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O HUMANISMO CÍVICO
/.l. Os pqmórof/os
17. A obra de referência para o período permanece sendo a de Brucker. Podemos citar
ainda: C. BEC, CMíMm e <? /%femze waVTe&i Salemo, 1981, e o
trabaiho monumental de Guidi sobre o governo de Fiorença durante a República: G.
GUID1, 1? governo áte/Aa c#aà (% Hrenj&e <%e/^viwo L. S. Olschki,
1981.
18. G. BRUCKER, op. cit., 40.
tais^. Assim, se nas semanas durante as quais os "Ciompi" governaram
a cidade, 22 de julho de 1378 a 31 de agosto de 1378, assistiu-se a um
alargamento da participação popular em órgãos antes reservados aos
"grandi", durante todo esse período não se procurou mudar a forma
constitucional, mas sim tomá-la verdadeiramente democrática^. Os
oiigarcas perceberam o perigo. Se, de 1378 a 1382, um regime mais
aberto às camadas mais pobres da população governou Florença, a partir
dessa data assistiremos à consoftdàçSo do poder dos banqueiros e dos
grandes comerciantes. Querer fazer, portanto, da revolta dos "Ciompi"
uma revolução operária, como sugeriram alguns historiadores^', é esque
cer que o projeto político desses operários nunca foi além de exigir o
aumento da participação no poder dos membros das novas corporações
e dos assalariados ligados às atividades comerciais^. De uma república
marcada pelo espírito das corporações, em 1382, Florença evoluiu para
uma república aristocrática, governada por uma elite extremamente es
tável. Quando comparamos a forma do governo em 1378 com a de 1400,
verificamos que as instituições permaneceram quase inalteradas^, mas a
mentalidade daqueles que as dirigiam mudara completamente^. Mesmo
que a elite governante nem sempre se confundisse com a camada mais
rica da população, ela permanecería marcada pela origem familiar; ter
um "bom nome" era condição essencial para aqueles que aspiravam ao
poder". Diante da ameaça milanesa, a capacidade de governar a cidade
de uma maneira estávei só contribuiu para consolidar ainda mais a po
sição da aristocracia, que soube aproveitar-se da necessidade de defen
der a cidade contra o inimigo externo, para lazer do seu poder a alter-
19. Existe hoje um número significativo de livros que tratam da questão, dentre os quais
merecem destaque: N. RODOLICO, 7 CiotHpi, íA áfor&z qpenAo,
Sansoni, 1 9 7 1 ;_____________, A Pqpo/o AAnMfo, L. S. Oischkí, 1968; E. RA.VEL, íf fMMMAo
Ciompf.- 7 1 % Bonechi, 1978 ; G. Dl LEVA, 7? íMMMAo <7<?i T-Yfenze, 7 3 %
Bertani, 1972.
20. Ver o artigo de G. BRUCKER, "The Ciompi Revoiution" in N. RUBINSTEÍN, 7%oneK#ne
sftiáHes, poHAcs nwd society P? AefMisstwee T/orence, Paber and Faber, 1968.
21. Esse é o caso de Rodotico, que na sua obra tenta fazer uma ieitura marxista da
revolta, apoiando-se em uma análise muito detaihada dos fatos.
22. "The regime that ruied Florence for stx weeks (22 ju!y— 31 august) was not a
worker s repubÜc, but a govemement of an eniarged community that inciuded three new
corporations of cioth wodters, some of whom were day iaborers, and others joi^ers who
operated smaii shops where they performed some o f the steps in the cioth-making process
for the Tanaiuoii": G. BRUCKER, op. cit., 43-
23. Ver a este respeito G. GUIDI, op. cit., vol H.
24. G. BRUCKER, op. cit., 302.
25. Idem, 271.
nativa à anarquia popular que ameaçava a própria sobrevivência da re
pública^. Parece-nos, pois, que, para compreender a formação do
humanismo cívico, é necessário levar em consideração tanto o trabalho
de homens como Petrarca, que contribuíram para o ressurgimento dos
estudos dos textos clássicos, como o processo de consolidação do poder
da oligarquia, que criou as condições econômicas e políticas para que
essa nova elite cultural viesse a se interessar pela participação nas diver
sas instituições da república. Uma eüte econômica ascendente tinha
necessidade de novos valores para sustentar seu domínio político; os
humanistas, combinando o elogio dos clássicos com o de Florença, res
ponderam ao desafio, criando um movimento intelectual de grande ori
ginalidade.
33. E. GARIN, op. cit., 35. Pata um comentário sobre a idéia de autoctonia na Grécia
antiga, ver N. Loraux, íe s di4a&ewt, Editions La Découverte, 1990.
34. Ver C. SALUTATI, De AbhMíate íegMM et Afedlclna^ Valiecchi, 1947.
35. Garin chega mesmo a pensar que existe uma certa identidade entre o pensamento
de Vico e o dos humanistas sobre esse ponto., op. cit., 55.
36.C. SALUTATI, C. 89, citado por E. GARIN, op. cit., 40-41.
37. Ver a esse respeito E. GILSON, /HffiodMcdow d de AatgMsMw, J. Vrin,
1986.
38. C. SALUTATI, De et Aíed/c&Me, 169-
Salutati restaurou a confiança nas leis humanas conferindo-lhes o
estatuto de "verdade". A partir de então, a particularidade da república
não se constituía mais em seu ponto fraco, mas, ao contrário, na expres
são de sua força. Para ele, a "eternidade" das leis não advinha do fato de
que haviam sido promulgadas peio Papa ou pelo imperador, mas sim de
sua origem divina. Sendo assim, elas podiam ser válidas tanto no império
como em uma república particular. Devemos lembrar, para compreender
esse debate, que o grande problema de legitimação das repúblicas, na
época de Salutati, era ju.stamente o fato de que elas pareciam ser prisio
neiras do tempo, por não possuírem nenhum elemento de continuidade,
como as estruturas tidas como eternas: a Igreja e o Império. Mas o ob
jetivo de Salutati não era, como pode parecer, combater o Império ou o
Papado, mas afirmar a suprema dignidade da ação humana. Sua posição
seria considerada um verdadeiro paradigma pelas gerações posteriores,
que tiveram diante de si a tarefa não só de defender a república contra
os ataques da Igreja, mas, sobretudo, de elaborar uma explicação teórica
para o poder republicano que dominou Florença durante mais de duzen
tos anos.
Devemos, no entanto, retomar ainda uma vez à retórica, para com
preender o papel decisivo que desempenhou na vida intelectual e polí
tica florentina durante todo o "quattrocento". Encontramos um bom exem
plo desse emprego político da retórica na obra da Leonardo Bruni —
Dírdogn r? L%v %7g<?n'd^. Os estudos de Baron sobre essa obra
podem ser de grande utilidade, se deixarmos de lado o fato de que ele
usou suas análises para sustentar a tese da constituição do humanismo
cívico na crise dos anos 1400^. Mesmo se considerarmos que parece
exagerado tentar datar o nascimento de um movimento intelectual, como
iez Baron, não resta a menor dúvida de que a obra que vamos analisar
espelha uma mudança radical na teoria política renascentista.
Logo no com eço do diálogo, Salutati insiste, pela fala de seu perso
nagem, na importância das discussões públicas. "Não posso dizer, meus
jovens amigos, quanto prazer eu sinto em estar com vocês, que, pelos
hábitos, pelos estudos em comum, por vossa devoção a mim, me fazem
sentir um afeto muito particular. Em um só ponto, mas importantíssimo,
eu não os aprovo inteiramente: enquanto em todas as coisas que dizem
respeito aos vossos estudos eu noto que vocês se dedicam com o afinco
39- L. BRUNI, "Dialogo a Pier Paolo Vergerio" ia PTosatort íatp ii dei QíKtRrocentp.
Einaudi, 1952.
40. Todo o décimo primeiro capítulo de seu livro é dedicado a este problema; H.
BARON, op. cit., 225-244.
e a atenção necessários àqueles que querem aprender, vejo uma coisa
que deixam de iado, sem preocupar-se como convém; e esta é o hábito
de discutir".'" Mais longe ele dá um tom ainda mais incisivo às suas
críticas: "É absurdo falar consigo mesmo, examinar questões na solidão,
entre quatro paredes, e depois, no convívio com os outros homens,
caiar-se como se nada soubesse; procurar com grande esforço o que é
de pouca utilidade e abandonar de coração ligeiro o que é benéfico para
muitos"^.
A essa reprimenda, o personagem Niccoii tentará responder fazendo
apelo a três temas clássicos do humanismo horentino: o ataque contra o
pensamento medieval^, o elogio dos autores latinos^e a crítica dos três
grandes de Florença — Dante, Petrarca, Bcccaccio^. O tom empregado
na resposta é retórico, cada palavra é pesada, cada frase busca um efeito
preciso, mesmo ao preço de exageros, para convencer os interlocutores.
Essa maneira de escrever deixa visível, no entanto, o fato de que toda a
retórica da época se baseia numa imitação mais ou menos direta dos
escritos de Cícero^. No caso de Bruni, ele seguia sempre um modelo
clássico, imitando não só o latim, mas principalmente a forma dos diá
logos, apenas substituindo os personagens tradicionais pelos habitantes
de Florença^. O que é intrigante no texto que estamos analisando é que
a segunda parte do diálogo muda completamente o tom da primeira.
Niccoli, que no início havia atacado duramente Dante, chega a pedir a
Salutati para fazer seu elogio. Baron viu nessa mudança de tom o sinal
da transformação pela qual passou a cultura política florentina após o
impacto da crise dos anos 1400, que quase custou a liberdade a Florença.
De nosso lado, preferímos pensar que Bruni não faz mais do que imitar
o De Oratore de Cícero^, em que a mesma mudança de rumo parece
1.3. C o /u c c /o Sa/ufaM
52. Nós usamos aqui sobretudo as seguintes obras: C. SALUTATI, "Invettiva contro
Antonio Loschi da Vicenza" in Pmsaíori íatfn f de/ QtMMfrocenfo, Riccardo Ricciardi, 1952.
De er L. S. Olschki, 1957, De DgMM ef Vallechi,
1947, /%?ísJo&3rio, fbrzaMi, 1905, de W. Rothschild, 1914.
53- Tal é a posição de R. G. WtTT, Cb/uccfo %wd [&R/%ó%;Zg#efs; Droz, 1976.
Analisando a obra de Salutati com uma metodologia própria aos historiadores das idéias
ele afirma: "Like the traditional missive íorms in which they are expressed, the poiiticai
ideas ibund in Salutatis public ietters are oh the whole conservative and within the me
dieval framework of poiiticai ideas": op. cit., 80. Parece-nos que, se o aspecto medieval do
pensamento de Salutati é evidente, é necessário compreeender como fbi ele capaz de
apreender o movimento de mudança de uma sociedade que lentamente deixava de lado
as antigas estruturas hierárquicas
54, C. SALUTATI, De A&Mi&de et AfedicóMte, 15.
nada de novo no que se refere ás teorias medievais sobre a vontade, mas
ao associá-las ãs idéias de Cícero, Salutati chega a uma conclusão inversa
à dos pensadores medievais. Para ele, a "vida ativa é superior à "vida
contemplativa": "Que eu, ao contrário, esteja sempre imerso na ação,
atento ao fim supremo, que cada ação minha seja proveitosa para mim,
para minha família, para meus parentes, e, o que é ainda melhor, que eu
possa ser útil aos amigos e à pátria e possa viver de modo a servir à
sociedade humana com exemplos e obras"^.
Salutati evitou, no entanto, chocar-se com a tradição medieval, opondo
a ação â contemplação no sentido religioso. Ele opõe a ação à especu
lação, que ele identifica com a busca de uma ciência abstrata do ser^.
Apesar desse artifício, suas intenções são claras: trata-se de fazer o elogio
da vida em comum, da vontade livre e soberana. Desse ponto de vista,
as leis, sendo uma mistura dos atos da vontade com os mandamentos de
Deus, representam de alguma maneira a continuidade da palavra divina
na terra^. Ele seria, portanto, o único humanista a tentar explicar a su
perioridade da vida ativa sobre a vida contemplativa partindo da teoria
cristã da vontade livre. Depois dele, os pensadores florentinos veríam na
vida ativa uma parte da essência da cidade republicana, por oposição à
vida dos homens submetidos a uma tirania, em que toda a capacidade
de agir de acordo com as decisões da vontade é freada pelos atos de
violência do tirano. Salutati, ao contrário, buscava os fundamentos
ontológicos dessa "nova forma de vida". Tentava fazer coincidir uma
nova vida política com uma nova filosofia. Nesse sentido, pouco importa
que seu sistema seja no fundo contraditório; num momento de transição,
ele foi capaz de ver as opções que se apresentavam à sociedade florentina
e tentou encontrar um fundamento sólido para a forma de governo que
considerava como a mais justa: a república. O fato de que seus discípu
los não tenham sido capazes de dar continuidade a seus esforços de
caráter propriamente filosófico não nos permite concluir, como fizeram
certos intérpretes, que sua obra é uma mera cópia das filosofias medie
vais. Homem ligado aos valores cristãos, ele foi sobretudo um homem de
ação, capaz de pensar a política com extremo realismo. Uma boa ilustra
ção dessa sua capacidade de olhar a política com olhos argutos e abertos
66. "Ii Salutati dunque non rínnegava i pregi dei governo repubMtcano, ma anuneteva
anche ia iegíttimità e ia vaHditâ deila monarchia, purché i suoi rappresentant) si mostrassero
soiiecítí dei benessere pubblico e rispettasseio le teggi da essi stessi emanate". D. ROSA
op. cit., 153-
6 7 / C. SALUTATI, íp . Feg 17, c l l l r , citado por D. ROSA, op. cit., 146.
68. D. ROSA, op. cit., 154.
69- Ver E. GARIN, Sciemra e cMA? Mel .MMáycímeKfo TMliano, 8-9.
com a revolta?". Diante da ascensão da oligarquia durante o "quattrocento",
essa posição seria cada vez mais consolidada pelos discípulos de Salutati
que, menos sensíveis às lutas sociais que caracterizaram o "trecento",
pensavam apenas na consolidação do poder da nova classe dirigente?*.
Desse ponto de vista, o De ocupa um lugar natural na
evolução do pensamento de Salutati. Baseado em grande medida nos
escritos de Bartolus de Sassoferato,?^ ele surpreende apenas aos intérpre
tes que, como Baron, insistem em datar o nascimento do humanismo
cívico na crise dos primeiros anos do "quattrocento". ?s Destinado a dife
renciar o governo tirânico do monárquico, ele é o único tratado da
época a propor uma explicação elaborada da transição da república ao
império romano. O ponto de partida dessa explicação é a diferença entre
o "tyrannus e x parte exerdtii" e o "tyrannus ex defectu tituli"?^ César, ao
ocupar o poder num momento em que a paz, ou até mesmo a sobrevi
vência da república, estava ameaçada, não o fazia em contradição com
o espírito público, mas sim para salvá-lo, quando todas as instituições
republicanas se mostravam incapazes de conter o avanço da corrupção.
O gesto de César marcou o fim da república, mas não foi a causa da
perda da liberdade, devida, isso sim, às sucessivas crises pelas quais
vinha passando Roma. Salutati era capaz de pensar com realismo uma
transição que seria mais tarde o paradigma da traição ao espírito repu
blicano. Para ele, mais do que um tirano, César foi um monarca que
tentou salvar com sua autoridade uma cidade ameaçada pela violência
de suas lutas internas.?^
70. "Nietife, Aateiíí carissimí, ín un stato è piu pericoioso, piu esiziale deita discórdia
intestina, se si gíunge a))o scontro aperto ed ai sanque": Saiutati, Afísslfe, reg 17, c74 . r;
citado por D. ROSA, 155. Em um carta e!e faia dos Ciompi de uma maneira ainda mais
dura: "I Ciompi, invece, sono definiti gente viie e sórdida, povera di mezzi, infida, mobiie
ed avida di novità": cit., C. SALUTATI, Ep H 86, citado por D. ROSA, op. cit-, 133.
71. í . BRUNI, í # MMipenaale de' sMoí tcrMpi, F. Sansovino, 1561. O começo do
nono iivro ê dedicado aos Ciompi.
72. Para a obra de Bartolus de Sassoferato ver o comentários de E. KANTOROWICZ, op.
cit., 466-477. Ver também Q. SKINNER, op. cit., 62-65. Para uma edição do tratado De
fyfWMHá?, ver E. EMERTON, Rudies A? RaRaw Harvard
Universíty Press, 1926, 119 ss.
73. Baron se refere a Saiutati nestes termos: "...but we must aiso iearn to see Saiutati as
a chíld o f his own generation, stiü stronghiy medievai, stiii groping — as the younger
humanists saw him, and as Bruni sketched him in his early wrítings: an aiiy in spirit, to be
sure, but just as much a representatíve o f a past that had to be overcome tf Quattrocento
Humanism was to come into its own": op. cit., 105.
74. Idem, 161.
75. Ibidem, 163-
O pensamento de Saiutati marca, pois, a passagem das teorias polí
ticas medievais para o humanismo cívico, que está na origem do pensa
mento de Maquiavel. áe está eivado de contradições, isso, longe de
desmerecê-lo, o toma mais rico para aqueles que querem compreender
a formação das teorias políticas modernas.
77. L. Bruni, "Lavdatio ..." Foi. 139, citado por H; Barort, op. cit., 200.
78. L. BRUNf, op, cit,, citado por B. GARIN, e cfMVe..., 39-
79- E. GARIN, op. cit., 41.
80. L. BRUNI, íMtráqgo Einaudi, 1976, 7.
81. Cf. o artigo de N. RUBINSTEIN, "Florentine constitutionaiism and Mediei Ascendancy
in the Fifiteenth century" in Poliftcy Aíbreoce,
ed. Rubinstein, Faber and Faber, 1968.
82. H. BARON, "The Crisis..." 207.
o humanismo cívico. A já referia a identidade entre liberdade
e igualdade como o núcleo da constituição florentina. Mas tal afirmação,
que parece carregar toda a novidade do pensamento de Bruni, não faz
mais do que reproduzir a tradição da cidade que, desde 1329, havia
criado uma lei para impedir sua transformação em uma tirania. Tal lei
partia exatamente da idéia de que a igualdade reinante em Florença não
permitia que um tirano viesse romper um equilíbrio sem o qual a iden
tidade da "polis" deixava de existir. Esse equilíbrio das várias partes
chamava-se liberdade. Podemos constatar toda a força dessa tradição
quando verificamos que a expulsão do Duque de Atenas, que pretendera
ocupar o poder de maneira tirânica, foi justificada ao Papa pelo fato de
que o Duque rompera a promessa de manter Florença "...in solito et
consueto officiorum regimine"^. Bruni, portanto, apenas dava consistên
cia ideológica a uma noção que já pertencia ao universo político florentino.
Mas, prestando uma atenção exclusiva aos dois princípios aos quais nos
referimos, ele deixava de lado as verdadeiras contradições que domina
vam a política da época. Em primeiro lugar, o fato de que a oligarquia
dominava quase inteiramente o governo tornava difícil a identificação de
Florença com uma república temperada, como pretendia Bruni. Em se
gundo lugar, o que observamos a partir da revolta dos "Ciompi" é que
o acesso aos postos públicos tomou-se cada vez mais difícil para os
operários e assalariados, fazendo com que a própria lisura dos processos
eleitorais fosse frequentemente contestada, devido à presença dos
"accopiatori", que, manipulando os votos, permitiam a algumas famílias
ocupar inteiramente o poder, sem que para tanto as instituições deves
sem mudar de forma"t Isso nos conduz a pensar que Bruni nunca foi
capaz de pensar a natureza da igualdade florentina. Em sua
tenta pensar o governo de Florença como um governo misto, meio aris
tocrático, meio democrático, mas mostra-se incapaz de abordar temas
que, no entanto, estavam intimamente ligados à problemática de que ele
trata: a igualdade diante das leis, a possibilidade para todos os cidadãos
de ocupar um cargo público, a liberdade de expressão essencial a toda
república popular. Seu mérito foi o de transformar as reivindicações
concretas dos diversos grupos políticos em um produto literário acaba
do, fazendo da questão política o núcleo das preocupações do
113. CAVALCANTI, Zsforie III, XXV, citado por C. VARESE, op. cit., 117.
114. J. G. A. POCOK, op. cit., 93.
todos toma-se lei. Antecipando o tema hobbesiano do "estado de natu
reza", Cavalcanti chega a outras conclusões. Diante do caos representado
pela "fortuna", somente a "virtü", compreendida em seu sentido republi
cano, pode nos salvar. Em uma monarquia, os homens estão isolados e
são incapazes de reagir aos golpes da "fortuna". Totalmente impotentes
transformam-se em bestas sem capacidade de ação e sem razão. Explora-
-se, assim, um tema que mais tarde terá grande importância na obra de
Maquiavel — a impotência dos homens como fruto de sua própria con
dição, e não como produto exclusivo da "fortuna".
"...não acusando tanto a mobilidade da fortuna, quanto a imobilida
de das diversas pessoas e dos homens perversos de nossa república, de
tudo concluo que a persistência e a estabilidade da condição de nossos
cidadãos foi a razão de tantas desventuras de nossa República"'
Para Cavalcanti, a "fortuna" é o espelho da irracionalidade das ações
dos cidadãos, que, vivendo a decadência das instituições democráticas
de sua cidade, são incapazes de encontrar caminhos para salvá-los do
abismo da corrupção. É verdade que o período dos Médicis foi marcado
por uma grande calma do ponto de vista das relações exteriores; o jogo
de alianças com o qual assegurou-se a posição de Florença na Itália
mostrou-se eficaz para os propósitos aos quais ele se destinava. Mas,
para os cidadãos formados pela ideologia republicana, era evidente que
algo mudara. O acesso aos postos públicos tomou-se impossível, assim
como o sonho de uma maior participação popular no governo, numa
cidade onde os mecanismos de controle dominaram a vida dos habitan
tes.
A intepretação de Cavalcanti, escapando da tentação do humanismo
metafísico, manteve viva a chama do pensamento republicano, que
conhecería no com eço do "dnqueccnto" seus grandes expoentes.
115. CAVALCANTI, op. cít., citado por C. VARESE, op. cit., 110.
medievais haviam insistido no valor da contemplação contra a vaidade
das ações levadas a cabo na "polis", num mundo que se encaminhava
para o fim previsto por Deus. Santo Tomás mostrou que a única "ação"
capaz de oferecer alguma coisa para os homens é a contemplação, na
ausência dela somos jogados no caos e na incerteza, onde a verdade não
tem a menor chance de aparecer"**. Saiutati já havia sentido que a ver
dadeira ruptura com o pensamento escolástico se dava peia opção por
uma "vida ativa". Para um grego, a vida na "polis" e a busca da verdade
não eram opostas, o sábio era necessariamente um cidadão, e sua pes
quisa, mesmo a mais abstrata, tinha sempre algum valor para a vida
pública. Para um homem da Renascença, essa simples constatação repre
sentava já uma revolução. Saiutad íbi o primeiro a perceber a radicalidade
de suas teorias, mas recuou diante da grandeza do passo, propondo a
conciliação entre as duas vias através de uma teoria mais elaborada da
contemplação"?. Uma geração mais tarde, essa preocupação com o equi
líbrio das duas tradições havia desaparecido. Os homens de letras do
"quattrocento" aceitaram abertamente a oposição entre a vida ativa e a
vida contemplativa, fundando na diferença entre as duas as bases de
uma nova teoria da cidadania. Para eles, pela ação, o homem realiza a
universalidade de sua condição; sua obra, encamando-se no mundo, cria
a única dimensão em que podemos esperar descobrir uma figutaçâo
concreta da essência humana'"*. A república é essa obra por excelência;
ela representa o momento de cruzamento de todas as particularidades,
num jogo que, criando o universal, não destrói o sentido propriamente
individual da ação.
Bnini, em sua apresentação da Pof#tc<z de Aristóteles, nos fala assim
dessa criação: "...entre os conteúdos morais com os quais se forma e se
educa a vida humana, tenho na mais alta conta aqueles que concernem
aos estados e seus governos, pois tal disciplina tende a trazer a felicidade
a todos os homens. E se já é uma coisa ótima trazer a felicidade a um
só homem, não será ainda mais belo conquistá-la para todo um Esta
do?'""
146. "Haec omnia accepta referimos a sola libertate, cutus diutioa ingenia nostra virtutis
cutum erexit atque excita vir": POGGIO BRACCIOLINÍ, Opera, Basiléia, 1538, 337.
147. L. BRUNI, Laudafio, citado por E. GARIN, Scienza et ..., p. 15.
148. D. ROSA, op. cit., 121.
veda ser conduzido a temas mais próximos da metafísica clássica, em
contradição com o espírito dos primeiros tempos'^.
Entretanto, a interdependência entre liberdade e "virtü" conduziu os
humanistas a uma conclusão ainda mais interessante do que aquelas às
quais nos referimos. Bruni afirma, em sua que a potência eco
nômica de um Estado depende de sua forma constitucional. Florença,
segundo ele, pôde desenvolver-se ao longo do século precedente exclu
sivamente por causa de sua constituição livre. Dando aos cidadãos a
possibilidade de usar todas suas aptidões, a cidade havia criado as con
dições para o surgimento de uma cultura sofisticada e uma economia
potente. Bruni interpretava as relações entre os indivíduos e a cidade de
uma forma simples e direta. A "vírtu" não era para ele um valor ético,
mais ou menos abstrato; era um fator objetivo, capaz de dar nascimento
a uma cultura superior. Mas essa cultura era, por outro lado, uma flor
frágil, que só podia aparecer nas cidades livres.
Resta-nos ainda estudar as relações dos humanistas com sua época.
Alguns autores tentaram elucidar a questão partindo da constatação de
que quase todos eles pertenciam às classes dominantes, tendo um vín
culo orgânico com o poder. Tal foi o caso de Lauro Martines que, em seu
livro — 72?e 1%?%% o/* — reuniu um
material impressionante para determinar a origem social dos humanistas.
Para ele, mesmo autores como Bruni, que não pertenciam ás grandes
famílias florentinas, tiveram primeiro de se integrar ao mundo dos
oligarcas, para depois pretenderem ocupar um cargo importante na
máquina governamental^*. O humanismo seria, pois, a expressão dos
desejos da burguesia, numa sociedade que mascarava seu caráter
oligárquico. As classes dominantes retiravam duas vantagens dessa situa
ção; em primeiro lugar, o governo parecia ser mais representativo do
que realm ente era, em segundo lugar, ele aproveitava essa
representativídade fictícia para usar o apoio das classes que, mesmo não
participando efetivamente do poder, tinham a ilusão de fazê-lo. Aos
olhos desse autor o humanismo cívico não passou de uma ideologia
capaz de dar unidade ã cidade de Florença, não tendo dado qualquer
contribuição efetiva para a transformação das mentalidades políticas da
época.
Na nossa opinião, a tese de Lauro Martines expõe-nos de maneira
detalhada um aspecto importante da vida florentina do começo do
Peto que discutimos até aqui, poderiamos ser levados a pensar que
o humanismo cívico teria sido a principal fonte teórica dos republicanos
do "cinquecento", hipótese aparentemente confirmada pelo próprio
Maquiavel, que cita com frequência autores como BrunP. No entanto,
seria ingênuo acreditar que o estudo da questão da liberdade na obra de
Maquiavel podería reduzir-se à análise de suas relações com o passado,
por mais rico que ele tenha sido. O humanismo cívico está, com toda
evidência, na origem da ideologia que dominou a cena política ao longo
dos primeiros anos do "cinquecento", mas ele só pôde ser tão influente
porque a profunda crise institucional atravessada por Florença pôs em
xeque vários pressupostos do pensamento humanista. Foi a vontade de
reconstruir a República, expressão da grandeza florentina, que levou os
homens políticos a utilizar não somente as idéias de seus antecessores
imediatos, mas, sobretudo, a herança da Antiguidade na obra de recons
trução das instituições,
A queda dos Médicis em 1494, provocada pela invasão de Carlos VHI
e pela política inconsistente de Piero di Lorenzo di Mediei, ocasionou
grandes mudanças na vida da cidade^. Os aristocratas acreditaram, num
primeiro momento, que seria possível criar uma nova forma de governo
que, mantendo o controle da máquina de governo em suas mãos, obri
gasse aqueles que haviam participado do regime anterior a deixar a
cidade, repetindo uma velha tradição florentina de exilar os vencidos. A
pressão popular que se seguiu às primeiras mudanças, reivindicando
3- Idem, 152.
4. Ibjdem, 169.
ha do período^, a questão da liberdade na obra de Maquiavel ficaria
incompreensível se não dedicássemos algumas linhas ao pensamento de
Savonarola e ao funcionamento de algumas institutiçôes, entre as quais
as "pratíche", momentos fundamentais das transformações pelas quais
passou a cidade e que deixaram marcas na obra de nosso autor.
/.l, Scfyonoro/a
9. Idem, 300.
10. Ibidem, 258.
11. Ibidem, 258.
12. F. GILBERT, "La Costituzione Veneziana nel pensiero poiitico florentino" in
<? 11 Mulino, 1964, 115-167.
13- Idem, 119.
em Veneza a figura perfeita de uma república aristocrática, que garantia
o poder aos membros mais preparados da cidade. Do outro lado do
espectro político, uma parcela significativa das "classes médias" pensava
em Veneza como o exemplo de uma república democrática, que alargara
a base do poder, de maneira a incluir todos os cidadãos aptos a exercer
uma função governamental qualquer^.
Em segundo lugar, a defesa savonaroliana da paz parece recobrir um
desejo largamente compartilhado pelos florentinos. De fato, em seu ser
mão do dia 14 de dezembro, Savonaroia não se contentou em se declarar
a favor de uma revisão da constituição; declarou-se favorável a uma
anistia geral para assegurar "a paz universal"^. Ora, uma anistia repre
sentava, para os aristocratas, garantia de impunidade e, sobretudo, lhes
assegurava a participação no novo governo, ainda que alguns se tives
sem comprometido com os Médicis. Liberados do perigo de represália,
corrente na história política florentina, os "ottimati" consideravam esse
aceno de paz como um reforço em sua luta para ocupar os postos mais
importantes do novo govemo. É claro que, mostrando que o pensamen
to de Savonaroia encontrava em Florença um solo fértil para se desen
volver, não acreditamos dar a chave para a compreensão de sua influên
cia. Profeta de uma cidade dividida por conflitos internos violentos,
pensador dogmático e ao mesmo tempo em perfeita consonância com
seu tempo, ele foi sem dúvida a personagem mais importante dos pri
meiros anos da nova República Florentina. Vendo em Florença uma
nova Jerusalém, não mediu esforços para realizar sua profecia; homem
religioso, transformou-se em homem político, tal era o seu desejo de
realizar seu sonho. Essa vontade férrea não deixou de encontrar ecos
numa cidade que em pouco tempo ficou dividida entre os que acredita
vam no "frate", os "frateschi", e os que o detestavam, os "arrabbiati".
Numa época de crise, Savonaroia foi a "consciência moral da cidade" e
um guia para as tarefas mais cotidianas da existência. Seu fim trágico
demonstrou, porém, que se equivocara quanto à força de um inimigo
que tentou combater com as palavras.
Um estudo do pensamento savonaroliano, na perspectiva que é a
nossa, não podería contentar-se com a análise de seus aspectos políticos,
sem levar em conta o contexto de uma vida dominada pela paixão re
ligiosa e pela vontade de criar um mundo novo, partindo de uma comu
nidade concreta. Assim, suas teses sobre a liberdade serão aqui aborda-
f.2 . "Prof/che"
41. Ver F. GILBERT, "Le idee politiche a Firenxc a! tempo di Savonarola e Sodeiini" in
e I/ swo op. cit.
42. A. ANZILOTTI, op. cit., 85ss.
43. F. Gilbert nos mostra que já em 1502 os "Orti Oricellari* tinham um papel impor
tante na formação das idéias poiitícas florentinas e, portanto, eram capazes de influenciar
a vida política: op. cit., 15-66.
44. Idem, 79.
45. Ibidem, 74-75.
Do ponto de vista de nossa pesquisa, no entanto, essa "deformação"
é positiva, pois permite-nos compreender melhor o meio intelectual no
qual o pensamento de Maquiavel se formou e, sobretudo, a revolução
que operou'"'. Nesse sentido, as "pratiche" nos ajudam a compreender
em que contexto aparece a idéia de liberdade e de que forma ela influ
enciou o comportamento dos homens políticos, num movimento que
terminou por conduzir a uma crise do próprio pensamento político.
* * *
//.V. Maqu/aye//?epub#ccrno
82. "Car, si !es criminefs répugnent â ce genre dlntimité, Machiavei, iui, ia recherche
impatiemment, du moins avec certains de ses lecteurs, ceux qu'ii appeie les jeunes. í a
dissimuiation qu'il pratique est un instrument subtil de conuption ou de seduction". L.
STRAUSS, op. cit., 78.
83. N. RUBINSTEIN, "Machiavelii and the world of Fiorentine Foiitics" in M. P. GILMORE
(ed.), ou G. C Sansoni, 1972.
vimento ao conhecimento da época e do público ao qual a obra se
destina. Nesse sentido, é preciso lembrar, por exem plo, que os
frequentadores dos "orti oricellan", embora fossem na maioria republica
nos, não o eram no mesmo sentido, e misturavam-se com partidários de
uma solução aristocrática para a crise florentina. Além do mais, entre um
partidário de Savonarola e os partidários de uma república popular exis
tiam quase tantas diferenças quanto entre um republicano e um monar-
quista. Maquiavel, escolhendo um caminho prudente para abrir os
ZXsroKH, parece, ao mesmo tempo, querer dar um significado político a
seus escritos diferente daquele de toda obra de filosofia, pois não des
preza o fato de que a eficácia da sedução está em fazer crer ao leitor que
fala-se a linguagem dos homens de sua época.
Se a prudência é a marca da dedicatória, a audácia será a do
"proêmio". Logo nas primeiras linhas, Maquiavel anuncia a intenção de
se distanciar radicalmente da tradição, explorando vias desconhecidas
pelos autores do passado: "Deliberei entrar por uma via, a qual não foi
por ninguém percorrida..."^ E sua audácia vai ainda mais longe, pois ele
não hesita em se comparar aos navegadores que em sua época desco
briam o novo mundo, fazendo da teoria política o correspondente das
fabulosas viagens que mudavam a face da terra. A ousadia dessas pala
vras pode levar-nos a acreditar que a hipótese da sedução, que acaba
mos de aventar, não seria nada mais do que a fantasia de um intérprete
desejoso de sotopor a obra de Maquiavel ao signo das teorias contem
porâneas do desejo. Mas o próprio Maquiavel, que parecia querer sur
preender seus leitores, opera uma reviravolta no texto, comparando seu
projeto de exploração à imitação da história antiga e ao aprendizado da
antiga virtude. Dizendo-se inovador, ele repete um gesto retórico abso
lutamente previsível para um homem da Renascença.
Mas uma observação atenta do texto revela que aquilo que para os
humanistas era uma possibilidade — a imitação dos antigos — , constitui-
-se para Maquiavel num problema. Os homens, apesar do fato de que a
natureza não muda, são incapazes de repetir as ações do passado, con
tentando-se com a contemplação de sua beleza, mas sem saber utilizar
sua lição na vida cotidiana^. Maquiavel nos diz não somente que tal uso
é necessário, mas que esse é o único meio de se escapar ao imobilismo
dos políticos de sua época. Dando a impressão de permanecer fiel ao
universo ideológico de seu tempo, convida-nos a abandoná-lo, para
84. N. MACHtAVELLI, "Discorsi sopra ia prima década di Títo LMo* m Q&efS; Riccardo
Ricciardí, 1954. A partir de agora, todas as citações de Maquiavel referem-se a essa edição.
85. C. LEFORT, op. cit., 462^63.
compreendê-lo. A leitura do "procmio" deixa o leitor diante de uma
dupla imagem. De um lado, a de um Maquiavel herdeiro da tradição
humanista e ligado a seus temas mais difundidos, como o da imitação da
história. De outro, a de um Maquiavel inovador, que, apesar das palavras
conciliadoras, se deixa trair no momento de concluir, quando diz dos
homens de seu tempo: "Apesar disso, ao ordenar as repúblicas, ao manter
os Estados, ao governar os reinos, ao organizar a milícia e administrar a
guerra, ao julgar os súditos, ao expandir o império, não se encontra nem
príncipe, nem república, que recorra aos exemplos dos antigos"**.
É com a surpresa e a ambiguidade dos primeiros movimentos do
texto que nos preparamos para enfrentar o pensamento sinuoso de
Maquiavel.
89. tbidem, I, 1.
conceito de liberdade ou se se trata apenas de algumas considerações
preliminares. Ele parece convencido de que Maquiavel nos dá a conhe
cer, já no primeiro capítulo, a essência de seu pensamento sobre a liber
dade e que o restante da obra se desenvolverá em tomo dessas primeiras
considerações^. De nossa parte, acreditamos que buscar no começo do
livro a definição da liberdade serve muito mais para responder a certas
exigências de uma história tradicional das idéias, do que para compre
ender o sentido da obra. Parece-nos que devemos tomar as primeiras
afirmações do texto muito mais como um convite à exploração de seus
mistérios, do que como uma exposição sistemática de seus principais
conceitos.
* * *
90. "What he cleady has in mínd is Chat they are ftee in lhe sense of being unobstructed
in the pursuit of whatever ends they may choose to set themseives. As he puts il in the
opening chapter of book i, to be a free man is to be in a posítíon to act 'without depending
on others'(...) It is important to underline this point, if onty because it contradiots two
claitns oAen advanced by commentators on the Z%*coMfyef, One is that Machiavefií mtroduces
the key term íibertà into his discussion without taking the trouble to define it'; so that the
sense o f the word on)y emerges gtadually in the course o f the argument". Q. SKINNER,
"The Idea of Negative Liberty: Phiiosophicat and Historical Perspectives" in on %?<?
Cambridge University Press, 1984
91. MACHIAVELLI, Díycoryí, I, 2.
(io das cidades que não nasceram livres, Maquiavel toma Florença como
o modelo das cidades que tentaram, ao longo da história, mudar a forma
defeituosa de sua constituição. Qual é o lugar de um tal exemplo num
texto que parecia destinado a analisar apenas as repúblicas bem consti
tuídas? Poderiamos supor que o autor, voltando ao tema da fundação,
queria apenas iludir o leitor, invocando uma questão muito discutida na
época; mas a continuação do capítulo não nos autoriza a pensar assim.
Depois de falar brevemente de Florença, Maquiavel passa a descrever o
ciclo de transformações das constituições, ou, se preferirmos uma noção
moderna, a expor sua teoria da história. Tal exposição era na verdade
uma reprodução parcial das teorias desenvolvidas por Políbio em suas
Msfón'<23?2 e mostra que Maquiavel aderia à doutrina que fazia da repú
blica mista a melhor forma de governo. Deixando de lado, por agora, a
discussão dessa teoria, podemos perceber que Maquiavel recorre â His
tória como a fonte mais segura para se conhecer a política. No momento
em que volta a falar de Roma, ele é capaz de expor não somente as
razões de seu processo de transformação, mas, principalmente, a corre
ção de sua escolha por uma forma mista de governo. A primeira conclu
são à qual chegamos é que, para se conquistar a liberdade, é preciso
adotar a forma mista de governo.
Uma nuança do texto ajuda-nos a compreender o sentido dessa
afirmação. Se antes havíamos prestado atenção apenas às instituições
primeiras, ou ao momento da fundação, era na pressuposição de que
somente elas determinam a essência de uma república. O caso romano,
porém, evidencia que os defeitos originais são também extremamente
importantes. Entre as cidades existem aquelas que, mesmo desejando se
transformar, são incapazes de atingir a perfeição — "... e essa é, além do
mais, de tal forma distanciada que com suas instituições viciadas está de
todo fora do bom caminho que podería conduzi-la ao verdadeiro e perfeito
f i m . . . — , mas existem também aquelas que, como Roma, tinham ins
tituições que, apesar de imperfeitas, puderam ser modificadas e a con
duziram à perfeição. Vemos, assim, que a república mista, que parece ser
a forma institucional da liberdade, não é fruto apenas de uma fundação
perfeita, mas pode resultar de um processo feliz de transformação. Para
que tal transformação seja possível, é preciso o concurso de uma série
de acidentes, entre os quais a existência de instituições não muito distan
tes das de uma verdadeira república: "Porque Rômulo e todos os outros
94. Idem, I, 2.
95. M. COLISH, op. dt., 337.
% . G. CADONI, op. cit., 106.
o que não podería ser alcançado pelo simples enunciado de algum tema
típico do humanismo. O tema da "maldade natural dos homens" parece
propício para o efeito desejado. Tratado tanto por autores latinos como
por autores cristãos como Santo Agostinho^, ele não fora, no entanto,
constante nos escritores florentinos do "quattrocento". Bruni fazia refe
rência em seu De Aft/ihát a certas teorias medievais, mas não podemos
dizer que ocupassem um lugar importante em seu pensamento político.
No tempo de Maquiavel, porém, a importância dessa idéia era maior
principalmente devido à influência de Savonarola, que responsabilizava
a natureza humana pelos seguidos fracassos dos florentinos em restaurar
a paz civil. Os debates sobre a melhor forma de governo, exigindo cada
vez mais uma forte dose de realismo, podiam ser saciados pela evocação
de leis humanas absolutamente implacáveis e pelo exame rigoroso mes
mo dos tempos mais felizes da república romana. Assim, Maquiavel evoca
o penodo subsequente â expulsão dos Tarquínios de Roma, para mostrar
que, mesmo nas situações mais felizes, os homens não deixam de se
comportar sob o jugo da necessidade. E quando descreve o comporta
mento dos nobres em relação ao povo, é também nesse sentido que ele
se exprime: "...que demonstra o que dissemos acima: que os homens
jamais fazem o bem, senão pressionados pela necessidade"^.
Apesar da força dos argumentos empregados, a solução apresentada
por Maquiavel sugere que sua intenção não era reafirmar a validade das
teses medievais. Depois de ter dito que os homens são maus por natu
reza, conclui: "No entanto, diz-se que a fome e a pobreza fazem os
homens industriosos, e as leis os fazem bons"^. Ora, se a maldade dos
homens é um dado universal da condição humana, como podemos es
perar que as leis, produto do espírito de seres defeituosos, possam cor
rigir os defeitos da natureza, a ponto de fazer, do mal, o bem? Em Santo
Agostinho, por exemplo, elas põem um freio à violência natural dos
homens, mas efetivam-se apenas depois que a graça os liberou de sua
condição de pecadores. Além do mais, as verdadeiras leis não são as da
cidade terrestre, mas aquelas que atingimos pela contemplação. Mesmo
considerando que possam trazer consequências práticas para a ação, elas
permanecem ligadas â sua concepção da verdade, que nada tem a ver
com a positividade das leis de Roma"**.
107. idetn, I, 4.
108. J. G. A. POCOCK, op. cit., 194.
nos parece que o intérprete tenha sido sensível à verdadeira revolução
provocada pelo capítulo em questão. De fato, Maquiavel fala da "fortu
na" no segundo capítulo como um dos agentes da construção de Roma;
porém a existência dos conflitos na origem de suas instituições mostra
exatamente a insuficiência de se pensar sua criação simplesmente levan
do-se em consideração as obras do acaso. As leis que visam regular os
conflitos, longe de se contentarem em aprisionar a irracionalidade dos
desejos humanos em uma camisa de força que impediría sua manifesta
ção, criam o espaço no qual eles adquirem uma nova forma de
racionalidade. Como nos mostra Claude Lefort, as leis "nascem da
desmesura do desejo de liberdade, o qual está relacionado com o apetite
dos oprimidos — que procuram um desaguadouro para sua ambição — ,
mas que não podem ser reduzidos a ele, pois, rigorosamente falando, ele
não tem objeto, é pura negatividade, recusa da opressão""^.
Se considerarmos ainda o conjunto da obra maquiaveliana, veremos
que o quarto capítulo dos DtscorM encontra ecos em quase todos os seus
escritos sobre a liberdade. Para tomarmos apenas um exemplo, basta
lembrar o elogio que Maquiavel faz das cidades alemãs em seu
dc/fg <XMC
Nesse texto, aprendemos que a idéia de conflito não deve ser enten
dida como uma espécie de lei matemática, que opera sempre do mesmo
jeito. Na Suíça, os conflitos também originaram a liberdade, mas, pela
situação especial desse país e pela história desse povo, fizeram das
pequenas repúblicas um conjunto vulnerável aos ataques das grandes
potências"". Fazendo o elogio da "libera liberta", Maquiavel não deixa de
observar que a desunião de tipo feudal era capaz de fazer surgir um
povo livre, mas não uma república potente. Dizer, portanto, que os
conflitos estão na origem da liberdade romana não significa que possa
mos reduzi-los a uma espécie de entidade metafísica, que tomaria o
lugar da idéia de origem empregada pelos humanistas. Os tumultos ro
manos não são tumultos abstratos, uma simples categoria analítica, mas
o retrato vivo da história da constituição de uma sociedade livre.
O trigésimo sétimo capítulo, nuançando as conclusões do quarto
capítulo, nos mostra que os mesmos conflitos que fizeram de Roma uma
cidade livre a fizeram perder a liberdade. Maquiavel analisa então as
lutas que se seguiram à promulgação da lei agrária. De um lado, os
nobres não aceitaram a perda de suas propriedades; de outro, o povo
insistiu em seu direito de posse dos novos territórios. O esquema segui-
118. MACHIAVEUJ, I, 5.
119. Idem, I, 5.
120. C. LEFORT, op. cit., 478.
co da época. Na verdade, a volta ao tema das repúblicas mistas tinha por
objetivo confrontar a radicalidade das teses do quarto capítulo com aquelas
tradicionais, que faziam da estabilidade o parâmetro maior para o julga
mento das formas de governo. Depois de ter chocado o leitor por meio
de proposições revolucionárias, Maquiavel efetua um movimento surpre
endente, questionando suas próprias proposições:
"Ora, tendo aqueles tumultos durado até o tempo dos Gracos, eles
foram a razão da ruína do 'vivere libero'. Alguns poderíam desejar que
Roma tivesse feito os mesmos progressos, sem que nela tivessem exis
tido tantas inimizades. Pareceu-me, portanto, que era uma coisa digna de
consideração ver se Roma podería ter-se ordenado de forma a não deixar
espaço para as controvérsias"'^'.
A importância do confronto entre o exemplo romano e o das outras
repúblicas pode ser explicado se lembrarmos que o leitor ao qual se
dirige Maquiavel vivia, desde a época de Savonarola, sob o impacto do
mito de Veneza. Assim, é a essa república que ele dirige seus primeiros
ataques, mostrando que seu sucesso é o resultado de uma posição geo
gráfica única e do fato de que sua nobreza foi constituída por todos os
seus primeiros habitantes, não havendo motivos para que os conflitos
entre os grupos marcassem desde o início sua história. "11 caso piu che
la prudenza", diz Maquiavel, contribuiu para a longa duração de Veneza.
Quanto a Esparta, assegurando a igualdade das fortunas e impedindo a
entrada de estrangeiros, ela pôde se manter igual a si mesma por muitos
séculos. Nos dois casos, foram as dimensões reduzidas do Estado que
garantiram uma solução durável para o conflito de classes.
Para fazer de Roma uma república pacífica, era preciso ou bem não
usar o povo no exército, ou bem evitar a entrada dos estrangeiros.
Maquiavel observa com ironia: "De modo que, querendo acabar com a
razão dos tumultos, acabava-se ao mesmo tempo com a razão de seu
império"'^. Chegamos assim a uma conclusão fundamental: a identidade
entre a liberdade e a potência'^. Essa nova conclusão completa a ruptura
radical com a tradição que se anunciava no quarto capítulo. Os humanistas
haviam salientado os laços existentes entre a liberdade e a riqueza de
Florença, mas jamais foram capazes de elucidar o mistério da força ro-
135- C. Lefbrt observou o caráter "clássico" desse capítuio: op. cit., 491.
136. "H che si vide poi quando Roma divenne libera per ia cacciata de' Tarquinii, dove
da' Rotnani non fu innovato aicun ordini deüo antico, se non che in luogo duno Re
perpetuo fbssero due Consoii annuati. It che testifica tutti gii ordini primi di quelia città
essere stati piü conformi a uno vivem civiie e iibero che ad uno assoiuto e tirannico".
MACHIAVELM, i, 9.
Retoma, dessa maneira, ao tema da liberdade "em germe", mostran
do que Roma pôde escapar aos perigos da monarquia porque seu come
ço foi bom e continha a "possibilidade" da potência.
Alguns intérpretes insistiram nesse ponto para mostrar que a identi
ficação da liberdade com a república mista não é inteiramente correta^?.
Se efetivamente não podemos considerar as teorias maquiavelianas como
resultantes de uma concepção juddico-formal do "vivere libero", não nos
parece que o método típico de alguns historiadores das idéias, que con
siste em isolar algumas citações de um autor e fazer delas uma teoria à
parte, seja o mais adequado para compreender o pensamento de nosso
'^ ' autor. É preciso observar que Maquiavel repete, no nono e no décimo
capítulo, a mesma estratégia de sedução do leitor que utilizara antes.
Resguardando-se atrás de formulas tradicionais, avança cautelosamente
pelas novas terras que descobre, sem que para tanto seja obrigado a
afrontar a tradição a cada afirmação de sua obra. O regime misto é,
assim, a expressão formal mais adequada para a liberdade, mesmo que
sejamos pouco a pouco conduzidos a suspeitar que essa afirmação seja
insuficiente para a compreensão plena do fenômeno da liberdade.
Nos capítulos seguintes, nosso autor completa o que Gennaro Sasso
acreditou ser o núcleo de seu pensamento*^. Em primeiro lugar, ele
expõe suas teorias sobre a religião, deixando de lado a timidez dos
humanistas e expondo o problema fundamentalmente em termos de
relações de força entre o clero e o Estado. Mais uma vez, pelo atalho da
questão da fundação, Maquiavel reflete sobre o papel da religião na
consolidação da vida institucional de um povo. As crenças religiosas são
para ele o instrumento capaz de evitar que o terror que acompanha o
primeiro gesto do fundador se desvaneça no ar, sob o efeito devastador
do tempo. Ao "bom legislador", fundador de "belas repúblicas", ele opõe
o fundador das religiões, que protegido por um suposto diálogo com
Deus, afronta a batalha contra a degeneração. Maquiavel não diz que
todas as religiões são falsas, meros produtos da imaginação de legislado
res hábeis. Diz apenas que não se pode desprezar o conteúdo cívico das
religiões, se não quisermos abdicar da compreensão de uma parte im
portante de sua essência. "E verdadeiramente jamais existiu um criador
de leis extraordinárias que não tenha recorrido a Deus, porque de outra
maneira não teria sido aceito. Com efeito, muitos são os princípios bons
137. Guillemaín diz: "Ü ne iattache pas ã un régime déterminé encore que sa íorme !a
plus accomptie se presente sous ta rÉpubtique", op. cit., 321.
138. "Con i capito!i compresi fra ií primo e it diciottesimo, !a teoria poÜtica dei ZMscotsi
ouò dirsi sostanxiabnente deÜneata ed esaurita": G. SASSO, op. cit., 519-
conhecidos petos legisladores prudentes, que não possuem em si razão
evidente para serem aceitos pelos homens"*^.
A problemática da religião destrói a imagem de uma fundação tran
quila, que as análises anteriores sugeriram, levando-nos a um universo
cheio de perigos e incertezas***. Não se trata de desqualificar a figura do
legislador, mas de confrontar sua obra com a ação do tempo. Maquiavel
fbrça-nos, dessa maneira, a refletir sobre a conservação das formas ins
tituídas abrindo as portas para a discussão do tema da corrupção. Vamos
deixar de lado, por enquanto, essa discussão, mas é importante notar
que sua introdução marca uma reviravolta no texto*'*'. O aparecimento
da figura do tempo na reflexão política nos obriga a pensar na resistência
à degenerescência como uma das tarefas mais difíceis da ação humana.
A corrupção não é o resultado de uma má fundação, mas um processo,
ao longo do qual os homens se mostram incapazes de reencontrar o
sentido do gesto fundador. O estudo da liberdade em suas formas con
cretas de existência implica o conhecimento dos meios práticos de evitar
sua perda. Para tanto, não basta um bom corpo de leis, pois elas só
podem ser eficazes quando se mostram capazes de traduzir no plano
jurídico as mutações constantes que afetam as sociedades humanas.
Os ecos dessa discussão são sentidos em todo os TMscotyf, mas é
no capítulo vinte e quatro do primeiro livro que encontramos um trata
mento paradigmático. Apesar de começar com a afirmação da importân
cia de se retornar aos princípios da cidade — "E quando essas leis
são bem observadas, uma cidade vive muito tempo, de outra maneira se
arruinará rapidamente"*^", o que ressalta na leitura do capítulo é a
necessidade de se pensar a liberdade a partir da análise da ação humana.
Antes de tudo, é preciso observar que o respeito às leis não se impõe por
razões formais, mas porque representam a expressão visível da liberda
de. Cada vez que são atacadas, é o "vivem libero" que está em perigo.
Como prova o exemplo de Manlius Capitolinus, o Estado deve proteger-
-se contra todo poder que, do interior, ameace romper o equilíbrio das
leis. Não se trata de uma guerra do Estado contra o indivíduo, mas de
evitar o mal radical em política, que é a corrupção do corpo social'^.
147. Nossas análises mostram os limites tias interpretações que, como a de GuiUemain,
querem negar a importância das leis no pensamento de Maquiavel. B. GUiLLEMAíN, op.
cit., 321: "La liberte machiavelienne est bien une liberte des citoyens dans ia cité, une
liberte civüe. Rien à voir avec ce que nous appelons Hberté politíque ou liberté civile".
elogio si Roma^s. A afirmação de suas preferências democráticas, no
entanto, deve ser considerada com prudência, pois o termo democracia
tinha pouco uso na época e certamente não correspondia à imagem que
Maquiavel tinha do modelo romano. Ao atacar Veneza ele na verdade
pensava em um regime com grande participação popular — um governo
"largo"— contra um regime aristocrático — um governo "stretto". Tanto
a teoria dos conflitos, como a dos desejos opostos que povoam as cida
des, fazem-nos acreditar que a compreensão do fenomêno da liberdade
passa pela compreensão do papel desempenhado pelo povo na vida de
uma república livre. É a essa investigação que nos dedicaremos agora.
Comecemos por uma afirmação enigmática feita no vigésimo sétimo
capítulo: "São rarissimas as vezes que os homens são inteiramente maus
ou inteiramente bons". O capítulo é dedicado ao estudo do comporta
mento do tirano de Perúgia — João Paulo Baglioni— , que, tendo tido a
oportunidade de matar o Papa, recuou diante de suas vestimentas sagra
das. Maquiavel, ao analisar sua fraqueza, volta ao tipo de homem que
caracterizara destituído de todo respeito pelas coisas humanas, para
concluir: "...os homens não sabem ser nem honrosamente maus, nem
perfeitamente bons, e como uma maldade tem em si alguma coisa de
grande ou é generosa em alguma parte, os homens não sabem praticá-
O secretário florentino conhecia o fascínio exercido pela figura do
tirano sobre os jovens de seu tempo, sobretudo depois do sucesso de
alguns de seus contemporâneos, que pareciam ter conservado o poder
pelo uso destemperado da força. Ele procura destruir o mito que se
desenvolvia, contra as aspirações republicanas, de que o uso desregrado
da força era a solução ideal para os problemas políticos. Entretanto,
repetir os ataques à tirania nada mais seria do que reafirmar um discurso
que desde a Idade Média dominava o pensamento político Rorentino.
Maquiavel escolhe uma via completamente nova, ao mostrar que não é
o mal absoluto que devia ser negado, pois ele tem um certo parentesco
com a virtude, e sim o mal banal, que, prendendo-se ao caráter exterior
da violência, é incapaz de alcançar a grandeza. Os tiranos são criticados
não pelo uso da força, mas pela mediocridade do uso que fazem dos
meios extraordinários. Mais do que nos conduzir a um debate sobre
questões éticas, em que suas afirmações seriam certamente julgadas
extremas, ele nos mostra que a compreensão do comportamento político
dos homens é a compreensão do comportamento político medíocre dos
homens.
148. O que nos opõe A M. COL1SH, que díz: "On the othef hand, MachtaveiÜ sometimes
identiRes aristocracy wíth tiberty": op. cit., 338.
149. MACHIAVELLI, ZXsco?% I, 27.
Nessa lógica, não é de se espantar que os capítulos seguintes se
dediquem ao estudo da indecisão natural dos homens e da gratidão do
povo, deixando de lado a análise das ações radicais, que revelam, â luz
da história, serem quase um mito. Maquiavel nos prepara para pensar na
defesa da liberdade como um ato que leva em conta os imperativos de
um corpo social dividido por desejos opostos. O exemplo do tirano de
Perúgia desperta-nos para as dificuldades que o ator político encontra
diante de si quando decide imprimir suas marcas no mundo. Já havíamos
visto o quanto é difícil mudar a constituição de um Estado para fazer
dele um Estado republicano. Partindo do extremo oposto, o da tirania,
Maquiavei levanta dúvidas quanto â possibilidade de se compreender a
política usando apenas as armas da razão, mesmo quando os dados
naturais parecem prestar-se a isso. Ele nos prepara, pois, para interrogar
os desejos do povo, tomando como referência, em primeiro lugar, as
sociedades corrompidas, e, em segundo lugar, a contingência na qual
somos obrigados a decidir quando agimos na cidade. A tirania é, assim,
o campo fecundo para a compreensão dos desejos que povoam as cida
des, obrigando-nos a abandonar a hipótese naturalista, que fazia do estudo
dos impulsos básicos dos homens um ponto de partida inabalável para
a compreensão da política.
Em nosso caminho, mais uma vez o capítulo trinta e sete marca uma
reviravolta no texto maquiaveliano. Dessa vez, o tema que nos interessa
é o da ambição'^. A primeira afirmação à qual somos confrontados é a
da infinitude dos desejos, da qual deduzimos que nenhuma prudência
natural pode exercer o papel de mediadora dos conflitos. A conclusão
que podemos tirar é que a política jamais se regula inteiramente pela
natureza, mesmo quando aparentemente uma das partes em conflito tem
todo o interesse em conservar a liberdade, e, assim, em agir de acordo
com a natureza de seus próprios desejos. Esse é um tema antigo na obra
de Maquiavel. Já em 1509, quando dedicava seu capítulo "Di ambizione"
a Luigi Guicciardini*3\ Maquiavel mostrava que a idéia de ambição não
podia ser trocada pela de desejo, mas que ela dem onstrava a
irracionalidade dos atores políticos. Essa irracionalidade só pode ser
apreendida, é verdade, se considerarmos o objetivo ao qual deveria ten
der o povo: a liberdade.'^ Sua importância não está, no entanto, em
150. Para a importância do tema em Maquiavei cf. G. SASSO, op. cit., 246.
151. A Carta de 29 de novembro de 1509 mostra quat é a data de composição do
capituio. Ver MACHIAVELL1, Ze?/ew, FeitrineÜ), 1981, 106.
152. É interessante observar os seguintes versos: "Ma se votessi saper la ragione /
perch'una gente imperi e l'a)tra pianga / regnando ín ogni loco Ambizione, / e perché
Francia vittrice rimanga / da Paitra parte, perché Itaiia tutta / Un mur d'affanni tempestoso
franga, / e perché n queste parti sia redutta / ia penitenzia di quei tristo seme / che
Ambizione e Avarizia frutta: / se con Ambizion congiunto è insieme un cor íeroce, una
virtute armata / quiví dei proprio mai rato si teme. MACH1AVELL1, "Di Ambizione", in Tidte
Ze Qpefe, Sansoni, 1971, 985.
mostrar que as ações do povo são incompatíveis com seus desejos, mas
que não podemos evitar as veredas obscuras da ação em nome da ob
jetividade natural dos desejos.
No quadragésimo capítulo, Maquiavel demonstra essa mesma tese
de maneira ainda mais radical. Aprendemos nos capítulos anteriores que
a melhor guarda para a liberdade é o povo, e que isso se deve ao lato
de que ele tem o desejo natural de conservá-la. Se essa tese permanece
válida, somos conduzidos a ver que ela não implica uma teoria da ação
natural. De acordo com a análise dos desejos, a tirania tem sua origem
sempre naqueles que querem monopolizar o Estado em proveito pró
prio. O que Maquiavel demonstra, no capítulo que estamos analisando,
é que essa afirmação revela apenas metade da verdade sobre as tiranias:
"... pela mesma razão pela qual nascem a maior parte das tiranias na
cidade: desejo excessivo do povo em ser livre e desejo excessivo dos
nobres de comandar"'^.
O povo é, portanto, um agente da corrupção. Deseja a conservação
da constituição livre, mas não lhe é possível fazer sempre desse desejo
a mola para uma ação virtuosa na "polis". Se o desejo da liberdade é
inextinguível, ele também não conhece os limites da prudência e se
exerce sempre no mesmo sentido, mesmo quando ao longo do tempo
isso venha a mostrar-se danoso para seus objetivos. Maquiavel impede-
-nos, dessa maneira, de julgar os desejos políticos através de categorias
próprias da ética. Não há lugar para se falar do bom desejo e do mau
desejo, nem da bondade natural de uma classe. Aprendemos, ao contrá
rio, que existe uma conduta tirânica do povo, pois, se ele está sempre
na origem de um poder sólido, como demonstram algumas análises d'O
Príncipe, também pode fazer nascer uma tirania. Nosso autor conclui:
"De onde decorre que os tiranos que são amigos do povo e inimigos dos
grandes são mais seguros, por ser sua violência defendida por uma força
maior do que aquela daqueles que têm o povo como inimigo e a nobre
za como amiga"*^.
O capítulo finaliza a crítica da concepção puramente jurídica da
liberdade, restituindo-nos a imagem da política como um campo de forças.
O desejo de liberdade não implica a existência de um saber da conser
vação que ajudaria todos a compreender as ações necessárias para a
manutenção do "vivere libero"; ainda que Maquiavel nos ensine que o
povo é sempre o apoio mais sólido para um poder qualquer. No caso
dos decênviros, como no caso da ieí agrária, o povo não mudou sua
168. CADONI, em seu artigo, não considera as repúblicas vizinhas de Roma como
exemplos de cidades livres. Ver também A. SCOLAR1, "il concetto di libettà in Niccolo
Machiaveüi" in AM e memorte AccrMeraia í# AgrícrdlMfa, Scienze e ígffere Ver&wt,
serie V, Voi X, n. 110, 1933
169. MACHIAVELL1, Discorsi, H, 2.
170. Idem, 11, 2.
171. Ibidem, H, 2.
172. "Ferché quiví si vede maggiori popoli, per essere e' connubii piú liberi, piú
desiderabiii dagii uomini; perché ciascuno ptocrea volentíeri quegli figíiuoíí che crede
potere nutrire, non dubitando che íi patrimonío gii sia toito, e ch'ei conosce non soiamente
che nascono liberi e non schiaví ma ch'ei possono mediante ia virtu ioro diventare principt":
Ibidem, II, 2.
O retrato extremamente favorável que o secretário traça das repúbli
cas traz consigo o peso de uma terrível contradição. Ao empregar o povo
para a conquista, Roma certamente demonstrou sua capacidade de ação,
o vigor de suas instituições. Tudo isso, no entanto, só pôde ser efetivo
porque Roma destruiu todas as repúblicas vizinhas e, com elas, a liber
dade de todos os povos da Itália. Da liberdade nasceu a servidão de um
número enorme de repúblicas. Como já observou G. Sasso*^, esse é um
dos pontos mais difíceis de serem compreendidos e também um dos
mais importantes do pensamento republicano de Maquiavel. A conquista
efetuada por uma república não somente é natural, mas a mais eficaz,
pois está na natureza desse regime expandir seus limites e desejar o
infinito: "E de todas as servidões, a mais dura é a dos que se submetem
a uma república. Em primeiro lugar, porque, sendo as repúblicas mais
duráveis, dificilmente se pode esperar o fim de sua dominação; em se
gundo lugar, porque o Rm das repúblicas é enfraquecer e destruir os
outros corpos, para engrandecer o seu"'?**.
A política romana é a expressão necessária de toda expansão co
mandada pelo desejo de liberdade, Esse movimento do pensamento
maquiaveliano tende a destruir a especificidade da história romana. Se
Roma exerceu a conquista melhor do que todas as outras cidades, ela o
fez realizando uma essência que é comum a todas as repúblicas. Sua
história é única, mas sua singularidade está no fato de ter realizado uma
tendência universal das formas livres de governo. O modelo romano é,
assim, o ideal para o estudo do presente, porque ele cumpriu, no pas
sado, todas as exigências de uma forma virtuosa de governo. Ele nos
permite passar ao exemplo de Florença sem nenhuma transição. Mas o
paradoxo da força republicana complica-se ainda mais quando Maquiavel,
diante da miséria de seu tempo, pergunta o porquê de os homens de
hoje serem menos ligados à liberdade. Sua resposta passa, é verdade,
pela condenação da religião católica, mas é em Roma que se encontra
a raiz das desgraças de sua época: "Ainda que eu creia que a razão disso
tudo é que o Império Romano com suas armas e sua grandeza destruiu
todas as repúblicas e todos os 'vivcri civili"*^.
Para fugir do paradoxo, Maquiavel recorre ao exemplo das repúbli
cas toscanas, que formaram uma liga para se defender, sem buscar a
expansão ilimitada de seus limites individuais*^. Mas, ainda que Roma
m
fosse apenas uma possibilidade entre muitas, revelava em toda sua ple
nitude os limites de um desejo, que só pela expansão conserva sua
essência. O trágico, no entanto, não é a possibilidade sempre presente
de se perder a liberdade, mas que os mecanismos de sua destruição são
melhor operados pelas formas mais livres de governo.
Uma verdadeira revolução foi operada por Maquiavel no pensamen
to republicano. Ao mesmo tempo em que ele expôs as conquistas roma
nas e a grandeza de sua "virtu", exibiu suas fraquezas. Não se trata mais
de dizer, como Políbío e os humanistas cívicos, que uma forma republi
cana está submetida âs leis do tempo. Trata-se de mostrar que na raiz de
sua destruição está sua própria necessidade de expansão. Já sabíamos
que o estudo da liberdade exige o da ação política, que um regime
corrompido se opõe a um regime livre; acabamos de descobrir que os
mecanismos que geram a potência geram também a corrupção. A forma
como a questão da liberdade fora tratada pelos pensadores florentinos,
de Bruni a Savonarola, e que gestou uma ideologia coerente no seio das
classes dominantes, se revelou inteiramente falaciosa. Maquiavel comba
te ao longo dos quase todas as teorias republicanas florentinas,
mas é na associação da liberdade com a destruição das repúblicas do
passado que ele atinge o auge de suas críticas à tradição'??.
E preciso ver, no entanto, que o paradoxo da potência não destrói
as conclusões anteriores, que fazem do "vivere libero" a íbrma mais
perfeita de sociedade. Para Maquiavel, a liberdade é sempre sinônimo de
potência, como mostra o primeiro livro da Cucrm'?^, mas o
modelo romano não é mais pensado como a expressão de uma perfeição
a ser imitada em qualquer tempo, em qualquer lugar. O conflito de Roma
com seus vizinhos prova que a "verdade" de sua história foi construída
com base na destruição da história das outras repúblicas, que possuíam
as mesmas possibilidades que a república vencedora. A história de Roma
foi exemplar por causa de sua fabulosa disciplina militar, da capacidade
de ação de seus homens, mas não por possuir um destino particular.
Essa maneira de ver as coisas faz Maquiavel voltar ao velho tema da
origem da liberdade Horentina: "Era então, como já foi dito, a Toscana
potente, plena de religião, de 'virtu', tinha seus costumes e sua língua
pátria. Tudo isso foi destruído pela potência romana, de tal forma que
dela só permaneceu a memória de seu nomc'"^.
187. Idem, V.
188. Como mostra Procacct, op. cit. 313; esse foi o caso de muitos intérpretes.
189- Reíerímo-nos aqui ao exame da monarquia turca, que esclarece a questão da
passividade popuiar: IV.
povo deseja não ser comandado nem oprimido; os grandes desejam
comandar e oprimir. Desses dois apetites diversos nasce nas cidades um
dos três efeitos: ou o principado, ou a liberdade, ou a anarquia"'**.
Nossos estudos anteriores já nos haviam ensinado a reconhecer nos
conflitos sociais a fonte da liberdade. A análise dos capítulos d'O Prw -
nos mostra que todas as formas políticas são o resultado desses
conflitos^'. Ao misturar, no entanto, a questão das repúblicas à dos prin
cipados e das monarquias, Maquiavel nos permite ir mais longe no es
tudo da relação existente entre as repúblicas e as monarquias. Já haví
amos visto que algumas frases de nosso autor sugeriram a alguns intér
pretes que a liberdade podia ser pensada como um mero detalhe da
constituição e que, assim, podia ser compartilhada por várias formas de
governo'^. O capítulo dedicado aos principados civis permite-nos
aprofundar a reflexão sobre a questão.
O que Maquiavel chama de principado civii'^ diferencia-se dos outros
pelo fato de que aí o príncipe age com a consciência da existência na
"polis" de desejos inconciliáveis. Ele se toma príncipe porque encarna,
num momento determinado, o desejo de uma das ciasses. Desde o iní
cio, uma parte da população o apoia, mas o faz na esperança de que ele
a proteja contra os ataques da outra parte. O piíncipe não é nesse caso
o mediador (como foram os reis de Esparta), mas o representante de um
dos lados em luta e que busca a vitória a qualquer preço. Desse conflito
podem surgir duas soluções: ou uma aristocracia ou um regime popular.
Maquiavel não hesita em declarar sua preferência pelo segundo regime:
"Concluo somente que ao príncipe é necessário ser amigo do povo; de
outra forma não terá remédio na adversidade"'**.
A escolha de Maquiavel não deve ser entendida, no entanto, como
derivada meramente de seus desejos pessoais; ele fornece argumentos
de grande densidade teórica para justificá-la. O príncipe que se alia ao
povo deve satisfazer apenas seu desejo de não-opressão, mas não terá
nele um concorrente ao poder. Essa característica do desejo popular faz
do povo o aliado perfeito para aquele que quer governar, pois ele nunca
encontrará em seu caminho alguém que vise ao mesmo objeto. Mas o
A AÇÃO FUNDADORA E A
CONSTRUÇÃO CONTÍNUA DA
LiBERDADE
1. Esse traço está presente mesmo em suas anáMses constitucionais. L. BRUNI, "On the
constitution of the Florentines" in E. CQCHRANE, H e RenatssatK% The Uníversity o f
Chicago Press, 1986.
2. Referimo-nos ãs "pratiche".
Maquiavel abre os ZMscoKH' fãlando-nos sobre a grandeza da funda
ção, e apontando para as dificuldades de se tomar como modelo homens
como Rômulo, num período de decadência como o da Renascença^. Essa
primeira advertência serve para que não nos enganemos quanto à difi
culdade de um estudo sobre a questão da ação. Se o agir político é difícil
de ser compreendido, isso se deve sobretudo ao fato de que temos de
compreender tanto a natureza do gesto criador — do gesto de fundação
— como a natureza do gesto de conservação, num mundo marcado pela
contingência. Nossa tareia será, portanto, apreender as diferenças e as
semelhanças que nos permitam falar da criação das novas formas polí-
ticas e compreender a razão de sua destruição. Para tanto, escolhemos
priorizar o estudo da criação dos regimes em situações em que a corrup
ção já operou a destruição das condições ideais para a ação. Essa escolha
não está desprovida de riscos. Ela nos obrigará a prestar mais atenção ã
ação dos príncipes, que fundaram principados, do que à ação dos gran
des generais romanos, que, através de sua "virtu", fizeram a grandeza da
república. Estamos convencidos, no entanto, de que, partindo do estudo
da questão da ação n '0 e associando-o à análise de temas
correlatos nos estamos sendo fiéis ao caminho de Maquíavel,
que, fazendo de Roma o paradigma da ação política, buscou sempre ver
no comportamento de seus homens o que ele tinha de universal e o que
podia servir de exemplo para os homens de seu tempo. O leitor, conhe
cedor do terceiro livro dos Dásconn, podería objetar que aí encontramos
os exemplos da "virtu" que se exerce no terreno da liberdade, que aí
temos o exemplo de uma ação que se exerce em um mundo balizado
pelas exigências de uma sociedade acostumada a respeitar suas leis. Essa
é sem dúvida a ação que melhor revela a essência de um regime livre.
Dedicando-nos, em primeiro lugar, aos príncipes estamos mergulhando
em um terreno movediço, onde a criação é quase um desafio à lei, onde
o ator age na ilusão de ser um demiurgo que retira do nada o sentido
das linhas que desenha no mundo político. Trata-se, no mais das vezes,
de uma simples ilusão, mas que, por nos situar diante da ação como
criação absoluta, nos abre o campo para a compreensão do caráter cri
ador da ação livre. Optamos por um desvio que certamente é uma visão
parcial da ação, mas que, por sua radlcalidade, nos parece capaz de
iluminar com uma luz diferente o caminho de construção de uma forma
livre de governo.
3. MACHIAVELLI, ZXycofsf, I, 9.
1. A POLÍTICA C O M O CRIAÇÃO; A FUNDAÇÃO
E A CONSERVAÇÃO
H . Idetn, m .
12. J. G. A. POCOCK, 7Be 358.
33- Pocock tüz: "He is contrasted with the heteditary prince, and so must be thought
of as stfivíng to attain the stahiiity o f the iatter", op. cit., 161.
14. MACHtAVELLI, 33 Prwc%x?, H.
15 . Ibidetn, IU.
evitar os inconvenientes próprios a toda transformação. Nosso autor, no
entanto, não fornece as explicações requeridas e passa a analisar a con
quista de um ponto de vista g e r a iF a ia n d o da conquista de Aiiião por
Luís XH, Maquiavel retoma ao problema dos principados antigos. Vista
a partir das condições concretas da vida política italiana de seu tempo,
a estabilidade não aparece como uma "segunda natureza", como havía
mos suposto, mas simplesmente com o uma resistência ao desejo de
expansão dos príncipes. O interessante nessa reviravolta maquiaveiiana
é que tanto a resistência à conquista, como a dificuldade de se manter
um país conquistado nascem do fato de que os desejos humanos são
variáveis e podem servir ao conquistador num dia e destruí-lo no outro.
Luís XII provou na pele essa instabilidade, quando viu virar-se contra ele
o mesmo povo que havia desejado sua vinda'?. Partindo de um caso
particular da conquista de uma cidade do Norte, Maquiavel enuncia de
uma maneira direta o que parece ser um saber universal da conquista;
"Perdeu, portanto, o Rei Luís a Lombardia porque não observou nenhum
dos termos observados por aqueles que conquistaram alguma província
e quiseram mantê-la"'". Mas não nos enganemos, Maquiavel não busca,
nesse momento do texto, construir um saber baseado em proposições
irrefutáveis; o que lhe interessa é demarcar no campo das ações huma
nas, o lugar da conquista tido como o que melhor expõe o eterno
movimento que constitui a política. Luís XII, querendo conquistar a
Lombardia, nada mais fez do que seguir e aceitar uma das condições da
vida política: "...é coisa muito natural e ordinária desejar conquistar, e
sempre que os homens o fazem são louvados, e não repreendidos"'". Ao
íazê-lo, no entanto, ele exigiu de si mesmo um saber que não possuía,
passando a merecer o vitupério universal: "...mas quando eles não po
dem, e querem fazê-lo de qualquer maneira, aqui estão o erro e a repre
ensão'^".
A estabilidade, atributo dos principados hereditários, não pode ser
vista como uma garantia contra a conquista. Nenhum povo pode garan
tir-se contra os apetites humanos, mas apenas erigir barreiras que dificul
tem os ataques dos inimigos externos. A própria distinção que Maquiavel
havia avançado é por demais abstrata diante da universalidade da vonta-
16. Acreditamos que a afirmação de Pocock segundo a qual: "Usage is the oniy aitematíve
to fbitune ", op. cit., 160, está baseada na falsa idéia de que Maquiavel procura a estabi
lidade como uma solução para os conflitos de classe.
17. MACHtAVELU, 7/ Ffwcipe, 111.
18. Idem, HL
19. Ibidem, 1H.
20. Ibidem, IH.
de de expansão. Um principado hereditário não é, dessa forma, o mo
delo de regime que deve ser seguido por todos os povos. Revelando
uma dimensão da natureza humana, eles nos permitem pensar a política
como ação contínua, e não, como parecia ser, como luta pela estabilida
de.
O terceiro capítulo, ao refazer o percurso de Luís XII, põe o proble
ma das inovações no centro do pensamento maquiaveliano. Nesse sen
tido, ele expande os limites do texto, que parecia destinado apenas a se
ocupar de questões referentes aos principados. O próprio Maquiavel
recorre a exemplos da república romana para ilustrar seu pensamento
sobre a conquista, sugerindo que nesse terreno nenhuma fronteira sepa
ra as repúblicas dos principados^'. Luís XII fracassou porque foi Incapaz
de repetir os gestos dos generais romanos, que garantiram a expansão da
república de maneira tão espetacular. Maquiavel faz do desejo de con
quista um desejo universal, ao qual devemos associar um saber prático.
Se o objeto privilegiado d '0 é o príncipe conquistador, isso não
quer dizer que ele não esteja submetido às mesmas exigências que as
repúbiicas, e que o conhecimento que venhamos a ter de suas ações não
possa ser transformado em conhecimento sobre a política em geral.
Estudando a conquista através do caso particular dos conquistadores
solitários, Maquiavel abre as portas para um estudo mais universal das
condições de criação e destruição de todas as formas políticas.
Considerando a questão dessa maneira, transformamos o ator polí
tico em um ente abstrato, pois ele pode encarnar-se tanto em uma repú
blica quanto em um príncipe, quando todo o capítulo é de um realismo
evidente, uma vez que as figuras citadas são personagens conhecidos da
história italiana. Nossa maneira de abordar o problema, no entanto, tem
o mérito de transformar o que pode parecer um análise banal das guer
ras em uma arqueologia da conquista. Essa estratégia, além do mais,
parece ser a do próprio Maquiavel, que, dando ao seu discurso um tom
"universalista", não evita os embates contra a ideologia política florentina
em seus pontos essenciais. Encontramos um exemplo dessa estratégia de
sedução e combate no momento em que ele discorre sobre a velha
fórmula florentina de "ganhar tempo para tomar as melhores decisões".
Ele começa recorrendo à metáfora médica, tão em moda entre os escri
tores da Renascença, para falar da necessidade de se preocupar com os
males do corpo, quando esses ainda não ganharam terreno^, e então
21 . Ibidem, III.
22. Não faremos aqui a análise das metáforas orgânicas usadas por Maquiavet, ainda
que seu estudo seja de grande importância pata a compreensão da noção de corpo poH-
tico. Remetemos o ieitor pata: F. GILBERT, "On Machiavelii's idea of virtü" in JfewtissaMce
JWws, 4, 1951; O Prúicipe, 111.
concluir de uma forma que não deixa dúvidas quanto ao seu verdadeiro
objetivo: "Pois os romanos, vendo surgir ao longe algum inconveniente,
sempre encontraram o remédio, e não deixaram jamais que eie tomasse
corpo para fugir de uma guerra, porque sabiam que da guerra não se
pode fugir, mas apenas adiar seu aparecimento em favor dos outros"^.
Claude Lefort resumiu essa maneira de compreender o fenômeno da
conquista dizendo: "Na história não existe nada além do que aparece,
quer dizer, as ações dos homens e os acontecimentos em tomo dos quais
elas se unem; e, por exemplo, a conquista é natural desde que a consi
deremos como ordinária, como pertencendo à experiência politica pre
sente e passada"^.
Até aqui, no entanto, não fomos capazes de operar a distinção que
dizíamos estar na raiz de nossos argumentos, ou seja, não fomos capazes
de dizer em que se funda a diferença entre o ator republicano e o prín
cipe. Uma análise do quarto e do quinto capítulos d'O demons
tra, entretanto, que a maneira com o abordamos a questão estava errada.
Estudando a campanha de Alexandre e as dificuldades que teve para
vencer, explorando as diferenças que separavam os turcos dos franceses,
Maquiave! nos mostra que, da exterioridade do conquistador, que visa a
seus adversários como puros objetos, devemos passar para a compreen
são de que o mundo da violência, que caracteriza a guerra, é na verdade
um mundo marcado por complexas relações políticas^. O conquistador,
num primeiro momento, é apenas um destruidor que quer impor sua lei
e para quem pouco importa, na ótica dos que são o alvo de sua sede de
conquista, se se trata de um príncipe ou de uma república^. Mas o pró
prio conquistador não pode deixar-se levar por essa imagem exterior da
conquista, pois sua ação será mais eficaz à medida que souber reconhe
cer nas disposições políticas internas de um povo a fonte de sua resistên
cia. É por isso que as repúblicas são mais difíceis de serem conquistadas
do que os Estados monárquicos. O povo, retirando sua coesão do respei
to à liberdade — símbolo que a força não destrói — , é um adversário
muito mais feroz do que os súditos de um príncipe, cuja linhagem pode
ser destruída.
27. Referimo-nos aqui aos primeiros capítutos do segundo livro dos DRcorsi.
diante do empreendimento mais importante que pode ser analisado pelo
teórico da política: a fundação de um principado novo^.
Maquiavel procura traçar um perfil detalhado desse momento, como
reconhece no sexto capítulo: "Não devem se espantar se ao falar dos
principados novos, dos príncipes e dos Estados eu utilizar grandes exem
plos"^. Esses grandes exemplos são buscados em figuras como Moisés,
Ciro e Rômulo; homens cuja principal característica foi a de terem pos
suído uma "virtu" excepcional. Com isso, Maquiavel sugere que a ação
humana mais difícil e mais importante é a fundação; e que aqueles que
a executam com a ajuda apenas de seus próprios méritos, sem contar
com os favores da "fortuna", merecem o primeiro lugar na galeria dos
grandes homens: "E deve-se considerar que não existe nada mais difícil
de tratar, nem mais duvidoso de se conseguir, nem mais perigoso de se
manejar, do que se transformar em chefe e introduzir novas leis"^.
Essa primeira afirmação, que nos confronta com o problema da
fundação através do estudo de figuras exemplares, é na verdade uma
maneira sutil de nos ensinar a complexidade da questão. De fato, nosso
autor usa o termo "príncipe" para nomear alguns fundadores que tam
bém serão objeto de suas análises nos quando ele se dedica a
estudar a fundação das grandes repúblicas^'. Se o objeto d'O é
inequívoco — o príncipe novo — , nosso autor autoriza-nos a pensar que
.a problemática da criação de novos principados não é fundamentalmen
te diferente daquela da criação de novas repúblicas. Ao contrário dos
humanistas cívicos, que buscavam de todas as maneiras possíveis provar
a originalidade da fundação de Roma e de Florença, Maquiavel procura
mostrar que todos os que pretendem criar novas leis terão de vencer
uma série de obstáculos, independentemente da forma que pretendam
dar ao novo regime^. Confrontados a um corpo social, que guarda a
memória de suas antigas leis^, os fundadores aprendem que toda forma
28. C. Lefort diz a esse respeito: "Sans doute ia fondation de PEtat est-elte i'entreprise
la p)us noble, !a pius périUeuse et )a pius gtorieuse qui soit offerte à !a réflexion du
théoricien, puisqu'ei!e confere à un peupfe son identité pofitíque et qu'efie requiert du
prince que s'y aventure la virtu la pius haute", op . cit., 369.
29. MACHIAVELÜ, áí VI.
30. Idem, VI.
31. Quando comparamos esse capítufo com o sexto d'OF7fucipe, e!e adquire uma nova
significação.
32. Os intérpretes contemporâneos estão quase sempre de acordo em dizer que O
é um tratado sobre a inovação Ver, por exempio: Pocock, op. cit., 172; L. Strauss,
op. cit., 154; F. Chabod, op. cit., 55.
33- MACHIAVELLI, ZXscotsi, H, 5-
política é o resultado de uma ação humana localizada no tempo, e não
o desenvolvimento da essência etema de um povo.
Essa apreciação não implica dizer que todos os fundadores são iguais.
Maquiavel oporá aos grandes fundadores a figura sombria do "profeta
desarmado" — Savonarola — , que, perdido em seu sonho milenarista,
não foi capaz de compreender que ocupava o mesmo lugar de Moisés.
Dois são os alvos de nosso autor nesse momento do texto. De um lado,
os humanistas, que acreditavam que as raízes de uma sociedade deviam
ser buscadas em sua história passada, e não nas ações presentes de seus
homens^*; de outro, os "profetas", que não viam que toda renovação
implica a repetição da fundação, ou para falar a linguagem de Maquiavel,
uma fundação contínua^. É por isso que, no sétimo capítulo, Maquiavel
analisa uma figura que pareceu compreender plenamente todas as exi
gências de uma nova fundação: César Borgia.
Maquiavel conheceu César Borgia como enviado de Florença, quan
do o príncipe estava no auge de sua carreira^. Suas impressões sobre
esse conquistador foram registradas, sobretudo, em seu célebre escrito:
ár/ jDMCí? e, mais tarde, em seu Descrtzrione
47. " íTfnce is neither a morai nor an immorai book; it is símpfy a thecnicat book":
E. CASSíRER, of .Rníe, 153-
48. C. Lefort afirma: "De cette incertitude on ne se déiivrent pas non plus en refusant
ihypothèse, c'est-à-dire en condamnant te mal à son origine pour ne pas avoir à juger des
consáquences, car il ne s'agtt pas tant d'apprécier ia conduite d'un homme que de chercher
ie sens d'une situation dont nous ne saurions nous détoumer qu'en faissant hors de nos
prises une part de Pexpérience": op. cit., 378.
49. Num sentido diferente Strauss escreve: "Une des caractéristiques du JTince, c'est de
s'artícuier autour de deux paires d'opposés: à ia fois traíté et texte de combat, il conjugue
un extéríeur traditionnei ã un inténeur rêvofutionnaire* op. cit., 89.
$0. Para um estudo do como um tratado cfássico de poiítica ver: A. GILBERT,
PTiKce and #s Duke University Press, 1938.
parece limitar-se a dizer quais são as condições nas quais um tal tipo de
principado pode nascer. Assim, depois de ter falado dos legisladores,
dos profetas e dos príncipes novos, poderiamos acreditar que o novo
estudo proposto é apenas uma análise comum de uma forma diferente
de fundação. Uma leitura mais atenta do texto mostra-nos, no entanto,
que algo novo foi introduzido no pensamento de nosso autor.
Até aqui o príncipe vira no povo um conjunto indiferenciado, que
resistia mais ou menos â fundação das novas instituições. O príncipe que
chega ao poder pelas mãos de seus concidadãos tem uma visão diferente
dessa "massa informe". Ele percebe que seu poder só pode se originar
nos desejos da "plebe" de se ver livre da opressão, ou no medo dos
"grandes", que, para resistir, ao povo escolhem um príncipe "per potere
sotto la sua ombra síbgare ii loro appetito"^'. Maquiavel retoma aqui à
divisão fundamental da sociedade em dois desejos opostos. Nos Z%co?S3,
ela serve para mostrar o fundamento da liberdade, n '0 demons
tra que o saber do príncipe jamais é um saber absoluto da ação. Nosso
autor conduz o leitor a pensar que a principal lição que o príncipe deve
retirar da existência na cidade de desejos inconciliáveis ê a da necessida
de de saber adaptar-se às mais diversas situações^. Mas essa constatação
esconde algo muito mais importante. Com efeito, ao dizer que os desejos
existentes na "polis" são inconciliáveis, ele sugere que não podemos re
duzi-los a uma contradição simples, da qual é possível encontrar a sínte
se. Não querendo ser oprimido, o povo passa a ter um papel na fundação
que não é apenas o de resistir à conquista e o de ser a matéria sobre a qual
a criação se efetua. Somos levados a reconhecer que não há ação de
fundação que não implique, ao mesmo tempo, a presença do criador-
-príncipe e a resistência criativa do povo. O paradoxo da força é que eia
tem sua origem exatamente no elemento social que não pensa em usá-la
para criar novas formas, mas apenas para resistir à violência dos conquis
tadores. Por isso foi possível ao 'Turco" destruir todas as resistências
internas ao seu poder, mas, ao fazê-lo, transformou-se em presa fácil para
os inimigos que conheciam o vazio de sua dominação.
Ao expor a teoria dos dois desejos que habitam a cidade, Maquiavel
não apaga as diferenças evidentes que existem entre as repúblicas e os
53- Nesse sentido, adiamos que não se pode compreender a ação, partindo-se exciu-
sivamente da teoria da vontade, como querem alguns historiadores das idéias: "Action in
his sense suggests self-conscious and purposeful motion, seif-directed doing for the
accomplishment o f the goals upon which the actor has deliberated". N. WOOD, "Machiave!H's
humanism o f action" in A. PAREL (e d ), The FbAfica/ Ch/cuÍMS, Universíty o f Toronto Press,
1972, 34-
Em seu percurso, Maquiavel efetuou um duplo movimento com
relação à tradição. De aproximação, por saber compreender a importân
cia da questão da fundação para todo pensamento político^. Suas pala
vras ecoam ainda as lições de Cícero que dizia: "Nada aproxima mais a
virtude humana da divina do que a fundação de cidades novas ou a
preservação de cidades já fundadas"^. Afastou-se, porém, tanto dos
pensadores romanos como dos humanistas, ao mostrar que a fundação
devia ser pensada à distância do elogio repetido dos momentos exem
plares do passado. Para ele, a fundação é por excelência a ação de
criação do social, uma ação que deve renovar-se ao longo de toda a
história de um povo e que deve ser diferenciada da conservação, tal
como ela era concebida pelos homens de seu tempo.
65. Sobre a relação entre ética e política no pensamento de Maquiavel ver: G.Sasso, op.
cit., 418-420; L. Sttauss, op. cit., 104; P. Chabtxi, op. cit., 65-66; J. G. A. Pocock, op. cit.,
167-177; C. Lefort, op. cit., p. 406; I. Berlin, op. cit., p. 179-197.
66. MACHIAVELLI, XVIU.
67. M. MERLEAU-PONTY, "Note sur Machiavel" ín Gallimard, 1960, p. 273-
68. MACHIAVELLI, LMKXttYf, I, 52.
69- ídetn, 1, 11-12-13-14-15.
cidade tivre e que se orgulhava de sua liberdade, não foi capaz de
construir as instituições necessárias para resistir aos efeitos do tempo^.
Mostrando-nos a dimensão imaginária do poder, Maquiavel convida-nos
a pensar sobre o significado da ação num mundo mergulhado na con
tingência.
M. "V/rfú" e "Foríuna"
O décimo quarto capítulo d'O Prwcipe começa com uma exortação
aos príncipes para que sigam o caminho traçado nos capítulos anterio
res, se desejam conservar o poder". Essa maneira de abordar a questão
revela, no entanto, sua limitação, quando Maquiavel, analisando as ra
zões do fracasso do duque de Milão e do rei de Nápoles, mostra-nos que
não basta refletir sobre as condições reais do exercício do poder, uma
vez que esse saber é produto da ação contínua dos homens na cidade.
Se em todo fracasso podemos identificar um fator objetivo — não ter
sido capaz de ganhar o apoio do povo, por exemplo — , existe sempre
uma dimensão que ultrapassa essa simples constatação de inadequação
a um modelo universal. Os próprios príncipes abrem as portas para um
aspecto importante de toda análise política, quando acusam a "fortuna"
de ser a responsável por seus insucessos^. Nosso autor aproveita a deixa
e introduz um conceito sem o qual o de "fortuna" perde toda a força;
fala-nos da importância da "virtu": "E aquelas defesas são boas, são cer
tas, são duráveis, quando dependem de ti e de tua virtü"^.
Ao longo d' O os temas da "virtu" e da "fortuna" estiveram
presentes, sem que Maquiavel tenha se preocupado em dar um trata
mento sistemático a nenhum deles e, sobretudo, sem que tenha estuda
do de maneira coerente a relação existente entre os dois?'. O capítulo ao
qual nos referimos enfrenta justamente a necessidade de se estudar a
relação entre "virtu" e "fortuna", como meio de aprofundar as constatações
às quais a análise da conservação nos conduziu.
70. C. Lefort afirma: "Machiavel ne prétend pas reventr du paraltre â 1'être; ii interroge
ie paraitre dans ia certítude que ie prince n'existe que pour les autres, que sont être est
au-dehors. Sa critique se dépioie dans ie seut ordre des apparences", óp. cit., 408.
71. MACHIAVELÜ, 7/ /Vlwipe, XXIV.
72. "Pertanto questi nostri principi che erano statí moití anni nei principato !oro, per
averio dipoi perso non accusino ia fortuna ma ia ígnavia ioto": idem, XXIV.
73. Ibidem, XXIV.
74. Maquiavel refere-se ã questão nos capítuios VI, VII, VIH, XI, XIV, XIX, XXV de O
PrtMc%pe
Ao voltar sua atenção para essa questão, Maquiave! retoma na ver
dade a um problema que desde a Antigüidade havia interessado aos
filósofos políticos, mas que também fora um dos pontos mais importan
tes do humanismo cívico^. Aristóteles refere-se à questão da "fortuna"
tanto no quadro de suas discussões sobre a física, com o em sua
metafísica^. Para ele, a "fortuna" existe quando a causa se produz por si
mesma, em vão. Enquanto conceito, no entanto, eia só revela seu sen
tido quando analisada junto com o "azar" ("automaton"), do qual faz
parte. Ou seja, a "fortuna" é um caso particular do azar, é o azar aplicado
aos seres capazes de escolher, e não a todos os seres. Apesar de se
referir explicitamente aos homens, Aristóteles reserva-lhe um papel pe
queno na definição da vida política. Na TWíNca, diz: "...é também por
essa razão que a fortuna favorável é necessariamente diferente da felici
dade. Os bens exteriores à alma são o produto do azar e da fortuna,
enquanto ninguém é justo, nem temperante graças à fortuna, nem como
seu efeito. Segue-se, logicamente, se usarmos os mesmos argumentos,
esta verdade, a de que o melhor Estado também é felíz quando age
segundo o Bem"??. Com os pensadores romanos, tivemos uma mudança
na maneira de considerar a "fortuna". Se para Aristóteles ela é apenas
uma parte dos múltiplos fatores que influenciam na condução dos negó
cios públicos, passa a ocupar um lugar de destaque no pensamento
político romano. O pensador grego havia chegado ao problema pelas
vias da física e foi extremamente prudente ao fazer a ponte para os
problemas humanos. Para Cícero, ao contrário, não há a menor dúvida
de que a "fortuna" pode influenciar os destinos humanos. Ele vê nela
uma força capaz de ajudar os homens, mas também de destruí-los. "A
Potência da fortuna é grande, em um sentido como no outro, para nos
favorecer, com o para nos contrariar — A imagem fria do azar é trans
formada pela idéia de uma força volúvel e caprichosa, que escolhe seus
prediletos e seus inimigos. A humanização do conceito faz dele uma
peça-chave no esforço de compreensão da vida social.
Mas não foi Cícero, nem os outros grandes pensadores romanos, que
contribuíram para a difusão do conceito no Ocidente cristão. Boécio, em
103. MACHIAVELLI, 7/ XXV. "Di qui nasce quello ho detto, che dua diversa
mente operando sortrscono el medesimo efFetto, e dua egualtnente operando, l'uno si
conduce ai suo fine e 1'aitro no".
104. M. MERLEAU-PONTY, op. cit., 273.
103. C. LEFORT, op. cit., 444.
106. Para um estudo sobre a reiação de Maquiavei com os jovens ver: C. LEFORT, íes
Jôrmes de GaUimard, 1978, cap. 9-
distancia-se de maneira definitiva dos humanistas. Embora implique um
certo saber, a "virtü" não é, como queria Petrarca, o resultado de uma
boa preparação para a vida em comum. Ela designa a capacidade de
estar presente no mundo, de saber apreender a ocasião, de saber se
modificar, de saber agir contra toda tradição. Num certo sentido, eia não
pode ser definida, porque se cria a si própria em seus combates com a
"fortuna", e, assim, deve incorporar a mutabiiidade que a desafia*"?.
Nossas conclusões conduzem-nos a descobrir uma outra dimensão
da hipótese que avançamos no final de nosso segundo capítulo. Havía
mos recusado dar uma definição puramente formal da liberdade, identiíicá-
-la simplesmente com a república mista. Compreendemos agora que
todas as formas políticas são o resultado das ações que as fundam e as
conservam e é por essa constância da ação que adquirem sua identidade.
Sabemos, no entanto, que a ação, que a eterna luta entre a "virtü" e a
"fortuna" não podem ser entendidas através de um conjunto de propo
sições coerentes, fruto de um saber positivo. O sujeito político, no seu
gesto de criação do presente, é sempre confrontado com a indeterminação
do campo histórico, ele não pode jamais conhecer todas as etapas de seu
caminho. Isso corresponde a dizer que nenhuma república pode identi
ficar-se ínteiramente com algum modelo teórico, que ela é sempre o
resultado das ações que a fundam e a conservam no tempo. Isso não
quer dizer que não exista diferença entre as diversas formas constitu
cionais. Cada regime tem a face das soluções que dá aos conflitos que
constituem toda sociedade humana. Podemos recorrer ao passado como
a uma fonte de inspiração, mas não podemos esperar fazer da imitação
a regra da ação política.
108. C. Lefoit já observou, num outro contexto: "Le combat entre Fortuna et Virtú
s'avere imagina ire: l homme n'a d'adversaire que luí-même, ia fortune n'est rien d'autre que
ia non-viftu, ia virtú que mattrise du monde et de soí": op. cit., 441.
109. MACHIAVELü, Discorxí, 11,1.
110. Idem, II, 1.
Essas conclusões, entretanto, têm de ser vistas com alguma reserva.
Se o secretário florentino lança um ataque feroz contra aqueles que
fazem do conhecimento da natureza da "fortuna" uma espécie de saber
positivo, que interdita toda a viabilidade de uma ação criativa na cidade,
ele não deixa de nos lembrar, no vigésimo nono capítulo, que a mudan
ça faz parte da ordem do mundo e, portanto, que é razoável esperarmos
que também as coisas humanas estejam submetidas à mesma lei'". Com
isso ele nos mostra que, se podemos pensar a "fortuna" com o o negativo
da "virtu", isso não quer dizer que possuamos um domínio perfeito do
tempo e que possamos escapar de suas garras. A metade obscura de
nossas vidas, à qual damos o nome de "fortuna", não é menos ativa por
ser compreendida como parte de nossas próprias ações. Assim, Maquiavel
alerta-nos para o fato de que podemos opor alguma resistência à "fortu
na", mas não descartã-la em nome de um saber positivo qualquer —
"...gli uomini possono secondare la fortuna e non opporsegli". A
contrapartida do vazio de nosso saber é que também não temos qual
quer motivo para deixar de agir, uma vez que, não conhecendo os ca
minhos da "fortuna", temos todos os motivos para continuar a esperar
um bom resultado'^.
O que íbí dito até aqui aplica-se tanto às repúblicas quanto aos
principados. Maquiavel expõe, assim, a unidade de seu pensamento,
demonstrando que as condições gerais do exercício do poder não mu
dam segundo as formas constitucionais. Mas essa conclusão geral carre
ga consigo a exigência de uma especificação. Se os phncipes são lança
dos num mundo de contingência que é igual para todos, não contam
com as mesmas armas para o exercício da "virtu". O que, num primeiro
momento, é igual para todos, rapidamente se transforma diante da pe
culiaridade da solução dos conflitos de classe. É nessa hora que as repú
blicas, fruto de uma adesão dos homens a um desejo de liberdade e às
instituições que o exprimem, revelam-se muito mais fortes para resistir
aos ataques do tempo. Essa diferença, Maquiavel faz questão de dizer,
não advém da natureza dos indivíduos que compõem cada forma social.
Todos revelam igual dificuldade em mudar com o tempo e por isso se
transformam em presas fáceis da "fortuna" quando os tempos são adver
sos. Numa república, no entanto, os homens não agem como indivíduos,
como atores individuais que devem representar seu papel sem o concur
so de outros recursos que a própria "virtú"; eles agem com o o produto
de sua "virtu" e da forma política que os criou. For essa razão nosso
120. Basta olhar as cartas de Niccoto Valori em que eie faz referência ao apoia de
Soderini a Maquiavei. Ver a carta de Niccolo Valori a Maquiavei de 28 de outubro de 1502
e a de 31 de outubro de 1502. p 91-93-
121. G. SASSO, op. cit., 162.
122. Ver a esse respeito: FAOLO VETTORI, "Ricordi di Faolo Vettori al Catdinafe de'
Mediei sopra le cose di Firenze" ín R. ALBERTINI, Fireuze -KepMpMcxr a/
Einaudi, 1970, 357-359-
123. N. MACHiAVELLI, "Discorso deH'oidinare fo Stato di Firenze aile armi", in Opere,
465.
de sua reflexão sobre a questão militar, Maquiavel estava longe de avan
çar simples argumentos de ocasião. A defesa da liberdade parecia-lhe,
seja por causa da situação interna, seja por causa da situação externa,
exigir uma ação rápida e uma tomada de posição sem ambiguidades, o
que Soderíni não se mostrara capaz de fazer. Assim, tomou para si a
tarefa não só de tentar organizar os primeiros corpos de recrutas, mas
também de convencer seus concidadãos, recorrendo a argumentos que
lembravam a associação, que mais tarde terá grande importância em sua
obra, entre as boas leis e as boas armas: "Vós tendes pouca justiça e
nenhuma arma, e o único jeito de reavê-las é organizando o exército
através de deliberação pública e mantê-io com as boas leis"*^.
A derrota de 1512 pôs fim âs esperanças do secretário florentino,
mas o convenceu de que o processo de fundação e conservação de uma
república não é independente da escolha de sua estratégia de defesa. A
partir de então, a questão militar terá um papel fundamental em toda sua
produção teórica, abrindo seu pensamento para horizontes que haviam
sido apenas esboçados em seus primeiros escritos. Tentaremos agora
estudar alguns momentos de sua obra nos quais é mais evidente essa
preocupação.
No segundo livro dos Dtscorst, Maquiavel aborda longa mente o tema
que nos interessa. A fim de preparar o leitor para suas análises, ele
submete a história romana a uma leitura "realista", que, aproveitando-se
do fato de que os homens políticos de seu tempo achavam natural pen
sar as questões políticas através do recurso à história antiga, desfaz al
guns equívocos que a idealização do passado transformara em verdades
absolutas. No sexto capítulo, nosso autor contenta-se com a enunciação
do problema'^, para se lançar, no oitavo capítulo, a uma análise que
esclarece o sentido de seus cautelosos primeiros passos.
A primeira distinção é entre as guerras levadas a cabo por repúbli
cas, ou príncipes, que desejam expandir seu território'^, ç aquelas
conduzidas por povos que são levados a abandonar seu lugar de origem
para buscar refúgio em terras que querem "possuir totalmente e expulsar
ou matar os antigos habitantes"^?. Essa diferenciação nos ajuda a ver que
o verdadeiro mérito dos exércitos romanos não foi o de ter conquistado
muitas províncias, mas o de ter resistido a invasões terríveis, que exigi
ram toda a "virtu" do povo para serem repelidas*^. Desse modo, Maquiavel
134. "E se i Fiorentini avessono notato questo testo, non arebbono avuto co' Franciosi
né tanti danni né tanti noie quanto ebbono nella passata che il re Lutgi XH íece in Italia
contro a Lodovico duca di Milano": ibidem, It, 15.
135- Maquiavel havia dito no primeiro livro dos Dtscord.- "Ma la piu cattiva parte che
abbíano le tepubliche deboli è essere irresolute; in modo che tutti i partiti che ie pigiiono,
gli pigliono per tbrza, e se vien loto íatto a)cun bene, lo fanno forzate e non per prudenza
loro". Ibidem, I, 38.
136. A melhor reíerênda para a questão é: C. C. EAYLEY, W&ratKÍ áoclefy
Uníversity o f Toronto Press, 1%1.
cíficas de que t r a t a i O interessante dessa crítica é que ela já se fazia na
época de Maquiavel e foi respondida de maneira sagaz no décimo oitavo
capítulo, onde se recusa o recurso à figura de Aníbal, como exemplo de
que a infantaria era uma força superada. Maquiavel mostra que o argu
mento de autoridade (Renaudet recorre a Napoieão para fundamentar
suas observações) é facilmente combatido se lembrarmos que a República
romana produziu dezenas de grandes capitães, enquanto Aníbal foi um
só, e derrotado no fim pela "virtu" rom ana^.
Não levando em consideração o furor retórico de Renaudet, pode
mos apreciar o aspecto técnico do pensamento de Maquiavel de uma
outra maneira. Sua percepção do papel da artilharia não pode ser vista
como um comentário meramente técnico; o que lhe interessa na infan
taria é que ela expõe a nossos olhos o nervo da guerra: a "virtú" dos
combatentes. Clausewitz reconheceu que essa dimensão do pensamento
do secretário permanece extremamente atual, mesmo com todos os pro
gressos na arte militar e as evidentes modificações na forma dos comba-
tes'3*.
Mas deixemos de lado os detalhes técnicos e retornemos ã ligação
entre guerra e política^. As discussões sobre a organização do exército
romano, a artilharia e a infantaria mostram-nos como o povo romano
participava da conservação e da expansão do Estado. A análise da arti
lharia^, longe de negar a importância dessa nova invenção, convence
mos de que ela não muda substancialmente a relação dos homens com
a "fortuna" — da qual a guerra é uma imagem. A conclusão de Maquiavel
é que nenhuma transformação técnica é capaz de modificar o papel da
"virtu" na condução dos negócios públicos^". Não se trata de dizer que
143- "EU infra i pecati de' principi italiani, che hanno íatto ItaÜa serva de' forestierí, non
ei è ii maggiore che avete tenuto poco conto di questo ordine, ed avere volto tutta la sua
cura alia milizia a cavalío. H quate disordine è nato per la malignitã de' capi, e per )a
ignoranza di coloro che tenevano stato": idem, II, 18.
144. Idem, ítárfe gnema, Proemio.
145- Ibidem, II, 22.
isso o exempio dos tiranos que constroem fortalezas para se isolar do
povo, é que não é possível erigir uma cidade forte sem a compreensão
do papel essencial da "virtu" popular. O tirano, ao buscar refugio num
edíficio — símbolo de uma distância que ele deseja infinita — , mostra
apenas a vontade de tomar real sua representação do poder, fazendo de
forças imaginárias o alicerce de um poder absoluto. O confronto com
outros povos demonstra o quanto se enganam os que querem suprimir
a presença do povo na vida pública'^.
O longo movimento de aproximação da política com a guerra, do
qual esboçamos alguns momentos, é concluído no trigésimo capítulo do
segundo livro dos Díscorst.'^ Voltando a analisar a relação da potência
econômica com a força militar, Maquiavel mostra que a tradição aristo
crática de confiar a defesa da cidade a mercenários fazia parte de um
desejo voluntário de enfraquecimento do povo. Essa política deliberada
de destruição do elemento popular e, como vimos, das bases de um
poder sólido e durável, escondeu-se no que podia parecer um raciocínio
evidente para homens acostumados a pagar por sua defesa. Nosso autor
conclui: "Seria por demais longo contar quanta terra os florentinos e os
venezianos compraram, do que resultou grandes desordens, pois o que
se adquire com ouro não se sabe defender com o ferro"''"*.
Em lugar de acusar a "fortuna" pelos fracassos das repúblicas italia
nas, Maquiavel mostra que a fraqueza militar era devida a uma política
deliberada de destruição da antiga ordem militar. Guardando o nome da
liberdade, a Itália era governada pela aristocracia ou pelos tiranos, des
prezando o único elemento que poderia tê-la socorrido nas invasões
estrangeiras'^. Não bastava, como queria a facção mais democrática d e .
Florença, dar espaço ao povo nos órgãos deliberativos, era preciso criar
mecanismos que permitissem a expressão do desejo de liberdade. O
mecanismo mais eficaz dessa participação é justamente a milícia. Através
da questão militar, confirmamos a idéia, que já havíamos avançado, de
que uma república não é apenas o conjunto de suas instituições, mas sim
o fruto de uma "virtü", que se exerce constantemente no espaço públi
co '^ . Daqui podemos passar diretamente para a análise da problemática
da fundação contínua.
162. Nesse sentido estamos de acordo com Lefort quando diz: "Penser 1'action, et
d abord déterminer quetque chose comme une action, n'est possible qu'à ]a condition de
1'articuier á 1'institution et de découvrir !e tripie rapport qui 1'ordonne à la !oi, au reel et à
la vérité": op. cit., 605.
163. N. MACHIAVELL1, HI, 3.
164. Leo Strauss interpreta o retomo ao começo de uma maneira "antropológica": "Bn
gÉnérat, le rétour au commencement signifie le retour à la terreur qui accompagne ta
fbndatton. Ce que Machiavet entend par retour au commencement, c'est !e retour A la
terreur primordiale ou originelle, celle qui précède toute terreur qui est te fait de 1'homme
et qui permet de comprendre pourquoí le íbndateur peut et doit íaire usage de la terreur.
Ce que Machiavet entend per retour au commencement, c'est le retour à !a terreur inhérente
à la situation propre à l'homme, le retour á sa vulnérabilité essentielle": op. cit., 186.
165. E. KANTOROW1CZ, Impem tore, Garzanti, 1988, 213.
dominado peta idéia da paz e da segurança, era preciso recorrer à his
tória para reveiar as exigências do presente.
Não nos afastamos com isso de nossas considerações anteriores,
nem estamos sugerindo que a cidadania militar não seja essencial para
a grandeza de uma república*^. Apenas radicalizamos o que já havíamos
mostrado através do estudo da "fortuna" e da "virtú", a saber, que a
contigência do mundo faz do corpo político a obra inacabada de um
artista que não consegue fugir das tramas de seu pior inimigo: o tempo.
Por isso, o movimento de identificação do homem político com o grande
capitão se completa, no trigésimo primeiro capítulo do terceiro Üvro dos
Díycoryt, com a análise tias ações de Camilo, que destaca o papel infi
nitamente superior da "virtú" na economia de um pensamento dedicado
a desvendar os mistérios da política. Maquiavel, num movimento surpre
endente, nos diz que os grandes homens "têm sempre o mesmo ânimo
e isso, em consonância com seu modo de viver, faz com que a fortuna
não tenha domínio sobre eles"'*?.
Esse texto não deixa de ser surpreendente, e isso por dois motivos.
Em primeiro lugar, porque Maquiavel, depois de analisar longamente o
comportamento dos grandes capitães, nos diz que eles estão acima da
"fortuna" e podem responder a seus golpes. Para chegar a essa conclu
são que modifica muitas de suas afirmações anteriores, ou pelo menos,
nos convida a reler os fMscorsf com olhos novos, ele abole a distinção
entre o homem de guerra e o homem político^. Ora, para efetuar esse
passo ousado, a evocação de Camilo era essencial. No trigésimo capítu
lo, nosso autor já havia notado que sua "virtú" militar estava estreitamen
te associada à sua devoção à causa republicana^. Assim o guerreiro, em
sua forma mais perfeita, é também o cidadão mais perfeito. Organizando
a defesa da cidade contra três inimigos diferentes, Camilo mostra que,
respeitando profundamente a lei, era o único capaz de desvelar os
mecanismos de sua produção. Ao contrário, por exemplo, de Sodenni,
166. Lefort sugere que o terceiro livro seja compreendido a partir de sua significação
política: "Ce retour aux conditions presentes de 1'action nous incite à penser que !es
analyses qui précédent, les íongues considérations touchant la stratégie du capitaíne au
combat et la nature de son autorité ont une portée politique immédiate, que la même
réflexion se poursuit depuis le déhut du livre par des voíes différentes": op. cit. 627-28.
167. N. MACHIAVELLI, Discofsf, IH, 31.
168. Idem, HI, 31-
169. Maquiavel insiste, no trigésimo capítuio, em afirmar a importância de Camilo:
"Laltro notabile È 1'ordine che Cammillo dette dentro e fuori per ia salute dt Roma".
que sempre confiou na boa sorte'?", Camilo não esperava nada da "for
tuna" e agia sempre como se fosse a pior possível, exigindo o máximo
de sua "virtu"'?'.
Existe ainda uma segunda razão para nossa surpresa diante do ca
pitulo ao qual fizemos referência. Maquiave! nos diz que os grandes
homens não mudam com a "fortuna", depois de ter afirmado, no nono
capítulo, que é preciso saber mudar para resistir a seus ataques'^. Como
primeiro passo para a compreensão do paradoxo, talvez devamos con
siderar as ações dos grandes capitães partindo de uma abordagem dife
rente daquela da oposição entre "virtu" e "fortuna". Nesse caso, Camilo
seria uma figura exemplar não porque possuísse uma "virtu" perfeita —
Maquiave! não deixa de criticar seus laços com a aristocracia e a parcia
lidade de algumas de suas decisões — , mas porque, através de seus atos,
somos confrontados com a verdadeira lógica da construção da liberdade.
O capitão que foi capaz de salvar Roma, depois da invasão dos gauleses,
só pôde fazê-lo porque sabia que toda lei deve ser sempre refeita e, para
tanto, é preciso excitar a imaginação dos homens com um novo espetá
culo de terror salutar. As contradições que parecíamos descobrir no
pensamento de Maquiave! nos ajudam, na verdade, a mostrar as exigên
cias de uma ação que destrói paradigmas tradicionais do pensamento
político. É claro que nossas conclusões a respeito da "virtu" e da "fortu
na" continuam válidas, desde que saibamos reconhecer que a ameaça da
corrupção suscita problemas que não podem ser resolvidos pela simples
análise das políticas de conservação.
O trigésimo primeiro capítulo do terceiro livro dos Díscots? marca,
portanto, uma virada no pensamento de Maquiave!. Explorando ao mesmo
tempo a grandeza da "virtu" romana e a fraqueza da república venezia
na, ele mostra que cada povo constitui sua identidade através de ações
que permitem conservar suas leis contra o efeito demolidor do tempo.
Durante a história concreta de uma república, ou de qualquer outra
170. "Que!!'attro credeva, cot tempo, con la bontà, con ia fortuna sua, cot beneficare
atcurto, spegnere questa invidia, vedendosi di assai fresca età, e con tanti nuovi favori che
gfi anecava et modo de! suo procedere, che credeva potere superare queüi tanti che per
invidia se gti opponevano, sanza atcuno scandoto, violenza e tumuito; e non sapeva che
it tempo non si puo aspettare, la bontà non basta, !a fortuna varia e la malignità non truova
dono che la plachi": idem, Hl, 30.
171. Ihidem, Hí, 31-
172. Trata-se de um tema que será repetido mais tarde em í # C&sfmccfo
"Credo bene che questo nasca che voíendo !a fortuna dimostrare at mondo di
essere quetta che íaccia gti uomini grandi e non !a prudenza, comincia a dimostrare !e sue
fbrze in tempo che ia prudenza non ci possa avere alcuna parte, anzi da tei si abbi a
ricognoscere il tutto": Qpen?, 533.
forma política, a "fortuna" pode mudar de rosto várias vezes, mas não
afastará jamais a ameaça, que paira sobre a cidade, de corrupção de suas
instituições. É por isso que a "virtú" do grande capitão deve ultrapassar
os horizontes do tempo presente, a fim de compreender a luta infinita
para a constituição das leis de uma cidade — a fundação contínua. Nesse
caminho, a "fortuna" poderá ajudá-lo em sua tarefa, mas não apagará a
possibilidade de destruição do corpo político. Resta, então, aos homens
agir, na esperança de encontrar as veredas que, pelo menos, retardem a
ferocidade da corrupção.
Capítulo H/
13- F. Gilbert dá uma solução diferente da de Mossini para o problema das relações
entre "natureza humana" e "leis políticas": "In tuttí i suoí scrittt Machiavelli enuncia il
principio che gli uomini sono universalmente cattivi, e 1'ipotesi delia partecipazione di tuttí
gli uomini a un'identica natura è la premessa delia sua fede nellesitenza di leggi polittche
di validità generaie": F. GILBERT, Macbiawfff e CMfccínrdÍMf, Einaudl, 1970, 162.
14. N. MACHIAVELLI, ZXycotsí, 1-2.
1$. Idem, 1-2.
o nascimento da democracia e sua transformação posterior em anarquia.
Maquiavei conclui essa descrição dizendo que "esse é o círculo no qual,
girando, todas as repúblicas se governaram"^.
Para um leitor da Renascença, seria fácil constatar que Maquiavel
segue em sua descrição o sexto livro das de Políbio. Aderindo
a uma visão clássica da questão, recusando a concepção cristã do tempo
linear, o secretário florentino evita o choque com as mentalidades con
servadoras de seu tempo, mas não nos desvela inteiramente o sentido de
seu gesto. Isso nos incita a fazer uma comparação mais detalhada do
texto dos dois autores, sobretudo porque Maquiavel deixa na sombra
uma explicação que é essencial para os nossos propósitos, ao não dizer
por que o regime misto é o melhor regime e pode escapar da corrupção.
A primeira coisa que observamos, ao comparar os dois textos, é que
na descrição de Maquiavel, da origem da realeza, os homens vivem
numa espécie de "estado de natureza": "...porque no princípio do mun
do, sendo raros os habitantes, viviam um tempo dispersos como as fe-
ras"*7. Políbio, ao contrário, não faz referência à origem do mundo, mas
ao princípio do ciclo de constituições que quer descrever. Esse primeiro
momento não é para ele um momento de "não-sociabilidade", mas de
"sociabilidade fraca"
Mais radicalmente, podemos dizer que não existe em Políbio uma
teoria da origem da sociabilidade, pois ele acredita, seguindo a tradição
grega, que ela é imanente ao homem. O que lhe interessa é mostrar de
que maneira os ciclos da história se encadeiam, e como, depois da des
truição das formas políticas, os homens podem voltar a percorrer os
mesmos caminhos de antes. Se analisarmos com cuidado a obra do his
toriador grego, veremos que ele deixa sem resposta um bom número de
questões referentes à passagem de uma forma corrompida a uma forma
não-corrompida de governo, do mesmo modo que não esclarece intei
ramente nossas dúvidas sobre a natureza do regime misto. No final do
seu raciocínio, ele mostra, no entanto, que o processo de degradação das
constituições é inevitável e fornece ao leitor, por esse meio, um ponto
de partida para o estudo dos diversos regimes^.
Maquiavel utiliza a teoria polibiana para convencer seu leitor de que
também possui uma base sólida, a partir da qual pode empreender seu
estudo sobre as repúblicas. Além do mais, ele aproveita a deixa para
23. !dem, ! 3
24. Ele nos diz, ao contrário: "Como a espécie humana se distingue dos outros seres
vivos por possuir inteligência e razão, seria estranho que uma tai diferença de conduta não
fosse notada, como no caso dos animais" POLYBE, op. cit., V!, 6.
25. Poiíhio M a de "necessidade natural": "Ucutgo, de fato, estava consciente de que as
mudanças em questão produziam-se em virtude de uma necessidade natural": op. cit., V,
10.
enigma que também não pode ser desvelado pelo simples recurso a uma
idéia desfavorável da natureza humana. Ao atrair o leitor para o berço da
tradição^, Maquíavel evita, na verdade, que ele se choque contra as
terríveis revelações do quarto capítulo a respeito do conflito de classes.
Assim, pelo menos em parte, a evocação da natureza humana não pode
ser compreeendída esquecendo-se o esforço de sedução do leitor que
caracteriza a obra maquiaveltana. Como acontece com todas as afirma
ções do segundo capítulo, é preciso esperar o desenvolvimento do livro
para descobrir-lhes o significado.
Constatando, mais uma vez, que uma leitura linear do texto é inca
paz de nos reveiar seus segredos, achamos que talvez fosse interessante
estudar um pouco melhor Políbio, para compreender o uso que faz
Maquíavel de seus escritos. Uma primeira observação que desperta nossa
atenção é que o historiador grego estava plenamente consciente de suas
limitações. Ao retomar a imagem do círculo — noção que vinha da física
— ele simplificava ao máximo sua visão do desenvolvimento dos acon
tecimentos singulares e contingentes. É verdade que isso foi possível
porque ele recorreu à idéia de tempo circular, que permitia que abando
nasse fatos que de qualquer maneira perderíam seu significado diante do
desenrolar inexorável da história. Políbio podia fazer uso dessa concep
ção da temporalidade sem se preocupar com uma grande elaboração
teórica que há muito já se incorporara â tradição. Esse uso traía, entre
tanto, uma grave deficiência teórica.
Platão e Aristóteles também recorrem à imagem do círculo para
estudar os fenômenos da geração e da corrupção característicos da
"physis". Aristóteies, no entanto, não concebe o tempo como um concei
to capaz de explicar a instabilidade das formas políticas. Ao contrário,
ele busca na lei do etemo retomo o exemplo de uma essência — o
tempo — que existe para além das mudanças aparentes que o afetam^.
Políbio, por sua vez, descreve as transformações sociais como se fossem
fenômenos comparáveis âs mudanças da natureza^. Em virtude dessa
simplificação, diz que a "fortuna" é o agente responsável pelo desenrolar
dos ciclos da história. Se o ciclo exprime uma "necessidade dos corpos
mistos", a "fortuna" é seu motor, sendo, por isso mesmo, portadora de
26. Colonna dlstria já aludiu ao fato de que Maquíavel (D. I. 2) critica Agostinho através
da teoria do etemo retomo: op, cit., 164.
27. De fato, na A&fc#, Aristóteies fafa-nos do "tempo" em sua dimensão física, e do
"tempo" dos fenômenos sociais, mostrando que os dois pertencem à mesma essência.
ARISTOTE, Les Belfes Lettres, 1926, IV, 223b.
28. Pocock resume assim essa idéia: "To Pofybius the cycle was a physis, a naturai cycíe
of birth, growth and death through which republics were bound to pas": op. cit., 77.
uma finalidade que está ausente na obra de Maquíavel^. A intervenção
da "fortuna" no mundo não é assim um gesto cego. Embora não saiba
mos qual o sentido exato de sua ação, podemos estar certos de que ela
conduz a um fim determinado. Para Maquíavel, ao contrário, a "fortuna"
é um elemento importante para a compreensão dos acontecimentos,
pois nos lembra que somente a "virtú" pode enfrentar as ameaças do
tempo, ainda que não saibamos em que sentido a roda da história vai
girará
Diante das evidentes fraquezas da obra de Políbio, só compreende
mos a importância que teve para toda a Renascença italiana, assim com o
para M aq u íavel,se nos lembrarmos das perguntas que parece respon
der. Os humanistas haviam procurado desesperadamente uma maneira
de salvar a república dos efeitos do tempo. Sendo ela, no entanto,um
regime como os outros, com o poderia esperar alcançar a eternidade^
Políbio explicava não somente as razões do processo de degradação —
a corrupção — , mas também a maneira de evitá-lo — o regime misto. Ele
fornecia assim uma teoria capaz de se opor ao modeio cristão e de
conferir legitimidade a uma escolha que parecia aos pensadores medie
vais mero capricho da vontade. A eficácia de sua influência deveu-se,
sem dúvida, á simplicidade da solução que apresenta e por ter evitado
tocar nos problemas filosóficos que suas idéias suscitavam. Recorrendo
à tradição grega, ele deixa de lado suas dificuldades, mas também sua
profundidade.
Nesse sentido, vale a pena lembrar que Platão não aplica mecanica
mente o modelo do eterno retomo ao processo de transformação das
constituições. No ele fala da corrupção como um processo que
atinge, em primeiro lugar, o regime ideal e, em segundo lugar, os regi
mes reais^. Na ele nos mostra, no entanto, que é preciso
53- ANSELMI, op. cit., 11-13- "Ocorre quindi non confortdere Arte ed oggetto neUa
pagina dei Pontano, anche se non v'è dubbio cbe it primo spesso finisca, di & dalle
íntenzioni, per condizionare Ü secondo in modo che st è potuto pariare di stcriogra&a
'pragmatica' tout-court".
54. SABELLICO, "Oratio de Laudibus historiae in Titom Livium" in Opera, Basiléia, 1560,
voi. IV, 482.
55. "NeüAcMzyü Pontano cita in particolare ia 'brevitas' et ia 'ceieritas', chtarendo questi
termini con citazicni da Saiiustio e da tivio, e dice che servendosi di taii mezzi stilistici
iautom puõ dam ai tempo stesso una cognizione deilo sfondo generaie e degii eiementi
partícoiari, e limpressione di un rápido svoigersi degii eventt"; F. OILBERT, op. cit., 179-
56. Idem, 180.
57. Ibidem, 185-
58. PONTANO, AcKny, 1; citado por F. Gilbert, op. cit., 185.
59. Idem, 185.
tou escrever uma história da cidade partindo do maior número possível
de informações coletadas em documentos à sua disposição^. O que lhe
interessava não eram os "exemplos, mas a descrição de uma totalidade
capaz de restituir o sentido dos acontecimentos passados**'. Para atingir
esses objetivos, era preciso deixar de lado a exigência de brevidade, que
caracterizava a história educativa, e recorrer a todas as fontes disponí
veis: arquivos pessoais, crônicas, documentos diplomáticos, histórias
antigas. Nessa mesma perspectiva, outros historiadores, como Lorenzo
Valia, procuraram mostrar que o ponto de partida para o descobrimento
da "verdade histórica** era a busca incessante da imparcialidade na des
crição do passado.^ Para os nossos propósitos, pouco importa que esses
historiadores não tenham sido capazes de escrever uma história à altura
de suas próprias exigências. Superando a "história educativa", eles abri
ram as portas para a historiografia moderna^.
Antes de analisar os efeitos dessas discussões metodológicas na obra
de Maquiavel, devemos chamar a atenção para a especificidade dos
humanistas florentinos nesse domínio. Bruni, por exemplo, escreveu uma
história de Florença cujo rigor ultrapassa em muito o de outros escritores
da época^. Além disso, fazendo da liberdade originária um princípio
uniftcador de sua obra, pôde descrever todas as mutações pelas quais
passou a cidade de um ponto de vísta universal, sem deixar de lado a
especificidade de sua história^. A historiografia ílorentina deve, assim,
ser estudada como um caso à parte^, e não resta a menor dúvida de que
as influências que sofreu Maquiavel nesse domínio foram extremamente
complexas^.
Não nos interessa, no entanto, refazer todo o percurso do confronto
entre o fututo historiador de Florença e a tradição. Se recorremos à
80. Ver a esse respeito: GJM. ANSELMI, op. cit., 91: G. SASSO fez observações interes
santes sobre a influência da história educativa na formação de Maquiavei: M
sforíH swo ^xtA#co, 109.
81. "... ho trovato come neiia descrizione deiie guerte fatte dai Fiorentini con i principi
e popoii forestieri sono difigentissimi, ma deite civiii discordie e deiie intrinseche inimicizie,
e degii effetti che da queile sono nati, aveme una parte ai tutto taciuta e queifaitra in modo
brevemente descritta che ai leggenti non puote arrecare utile o piacere aicuno". N.
MACHIAVELLI, /stofie FYorewftwe, proemio.
82. G. M. ANSELMI, op. cit., 92.
Mostrando que não podemos reduzir o estudo dos conflitos de classe ao
estudo da oposição formal entre a "plebe" e a classe dirigente, ele nos
alerta para a fragilidade das concepções humanistas. Conhecendo perfei-
tamente a obra de Bruni, e sabendo que ele fala dos conflitos internos^,
o secretário florentino prepara um ataque devastador, a partir do que
parecera uma simples querela metodológica"^.
Os humanistas foram acusados de escrever um história que refletia
apenas a concepção que a própria elite tinha da luta de classes"^; de
fazer uma propaganda muito semelhante à que era feita pelas tiranias,
sem buscar aprofundar o conhecimento das verdadeiras causas da des
graça que se abateu sobre a cidade quando ela foi confrontada com os
inimigos externos. A própria concepção da liberdade dos humanistas é
posta em dúvida por Maquiavei, que enxerga nela apenas uma maneira
de travestir a concepção aristocrática da cidade partilhada por muitos
dos escritores do "quattrocento"**'. O que era, assim, uma simples disputa
acadêmica revela-se uma verdadeira critica de toda a classe dirigente e
de seus arautos. O "Proêmio", em lugar de nos propor um estudo da
história florentina através de sua grandeza, confronta-nos com a exigên
cia de refletir sobre seu fracasso.
Quando Maquiavei aborda, no primeiro capítulo do segundo livro,
o tema das fundações das cidades é com um novo olhar que devemos
abordar suas disputas com seus contemporâneos. Ao contrário de suas
outras obras, as Ms%ón<%s abordam o problema da fundação sob a ótica
da oposição entre a natureza e a "indústria" humana.
A natureza é vista, em primeiro lugar, como um obstáculo "físico",
mas não como um conjunto de forças que possa, em sua lógica interna,
contribuir de maneira decisiva para a construção de uma cidade "virtuo
sa", ou seu contrário. Enquanto obstáculo, a natureza é apenas um dado
a mais, que não fornece sozinha a chave para a compreensão da história
dos homens*?. Mas, se Maquiavei nega que a natureza tenha primazia na
83. Maquiavei diz: "Ma avendo io dipoi diiigentemente letto gli sedai ioro...". Idem,
proemio.
84. Ibidem, proemio.
85. Ver G. M. ANSELMI, op. cit., %-97.
86. Estamos de acordo com Sasso quando ete diz: "E ottenuta, ai contrario, in virtú di
un lungo iavoro di discrimina zione e di anaiisi, condotto su una realtâ che non nasconde,
ne!Í'essenza, il suo segreto, ma pone un problema, contíene una sfida, eleva, con il suo
stesso star ii, di fronte alTuomo, una minacia di catástrofe e di morte": op. cit., 360.
87. Sasso já observou, em um outro contexto, o papeHimite que as ieis têm no pen
samento de Maquiavei: "Senonché, il naturalismo dei Machiavelli non è (come è stato tante
volte ripetuto) una teoria, uno schema metafísico, coscientemente elaborato come la legge
intrínseca degli organismi politici: è píuttosto un limite — e la consequenza di un limite —
speculaüvo...": op. cit., 515-
determinação dos negócios humanos"", ele é obrigado a alargar a signi
ficação dos conflitos internos, sob pena de fazer deles uma espécie de
determinante em última instância da história. Maquiavel não cai nessa
armadilha. Se a natureza não é a fonte absoluta para a compreensão da
história, nenhum conceito pode ocupar esse lugar. Seu pensamento
historiográftco possui as mesmas exigências de seu pensamento políti
co"^. Os conflitos de classe são fundamentais, à medida que revelam uma
dimensão essencial da "polis", mas não enquanto conceito absoluto, que
viria ocupar o lugar que fora da liberdade no pensamento humanista.
A longa série de introduções dos diversos livros das
através da quais Maquiavel dá coerência a seu trabalho de
historiador, atinge no quinto e sexto capítulo o seu ápice*'. A constatação
de que as disputas metodológicas encobriam uma disputa política vio
lenta é confirmada na descrição dramática da situação das cidades italia
nas no com eço do "cinquecento". Maquiavel escolhe mais uma vez o
mito da liberdade florentina para desfechar seus ataques. Ele começa
negando que a oposição, cara aos humanistas, entre república e tirania
sirva para a compreensão das misérias de seu tempo. No quinto livro ele
vai ainda mais longe, denunciando sem ambiguidade o uso ideológico
dos termos: "As cidades, sobretudo as que não são bem ordenadas, e
que se dizem repúblicas, variam a forma de suas constituições, não entre
a liberdade e a servidão, como muitos acreditam, mas entre a servidão
e a licença'^'.
Essa nova crítica do uso que os humanistas faziam do conceito de
liberdade permite-nos reencontrar certos pontos de nossas análises an
teriores da questão. Na passagem que acabamos de citar, Maquiavel
mostra que a liberdade deve ser associada a outra coisa que ao simples
nome das instituições. Como sabemos, a verdadeira liberdade exige o
respeito às leis e a submissão dos cidadãos aos princípios de organização
do Estado; nada disso existia nas repúblicas de seu tempo^. Maquiavel
nos lembra, além disso, que toda cidade que pode encontrar um legis-
97. Ibidem, V, 1.
98. G. M. ANSBLMI, op; cit., 105.
99. F- GILBERT, AíacAtafe/H e % suo ieog?o, 291-318.
100. "La corruzione dilagante, e íl declínio sempre píu rápido, che Machiavelti dípingeva
nelie precipitano in una situazione in cui i'aitemativa è o 1'annichiiimento
o ia redenzione. li pensiero di MachiaveiÜ contíeni un eiemento apocaiittico": ident, 310.
da concepção moderna da história; sua posição, no interior do pensa
mento historiográfico da Renascença é absolutamente original"".
O caráter repetitivo da história significava, para Maquiavel, que
podemos compreendê-la através da analise de um número finito de si
tuações. Talvez possamos resumir seu pensamento sobre a história, di
zendo que os limites naturais da expansão são os limites da "virtú". A
imitação é possível porque no passado já se manifestaram situações que
fazem parte dos limites humanos, e não, como acreditavam os humanistas,
porque podemos contemplar a história de um ponto de vista que lhe é
exterior e copiar suas formas. A corrupção é, desse ponto de vista, uma
"lei natural", que, em sua inexorabilidade, traça os caminhos da história
humana. Mas, nesse momento de nossas análises, pouco adianta dizer
que a corrupção exprime uma lei da natureza, se não sabemos o que
significa uma "lei natural" em Maquiavel. Devemos recorrer a outros
textos para esclarecer nossa dúvida.
No segundo livro das /%/dnárs fala-se da natureza como
de algo que limita a ação humana. O tratamento dado ao problema, no
quinto livro, não acordando nenhuma importância à descoberta de as
pectos particulares da "lei natural", leva-nos a pensar que devemos
interpretá-la como um reconhecimento da existência de uma dimensão
"necessária" no curso dos acontecimentos; mas isso não implica a des
coberta de leis positivas, que por serem transcendentes ao homem,
governariam inteiramente sua existência. A natureza, considerada como
um conjunto de forças físicas, é antes de tudo um limite para a ação; ela
tem apenas um papel negativo na determinação da história. Quaisquer
que sejam nossos atos, a circularidade da história se impõe, mas essa
limitação só pode ser vista a partir de nossos próprios atos, e não de um
modelo abstrato, que estaria para além do humano"^. A existência de
limites não implica que devamos buscar incessantemente o sentido da
determinação natural, ao contrário, convida-nos, através do estudo do
passado, a construir, pela ação presente, os mecanismos da potência de
uma cidade. É preciso ver, além disso, que o que chamamos "lei natural"
é na realidade a coexistência de uma etema mutabilidade das coisas
humanas, com a lei "fixa" do eterno retomo. Ela estabelece os limites
que tomam possível todo conhecimento sobre as coisas humanas, mas,
101. "Nessun sentiero manifesto connette ie Istorie Fíorentine di Machiaveiii con gii
sviluppi deita moderna storiogtafta": ibidem, 513.
102. Estamos de acordo com ZANZÍ, quando afirma: "Tocca aii'uomo, questa è ia
moraie própria deüa sua sorte, di íarsi interprete in maniera sempre nuova deiie sue fbrze
per cercare di reagire a una contrarietà naturate che ricomincia sempre: op. cit., 27.
ao mesmo tempo, só existe como determinação através da constante
mudança do mundo histórico. A história se realiza, portanto, na tensão
entre o mutável e o imutável, pela mediação da natureza e da política,
compreeendida como eterna criação^. Nesse movimento, interessa-nos
muito mais descobrir o sentido das ações na história, do que tentar atá-
-las a um hipotético fundamento metafísico'^.
M . Os anfececfenfes feódcos
Alguns intérpretes insistiram em afirmar que a importância da análise
da corrupção na obra de Maquiavel está ligada ao lato de ele ter sido o
primeiro escritor renascentista a estudar o tema de maneira a p r o fu n d a d a '^ .
Segundo eles, a elucidação dos múltiplos sentidos que o conceito toma
na obra é suficiente para desvendar o segredo de sua originalidade. Não
acreditamos que a melhor maneira de se conhecer o sentido de um
conceito no interior de uma obra de pensamento seja a enumeração de
seus significados, achamos que a simples evocação da originalidade do
autor não faz mais do que esconder os verdadeiros problemas que ela
encerra. Portanto, ao resgatar algumas abordagens de temas semelhantes
ao da corrupção na literatura filosófica anterior a Maquiavel, não estamos
propondo uma espécie de história do conceito; procuramos apenas
mostrar que a forma de Maquiavel responder a cettas questões assinala
ao mesmo uma ligação e uma ruptura com a tradição'^.
A questão da corrupção foi quase totalmente esquecida pelos pen
sadores cristãos durante a Idade Média. Santo Agostinho, por exemplo,
considerava o tempo uma criação divina, que ajudava na compreensão
do processo escatológico, mas que não suscitava de modo algum a questão
103. "Mel iaboratono deMa storia .si manifestano e si deposita no, attraverso variazloni a
caso, i paradigmi deüa natura: ii corso delle cose, osservato attraverso la critica storiografica,
si comporte anche di 'cicli compiuti', nei quati si manifesta tl senso possibile dei processo":
idem, 27.
104. G. SASSO, op; cit., 443.
10$. "Niccolò Machiavelli is the first thínker o f the Renaissance to have studied both
deepiy and extensíveiy the concept and ro!e o f corruption in politicai and social liíe": A.
BONADEO, cow/7it rtrrd pozwr irt ihe hoMN o/* Mccofo
University of Califórnia Press, 1973-
106. Esse foi o caso de Bonadeo que tentou compreender a corrupção através de suas
diversas "definições". Nessa perspectiva, não é estranho que a descoberta dos "agentes da
corrupção" tenha lhe parecido um problema fundamental.
da repetitividade do mundo A corrupção não tinha significado num
mundo finito, que deveria terminar com a redenção Anal. O processo de
salvação concernia somente â "Cidade de Deus", e não â "Cidade Terres
tre". Falar de degradação dos regimes em nada podia interessar a ho
mens que viam a política como o resultado do pecado originar**. Para
Santo Agostinho, a história humana, e em consequência, a história dos
regimes políticos, só interessava à medida que delimitava o espaço da
profecia, que estabelecia o terreno de encontro entre a palavra divina e
a decadência humana.
Essa maneira de compreender a história influenciou de forma deci
siva o pensamento político medieval até o começo do "quattrocento"'**.
A expansão da influência do Estado e a propagação do aristoteíismo, no
entanto, levaram muitos teóricos a se interessarem pela questão da con
tinuidade dos regimes políticos"". Na verdade, o ataque ao pensamento
agostiniano fora iniciado pelos averroístas, que tentaram mostrar não
haver diferença entre o conceito de tempo Anito e o conceito aristotélico
de "tempo eterno". A resposta dos seguidores de Agostinho consistiu
basicamente em lembrar aos adversários que o tempo devia ser compre
endido em sua dupla Aguração. Havia, de um lado, o "aeternitas" (o
tempo sagrado) e, de outro, o "tempus" (o tempo humano)"'. Qualquer
tentativa de aArmação de uma eternidade que não estava em Deus só
podia provir de um perigoso erro doutrinai.
Essa resposta estava longe de satisfazer às necessidades de um Es
tado que ocupava a cada dia um espaço mais importante na vida das
pessoas, e que tinha necessidade de fundamentação teórica para seu
poder. A solução encontrada pelos Alósoíbs escolásAcos foi a de manter
intacto o edifício agostiniano e recuperar uma velha noção, a de "aevum".
O "aevum" era uma infinidade que, compreendendo o passado e o fu
turo, não Anha o mesmo caráter do tempo sagrado. Na tradição, em o
tempo dos anjos; serviu aos Alósoíbs medievais para deAnír uma dimen
são dentro da qual as formas políticas podiam manifestar sua pretensão
à eternidade"^.
107. E. KANTOROWICZ, Xingar íwo Bostas, Princeton University Press, 1957, 275.
108. R. A. MARKUS, ata? Soc&%y iw %?e tAeofdgy q f AMgusKwe,
Cambridge University Press, 1970, 9.
109- Sobre a influência de Agostinho no pensamento político medieval ver: H. X.
ARQUiLLiERE, poM&yMe, J. Vdn, 1955-
110. E. KANTOROWICZ, op. cit., cap. 4.
111. "The great crisís in man's apptoach to Ume, while previously latent, carne to a
head when the doctrine o f uncteatedness and inftnite continuity o f the wodd was recovered
frorn aristntelian phílosophy": idem, 275.
112. Ibidem, 279-280.
As disputas eruditas foram acompanhadas por um grande esforço de
formulação jurídica do problema da eternidade do Império. O que ator
mentava os juristas não eram tanto as querelas teológicas, mas a questão
da legitimidade e da continuidade de um poder que buscava, ao mesmo
tempo, a garantia da legalidade de seus atos e a estabilidade de sua
constituição. Para que fique mais clara a natureza das dificuldades en
frentadas pelos juristas, basta lembrar que a simples coleta anual de
impostos só era considerada legítima se o príncipe pudesse provar que,
trabalhando para o fortalecimento do poder temporal, nada mais fazia do
que garantir seu direito â existência eterna"^.
A defesa da eternidade do Império criou as condições necessárias
para o reaparecimento do problema da corrupção no pensamento polí
tico da Renascença. Os juristas medievais só se interessaram pelo proble
ma de maneira secundária"', porque o que lhes importava era a questão
da conservação no tempo da estrutura universalista do Império. Cabia-
-!hes mostrar de que maneira as instituições imperiais, em sua forma,
comportavam um elemento de continuidade que as uniam à dimensão
atemporal do Império. Nessa busca, é evidente que a corrupção não
podia intervir, pois o objetivo visado era justamente a demonstração de
que, no essencial, o poder imperial não estava submetido às leis do
"tempus". O desenvolvimento das repúblicas italianas mudou completa
mente os dados da questão.'^ Sendo, por essência, estruturas particula
res, que visavam a ser reconhecidas, tanto quanto o Império, como for
mas legítimas de governo, elas modificaram todo o sentido da interroga
ção sobre o tempo, dando margem ao surgimento do problema da cor
rupção.
No pensamento político florentino, a tensão se manifestou através da
busca de um regime político que pudesse impedir a degeneração à qual
todas as repúblicas pareciam estar condenadas. Já nos referimos muitas
vezes à importância que teve a idéia de "república mista" para o pensa
mento humanista; aqui interessa-nos mostrar que a busca de um regime
116. Para uma discussão sobre a importância dos juristas na formulação do "direito
imperial", no finat da Idade Média ver: E. KANTOROWICZ, .Fedcvico /wperafom, Garzantí,
1988, 266-271.
117. Referimo-nos aqui aos capítulos 11 a 15 do primeiro livro dos ZMscerd.
118. "Quelli principi o quelle republiche le quali si vogliono mantenere incorrotte,
hanno sopra ogni aitra cosa a mantenere incorrotte íe cerimonte delia loro reiigione, e
tenerle sempre nella loro venera zione": N. MACHIAVELU, ZMscors^ 1-12.
119. Idem 1-11.
120. "Talché se si avesse a disputare a quale principe Roma fusse piò obligata, o a
Romolo o a Numa, credo piu tosto Numa otterrebbe il primo grado: perché dove è reiigione
facilmente sl possono introdurre l'armi, e dove sono 1'armi e non reiigione, con diíEcultà
si puo introdurre queila": ibidem, í-11.
homem de uma "virtu' extraordinária, mas isso não foi suficiente para
assegurar à cidade a continuidade de suas leis*^. Numa, cuja "virtu"
talvez fosse menor, compreendeu que era preciso encontrar uma manei
ra de perpetuar o "terror" que inspiravam os atos de Rômulo. Sem essa
passagem ao domínio da conservação e da representação, toda fundação
é destruída peio tempo. A religião é importante porque transfere a uma
OTdem transcendente o papel de guardião das leis originais que perten
cera ao fundador, quando este ainda era vivo. Tal passagem, no entanto,
só é possível se a representação religiosa é acompanhada, na cidade, por
uma grande capacidade de ação de seus cidadãos.
A análise de Maquiavel do uso que os romanos faziam da religião
mostra-nos que ele não via no fenômeno religioso uma simples "repre
sentação falsa" da realidade, ou uma invenção imaginária capaz de con
solar os homens em sua condição de dominados. O exemplo de
Savonaroía prova exatamente o contrário. Capaz de persuadir os
florentinos de que tinha relações privilegiadas com Deus, ele não pôde
transformar isso nas bases de um poder durável. Seu exemplo permite-
-nos concluir que a religião só é uma força ativa na vida de uma cidade
quando seus habitantes ainda não se corromperam, quando as institui
ções são ainda suficientemente saudáveis para preservar a energia do
primeiro momento. O poder de acreditar depende do de agir. A esse res
peito, Maquiavel tinira uma péssima opinião de seu tempo, visto como
de uma corrupção generalizada. Nessa percepção, a Igreja era tida como
a responsável não só pela decadência dos costumes, mas sobretudo pela
incapacidade de ação dos homens políticos*^. Com isso, Maquiavel que
ria dizer que a força de uma sociedade deve ser medida, não pela ima
gem que tem de si mesma, mas por sua real capacidade de resistir aos
ataques do tempo.
No décimo quinto capítulo, ele nos dá o exemplo dos samnitas, que,
recorrendo ao fervor religioso, não foram capazes de resistir ao ataque
do exército romano'^; o que confirma o que acabamos de dizer. A dimen-
121. "Donde nasce che gii regni i quali dípendono solo daiia virtu d'uno uomo sono
poco durabiií: perché quella virtu manca con la vita di queMo, e fade volte accade che ia
sia rinfrescata con ia successione...": ihidem, 1-11.
122. "Né si puo farc altra maggiore coniettura delia dectinazione d essa, quanto è vedete
come quelli populi che sono piú propinqui alia chiesa romana, capo delia reiigione. E chi
considerasse i fondamenti suoi, e vedesse i'uso presente quanto è diverso da queiii,
giudtcherebbe essere propinquo sanza dubio o ia rovína o Ü frageiio": ibidem, 1-12.
123. "E venuti ai conflitto, furono superati i Samniti, perché ia virtu romana, e ii timore
conceputo per le passate totte, supero qualunque ostinazione ei potessero avere presa per
virtu deiia reiigione e per ii giuramento preso": ibidem, 1-15.
são simbólica da religião é essencial, à medida que dã profundidade e
estabilidade a um poder que, na ausência de mediações, se destruiría no
exercício da pura violência. Representado por imagens que apelam para
a transcendência, guiado por ritos que comunicam aos homens a vonta
de de Deus, o poder espera conservar a força da fundação e escapar aos
efeitos do tempo. Tudo isso, no entanto, depende da capacidade de ação
do povo, de ter ele guardado viva no coração a "virtu" dos primeiros
momentos. A religião, nesse contexto, é apenas uma mediação para a
"virtu", mas confirma-se, assim, nossa hipótese de que a corrupção deve
ser pensada como um limite ao poder de criação de uma sociedade.
Podemos concluir, evitando as falsas generalizações, que a problemática
da corrupção deve ser tratada a partir do estudo das condições da ação,
dentre as quais se encontra o grau de religiosidade de um povo.
124. "E perché molti sono d'opinione che il bene essere delle città dltatia nasca datia
chíesa romana, voglio contro a essa discorrem quelle ragíoni che mi occorrono, e ne
aiteghero due potentissime le qua!i secondo me non hanno repugnanzia": ibidem, 1-12.
125. Ibidem, 1-16.
126. Pocock já observou o uso de palavras como "matéria" nas análises maquiavelianas
das relações entre legisladores e povo: op. cít., 207.
127. "E sanza dubbio chi volesse ne* presenti tempi fare una republica, piu facilità
troverrebbe negli uomini montanari, dove non È alcuna civíltà, che in quelli che sono usi
a vivere nelle cittadi dove ta civíltà è conotta ; ed uno scultore trarrà piu facilmente una
bella statua d'un marmo rozzo, che d'uno male abbozzato da altrui": N. MACUIAVELU,
jKíCorsí, 1-1.
zimos daí que a liberdade, embora sendo possível em todos os lugares,
é uma flor rara, que depende de condições especiais. Um povo corrom
pido não pode saboreá-la: "Porque um povo que se corrompeu não
pode, nem mesmo por um tempo pequeno, viver ltvre"^.
Esse percurso sinuoso, que vai da problemática da fundação, pas
sando pelas críticas à Igreja, até a afirmação da corrupção como empe
cilho maior para a vivência da liberdade, desfere um golpe mortal nos
humanistas, que viam na liberdade um bem adorado por todos. Maquiavel
destrói o mito florentino da liberdade mostrando que, ao contrário do
que acreditavam os escritores do passado, a liberdade é sempre objeto
de críticas violentas, e de escassa defesa da parte daqueles que por ela
são beneficiados^. Isso explica por que os legisladores são obrigados a
atemorizar os homens para solidificar sua obra, por que a conservação
de uma república implica uma ação contínua na cidade'^. Construção
frágil, submetida âs mais diversas contrariedades, a república livre não
conta nem mesmo com uma imagem unânime no seio das diversas ca
madas sociais'3'. Ao contrário, a representação dos homens está intima
mente ligada ao lugar que eles ocupam em relação ao poder estabele
cido e ao uso de suas benesses. Alguns desejam a liberdade porque
querem participar do poder; outros porque desejam a s e g u r a n ç a ^ ; pou
cos porque vêem nela uma forma de promover o bem de todos. Para
que essa obra possa existir, é preciso uma dose de vontade, de determi
nação e de força muito maior do que a que a Itália reunia na Renascença.
A crítica de Maquiavel aos humanistas é, assim, menos contra a definição
que davam da liberdade, do que contra o desconhecimento manifesto da
corrupção que grassava e que se constituía num obstáculo quase
intransponível para o desenvolvimento de repúblicas livres.
Essa constatação sugere-nos que a circularidade da história deve ser
interpretada de uma forma diferente da avançada no segundo capítulo
dos Pela ligação que Maquiavel estabelece entre fundação e
133. É interessante notar que Plutarco acreditava que a "virtu" dos dois Brutus tinha
sido igual, embora o segundo tivesse sido influenciado pela filosofia. Nesse aspecto a
influência de Piutarco sobre Maquiavel parece-nos evidente. Ven PLUTARCH, ZfMes qf
AbMe Cnac&ms The Modem Líbrary, s.d, 1186.
134. N. MACH1AVELLI, Discotxí, 1-17.
135. "E debbesí presuppore per cosa veríssima che una città corrotta che viva sotto uno
príncipe, come che quel prinípe con tutta la sua stirpe si spenga, maí non si puo ridurre
libera...": idem, 1-17.
Incapaz de enunciar uma regra universal para o combate á corrup
ção nas repúblicas, nosso autor contenta-se em confessar seu próprio
fracasso na tentativa de compreender os limites do esforço humano de
criação continua da liberdade'^. Deixando de lado as fórmulas polibianas,
que reconfortam o leitor afirmando a existência de ciclos históricos bem
determinados, Maquiavel confronta-nos com a indeterminação da ação
humana e com nossa incapacidade de reduzi-la a um modelo inteira
mente racional. Sendo um elemento constitutivo de todos os regimes, a
corrupção é um limite impossível de ser transposto pelos atores políti
cos.
Para tentar vencer o impasse teórico que essa confissão implica,
alguns intérpretes, como Pocock, tentaram definir a corrupção como
uma forma radicalizada da "fortuna", e por conseguinte, como algo que
pode ser compreendido pelo aprofundamento de algumas noções clás
sicas'^. A corrupção tendería, no pensamento de Maquiavel, a ocupar o
lugar da "fortuna", sem alterar-lhe inteiramente a significação'^. Pode
mos concordar com Pocock e dizer que para compreender a corrupção,
devemos partir de uma teoria da ação baseada no conceito de "virtu".
Mas tal ponto de partida, que tendería a fazer da "fortuna" um agente da
corrupção no mundo, como pensara Poltbio, não era o de Maquiavei. Eie
procura mostrar, ao contrário, que a corrupção impõe iimites à ação
humana que escapam a toda vontade de racionalização. Maquiavel não
menciona a "fortuna" nos capítulos em que analisa a corrupção'^. Em
aiguns casos, ele diz ser o nascimento da desigualdade o fator social que
dá origem â corrupção'^ em outros, cita a perda da "vírtü" militar e do
sentido da dignidade da coisa pública como sendo os responsáveis.'^"
Em nenhum momento faz referência à "fortuna" como sendo o agente
primeiro da degeneração, preferindo apontar as desigualdades sociais
como as causadoras maiores'^'. Embora a Maquiavei pareça evidente que
145. Ete nos faia em termos como "quasi impossíbiie", ou "ia difficultà o impossibiiità*.
146. J. G. A. POCOCK, op. cit., 207.
147. Idem, 211.
148. Recusamos aqui o enítxque dos historiadores das idéias que querem estudar o
fenômeno da corrupção reduzindo-o às suas causas objetivas. Ver p. ex. A. BONADEO, op.
cit., 30ss.
14$. "Perchè taJe corruxiofie e poca attitudine aüa vita libera nasce da una inequaiitã
che é in queHa città..." N. MACHIAVELLI, AMscofSí, I, 17.
150. "Questa sicurtà e questa deboiezza de' nimici íece che il popoio romano nei dare
ii consoiato non riguardava piu ia virtu ma ia grazia, tirando a quel grado queiii che megtio
sapevano intrattenere gii uomini, non queMí che sapevano megiio vincere i nimici, dipoi,
da queiii che avevano piu grazia ei discesono a dado a quegii che avevano piu potenza":
idem, !, 18.
151. Ibidem, I, 5$.
toda teoria da ação deve levar em conta a polaridade "virtü "-"fortuna",
parece-nos mais razoável, aceitando nossa hipótese de que a "fortuna" é
uma forma negativa da "virtü", concluir que a corrupção marca, na ver
dade, os limites até onde pode ir nosso esforço de compreensão da
polaridade apontada. Toda teoria da ação tem na elucidação do sentido
da degeneração dos regimes políticos um dos seus problemas maiores.
Tendo indicado alguns pontos essenciais do pensamento de
Maquiavel sobre a corrupção, duas questões devem ainda ser abordadas.
Em primeiro lugar, devemos saber se as conclusões às quais chegamos
são válidas para todas as formas constitucionais, ou se se limitam âs
repúblicas. Em segundo lugar, devemos nos perguntar pelas consequên
cias do que acabamos de dizer para a formulação de uma nova visão da
história.
152. "E verament dove non è questa bontâ non si puo sperare nuüa di bene, come non
si puo sperate ncüe provinde che in questt tempi si veggono conotte; come è ia itaiia
sopra tutte aitre, ed ancora la Francia e !a Spagna di taie corrozione ntengono parte:
ihidem, i, 55.
153. ihidem, I, 18.
154. Ibidem, I, 38.
do sucesso da permanência da liberdade: "A outra razão é que naquelas
repúblicas, onde se manteve o 'vivere político' incorrompido, não se
suporta que nenhum cidadão viva com o 'gentiluomo', ao contrário,
mantêm-se entre todos uma pefeíta igualdade'"^. O conceito de
"gentiluomo" parece conter a chave para a compreensão das duas idéias
que dominam o capítulo: a igualdade e a desigualdade. Uma república
igualitária define-se pela inexistência de "gentiluomini", enquanto a de
sigualdade existe onde alguns vivem de rendas, sem se preocupar com
o cultivo da terra, ou com o respeito às leis da cidade'^.
A identificação entre a desigualdade e a presença dos "gentiluomini"
na cidade levou alguns intérpretes a acreditarem que poderíam resumir
as causas da corrupção a esse fator de desequilíbrio social'^. Se a hipó
tese parece-nos sugestiva, deixa de lado, a nosso ver, alguns passos
essenciais da análise do capítulo. Se é fecundo pensar que a desigualda
de é uma das causas fundamentais da corrupção, é importante notar que
Maquiavel acompanha essa formulação com precisões que enriquecem
enormemente nossas conclusões anteriores'^. Nos primeiros capítulos
dos Dtycoysí, nosso autor acentua a indeterminação do campo político
contra a qual se batem os atores políticos de uma república corrompida.
No fim do primeiro livro, procura mostrar quais são as vias que se abrem
para os homens políticos dispostos a enfrentar a difícil tarefa da funda
ção. Segundo ele, duas são as possibilidades. Os que querem construir
uma república onde existem "gentiluomini" devem destruí-los em pri
meiro lugar, e depois erguer as instituições sobre a base da igualdade.
Para os que desejam construir um principado, ou reino, em uma terra
acostumada à igualdade, é preciso instaurar a desigualdade criando uma
nobreza e aliando-se a ela'^.
A análise maquiavelíana recupera a divisão dos regimes políticos em
repúblicas e principados, que fora sugerida em O através do
estudo dos efeitos da igualdade e da desigualdade na constituição das
formas constitucionais. Tal retomo não deixa de ser uma redução do
campo dos "possíveis", tal como vinha sendo apresentado, mas acredita-
155. Ibidem, I, 55
156. Ibidem, I, 55.
157. Pocock parece ter conferido um lugar importante à análise das causas da corrup
ção em seus estudos. "If it is the castles and retainers of the 'gentiluomini' that make them
a cause o f inequality and corruption, the uncorrupt republic must be a State lacking military
dependecies and one characteristic of "equality" must be that alí are warrior a l i k e o p . cit.,
210 .
158. G. SASSO, op. cit., 522ss.
159. N. MACmAVELU, Dtscorsf, I, 55.
mos que ela esconde um aprofundamento importante de algumas pro
blemáticas que vinham sendo estudadas"***. O capítulo que estamos ana
lisando tem, acima de tudo, um alcance político imediato. Maquiavel
demonstra que Florença era uma república acostumada com a igualdade,
o que tomava vã a esperança daqueles que viam nos Medieis os funda
dores de uma aristocracia estável. Acostumada ao viver livre, a cidade
nunca deixaria de oferecer uma grande resistência ao atos daqueles que
quisessem alterar as bases de sua organização social^'. Mas o capítulo
tem ainda um outro interesse.
Até aqui a corrupção íbi vista como um limite da ação humana,
como uma degradação da "virtü" de uma república. No qüinquagésimo
quinto capítulo, Maquiavel, sem desprezar suas conclusões anteriores,
procura pensar o fenômeno da corrupção como correlato do da funda
ção. Assim, da mesma forma que era possível fazer uma analogia entre
a fundação de Roma e a de Florença, não apagando as diferenças evi
dentes da história das duas repúblicas, também podemos pensar que a
corrupção é uma limitação natural da ação humana, um efeito do tempo
do qual não escapam nem mesmo as repúblicas mais virtuosas. Nesse
sentido não há nenhuma razão para acreditar que a análise que vinha
sendo feita concernia apenas às repúblicas; todas as formas políticas
tinham seu destino traçado pela resolução dos conflitos de classe e pela
maior ou menor igualdade existente entre seus cidadãos.
Com isso, respondemos parcialmente à nossa primeira pergunta,
mostrando que é possível generalizar as análises sobre a corrupção
partindo da equação entre a igualdade e a desigualdade. Mas esse ponto
de chegada nada mais fez, num certo sentido, que tomar mais premente
nosso estudo sobre o segundo ponto que deixáramos suspenso, pois nos
mostrou que não é possível falar das transformações dos regimes sem
que se faça referência a um lógica das transformações históricas.
* * *
166. Maquiave! fa!a dos seguintes povos no "proemio": "Assíria", "Media", "Pérsia",
"Roma", "it regno de' Turchi", "Grécia", "Magna". Ver também: ZMycoTs/ 11-5.
167. Estamos em desacordo com Coicnna d lstria quando diz: "H existe une ioi de
Í'histoire: ia passe d'un empire à un autre, sans que cette marche soit regiée ou
soumise à une finaiíté": op. cit., 176.
168. N. MACHIAVELLI, ZHícotst, II, proemio.
Contrariamente às teses que examinamos no começo de nosso capítulo,
não vemos surgir, ao longo da obra maquiaveliana, qualquer relação
entre a corrupção e a natureza humana. Os homens são ievados a ela
borar um representação deformada do presente por sua própria
insaciabilidade. Desejamos sempre a ação, mas não podemos conhecer
<3p w r ? seus resultados. O que emerge, pois, das análises de Maquíavel,
é a afirmação de que a capacidade de agir politicamente é uma das
características essenciais do homem, num mundo que não pode ter seus
segredos inteiramente desvendados por uma teoria. Ao contrário do que
sugere o segundo capítulo dos Dáarorst, Maquíavel não possui uma teo
ria acabada da história, o que o leva a convidar o leitor a aproveitar as
lições do passado, para desenvolver, no presente, a antiga "virtu".
CONCLUSÃO
2. Arendt dtz que para Maquiavel a "virtu" tem o mesmo significado que para os
antigos, o que parece sugerir que não ha nada em seu pensamento, nesse aspecto, que o
distinga dos gregos e dos romanos: op. cit., 199.
3. Idem, 217.
4. Ibidem, 219.
constituições. Ou ainda, quando deixa inteiramente de lado a noção de
"cidade ideal", que servia como termo regulador de toda teoria política
antiga. Maquiavel não aceita que modelos ideais, ou mesmo exemplos
históricos, possam servir de guias "absolutos" para nossas ações. Se uti
liza em sua obra repetidamente a imagem da potência romana, é menos
para fazer-lhe o elogio, e mais para mostrar-nos que as exigências do
presente não podem ser satisfeitas pela simples imitação do passado.
Para aprofundar nossas reflexões sobre a originalidade da obra
maquiaveliana, retomemos mais uma vez às considerações de Arendt.
Num dado momento, ela afirma que os pensadores modernos confundi
ram liberdade e segurança, o que impediu-nos de ter do problema a
mesma clareza dos antigos^. Sem entrar no mérito dessa afirmação, não
devemos atribuir a Maquiavel uma crítica radical de tal associação, e isso
de um ponto de vista totalmente diferente do da Antiguidade? Não foi ele
um crítico impiedoso das ilusões dos homens políticos florentinos, que
tentavam imitar a República de Veneza, exatamente porque confundiam
segurança com liberdade? Arendt, preocupada em mostrar as rupturas
que o nascimento do conceito de livre-arbítrio operou, deixa de lado
certos aspectos das sociedades democráticas que, a nosso ver, podem
ser pensados a partir da obra maquiaveliana.
Arendt privilegia, na última parte de seu capítulo, a idéia de que a
liberdade é sempre um começo, uma criação que é ao mesmo tempo
uma fundação. Com isso, ela despreza a análise mais aprofundada dos
processos de conservação, que chega mesmo a identificar com certos
processos automáticos das sociedades modernas. Não é por acaso que a
distinção entre "agere" e "gerere" tem para ela uma significação tão gran
de. Interessa-lhe, antes de tudo, o gesto magnífico que destrói a conti
nuidade; interessa-lhe a aparição de "uma improbabilidade infinita"; mas
ela deixa de lado as ações repetitivas que caracterizam em grande me
dida nossa vida política cotidiana.
Maquiavel também procurou mostrar a importância do gesto funda
dor, mas, contrariamente a Arendt, soube compreender que a grandeza
do "primeiro momento" retira sua ibrça do interior do processo que
chamamos "conservação". Para ele, é da confrontação da lei com a
possibilidade de sua destruição que nasce á consciência da importância
das ações que instituem a unidade do corpo social. Sem a continuidade
entre os dois momentos, a grandeza da fundação das repúblicas não
podería ser diferenciada da barbárie do tirano, que anula a resistência
5. Ibidem, i94.
dos súditos através do uso contínuo de atos de terror. A liberdade, que
se origina no gesto dos legisladores, se conserva pelo retomo contínuo
da "polis" ãs condições que presidiram sua criação, mas também pela
conservação contínua das instituições que guardam a memória viva do
momento original. O pensamento maquiaveliano permite-nos, pois, fa
zer a crítica tanto daqueles que, fascinados pela grandeza do passado,
são incapazes de compreender as exigências sempre renovadas da ação
política, como daqueles que identificam a liberdade à realização da
"melhor constituição".
Aceitando o desafio de interpretar os conceitos maquiavelianos, que
em sua complexidade podem parecer-nos distantes de nossa realidade,
acreditamos que sua concepção da liberdade é de grande interesse para
todos os que buscam elucidar alguns dos difíceis problemas das demo
cracias modernas. Eles ajudam-nos, contra os nostálgicos das grandes
revoluções, e contra o niilismo conformista de certos apóstolos da pós-
-modernidade, a pensar a liberdade como fruto da ação dos sujeitos
políticos, num mundo em que a audácia dos grandes legisladores deve
combinar-se com a mais perfeita consciência do papel essencial das leis
que guardam os segredos da tradição. Tendo vivido em um época em
que a "fundação magnífica" era apenas uma imagem do passado,
Maquiavel nos toma capazes de pensar a fundação contínua da liberda
de como uma exigência de todas as sociedades democráticas.
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