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A aculturação literária

Roger Bastide

Tradução:

Renato Venâncio H. de Souza

BASTIDE, Roger. L'acculturation littéraire : Sociologie et littérature comparée.


Paris: Cujas, 1970. p. 201-209: Le prochain et lointain.

Comentário: Glória Amaral (USP)

A ACULTURAÇÃO LITERÁRIA

(Sociologia e Literatura Comparada (1))

Este artigo tem um duplo objeto. Ele visa, em primeiro lugar, a propor uma
renovação da literatura comparada, articulando-a à sociologia das
interpenetrações de civilizações. E, em segundo lugar, a criticar o ponto de
vista proposto pela antropologia cultural em relação aos fenômenos ditos "de
aculturação".

Até o presente momento, a antropologia cultural, quase que unicamente


sozinha, tem-se ligado aos problemas dos contatos culturais. Ela elaborou os
conceitos norteadores de tais pesquisas. Serão estes conceitos - sincretismo,
adaptação, reinterpretação - válidos para os fatos literários tanto quanto para
os fatos religiosos, econômicos, ergológicos? Em caso afirmativo, será que
esta genera-lização não daria à literatura compara-da uma base mais objetiva,
arrancan-do-a da "experimentação", aparente-mente brilhante mas subjetiva?

Parece-me que uma tal aplicação da antropologia cultural à lite-ratura


comparada jamais foi proposta, nem pelos defensores da literatura comparada,
bem desculpáveis por não levarem em conta uma ciência que escapa à sua
preparação intelectual, nem pelos defensores da antropologia cultural, o que é
mais espantoso. E meu assombro é tanto maior que Tarde, nas suas Lois de
l'imitation , afirmara já a existência de leis sociológicas ao nível das imitações
literárias. Ora, considero Tarde como o verdadeiro fundador da antropologia
cultural. Aparentemente ainda não se notou que as três leis de Tarde, a da
imitação, a da oposição e a da adap-tação ou invenção, estão na origem dos
três conceitos norteadores da antropologia: difusão cultural, resistên-cia ou
contra-aculturação, adaptação (a "transculturação" de Malinowski identifica-se
perfeitamente com a adaptação de Tarde definida como invenção). A
antropologia cultural não fez outra coisa senão repensar Tarde através da
imensa documentação fornecida pela etnografia, e isso não nos surpreende se
lembrarmos da influência que o sociólogo francês teve nos primórdios da
sociologia norte-americana. Certamente, a importância de Tarde na elaboração
desta nova ciência foi mais inconsciente do que voluntária, ao ponto de ele ser
pouco citado pelos antropólogos; no entanto ela me parece inegável. Se tal
impor tância tivesse sido voluntária, então certamente os antropólogos, ao
refletirem sobre a famosa lei indicando que a imitação vai do interior para o
exterior, e que Tarde justifica pela análise das influências da literatura italiana
ou espanhola sobre a literatura francesa, teriam pensado em consagrar um de
seus capítulos à literatura comparada.

Mas lembramos que Tarde fora violentamente criticado por Durkheim.


Poderíamos desde então nos perguntar se a crítica de Durkheim não se opõe
também à antropologia cultural. Com efeito, em que se fundamenta a
antropologia cultural? Na diferença entre a cultura e a sociedade. O que
distingue a primeira da segunda é que a cultura pode passar de uma sociedade
para outra, com o risco de se modificar durante esta passagem. Porém, após
terem afirmado esta dis tinção e levados por não sei que imperialismo, os
antropólogos fazem igualmente da sociedade um conjunto de traços culturais
que podem também se difundir. Seria então preciso dizer aparentemente, para
não cair na contradição entre os termos, que a sociedade pode passar de uma
cultura para outra. Se, pois, as sociedades como as culturas podem assim
imitar-se, não seria porque a distinção entre as duas carece de base? Não
seria porque o mundo dos valores e o das inter-relações estão estreitamente
ligados no interior da sociedade global, e também porque a antropologia
cultural reduz-se à sociologia das relações entre as sociedades globais?
Mostramos em outros trabalhos (2) que o que restava de organicismo na
sociologia de Durkheim impediu-o de tratar em sua obra das intercomu-
nicações de civilizações. Mas se elimi- namos estes restos de organicismo que
se explicam pelo momento histórico e que são surpreendentes num pensador
que fez tanto para liberar a sociologia da biologia, em todo o caso a idéia de
"meio interno" deve estar no centro de uma pesquisa realmente positiva dos
problemas de aculturação.

A antropologia norte-americana se vê obrigada a ir nesta direção, na medida


em que se precisa e se aperfeiçoa. Herskovits teve o mérito de aproximar a
antropologia da psicologia: não são as civilizações que se encontram em
presença e agem umas sobre as outras, são os homens pertencentes a estas
civilizações. Mas é preciso ir mais longe: estes homens fazem parte de certas
estruturas soci ais; eles ocupam um certo lugar numa hierarquia de funções e
de papéis, estando ligados entre si por relações mais ou menos
institucionalizadas. É, pois, finalmente através destas estruturas morfológicas,
ou se preferirmos o termo durkheimiano, através destes "meios internos", que
devemos examinar os fatos de aculturação, se não quisermos nos limitar a uma
simples descrição, mas atingir o domínio da explicação. Nós comprovamos isto
ao estudarmos o caso dos contatos entre as civilizações africanas e européias
nas Américas (3). Vamos vê-lo agora num novo campo de estudos, a literatura
comparada. Notaremos melhor, ao mesmo tempo, o interesse que a literatura
comparada encontraria em renovar-se em contato com a antropologia cultural,
transfor mada enfim em sociológica, e o interesse que esta sociologia das
interpenetrações sócio-culturais teria em estender seu campo de ação ao
domínio literário.

Pedimos desculpas se tomamos nossos exemplos principalmente na literatura


comparada entre a França e o Brasil, que conhecemos melhor. Mas não temos
dúvidas de que o que vamos dizer sobre este exemplo particular se aplica a
todas as outras literaturas comparadas.

Para compreender bem a literatura brasileira dos séculos XVII e XVIII e a


influência exercida então sobre ela pela literatura portuguesa, é necessário
partir da "situação colonial". Não basta demonstrar que as modas "lusas" se
propagam da metrópole para a colônia, como a da Arcádia, apesar da
diversidade das sociedades, uma baseada na família particularista, outra
baseada na família patriarcal; é preciso ver que o "meio interno" explica este
fenômeno de difusão, que esta difusão é antes de tudo um protesto político.
Com efeito, ela toma suas formas mais servis quando o nativismo se
desenvolve, quando a opressão econômica torna-se mais difícil de suportar,
quando em cada cidade a praça central adorna-se com o palácio do
governador e com a prisão. Trata-se então de mostrar que os crioulos podem
fazer tão bem e mesmo melhor, esteticamente, do que os habitantes da
metrópole, que as "pessoas da terra" não são "bárbaros" os quais devem ser
dirigidos de fora, mas que chegaram à maturidade intelectual, podendo
governar-se a si próprios. Não é impunemente que a conspiração de
Tiradentes contra Portugal se desenvolveu entre os escritores que mais
imitavam as modas literárias "lusas". Encontraría mos nas literaturas "coloniais"
atuais, de língua inglesa ou francesa, o mesmo fenômeno que se repete tanto
hoje quanto no passado.

Entende-se que a influência francesa tenha sucedido à influência portuguesa


depois da proclamação da Independência, pois o Brasil sentia que sua
independência política não tinha sido seguida por uma independência cultural.
Era preciso conseqüentemen-te romper o último laço, o cordão umbilical, que
ligava ainda o Brasil a Portugal. Mas o "meio interno" do Brasil havia então
mudado, com os progressos da urbanização, que facilitava a formação de uma
classe média, a mobilidade vertical, "a ascensão do bacharel e do mulato (4) ".
A cultura francesa torna-se então o mesmo que o conhecimento do latim na
França, o símbolo de um certo status social. A lei de Goblot, da "barreira e do
nível", vai então entrar em jogo; e é através deste fenômeno de sociologia que
nós devemos entender a generalização da influência francesa e a de sua
literatura. Assim como a influência da literatura alemã em Recife, que se
desenvolve com Tobias Barreto, um mestiço, e que exprime a psicologia do
ressentimento do grupo mulato, manifestando pela escolha de uma língua mais
distanciada que o francês da língua portuguesa, a superioridade intelectual do
homem de cor, contra a aristocracia branca que queria mantê-lo no ponto mais
baixo da escala social.

Assim, é sempre a morfologia que explica, ao mesmo tempo, a seleção das


influências literárias e as metamorfoses das escolas quando elas passam de
uma civilização para outra. Com efeito, o que o Brasil tomou emprestado do
romantismo francês?

Em primeiro lugar o indianismo, o que causava espanto a Silvio Romero (5),


pois a civilização brasileira deve pouco ao índio, muito mais ao português ou ao
africano. Parecia-lhe impossível saltar por cima da colonização portuguesa e
do tráfico de escravos, para ligar direta e arbitrariamente o Brasil do século XIX
ao índio. Ele não via deste modo no indianismo senão um mito, uma simples
imitação, no ar e sem base sólida, do exterior, em particular de Chateaubriand.
Porém, não se pode esquecer de que o Brasil era então um país escravagista,
que a cor morena era um estigma de vergonha, não tanto enquanto cor, mas
enquanto lembrança de uma descendência servil. O indianismo, ao ligar a cor
morena ao índio, em vez do negro, aristocratizava o mestiço. Se o indianismo
não é inteiramente uma criação do mulato, ele triunfa e se difunde com
Gonçalves Dias através deste setor da população. Mas o romantismo possuía
ainda uma outra função social. A família patriarcal, ao passar do campo para a
cidade, não podia manter-se mais da maneira como ela existia à época
colonial. Ao perder seu isolamento primitivo, e ainda que a casa da cidade,
para imitar a casa da fazenda, fosse cercada de jardins, esta família não podia
impedir uma dupla revolta, a da mulher e a dos filhos, contra a autoridade
absoluta do patriarca. Ambos vão procurar então no romantismo a teoria do
amor-paixão, que se opunha aos casamentos convencionais, freqüentemente
endógamos, da antiga aristocracia rural. O romance brasileiro é o reflexo desta
metamorfose da família, tanto ou mais do que um simples reflexo de influências
estrangeiras. Ou, mais exatamente, a influência estrangeira se faz através do
canal de uma perturbação da estrutura social (6).

O que acabamos de ver sobre a seleção das influências literárias vale também
para as suas transformações ao passar de um meio para outro. É assim que o
procedimento da antítese foi retomado de Victor Hugo por Castro Alves, mas
esta antítese coloriu-se no Brasil com um tom novo: tornou-se a oposição entre
a independência política da nação e a escravidão de uma parte da população,
entre o senhor branco de alma negra e o escravo negro de alma branca, entre
a Casa Grande e a senzala , entre o erotismo libidinoso do europeu e o amor
casto do africano; ela permitiu igualmente a inversão de todos os estereótipos
relativos ao negro para mudar em beleza o que era anteriormente desonra. E
assim a passagem da influência de Hugo à de Lamartine foi ditada pela
condição social do Brasil. Mais tarde, vamos notar que os escritores de cor
preferirão o Parnasianismo ou o Simbolismo a outras formas de poesia, uma
vez que estas escolas defendem a dificuldade na arte, o trabalho artesanal, o
preciosismo, contra a inspiração. É um meio encontrado por este setor da
população para lutar contra a imagem que a sociedade tem do negro, como
"selvagem". Cruz e Souza o diz claramente: ele quis lutar contra sua
hereditariedade e a música do tambor, aproximando-se da arte mais refinada e
mais transcendental que fosse possível e opondo o canto da flauta e a melodia
do violino à batida surda do tantã. Apesar disso, ele metamorfoseou os temas
simbolistas, tanto o da Vênus negra de Baudelaire quanto o do espelho "água
fria, pelo tédio na sua moldura conge lada" de Mallarmé, já que colocou aí as
experiências sociológicas do grupo de pessoas de cor (7). Onde o francês
busca um aumento do pecado, numa confusão mística entre a cor negra e o
demoníaco, o brasileiro vai descobrir, ao contrário, uma espiritualização do
amor e uma sublimação da sensua- lidade. Certamente, há também uma
refração das correntes literárias atra- vés dos temperamentos individuais,
ninguém menos do que nós poderá esquecer-se disto; porém, mesmo aqui, as
variações se fazem no interior de uma mentalidade ou de um comportamento
de grupo. À primeira vista, não há nada em comum, por exemplo, entre os
romances do mestiço Machado de Assis e os do também mestiço Lima Barreto;
em todo caso, ambos exprimem o naturalismo em arte como "símbolo" da
classe média de cor, porém Machado de Assis foi perfeitamente bem-sucedido
em sua ascensão social, o que não ocorreu com Lima Barreto; daí a diferença
de tom e de estilo.

O que acabamos de dizer em relação à literatura comparada França-Brasil


pode estender-se a todo o campo da literatura comparada. Tomaremos
portanto um último exemplo, o das relações entre Corneille e o drama
espanhol. Já foi feita uma interpretação sociológica sobre o assunto, passível
de discussão, uma vez que permanece no domínio dos "valores", sem encarná-
los em grupos sociais. Disseram que Corneille exprimia o ideal da nobreza
antiga, então ocupada em lutar contra o absolutismo do rei, ao fazer a apologia
do "sentimento da honra" contra o "sentimento do serviço", que o monarca
exigirá doravante da No breza. Le Cid , inscrever-se-ia, desta maneira, na
história da resistência da Nobreza a Richelieu, de modo que a literatura
espanhola teria sido então um mero pretexto. Seria esquecer que Corneille não
pertencia a esta nobreza de sangue, e que, sendo burguês, continuará durante
muito tempo, desta vez através dos romanos, a fazer um teatro da honra,
mesmo quando a Nobreza terá sido definitivamente subjugada. Na nossa
opinião, ele representa sobretudo a vontade de enobrecimento da burguesia,
que deseja substituir-se à antiga aristocracia, identificando-se em primeiro lugar
com ela. É por esta razão que Corneille irá escolher o sentimento da honra
onde ele se exprime da forma mais pura e, se ouso dizer, em estado nascente,
o drama espanhol. Exatamente como num domínio próximo, a literatura
mística, a burguesia alemã aceita, da antiga mística da corte, a teoria do "amor
puro". Trata-se, nos dois casos, para um grupo social, de dar provas de sua
ascensão no interior de uma comunidade mais vasta, contra seus detratores
que o acusam de fundar seu prestígio no dinheiro, desenvol- vendo, ao
contrário, uma literatura do mais perfeito desinteresse.

Se considerarmos como perti-nente esta concepção sociológica da literatura


comparada, compreendere-mos melhor porque as influências de escolas ou de
formas estéticas, às vezes seguem, e às vezes não, as rotas comerciais ou
militares. Muitos se obstinaram em mostrar que as idéias se transportam com
os embrulhos dos comerciantes; e isto se dá freqüentemente. A influência
italiana começou na França através de Lyon, centro do comércio francês com a
Itália. Mas nem sempre é assim. Pa ra que uma moda literária seja aceita, é
preciso que ela responda às necessidades de um determinado grupo social, de
um determinado setor de uma dada população. E ela passará em seguida ou
não de um setor a outro pelo jogo da lei da barreira e do nível, ou pelo da luta
de classes, ou pelo jogo de qualquer outra lei sociológica. Nem sempre é
possível traçar os caminhos das imitações num mapa geográfico, entretanto,
pode-se sempre tirar daí esquemas sociológicos.

A conseqüência que se extrai destas reflexões é que o problema da literatura


participante e de seu debate com a arte pura é um problema mal formulado,
pois é formulado somente no plano da propaganda política ou da propaganda
religiosa, não sendo reco-locado numa análise das sociedades globais. Nós
acabamos de dizer que os grupos que aceitam uma ou outra in fluência literária
de fora, com o risco de, naturalmente, digeri-la em seguida, de transformá-la,
tirando daí novos frutos, assim o fazem porque ela responde a suas
necessidades profundas. É o mesmo que dizer que toda escola literária,
mesmo a menos participante de todas, mesmo a da "arte pela arte" responde a
uma função social. Ela serve um grupo, pequeno ou grande, permitindo-lhe
lutar ou defender-se, "ascender" ou resistir a uma decadência. Acredi- tamos
que a introdução do método funcionalista na sociologia da literatura iria nos
evitar o erro de pensar que a arte pôde, às vezes, ser um "jogo gratuito", uma
espécie de luxo associal. Mesmo quando ela mais aparenta ser um luxo, este
luxo desempenha uma função; ele torna-se o símbolo de um status social,
status preso aos esforços dos grupos ascendentes, como caros radicalmente a
sociologia da antropologia cultural, pretendendo que num caso estamos no
domínio das inter-relações e no outro do "super-orgânico", é preciso
reintroduzir, ao contrário, a antropo- logia na sociologia; o problema da
aculturação confunde-se com a sociologia das interpenetrações de civilizações;
e não se trata aqui de uma simples mudança de palavras, mas de um espírito
novo. Pode haver, certamente, numa sociologia das profundezas, cortes ou
choques entre as camadas dos símbolos, dos valores, dos ideais, de um lado,
e as camadas das instituições, ou das bases morfológicas, de outro. No
entanto, o problema da literatura comparada deve ser colocado no terreno da
globalidade social. Só então as razões das escolhas, a mudança das modas
estrangeiras, os canais de passagem e os processos de metamorofoses se
esclarecem verdadeiramente. A literatura não paira no vazio, ela é obra de
homens que estão ligados entre si por estruturas sociais determinadas. A
literatura comparada, assim como a crítica literária e mais nada, tem a
obrigação de "reencarnar" a arte no tecido vivo das sociedades.

(1) Artigo publicado nos Cahiers Internationaux de Sociologie , no XVII, 1955

(2) BASTIDE (R.). Introduction aux recherches sur les interpénétrations de


civilisations . (Aula mimeografada do C.R.S.), e "Durkheimismo e contatos
culturais", Rev. Mexicana de Soc., X, 3, 1949.

(3) BASTIDE (R.). "Le problème noir en Amérique latine", Bul. int. des sciences
sociales , IV, 3, 1952.

(4) FREYRE (Gilberto). Sobrados e Mucambos , 2a ed., Rio de Janeiro, 1951

(5) Na sua História da Literatura Brasileira .

(6) Ver a seqüência de romances brasileiros, de Macedo a Machado de Assis.

(7) BASTIDE (R.). A Poesia afro-brasileira , São Paulo, 1944.

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