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Em finais de dezembro de 1935, Ricardo Reis chega de barco a Lisboa, vindo do Brasil
onde esteve dezasseis anos a viver. É o reencontro com a sua cidade, ficando alojado no
Hotel Bragança na Rua do Alecrim, não sabendo ainda por quanto tempo lá vai ficar. Sem
planos definidos, Ricardo Reis é uma personagem solitária que vai observando e
apreendendo a realidade da cidade, do país e do mundo, sem se envolver diretamente,
antes colocando-se de fora.
No entanto, o cemitério dos Prazeres onde está sepultado Fernando Pessoa, falecido em 30
de Novembro de 1935, é o primeiro local que Ricardo Reis visita mal chega a Lisboa. No
primeiro dia do ano de 1936, quando a euforia do novo ano é vivida lá fora e Ricardo Reis já
se recolheu ao seu quarto no hotel Bragança, Fernando Pessoa (ou o seu fantasma) visita-o
pela primeira vez e avisa-o de que só poderão ter mais oito meses para se encontrarem e
explica que tal como quando estamos no ventre das nossas mães não somos ainda vistos,
mas todos os dias elas pensam em nós, após a morte cada dia vamos sendo esquecidos
um pouco “salvo casos excepcionais nove meses é quanto basta para o total olvido”.
Lisboa, a cidade de Pessoa, a cidade onde Ricardo Reis veio para morrer, é uma cidade
cinzenta e triste em que a chuva cai impiedosa. O Carnaval também é molhado e sem
graça. No Verão, o calor é sufocante. A condizer com o ambiente de suspeição e
desconfiança do Estado Novo, a cidade é mesquinha, coscuvilhheira, intromete-se na vida
dos outros. Seja primeiro no hotel Bragança, ou mais tarde quando Ricardo Reis aluga um
andar na Rua de Santa Catarina, as vizinhas espreitam, conjeturam, mexericam,
imiscuem-se. Até para os dois velhos que se sentam junto à estátua do Adamastor, aquele
novo morador de Santa Catarina não deixa de ser um motivo de interesse para matar as
horas de ócio e de conversa. Felizmente para Ricardo Reis, daquele segundo andar há uma
vista deslumbrante para o Tejo.
Em Espanha, depois da vitória das esquerdas nas eleições, é para Lisboa que fogem e se
refugiam os detentores de riquezas, aguardando a reviravolta que não tardará com o golpe
fascista liderado por Franco. Na Alemanha e na Itália, os ditadores lançam os seus
instrumentos de propaganda e preparam os seus seguidores para um dos períodos mais
negros da história da humanidade. No Brasil o comunista Luís Carlos Prestes é preso. As
notícias dos jornais portugueses dão conta de que no estrangeiro Portugal é visto como o
país que finalmente vive um período de paz e prosperidade.
E agora, as duas personagens femininas que se relacionam com Ricardo Reis. Lídia – a
musa das Odes de Ricardo Reis – e Marcenda são duas personagens centrais nesta obra e
neste período da vida de Ricardo Reis. Como é apanágio de Saramago, as suas heroínas
são sempre mulheres fortes e decididas. Lídia, empregada no hotel onde Ricardo Reis vai
viver os primeiros tempos após a sua chegada a Lisboa, é senhora de si, apaixona-se pelo
doutor Ricardo Reis mesmo sabendo das diferenças sociais que a impedem de poder ter
uma vida social sem ambiguidades com aquele com quem se relaciona sexualmente.
Marcenda, a jovem hóspede do hotel que todos os meses vem com o pai para uma consulta
médica, encontra em Ricardo Reis uma pessoa mais velha que a trata como uma adulta e
não como uma criança a quem se escondem verdades dolorosas.
O romance irá apresentar o panorama político da maior parte dos principais países
envolvidos nestas crises – que culminarão com a eclosão da Segunda Guerra Mundial – em
especial através das notícias dos jornais portugueses que serão lidas pelo protagonista,
Ricardo Reis. 1936 (ano em que decorre a maior parte da ação).
Período conturbado, devido às crises de natureza política que ocorriam na Europa, em que
oscilavam tendências democráticas e totalitárias, estas últimas de caráter fascista.
- Portugal – Consolida-se o Estado Novo, conduzido por Salazar. É fundada a
Mocidade Portuguesa. O campo de concentração do Tarrafal entra em
funcionamento.
- Espanha – Emergem os conflitos sociais, políticos e econômicos que impulsionarão
o povo espanhol para a Guerra Civil, sob o comando do General Franco.
- Itália – Mussolini, líder fascista, ascende ao poder. Trava-se a guerra contra a
Etiópia.
- Alemanha – O poder de Hitler, que compartilha dos ideais totalitários dos nazis, é
fortalecido. Intensificam-se os ataques aos judeus.
Estrutura da obra:
Externa 19 capítulos
Estrutura circular:
Uso paródico do verso de Camões “Onde a terra se acaba e o mar começa”; viagem de
Reis para Lisboa e, depois, em direção ao cemitério dos Prazeres.
Linguagem e estilo
Tom oralizante.
Marcas de coloquialidade. Diálogo entre o narrador e o narratário. Comentários do narrador.
Estruturas morfossintáticas simples. Provérbios e expressões populares com ou sem
variações. Mistura de vários modos de relato do discurso. Coexistência de segmentos
narrativos e descritivos sem delimitação clara. Ausência de pontuação convencional: uso
exclusivo do ponto final e da vírgula, que funciona como o sinal de maior relevância, já que
marca as intervenções das personagens, o ritmo e as pausas. (É o contexto que ajuda o
leitor a perceber quando se trata de uma declaração, de uma exclamação ou de uma
interrogação). Uso de maiúscula no interior da frase.
2º documento:
Ricardo Reis:
Heterónimo de Fernando Pessoa que se autonomiza, tornando-se uma figura independente
no romance, mas mantendo as características do heterónimo pessoano (contemplativo e
distante).
O contacto com o mundo faz-se através da leitura de jornais – incapaz de compreender
cabalmente o tempo histórico e os acontecimentos políticos, Reis revela-se um espectador
da realidade ditatorial implantada no seu país (“Sábio é o que se contenta com o espetáculo
do mundo”).
Fernando Pessoa:
Motor dos acontecimentos (a sua morte desencadeia a ação).
Personagem histórica, mas com natureza fantasmagórica (que participa na ação depois de
morta), dialogando com Ricardo Reis sobre a sua vida e conduta.
Tece comentários irónicos sobre o contexto social e a postura de Ricardo Reis relativa à
vida.
Valor simbólico: “tutor de uma língua e de uma poética, resposta da modernidade
portuguesa ao mito secular camoniano, como a querer provar que, da glória passada ao
tempo presente, Portugal deixou acesa a aura de um discurso modelar para sempre relido”.
Lídia:
Personagem autêntica, real, verdadeira, que se distingue das outras personagens do
romance.
Mulher do povo, criada de hotel, humilde, torna-se amante de Ricardo Reis, vivendo de
forma completa a sua feminilidade – cede completamente ao prazer do gozo do amor.
Consciente, lúcida e crítica, questiona o contexto social e político que a rodeia e rejeita os
códigos sociais.
≠ Musa etérea e distante das odes de Ricardo Reis → Inversão de dados preexistentes na
literatura
Marcenda:
Jovem pertencente à alta sociedade, com a mão esquerda paralisada; oprimida pelo pai,
assume uma atitude passiva perante o mundo, política e afetivamente.
Encara o não comprometimento amoroso como menos doloroso – prefere não se entregar
ao gozo do amor.
Nome que apresenta semelhanças com marcescível (que murcha) e que aponta para o
caráter etéreo da personagem (“são palavras doutro mundo, doutro lugar, femininos mas de
raça gerúndia”).
Invenção do romancista → Pontos comuns com as musas etéreas e distantes das odes de
Ricardo Reis
Referências a Camões
Início da narrativa: “Aqui o mar acaba e a terra principia”
Inversão do sentido do intertexto camoniano (“Onde a terra se acaba e o mar começa” – Os
Lusíadas, Canto III), que remete para a mudança de perspetiva (viagem de regresso, virada
para a terra – ano de 1936, ditadura de Salazar).
Intertextualidade com o episódio do Adamastor (estátua do Adamastor)
Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, o privilégio das referências intertextuais cabe, é claro,
ao complexo pessoano […], mas a épica camoniana também comparece na inversão do
célebre verso do Canto III – “[…] aqui […] / onde a terra se acaba e o mar começa” – que
ilustra de forma magistral uma certa visão de Portugal enquanto cais de partida que
alimentou fantasmaticamente a glória portuguesa muito tempo depois de já ter sido
reconhecido como falacioso. […] A proposta de Saramago, num tempo em que o país se
esforçava por recordar o delírio da grandeza, tinha de forjar-se nos antípodas dessa
imagem.
Referência a figuras da poesia de Camões (ex.: Natércia)
A frase emblemática do romance, tanto no epigráfico da cena primeira – “Aqui o mar acaba
e a terra principia” […] como na variante chave de ouro da narrativa – “Aqui, onde o mar se
acabou e a terra espera.” –, marca de vez a mudança do olhar para a terra. É sintomático
que o romance abra com uma viagem de retorno a Portugal, a de Ricardo Reis, por mares
agora longamente navegados […], a bordo do Highland Brigade, um vapor inglês da Mala
Real Britânica, o que desfaz definitivamente a possibilidade de evocação das naus gloriosas
de outrora.
Capítulo a capítulo
- Cap. I
Chegada de Ricardo Reis a Lisboa no Highland Brigade.
Deambulação de táxi pela cidade.
Alojamento no Hotel Bragança.
Ricardo Reis vê Marcenda na sala de jantar do hotel.
Leitura de jornais: notícias nacionais (comemorações nas colónias) e internacionais (avanço
do fascismo).
- Cap. II
Deambulação pelas ruas da cidade: mudanças arquitetónicas.
Leitura de jornais: forma como foi noticiada a morte de Fernando Pessoa.
Ida de elétrico ao Cemitério dos Prazeres e regresso de táxi.
Primeiro encontro com Lídia, a criada do hotel.
Leitura do jornal: demissão do governo espanhol; emergência da ditadura de Mussolini em
Itália.
- Cap. III
Segundo encontro com Lídia.
Último dia do ano de 1935.
Passeio pelas ruas da cidade: passagem pelas estátuas de Eça de Queirós e de Camões.
Visão de uma cidade vigiada, oprimida e em ruína.
O bodo do Século: degradação social e autoridade policial.
Festejos de Ano Novo a que Ricardo Reis assiste na rua.
Ricardo Reis regressa ao Hotel Bragança; ao jantar, pensa em Marcenda.
Primeiro encontro com Fernando Pessoa.
- Cap. IV
Publicação pelos jornais de notícias nacionais e estrangeiras: anúncio da afirmação da força
do Estado Português aquando da futura derrocada dos grandes Estados.
Segundo encontro com Fernando Pessoa: diálogo existencial.
Ricardo Reis elogia a beleza de Lídia (primeira noite juntos).
Preconceitos de Ricardo Reis face à diferença de classe social.
- Cap. V
Ida de Ricardo Reis ao teatro.
Primeira conversa com Marcenda, no final do espetáculo.
Deambulação e observação do rio Tejo: presença militar naval.
Terceiro encontro com Fernando Pessoa: crítica de Pessoa ao envolvimento de Ricardo
Reis com Lídia devido às diferenças sociais.
Lídia e Ricardo Reis voltam a passar a noite juntos.
- Cap. VI
Leitura de jornais: avanço do nazismo na Alemanha; demissão do governo francês;
instabilidade política em Espanha.
Conversa com Marcenda na sala de estar do hotel: situação de saúde da jovem.
Troca de ideias políticas com o Dr. Sampaio, pai de Marcenda.
- Cap. VII
Referência aos antecedentes da Guerra Civil Espanhola e ao estado caótico da Europa;
política expansionista e militarista alemã; Portugal favorecido pelas colónias.
Preparação de golpe militar pelo general Franco.
Refugiados de Espanha começam a chegar a Lisboa.
Festejo do Carnaval.
- Cap. VIII
Doença de Ricardo Reis; Lídia assume o papel de enfermeira.
Ricardo Reis recebe uma contrafé.
Marcenda tem conhecimento da contrafé pelo pai.
Quarto encontro com Fernando Pessoa no Alto de Santa Catarina: diálogo sobre Lídia e
Marcenda.
Marcenda e Ricardo Reis encontram-se no mesmo local.
Acontecimentos históricos: oficiais do exército japonês querem declarar guerra à Rússia.
- Cap. IX
Ida à polícia a propósito da contrafé: clima de medo e repressão.
Interrogatório policial.
Impotência de Ricardo Reis face à situação.
Aluguer de casa no Alto de Santa Catarina.
- Cap. X
Comunicação da decisão de permanência em Portugal.
Quinto encontro com Fernando Pessoa na nova casa de Ricardo Reis.
- Cap. XI
Visita de Lídia à casa do Alto de Santa Catarina: amor sensual.
Lídia anuncia que irá visitar Ricardo Reis às sextas-feiras, dia de folga,para estar com ele e
fazer limpeza à casa.
Leitura da imprensa: títulos de carácter nacional e internacional.
Marcenda visita Ricardo Reis na sua casa.
Beijo entre Ricardo Reis e Marcenda: atração física e espiritual.
- Cap. XII
Ricardo Reis escreve uma carta a Marcenda.
Ricardo Reis começa a dar consultas, em substituição de um médico, na Praça Luís de
Camões, e escreve nova carta a Marcenda, dando conta disso.
Aclamação de Hitler na Alemanha.
Sofrimento dos portugueses: fome e privação.
Festejo da Páscoa: bodo geral pelo país oferecido pelo Governo.
Receção de carta de Marcenda.
Deambulação de elétrico até ao cemitério.
- Cap. XIII
Sexto encontro com Fernando Pessoa: conversa sobre o amor, a situação do país e a obra
Mensagem.
Visão enaltecida de Salazar, o ditador português, e propaganda política em jornais
estrangeiros.
Marcenda visita Ricardo Reis no consultório; o médico pede a jovem em casamento, mas
esta rejeita-o.
- Cap. XIV
Marcenda despede-se por carta.
Ricardo Reis vai a Fátima com a expectativa de encontrar Marcenda.
- Cap. XV
Propaganda do regime ditatorial português.
Diálogo com Lídia sobre o seu irmão Daniel.
Sétimo encontro com Fernando Pessoa.
Simulacro de ataque aéreo na capital.
- Cap. XVI
Notícias dos jornais: revoluções na Europa; sofrimento dos portugueses – fome e privação.
Lídia revela a Ricardo Reis a sua gravidez.
Oitavo encontro com Fernando Pessoa.
- Cap. XVII
Participação de Victor num filme de propaganda política, de Lopes Ribeiro.
Instabilidade política pela Europa.
Golpe militar em Espanha.
- Cap. XVIII
Ricardo Reis escuta as notícias pela rádio.
Ricardo Reis vê comício político de exaltação ao Estado Novo.
- Cap. XIX
Revolta dos Marinheiros (8 de setembro de 1936).
Cruzamento da História com a ficção: Daniel, irmão de Lídia, participa na revolta.
Ricardo Reis parte com Fernando Pessoa.
Tom oralizante
Visível, sobretudo, nos diálogos das personagens e nos comentários do narrador.
Marcado pela presença do registo informal (popular), ao nível do léxico e da sintaxe
(construção frásica).
Pontuação
Supressão de quase todos os sinais de pontuação, com exceção da vírgula e do ponto final.
Intencionalidade do uso da pontuação: incumbir o leitor da tarefa de pontuar os textos.
Resumo
Representações do século XX: o espaço da cidade, o tempo histórico e os acontecimentos
políticos.
Deambulação geográfica e viagem literária.
Representações do amor.
Intertextualidade: José Saramago, leitor de Luís de Camões, Cesário Verde e Fernando
Pessoa.
Linguagem, estilo e estrutura:
- a estrutura da obra;
- o tom oralizante e a pontuação;
- recursos expressivos: antítese, comparação, enumeração, ironia e metáfora;
- reprodução do discurso no discurso.