navegações ou a
peculiar sociedade de cristãos novos que se formou na Holanda, com Spinoza, Vermeer
e outros, e finda em meados do século XX, com a maturação da indústria cultural, da
cultura de massas e certa organização do capitalismo tardio que hierarquicamente
coloca as pessoas em condição subalterna às coisas. Mas não se assustem, ainda, porque
não vou falar sobre isso. Esses são só os marcos temporais pelos quais estou me
guiando.
Meu ponto, e finalmente chego a ele, é pensar a autonomia do que está sendo
dito dentro da forma estética frente ao cotidiano ordinário da sociedade. Ou, em outros
termos, qual é a relação da experiência estetizada com a experiência não estetizada? O
que pode a escritora ou o escritor dizer dentro da forma estética, ou qual o grau e o tipo
de controle da sociedade sobre isso? Em certa medida, estou me perguntando sobre a
espessura do estético, como limite, na separação do território das obras em relação ao
território da vida. Não é possível, por óbvio, elencar todos os momentos de tensão
dessas relações. Sem qualquer reflexão, somente a listagem desses momentos excederia
o tempo que tenho aqui de fala. Creio, contudo, ser possível construir um arco, uma
curva em um gráfico, uma parábola, que nos ajude a pensar um pouco no assunto e, com
sorte, enxergar os desdobramentos de algumas transformações recentes como indícios
importantes de modificações sociais decisivas.

Todos sabemos que no começo desse tempo que consideramos a modernidade,


literariamente, talvez pelos marcos literários de Shakespeare, Cervantes e Montaigne, a
relação entre dentro e fora da obra era bastante porosa. Basta pensar na natureza dos
Ensaios, ou na maneira como reverberava a figura do cavaleiro andante, como seus
leitores a recebiam como relato de um fidalgo real, ou mesmo como Shakespeare
estruturava e comentava aspectos da política elizabetana para seu público, para entender
como não se pensava a literatura fora da realidade. Isto é, a literatura era uma atividade
que não se concebia como um campo à parte. Não só porque se estava escrevendo uma
história inventada, significaria que aquilo que estava dito no texto seria imune ao que se
considerava legal ou ilegal dizer naquela sociedade. Não só porque estavam sobre um
palco, aquelas pessoas, que atuavam como personagens de um drama, por exemplo,
poderiam realizar atos que os poderes estabelecidos não considerassem decorosos.

No caso brasileiro, podemos observar no trabalho vigoroso, mesmo que pouco


dialético, de João Adolfo Hansen, sobre Gregório de Matos, a maneira como a falta de
decoro da poesia deste foi decisiva para seus contratempos biográficos – e como essa
falta de decoro foi lida depois, pelos românticos, anacronicamente, como originalidade.
Ou estudar a obra de Padre Antônio Vieira, o “Imperador da Língua Portuguesa”, mestre
de um gênero, a princípio, não literário, mas retesado de tal modo pelo jesuíta, que não
causaria espanto localizá-lo como exemplo da mais alta literatura produzida no século
XVII. Em síntese, houve um tempo, dentro da modernidade, em que a identificação de
um objeto como objeto estético não o eximia, nem o seu autor, de obedecer às regras
estabelecidas.

No livro organizado por Franco Moretti, A cultura do romance, há um precioso


ensaio de Catherine Gallagher, “Ficção”, tradução de Denise Bottmann. Nele, a crítica
literária norte-americana, mobilizando suas pesquisas sobre o romance inglês dos
séculos XVIII e XIX, neste caso, centradas em Robinson Crusoe (1719), explicita os
contratempos de uma recepção pouco acostumada à narrativa estritamente ficcional – o
próprio Dafoe buscou se valer disso, antes de desmentir que se tratava de uma pessoa
real. Segundo Gallagher, esse espaço ensaístico criado pela ficção se consolidaria, com
efeito, ao longo do século XVIII e teria permitido, igualmente, que outras construções
culturais eminentemente ficcionais se desenvolvessem, como a aceitação da existência
de outros religiões, o papel moeda e o casamento por amor.

Se acrescentamos aos argumentos de Gallagher outros estudos, como “O século


sério”, de Franco Moretti, por exemplo, podemos considerar que há um ponto em que o
compromisso da literatura com a realidade se modifica. Claro que os trabalhos de Kant
do último quarto do século XVIII, sua defesa da autonomia da arte frente ao mundo,
tem responsabilidade nisso, mas estou falando de algo mais chão, algo mais ligado à
possibilidade de o leitor comum entender a literatura como um entretenimento, como
um modo de conhecer melhor o mundo em que vive sem precisar ser escolástico em
relação à sua vontade de saber. Algo ligado a aspectos tão diversos como o aumento do
número de leitores, às transformações dos afazeres diários das pessoas, às modificações
das disposições das casas das famílias, ao arrefecimento cada vez mais significativo da
influência de Deus na vida prática etc.

A conquista da seriedade, do tom sério, na literatura (termo de Auerbach), talvez


tenha trazido a reboque essa possibilidade de não se confundir personagens com
pessoas, narradores e eu líricos com autores, vida representada com vida real. Afinal “a
literatura é diferente da vida porque a vida é cheia de detalhes, mas de maneira amorfa,
e raramente ela nos conduz a eles, enquanto a literatura nos ensina a notar”, observa
James Wood, e um pouco adiante em Como funciona a ficção, “Essa lição é dialética. A
literatura nos ensina a notar melhor a vida, praticamos isso na vida, o que nos faz, por
sua vez, ler melhor o detalhe na literatura, o que, por sua vez, nos faz ler melhor a vida.”
Ambas traduções de Bottmann. Não sei se chamaria de dialética essa definição, no
sentido mais rigoroso do termo, mas indica um movimento interessante de
complexificação contínua da vida, de alargamento, de ampliação, da prática de viver.

Trata-se, antes, da possibilidade de se viver duas vidas, uma literária e outra real,
ou muitas vidas, do que só viver uma ou outra vida, a literária ou a real. “A literatura é o
sonho acordado das civilizações”, diz Candido, uma prática que nos confirmaria em
nossa humanidade. Ou como diz George Eliot, em meados do dezenove, sobre a arte,
mas podemos pensar na literatura em específico: “é um modo de aumentar a experiência
e ampliar nosso contato com os semelhantes para além do nosso destino pessoal”. Algo
semelhante está em A origem dos outros, de Morrison, sobre a força da literatura em
consolidar perspectivas, que, evidentemente, não coincidem com a perspectiva do leitor,
e que isso expandiria, em um sentido político, a concepção de humanidade das pessoas.

Aqui tem uma tensão importante, que gostaria de marcar, abrindo a parte final da
minha fala: é possível olhar para essa acumulação que permitiu a existência da literatura
nesses termos como um privilégio gerado pela sociedade burguesa, por mais que não
tenha sido, sobretudo nos primeiros momentos do século XX, quando a espessura do
estético parece ser a mais espessa possível, um privilégio restrito a burgueses ou mesmo
a pequeno-burgueses. (Forçando muito a nota, por meio de uma série de mediações que
não conseguirei fazer aqui, eu poderia dizer que a popularização do cinema fez com que
a literatura certamente chegasse às massas). Esse mesmo privilégio, portanto, de ter um
espaço de vida experimentada, de imaginação, de fantasia, de entretenimento, de
conhecimento, pode ser também concebido como um direito, como um direito de todas
as pessoas de usufruírem da literatura nesses termos. Haja vista que o capitalismo é
também uma máquina de transformar direitos em privilégios, acho importante certa
cautela no exercício dessa taxonomia.

Se consegui recuperar, mesmo que de maneira pouco robusta, a ascendente de


nossa parábola, cabe agora apontar para a parte descendente da curva, o que vou
chamar, provocativamente, de estouro da bolha da ficção. Antes, cabe mencionar que
embora o desenho tenha sido linear, o movimento tem muito mais percalços do que faz
crer minha recuperação, como a acusação de imoralidade em Madame Bovary, ou
perseguição de Oscar Wilde etc. Isto é, reconheço a simplificação. Como compensação,
acredito que vislumbrar essas transformações e refletir sobre elas podem valer a pena.
Por conta de meu viés marxista, tendo a entender que sempre a estrutura
antecede a superestrutura, que é preciso procurar as pistas de transformação do mundo
imaterial no mundo material, e o que vou tentar fazer de agora em diante. Em certa
medida, essas pistas nos foram fornecidas pelo trabalho massivo de dados de Thomas
Pikkety em O capital do século XXI, ao demonstrar que após a segunda Guerra Mundial
o processo de acumulação do capital é patente e vertiginoso. Um processo de tal monta
aristocratiza a sociedade burguesa, ao desfazer a ideologia de que seja possível ter um
campo de experiência diferente do horizonte de expectativa, para mencionar duas
noções de Koselleck. A mobilidade é evidentemente permitida, como prova a biografia
de nosso dileto presidente – mais amigo das universidades do que da academia e do
pensamento crítico, vale notar. Mas essa mobilidade nunca permite acesso à camada
mais rica. Como se não bastasse, esse processo tem se agudizado sensivelmente:
segundo o relatório da Oxfam, publicado em janeiro de 2023, o 1% mais rico do mundo
ficou 2/3 de toda a riqueza gerada no mundo de 2020 pra cá, cerca de 42 trilhões de
dólares, seis vezes mais dinheiro do que 90% da população mundial conseguiu no
mesmo período. No caso brasileiro, segundo a FGV, a renda das 15 mil pessoas mais
ricas dobrou entre 2017 e 2022.

Se pensarmos em uma série de dinâmicas predominantes desde 1950, como a


robotização, a financeirização, o ciborguismo (faço questão de usar esse sufixo) etc., a
instalação progressiva do neoliberalismo e a proliferação de objetos sintomáticos de
nosso lugar outro em relação aos objetos e às marcas, como os smartphones, por
exemplo, não é difícil perceber que esse processo radical de acumulação capitalista
promoveu transformações importantes nas estruturas sociais e, por conseguinte, na
maneira como concebemos alguns aspectos da superestrutura. Enquanto Barthes, em
linha direta com a herança do pensamento burguês, matava os autores em 1967, Spyvak,
outsider mas insider, tensionava o duplo sentido da palavra representação, política e
estética, em “Pode o subalterno falar?”, de 1985.

Nada mais distante do paradigma vigente, ao menos nos espaços prestigiados, do


que a possibilidade de tratarmos o texto literário como unidade plenamente autônoma de
sentidos, prescindindo do contexto e da biografia do autor. Não há maior antípoda às
formulações barthesianas do que a noção de “escrevivência”, de Conceição Evaristo.
São ângulos incompatíveis. E mesmo, para pensar em outro campo, e outra derivação,
um tanto mais crítica, a meu ver, da sociedade burguesa, a objetividade da forma, como
concebe Adorno, embora a entenda como processo social decantado, não está
interessada na vivência do autor, que para o ângulo aquele, não de Adorno, no caso, não
poderia deixar de ser uma ficção. Isto é, não haveria uma vida real deste ou daquele
autor, mas um conjunto de histórias a respeito dessa vida, logo, não haveria essência da
qual partir para poder analisar algo acabado como uma forma estética. Para Bakhtin
também, para pôr fim na lista de exemplos, da Estética da criação verbal, embora haja
uma dimensão histórica e responsiva na obra de arte, como processo de obtenção de
forma acabada a partir das experiências do ser no mundo, a obra não pode se confundir
com a biografia do autor.

O que estou tentando dizer, e talvez esteja aqui dando voltas, é que estamos
assistindo à estruturação de um novo paradigma que tem por base uma nova
configuração social. Deixando de lado o horizonte de catástrofes, natural ou nuclear,
estamos lidando com um tempo de acirramento diante das possibilidades efetivas de
ascensão – diversos trabalhos indicam que, na ausência de possibilidade efetiva de
ascensão, o que temos é rixa e supremacias quaisquer (como compensações simbólicas
à impotência). Nesse lugar de migalhas, é necessário capitalizar tudo, sendo também o
neoliberalismo e a subjetivação de sua lógica um sistema que distribui de maneira mais
capilarizada os valores. Ou seja, a transformação do capitalismo, como forma de
produção, é provocada pela concentração crescente do capital.

No nosso campo, não basta o livro ser mercadoria, é preciso acrescentar novos
produtos à cesta, como um tema que também acrescenta certo valor, uma história
pessoal que também me permita valorizar o produto, uma linguagem acessível a um
público cada vez menos leitor, uma posição política capaz de tornar o autor mais valioso
para seu público etc. Volto a dizer, em ambiente muito mais inóspito aos “unhappy few”
consumidores de cultura em países periféricos, para citar C. Wright Mills, da abertura de
“A revolução de 1930 e a cultura”, se pensarmos na concepção antiga de literatura, a
burguesa. Agora o equipamento cultural atende a círculos muito mais amplos, “these
happy many”, embora se possa questionar essa felicidade, ponto a que voltarei em
seguida.

Voltando à linha central do texto, minhas hipóteses são: um – a membrana do


estético que protege a literatura da vida e a vida da literatura, construída e reforçada ao
longo de séculos de modernidade, está se rompendo; e dois – esse rompimento, que
poderia ser indício de um “desaburguesamento” da vida, no sentido da utopia
comunista, é, com efeito, sinal de um devir bárbaro que experimentamos. Essa intrusão
da ficção na matéria cotidiana, essa mistura de realidade e simulacro de literatura está
também noutras instâncias, como nas fakenews da imprensa e fora dela, ou nos
aplicativos ficcionalizantes, que são as redes sociais. Miguel Vedda, no recente
Cazadores de Ocasos, flagra bem o quanto essa centralidade do ficcional acompanha
também uma centralidade da indústria do ficcional no capitalismo contemporâneo,
invertendo certa formulação clássica de Adorno e Horkheimer.

Para voltar ao início, ao chiste lacaniano com o qual abri o texto, talvez essa
saturação do simbólico esteja nos deixando cada vez mais longe do real, o que torna o
ambiente muito menos propício à literatura. Talvez os mecanismos reais, da atribuição
dos valores às coisas conforme a organização de valores do mundo contemporâneo,
estejam dificultando, senão objetando, a prática literária tal como praticada antes, sob a
visão de mundo burguesa. Uma parte importante da literatura produzida hoje constrói
espaços de reconhecimento e de pertencimento. Relações que poderiam ser íntegras em
seus círculos, mas que não estão imunes ao mundo real, ou seja, espaços incapazes de
proporcionar profundas transformações sociais. Sua possibilidade de existir advém
justamente do fato de que a margem é mínima ou inexistente para que as estruturas
possam ser transformadas por dentro. Assusta, ademais, que boa parte dos escritores e
escritoras não entenda o caldo ideológico em que estão imersos ou sejam cínicos em
relação a ele, jogando o jogo. Afinal, são próprios dos xamãs, pajés, sacerdotes,
escritores etc., os atos de enxergar e traduzir. Que lugar teriam se não são capazes de ver
e traduzir? Atravessados por práticas neoliberais, não há a possibilidade de que essas
antigas figuras performem seus ofícios, senão ideologicamente.

Gostaria de esclarecer que não há aqui juízo de valor ou qualquer tipo de


nostalgia em busca de um tempo perdido. Há, sim, uma crítica à euforia com que alguns
circuitos da literatura contemporânea celebram vitórias supostamente de teor político. O
processo de concentração do capital totalmente verificável nos últimos cinquenta,
sessenta anos, não dá espaço para pensarmos que há alguma vitória gozável no campo
da literatura e das demais práticas simbólicas. Se estamos vencendo, por que perdemos
tanto?

Muito obrigado.

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