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curos era. por demais importante para que os deixássemos na sombra.

Poderiamos, talvez, contentar-nos com a simples crítica da incoerência


desses intérpretes, sem tentar descobrir suas raizes profundas. Como não
ver, então, que teríamos cedido à tentação objetivista, ao transformar o
trabalho de interpretação na busca da coerência lógica da argumentação?
Foi, então, que buscamos apoio em intérpretes com os quais parti­
lhavamos várias convicções, como é o caso de Claude Lefort e Genaro
Sasso. Como eles, acreditamos que uma interpretação jamais segue um
curso predeterminado, que a obra é nosso melhor guia em nosso percur­
so analítico, mas também estamos convencidos de que a fecundidade de
um estudo depende, em grande medida, da pertinência das questões das
quais partimos. Assim, se um grande número de intérpretes acredita
poder desvendar o sentido do conceito de liberdade no pensamento
maquiaveliano partindo dos lugares-comuns do pensamento republicano
da época, isso se deve, talvez, menos ao fato de não terem eles sido
capazes de ler atentamente a obra, e mais a um efeito da obra, que
enraizando-se em seu próprio tempo, evita o choque frontal com a tra­
dição. Por isso, foi através da análise das relações de Maquiavel com a
tradição, encarnada tanto no humanismo cívico como no pensamento
cristão e nos clássicos da Antiguidade, que decidimos conduzir nossas
pesquisas. Porém, para alcançar nossos objetivos, não bastou recorrer âs
críticas que o próprio Maquiavel fez de autores como Aristóteles, Cícero,
ou ainda Platão. No mais das vezes, ele se serve das imagens consagra­
das pelos escritores humanistas florentínos, sem se preocupar com a
fidelidade aos textos antigos, visando, assim, mais a seus contemporâ­
neos do que aos clássicos. Isso se explica porque o humanismo cívico.
ao adotar as doutrinas da Antiguidade, forneceu à. clagRSL dirigente
Horeptina poderosos instrumentos teóricos, cujojuso estava longe de ser
puramente literário. Ora. Maquiavel soube perceber a íntima ligação que
a cultura Ütcrária e a vida política de seu tempo,
soube deslindar os fios de uma cumplicidade que terminou por conduzir
à queda da república. Nosso percurso se fez, assim, tanto contra os
historiadores que buscaram apenas uma definição formal da liberdade,
como contra os que viram na tradição apenas um amontoado de ideais
cívicos, sem nenhuma consequência para as lutas políticas da Renascen­
ça. Partindo do confronto do secretário florentino com as tradições, acre­
ditamos contribuir para a compreensão de seu pensamento republicano.
Nossa abordagem certamente não esgotou a questão da significação
da liberdade na obra de Maquiavel. Se fomos capazes de apontar as
rupturas que ela operou e a fecundidade de seus caminhos, já estaremos
satisfeitos, num momento em que a interrogação sobre a república e a
liberdade está longe de ser uma mera querela de eruditos.
Capítulo 1

O HUMANISMO CÍVICO

Desde a publicação dos trabalhos de Hans Baron, os estudos sobre


o humanismo italiano tiveram um grande desenvolvimento. O fato de
que se passou a dar uma importância capital a seus aspectos cívicos
provocou uma viva polêmica entre os especialistas do período. Não
pretendemos refazer os passos desse debate, mas parece-nos fundamen­
tal levar em consideração algumas das conclusões de Baron no que
concerne ao problema da liberdade. Antes dele, autores como Pasquali
Villari ou Burckhardt* tendiam a considerar a existência concreta das
repúblicas como um fenômeno absolutamente independente da produ-
ção literária, dos humanistas do "quattroççnto". Villari, principalmente,
considerava esses escritores como meros precursores, sem a importância
de homens verdadeiramente talentosos como Maquiavel e GuicciardinP.
Para ele, o mérito de autores como Leonardo Bruni era o de ter criado,
em Florença, um núcleo de estudos clássicos responsável em grande
medida pela ruptura radical da cultura italiana com o tomismo; ele não
pensava, no entanto, que essas discussões eruditas tivessem a ver com
a vida política da cidade. Baron — o/* %?<? Aar/y áfa/raM
— Ma concentrar sua atenção sobre a crise pela qual pas­
sou Florença no com eço do século XV e que coincidiu com o apareci­
mento de uma série de textos sobre a liberdade comunal. Como jâ ob­
servou Claude Lefort, não seria possível estudar o problema republicano
em Maquiavel sem levar em consideração que ele encontrou em seus

1. Ver sobretudo J. BURCKHARDT, 7&e q f A&e Phaidon,


1981 et P. VILLARI, Mcco/o e I sMol Le Monnier, 1877.
2. Ver, por exemplo, o retrato que ele traça de Leonardo Bruni como grande tradutor
de Aristóteles, sem mencionar jamais a importância política de sua obra; P. VILLARI, op.
cit., 123-124.
3- H. BARON, T&e crts&r q f a&e Az/tau Princeton University Press,
1%6 (1955).
predecessores a fonte inspiradora de suas reflexões^. Mesmo sem cair na
armadilha dos historiadores tradicionais das idéias, que fazem da analise
da história das filiações conceituais o centro da reflexão sobre uma obra
do passado, não podemos deixar de reconhecer que a compreensão da
questão da liberdade no pensamento de nosso autor passa pelo estudo
das relações com a tradição republicana florentina. Sua originalidade não
foi, portanto, a de ter dado expressão conceituai à crise italiana, mas de
tê-la reinterpretado, a partir de sua própia experiência, abrido assim
caminho para um pensamento político original. Para apreender esta
"originalidade", é necessário conhecer sua história.

1, A FORMAÇÃO DO HUMANISMO CÍVICO

/.l. Os pqmórof/os

Petrarca foi provavelmente um dos primeiros florentinos a ter pen­


sado na Antiguidade clássica como uma fonte da qual seria possível fazer
emergir uma nova visão de sua época. Conferindo uma importância até
então desconhecida aos "studia humanitatis", á volta aos modelos clás­
sicos de educação, ele não hesitou em criticar as correntes especulativas
medievais, que viam na vida aqui na terra somente um momento do
processo escatológico. Petrarca considerava o diálogo humano, concebi­
do como uma troca entre iguais, como a realização plena da natureza
humana. Dialogar, fazer uso da faculdade da fala, que Aristóteles dizia
definir o caráter político do homem, conferia aos textos do passado,
assim como às nossas conversações ordinárias, um valor inusitado. Tra­
tava-se, para o grande poeta, não somente de exprimir nossa tendência
à vida em comum, mas de transformar nossa condição de homens po­
líticos^. Segundo Garin, pelo menos duas características fundamentais do
humanismo renascentista já estavam presentes no pensamento de Petrarca:
o valor conferido aos textos do passado e a afirmação do caráter social
da humanidade.^ Escutemos, no entanto, o próprio poeta: "...não existe
na terra nada que agrade mais a Deus, governante absoluto deste mun­
do, do que ver os homens reunidos no vínculo social... Para todos aque­
les que tiverem ajudado a conservar a pátria, a fazê-la crescer, está pron-

4. C. LEFORT, Ze /ToeMMie. GaHimard, 1972, 771.


5- Ver E. GARIN, Z't#tMMeyímo Zía/íano, Laterza, 1986, 27.
6. Idem, 27.
to no céu um lugar onde, beatos, poderão gozar a paz eterna'^. A devo­
ção à pátria não era um tema exclusfvamente petrarquiano, nós o encon­
tramos com frequência em publicistas medievais e mesmo em certos
teólogos". Porém, Petrarca mudou completamente seu significado, asso­
ciando-o não mais às exigências da Igreja de uma devoção à causa santa,
mas ao estudo da condição humana neste mundo. Ele se interessava pela
"Cidade Terrestre", por suas misérias e pelo fato de que ela é obra do
gênio humano. Seu pensamento opõe-se aos teóricos de Paris e de
Bolonha, porque ele é busca do "sentido humano das coisas", dos ins­
trumentos de uma vida ativa feliz, e não mais de universais abstratos que
informam o sábio contemplativo em busca da perfeição espiritual. En­
tretanto, apesar da radicalidade dos seus pontos de vista, suas referências
teóricas permaneceram cristãs, pois não via nenhuma contradição entre
uma vida contemplativa, pensada por ele como a realização mais perfeita
de um diálogo transtemporal entre os homens"*, e uma vida ativa, intei­
ramente voltada para os negócios da "polis", que visava não somente à
aquisição de habilidades próprias ao exercício de uma profissão, mas ao
desenvolvimento pleno da "virtü". Para o pensador romano, com efeito,
o homem podia — através do estudo da filosofia moral e da retórica —
alcançar uma certa perfeição nesta vida que lhe fazia esca­
par da banalidade do cotidiano". O objetivo final do processo de edu­
cação, porém, não era o de formar um sábio contemplativo, mas um
homem capaz de expressar publicamente seu saber. É preciso notar,
entretanto, que Petrarca interpretava Cícero de uma maneira muito ori­
ginal. Ele acreditava, como o pensador romano, que era fundamental
fazer do saber algo comunicável aos homens. Também pensava, em
oposição ao formalismo dos pensadores de Paris, que a filosofia moral
era essencial ao desenvolvimento da virtude. Mas Petrarca foi incapaz de

7. PETRARCA, Bam/Manss, citado por E. GARIN, op. cít., 28.


8. Ver sobretudo o grande livro de E. KANTOROWICZ, 7%?eAiHgS R to Bodies, Pnnceton
Uníversity Press, 1957, 232 ss.
9. "Alia vana ricerca in tomo aHa natura deile cose Petrarca oppone precisamente
i índagine umana, una umiie filosofia degii uomini e delia città terrena da loro edificata":
E. GARIN, op. cit., 31.
10. Santo Tomás também considerava a contempiação como uma forma de ação, mas
tais atos só eram significativos tendo em vista o objetivo maior da vida: a salvação. Assim,
é a significação do conceito de ação que começa a mudar com Petrarca. Para um estudo
dessas questões em Santo Tomás ver GILSON, í e TBww&fnq J.Vrin, 1985(1965)
11. Q. SKINNER, AbMtM&rMoHS q f Afodcrn BoBffCHÍ Cambtidge Uníversity
Press, 1978, 87.
apreender o caráter verdadeiramente político de suas posições. Admira­
va em Cícero o sábio estóico, o pensador meticuloso, mas para ele o
envolvimento direto com a política era uma traição aos próprios princí­
pios de sabedoria que recolhera na obra moral de seu mestre".
Alguns estudiosos do penodo, Baron em primeiro lugar, no afã de
demarcar na história o momento de nascimento do humanismo cívico",
acreditaram dever excluir Petrarca da constituição desse importante
movimento intelectual. Para eles, Petrarca, ao escolher a monarquia como
o melhor regime, demonstrou quão profundamente estava ligado ao
pensamento medieval que tradicionalmente, desde Santo Tomás, consi­
derava esse regime o mais adequado para garantir a paz entre os ho­
mens. Ora, ao escolher a monarquia, o poeta não o faz desconhecendo
a existência do regime republicano e, ainda menos, a importância que
ele tinha para sua pátria; ele o faz num contexto no qual a oposição
entre o govemo de um só e a república já constituía o núcleo dos de­
bates constitucionais. A tirania que Florença conheceu durantes os anos
de 1342-1343", as lutas internas que dominaram o cenário político
florentino durante toda a vida do poeta (1304-1374), foram tão importan­
tes quanto a crise de 1400", quando a cidade esteve prestes a perder sua
liberdade diante da ameaça das tropas milanesas. Se Baron tem razão em
acentuar o papel que tiveram as lutas sucessivas de Florença contra os
tiranos de Milão, no período que vai de 1370 a 1400, para a constituição
de um pensamento republicano radical", acreditamos que isso não nos

12. H. BARON, op. cit., 122-123.


13. Baron diz, por exemplo, que os laços que uniam Petrarca a Cícero provam que ete
estava ainda inteiramente ligado aos valores monárquicos, o que contribui para a demons­
tração de sua tese: "The great historicai interest o f Petrarch's relationship to Cicero iies in
the íact that it allows us to see so clearly the unconscious connection between the way of
life of the humanist 'iiterati', and the monarchical interpretation of Roman history": H.
BARON, op. cit. Parece-nos que Baron deixa de iado aqui a relação de Petrarca com a
política ílorentina, fazendo do poeta um monarquista simplesmente porque ele não pode­
ría ser outra coisa antes de 1402.
14. G. CAPPON1, Rort# Je& t di Casa Editrice Le Lettere, 1976(1876),
Voi. I, 221-237.
15. O estudo de G. BRUCKER, (%%c WbWd o/* f&e Haxfy R&tMíssHKce HoreMce,
Princeton University Press, 1977; sugere-nos que o "trecento" conheceu muito mais revoitas
internas, inspiradas por uma ideoiogia democrática, do que o "quattrocento". Nesse sentido
a revoita dos "Ciompi" marcaria uma mudança de rumo em direção à oiigarquia.
16. Ver sobretudo o capítulo dois, intitulado "A Fíorentine War for Independance". H.
BARON, op. cit., 12-46.
autoriza a esquecer o papel das lutas políticas internas nesse mesmo
processo'?. Nesse sentido, Petrarca, escolhendo o campo oposto ao dos
republicanos, não deixou de participar ativamente dos debates que estão
na origem da revolução teórica do século XV. Um breve olhar sobre a
história florentina do "trecento" pode ajudar a esclarecer nossa interpre­
tação da formação do humanismo cívico.
Com a publicação dos Cmsfízia, Florença tomou-
-se, a partir de 1293, uma república que se pretendia popular e demo­
crática. Essa "constituição", resultado de uma longa luta entre os diversos
grupos políticos, apesar de aumentar o espaço de participação dos cida­
dãos florentinos nos orgãos de decisão da cidade, consagrava, na verda­
de, o princípio segundo o qual só aqueles inscritos nas associações
corporativas podiam participar da vida política, o que excluía os nobres
e uma boa parte dos assalariados. A constituição, que visava dar estabi­
lidade á vida política da cidade, terminou por provocar ao longo do
"trecento" uma série de revoltas que, como nos mostra Brucker"', tinham
por objetivo a mudança das estruturas de poder. Em 1343, por exemplo,
os "magnati" foram expulsos de certos órgãos de decisão e a cidade
conheceu um período de ascensão popular que só terminou com a peste
de 1348. Passados os efeitos devastadores da doença, Florença conhe­
ceu, a partir de 1360, uma nova vaga de protestações populares, que iria
culminar na revolta dos "Ciompi". Estes movimentos, cujo caráter popu­
lar em evidente, provocaram não somente uma mudança de comporta­
mento dos oligarcas, mas também da pequena burguesia, que, aliada dos
operários nos primeiros tempos, passaria pouco a pouco a reivindicar
um espaço próprio na vida política da cidade. Desejava-se mudar a
com posição do poder sem contestar-lhe a forma republicana; os
florentinos queriam integrar-se à república, maís do que destruí-la. A
revolta dos "Ciompi" é, desse ponto de vista, altamente significativa. De
um lado, ela foi o coroamento do movimento de ascensão popular que
começam dezesseis anos antes; de outro, no entanto, marca o começo da
vitória da oligarquia na luta pelo controle total dos órgãos govemamen-

17. A obra de referência para o período permanece sendo a de Brucker. Podemos citar
ainda: C. BEC, CMíMm e <? /%femze waVTe&i Salemo, 1981, e o
trabaiho monumental de Guidi sobre o governo de Fiorença durante a República: G.
GUID1, 1? governo áte/Aa c#aà (% Hrenj&e <%e/^viwo L. S. Olschki,
1981.
18. G. BRUCKER, op. cit., 40.
tais^. Assim, se nas semanas durante as quais os "Ciompi" governaram
a cidade, 22 de julho de 1378 a 31 de agosto de 1378, assistiu-se a um
alargamento da participação popular em órgãos antes reservados aos
"grandi", durante todo esse período não se procurou mudar a forma
constitucional, mas sim tomá-la verdadeiramente democrática^. Os
oiigarcas perceberam o perigo. Se, de 1378 a 1382, um regime mais
aberto às camadas mais pobres da população governou Florença, a partir
dessa data assistiremos à consoftdàçSo do poder dos banqueiros e dos
grandes comerciantes. Querer fazer, portanto, da revolta dos "Ciompi"
uma revolução operária, como sugeriram alguns historiadores^', é esque­
cer que o projeto político desses operários nunca foi além de exigir o
aumento da participação no poder dos membros das novas corporações
e dos assalariados ligados às atividades comerciais^. De uma república
marcada pelo espírito das corporações, em 1382, Florença evoluiu para
uma república aristocrática, governada por uma elite extremamente es­
tável. Quando comparamos a forma do governo em 1378 com a de 1400,
verificamos que as instituições permaneceram quase inalteradas^, mas a
mentalidade daqueles que as dirigiam mudara completamente^. Mesmo
que a elite governante nem sempre se confundisse com a camada mais
rica da população, ela permanecería marcada pela origem familiar; ter
um "bom nome" era condição essencial para aqueles que aspiravam ao
poder". Diante da ameaça milanesa, a capacidade de governar a cidade
de uma maneira estávei só contribuiu para consolidar ainda mais a po­
sição da aristocracia, que soube aproveitar-se da necessidade de defen­
der a cidade contra o inimigo externo, para lazer do seu poder a alter-

19. Existe hoje um número significativo de livros que tratam da questão, dentre os quais
merecem destaque: N. RODOLICO, 7 CiotHpi, íA áfor&z qpenAo,
Sansoni, 1 9 7 1 ;_____________, A Pqpo/o AAnMfo, L. S. Oischkí, 1968; E. RA.VEL, íf fMMMAo
Ciompf.- 7 1 % Bonechi, 1978 ; G. Dl LEVA, 7? íMMMAo <7<?i T-Yfenze, 7 3 %
Bertani, 1972.
20. Ver o artigo de G. BRUCKER, "The Ciompi Revoiution" in N. RUBINSTEÍN, 7%oneK#ne
sftiáHes, poHAcs nwd society P? AefMisstwee T/orence, Paber and Faber, 1968.
21. Esse é o caso de Rodotico, que na sua obra tenta fazer uma ieitura marxista da
revolta, apoiando-se em uma análise muito detaihada dos fatos.
22. "The regime that ruied Florence for stx weeks (22 ju!y— 31 august) was not a
worker s repubÜc, but a govemement of an eniarged community that inciuded three new
corporations of cioth wodters, some of whom were day iaborers, and others joi^ers who
operated smaii shops where they performed some o f the steps in the cioth-making process
for the Tanaiuoii": G. BRUCKER, op. cit., 43-
23. Ver a este respeito G. GUIDI, op. cit., vol H.
24. G. BRUCKER, op. cit., 302.
25. Idem, 271.
nativa à anarquia popular que ameaçava a própria sobrevivência da re­
pública^. Parece-nos, pois, que, para compreender a formação do
humanismo cívico, é necessário levar em consideração tanto o trabalho
de homens como Petrarca, que contribuíram para o ressurgimento dos
estudos dos textos clássicos, como o processo de consolidação do poder
da oligarquia, que criou as condições econômicas e políticas para que
essa nova elite cultural viesse a se interessar pela participação nas diver­
sas instituições da república. Uma eüte econômica ascendente tinha
necessidade de novos valores para sustentar seu domínio político; os
humanistas, combinando o elogio dos clássicos com o de Florença, res­
ponderam ao desafio, criando um movimento intelectual de grande ori­
ginalidade.

/.2 . Refór/co e buman/smo


No contexto que acabamos de descrever, não é difícil compreender
a importância que teria Cícero para os humanistas florentinos. Em uma
comunidade ameaçada pela guerra e pela ambição dos tiranos do norte
da Itália, a postura do sábio contemplativo parecia insustentável. Era
preciso preservar o patrimônio cultural da Antiguidade, associando-o, no
entanto, a uma ação política eficaz. A retórica era o elo de ligação entre
a cultura clássica e a ação republicana. Sendo necessariamente associada
ã vida cívica, exigindo a presença de homens dispostos a dialogar, eia
tendia por isso mesmo a mudar a concepção da comunicação humana.
Se é evidente que não podemos dirigir-nos diretamente senão aos ho­
mens de nosso tempo, os humanistas descobriram que a troca de idéias
com os homens do passado é tão fundamental à vida cívica quanto um
discurso pronunciado em uma assembléia. Essa volta aos textos do pas­
sado exigiu a elaboração de um método que evitasse as armadilhas das
interpretações medievais, marcadas pela idéia de que os tesouros da
Antiguidade nada mais eram do que uma etapa no longo caminho de
elaboração do conhecimento. Quando Petrarca, usando dos recursos
fornecidos pela gramática e pela filologia^, escrevia cartas a Cícero^ e
propunha novas leituras de seus escritos, ele não o fazia simplesmente
por gosto literário, mas porque essa "comunicação" com o passado era
fonte de uma nova visão da vida política.

26. Ibidem, 284.


27. J. G. A. POCOCK, T&e A&wewl; Princeton Uníversity Press, 1975, 61.
28. H. RARON, op. cit., 122
Os humanistas defrontar-se-iam, no entanto, com uma contradição
interessante. Se os homens só existem como seres particuiares, eies fa­
lam sempre de um ponto de vista particular. Como forjar, então, um
conhecimento que não seja a pura expressão das individualidades? Como
evitar ao mesmo tempo as tentações do relativismo e o realismo do
pensamento medieval? Eles encontraram a resposta a essa dificuldade
mostrando que a política não se reduzia à retórica^ que, sendo a via de
acesso ao mundo público, não podia ser reduzida â idéia de que os
homens se comunicam continuamente na cidade. Conversar com os
antigos representava, pois, uma escolha metodológica e política.
Metodológica, porque os humanistas mudaram completamente a relação
com os textos, que não mais eram vistos como uma simples etapa para
uma forma supehor de conhecimento, nem como um objeto sagrado,
mas como a marca viva de um ato de palavra, que fazia deles ao mesmo
tempo o fio de continuidade de uma verdade transtemporal e um discur­
so de alcance cívico imediato^. Escolha política, porque eles uniram a
retórica â política, insistindo assim no caráter essencialmente social da
humanidade. A verdade deixa de ser um sistema de proposições para
transformar-se em um sistema de relações^', sem que para tanto tenha-
-se de abandonar a idéia da existência de uma certa racionalidade e,
portanto, de certos universais. O grande salto foi mostrar que esses
universais podiam ser conhecidos em um contexto particular, através de
obras particulares, no contato com homens particulares.
Garin resumiu esse desabrochar do humanismo cívico de uma ma­
neira brilhante: "Eram homens para os quais o antigo não representava
um campo de pesquisa erudita e curiosa, mas um paradigma. A huma­
nidade clássica não só havia alcançado uma rara plenitude e harmonia
de vida, mas a havia expressado através de obras de arte e de pensamen­
to, perfeitas quanto a própria vida. Entrar em contato com estas, e por
meio delas com os espíritos que nelas se expressaram, significava dar
início a um colóquio ideai com homens completos, aprender com eles
o significado de uma vida completa. Abrir-se humildemente a estas obras,
e, por amor, transformar-se nelas, significava renovar-se a si mesmo atra­
vés de uma grande riqueza humana, reconquistando para si todos os
tesouros do espírito"^.

29. J. G. A. POCOCK, op. cit., 63-


30. Idem, 62.
31. Ibidem, 63-
32. E. GARIN, op. cit., 93.
Aos humanistas foi ainda necessário explorar as reiações existentes
entre a ação e a constituição do saber, visto que essa questão estava na
origem do que poderiamos chamar de "teoria do diálogo". Ao lado da
busca do sentido propriamente político da ação, impunha-se a pergunta
em tomo de sua eficácia epistemológica, uma vez que, para os humanistas,
só podíamos atingir a essência dos "valores universais" através da "ação
comunicacional*. Era preciso, portanto, conhecer a natureza desse "agir".
Salutati procurou responder a essa exigência retomando a teoria grega
da auto-suficiência da "poíis"^. A "polis", guardando em si mesma o
segredo de sua origem, podia fazer do conhecimento de suas raízes um
conhecimento universal, pois sua fundação é o reflexo hei da vontade
daqueles que a erigiram^. Ao contrário da medicina, que era apenas
aplicação de certas regras a indivíduos particulares, a política podia as­
cender a um conhecimento universal, uma vez que podia ter acesso à
raiz de seu objeto^.
Para fundamentar sua teoria da ação, Salutati foi levado até mesmo
a retomar certos temas do pensamento agostiniano, como demonstra o
trecho que se segue. "Existem princípios que não estão nas coisas exte­
riores, mas em nós, gravados em nossas mentes com tal certeza que não
podem fugir, sem que para conhecê-los nos seja necessário buscá-los
fora, pois como vê, estão no mais profundo de nossso ser". Ele insiste, um
pouco mais a frente: "As leis possuem a infalibilidade das coisas promul­
gadas pelo homem e contêm em-si a razão natural, que todo homem de
mente sã é capaz de ver ou pode descobrir meditando e discutindo"^.
Retomando aqui a idéia de "lei natural"^, Salutati tenta demonstrar a
eficácia dos atos humanos no movimento de construção do mundo. O
saber "ativo", o conhecimento das leis, era mais seguro, porque podia
explicitar o ato de instituição das leis e, portanto, das sociedades, de
dentro do processo que lhes dera nascimento. Assim, Salutati concluía:
"Em primeiro lugar, não é diferente o fim da política e aquele das leis,
uma vez que se dirigem ao mesmo fim. Ora, as leis e a política distin-
guem-se apenas pelo princípio racional da norma que dele deriva"^.

33. E. GARIN, op. cit., 35. Pata um comentário sobre a idéia de autoctonia na Grécia
antiga, ver N. Loraux, íe s di4a&ewt, Editions La Découverte, 1990.
34. Ver C. SALUTATI, De AbhMíate íegMM et Afedlclna^ Valiecchi, 1947.
35. Garin chega mesmo a pensar que existe uma certa identidade entre o pensamento
de Vico e o dos humanistas sobre esse ponto., op. cit., 55.
36.C. SALUTATI, C. 89, citado por E. GARIN, op. cit., 40-41.
37. Ver a esse respeito E. GILSON, /HffiodMcdow d de AatgMsMw, J. Vrin,
1986.
38. C. SALUTATI, De et Aíed/c&Me, 169-
Salutati restaurou a confiança nas leis humanas conferindo-lhes o
estatuto de "verdade". A partir de então, a particularidade da república
não se constituía mais em seu ponto fraco, mas, ao contrário, na expres­
são de sua força. Para ele, a "eternidade" das leis não advinha do fato de
que haviam sido promulgadas peio Papa ou pelo imperador, mas sim de
sua origem divina. Sendo assim, elas podiam ser válidas tanto no império
como em uma república particular. Devemos lembrar, para compreender
esse debate, que o grande problema de legitimação das repúblicas, na
época de Salutati, era ju.stamente o fato de que elas pareciam ser prisio­
neiras do tempo, por não possuírem nenhum elemento de continuidade,
como as estruturas tidas como eternas: a Igreja e o Império. Mas o ob­
jetivo de Salutati não era, como pode parecer, combater o Império ou o
Papado, mas afirmar a suprema dignidade da ação humana. Sua posição
seria considerada um verdadeiro paradigma pelas gerações posteriores,
que tiveram diante de si a tarefa não só de defender a república contra
os ataques da Igreja, mas, sobretudo, de elaborar uma explicação teórica
para o poder republicano que dominou Florença durante mais de duzen­
tos anos.
Devemos, no entanto, retomar ainda uma vez à retórica, para com­
preender o papel decisivo que desempenhou na vida intelectual e polí­
tica florentina durante todo o "quattrocento". Encontramos um bom exem­
plo desse emprego político da retórica na obra da Leonardo Bruni —
Dírdogn r? L%v %7g<?n'd^. Os estudos de Baron sobre essa obra
podem ser de grande utilidade, se deixarmos de lado o fato de que ele
usou suas análises para sustentar a tese da constituição do humanismo
cívico na crise dos anos 1400^. Mesmo se considerarmos que parece
exagerado tentar datar o nascimento de um movimento intelectual, como
iez Baron, não resta a menor dúvida de que a obra que vamos analisar
espelha uma mudança radical na teoria política renascentista.
Logo no com eço do diálogo, Salutati insiste, pela fala de seu perso­
nagem, na importância das discussões públicas. "Não posso dizer, meus
jovens amigos, quanto prazer eu sinto em estar com vocês, que, pelos
hábitos, pelos estudos em comum, por vossa devoção a mim, me fazem
sentir um afeto muito particular. Em um só ponto, mas importantíssimo,
eu não os aprovo inteiramente: enquanto em todas as coisas que dizem
respeito aos vossos estudos eu noto que vocês se dedicam com o afinco

39- L. BRUNI, "Dialogo a Pier Paolo Vergerio" ia PTosatort íatp ii dei QíKtRrocentp.
Einaudi, 1952.
40. Todo o décimo primeiro capítulo de seu livro é dedicado a este problema; H.
BARON, op. cit., 225-244.
e a atenção necessários àqueles que querem aprender, vejo uma coisa
que deixam de iado, sem preocupar-se como convém; e esta é o hábito
de discutir".'" Mais longe ele dá um tom ainda mais incisivo às suas
críticas: "É absurdo falar consigo mesmo, examinar questões na solidão,
entre quatro paredes, e depois, no convívio com os outros homens,
caiar-se como se nada soubesse; procurar com grande esforço o que é
de pouca utilidade e abandonar de coração ligeiro o que é benéfico para
muitos"^.
A essa reprimenda, o personagem Niccoii tentará responder fazendo
apelo a três temas clássicos do humanismo horentino: o ataque contra o
pensamento medieval^, o elogio dos autores latinos^e a crítica dos três
grandes de Florença — Dante, Petrarca, Bcccaccio^. O tom empregado
na resposta é retórico, cada palavra é pesada, cada frase busca um efeito
preciso, mesmo ao preço de exageros, para convencer os interlocutores.
Essa maneira de escrever deixa visível, no entanto, o fato de que toda a
retórica da época se baseia numa imitação mais ou menos direta dos
escritos de Cícero^. No caso de Bruni, ele seguia sempre um modelo
clássico, imitando não só o latim, mas principalmente a forma dos diá­
logos, apenas substituindo os personagens tradicionais pelos habitantes
de Florença^. O que é intrigante no texto que estamos analisando é que
a segunda parte do diálogo muda completamente o tom da primeira.
Niccoli, que no início havia atacado duramente Dante, chega a pedir a
Salutati para fazer seu elogio. Baron viu nessa mudança de tom o sinal
da transformação pela qual passou a cultura política florentina após o
impacto da crise dos anos 1400, que quase custou a liberdade a Florença.
De nosso lado, preferímos pensar que Bruni não faz mais do que imitar
o De Oratore de Cícero^, em que a mesma mudança de rumo parece

41. L. BRUNI, Dialogo 47.


42. Idem, 50.
43- "Mente adãto: contro di !ei è partita aiTattacco anche quelía barbahe che abita aJ
di )à de!l'Oceano. Che gertti, miei dei! giá otride neí nomi, Ferabrich, Buser, Occam, e
simili, che mi sembrano tutti venuti fuori dada schieza di Radamanto". Ibidem, 59-
44. "ll padre síesso dei padaie latino, Marco TuJlio Cicerone, dei quale io, Salutati, mi
soffermo a pronunciare i tre nomi, per averlo piu a lungo in bocca, a tai punto egii è per
me come un dotce cibo". Ibidem, 59-
45- "Per cominciare da Dante, aeui tu non anteponi neppure Virgiito, non lo vediamo
incortere in ertori cosi frequend da sembrare ignorante d ogni cosa?" Ibidem, 6p.
46. H. BARON, op. cit., 231-232.
47. G. HOLMES, 77?e Weidenfeid and Nicoison,
1% 9, 18.
48. Para Baron, trata-se, ao contrário, de uma uma questão central. Eia é a prova da
existência de uma ruptura radicai durante a guerra contra Milão. H. BARON, qp. cit., 232
-SS.
servir para aumentar o poder de persuasão do texto. Qualquer que seja
a solução do enigma, é preciso ver que o valor atribuído ás "conversa­
ções cívicas" é mantido, senão reforçado. Niccoli reconhece ter exagera­
do em sua primeira faia, mas ele o fez para provocar a reação de seu
interlocutor, o que é um procedimento absolutamente legítimo entre
homens cultos, que buscam a melhor expressão para seu saber.
Todos esses exercícios não teriam a menor importância, se não tives­
sem ocasionado uma mudança profunda no comportamento dos cida­
dãos que frequentavam as assembléias públicas. Analisando as "pratiche"
do final do "trecento", espécie de assembléias consultivas às quais dedi­
caremos especial atenção em nosso segundo capítulo, tomando como
exemplo uma de 1409, verificamos que uma verdadeira revolução ocor­
reu no discurso dos participantes^. Sob o influxo da produção humanista,
os cidadãos aprenderam a força da expressão oral. Não só a duração das
"pratiche" aumentou, mas, sobretudo, mudou o conteúdo que se apro­
ximou cada vez mais de temas típicos da retórica romana. No começo do
"quattrocento", a combinação dos estudos clássicos com a aspiração a
uma vida política renovada deu nascimento a um movimento cultural e
político extremamente original. A retórica forneceu o elo necessário entre
os eruditos e uma sociedade de mercadores, num momento em que a
busca de uma nova identidade permitiu a abertura de fronteiras desco­
nhecidas pelas comunas medievais.

1.3. C o /u c c /o Sa/ufaM

Nesse período de profundas mudanças, Coluccio Salutati teve um


papel fundamental. Eleito Chanceler em 1375, cargo que conservou até
1406, teve uma participação decisiva em quase todos os movimentos
políticos da República Florentina. Com ele, muda sobretudo o significa­
do desse posto. Se, a prto7% o Chanceler tinha por função apenas escre­
ver cartas aos govemos estrangeiros^, com Salutati iria transformar-se no
elemento de continuidade dos mecanismos governamentais constituídos
por um complexo emaranhado de magistraturas^'. A partir dessa época,
o cargo seria um ponto de passagem obrigatório para todos os humanistas
que almejavam participar diretamente da vida política da cidade. Ocupá-
-lo significava, de um lado, o reconhecimento público dos talentos literá-

49. G. BRUCKER, op. cit., 286.


50. E. GARIN, .Scíetaza e V%3 CMáe Mt?/ líafiaMO, Laterza, 1985, 2.
51. idem, 3.
rios do pretendente; de outro, dava acesso â carreira política a homens
que, não pertecendo ás classes dirigentes, como foi o caso mais tarde de
Leonardo Bruni, desejavam integrar-se no governo.
A obra de Salutati fomece-nos um documento interessante para a
compreensão da passagem da problemática política medievai para a re­
nascentista^. Homem extremamente marcado pelos valores cristãos, ele
foi capaz de dar expressão teórica às suas dúvidas e perplexidades,
através de uma reflexão que incorporava de maneira surpreendente as
lições que retirava de sua prática política cotidiana^. Suas cartas, como
suas obras teóricas, constituíram-se no núcleo a partir do qual o
humanismo cívico se desenvolveu. Com ele, vemos aparecer todos os
temas característicos desse movimento intelectual: o elogio da liberdade
e da "vita civíle", a condenação da tirania e de seus excessos, o amor aos
clássicos, a associação da retórica à vida política. Analisar alguns aspec­
tos de sua obra é, pois, essencial para compreender o pensamento po­
lítico florentino do "quattrocento", que estará na raiz das reflexões de
Maquíavel, cem anos depois.
Na obra já citada, Dc Aò&íHfafe ícgum ef Salutati preo­
cupa-se em distinguir o conhecimento das leis daquele próprio aos
médicos. Mais do que operar a distinção entre um saber de caráter
empírico e um saber teórico, ele procura, usando para isso alguns ele­
mentos da teoria política de Santo Agostinho, encontrar a validade prá­
tica de um conhecimento que deveria espelhar um ponto de vista uni­
versal. Assim, reconhece que: "Deus governa todas as coisas e também
os homens", para acrescentar: "Sendo por isso cada ato humano propria­
mente livre, sendo a liberdade propriedade da vontade e da razão, sendo
o objeto da vontade um fim e um bem, segue daí que o homem, enquan­
to homem, age sempre em busca de um bem e de um Não há aí

52. Nós usamos aqui sobretudo as seguintes obras: C. SALUTATI, "Invettiva contro
Antonio Loschi da Vicenza" in Pmsaíori íatfn f de/ QtMMfrocenfo, Riccardo Ricciardi, 1952.
De er L. S. Olschki, 1957, De DgMM ef Vallechi,
1947, /%?ísJo&3rio, fbrzaMi, 1905, de W. Rothschild, 1914.
53- Tal é a posição de R. G. WtTT, Cb/uccfo %wd [&R/%ó%;Zg#efs; Droz, 1976.
Analisando a obra de Salutati com uma metodologia própria aos historiadores das idéias
ele afirma: "Like the traditional missive íorms in which they are expressed, the poiiticai
ideas ibund in Salutatis public ietters are oh the whole conservative and within the me­
dieval framework of poiiticai ideas": op. cit., 80. Parece-nos que, se o aspecto medieval do
pensamento de Salutati é evidente, é necessário compreeender como fbi ele capaz de
apreender o movimento de mudança de uma sociedade que lentamente deixava de lado
as antigas estruturas hierárquicas
54, C. SALUTATI, De A&Mi&de et AfedicóMte, 15.
nada de novo no que se refere ás teorias medievais sobre a vontade, mas
ao associá-las ãs idéias de Cícero, Salutati chega a uma conclusão inversa
à dos pensadores medievais. Para ele, a "vida ativa é superior à "vida
contemplativa": "Que eu, ao contrário, esteja sempre imerso na ação,
atento ao fim supremo, que cada ação minha seja proveitosa para mim,
para minha família, para meus parentes, e, o que é ainda melhor, que eu
possa ser útil aos amigos e à pátria e possa viver de modo a servir à
sociedade humana com exemplos e obras"^.
Salutati evitou, no entanto, chocar-se com a tradição medieval, opondo
a ação â contemplação no sentido religioso. Ele opõe a ação à especu­
lação, que ele identifica com a busca de uma ciência abstrata do ser^.
Apesar desse artifício, suas intenções são claras: trata-se de fazer o elogio
da vida em comum, da vontade livre e soberana. Desse ponto de vista,
as leis, sendo uma mistura dos atos da vontade com os mandamentos de
Deus, representam de alguma maneira a continuidade da palavra divina
na terra^. Ele seria, portanto, o único humanista a tentar explicar a su­
perioridade da vida ativa sobre a vida contemplativa partindo da teoria
cristã da vontade livre. Depois dele, os pensadores florentinos veríam na
vida ativa uma parte da essência da cidade republicana, por oposição à
vida dos homens submetidos a uma tirania, em que toda a capacidade
de agir de acordo com as decisões da vontade é freada pelos atos de
violência do tirano. Salutati, ao contrário, buscava os fundamentos
ontológicos dessa "nova forma de vida". Tentava fazer coincidir uma
nova vida política com uma nova filosofia. Nesse sentido, pouco importa
que seu sistema seja no fundo contraditório; num momento de transição,
ele foi capaz de ver as opções que se apresentavam à sociedade florentina
e tentou encontrar um fundamento sólido para a forma de governo que
considerava como a mais justa: a república. O fato de que seus discípu­
los não tenham sido capazes de dar continuidade a seus esforços de
caráter propriamente filosófico não nos permite concluir, como fizeram
certos intérpretes, que sua obra é uma mera cópia das filosofias medie­
vais. Homem ligado aos valores cristãos, ele foi sobretudo um homem de
ação, capaz de pensar a política com extremo realismo. Uma boa ilustra­
ção dessa sua capacidade de olhar a política com olhos argutos e abertos

55- Jdem, 181.


56. "In questo senso confesso che la vita attiva precede neí tempo, mentre !a
contemplazione se seque nel tempo, incomparabÜmente precede per natura e per valore:"
Ibidem, 39.
57. "...che le leggt dipendano da))a voiontâ sono piú nobiii dali a medicina che riguarda
1'intelietto". Ibidem, 195.
é o fato de que, apesar de suas claras preferências pela república, ele
desenvolveu toda uma teoria sobre a tirania. Em sua obra De 7yn??iMO,
ele mostra que a república, sendo a melhor forma de governo, não
impede que em situações diversas outras formas de governo sejam legí­
timas, ou até mesmo mais adequadas do que o regime republicano.
Deixemos de lado, no entanto, as considerações sobre a tirania para
ver como Salutati pensava a questão da liberdade. Em sua obra
(xwrm Zora&i encontramos misturados a busca de
eleitos retóricos com reflexões filosóficas clássicas. Assim, no intuito de
ferir seus adversários, Salutati recorre a frases como: "...por isso olha e
reconhece tua ignorância e teu erro; aprende, besta raivosa e imbecil"^.
Mas ele tem também a intenção de precisar seus argumentos e de apoia­
dos sobre uma base racional, que, mesmo comprometida pela busca da
melhor expressão literária possível, é fonte de uma teorízação rigorosa
da questão.
A phmeira vez que Salutati se refere â liberdade de maneira mais
sistemática no panfleto, ele diz: "Veremos, e já vistes, vês e verás a força
e constância mais que romana do povo florentino ao defender a doce
liberdade, que como foi dito, é um bem celeste que supera todas as
riquezas do mundo! Todos os florentinos têm no ânimo o propósito de
defendê-la com a vida, mesmo com mais que a vida, com as riquezas e
com as espadas, para deixar aos filhos essa ótima herança que recebe­
mos de nossos pais, para deixá-la, com a ajuda de Deus, unida e
incontaminada"59.
A liberdade é, pois, uma essência associada à existência da cidade,
e deve ser defendida contra seus inimigos, antes mesmo que sejamos
capazes de elucidar seus aspectos teóricos. Para Salutati, além do mais,
a liberdade jamais é uma questão meramente conceituai. Mesmo quando
ele se preocupa em associá-la ao exercício da vontade, insiste em mos­
trar que só podemos conhecê-la a partir de seus efeitos públicos; ou seja,
não é o exercício solitário de nossa faculdade de escolha que revela ao
mundo a dimensão fundamental da liberdade, mas os atos que espelham
as escolhas que efetuamos.
Para explicar as relações complexas entre um corpo político e sua
constituição, Salutati recorre a uma teoria engenhosa da fundação da
"polis". Herdeiro da noção de "pátria" dos medievais, usando conceitos
romanos como o de glória, ao lado da idéia de guerra justa*^, ele pensa

58. C. SALUTATI, Invettiva 11.


59. Idem, 15-
60. Segundo Kantorowicz, Salutati chegou até mesmo a justificar o massacre dos inimi­
gos em nome da pátria, op. cit., 245.
a liberdade como uma essência da cidade, que só pode ser conhecida
através de sua história. Descobrir no tempo as origens de uma cidade
corresponde a descobrir a substância mesma da qual ela é feita. Assim,
depois de analisar algumas fontes históricas, conclui: "...n ão é surpreen­
dente, pois, partindo de tantos elementos, que tenha permanecido cons­
tante e inextinguívei a tradição segundo a qual nossa cidade íbi uma
construção romana oposta aos Fiesolani"^. Essa teoria, que faz de Flo-
rença uma república de origem romana, seria reproduzida por quase
todos os humanistas ao longo do "quattrocento", transformando-se numa
das peças centrais dos discursos pronunciados por simples cidadãos nas
"pratiche"^. Ao lado desse uso imediatamente político das idéias dos
humanistas, vemos surgir uma nova historiografia, preocupada em resti­
tuir a verdade da fundação das repúblicas e, assim, em compreender a
"libertas" florentina através da análise dos fatos do passado que lhe deram
origem. Salutati nos dá uma definição da liberdade que leva em conta
essas novas teorias: "...com o podem desejar mudar, como você parece
acreditar, em uma tirania o doce freio da liberdade, que é o viver segun­
do o direito e segundo as leis, ao qual todos estamos sujeitos?"^ o
núcleo dessa definição é a identidade entre liberdade e lei. Fíorença
configurava-se, assim, com o uma nova Roma, como uma república tem­
perada no sentido aristotélico, como a única cidade que preservara a
herança da Antiguidade^, porque guardava ainda as mesmas caracterís­
ticas de sua primeiia constituição livre.
Mas Salutati estava consciente de que a simples afirmação da iden­
tidade da lei com a liberdade não era suficiente para estabelecer os
critérios capazes de mostrar as diferenças entre uma cidade cuja origem
era livre e uma tirania, ou uma monarquia, uma vez que era sempre
possível conceber uma forma política imperfeita fiel às suas origens. Para
ele, ao contrário dos humanistas posteriores, a monarquia podia ser
considerada um regime legítimo em determinadas circunstâncias, o que
mostrava os limites de uma definição da liberdade que levasse em conta
apenas a relação com as ieis^. Mesmo sendo republicano convicto, ele

61. C. SALUTATI, op. cie, 21.


62. Segundo Brucker, já no começo do "quattrocento* alguns Horentinos faziam apelo
às ohgens livres da cidade por ocasião dos debates públicos, op. cit., 290.
63. C. SALUTATI, op. cit., 33.
64. Evidentemente as questões militares já eram objeto de preocupação e debate para
os homens públicos Horentinos, mas será necessário esperar Bruni para vermos a questão
ser tratada de maneira sistemática. Segundo Skinner, no entanto, já em Petrarca existe um
esboço de reflexão sobre a questão das milícias, op. cit., 75.
65. D. ROSA, Cb/wcc/o <? fí pe?ía?fcw La Nuova Italia,
1981,149-
sabia que, em algumas situações, somente a concentração do poder nas
mãos de um só é capaz de evitar a totai degradação do corpo político.^
Portanto, para eie, o regime que se opõe ã república não é a monarquia^
mas a tirania em que a idéia mesma de lei não se aplica. Diante da
fragilidade das instituições republicanas e da dificuldade em mantê-las,
Salutati faia com extremo realismo da vida nas cidades que almejam a
liberdade. "Quando uma cidade se libera da opressão de um tirano, os
vários membros que compõem o corpo do Estado tardam a recuperar as
funções que lhes são próprias. Essa situação é muito perigosa se algum
remédio não é encontrado com rapidez, pois cada um continua a pensar
naquilo que pode lhe ser útil contra seu próximo. Os amigos da liberda­
de não retornam à vida pública deixando seus negócios privados. Labo­
riosa e difícil é a liberdade, de tal maneira que vemos alguns se habi­
tuarem tanto à servidão que chegam a desejar, como loucos furiosos,
retomar ao jugo do tirano'^.
A dimensão institucional da liberdade não nos revela toda a comple­
xidade do problema, pois deixa de lado um outro aspecto essencial da
questão, que é a liberdade pensada como independência em relação aos
Estados estrangeiros. Essa dimensão "externa" da liberdade nos conduz
díretamente a um tema central no pensamento de Salutati: a paz. Para
ele, mais importante do que a forma constitucional de um Estado, é sua
capacidade de preservar a paz^. Diante da ameaça das discórdias e das
guerras, um governo monárquico é não só admissível, mas desejável.
Para compreender o verdadeiro horror que Salutati tinha aos tumultos,
basta estudar a evolução de sua interpretação da revolta dos "Ciompi".
Em uma carta de 3 de fevereiro de 1380^, ele se mostrou até mesmo
compreensivo com a atitude dos operários, que desesperados com as
péssimas condições de vida, haviam tentado forjar uma via de acesso aos
postos mais importantes do Estado ílorentino. A evolução da situação
florentina conduziu Salutati a pensar que os "Ciompi" haviam sido não
só inimigos de Florença, mas inimigos mais perigosos que os Visconti, o
que justificava, a seus olhos, o emprego de qualquer meio para acabar

66. "Ii Salutati dunque non rínnegava i pregi dei governo repubMtcano, ma anuneteva
anche ia iegíttimità e ia vaHditâ deila monarchia, purché i suoi rappresentant) si mostrassero
soiiecítí dei benessere pubblico e rispettasseio le teggi da essi stessi emanate". D. ROSA
op. cit., 153-
6 7 / C. SALUTATI, íp . Feg 17, c l l l r , citado por D. ROSA, op. cit., 146.
68. D. ROSA, op. cit., 154.
69- Ver E. GARIN, Sciemra e cMA? Mel .MMáycímeKfo TMliano, 8-9.
com a revolta?". Diante da ascensão da oligarquia durante o "quattrocento",
essa posição seria cada vez mais consolidada pelos discípulos de Salutati
que, menos sensíveis às lutas sociais que caracterizaram o "trecento",
pensavam apenas na consolidação do poder da nova classe dirigente?*.
Desse ponto de vista, o De ocupa um lugar natural na
evolução do pensamento de Salutati. Baseado em grande medida nos
escritos de Bartolus de Sassoferato,?^ ele surpreende apenas aos intérpre­
tes que, como Baron, insistem em datar o nascimento do humanismo
cívico na crise dos primeiros anos do "quattrocento". ?s Destinado a dife­
renciar o governo tirânico do monárquico, ele é o único tratado da
época a propor uma explicação elaborada da transição da república ao
império romano. O ponto de partida dessa explicação é a diferença entre
o "tyrannus e x parte exerdtii" e o "tyrannus ex defectu tituli"?^ César, ao
ocupar o poder num momento em que a paz, ou até mesmo a sobrevi­
vência da república, estava ameaçada, não o fazia em contradição com
o espírito público, mas sim para salvá-lo, quando todas as instituições
republicanas se mostravam incapazes de conter o avanço da corrupção.
O gesto de César marcou o fim da república, mas não foi a causa da
perda da liberdade, devida, isso sim, às sucessivas crises pelas quais
vinha passando Roma. Salutati era capaz de pensar com realismo uma
transição que seria mais tarde o paradigma da traição ao espírito repu­
blicano. Para ele, mais do que um tirano, César foi um monarca que
tentou salvar com sua autoridade uma cidade ameaçada pela violência
de suas lutas internas.?^

70. "Nietife, Aateiíí carissimí, ín un stato è piu pericoioso, piu esiziale deita discórdia
intestina, se si gíunge a))o scontro aperto ed ai sanque": Saiutati, Afísslfe, reg 17, c74 . r;
citado por D. ROSA, 155. Em um carta e!e faia dos Ciompi de uma maneira ainda mais
dura: "I Ciompi, invece, sono definiti gente viie e sórdida, povera di mezzi, infida, mobiie
ed avida di novità": cit., C. SALUTATI, Ep H 86, citado por D. ROSA, op. cit-, 133.
71. í . BRUNI, í # MMipenaale de' sMoí tcrMpi, F. Sansovino, 1561. O começo do
nono iivro ê dedicado aos Ciompi.
72. Para a obra de Bartolus de Sassoferato ver o comentários de E. KANTOROWICZ, op.
cit., 466-477. Ver também Q. SKINNER, op. cit., 62-65. Para uma edição do tratado De
fyfWMHá?, ver E. EMERTON, Rudies A? RaRaw Harvard
Universíty Press, 1926, 119 ss.
73. Baron se refere a Saiutati nestes termos: "...but we must aiso iearn to see Saiutati as
a chíld o f his own generation, stiü stronghiy medievai, stiii groping — as the younger
humanists saw him, and as Bruni sketched him in his early wrítings: an aiiy in spirit, to be
sure, but just as much a representatíve o f a past that had to be overcome tf Quattrocento
Humanism was to come into its own": op. cit., 105.
74. Idem, 161.
75. Ibidem, 163-
O pensamento de Saiutati marca, pois, a passagem das teorias polí­
ticas medievais para o humanismo cívico, que está na origem do pensa­
mento de Maquiavel. áe está eivado de contradições, isso, longe de
desmerecê-lo, o toma mais rico para aqueles que querem compreender
a formação das teorias políticas modernas.

!!. A LIBERDADE E A AÇÃO NA TEORIA POLÍTICA DO


"QUATTROCENTO"

//.V, A Laudafio Ftorentinae Urbís de Leonardo Brun/ e a novo


teoria da história
Com a morte de Salutati, a fase heróica do humanismo cívico chega
ao fim. Em 1406, Florença possuía um grupo significativo de intelectuais
que garantiu a continuidade dos esforços dos homens do "trecento",
fazendo do estudo dos clássicos a fonte da cultura nascente. Entre esses
homens, Leonardo Bruni ocupou um lugar especial. Discípulo direto de
Salutati, conhecedor profundo do latim e do grego, escritor de talento,
vemos cruzarem-se em sua obra todos os temas centrais do humanismo:
a questão da liberdade, uma nova teoria da história, o elogio da "virtu"
no seu sentido romano e uma nova abordagem da questão militar. Para
ele, a filosofia medieval não e mais o interlocutor privilegiado, ela não
será nem mesmo combatida, pois não terá nada a dizer sobre os temas
que dominam seu pensamento. Por outro lado, Florença, depois das
campanhas contra Milão, conheceu um período de relativa estabilidade,
durante o qual a busca das alianças com outras repúblicas, contra as
tiranias do Norte, seria seguida pela plena incorporação das idéias re­
publicanas na vida política.
Nesse período de consolidação do poder oligárquico e da nova
cultura, a Mr&ts, de Leonardo Bruni, foi a obra mais
importante^. Partindo do elogio de Atenas feito por Aristides, copiando
por vezes explicitamente alguns trechos do texto grego, Bruni foi capaz
de criar um planfleto verdadeiramente originai. Em uma obra, cujo prin­
cipal objetivo é descrever a cidade de Florença, ele prefere, contraria­
mente aos medievais, falar da geografia e da constituição da cidade. Para
Bruni, Florença era a cidade ideal, tanto pelo conjunto de suas edificações,
como pela centraüdade de suas formas — "a lua circundada pelas estre-

76. L. BRUNT, "taudatío Ftorentinae Urbis* in H. BARON, From Petrarch to Bruni,


tu Umversity of Chicago Press, 1%8.
ias" diria^. Além disso, ela espelhava uma harmonia sem precedentes
para as cidades da época: "Nada é desordenado, nada inconveniente,
nada sem razão, nada sem fundamento; tudo possui seu lugar, e não
somente certo, mas conveniente e devido" 7"
Algumas das observações referentes à arquitetura e ao urbanismo
feitas por Bruni transformar-se-iam em paradigma para os escritores da
Renascença. Assim, as idéias de que toda cidade deve possuir um rio que
a corte ao meio, de que os edifícios públicos devem se situar no centro
da cidade, de que se deve estar atento âs estações quando da construção
das casas serão aiguns dos elementos centrais das teorias urbanas que se
desenvolverão mais tarde^. A partir de então, o modelo ideal deve ser
buscado em Florença, que "... em esplendor supera todas as cidades
existentes; em graça vence aquelas que hoje existem e aquelas que
existiram""". O elemento real combina-se com o ideal para produzir uma
visão idílica do fenômeno urbano.
Mas a originalidade da obra de Bruni não deve ser buscada apenas
em suas teorias arquiteturais e urbanas; é sobretudo no campo da polí­
tica que ela aparece. Suas descrições físicas são acompanhadas de uma
análise detalhada da constituição de Florença, fundada, segundo ele,
sobre dois princípios: "ius" e "libertas""'. Dos dois, a liberdade é o mais
importante, pois incorpora em si a justiça, fazendo desaparecer a ambi­
guidade que acompanhara a obra de Salutati, que ainda pensava a liber­
dade como uma faculdade da vontade. Em Bruni, não existe a associação
entre liberdade e indivíduo, ela está sempre associada ao exercício da
cidadania. O que importa são os laços que unem os homens à "polis",
e não mais seus atos individuais. A essa primeira referência â constitui­
ção de Florença, Bruni ajuntaría uma série de análises de mesma natu­
reza, como numa carta de 1413, endereçada ao Imperador Sigismundo,
em que ele afirma que a liberdade da origem ao único regime justo: a
república"^.
Apesar da originalidade de Bruni, devemos ter cautela ao analisar
seu pensamento, pois ele é portador da contradição que dominou todo

77. L. Bruni, "Lavdatio ..." Foi. 139, citado por H; Barort, op. cit., 200.
78. L. BRUNf, op, cit,, citado por B. GARIN, e cfMVe..., 39-
79- E. GARIN, op. cit., 41.
80. L. BRUNI, íMtráqgo Einaudi, 1976, 7.
81. Cf. o artigo de N. RUBINSTEIN, "Florentine constitutionaiism and Mediei Ascendancy
in the Fifiteenth century" in Poliftcy Aíbreoce,
ed. Rubinstein, Faber and Faber, 1968.
82. H. BARON, "The Crisis..." 207.
o humanismo cívico. A já referia a identidade entre liberdade
e igualdade como o núcleo da constituição florentina. Mas tal afirmação,
que parece carregar toda a novidade do pensamento de Bruni, não faz
mais do que reproduzir a tradição da cidade que, desde 1329, havia
criado uma lei para impedir sua transformação em uma tirania. Tal lei
partia exatamente da idéia de que a igualdade reinante em Florença não
permitia que um tirano viesse romper um equilíbrio sem o qual a iden­
tidade da "polis" deixava de existir. Esse equilíbrio das várias partes
chamava-se liberdade. Podemos constatar toda a força dessa tradição
quando verificamos que a expulsão do Duque de Atenas, que pretendera
ocupar o poder de maneira tirânica, foi justificada ao Papa pelo fato de
que o Duque rompera a promessa de manter Florença "...in solito et
consueto officiorum regimine"^. Bruni, portanto, apenas dava consistên­
cia ideológica a uma noção que já pertencia ao universo político florentino.
Mas, prestando uma atenção exclusiva aos dois princípios aos quais nos
referimos, ele deixava de lado as verdadeiras contradições que domina­
vam a política da época. Em primeiro lugar, o fato de que a oligarquia
dominava quase inteiramente o governo tornava difícil a identificação de
Florença com uma república temperada, como pretendia Bruni. Em se­
gundo lugar, o que observamos a partir da revolta dos "Ciompi" é que
o acesso aos postos públicos tomou-se cada vez mais difícil para os
operários e assalariados, fazendo com que a própria lisura dos processos
eleitorais fosse frequentemente contestada, devido à presença dos
"accopiatori", que, manipulando os votos, permitiam a algumas famílias
ocupar inteiramente o poder, sem que para tanto as instituições deves­
sem mudar de forma"t Isso nos conduz a pensar que Bruni nunca foi
capaz de pensar a natureza da igualdade florentina. Em sua
tenta pensar o governo de Florença como um governo misto, meio aris­
tocrático, meio democrático, mas mostra-se incapaz de abordar temas
que, no entanto, estavam intimamente ligados à problemática de que ele
trata: a igualdade diante das leis, a possibilidade para todos os cidadãos
de ocupar um cargo público, a liberdade de expressão essencial a toda
república popular. Seu mérito foi o de transformar as reivindicações
concretas dos diversos grupos políticos em um produto literário acaba­
do, fazendo da questão política o núcleo das preocupações do

83. N. RUBINSTBIN, op. cit., 449.


84. Cf. D. KENT, RKp Qf A&e 7-lsction in 2426-74.% Oxford University
Press, 1978.
85. Ver L. MARTINES, T&e o/* 2-7oreM/iHe TAtmanisR, Routledge and
Kegan Paul, 1963, 166.
humanismo. Todavia, essa sensibilidade para a vida pública não resul­
tou, em sua obra, em uma melhor compreensão das verdadeiras trans­
formações pelas quais passava Florença desde a revolta dos "Ciompi".
Assim, depois da ascensão dos Medieis ao poder, ele oscilou entre o
desejo de conservar seu posto na chancelaria e uma análise cada vez
mais aguda dos problemas da constituição florentina^. Fez de sua obra
o ponto de convergência entre uma grande erudição e uma verdadeira
paixão pelos negócios públicos, mas não chegou a explorar as contradi­
ções que ele mesmo apontava no humanismo e na vida política florentina.
Se seu aparelho conceituai é muitas vezes insuficiente, ou mesmo
contraditório, não podemos negar que, no que toca aos conceitos fun­
damentais do humanismo cívico, Bruní fez um gigantesco esforço para
tomá-los mais claros e compreensíveis. Assim, na ele fala da
liberdade florentina da mesma forma como já o fizera Salutati, ou seja,
como uma herança romana, mas não cai na tentação de uma conciliação
com a filosofia medieval. Ao contrário, o que ele tenta em suas
Norentmas é demonstrar que já existia na Etrúria uma república, antes
mesmo que os romanos aí fundassem uma cidade livrei. Reconhecendo
que a Toscana fora uma terra de liberdade, Bruni acreditava dar mais so­
lidez à liberdade florentina, enraizando-a em um passado ainda mais
remoto^.
Esse recuo ao passado não o impedia de se referir á Antiguidade
como a um tempo que chegara ao fim e que só podia ser pensado
através de seus textos. Para compreender a distância que separava seu
tempo desse momento luminoso do passado, Bruni enunciou pela pri­
meira vez a idéia de que a idade média fora na verdade a idade das
trevas, que finalmente estava por ser superada pelas conquistas da Re­
pública de Florença e pela redescoberta dos tesouros literários dos gre­
gos e dos romanos^. A continuidade entre o mundo romano e a Renas­
cença era possível porque a herança de homens como Cícero havia sido
apenas eclipsada, e não destruída e os humanistas mostravam-se capazes
de recuperá-la em todo seu esplendor.
A simples idéia de renascença não era capaz de explicar, no entanto,
esse grande movimento de volta ao passado; era preciso abandonar a
teoria agostiniana da história linear para encontrar uma explicação cria­
tiva para a "regeneração" florentina. Aristóteles não parecia capaz de

86. N, RUBINSTEIN, op. cit., 455.


87. H. BARON, op. cit., 65.
88. L. BRUNI, "Laudatio..." Foi. 144v, citado por H. BARON; op. cit., 74.
89. Q. SKINNER, op. cit., HO-111.
fornecer o modelo necessário para. a compreensão dessa volta aos valo­
res do passado, os humanistas foram buscá-lo em Políbio. Com efeito, no
sexto livro de suas Políbio nos dá a chave para compreender
a historiografia do "quattrocento"^. Para ele, o importante era, antes de
mais nada, refletir sobre a instabilidade das formas constitucionais atra­
vés da análise da lógica de suas transformações. Ele retoma, assim, a
ciassificação platônica dos regimes (ligeiramente modificada) e procura
mostrar a ordem necessária das transformações pelas quais vão passar.
Assim, por exemplo, de uma aristocracia passa-se sempre a uma oligar­
quia e essa mesma regra aplica-se a todas as outras constituições^. Trata-
-se de um círculo inexorável, que exprime uma lei da "physis", e que não
pode ser mudada pela ação humana, mesmo quando um bom legislador
erige a melhor das constituições. A única possibilidade de escapar a essa
lei é construir uma forma constitucional que seja a mistura de todas as
formas perfeitas e que faça coincidir no tempo as virtudes de cada uma
delas. Não é difícil percelier que Bruni seguia Políbio quando tentava
identificar Florença à "poEteia" grega, que de fato correspondia à descri­
ção polibiana de uma república de longa duração.
Mas a teoria da circularidade da história teve efeitos ainda mais
profundos do que o de permitir uma leitura dos eventos do presente à
luz daqueles do passado. Em primeiro lugar, ela permitiu aos humanistas
pensar a finitude de uma estrutura de poder que encontrava sua identi­
dade no fato mesmo de sua particularidade. Longe de concluir daí que
a república podia transformar-se em uma forma constitucional fora do
tempo, os humanistas procuraram refletir sobre a fragilidade de suas
instituições e a importância da ação humana para sua conservação. Não
ousando combater a teoria das duas cidades de Santo Agostinho, eles
foram confrontados com a fragilidade das estruturas particulares de po­
der e com incertezas da ação marcada pela finitude temporal. De outro
lado, a afirmação da circularidade da história permitiu aos homens de
letras desse período apreciar o valor educativo do estudo dos fatos do
passado, fazendo de suas análises uma arma na luta contra as armadilhas
do tempo. Na vida política cotidiana os efeitos dessa nova teotia da

90. POLYBE, Msíoiras, Gallimard, 1986.


91. Tal é a conclusão de Pocock. "The sixth book of Polybius' Histories, though it did
not become available in a tanguage other than Greek untill the second decade o f the
sixteenth centuty, exercised so great an ínfluence on Renaissatice ideas about polítics ín
time that it may be considered here as indicative o f that age's fundamental conceptuai
problems" op. cit., 77.
92. POLYBE, op. cit., VI, 3-10.
história não tardariam a ser sentidos, pois, como nos mostra Brucker, já
em 1413 o advogado Piero Beccanugi fazia em uma "pratica" o elogio da
história como fonte de inspiração para as decisões políticas^. É necessá­
rio acrescentar que Bruni foi o pai de toda historiografia que se desen­
volveu em Florença durante o "quattrocento"^*. Uma nova maneira de
compreender a história engendrou uma nova maneira de escrevê-la,
fazendo surgir uma literatura, tanto em latim como em italiano, que,
partindo dos métodos ciceronianos, deu plena expressão às conquistas
teóricas do renascimento da Antiguidade.

M.2. "Wú" e "Fortuna"


O abandono dos conceitos mais importantes da filosofia medieval e
o surgimento de uma nova teoria da história obrigou os humanistas a um
esforço intelectual de grande envergadura. Para Santo Agostinho, a pre­
sença do homem no mundo era coisa sem importância, quando compa­
rada com o lugar da plena existência humana na "Cidade de Deus", A
obra humana, nessa perspectiva, não significava nada, pois era a pura
expressão da miséria de nossa condição de seres da queda. As verdadei­
ras ações dignas de elogio eram praticadas sob inspiração divina, pela
graça, e não tinham qualquer ligação com as qualidades individuais dos
homens^. Ora, a concepção republicana, própria aos humanistas, punha
o homem no centro do universo, exigindo dele aquilo que, aos olhos de
um pensador medieval, só a graça podería dar. O tema da "virtu" impu­
nha-se em um universo cultural que fez da ação humana o núcleo de
suas preocupações com a conservação das estruturas de poder.
Novamente, Cícero foi o pensador que mais influenciou os
humanistas, porque para ele o homem pode atingir um alto nível de
perfeição exercendo a verdadeira "virtu". Para alcançar esta plenitude,
no entanto, seria necessário aprender os caminhos da virtude e, para
isso, se dedicar ao estudo da retórica e da filosofia antiga^. Retomamos,
assim, á retórica como fonte da vida política, mas dessa vez dentro de
um contexto ainda mais complexo, já que não se trata mais de saber se
exprimir, mas de aprender a ser um homem verdadeiro, capaz de fazer
sua própria história.

93. G, BRUCKER, op. cit., 290.


94. Ver a esse respeito o exceiente artigo de B. L. ULLMAN, "Leonardo Bruni and
Humanistic Historiography" in c? HMWáwtsdca, 1946, 45-61.
95- E. GILSON, /ntrodocdon d fctude <%g &rínt XHgMst&t, J. Vrin, 1986.
96. Q. SKINNER, op. cit., 88.
Nesse campo, Petrarca fbi sem dúvida um pioneiro, quando defen­
deu os "studia humanitatis" como pnncípio formador da "virtu", ressal­
tando cada fase da educação dos jovens no processo de formação, não
somente dos "homens virtuosos", mas sobretudo de uma sociedade sa­
dia^. Uma geração mais tarde, essa convicção seria o núcleo da teoria
humanista da ação. Saiutati, fazendo suas as idéias de Petrarca, insistia na
necessidade de se redefinir o sentido da "virtú", porque a ruptura com
o pensamento medieval trouxera consigo a exigência de se repensar o
papel da ação humana na "polis". No limite, podemos dizer que um
cristão é incapaz de ser virtuoso sem a intervenção da graça divina.
Um homem da Renascença, ao contrário, devia buscar o mais alto
nível de perfeição pessoal, sabendo que dessa maneira contribuía para
a vida pública. Justamente essa mistura entre qualidades pessoais e vir­
tudes públicas iria provocar uma série de interpretações divergentes sobre
o sentido da "virtu". Nesse contexto, podemos dizer que pelo menos
duas maneiras de conceber a "virtu" foram dominantes: uma, mais po­
lítica, ligada ás ações perpetradas na "polis", desenvolvida por autores
como Bruni e Cavalcanti^, e outra, mais próxima do ideal de educação
clássico, que foi desenvoivida por autores como Alberti^. Não podemos
falar em verdadeiras oposições, mas em diferenças de pontos de vista,
sem que num caso como no outro as verdadeiras discordâncias com o
pensamento cristão tenham vindo â tona, permitindo aos humanistas
retirar todas as conseqiiências do passo teórico que estavam dando.
Voltando a Cícero, recuperando suas idéias em tomo da educação, eles
buscavam uma nova maneira de conceber a presença do homem na
terra, sem se preocuparem em fazer a crítica da tradição, dada como
realizada pelo simples fato de que o universo conceituai medieval fora
abandonado.
Essa estratégia lhes permitiu pensar a política de uma maneira radi-
calmente nova com relação a seus antecessores imediatos, embora não
tivessem enfrentado a difícil questão de saber até que ponto a tradição,
ã qual eles retomavam, não fora ela mesmo essencial para a constituição
do pensamento político medieval.
A obra de Leon Batista Alberti parece exprimir com exatidão os
pontos mais importantes da segunda interpretação da "virtu" á qual fize­
mos referência"**. Em sua obra y4/ Arfo e <2A? ele acentua os

97. Idem, 89.


98. J. G. A . POCOCK, op. cit., 87.
99. E. GAR1N, Z'HW#7MSt7MO 74.
100. J. Burckhardt traça um retrato muito interessante da personatidade de Aiberti em
seu iivro 7%>e Cfvtiixatiopt o/* f6e Renaíssaytce tu #a(y, 86.
101. E. GARIN, op. cit., 74.
limites da condição humana, falando-nos de sua capacidade limitada de
compreensão e aprendizagem: "Desiste, homem, desiste de investigar
mais do que é conveniente os segredos de Deus. A ti e a todas as almas
aprisionadas nos corpos, sabe que os céus só te consentiram não ignorar
aquilo que podes vcr'"^. Essas idéias, que parecem aproximá-lo de Nicolau
de Cusa*<*, conduziram-no a conclusões completamente diferentes da­
quelas do mestre cusano. Para Alberti, como vemos em sua obra Dc/A?
a missão dos homens na terra é servir aos outros — "o homem
nasce para ser útil ao homem",— fazendo da ação humana o valor maior
da humanidade****. Ora, esse valor provém do fato de que o homem é
capaz de atingir a "virtu" e, assim, de se opor â "fortuna". Se para um
cristão o destino pertence a Deus, o que implica que a idéia de "fortuna"
não tem a menor importância***, para um humanista, consciente do valor
da "virtu", somente a idéia de "fortuna" pode dar consistência à teoria da
ação.
E necessário notar que o simples apelo ao conceito de "fortuna" não
anulava as dificuldades e ambigüidades de uma teoria da ação que partia
do conceito de "virtu", ele mesmo de difícil elucidação. Assim, por exem­
plo, para autores como Poggio, a ruína de Roma fora obra da fatalidade,
enquanto para Alberti, a "fortuna" só agia lá onde a "virtu" íbra incapaz
de impor sua força***. Para ele, na verdade, a ação humana possui uma
tal dignidade, uma tal força, que lhe é possível superar, sempre, todos
os obstáculos, desde que o homem seja capaz de ter um perfeito domí­
nio de si mesmo e de se entregar por inteiro à "polis". "A fortuna domina
somente aqueles que a ela se submetem",**" dizia ele, para afirmar o
caráter exterior da "fortuna" e-para mostrar que não existe na "polis"
dificuldades que não possam ser superadas pela "virtú"***. Ao mundo frio

102. Citado por E. GARIN, op. cit., 75.


103. Ver NICOLAU DE CUSA, De Docfe Editions de la Maisnie, 1979. Ver
também os dois primeiros capítutos de E. CASSIRER, et ánsmas
<%e Az Editions de Minuit, 1983.
104. E. GARIN, op. cit., 75. L. B. ALBERTI, 7 Mvl Binaudí, 1%9-
105. AUGUSTIN, Dt <%? <%? D^M, Ciub du Livre, 1977.
106. E. GARIN, op. cit., 76.
107. Idem, 77.
108. "Per 1'Alberti l'uomo á fattore utiico delia cíttà terrena, e la natura, e quindi la
fortuna, sono strumenti e occasioni, limiti, se si vuote, ma non cíechi e irreducibiii per
l'uomo prudente, che ii inserirá, nel suo calcolo, ostacoli alia vírtú, ma di cui la virtu riuscírà
trioníatrice, per assoluto império che essa ha nel mondo spirituale delPuomo, ove non
potrà mai esser negata, pur nella sventura, la gloria e la fecondità perenne di un'efRcacia
educatrice". Ibidem, 79.
da "fortuna", Alberti opõe o cidadão dotado de altruísmo e de civismo,
para o qual não existe nada mais importante do que a construção das
instituições políticas.
Apesar da radicalidade das posições de Alberti, não podemos desco­
nhecer que as virtudes arroladas como sendo próprias ao cidadão repu­
blicano não estão necessariamente em contradição com aquelas que
deviam ser cultivadas por um cristão.
Escritores como ele e Petrarca aceitavam a importância das virtudes
cristãs, mesmo se o acento posto sobre a coisa pública os conduzisse a
conclusões completamente diferentes daquelas de Santo Agostinho. Na
tentativa de conciliar dois mundos tão diversos, eles chegavam a formu­
lações de grande originalidade, ainda que muitas vezes contraditórias,
como quando tentam conciliar a idéia da "virtú", como capacidade de
ação na "polis", com a exigência de humildade da filosofia cristã. Mas é
importante observar que Alberti modificou profundamente a idéia de
natureza humana, que em Santo Agostinho era marcada pela queda,
fazendo da presença do homem na terra a expressão da glória de Deus
e o símbolo de uma potência infinita de criação.
A ênfase na possibilidade de vencer a "fortuna" deu origem, no
"quattrocento", a toda uma literatura de exaltação do homem. Pico delia
Mirandoía, em sua obra íágMM&yáfe t%o deu o exemplo
máximo dessa nova confiança nas qualidades humanas e em sua capa­
cidade criativa. Recusando a hierarquia dos seres, cara aos medievais,
Pico concebia o homem como um ser muito superior ao resto do univer­
so, reafirmando com isso não só a natureza privilegiada de nossas rela­
ções com o criador, mas sobretudo manifestando uma grande esperança
em nossa capacidade de dominar a natureza. A "fortuna" é pensada,
assim, como uma força de oposição a nossos desejos, uma entidade
exterior, que pode encamar-se nas forças cegas da natureza, mas que
não nos pode obrigar a abandonar nossos projetos de transformação do
mundo.
Vemos, pois, que essa maneira de compreender a "virtu" levou ao
desenvolvimento de conceitos que exigiram uma nova metafísica, ou
pelo menos, uma nova antropologia, distante dos cânones escolâsticos.
Deixando de lado os aspectos puramente políticos da questão, esses
autores buscaram uma nova definição da natureza humana, capaz de dar
conta de nossa grande capacidade de criar novas realidades através da
ação. Paradoxaimente, eles retornaram à liberdade pelas vias de uma

109. PICO DELLA MIRANDOÍA, De A? <%e /%ooMBe, Editions Rencontre, s.d.


abordagem tipicamente cristã: a teoria da vontade iivre. Desse ponto de
vista, eles abriram caminhos diferentes daqueles que serão percorridos
pelos pensadores políticos do "cinquecento".
Autores como Bruni e Cavalcanti estavam muito mais próximos das
preocupações de Maquiavel. Para eles, o condito entre a "virtu" e a
"fortuna" não podia ser reduzido a apenas um de seus termos, pois ele
exprimia a luta das instituições republicanas, estruturas particulares e
perenes, contra a ínexorabiüdade do tempo. Ora, dentro de um tal qua­
dro, a "fortuna" não podia ser compreendida apenas como um obstáculo
à manifestação de nossos desejos; e!a era a força motora do movimento
cíciico da história, como pensara Poltbio, e, ao mesmo tempo, a constru­
tora e a destruidora das formas particulares de poder. O acento de suas
análises recaiu, assim, sobre as instituições humanas e sobre a possibi­
lidade de se sobreviver em um mundo de confronto entre a "virtu" e a
"fortuna
Cavalcanti realizou a esse respeito uma obra de grande originalida­
d e'". Tendo vivido o período anterior aos Medieis e também o de sua
ascensão ao poder em 1434, ele pôde pensar a questão da "virtu" par­
tindo da transição constitucional, que operou a passagem da oligarquia
à senhoria sem grandes traumas para a vida política florentina.
Cosme de Medieis exerceu o poder de maneira a dar a impressão de
que todas as modificações eram apenas superficiais e respeitavam o mais
rigoroso espírito de continuidade. Para tanto, evitou cuidadosamente
exercer o poder pessoalmente, trabalhando por meio de um complexo
jogo de influências'^. Mesmo as "pratiche", locai de expressão dos de­
sejos populares, foram mantidas durante todo o período dos Médicis e
não se viu nenhuma instituição ser desmantelada.
Na verdade, há muito tempo Florença já não era uma república; as
aparências só eram mantidas para que a classe dirigente pudesse auferir
os dividendos de uma ideologia que havia demonstrado seu valor na
época das guerras, embora nenhuma ameaça pairasse sobre a cabeça
daqueles que haviam destruído a obra dos republicanos do "trecento".
Cavalcanti, por seu lado, tinha como única preocupação o retomo às
verdadeiras instituições republicanas; sua obra foi a prova de sua lucidez
diante do quadro desolador da destruição da herança de seus antepas­
sados.

tlO. J. G. A POCOK, op. €it., 84.


111. Um bom estudo sobre Cavalcanti encontramos em: C.VARESE, e
/WMa da! Einaudi, 1961.
112. Ver N. RUB1NSTE1M, ?2?c Qf F/orcMce Mudar fAe ^434 to
Clarendom Press, 1966.
Antes dos Médicis, Cavalcanti considerava a "virtu" como garantia da
estabilidade da república: "Por certo conheces a grande constância dos
florentinos, e aquilo que significa amar uma coisa feita república. Aquela
de teu senhor, dado que eia seja enorme tem a vida breve, pois que ela
nào pode ser estável senão durante a duração da vida de um homem,
mas a República é contínua"*", para ele, a "virtu" devia comportar os
traços de um conhecimento universal, uma vez que o objeto ao qual ela
devia se aplicar era ele mesmo universal. Na primeira fase de sua obra,
ele pensava que as estruturas coletivas produziam uma razão universal.
A "virtu" seria, assim, uma ação republicana, que se opunha à ação dos
monarcas e dos tiranos; num contexto em que não se podia esquecer
que a república deve ser "contínua", ou seja, não pode depender da
sabedoria de um só, mas, ao contrário, necessita do concurso de todo o
corpo político para escapar às armadilhas do tempo.
Tendo vivido bastante para ver a ascensão dos Médicis ao poder,
Cavalcanti compreendeu, na segunda fase de sua obra, que a liberdade,
que ele acreditara constitutiva da vida política florentina, nào pudera ser
garantida pela "virtu" dos cidadãos. A "continuidade" da república fora
destruída pela ação consciente de uma classe ambiciosa. Assim, ele passou
a acentuar cada vez mais o papel da "fortuna" na vida pública, abando­
nando a crença quase ingênua na "virtú". Armado pela desilusão da
queda das instituições republicanas, ou pelo que lhe parecia ainda mais
trágico, seu total esvaziamento, ele foi um dos primeiros a perceber a
completa desaparição da racionalidade nos discursos pronunciados nas
"pratiche". Para ele, a "virtú" não podia ser outra coisa que uma "razão"
capaz de impor suas conclusões ãs assembléias de decisão. Sua obser­
vação das "pratiche" lhe mostrava algo completamente diverso: a discus­
são e a participação continuavam a existir, mas as decisões tomadas não
tinham nada a ver com o conteúdo dos debates*'"*. Elas eram tomadas
por um pequeno número de cidadãos, que apenas defendiam seus pró­
prios interesses. Diante desse quadro desolador, Cavalcanti não hesitou
em classificar o governo dos Médicis de "tirannesco" e "non político".
Essa situação-limite de dissolução das antigas instituições o conduziu
a conceber a "fortuna" como uma força que atinge a todos por meio de
todos; uma força que finca raízes em todos os partícularismos da vida
social. Fora da república não existe nada além desses partícularismos, os
homens perdem toda proteção e salvaguarda e o ódio de todos contra

113. CAVALCANTI, Zsforie III, XXV, citado por C. VARESE, op. cit., 117.
114. J. G. A. POCOK, op. cit., 93.
todos toma-se lei. Antecipando o tema hobbesiano do "estado de natu­
reza", Cavalcanti chega a outras conclusões. Diante do caos representado
pela "fortuna", somente a "virtü", compreendida em seu sentido republi­
cano, pode nos salvar. Em uma monarquia, os homens estão isolados e
são incapazes de reagir aos golpes da "fortuna". Totalmente impotentes
transformam-se em bestas sem capacidade de ação e sem razão. Explora-
-se, assim, um tema que mais tarde terá grande importância na obra de
Maquiavel — a impotência dos homens como fruto de sua própria con­
dição, e não como produto exclusivo da "fortuna".
"...não acusando tanto a mobilidade da fortuna, quanto a imobilida­
de das diversas pessoas e dos homens perversos de nossa república, de
tudo concluo que a persistência e a estabilidade da condição de nossos
cidadãos foi a razão de tantas desventuras de nossa República"'
Para Cavalcanti, a "fortuna" é o espelho da irracionalidade das ações
dos cidadãos, que, vivendo a decadência das instituições democráticas
de sua cidade, são incapazes de encontrar caminhos para salvá-los do
abismo da corrupção. É verdade que o período dos Médicis foi marcado
por uma grande calma do ponto de vista das relações exteriores; o jogo
de alianças com o qual assegurou-se a posição de Florença na Itália
mostrou-se eficaz para os propósitos aos quais ele se destinava. Mas,
para os cidadãos formados pela ideologia republicana, era evidente que
algo mudara. O acesso aos postos públicos tomou-se impossível, assim
como o sonho de uma maior participação popular no governo, numa
cidade onde os mecanismos de controle dominaram a vida dos habitan­
tes.
A intepretação de Cavalcanti, escapando da tentação do humanismo
metafísico, manteve viva a chama do pensamento republicano, que
conhecería no com eço do "dnqueccnto" seus grandes expoentes.

11. 3. O "vivera civiie* e a cidadania miiifar


Acabamos de ver com o a problemática da ação estava estreitamente
ligada à da "virtü" e como a concepção de Salutati da ação como fonte
de conhecimento foi progressivamente abandonada em favor de uma
abordagem puramente política. O problema não seda mais o da escolha
de uma vida ativa contra a vida contemplativa, mas o da descoberta da
melhor forma de organização da vida na "polis". Para compreender o
significado dessa transformação, devemos lembrar que os pensadores

115. CAVALCANTI, op. cít., citado por C. VARESE, op. cit., 110.
medievais haviam insistido no valor da contemplação contra a vaidade
das ações levadas a cabo na "polis", num mundo que se encaminhava
para o fim previsto por Deus. Santo Tomás mostrou que a única "ação"
capaz de oferecer alguma coisa para os homens é a contemplação, na
ausência dela somos jogados no caos e na incerteza, onde a verdade não
tem a menor chance de aparecer"**. Saiutati já havia sentido que a ver­
dadeira ruptura com o pensamento escolástico se dava peia opção por
uma "vida ativa". Para um grego, a vida na "polis" e a busca da verdade
não eram opostas, o sábio era necessariamente um cidadão, e sua pes­
quisa, mesmo a mais abstrata, tinha sempre algum valor para a vida
pública. Para um homem da Renascença, essa simples constatação repre­
sentava já uma revolução. Saiutad íbi o primeiro a perceber a radicalidade
de suas teorias, mas recuou diante da grandeza do passo, propondo a
conciliação entre as duas vias através de uma teoria mais elaborada da
contemplação"?. Uma geração mais tarde, essa preocupação com o equi­
líbrio das duas tradições havia desaparecido. Os homens de letras do
"quattrocento" aceitaram abertamente a oposição entre a vida ativa e a
vida contemplativa, fundando na diferença entre as duas as bases de
uma nova teoria da cidadania. Para eles, pela ação, o homem realiza a
universalidade de sua condição; sua obra, encamando-se no mundo, cria
a única dimensão em que podemos esperar descobrir uma figutaçâo
concreta da essência humana'"*. A república é essa obra por excelência;
ela representa o momento de cruzamento de todas as particularidades,
num jogo que, criando o universal, não destrói o sentido propriamente
individual da ação.
Bnini, em sua apresentação da Pof#tc<z de Aristóteles, nos fala assim
dessa criação: "...entre os conteúdos morais com os quais se forma e se
educa a vida humana, tenho na mais alta conta aqueles que concernem
aos estados e seus governos, pois tal disciplina tende a trazer a felicidade
a todos os homens. E se já é uma coisa ótima trazer a felicidade a um
só homem, não será ainda mais belo conquistá-la para todo um Esta­
do?'""

116. E. GILSON, í# fáow&me. VH&odMcdort <à pAí/oscpAie <%? &rpif Z&owMS


J. Vnn, 1942.
117. Saiuíati tentou, através de um argumento tipicamente medieval, conciliar os dois
tipos de vida. "In questo senso confesso che la vita attiva precede nel tempo, mentie ta
contempiazione se segue nei tempo, incompambiimente precede per natura e per vaiore".
De NòbüMate L%nrn et Medicinae, 59-
118. J. G. A. POCOCK, op. cit., 65.
119. L- BRUNl, citado por E. GAR1N, í'UMKttK$#no ia%/iano, 52.
Nele não encontramos mais a tentativa de reconciliação das duas
tradições. A vida ativa ocupa o lugar centrai da condição humana, num
processo em que somente a ação assegura a continuidade entre o indi­
víduo e a "polis". A contemplação permanece sendo fundamental apenas
para a vida religiosa, deixando de ter uma significação para a vida dos
cidadãos.
Certos autores foram ainda mais radicais do que Bruni, condenando
todas as pesquisas abstratas por sua esterilidade.
Essse ibi o caso de Matteo Palmieri, que em seu livro Win
afirma: "Quem se dedica ás coisas dignas de serem conhecidas, e
das quais decorre alguma comodidade pública ou privada, é merecedor
de todos os elogios. Aqueles que perdem tempo com artes obscuras,
difíceis e desprovidas da doutrina do bem viver são dignos da vituperação
universal, pois delas não resulta nenhum f r u t o " P a r a ele, a ação hu­
mana deve necessariamente dirigir-se para o bem comum: "Nenhuma
obra humana pode ser mais elevada do que ajudar na salvação da pátria,
na conservação da 'polis' e na união e concórdia das multidões"^'.
Em Palmieri, o cruzamento de influências da obra de Cícero com as
de Platão e de Aristóteles deu origem a uma síntese original da questão
da cidadania. Ele não se contentou simplesmente em afirmar a superio­
ridade da ação sobre a contemplação, mas buscou, mesmo na teologia,
idéias que pudessem fortalecer uma visão mais elaborada do problema.
A tensão que percorre seu trabalho não é mais a da oposição apaixonada
entre a vida ativa e a vida contemplativa, que havia dominado a obra de
Saíutati^, mas a da busca de um novo universo teórico, capaz de supe­
rar os obstáculos deixados pela ruína do sistema medieval. Assim, em­
bora tenha retomado integralmente a herança do humanismo cívico, ele
pertence à geração para a qual a filosofia será a busca de novas soluções
para os grandes problemas da tradição, e não mais a procura de antigos
manuscritos.
Mas essa opção pela vida ativa tinha ainda uma outra figuração. O
cidadão, concebido como ator de sua própria história, devia procurar a
todo preço se inserir no mundo público. Se a participação nos debates
era uma forma importante dessa busca, ela cumpria inteiramente as
exigências de uma perfeita integração entre o membro de uma comuni­
dade e sua essência. Era preciso recorrer ao tema da cidadania militar,
para explicar essa fusão. O tema do cidadão soldado, na verdade, estava

120. M. PALMIERI, MMa CM/e, G. Silvestre, 1825, 102.


121. Idem, 106.
122. E. GARIN, op. dt., 83.
presente já na obra de Fetrarca, que deplorava a qualidade dos exércitos
florentinos, a covardia dos soldados e sua incapacidade de resistir aos
inimigos'^. Salutati, por sua vez, em uma carta de 1383*^, reproduziu as
mesmas críticas, queixando-se também da vergonha que era ver sua
cidade ser defendida por tropas mercenárias, quando se lutava pela li­
berdade de seus cidadãos. Fiorença contou com um exército de cidadãos
até 1260, data da guerra com Siena'^; a partir de então, o serviço militar
obrigatório foi abolido e a defesa da cidade passou a ser feita por tropas
comandadas pelos "condoMierf que dominariam o cenário militar italia­
no a partir da metade do "trecento*'^. Essse sistema já havia provado sua
ineficiência em 1362, quando, durante o cerco a Pisa, os mercenários
recusaram-se a atacar sem o pagamento de um salário suplementar, que
parecia exorbitante aos cidadãos florentinos'^. Em 1424, no entanto,
suas fraquezas mostraram-se â luz do dia, quando Fiorença quase caiu
nas mãos das tropas milanesas por culpa exclusiva da covardia dos sol­
dados que haviam sido pagos para defendê-la'^. Essa situação paradoxal
provocou, durante o "quaítrocentc", o surgimento de toda uma literatura
sobre a questão militar, cujo núcleo era a recusa total do sistema vigente.
Dos intelectuais florentinos, Bruni foi provavelmente o que se dedicou
com mais afinco à formulação teórica das críticas aos exércitos mercená­
rios, fazendo, no final de sua Z<3M<%3hb, uma exortação aos cidadãos para
retomarem a defesa da cidade. Esse apelo seria repetido mais tarde, em
1428, por ocasião da morte do general florentino Nanni Strozzi'^, mas
ganharia sua plena expressão conceituai já em 1421, quando Bruni es­
creveu um tratado exclusivamente dedicado à questão:
O ThacMfío de Bruni inicia-se peia abordagem da questão da origem
das instituições m iiitares. O p o n to de partida ÓMZbere
é o fato de que o homem é um "zoon politikon" e tem
obrigações para com o Estado, assim como este tem por função distribuir
os encargos pelos cidadãos, dentre os quais se encontra o serviço militar.
Seguindo o modelo retórico de Cícero, e algumas idéias de Aristóteles,
Bruni escreve um planfleto de um estilo eclético, mas de grande clareza.

123. E. H. WILKINS, Chicago Universíty Press, 1961, 88.


124. Q. SKINNER, op. cit., 76.
125. O grande livro sobre a questão ainda é aquele de C. C. BAYLEY, t% r aw? ábcfefy
tu Riewt&a%nce A&nwcc, Universíty of Toronto Press, 1961, 8.
126. Idem, 15.
127. Ibidem, 12.
128. Ibidem, 57.
129. H. BARON, op. cit., 431.
130. E. BRUNI, in C.C.RAYLEY, op. cit., 367-390.
As primeiras análises fazem referência à divisão dos Estados que serão
estudados. Eics são classificados, como em Aristóteles, em dois tipos: os
utópicos e os históricos^'. Mas, contrariamente ao filósofo grego, Bruni
considera Roma o verdadeiro modelo de uma república virtuosa. É inte­
ressante notar que em todas as suas discussões o florentino considera a
obra de Platão apenas por seu valor literário, não lhe vem ao espírito que
v4 possa ter o menor significado para a discussão do tema que
lhe interessa.
O centro da obra bruniana é o debate em tomo da natureza da
"vírtú" militar e sua relação com o problema da cidadania. Para pensa­
da, ele parte da "magnitudo animi" cíceroniana, conceito que o leva a se
interrogar sobre a associação entre a nobreza de caráter e a capacidade
de transformar qualidades morais em armas para a defesa da cidade'^.
Tal associação desvia a questão da mera estratégia militar para o debate
sobre a relação do soldado com seus concidadãos. Bruni deduz daí que
o cidadão soldado deve obediência a seu comandante somente em tem­
po de guerra, mas tem por função garantir a justiça dentro da "polis" em
tempo de paz. Se a defesa contra o inimigo externo aparece como a
principal função de uma milícia popular, é na capacidade de visar antes
de mais nada o bem público, através de suas ações, que se revela a
verdadeira "virtú" do cidadão armado. Na realidade, ao falar da "virtu"
militar em termos genéricos, Bruni pensa sobretudo em sua cidade. Assim,
ele contradiz os clássicos, afirmando que também os artesãos podem
participar do exército. Esse era um desvio necessário da teoria grega, em
uma cidade onde a exclusão dos artesãos e dos comerciantes teria como
conseqüência o aumento das tensões sociais e o reforço de uma disputa
de grupos que, por sua violenta reivindicação de interesses particulares,
punham constantemente em risco a unidade da "poíis"^.
Bruni conduz sua análise por caminhos tortuosos, embora o objetivo
seja claro: num momento extremamente difícil da história política de
Florença, só a criação de uma milícia popular parecia capaz de salvar as
instituições republicanas. Podemos nos interrogar se Bruni tinha consci­
ência do processo pelo qual passavam as instituições democráticas da
cidade, ou mesmo se tinha a intenção de agir em proveito de um dos
grupos em luta. É preciso notar, no entanto, que, apesar das dúvidas que
nos habitam, é it^gável que seu pessimismo, num momento em que já
se configura a formação da senhoria mediciana, era prova de uma gran­
de lucidez diante da catástrofe que se anunciava.

131. Idem, 370.


132. C. C. BAYLEY, op. cit., 343-
133- Idem, 345-
Para conduzir seus ataques aos novos costumes ílorentinos, Bruni
tança mão de um aparato conceituai que, se não é sempre coerente,
possui uma inegável eficácia para desmascarar a hipocrisia de uma so­
ciedade que tomava sua máscara republicana pela verdade de suas ins­
tituições. Ele recorre â análise da origem da palavra milícia, ao estudo
das divisões dos exércitos, ao elogio das virtudes da infantaria e da
cavalaria^, e mesmo a conceitos, como o de "imbecillitas humana", que,
embora de origem medieval, servem para demonstrar a natureza de seus
sentimentos em relação ao comportamento de seus concidadãos. Esse
pessimismo o encoraja a recomendar uma radical transformação dos
hábitos militares da República Florentina como única forma de conter os
abusos dos quais os homens não abdicam se podem obter algum pro­
veito pessoal. A própria milícia deve ser contida dentro de certos limites
legais, através de um juramento que garanta a mais pura obediência de
seus membros aos princípios de virtude que guiam sua constituição'^.
Tudo isso não leva Bruni a abandonar seu pessimismo quanto à
possibilidade de resolução dos problemas efetivos da República Florentina.
Mais do que fazer uma crítica radical â sociedade de seu tempo, ou
elaborar uma teoria complexa da formação das instituições políticas, ele
demonstra uma clara consciência da decadência progressiva da liberda­
de florentina. É preciso notar, além do mais, que a própria solução pro­
posta por Bruni era dificilmente aplicável a Florença, onde tanto os
oligarcas ligados às finanças, como uma parcela importante dos homens
de indústria, eram contra o retomo ao sistema comunal de auto defesa,
temendo o uso que as classes populares poderíam fazer das armas que
lhes seriam confiadas.
Consciente das limitações de suas idéias, Bruni retorna, na segunda
parte de seu panfleto, à comparação com a milícia romana, para afirmar
que toda participação num corpo de defesa da cidade é incompatível
com a busca de benefícios materiais'^. Quando sabemos que seu amigo
Poggio escrevería alguns anos mais tarde um tratado — 73a dMHncí# —
para defender o amor dos bens materiais e mostrar que sua busca não
é incompatível com os valores cívicos'^, podemos compreender a im­
portância, para Bruni, da busca de uma escala de valores que, não ferin-

134. L. BRUNI, op. cit., 376.


135- "The Citizen was inducted into the mílitia by means of an oath, the 'sacramentum
militiae'. If the oath had not been swom or duly renewed, the Citizen concemed was not
aiiowed to engage in battle". C. C. BAYLEY, op. cit., 321.
136. L. BRUNI, op. cit., 385-
137. POGGIO BRACCIOÜNI, De Einaudi, 1976.
do a divisão de classes da cidade e baseada em grande medida no poder
das corporações e dos bancos, garantiría um lugar de expressão para a
verdadeira virtude cívica, que não acreditava estar representada apenas
na participação dos cidadãos nas assembléias. Mas no curso de suas
reflexões, Bruni parece hesitar diante das consequências de um pensa­
mento que o conduziría fatalmente à ruptura com a elite, da qual parti­
cipava. Depois da revolta dos "Ciompi", um exército próximo das aspi­
rações da "plebe" parecia-lhe um perigo ainda maior do que a corrupção
das instituições democráticas de Florença. Tentando-se evitar a catástrofe
dos "condottieri", poder-se-ia mergulhar em uma aventura ainda mais
perigosa, que seria a da experiência governamental das ciasses mais
pobres, que deixara marcas nas duas semanas que amedrontaram a ci­
dade nos idos de 1378. Bruni opta então por uma milícia que mantena
seu caráter aristocrático e teha por missão não somente salvar a cidade
das invasões estrangeiras, mas sobretudo evitar as revoltas internas, agin­
do como uma força repressiva. Para ele, como para os oligarcas em
geral, a paz era um bem muito superior a todos os benefícios de uma
democracia tumultuaria.
A solução apontada por Bruni torna visíveis as contradições de uma
posição que, buscando solucionar os problemas militares da república,
tenta apoiar-se na parcela da população que terá de reprimir para evitar
os tumultos decorrentes das justas reivindicações que se exprimem na
"polis". Além do mais, o panfleto de Bruni tem algo de irrealista, à medida
que, apesar de seu apelo ao sentimento republicano, fecha os olhos para
as modificações graduais pelas quais Florença ia passando e que a con­
duziam muito mais para a "senhoria" do que para uma verdadeira repú­
blica popular. Ligado que era aos ideais republicanos, Bruni não conse­
gue se desfazer dos preconceitos próprios aos dirigentes oligarcas, con­
ferindo maior importância à discussão abstrata sobre a natureza da "virtü"
militar do que às condições reais de implantação de um novo sistema de
defesa da iddade. Apesar, no entanto, de não ter tido a oportunidade de
pôr em púrnca suas idéias, nem de ter visto nascer algo como uma
milícia popular em Florença, não podemos deixar de admirar a perspi­
cácia de suas análises no que se refere à decadência da liberdade Borentina
ao longo do "quattrocento". Seu trabalho será, pois, a grande referência
de todos aqueles que, depois da ascensão dos Médicís, e isso até
Maquiavel, tentarão recuperar o sentido das instituições republicanas
pela via de uma milícia autônoma de cidadãos^.

138. H. BARON, op. cit., 434.


/A4 onó//se do //Derofoofe
Até aqui evocamos as idéias defendidas pelos humanistas sem nos
preocuparmos em mostrar sua relação com o conceito de liberdade.
Desde Salutati, todas as discussões sobre a vida na "polis", assim como
sobre suas instituições, giraram em tom o da questão da liberdade, de tal
forma que acreditamos poder afirmar não somente que esse tema ocu­
pou um lugar central no universo ideológico ílorentino, mas que ele é
a chave para se compreender todo o humanismo cívico.
Num primeiro sentido, o conceito de liberdade remete-nos à oposi­
ção entre as repúblicas e as outras formas de governo.
Salutati descreve a relação entre os Estados em termos de dependên­
cia e independência, a liberdade significando, antes de mais nada, a
possibilidade, para as pequenas cidades, de continuar a existir na Itália
enquanto entidades autônomas, fora do campo de dominação dos novos
"signori". É nesse sentido que Salutati o empregava, quando, em 1390,
por ocasião da primeira guerra com Milão, declarava:
"...essa palavra, a paz, que é a primeira de sua carta, é uma mentira
escandalosa: a invasão de nossa terra é a demonstração mais evidente
(...) São essas as obras da paz ? (...) Ao tirano iombardo que quer ser rei
de nossa terra declaramos guerra pela defesa de nossa liberdade e pe­
gamos em armas pela liberdade dos povos oprimidos por tão terrível
jUgQ"!39
Este sentido da liberdade, entendida como "libertas italiae", foi in­
corporado ao vocabulário político e diplomático ílorentino de tal manei­
ra que todas as ligas e alianças das quais a cidade participou tiveram
como mola propulsora a defesa dos valores republicanos contra as tira­
nias. A influência dessa idéia não ficou, no entanto, restrita apenas a
Florença. Assim, vemos Francesco Barbaro, o humanista mais importante
de Veneza, exprimir o sentimento de que somente a união das cidades
ligadas à causa da liberdade seria capaz de salvar a Itália das guerras e
da barbárie das tiranias*'*".
Da mesma maneira, quando, em 1436, Florença e Gênova concluí­
ram importante aliança, o motivo oficialmente evocado foi a defesa da
liberdade contra as tiranias*^'. A influência desse ideário tampouco seria
sentida apenas pelas cidades republicanas. Em 1447, depois da morte de
Filipo Maria, mesmo Milão, a pátria das tiranias italianas do "quattrocento",

139. C. SALUTATI, reg 22.58v citado por E. GARIN, e cMie Me%Td7HZHdMenio


p.
140. H. BARON, op. cit., 394
141. Idem, 395.
cedeu à força da idéia da liberdade e tentou, com o apoio de Veneza,
que aceitou não expandir seus territórios para jogar a carta da "iibertas
italiae", form ar uma república que se denom inaria "Respublica
Ambrosiana". É verdade que a experiência milanesa seria um fracasso e
que Sforza, antigo "condotieri", tomaria o poder e reinstalaria a tirania.
O importante, no entanto, é que, durante todo o "quattrocento", a liber­
dade foi uma idéia mobilizadora não só dos intelectuais mais eruditos,
mas também dos homens de Estado, que dela se serviram, ou por ela
lutaram, buscando incessantemente a estabilidade que caracterizou a
política italiana desse período. Assim, o equilíbrio precário, mas eficaz,
que se instalou na Itália a partir da metade do século XV, baseado em
grande medida numa balança de poder cujos centros de equilíbrio eram
Milão, Veneza, Florença e Nápoles, realizou, pelo menos parcialmente,
como sugere Baron'^, o programa dos primeiros republicanos florentinos,
que atribuíam um papei essencial à paz na criação das condições de
existência das repúblicas.
O segundo sentido do conceito de liberdade era bastante mais com­
plexo, pois fazia referência à organização política interna das cidades.
Desde a para Bruni o caráter livre da constituição florentina
significava, de um lado, uma proteção contra as tiranias, de outro, um
sistohia legal capaz de impedir que as grandes famílias tomassem o poder.
Para que isso fosse possível, era necessário um sistema de leis que, além
de impedir os mais ricos de ocupar o poder, garantisse uma efetiva
igualdade entre os cidadãos. Para Bruni, a constituição florentina garan­
tia essa igualdade a partir do momento em que fazia da "virtú", e não da
riqueza, o requisito necessário para a postulação de um cargo público.
Todo cidadão que se julgasse digno de participar do governo podia
postular um cargo, visto que a liberdade significava, antes de mais nada,
igualdade diante da lei'**.
A partir de 1428, logo depois de uma dolorosa experiência de guerra
da República Florentina, Bruni acrescentaria alguns elementos à sua
definição da liberdade. Se a igualdade diante das leis era o ponto central
da o acesso aos postos púbficos será o da Omho. Ao refletir
sobre a situação da república naqueles anos difíceis, Bruni não deixava
de associá-la à perda de "virtu" dos cidadãos. Para ele, a causa de todos
os infortúnios de Florença era o fato de que a oligarquia tinha cada vez

142. Ibidem, 418.


145. "Aequa omnibus libertas...; Spes vero honoris adipiscendi ac se attoMendi omnibus
par, modo industria adsit, modo itigenium et vivendi ratio quaedam pròhata et gravis". í.
BRUNI, citado por H. BARON, op, cit., 556.
mais poder dentro da cidade, fazendo com que mesmo a decisão de
declarar a guerra fosse uma questão discutida entre as grandes famílias,
que podiam pagar os mercenários, e não mais uma decisão da assem­
bléia dos cidadãos. Nessa situação, o cidadão livre transformava-se cada
vez mais numa simples figura de retórica, sem nenhuma conexão com
o mundo real da política florentina.
Para medir a gravidade dos fatos, que tanto impressionaram Bruni,
basta iembrar a importância que tinha para os Üorentinos o acesso aos
postos públicos, travestída muitas vezes na discussão em tomo da ques­
tão da nobreza. Se tomarmos como exemplo o trabalho de Buonaccorso
da Montemagno — De podemos ter uma idéia de como
a discussão sobre a "virtu", entendida como capacidade de participar nos
negócios públicos, e em oposição à nobreza de sangue, escondia na
verdade uma forte aspiração â igualdade e à participação política. Esse
desejo é mais facilmente compreensível quando lembramos que o ver­
dadeiro problema de Florença não em uma nobreza de sangue, escon­
dida atrás de um passado glorioso, mas uma oligarquia cuja força pro­
vinha de negócios que nada tinham de heróicos. O próprio Bruni voltou
a manifestar seu pessimismo na descrição da constituição de Florença
em 1439, quando os Médicis já estavam no poder.*^
Pam ele, nesse momento, já não havia mais a menor dúvida de que
o poder migrara das mãos de uma elite, que no começo do século
ajudara a manter viva a chama da liberdade, para uma família que cedo
ou tarde desvelaria suas intenções senhoriais. Que Bruni tenha se enga­
nado no começo de sua carreira literária, no que diz respeito à verdadei­
ra face do poder em Florença, que há muito tempo já não era democrá­
tico, mas sim oligárquico, não impede que as idéias que ajudou a popu­
larizar, e que foram em larga medida defendidas pelos oligarcas
florentinos, tivessem tido a função de resgatar do passado um imaginário
de liberdade extremamente rico. Um imaginário que não deixou de ser­
vir à causa daqueles que efetivamente se batiam pela participação de
todos nos negócios da "polis".
A clarividência das análises de Bruni convencem-nos de que a hipó­
tese que havíamos avançado, de que o conceito de liberdade é central
no pensamento humanista, encontra pleno apoio numa análise mais
detalhada dos textos da época. Poderiamos mesmo dizer que conceitos
como ação, cidadania militar, ou ainda as novas concepções da história,
só são compreensíveis quando relacionados com a busca do bem co-

144. BUONACCORSO DA MONTEMAGNO, De Einaudi, 1976.


14$. H. BARON, op. cit., 427.
mum e da liberdade que caracteriza as repúblicas. Um bom exemplo
pode ser encontrado em uma carta de Poggio Braccioliní, datada de
1438, na qual ele retoma mais uma vez à questão da "libertas" florentina^.
Na primeira parte, ele se contenta em repetir o elogio da constituição da
cidade, afirmando seu caráter igualitário e declarando que todos em sua
cidade natal estão prontos para defender a liberdade como única garan­
tia da felicidade de cada um. No finai, no entanto, aventura-se em uma
associação que é cheia de significações: a da "virtú" com a liberdade. A
seus olhos, os "studia humanitatis" puderam desenvolver-se em Florença
graças sobretudo â liberdade que aí reinava; mas ele vai ainda mais
longe, dizendo que ela era não somente a condição para o desenvoivi-
^nento dos estudos sobre o homem, mas a condição imprescindível para
o aparecimento da "virtü". Essa tese, na verdade, nada tem de original,
pois foi repetida por um grande número de humanistas, mas demonstra
a íntima relação de todos os conceitos próprios ao humanismo cívico
com o problema da liberdade. Assim, Eruni fala nestes termos, ao final
de sua da decadência romana: "...sem dúvida confessaremos
que a grandeza dos romanos começou a declinar quando o nome de
César, quase uma ruína manifesta, entrou na cidade de Roma. Pois a
liberdade deu lugar à potência do Império, e, depois da destruição da
liberdade, extinguiu-se a virtü
Também Salutati já havia percebido a relação íntima que existe entre
a iiberdade política e a "virtú" dos cidadãos. Para ele, o Estado livre é o
campo por excelência das grandes obras humanas, enquanto a tirania é
o deserto das ações gloriosas Esse mesmo tema se repetirá na obra
de Alammano Rinuccini — De D&eftufe — que se transformou na pri­
meira grande crítica à dominação dos Médicis. Essa crítica partia justa­
mente da idéia de que a vida ativa, condição necessária da liberdade, só
podia existir lá onde os cidadãos tinham o direito efetivo de participar
dos negócios do Estado. Na ausência dessa possibilidade, restava aos
habitantes de uma república refugiarem-se em uma forma de vida
contemplativa que, nesse caso, não era oposta à vida política, mas uma
forma de preservar uma cultura que de outra maneira seria destruída
pela violência da tirania. A perda da liberdade tinha para Rinuccini con­
sequências que extrapolavam a vida na "polis". Para ele, toda a vida
cultural sofria com essa perda, de modo que mesmo o humanismo de-

146. "Haec omnia accepta referimos a sola libertate, cutus diutioa ingenia nostra virtutis
cutum erexit atque excita vir": POGGIO BRACCIOLINÍ, Opera, Basiléia, 1538, 337.
147. L. BRUNI, Laudafio, citado por E. GARIN, Scienza et ..., p. 15.
148. D. ROSA, op. cit., 121.
veda ser conduzido a temas mais próximos da metafísica clássica, em
contradição com o espírito dos primeiros tempos'^.
Entretanto, a interdependência entre liberdade e "virtü" conduziu os
humanistas a uma conclusão ainda mais interessante do que aquelas às
quais nos referimos. Bruni afirma, em sua que a potência eco­
nômica de um Estado depende de sua forma constitucional. Florença,
segundo ele, pôde desenvolver-se ao longo do século precedente exclu­
sivamente por causa de sua constituição livre. Dando aos cidadãos a
possibilidade de usar todas suas aptidões, a cidade havia criado as con­
dições para o surgimento de uma cultura sofisticada e uma economia
potente. Bruni interpretava as relações entre os indivíduos e a cidade de
uma forma simples e direta. A "vírtu" não era para ele um valor ético,
mais ou menos abstrato; era um fator objetivo, capaz de dar nascimento
a uma cultura superior. Mas essa cultura era, por outro lado, uma flor
frágil, que só podia aparecer nas cidades livres.
Resta-nos ainda estudar as relações dos humanistas com sua época.
Alguns autores tentaram elucidar a questão partindo da constatação de
que quase todos eles pertenciam às classes dominantes, tendo um vín­
culo orgânico com o poder. Tal foi o caso de Lauro Martines que, em seu
livro — 72?e 1%?%% o/* — reuniu um
material impressionante para determinar a origem social dos humanistas.
Para ele, mesmo autores como Bruni, que não pertenciam ás grandes
famílias florentinas, tiveram primeiro de se integrar ao mundo dos
oligarcas, para depois pretenderem ocupar um cargo importante na
máquina governamental^*. O humanismo seria, pois, a expressão dos
desejos da burguesia, numa sociedade que mascarava seu caráter
oligárquico. As classes dominantes retiravam duas vantagens dessa situa­
ção; em primeiro lugar, o governo parecia ser mais representativo do
que realm ente era, em segundo lugar, ele aproveitava essa
representativídade fictícia para usar o apoio das classes que, mesmo não
participando efetivamente do poder, tinham a ilusão de fazê-lo. Aos
olhos desse autor o humanismo cívico não passou de uma ideologia
capaz de dar unidade ã cidade de Florença, não tendo dado qualquer
contribuição efetiva para a transformação das mentalidades políticas da
época.
Na nossa opinião, a tese de Lauro Martines expõe-nos de maneira
detalhada um aspecto importante da vida florentina do começo do

149. E. GARIN, 1'MMMMestwo 96.


150. Q. SKiNNER, op. cit„ 60.
151. L. MARTINES, op. cit., lóá.
"quattrocento", mas deixa sem resposta um bom número de questões. È !
verdade, por exempio, que o humanismo cívico foi sobretudo um mo-
1
vimanto da burguesia e exprimiu, num certo sentido, seu pensamento.
No# quadros da sociedade italiana do século XV, essa constatação tem,
no entanto, algo de evidente. O fato de ter sido um fenômeno de elite
reflete apenas um mundo em que o acesso à cultura era extremamente
restrito. O que desafia a compreensão é que as classes dominantes te­
nham escolhido, para fundar seu projeto de dominação, uma teoria da
liberdade. É preciso observar que a especificidade de Florença reside
exatamente neste ponto, uma vez que na Itália um grande número de
cidades escolheu a forma republicana de governo, sem ser capaz de
produzir um corpo de idéias consistente que explicasse a escolha. Uma
segunda observação se impõe. Teses como as de Lauro Martines geral­
mente dedicam uma importância capital à análise das condições econô­
micas nas quais um dada ideologia foi ativa, mas não perguntam se essa
redução ao substrato econômico pode explicar seu funcionamento real.
Se é inegável que o funcionamento de uma ideologia tem raízes nas
condições econômicas da época na qual opera, é pouco provável que
sejamos capazes de compreender a Itália Renascentista reduzindo-a a
seus elementos socioeconômicos.
No período que nos interessa, Florença conheceu um grande desen­
volvimento econômico, mas, sobretudo, viu seus comportamentos polí­
ticos serem inteiramente transformados pela influência das novas teorias
políticas. Uma análise das "pratiche" evidencia como pouco a pouco a
defesa da liberdade tornou-se o discurso dominante, numa sociedade
que se encaminhava cada vez mais para formas não-democráticas de
g o v e r n o '^ . Não é suficiente, assim, dizer que o humanismo cívico foi um
produto das classes dominantes; é necessário explicar como ele foi ca­
paz de influenciar o comportamento político dos cidadãos, mesmo sen­
do em sua origem um movimento de caráter erudito. Naturalmenfe, não
podemos pensar que uma expansão sem precedentes da cultura clássica
foi a fonte de propagação das idéias republicanas: o acesso aos textos
permaneceu limitado aos homens de letras e a alguns cidadãos mais
cultos. A favor da divulgação dessas Idéias existia, é verdade, um caráter
publicista no humanismo cívico, que o aproximava dos publicistas dos
tiranos; mas, ainda assim, a explicação parece-nos superficial. É mais
produtivo, para os nosso propósitos, tentar apreciar qual foi a recepção
pelo público das idéias defendidas pelos eruditos. Desse ponto de vista,
os estudos de Baron são muito esclarecedores e fomecem-nos um núme-

152. G. BRUCKER, op. cit., 286, 295, 310.


ro significativo de exemplos que mostram que os cidadãos empregavam
o conceito de liberdade nas duas acepções às quais fizemos referência
anteriormente: a independência com relação aos outros Estados e a
natureza da constituição política'^. Analisando as "pratiche", constata­
mos que os cidadãos se referem em geml à liberdade como a um Bem
que deve ser salvo, fazendo do inimigo externo o catalisador de uma
unidade que de outra maneira não teria sido conquistada. Procurando se
unir diante de uma força que punha em perigo a própria essência da
"polis", eles deixavam de lado aspectos delicados da questão como o da
verdadeira natureza da constituição florentina. Como observa Brucker:
"Os homens de Estado florentinos eram muito pragmáticos para teorizar
sobre seu governo, e muito conservadores para examinar criticamente os
mitos que os ajudavam a v iv er"'R esu ltav a daí que a idéia da liberdade
como independência externa dominava os debates, em detrimento da
discussão sobre a natureza do regime republicano. Era esse condito,
inerente à ideologia da liberdade, que lhe conferia uma dinâmica fecun­
da. A oligarquia, além disso, cultivava um ideal de cidadania suficiente­
mente abstrato para exigir dos cidadãos uma dedicação exclusiva à causa
republicana, ignorando deliberadamente as formas mais radicais propos­
tas peios humanistas. Filippo Corsini, membro da elite florentina, expri­
mia bem esta ambiguidade do regime dorentino, declarando que era
necessário sempre escutar o povo, sem levar em consideração suas
observações'^.
A eficácia dos discursos republicanos foi um dos produtos mais
notáveis da mistura entre cultura erudita e prática política que caracteri­
zou Florença durante o "quattrocento".
Mesmo homens argutos como Bruni e Rinuccini'^ só se convence­
ram da ineficácia dessa união quando se deram conta de que a domina­
ção dos Medieis não deixava a menor margem para o funcionamento das
instituições verdadeiramente democráticas da República Florentina. isso
fez com que somente nos anos sessenta explodissem as primeiras revol­
tas contra os Medieis'^; revoltas que só conhecerão uma face mais radi­
cal com a geração de Maquiavel, quarenta anos depois.
Para compreender o humanismo cívico é preciso levar em conta os
dois aspectos sobre os quais concentramos nossa atenção até agora. O

153. Ver H. BARON, op. cit., cap. 16.


154. G. BRUCKER, op. cit., 303.
155. Idetn, 306.
156. E. GARÍN, op. cit., 94.
157. Tomamos aqui como referência o excelente trabalho de N. RUBINSTE1N,
Gdnerne*M<?ní qf Fiorence Mtaáer %?<? Aíedicf, 1434-1494, Ctaredom Press, 105.
primeiro ê que e!e foi um autêntico movimento revolucionário na cultura a
da Renascença: ele rompeu violentamente com a cultura medieval, mes- j
m o se suas formulações estavam longe daquelas que iriam caracterizar a I
modernidade. Os humanistas tiveram o mérito de cultivar um ideal po-
líti^í independente dos interesses da igreja, o que fez de sua fraqueza
teórica um caminho para algumas formulações teóricas extremamente
originais. O segundo aspecto importante é que seu destino sempre es­
teve ligado à ideologia que sustentou a ascensão da oligarquia. Se ele se
mostrou contraditório, acreditamos, no entanto, que não podemos pen­
sar o republicanismo do "cinquecento" sem levar em conta estes pionei­
ros da teoria da liberdade.

#.5 . Os human/sfas e o /gre/a


Desde a obra fundamental de Burckhardt estamos acostumados a
pensar na Renascença como um período de fortes críticas à Igreja, e até
mesmo de renascimento do paganismo'^.
Essa visão parece-nos pouco satisfatória quando procuramos com­
preender as relações que existiram entre os humanistas florentinos e o
clero romano. Para tentar lançar algumas luzes sobre essa questão com­
plexa, é necessário retornar aos anos 1375-1378, que foram marcados
pelo conflito agudo entre Florença e o Papado, e terminaram com a
ruptura aberta entre as classes dirigentes florentinas e a corte pontificai.
O paradoxo da situação é que a ruptura da oligarquia florentina com o
Papado, que deu origem a toda uma literatura anticlerical, ocorreu num
período em que a Igreja, enfraquecida, recorria mais e mais aos banquei­
ros florentinos, sendo levada assim a conceder certa independência
doutrinai â cidade contra a qual se batera alguns anos antes
A cidade de Florença, durante o "trecento" e o "quattrocento", foi
dominada principalmente pelos comerciantes e pelos artesãos, o que
não deixou de influenciar o estilo de sua vida religiosa, que, de pura­
mente tradicional, transformou-se em um rituaiismo de caráter social. De
fato, os florentinos cultivavam uma religião na qual as lestas e ritos
tinham um papel importante na vida cívica, o que explica o porquê de
as manifestações religiosas terem muitas vezes o caráter de mero espe­
táculo, enquanto as questões de ordem profissional eram revestidas de
uma dignidade toda especial. A oligarquia, tanto quanto as classes infe­
riores, professavam uma cultura laica, que pouca importância dava ao

158. J. BURCKHARDT, op. cit., 104-170.


159- G. HOMRS, op. cit., 50-52.
cumprimento estrito dos dogmas da fé. Para exemplificar o que acaba­
mos de dizer, basta ver que escritores como Boccacio demonstram uma
preocupação muito maior com os problemas terrenos do que com o
respeito ao clero ou aos atos de d evoção^.
Florença oferecia nessa época um clima favorável ao nascimento de
um movimento intelectual independente da Igreja, o que não nos auto­
riza, porém, a pensar que os humanistas nutriam um profundo desprezo
pelos valores cristãos. A liberdade de pensamento que lhes era concedi­
da pela posição excepcional de sua cidade conduzia-os muito mais a
orientar seus esforços em direção ao estudo das coisas temporais, das
realidades histórico-políticas, do que a uma atitude de guerra aberta
contra a Igreja. Vemos, ao contrário, que a própria Igreja recorreu com
frequência aos humanistas, tais como Bruni, Poggio, Vergerio e muitos
outros, fazendo do posto de secretário da cúria romana uma passagem
obrigatória para todos aqueles que almejavam uma carreira literária. Nesse
movimento de aceitação e recusa, a Igreja iria terminar por produzir
intelectuais em plena sintonia com os novos tempos, como foi o caso do
cardeal Francesco Zabarella, que, depois de estudar em Bolonha, trans­
feriu-se para Florença, onde adquiriu grande reputação como homem de
letras^.
Se podemos falar, no entanto, em vitória dos humanistas florentinos
sobre a Igreja, isso se deve sobretudo às armas teóricas que forjaram, e
que, sem pressupor a crítica radical aos valores cristãos, forneceram todos
os elementos pata tal.
Um primeiro ponto nessa ruptura foi a mudança na concepção da
natureza humana. A idade média foi marcada em grande medida pela
antropologia agostiniana, em que a idéia da "queda" domina inteiramen-
te, e para a qual o ato bom, ou o ato verdadeiro, só pode existir através
da iluminação do agente pela graça divina^. Para os humanistas, ao
contrário, o homem é o soberano de seus atos e, assim, é capaz de agir
de acordo com o Bem, desde que possua a "virtú" que, como vimos, é
algo essendalmente humano. Mudando profúndamente a concepção da
natureza humana, os humanistas faziam do cidadão o responsável pela
construção do mundo no qual viviam. Essa mudança não implicava, no
entanto, o abandono dos valores cristãos, mas a sua incorporação a um
novo modo de vida, que exigia de todos a participação nos negócios

l60. A. TENENTt, -Híonence á í'q&o%Me <%es Aíeó&rR, Ftammanon, 1%8, 42.


ló l. G HOLMES, op. cit., 62-63.
162. R. J. O CONNELL, A&emy q f Beiknap Press o f Harvard
University Press, 1968, 101.
públicos. O modelo do homem bom deixou de .ser o santo para ser o é lamentável que uma tal capacidade, tão nobre e excelente, tenha se
cidadão'*^.
voltado para a heresia, se é verdadeiro aquilo de que ele é acusado"*^.
Em um segundo ponto os humanistas também divergiram frontal- Não é difícil reconhecer nessa passagem o valor atribuído pelos
mente dos medievais. Para Santo Agostinho, a única recompensa do humanistas à retórica. Poggio começa sua análise sem se preocupar di­
santo era a consciência de ser um instrumento de Deus; para os retam en te com o conteúdo da doutrina exposta pelo acusado; o que lhe
humanistas, ao contrário, a glória era o objetivo maior da vida de um interessa é a maneira pela qual ele expõe suas idéias. Na verdade, para
homem virtuoso. Esse ataque às tradições cristãs tinha como ponto de um humanista, não havia diferença entra a maneira de dizer e o conteú­
partida o deslocamento do eixo da vida, da ordem divina para a ordem do: a verdade exige uma expressão correta e ela só pode existir sob essa
temporal e humana; mas ele mostrava sua lace mais radical apenas ao forma. Mas Poggio conhece também os perigos dessa posição quando se
fazer da educação a etapa necessária para a busca das honras terrestres, trata da Inquisição e, assim, afirma logo em seguida: "De fato não sou
não mais para a salvação eterna. capaz de julgar algo tão grave, e para tanto eu me remeto ás decisões de
Apesar das rupturas apontadas anteriormente, acreditamos que os quem é mais competente na matéria"*^. Ele procura de modo evidente
elementos reunidos por nós sejam insuficientes para a afirmação da se proteger de uma atitude que o tomaria culpado aos olhos daqueles
existência, no "quattrocento", de um verdadeiro movimento de contes­ que julgam Girolamo. Aparentemente, fala da arte da oratória, e não das
tação da Igreja. Os intelectuais ílorentinos desenvolveram teorias e mé­ coisas da fé; ele se interessa pefas palavras, pelos argumentos em sua
to d o s^ que seriam usados no século seguinte por muitos daqueles que forma lógica, e não pelas questões capitais.
estariam na vanguarda das críticas á Igreja, mas é pouco provável que já Uma leitura atenta da carta mostra-nos, no entanto, que Poggio,
tivessem consciência da importância do passo que estavam dando. A protegendo-se de uma interpretação que o tomaria culpado em face da
atitude geral dos humanistas era de uma estranha ambiguidade; afirman­ Igreja, estava longe de compartilhar seus pontos de vista. Para um
do constantemente um grande respeito pelos dogmas cristãos, não ces­ humanista, uma boa expressão do pensamento vale mais do que um
savam de buscar, nos clássicos, armas contra as crenças mais profundas dogma da fé; o acusado, pelo domínio perfeito de seu pensamento,
do pensamento cristão. alçava-se a um plano inacessível a seus juízes. Ao decidir em favor do
Um bom exemplo desse comportamento encontramos na carta que acusado, Poggio não estava sendo hipócrita com os poderes eclesiásti­
Poggio endereçou a Bruni no dia 29 de maio de 141.6, por ocasião do cos, manifestava apenas a diferença profunda que separava os humanistas
julgamento de Girolamo de Praga. preocupados com o conhecimento do mundo social de uma fé que nada
Essa carta é uma síntese perfeita das relações mantidas por homens tinha a dizer nesse terreno. Giroiamo, ao contrário, como alguém que
ligados à Antiguidade com a Igreja católica, que atravessava nessa época conhecia a utilização das palavras, podia desvelar os segredos da vida
uma forte crise de legitimidade. pública.
Poggio com eça descrevendo a personalidade do acusado num tom Assim, depois de reconhecer sua ignorância das questões religiosas,
que já deixa transparecer o antagonismo que o separa do radicalismo da Poggio retoma ao elogio do acusado: "É indescritível a habilidade que
Inquisição: "Confesso que nunca vi ninguém, sobretudo numa causa tem para responder às perguntas, o genêro de argumentos que usa para
capital, que se avizinhasse tanto da eloquência dos antigos, que admira­ se defender. Não disse nunca algo que não fosse digno de um homem
mos. Era uma coisa admirável ver com que acento, com que eloquência, imaculado, e se sua fé era realmente aquela que professava, não se
com quais argumentos, com quais aspectos, com que confiança respon­ poderia encontrar contra ele, não digo um motivo justo para condená-
dia aos seus adversários, ao ponto de piorar sua causa, de tal forma que -io, mas nem mesmo algo para infringir-lhe uma pena lev e"^.
Toda a carta é atravessada por essa ambiguidade. Para evitar a per­
163- Q. SKINNER, op. cit., 91-92.
seguição da Igreja, os humanistas procuravam se situar num terreno que
164. Skifmer ressaltou com agudeza a importância das mudanças metodológicas ope­
radas pelos humanistas: "The humanists írrst of aU launched a direct assault on schoiasticism 165. POGGIO BRACCIOUWI, ípRíoá?, Einaudi, 1976, 231.
at the methodological levei, focusing in particular on the scholastic approach to the
interpretation of the Roman Law": op. cit., 10$. 166 . Idem, 231.
167. Ibidem, 233.
lhe fosse estranho. Para eles, a fé cristã era absoiutamente legítima, mas
não lhes dava o conhecimento do mundo social que tanto lhes interes­
sava. Se essa astúcia os protegia das consequências de um conflito aber­
to, impedia-os de ver que, sem uma crítica radical de certos valores
cristãos, era impossível chegar a uma nova concepção da política. Presos
a uma grande valorização da expressão formal, foram incapazes de fazer
aquilo que levara Girolamo ao tribunal: a ruptura com a Igreja. Isso
aparece claramente na carta de Poggio, no momento de concluir: "Ó
Homem digno entre todos os homens de uma memória eterna! Não
procuro louvá-lo por seus sentimentos em relação à Igreja, mas admiro
sua doutrina, sua eloquência, a doçura de seu dizer e a fineza de suas
respostas; ainda que tema que tudo isso lhe tenha sido dado pela natu­
reza para a sua perdição"'^.
A ultima frase traduz a consciência que os humanistas tinham de
suas próprias atividades, assim como da incapacidade de levar a cabo
suas pretensões. Eles foram capazes de criticar a vida desregrada do
clero, os costumes da época, mas jamais foram capazes de retirar as
conclusões que a paixão pela Antiguidade exigia. Prisioneiros de seus
engajamentos políticos, eles lançaram, no entanto, as bases de uma ofen­
siva violenta contra o monopólio eclesiástico. Com eles, pela primeira
vez, aparecem as ferramentas intelectuais para a construção de uma cultura
laica, numa cidade onde uma classe rica e poderosa buscava exprimir
suas diferenças com relação a uma igreja em crise.

168. Ibidem, 239.


Capítulo !)

A QUESTÃO DA LIBERDADE NA OBRA


DE MAQUIAVEL

Peto que discutimos até aqui, poderiamos ser levados a pensar que
o humanismo cívico teria sido a principal fonte teórica dos republicanos
do "cinquecento", hipótese aparentemente confirmada pelo próprio
Maquiavel, que cita com frequência autores como BrunP. No entanto,
seria ingênuo acreditar que o estudo da questão da liberdade na obra de
Maquiavel podería reduzir-se à análise de suas relações com o passado,
por mais rico que ele tenha sido. O humanismo cívico está, com toda
evidência, na origem da ideologia que dominou a cena política ao longo
dos primeiros anos do "cinquecento", mas ele só pôde ser tão influente
porque a profunda crise institucional atravessada por Florença pôs em
xeque vários pressupostos do pensamento humanista. Foi a vontade de
reconstruir a República, expressão da grandeza florentina, que levou os
homens políticos a utilizar não somente as idéias de seus antecessores
imediatos, mas, sobretudo, a herança da Antiguidade na obra de recons­
trução das instituições,
A queda dos Médicis em 1494, provocada pela invasão de Carlos VHI
e pela política inconsistente de Piero di Lorenzo di Mediei, ocasionou
grandes mudanças na vida da cidade^. Os aristocratas acreditaram, num
primeiro momento, que seria possível criar uma nova forma de governo
que, mantendo o controle da máquina de governo em suas mãos, obri­
gasse aqueles que haviam participado do regime anterior a deixar a
cidade, repetindo uma velha tradição florentina de exilar os vencidos. A
pressão popular que se seguiu às primeiras mudanças, reivindicando

1. Ver, por exemplo a introdução às TKsfórfa? de Maquiavel, onde Bruni é


citado diretamente.
2. N. RUBINSTEÍN, "Polítics and constitution in Florence at the end of the Fífteenth
century" in ArAdM -RetMisMMce ed. E. F. JACOB, Faber and Faber, 1%0, 148.
maior participação no rumo das decisões, mostrou que os velhos aristo­
cratas se enganavam.
Nessa perspectiva, devemos separar os acontecimentos que se segui­
ram à expulsão de Piero em dois períodos distintos. Do dia 2 de novem­
bro de 1494 até o dia 2 de dezembro de 1494, a aristocracia tentou
organizar o governo, contentando-se com pequenas mudanças na cons­
tituição e visando apenas voltar ao estado anterior à subida dos Medieis
ao poder em 1434. Do dia 3 de dezembro até o dia 23 de dezembro, as
pressões populares obrigaram os aristocratas a aceitar profundas modi­
ficações na constituição, cujo resultado mais visível foi a criação do
"Consiglio Maggiore", órgão governamental que consagrava a participa­
ção popular nos negócios do Estado^.
Compreendemos melhor a crise pela qual passou Florença neste
último período quando analisamos os resultados de todas essas transfor­
mações. O primeiip e mais importante foi a verdadeira guerra de facções
na qual a vida política se transformou. Para resistir ao aumento do poder
do "popolo", os aristocratas tentaram criar novas instituições, que, sem
destruir o conselho popular, restringiríam de maneira significativa seu
poder. Tal tentativa se chocou não somente contra os desejos das cama­
das médias da população, grande beneficiada das transformações, mas,
sobretudo, contra os desejos de membros da própria aristocracia. Ao sair
da crise de 1494, os aristocratas estavam, na verdade, divididos em três
grupos distintos: os "Bigi", que haviam servido aos Médicis e permane­
ciam fiéis aos antigos senhores; os "Bíanchi", que, apesar de um passado
comprometido com os Médicis, defendiam o novo regime; e os "ottimati",
constituídos por aristocratas que não haviam abandonado o projeto de
fazer de Florença uma república aristocrática, contrária a toda domina­
ção de uma só família'*. No outro extremo do espectro político, o "povo",
ele mesmo constituído por elementos tão díspares quanto os operários
manuais e os pequenos burgueses, fazia pressão para que nenhuma
modificação significasse um retomo ao antigo estado de coisas, seja em
proveito dos Médicis, seja em proveito da aristocracia. Descobrir a "me­
lhor forma de governo", capaz de dar expressão ao sonho de liberdade
da cidade, foi a obsessão de todos os florentinos que, de uma maneira
ou de outra participaram do processo de transformação das instituições.
Mesmo que não seja nosso objetivo fazer uma análise detalhada da histó-

3- Idem, 152.
4. Ibjdem, 169.
ha do período^, a questão da liberdade na obra de Maquiavel ficaria
incompreensível se não dedicássemos algumas linhas ao pensamento de
Savonarola e ao funcionamento de algumas institutiçôes, entre as quais
as "pratíche", momentos fundamentais das transformações pelas quais
passou a cidade e que deixaram marcas na obra de nosso autor.

]. A CR!SE CONSTITUCIONAL E A QUESTÃO DA LIBERDADE

/.l, Scfyonoro/a

A primeira obra política de Savonarola da qual temos notícia data de


1484 e foi escrita por ocasião de sua estada em Florença. Intitulada De
Po/idca e ela, na verdade, fazia parte de um tratado mais geral
de filosofia que se chamava óbwpendiMW ío/ÍMs Apesar de
sua importância para aqueles que estudam o pensamento do monge, é
pouco provável que essa obra tenha influenciado os políticos da época.
Ela revela, no entanto, alguns aspectos interessantes do percurso do
'Trate". Nesse momento de sua vida, ele se preocupava essencialmente
com a salvação dos homens, mas pensava que era possível unir suas
preocupações religiosas com uma reforma política que conduziría ao
caminho para o processo escatológico. A ordem social interessava-lhe,
no entanto, somente na medida em que ela abria uma via para o Cristo.
Do ponto de vista teórico, o tratado revela sobretudo a profunda
influência de Santo Tomás sobre o pregador^. Ele começa com a afirma­
ção da sociabilidade natural dos homens, para passar logo em seguida
à discussão das condições necessárias para sua melhor realização. Não
resta a menor dúvida de que Savonarola não fazia mais do que seguir
Santo Tomás em um ponto em que ele mesmo não fazia mais do que
seguir Aristóteles. Mas o importante é que, do uso da herança tomista,
o monge caminha cada vez mais em direção a temas específicos de seu
tempo. É assim que, no correr de suas discussões, ê levado a afirmar que
a agricultura seria a única fonte econômica capaz de assegurar uma certa
estabilidade à comunidade, enquanto o comércio estaria na origem de
todo o processo de corrupção". No que toca à melhor forma de governo,

5. Ver: ANZILOTTI, í a crtM FMofpní&K!, MuitigraRca


Edítrice, 1%9. F. GÍLBERT, e t/ são H Mulino, 1964. Maã&%ape#í e
Binaudi, 1970.
6. R. WE1NSTE1N, &!K)Maw/e ef F/omnce, Cahnatm-Lévy, 1973, 298.
7. Idem, 298.
8. Ibídem, 299.
Savonaroia mais uma vez segue Santo Tomás, afirmando ser ela a mo­
narquia, que não deve ser confundida com a tirania, contra a qual lança
os ataques mais violentos, chegando mesmo a defender o tiranicídio^.
Nesse período de sua vida, Savonaroia se apresenta como um mon­
ge ortodoxo, preocupado com a salvação da humanidade e pouco atento
aos negócios mundanos de seu tempo. O simples fato de condenar o
comércio demonstra como estava longe de se interessar pela luta política
de uma cidade que retirava todo seu poder econômico exatamente das
trocas comerciais.
Assim, até o dia 2 de dezembro de 1494, seus discursos, pronunci­
ados nas missas cada vez mais concorridas de sua paróquia, Ümitaram-
-se a atacar a tirania e a pedir a redução dos impostos*". Somente no dia
14 de dezembro, ele pronunciaria o discurso político que seria decisivo
para o processo de transformação institucional em curso. Nele pregou
uma reforma do regime que, tomando por modelo a cidade de Veneza,
possibilitasse que todos os cidadãos fossem representados nos debates
que conduziríam à criação das novas instituições. A partir desse momen­
to, sua autoridade seria enorme em Florença, sobretudo depois que al­
gumas de suas profecias se realizaram. A muitos pareceu que a consti­
tuição aprovada no dia de natal do ano de 1494 era fruto exclusivo dos
esforços do monge. Dessa versão dos fatos compartilham mesmo muitos
dos intérpretes contemporâneos, para os quais a autoridade moral de
Savonaroia foi suficiente para impor uma nova ordem política â cidade
de Florença'*.
Duas considerações parecem desmentir esses intérpretes. Em primei­
ro lugar, é preciso notar que a constituição de Veneza já exercia uma
grande influência sobre o espírito dos homens políticos florentinos. Como
nos mostra Gilbert^, a estabilidade da República do Norte há alguns
anos atraía a atenção não somente dos homens de letras, mas também
daqueles que participavam mais diretamente da vida política da cidade,
fascinados com a liberdade e com a paz interior de uma república que
parecia escapar ao império do tempo's. A idéia de tomá-la como modelo
fazia parte, portanto, das idéias políticas de quase todas as camadas
sociais; ainda que de maneira diversa. Os "ottimati", por exemplo, viam

9. Idem, 300.
10. Ibidem, 258.
11. Ibidem, 258.
12. F. GILBERT, "La Costituzione Veneziana nel pensiero poiitico florentino" in
<? 11 Mulino, 1964, 115-167.
13- Idem, 119.
em Veneza a figura perfeita de uma república aristocrática, que garantia
o poder aos membros mais preparados da cidade. Do outro lado do
espectro político, uma parcela significativa das "classes médias" pensava
em Veneza como o exemplo de uma república democrática, que alargara
a base do poder, de maneira a incluir todos os cidadãos aptos a exercer
uma função governamental qualquer^.
Em segundo lugar, a defesa savonaroliana da paz parece recobrir um
desejo largamente compartilhado pelos florentinos. De fato, em seu ser­
mão do dia 14 de dezembro, Savonaroia não se contentou em se declarar
a favor de uma revisão da constituição; declarou-se favorável a uma
anistia geral para assegurar "a paz universal"^. Ora, uma anistia repre­
sentava, para os aristocratas, garantia de impunidade e, sobretudo, lhes
assegurava a participação no novo governo, ainda que alguns se tives­
sem comprometido com os Médicis. Liberados do perigo de represália,
corrente na história política florentina, os "ottimati" consideravam esse
aceno de paz como um reforço em sua luta para ocupar os postos mais
importantes do novo govemo. É claro que, mostrando que o pensamen­
to de Savonaroia encontrava em Florença um solo fértil para se desen­
volver, não acreditamos dar a chave para a compreensão de sua influên­
cia. Profeta de uma cidade dividida por conflitos internos violentos,
pensador dogmático e ao mesmo tempo em perfeita consonância com
seu tempo, ele foi sem dúvida a personagem mais importante dos pri­
meiros anos da nova República Florentina. Vendo em Florença uma
nova Jerusalém, não mediu esforços para realizar sua profecia; homem
religioso, transformou-se em homem político, tal era o seu desejo de
realizar seu sonho. Essa vontade férrea não deixou de encontrar ecos
numa cidade que em pouco tempo ficou dividida entre os que acredita­
vam no "frate", os "frateschi", e os que o detestavam, os "arrabbiati".
Numa época de crise, Savonaroia foi a "consciência moral da cidade" e
um guia para as tarefas mais cotidianas da existência. Seu fim trágico
demonstrou, porém, que se equivocara quanto à força de um inimigo
que tentou combater com as palavras.
Um estudo do pensamento savonaroliano, na perspectiva que é a
nossa, não podería contentar-se com a análise de seus aspectos políticos,
sem levar em conta o contexto de uma vida dominada pela paixão re­
ligiosa e pela vontade de criar um mundo novo, partindo de uma comu­
nidade concreta. Assim, suas teses sobre a liberdade serão aqui aborda-

14. Ibidem, 131-


13. R. WE1NSTE1N, op. cit., 137.
das naquilo em que foram essenciais para a compreensão da luta ideo­
lógica que esta na origem da obra de Maquiavel.
A obra política mais importante de Savonaroía é sem dúvida o seu
ThaMa/o circáí % <? Gonewo Ciiid dc Escrito
a pedido da última Signoria, que reivindicava para si as idéias do monge,
esse tratado é, em primeiro lugar, uma descrição e uma defesa do novo
regime, O autor se esforça em demonstrar que a república é o único re­
gime legítimo para o governo de Fíorença, dado o caráter particular dos
florentínos'7. Mas essa descoberta é eia mesma submetida a seu projeto
religioso, pois, para ele, a política deve necessariamente ser interpretada
em função do processo escatoiógico. Para que o governo pudesse ser
excelente ("ottimo"), teria de respeitar a natureza de Fíorença, sua
especificidade, e, ao mesmo tempo, responder aos anseios divinos. O
?h2f(3<%p é dividido em três livros. No primeiro, Savonaroía, repetindo
Santo Tomás, analisa a origem das comunidades políticas e afirma que
a monarquia é o melhor regime^. A grande novidade do livro reside no
fato de que, depois de ter feito o elogio da monarquia, ele mostra que
tal regime não é adequado para uma cidade como Fíorença, acostumada
a viver em liberdade, o que faz com que só a eletiva participação do
povo nos negócios públicos seja capaz de evitar a guerra interna^.
No segundo livro, Savonaroía reflete sobre a questão da tirania, não
só enquanto problema geral do pensamento político, mas também no
caso histórico preciso da República Florentina. Para ele, a tirania é a
expressão maior da decadência humana, o signo ria ruptura da harmonia
do corpo social, o lugar de todas as perversões. O tirano, em sua insa­
ciável fome de prazeres, engendra a corrupção dos costumes e a destrui­
ção dos cidadãos^*. Para governar, mantém os homens na mais perfeita
ignorância dos négocios públicos, "ele semeia a discórdia entre eles,
encoraja os piores, e põe em risco a inocência das mulheres e dos jo­
vens'^'. Tal política só podería ser combatida através da religião e das
boas leis. Para Savonaroía, o desenvolvimento da fé e dos bons costumes
conduz necessariamente à maior perfeição do corpo político, e isso não
pode ser alcançado só pelas preces do clero, mas precisa também da
devoção popular. Ele declara: "Ora, todo este Bem impede e destrói o

16. G. SAVONAROLA, cincH % e gonerno c#%t


Robeit Wilson, 1765.
17. R. WEINSTEIN, op. cit., 303.
18. G. SAVONAROLA, op. cit., 14.
19. Idem, 20.
20. Ibidem, 23-
21. Ibidem, 23-
Governo Tirânico, porque não existe nada que o tirano mais odeie do
que o cuito ao Cristo e ao bem viver cristão, que é o oposto do viver
tirânico"^. Savonaroía associa, nesse ponto do texto, a corrupção políti­
ca, fruto direto da tirania, à corrupção da religião, mal contra o qual ele
não cessou de lutar ao longo de sua vida. É por essa razão que, no
terceiro livro de seu tenta mostrar como é possível construir um
"governo civile" em Fíorença^ e ao mesmo tempo relizar seu projeto
religioso de construção de uma nova Jerusalém.
O primeiro conselho dado para evitar a tirania é o da criação de um
órgão de decisão em que a participação popular seja majoritária. No caso
florentino, esse órgão era o "Consiglio Maggiore"". Mas o caráter popu­
lar da instituição, que devia evitar a tirania dos "grandi", não significava
uma ingerência da "plebe", pensada como a massa de cidadãos iietrados,
nos negócios públicos — "porque talvez a plebe queira se imiscuir nos
negócios do govemo, o que rapidamente criaria alguma desordem". Ao
contrário, o "Consiglio" deveria ser o garantidor da estabilidade florentina,
a instituição que faria a cidade viver de acordo com sua natureza^.
A simples criação de um conselho, no entanto, não é suficiente para
garantir seu bom funcionamento e é por isso que o monge sugere a
promulgação de certas leis, que não somente regulassem seu funciona­
mento ordinário, mas evitassem que ele se transformasse em um poder
tirânico, através da corrupção de seus membros^. A participação nas
reuniões era assim um dever do qual os cidadãos não podiam fugir, mas,
ao mesmo tempo, era necessário criar meios para que o cumprimento do
dever não fosse um fardo pesado demais para a população, que devería
dedicar-se ao trabalho^. Em resumo, Savonaroía acreditava que a Repú­
blica Florentina podería atingir a perfeição entregando-se a Deus, bus­
cando a paz e a justiça^. Para ele, é diante de Deus que os cidadãos
assumiram a responsabilidade de fazer de Fíorença a melhor cidade do
mundo. A virtude e o empenho em cumprir esse juramento não ficaria
sem recompensa, como sugere o trecho a seguir: "E Deus por esta razão

22. Ibidem, 37.


23- Ibidem, 42.
24. Ibidem, 43.
25. "Or tí popoio Fiorentino avendo presso anticamente il Reggimento Civile, ha in
questo fatio tanta consuetudine, che, oitre che a !ui questo è piá naturale, et conveniente
di ogni aitro govemo, ancora per !a consuetudine è tanto impresso neüa mente de' cittadini,
che saria difílciie, et quasi impossibiie a rímuovergii da taie govemo": ibidem, 14.
26. Ibidem, 45.
27. Ibidem, 45.
28. Ibidem, 47-52.
aumenta o Império, como o fez para os romanos, que, por serem severos
em aplicar a justiça, receberam o Império do universo, para que os
povos de Deus fossem administrados com justiça"^. o tratado finaliza
com uma descrição detalhada das bênçãos que seriam dispensadas aos
florentinos se eles adotassem o "governo civil", que por natureza era
mais divino do que humano^*.
Partindo da defesa intransigente da república e do apelo a uma nova
religiosidade, o que entendia Savonarola por liberdade? Para Santo To­
más, principal fonte de seu pensamento, a liberdade política é um "es­
tado", um estatuto do qual gozavam certos membros da sociedade e que
deveria ser assegurado por qualquer governo justo, embora não se
constituísse em um objetivo em si da comunidade política.
Para Savonarola a questão da liberdade situa-se no centro da refle­
xão sobre a política. Em primeiro lugar, ele acredita que todos os ho­
mens devem viver livres da sujeição a qualquer poder arbitrário^', o que
o leva a definir a liberdade como o oposto da tirania. Ora, a natureza dos
florentinos os impedia de viver sob o jugo de um tirano, pois, como
afirma Savonarola,"a natureza deste povo não é a de suportar o governo
de um príncipe"^. Ao contrário, habituados ao "governo civil", faziam
dele sua segunda natureza: '"Ora, o povo florentíno, tendo optado anti­
gamente pelo 'Reggimento Civile', habituou-se de tal forma a ele, que
este a ele é natural e mais conveniente do que qualquer outro governo,
e imprimiu-se de tal maneira na mente dos cidadãos, que seria difícil, ou
mesmo impossível, demovê-los de sua adesão a esta forma de gover­
no"^.
Associando a idéia dos hábitos como segunda natureza, de origem
tomista, ã tradição republicana florentína, Savonarola chegou a uma
formulação que, se não era original, foi capaz de suscitar a adesão de um
número grande de pessoas. Ele falava, na verdade, de uma cidade livre,
sem querer com isso sugerir a constituição de uma democracia direta ou
mesmo de um regime político que permitisse uma grande participação
das massas populares^. Para ele, a liberdade devia ser entendida como
"ausência de sujeição a um poder arbitrário", mas não como direito à
igual participação de todos nos negócios do Estado^.

29- Ibidem, 50.


30. Ibidem, 57.
31. R. WEINSTEIN, op. cit., 313-
32. G SAVONAROLA, op. cit., 14.
33- Idem, 14.
34. R. WEINSTEIN, op. cit., 314
33- Idem, 315.
Savonarola repetia assim o discurso sobre a liberdade que já fora
consagrado pela tradição republicana üorentina, recorrendo, como os
humanistas, à história da cidade para demonstrar a grandeza do
"reggimento civile" e para afirmar a necessidade de uma certa participa­
ção popular na política como forma de expansão dos poderes do Estado.
Acreditamos, no entanto, contrariamente a certos intérpretes^, que ele
não foi o criador de uma nova teoria da cidadania republicana, mas
limitou-se a repetir uma tradição que na crise do final do "quattrocento"
teve um papel fundamentai na reorganização institucional de Florença.
Nesse quadro, a rejeição da tirania era uma das raras idéias com a qual
concordavam todas as facções políticas interessadas em manter os Médicis
longe do poder. Savonarola, portanto, combinou uma doutrina religiosa
extravagante com as aspirações mais tradicionais das classes dominantes
florentinas, o que explica em parte o sucesso de suas pregações. As
inúmeras contradições que atravessam sua obra não deixaram, porém,
de repercurtir sobre sua teoria da liberdade, sem que isso implique que
ele tenha enfrentado mais dificuldades do que todos aqueles que, diante
da profunda crise instituticional e da ameaça de invasão, tentaram pensar
o problema da criação de uma verdadeira república, lançando mão das
idéias desenvolvidas pelos humanistas cívicos.
Por que, nessas condições, fazer de Savonorola um ponto de passa­
gem obrigatório de nosso estudo sobre a questão da liberdade em
Maquiavel, se ele não fez mais do que repetir idéias que já eram conhe­
cidas de seu tempo? A pergunta, assim posta, nos leva a refletir sobre a
história tradicional das idéias que pensa o problema da originalidade da
obra partindo exclusivamente da descoberta das "novidades conceituais"
que ela contém. Ora, para medir a originalidade de Savonarola, é preciso
considerar a relação que suas idéias tiveram com seu tempo e as formas
de sua difusão. A partir deste momento, um novo pensador se descortina
a nossos olhos, marcado pela herança humanista, mas também capaz de
fazer da tradição uma arma viva na luta política. O próprio Maquiavel é
um testemunho da ligação profunda que havia entre o pensamento do
monge e os problemas de seu tempo. Em carta de 9 de março de 1498,
endereçada a seu amigo Ricciardo Becchi, ele manifesta todo o desprezo
que nutria pelo Trate". Mas a confissão de sua distância, embora não
resumindo todo seu julgamento sobre Savonarola, com o mostrou Sasso^,
demonstra claramente que Maquiavel estava longe de desconhecer a

36. Ver í. FARNETI, eybwMZtoHe po/fHco Gímáatno


Ferrare, 1950, 4.
37. G. SASSO, Mcco/o A&zc<&í#tx?#í, -Roríg <%?/ gMo penarem po##co, It Mulino, 1980.
profunda influência que a obra de Savonarola tiniia sobre os homens
políticos da época. A força e a originalidade de um pensamento não
devem também ser examinadas à luz das leituras que suscitou a seus
contemporâneos, mesmo que este não seja o único critério e nem sem­
pre o mais importante? Ora, o "trate" foi o criador em Florença de um
verdadeiro partido político moderno, os "piagnoni", que realizou admi­
ravelmente a síntese entre uma ideologia de origem religiosa e o desejo
de reformar o Estado^. O fracasso de Savonarola em 1498 e a execução
de seu principal discípulo, Francesco Vallori, não foram capazes de destruir
os laços que se ataram entre os que sonharam com uma nova Jerusalém
em Florença. Os "piagnoni" continuaram a atuar na política florentina,
como mostra Gilbert^, até 1527, quando tiveram um papel fundamental
na reconstituição das instituições republicanas, procurando mais uma
vez fazer do governo civil o instrumento de purificação dos costumes
religiosos'*".
Constatamos, portanto, que as idéias dos humanistas cívicos encon­
traram nos discípulos de Savonarola uma forma eficaz e nova de expres­
são. Os debates políticos do começo do "cinquecento" refletem sem
ambiguidade a influência do monge sobre os homens políticos da época
e nada nos leva a crer que Maquiavel não soube perceber a importância
desse fenômeno. Ao contrário, a insistência com que se refere ao Trate"
mostra que ele achava essencial criticá-lo, fazendo disso um ponto de
passagem essencial para toda crítica da tradição de pensamento sobre a
liberdade.

f.2 . "Prof/che"

Em nosso primeiro capítuio, tivemos a oportunidade de falar um


pouco da importância das "pratiche" na vida política florentina durante
todo o "quattrocento". Vimos, por exemplo, que os Medieis hesitaram
em desativá-las completamente devido à grande influência que tinham
na formação da imagem do regime. No com eço do "cinquecento", com
o restabelecimento das instituições republicanas, esse mecanismo de
discussão teria um papel ainda mais importante na condução dos ne-

38. B. GUILLEMA1N, Droz, 1977, 29-


39. F. GILBERT, e CKícctafBAM%, 126.
40. "Ma che a Firenze cí fossero molti che aderivano integralmente a!te idee dei frate
e credevano alfinterdipendenza tra riforma cristiana e stabilítâ detfordine sociale è cosa
ampiamente documentata". Idem, 126.
gócios públicos"**. As "pratiche" não eram na verdade uma instituição no
sentido formal. Convocadas pelo governo com o intuito de se conhecer
a opinião de uma parcela da população sobre um determinado assunto,
variavam não somente segundo o número de participantes, mas sobre­
tudo segundo sua origem. A prtonf, eram constituídas pelos principais
"magistrati" dos principais órgãos governamentais (Collegi, Dieci, Ufhciali
di monti, Otto di Guardia e Ballia) e por alguns cidadãos, que, por um
motivo ou outro, eram convidados a dar sua opinião sobre um problema
qualquer^. De acordo com o número de convidados, elas eram chama­
das "pratica stretta" ou "pratica larga". Evidentemente as "strette" eram
consideradas pelos democratas como um instrumento da aristocracia para
atentar contra a república. Do outro lado, a aristocracia, sobretudo de­
pois das reformas de 1494, via nas "pratiche" uma oportunidade para
fazer valer suas opiniões e para defender seus interesses, que conside­
rava mal expressos na estrutura constitucional^.
Durante o período republicano do com eço do "cinquecento" (1494-
1512), Florença foi palco de lutas internas ferozes, que terminaram por
enfraquecer a já frágil estrutura institucional. O "Consiglio Maggiore" foi
o cenário desses conflitos, mas as disputas que aí tinham lugar não
faziam mais do que refletir a profunda crise pela qual passava a cidade.
Para compreender essa crise, é necessário reconstituir não somente a
evolução das classes e dos homens políticos, mas também a profunda
modificação na maneira de se pensar a política. A esse respeito, como
nos mostra Gilbert, o estudo das "pratiche" é um instrumento precioso,
pois ele nos permite, partindo dos debates cotidianos, entender o uso
que os florentinos faziam da teoria política para entender as dificuldades
tanto interiores como exteriores pelas quais passava a cidade"**. É verda­
de, como mostra Gilbert^, que elas exprimiam de forma mais direta e
clara as idéias da aristocracia do que as dos outros grupos sociais, mas
isso é de se esperar, numa cidade em que os aristocratas tinham guar­
dado parte de seus antigos privilégios e tinham uma disponibilidade
muito maior para participar da vida pública.

41. Ver F. GILBERT, "Le idee politiche a Firenxc a! tempo di Savonarola e Sodeiini" in
e I/ swo op. cit.
42. A. ANZILOTTI, op. cit., 85ss.
43. F. Gilbert nos mostra que já em 1502 os "Orti Oricellari* tinham um papel impor­
tante na formação das idéias poiitícas florentinas e, portanto, eram capazes de influenciar
a vida política: op. cit., 15-66.
44. Idem, 79.
45. Ibidem, 74-75.
Do ponto de vista de nossa pesquisa, no entanto, essa "deformação"
é positiva, pois permite-nos compreender melhor o meio intelectual no
qual o pensamento de Maquiavel se formou e, sobretudo, a revolução
que operou'"'. Nesse sentido, as "pratiche" nos ajudam a compreender
em que contexto aparece a idéia de liberdade e de que forma ela influ­
enciou o comportamento dos homens políticos, num movimento que
terminou por conduzir a uma crise do próprio pensamento político.
* * *

Os homens do "cinquecento" herdaram dos humanistas cívicos a


confiança na ação fundada num saber "universal", que exigia, de um
lado, o perfeito conhecimento dos autores clássicos e, de outro, o conhe­
cimento da experiência. Ora, em política, a experiência pode depender
tanto das condições particulares da cidade, a ação presente, como da
história em geral, que guarda a memória dos atos passados e que tem,
assim, o privilégio de nos pôr diante de uma cadeia de eventos da qual
podemos conhecer todas as etapas^. A força de tal representação se
mostra quando analisamos os discursos de um homem como Bernado
RuceHai, que a cada passo de sua fala nas "pratiche" cita um fato da
história de Florença e os clássicos. Longe de ser um simples exercício de
retórica, esse modo de expressão trazia a garantia de um raciocínio claro
e fundado sobre a verdade atemporal dos acontecimentos do passado.
Um exemplo típico dessa estratégia de valorização do passado é a
importância atribuída por certos aristocratas à figura de Lorenzo di Mediei.
A estabilidade era nessa época uma questão central nos debates políticos
e Lorenzo, tendo assegurado de alguma forma a paz e a tranquilidade
para a cidade de Florença durante seu governo, parecia ser o modelo
ideal do bom governante. Para tanto, os aristocratas fizeram, daquele
que era considerado um tirano, um mito do bom príncipe^. É evidente
que nem todos os florentinos partilhavam dessa visão dos fatos, que
refletia somente o pensamento de uma parcela dos "ottimati" desejosa de
retornar ao poder, mas ela demonstra que a história tinha um papel
fundamentai na produção das idéias e que era impossível, para um homem
como RuceHai, expor seus projetos políticos sem recorrer aos exemplos
do passado. As discussões que tinham lugar nas "pratiche" não podem,
no entanto, ser consideradas como a expressão de uma espécie de "ideo­
logia unitária" ílorentina, que ultrapassaria todas as cíívagens políticas.

46. Ibidem, 108.


47. Ibidem, 41.
48. Ibidem, 31ss .
Ao contrário, o que tentaremos mostrar é que essas discussões refletiam
a extrema complexidade do universo ideológico Horentino.
Assim, ao lado do processo de idealização de Lorenzo di Mediei,
nasce a busca cada vez mais radical do que os florentinos chamariam de
a "verdade dos fatos". Gilbert vê na união dos conceitos clássicos com
uma nova prática política o nascimento do realismo político moderno,
que teria encontrado nas "pratiche" seu primeiro lugar de manifestação^.
Nesse contexto, o humanismo cívico, confrontado com as dificuldades
da criação das novas instituições republicanas, teria fornecido as bases
para um novo pensamento político^".
De uma maneira geral, podemos dizer que as "pratiche" se
estruturavam em tomo de dois eixos: a política interna e a política ex­
terna. Seja porque elas eram muitas vezes convocadas pelos "Dieci" (que
se ocupavam da diplomacia), seja porque os homens dessa época ti­
nham o sentimento de que o destino de Florença seria decidido fora de
suas fronteiras, a política externa era o tema central de quase todas elas^'.
Se observarmos o contexto italiano do começo do "cinquecento",
parecerá natural que os debates sobre a política externa interessassem de
perto todos aqueles que se preocupavam com a liberdade florentina.
Depois de 1494, a Itália foi palco de um número significativo de guerras
e, nesse quadro, Florença era especialmente vulnerável, tanto por sua
posição geográfica como por sua aliança com a França^. Conservar a
liberdade significava saber conduzir o jogo diplomático de forma a evitar
todos os perigos que rondavam a cidade. O estudo de algumas "pratiche"
demonstra que boa parte dos que participavam dos debates estava cons­
ciente de pelo menos duas coisas: de que a posição da cidade era ex­
tremamente frágil, e de que era necessário evitar todo e qualquer erro,
pois este podería ser fatal para a sobrevivência de Florença.
Diferentemente, no entanto, da geração que havia vivido sob o jugo
dos Medieis, os homens políticos dessa época tinham consciência de que
a riqueza não era suficiente para assegurar a proteção da cidade e que,
ao contrário, poderia pô-la a perder^. Além do mais, tinham o sentimen­
to de que o jogo diplomático não podia ser totalmente compreendido à
luz dos conceitos que utilizavam, e que era necessário um grande esfor­
ço de imaginação e criatividade para fazer face à intricada situação na
qual estavam metidos^.

49. ibidem, 51.


50. Ibidem, 52.
51. Ibidem, 80.
52. Ibidem, 81.
53. Ibidem, 84.
54. Ibidem, 86.
Nessa situação de grande risco, os homens políticos, longe de expe­
rimentarem as soluções mais audaciosas, procuravam sempre "ganhar
tempo" antes de tomar qualquer decisão". Exprimiam essa mistura de
fraqueza e prudência dizendo: "Deliberar ao certo nas coisas incertas é
sempre muito perigoso"^. Mas não podemos considerar essa tática ape­
nas como a manifestação de um sentimento de impotência diante da
realidade. A crise dos anos 1494-1498 havia debilitado ao extremo a
economia florentina. As constantes guerras nas quais Florença se via
envolvida só pioravam as coisas para uma cidade que dependia do
comércio e de uma estabilidade externa para a qual ela pouco podia
contribuir. Os üorentínos procuravam se equilibrar no meio da tormenta
italiana através de verdadeiras acrobacias diplomáticas, que eles nome­
avam a "via di m ezzo"". Essa tática refletia, ao mesmo tempo, uma gran­
de influência dos "ottimati" na vida política, pois, mais do que os inte­
resses a longo prazo da cidade, o que eles visavam era a proteção de
seus negócios imediatos.
Como transformar essa mistura de prudência e ganância numa teoria
da ação? Durante o governo de Soderini, boa parte dos homens políticos
acreditava que a primeira regra da "boa ação" era a de não recorrer à
força^. Para tanto, era preciso conhecer perfeitamente a situação, de tal
maneira que se pudesse sempre descobrir uma saída pacífica para o
conflito. O instrumento para essa busca era a razão, que não está nos
eventos, reflexo profundo de um mundo caótico", mas que pode nos
ajudar a decidir numa dada situação^, visto que ela faz parte, como uma
doação divina, da "natureza humana**'. Acreditar na força da razão, lon­
ge de resolver todos os problemas, criava para os homens políticos uma
séria dificuldade. Num primeiro momento, a razão permite retirar lições
da história através do recurso aos exemplos do passado. O estudo das
vitórias sobre os Visconti mostraria, assim, o caminho para as vitórias
futuras sobre os novos inimigos. Mas, se se buscava com tanta insistência
o lado "racional" dos acontecimentos, era justamente porque se acredita-

55- Ibidem, 84.


56. Ibidem, 85.
57. Ibidem, 88.
58. Ibidem, 89.
59- *ía ragione è non solo ii cânone dei comportamento che forma ia base di tutte ie
aztotii umane, ma anche Io strumento atoa verso il quale si puo scoprire ií modeJIo generale
sottostante ad ogni caso individuaie, attraverso il quale ie consequenze future di ogni
misura índividuaie diventano prevedibíii". Idem, 90.
60. Ibidem, 90.
61. Ibidem, 91.
va que a política se desenrola num mundo dominado pelo caos e pela
incerteza. As ações do passado só podiam nos ajudar de uma maneira
parcial, pois o seu conhecimento não era suficiente para anular uma
outra certeza, a de que não se pode escapar das armadilhas do tempo.
Os florentinos, para nomear essa força invisível, recorriam aos termos da
tradição: fortuna, necessidade, providência^.
Tanto a necessidade com o a fortuna representavam o elemento irra­
cional que existe em todos os domínios da vida, mas era preciso saber
distingui-las para agir com correção.^ A necessidade intervém quando
nenhuma escolha é possível, quando o caminho da ação já está de tal
forma determinado, que só resta aos homens se conformar com os resul­
tados. É assim que um florentino a define numa "pratica" em 1512, quando
o Papa pediu a Florença para renegar sua aliança com a França: "...nós
não devemos renegar nossas promessas, ainda que o cumprimento das
mesmas nos coloque em perigo, e eu não quero me distanciar de uma
tal sentença, sobretudo porque a honestidade precede à utilidade; além
do que, a necessidade, e não somente as leis, já nos obrigam a mantê-
-las"^. A "fortuna", ao contrário da necessidade, não possui o rosto frio
da inexorabilidade. Com ela, é necessário manter um contato íntimo e
pessoal, pois só uma relação ativa pode salvar-nos de suas garras, como
dizia um outro florentino em outra "pratica": "...quando a ocasião é
oportuna, quem não tenta a fortuna é abandonado por e la "^ .
A descoberta do lado "irracional" da política não implicou, no entan­
to, como acreditam alguns autores, o abandono dos valores cristãos.
Talvez o que mais chame a atenção do estudioso desse período seja
justamente que, ao lado das discussões políticas e da busca de uma
solução racional para os problemas, encontramos com frequência atos
de devoção^ e a afirmação, tão a gosto de Savonaroia, de que Florença
era uma cidade escolhida por Deus^. O realismo nascente tinha seu
contraponto na permanência de elementos religiosos, que faziam com
que os homens políticos às vezes acreditassem mais facilmente nos laços
privilegiados com Deus do que no resultado das análises racionais^. Mas
não podemos deduzir daí que Florença prestasse obediência ao Papa
por acreditar que era uma cidade eleita. O resultado da mistura dos

62. Ibidem, $2.


63. Ibtdem, 95.
64. F. GILBERT, op. cit., %.
65. Citado por F. GILBERT, op. cit., 97.
66. Idem, 97.
67. Ibidem, 98.
68. Ibidem, 100.
elementos religiosos com os elementos racionais e com a história era
uma ideologia tipicamente florentina, e que tinha na afirmação da abso­
luta especificidade da cidade seu ponto forte. Além do mais, ao longo da
Renascença, os florentinos não foram exatamente conhecidos por seus
costumes religiosos. Eles se serviam da religião quase com o um instru­
mento teórico, sem se preocupar com as conseqüências dessa escolha.
As contradições que atravessavam os debates sobre a política exter­
na refletiam-se fortemente nas discussões sobre a política intema. Na
verdade, apenas um tema interessava de perto os homens políticos dessa
época: a forma das constituições. Ora, para pensar a forma ideal para a
República Florentina, não se podia deixar de lado o fato de que Deus
escolhera pessoalmente a cidade para representar um papel importante
na história da humanidade^. O primeiro passo de todo discurso,
objetivando provar que uma solução qualquer estava de acordo com os
destinos da cidade, era o de mostrar que podia-se esperar uma interven­
ção da mão divina da mesma maneira como eia já ocorrera no passado.
Nesse sentido, a morte de Galeazzo Vísconti às portas da cidade em
1402, assim como o fato de que Carlos VIH havia decidido não invadir
a cidade em 1494 eram paradigmas que voltavam à baila a cada vez que
era necessário provar que podia-se esperar algo mais dos céus do que
a simples compreensão dos pecados humanos. Escutemos o que dizia
um cidadão diante da ameaça de invasão da cidade em 1512: "No pas­
sado, muitas vezes fomos tomados por uma grande aflição... com a ajuda
de Deus e dos cidadãos conseguimos nos sair bem. E para provar a
veracidade de minhas palavras é fácil descobrir exemplos bastantes e
não muito antigos"?**.
A mistura de elementos religiosos e concepções políticas provocou
o aparecimento de uma teoria da cidadania que olhava para a herança
constitucional com olhos diferentes daqueles de uma sociedade laica. Se
Deus havia intervindo pessoalmente na criação das instituições, toda
modificação deveria ser feita com extrema precaução, para não destruir
a obra do legislador divino. For isso, todos os debates giravam sobre as
instituições originais, toda ação devia ser de restauração do "vecchio
ordine". Importava pouco o aspecto de novidade das soluções encontra­
das, se estivesse garantida a continuidade com o passado glorioso da
cidade. Nesse contexto, mesmo aqueles que pregavam a imitação do
modelo veneziano, que era extremamemte influente entre os homens
políticos, deviam provar que se tratava na verdade de uma continuação

69- Ibtdem, 101.


70. F. GILBERT, op. cit., 101.
de algo que, antes de ser venexiano, fora florentino, ou seja, que não
havia propriamente imitação de um modelo, mas retomo às antigas fbr-
Hias. Longe, portanto, de submeter a análise da política aos ditames da
razão, os florentinos ouviam em primeiro lugar a autoridade da fe, que
afirmava ter tido Florença uma origem divina^'.
Nossas afirmações anteriores não devem, no entanto, nos enganar.
Quando se fala da relação da política com a religião em Florença, não
se está querendo dizer que a cidade fosse especialmente religiosa, ou
que ela obedecesse sem protesto às ordens de Roma. A religião era,
nesse caso, uma forma de compreensão da história, e não um sistema
rígido de dogmas. Além do mais, como acontece com todas as idéias
importantes de uma época, não é de se esperar que todos acreditassem,
ou se servissem, da teoria da origem divina de Florença da mesma maneira.
Para os discípulos de Savonarola, os "piagnoni", tratava-se de uma ver­
dade absoluta, que guiava todas as suas atitudes públicas, o que não
coincidia com a visão dos "ottimati", que, em grande medida estavam
interessados na herança constitucional apenas â medida que ela fazia do
modelo anterior a 1434 o modelo ideal. Não é de se desprezar, além de
tudo, que muitos cidadãos se servissem de uma linguagem religiosa para
mascarar seus interesses particulares. Numa cidade dividida por disputas
ferozes, a crença na origem divina das instituições funcionava como um
ponto de encontro que permitia o diálogo de grupos que, de outra
maneira, não poderíam sequer participar das mesmas instituições.
Uma segunda fonte alimentava a crença na força da história da ci­
dade^. Como vimos, o humanismo cívico havia desenvolvido uma nova
teoria da história, baseada em grande medida na valorização do passado,
e havia exposto o problema da melhor constituição lado a lado com o
da resistência aos efeitos do tempo. Os cidadãos que participavam das
"pratiche" absorveram todos as teorias da época, sem, no entanto, explo­
rar em profundidade os problemas que elas levantavam. Para eles, ter­
mos como democracia ou aristocracia não faziam parte do vocabulário
político; discutia-se se o governo era "stretto" ou "largo", mas não sobre
a essência de cada forma constitucional^. Para definir o regime de Flo­
rença, recorriam a conceitos como liberdade, igualdade, república, sem
conferir-lhes um significado preciso, a não ser o de oposição à tirania.
Além do mais, para se viver em uma cidade livre, parecia-lhes necessário
apenas ter boas leis e uma administração eficaz da justiça. Um partici-

71. Idem, 103-


72. Ibidem, 104.
73. Ibidem, 104.
pante de uma "pratica" se exprimia assim a esse respeito: "Se vocês não
agem de tal maneira que as leis dominem, eu não vejo nenhuma solu­
ção... uma república não pode existir ou durar sem a administração da
justiça"^.
Os fíorentinos do com eço do "cinquecento", assim com o os
humanistas do "quattrocento", foram incapazes de transformar as idéias
correntes numa arma poderosa contra os males do tempo. Diante da luta
desenfreada das facções, só lhes ocorria culpar a "cattiveria umana" e
fazer apelo à justiça, com o se as reformas constitucionais nada tivessem
a ver com as disputas particulares que assolavam o Estado Florentino^.
A queda da República em 1512 iria introduzir novos elementos na pai­
sagem teórica da época. Os jovens aristocratas, descrentes das velhas
formulas, descobriram que os novos tempos eram inteiramente domina­
dos pela imagem da força. Assim Paolo Vettori dirigia-se ao futuro Papa
Leão X: "Vossos antecessores, para manter este Estado, usaram muito
mais da habilidade do que da força, a Vós será necessário muito mais
força do que habilidade"^. Para essa geração, que havia vivido o fracasso
de Soderini, a força era a única chave para o entendimento da história
contemporânea. O exemplo eram homens como o Papa Júlio 11, que,
sem contar com nenhuma habilidade política, fora capaz de impor suas
opiniões pela força^.
Como consequência, muitos jovens aristocratas abandonaram os
velhos valores e passaram a pensar a política a partir do "número de
armas" disponíveis. Como resumiu muito bem Gilbert: "Na alegria de ter
descoberto na força a verdadeira chave para a compreensão da política,
os conceitos tradicionais foram arrogantemente postos de lado, e o qua­
dro da vida política simplificado ao extremo"^.
Mais uma vez é preciso cautela ao analisar essas mudanças, para não
estendermos a todos os homens políticos fíorentinos o que era próprio
de uma parcela da aristocracia. Seja como for, no entanto, a derrota de
1512 forçou todos os participantes da vida pública a buscar novas solu­
ções para problemas que a tradição parecia incapaz de solucionar. A
crise da liberdade, acompanhada pela crise teórica, encontrou em
Maquiavel o seu mais brilhante intérprete.

74. Ibidem, 105.


75. Ibidem, 106.
76. Citado por F. GILBERT, e CMcciárx/Pd, 115-
77. Idem, 115.
78. Ibidem, 120.
)). A UBERDADE NOS D/SCORS/

//.V. Maqu/aye//?epub#ccrno

Em nossa introdução, fizemos alusão às diversas interpretações da


obra maquiaveliana e ao fato de que uma leitura "republicana" de
Maquiavel faz parte da tradição interpretativa. Nossa intenção, ao estudar
a questão da liberdade, não é a de atacar a idéia tradicional do
maquiavelismo para substituí-la por uma outra, em que o "demônio"
cederia seu lugar ao defensor puro dos mais altos valores da democra­
cia^. Seguindo algumas hipóteses avançadas por Cadoni***, segundo as
quais, para se compreender o sentido da liberdade, é preciso entender
o sentido da república, vamos perseguir no texto o movimento de cons­
tituição dos conceitos, com a certeza de que, a cada definição, abre-se
sempre um campo de questões que não faz mais do que relançar nossas
interrogações. Neste trajeto, seremos levados a confrontar nosso trabalho
com um bom número de intérpretes, embora a intenção, vale reafirmar,
não seja fazer a crítica da tradição, mas procurar na obra os signos de sua
fecundidade, através da exploração paciente de seus caminhos*".
Comecemos, pois, pela dedicatória dos Dtycorsf. Maquiavel dedica
sua obra a dois jovens republicanos que frequentavam os "orti oricellari",
onde, sob as sombras do jardim dos Rucellai, se reunia a elite literária
ílorentina para discutir política e literatura. Não podemos deixar de pen­
sar que, dedicando seu livro a pessoas tão claramente identificadas com
as idéias republicanas, nosso autor queira, de alguma maneira, mudar a
imagem que a dedicatória do podia ter criado, visto que a obra
era oferecida aos Médicis. Nesse esforço, Maquiavel não hesita nem
mesmo em dar um passo ousado, pois critica abertamente aqueles que

79. Sobre a história do maqutaveiismo ver; G. PROCACCi, -SfmA


AZwcóiafe#?, Istituto storico Italiano per l'étã moderna e contemporânea, 1965. C. LEFORT,
op. cít., deuxième partie; C. BENOIST, í e IH. ACacA&tveí Plon, 1936;
R. DE MAZZEI, Dgf pwftMíAíáneMstMo G. C. Sansoni, 1969; A.
PANELLA, G. C . Sansoni, 1943; E. GASQUET,
í&ttw ia petísée et ia Míenaiun? gng&tíse dn X M f* sièc/e, Didier, 1974; F. RAAB, Tibe Eftgií&b
Aace o f Aüacóicweiit- a VMíetywtatioH, 1500-1700, University of Toronto Press,
1961.
80. G. CADONI, Afacóiawi/i.- nsgwo e Buzoni, 1974, 169
81. Não trataremos aqui, detaihadamente, da questão propriamente metodológica da
história das idéias, embora façamos referência a nosso profundo desacordo com muitos
historiadores toda vez que isso se fizer necessário.
dedicam suas obras aos príncipes, acrescentando um elogio exagerado
às qualidades dos jovens discípulos.
Este primeiro movimento da obra nos sugere que esse exagero deve
ser entendido com o uma forma de sedução. É claro que não é suficiente
falar em sedução para entender o significado do texto. Ao contrário, a
evocação dos desejos do autor não faz mais do que complicar a leitura,
à medida que tom a viva uma presença que gostaríamos talvez de afastar,
para gozarmos do conforto do diálogo com uma "somatória de argumen­
tos".
Porém nossa suspeita é reforçada pelo fato de que vários intérpretes
chegaram a essa mesma conclusão, embora tenham tomado a idéia de
sedução num sentido absolutamente diverso do nosso. Esse é o caso de
Leo Strauss"2, que acredita que Maquiavel lança mão de todos os artifí­
cios possíveis para corromper seus leitores, particularmente quando jo­
vens. Ora, se não pretendemos esclarecer o sentido da sedução
maquiaveliana apenas à luz da dedicatória, é preciso lembrar que a
juventude à qual se dirige nosso autor não em republicana no mesmo
sentido que fora durante todo o "quattrocento". A derrota de Soderini e
o prestígio crescente da idéia de força como conceito da política haviam
tornado os jovens sensíveis à idéia dos principados como solução para
os eternos conflitos da sociedade florentina. Maquiavel demonstra co­
nhecer seus leitores e querer evitar os perigos de uma confrontação
direta. Dirigindo-se a eles, não fala mais aos "bons cidadãos", como
faziam os humanistas, mas sim àqueles que por suas qualidades pode­
ríam vir a ser príncipes.
Sua longa experiência com o segundo secretário da República
Florentina já lhe ensinara, além de tudo, o quanto é difícil influenciar os
homens, mesmo quando se goza de sua inteira confiança como em o
caso de S o d e r in i^ . A sedução, que se anuncia, exige pois do intérprete
uma dupla atenção. Em primeiro lugar, é preciso percorrer a obra em
todos os sentidos, relê-la com a esperança de surpreender o sentido de
suas veredas, não se contentar com as definições fáceis que o autor por
vezes parece nos legar. Em segundo lugar, é preciso associar esse mo-

82. "Car, si !es criminefs répugnent â ce genre dlntimité, Machiavei, iui, ia recherche
impatiemment, du moins avec certains de ses lecteurs, ceux qu'ii appeie les jeunes. í a
dissimuiation qu'il pratique est un instrument subtil de conuption ou de seduction". L.
STRAUSS, op. cit., 78.
83. N. RUBINSTEIN, "Machiavelii and the world of Fiorentine Foiitics" in M. P. GILMORE
(ed.), ou G. C Sansoni, 1972.
vimento ao conhecimento da época e do público ao qual a obra se
destina. Nesse sentido, é preciso lembrar, por exem plo, que os
frequentadores dos "orti oricellan", embora fossem na maioria republica­
nos, não o eram no mesmo sentido, e misturavam-se com partidários de
uma solução aristocrática para a crise florentina. Além do mais, entre um
partidário de Savonarola e os partidários de uma república popular exis­
tiam quase tantas diferenças quanto entre um republicano e um monar-
quista. Maquiavel, escolhendo um caminho prudente para abrir os
ZXsroKH, parece, ao mesmo tempo, querer dar um significado político a
seus escritos diferente daquele de toda obra de filosofia, pois não des­
preza o fato de que a eficácia da sedução está em fazer crer ao leitor que
fala-se a linguagem dos homens de sua época.
Se a prudência é a marca da dedicatória, a audácia será a do
"proêmio". Logo nas primeiras linhas, Maquiavel anuncia a intenção de
se distanciar radicalmente da tradição, explorando vias desconhecidas
pelos autores do passado: "Deliberei entrar por uma via, a qual não foi
por ninguém percorrida..."^ E sua audácia vai ainda mais longe, pois ele
não hesita em se comparar aos navegadores que em sua época desco­
briam o novo mundo, fazendo da teoria política o correspondente das
fabulosas viagens que mudavam a face da terra. A ousadia dessas pala­
vras pode levar-nos a acreditar que a hipótese da sedução, que acaba­
mos de aventar, não seria nada mais do que a fantasia de um intérprete
desejoso de sotopor a obra de Maquiavel ao signo das teorias contem­
porâneas do desejo. Mas o próprio Maquiavel, que parecia querer sur­
preender seus leitores, opera uma reviravolta no texto, comparando seu
projeto de exploração à imitação da história antiga e ao aprendizado da
antiga virtude. Dizendo-se inovador, ele repete um gesto retórico abso­
lutamente previsível para um homem da Renascença.
Mas uma observação atenta do texto revela que aquilo que para os
humanistas era uma possibilidade — a imitação dos antigos — , constitui-
-se para Maquiavel num problema. Os homens, apesar do fato de que a
natureza não muda, são incapazes de repetir as ações do passado, con­
tentando-se com a contemplação de sua beleza, mas sem saber utilizar
sua lição na vida cotidiana^. Maquiavel nos diz não somente que tal uso
é necessário, mas que esse é o único meio de se escapar ao imobilismo
dos políticos de sua época. Dando a impressão de permanecer fiel ao
universo ideológico de seu tempo, convida-nos a abandoná-lo, para

84. N. MACHtAVELLI, "Discorsi sopra ia prima década di Títo LMo* m Q&efS; Riccardo
Ricciardí, 1954. A partir de agora, todas as citações de Maquiavel referem-se a essa edição.
85. C. LEFORT, op. cit., 462^63.
compreendê-lo. A leitura do "procmio" deixa o leitor diante de uma
dupla imagem. De um lado, a de um Maquiavel herdeiro da tradição
humanista e ligado a seus temas mais difundidos, como o da imitação da
história. De outro, a de um Maquiavel inovador, que, apesar das palavras
conciliadoras, se deixa trair no momento de concluir, quando diz dos
homens de seu tempo: "Apesar disso, ao ordenar as repúblicas, ao manter
os Estados, ao governar os reinos, ao organizar a milícia e administrar a
guerra, ao julgar os súditos, ao expandir o império, não se encontra nem
príncipe, nem república, que recorra aos exemplos dos antigos"**.
É com a surpresa e a ambiguidade dos primeiros movimentos do
texto que nos preparamos para enfrentar o pensamento sinuoso de
Maquiavel.

//.2. á //bercfode.' p/ime/ros s/na/s


O primeiro capítulo dos iniciando-se com a problemática
da fundação das repúblicas, tema típico dos humanistas, volta a suscitar
a hipótese de que o uso da linguagem da tradição faz parte de uma
estratégia de sedução do leitor. Embora na segunda década do século
XVI o recurso á problemática do "com eço" estivesse menos em voga
entre os intelectuais florentinos, o uso de uma argumentação conhecida
de todos dá ao texto um ar de clareza que um argumento inovador não
teria produzido*^. Maquiavel começa falando da fundação de Roma em
associação com a de Atenas e Veneza. O ponto em comum entre todas
essas cidades é que elas tiveram seu começo livre da dominação de
outros povos. Dessa coincidência inicial, passamos, no entanto, a uma
classificação dos diversos tipos de fundação livre. Uma cidade pode ser
fundada pelos habitantes do país ou por estrangeiros, ela pode se encon­
trar num sítio aprazível ou não e as causas do deslocamento das popu­
lações não podem ser reduzidas a uma só. Essa classificação das moda­
lidades de fundação não tem, no entanto, de ser considerada um
paradigma histórico. O caso romano prova que, quer consideremos como
seu fundador Enéias, um estrangeiro, ou Rômulo, um nativo, o efeito foi
o mesmo e dependeu fúndamentalmente do caráter íivre da fundação, e
não da modalidade da mesma**.
Florença demonstrava, pelo pouco progresso de suas instituições,
que tivera seu com eço ligado à expansão de outro povo. O interessante,

86. MACHIAVELLI, Z%con% píoemio.


87. Idem, I, 1.
88. Ibidetn, I, t.
no entanto, nessa observação é que Maquiavel não vê necessidade de
recorrer à história efetiva da cidade para provar sua tese. O simples
exame das condições atuais é suficiente para revelar o passado e ilumi­
nar o presente. O mecanismo gerador da potência, assim como a lógica
dos progressos das formas institucionais, mostra-se com toda ciareza
pata o leitor. De um lado, temos todas as cidades livres, que, em con­
sequência da liberdade primeira, puderam se expandir e encontrar o
caminho da potência; de outro lado, as cidades que, como Plorença, não
nasceram livres e são obrigadas a pagar um alto preço ao longo de sua
história^. A liberdade é, portanto, a chave para a compreensão das vi­
tórias de uma cidade, mas também a causa da fraqueza daquelas que não
a possuem. Ela parece ser o conceito fundamental para toda teoria po­
lítica que aborde o problema da grandeza e da decadência dos povos.
Ao conferir tal valor às origens livres das cidades, Maquiavel esbo­
çava uma interpretação dos fracassos recentes de Florença que não se
baseava na crítica aos homens de seu tempo, mas na análise de seu
passado. O confronto com a tradição humanista é, a essa altura do texto,
apenas aparente pois, longe de se negar o valor de suas teorias mais
caras, afirma-se apenas que os humanistas não tinham um conhecimento
exato das origens de Florença e que, assim, tendo-se enganado quanto
ao passado, era fatal que se enganassem também quanto ao presente.
O contraste mais importante desse primeiro capítulo não é, no en­
tanto, entre Maquiavel e os humanistas, mas entre Roma e Florença. Ao
apelar para a diferença das fundações, e ao fazer de Roma o modelo da
república livre, nosso autor nos convida não só a compreender seu tem­
po através do confronto com a Antigüidade, mas a compreender a po­
lítica através do estudo de suas formas mais perfeitas.
A força e a clareza de tal argumentação eram facilmente capazes de
"seduzir" um leitor renascentista impregnado de cultura humanista; po­
rém, certos intérpretes contemporâneos demonstram que seu poder de
sedução não se esgotou com o tempo. Esse é o caso do historiador
inglês Quentin Skinner, que vê na ausência de impedimentos no mo­
mento da fundação, tal como descreve Maquiavel a fundação romana, a
definição formal de liberdade. Segundo Skinner, ser livre significaria,
para o secretário florentino, poder agir sem depender do concurso de
outros agentes, poder tomar suas decisões partindo apenas de sua pró­
pria vontade. Para o historiador inglês, a questão que se põe é a de saber
se podemos tomar essas afirmações por uma verdadeira definição do

89. tbidem, I, 1.
conceito de liberdade ou se se trata apenas de algumas considerações
preliminares. Ele parece convencido de que Maquiavel nos dá a conhe­
cer, já no primeiro capítulo, a essência de seu pensamento sobre a liber­
dade e que o restante da obra se desenvolverá em tomo dessas primeiras
considerações^. De nossa parte, acreditamos que buscar no começo do
livro a definição da liberdade serve muito mais para responder a certas
exigências de uma história tradicional das idéias, do que para compre­
ender o sentido da obra. Parece-nos que devemos tomar as primeiras
afirmações do texto muito mais como um convite à exploração de seus
mistérios, do que como uma exposição sistemática de seus principais
conceitos.
* * *

O segundo capítulo retoma ao tema da fundação e as distinções que


apresenta não nos parecem trazer apenas pequenas precisões às defini­
ções do primeiro capítulo.
Maquiavel descarta, de início, as cidades que tiveram seu começo
sob a dominação de um outro povo, para se concentrar apenas no es­
tudo daquelas que nasceram livres de toda servidão ("falarei daquelas
que tiveram seu começo distante de toda servidão externa")^'- Entre as
cidades livres é preciso, no entanto, distinguir entre aquelas que pude­
ram contar com um bom legislador desde o começo e assim se manter
na ordem e na paz por um longo tempo (Esparta), e aquelas que, como
Roma, foram constituindo-se através de caminhos difíceis e por vezes
obscuros. São justamente as cidades do segundo tipo que nos levam a
refletir sobre a importância do legislador e sobre a institutição das leis,
pois, não podendo estabelecerem-se desde o inicio sobre bases sólidas,
elas mostram, através das várias etapas de sua formação, as dificuldades
que acompanham toda criação de um corpo político.
Por mais importante, no entanto, que possa ser o tema da lei e de
sua criação, não é ele que domina o capítulo e que chama a atenção do
leitor. Com efeito, depois de ter descartado no início do capítulo o estu-

90. "What he cleady has in mínd is Chat they are ftee in lhe sense of being unobstructed
in the pursuit of whatever ends they may choose to set themseives. As he puts il in the
opening chapter of book i, to be a free man is to be in a posítíon to act 'without depending
on others'(...) It is important to underline this point, if onty because it contradiots two
claitns oAen advanced by commentators on the Z%*coMfyef, One is that Machiavefií mtroduces
the key term íibertà into his discussion without taking the trouble to define it'; so that the
sense o f the word on)y emerges gtadually in the course o f the argument". Q. SKINNER,
"The Idea of Negative Liberty: Phiiosophicat and Historical Perspectives" in on %?<?
Cambridge University Press, 1984
91. MACHIAVELLI, Díycoryí, I, 2.
(io das cidades que não nasceram livres, Maquiavel toma Florença como
o modelo das cidades que tentaram, ao longo da história, mudar a forma
defeituosa de sua constituição. Qual é o lugar de um tal exemplo num
texto que parecia destinado a analisar apenas as repúblicas bem consti­
tuídas? Poderiamos supor que o autor, voltando ao tema da fundação,
queria apenas iludir o leitor, invocando uma questão muito discutida na
época; mas a continuação do capítulo não nos autoriza a pensar assim.
Depois de falar brevemente de Florença, Maquiavel passa a descrever o
ciclo de transformações das constituições, ou, se preferirmos uma noção
moderna, a expor sua teoria da história. Tal exposição era na verdade
uma reprodução parcial das teorias desenvolvidas por Políbio em suas
Msfón'<23?2 e mostra que Maquiavel aderia à doutrina que fazia da repú­
blica mista a melhor forma de governo. Deixando de lado, por agora, a
discussão dessa teoria, podemos perceber que Maquiavel recorre â His­
tória como a fonte mais segura para se conhecer a política. No momento
em que volta a falar de Roma, ele é capaz de expor não somente as
razões de seu processo de transformação, mas, principalmente, a corre­
ção de sua escolha por uma forma mista de governo. A primeira conclu­
são à qual chegamos é que, para se conquistar a liberdade, é preciso
adotar a forma mista de governo.
Uma nuança do texto ajuda-nos a compreender o sentido dessa
afirmação. Se antes havíamos prestado atenção apenas às instituições
primeiras, ou ao momento da fundação, era na pressuposição de que
somente elas determinam a essência de uma república. O caso romano,
porém, evidencia que os defeitos originais são também extremamente
importantes. Entre as cidades existem aquelas que, mesmo desejando se
transformar, são incapazes de atingir a perfeição — "... e essa é, além do
mais, de tal forma distanciada que com suas instituições viciadas está de
todo fora do bom caminho que podería conduzi-la ao verdadeiro e perfeito
f i m . . . — , mas existem também aquelas que, como Roma, tinham ins­
tituições que, apesar de imperfeitas, puderam ser modificadas e a con­
duziram à perfeição. Vemos, assim, que a república mista, que parece ser
a forma institucional da liberdade, não é fruto apenas de uma fundação
perfeita, mas pode resultar de um processo feliz de transformação. Para
que tal transformação seja possível, é preciso o concurso de uma série
de acidentes, entre os quais a existência de instituições não muito distan­
tes das de uma verdadeira república: "Porque Rômulo e todos os outros

92. G. SASSO, op. cit., 442.


93- MACHIAVELM, ÍMscwxt, I, 2.
Reis instituíram muitas leis boas em conformidade com o 'vivere libe­
ro"'^.
Alguns intérpretes acreditaram poder deduzir daí que a idéia de
liberdade em Maquiavel não é diferente da de monarquia^. Outros, como
Cadoni^, preferiram aguardar a continuação do texto para afirmar que a
liberdade se identifica plenamente com a república mista e apenas com
ela.
Nós preferimos acreditar que, da mesma forma que nos parecia
prematuro deduzir do primeiro capítulo um sentido para a liberdade,
também a mera associação da liberdade com a república mista, embora
sendo uma indicação fundamental, não faz mais do que repetir um afir­
mação corrente na época, sem esciarecer seu significado. Dois novos
pontos de partida para nossa pesquisa parecem, no entanto, surgir da
leitura do segundo capítulo. Em primeiro lugar, aprendemos que a liber­
dade pode existir em "germe" em quaiquer forma constitucional: a
monarquia romana é a demonstração. Em segundo lugar, aprendemos
que Roma deve ser considerada modelo não porque tenha tido uma
fundação perfeita, mas, ao contrário, porque foi capaz de operar trans­
formações que sabemos extremamente difíceis de serem levadas a bom
termo.
Um enigma permaneceu, entretanto, sem solução: a evocação de
Florença entre as repúblicas que poderíam se transformar em uma ver­
dadeira forma livre de governo. Mesmo que Maquiavel não nos dê ele­
mentos para compreender as transformações pelas quais passava sua
cidade nata!, o capítulo nos indica que é pela evocação do caso romano
que podemos esperar compreender as dificuldades enfrentadas por to­
das as cidades que desejam mudar a forma de governo. O estudo de
Roma é a solução do enigma de Florença.

M.3. /í //òercfcrcfe romano e os conTMfos soc/aís


A primeira afirmação do terceiro capítulo surpreende, mesmo se
levarmos em conta que os dois primeiros jã nos habituaram ao uso que
faz Maquiavel da tradição. Ele fala não mais nos termos empregados
pelos humanistas, mas apela a "tutti coloro che ragionano dei vivere
civile". Recorrendo a todos os que se interessam pela questão republica­
na, nosso autor visa na verdade dar um caráter universal a seu discurso,

94. Idem, I, 2.
95. M. COLISH, op. dt., 337.
% . G. CADONI, op. cit., 106.
o que não podería ser alcançado pelo simples enunciado de algum tema
típico do humanismo. O tema da "maldade natural dos homens" parece
propício para o efeito desejado. Tratado tanto por autores latinos como
por autores cristãos como Santo Agostinho^, ele não fora, no entanto,
constante nos escritores florentinos do "quattrocento". Bruni fazia refe­
rência em seu De Aft/ihát a certas teorias medievais, mas não podemos
dizer que ocupassem um lugar importante em seu pensamento político.
No tempo de Maquiavel, porém, a importância dessa idéia era maior
principalmente devido à influência de Savonarola, que responsabilizava
a natureza humana pelos seguidos fracassos dos florentinos em restaurar
a paz civil. Os debates sobre a melhor forma de governo, exigindo cada
vez mais uma forte dose de realismo, podiam ser saciados pela evocação
de leis humanas absolutamente implacáveis e pelo exame rigoroso mes­
mo dos tempos mais felizes da república romana. Assim, Maquiavel evoca
o penodo subsequente â expulsão dos Tarquínios de Roma, para mostrar
que, mesmo nas situações mais felizes, os homens não deixam de se
comportar sob o jugo da necessidade. E quando descreve o comporta­
mento dos nobres em relação ao povo, é também nesse sentido que ele
se exprime: "...que demonstra o que dissemos acima: que os homens
jamais fazem o bem, senão pressionados pela necessidade"^.
Apesar da força dos argumentos empregados, a solução apresentada
por Maquiavel sugere que sua intenção não era reafirmar a validade das
teses medievais. Depois de ter dito que os homens são maus por natu­
reza, conclui: "No entanto, diz-se que a fome e a pobreza fazem os
homens industriosos, e as leis os fazem bons"^. Ora, se a maldade dos
homens é um dado universal da condição humana, como podemos es­
perar que as leis, produto do espírito de seres defeituosos, possam cor­
rigir os defeitos da natureza, a ponto de fazer, do mal, o bem? Em Santo
Agostinho, por exemplo, elas põem um freio à violência natural dos
homens, mas efetivam-se apenas depois que a graça os liberou de sua
condição de pecadores. Além do mais, as verdadeiras leis não são as da
cidade terrestre, mas aquelas que atingimos pela contemplação. Mesmo
considerando que possam trazer consequências práticas para a ação, elas
permanecem ligadas â sua concepção da verdade, que nada tem a ver
com a positividade das leis de Roma"**.

97. Ver a esse respeito: OCONNELL, A. qf Befknap


Press of Harvard Umversíty Press, 1%8.
98. MACHIAVELLI, Dtscorsi, I, 3.
99. Idetn, I, 3.
100. Ver a esse respeito: E. GILSON, ÍMfwdHcMon % féíude de J. Vrin,
1969, 168.
Em Maquiavel, ao contrario, as ieís ocupam o iugar que os Tarquínios
ocupavam enquanto vivos: o iugar do medo original da morte que faz
com que os homens desejem aigo aiém de seus interesses pessoais. O
caso florentino mostra, no entanto, que a simples existência de leis não
é a garantia da vitória do bem comum sobre os interesses individuais que
caracteriza as grandes repúblicas. Fiorença tivera nos Médicis seus
Tarquínios, mas íbra incapaz de encontrar seu Brutus. A cidade perma­
neceu prisioneira dos interesses dos grupos, sem atingir a forma maior
da organização humana que é a república. Sua evocação no capítulo
anterior, que tanto nos surpreendera, parece, pois, destinada a demons­
trar a importância de se tomar Roma como paradigma para o estudo da
liberdade, uma vez que ela foi capaz de transformar o medo da morte,
e o egoísmo natural dos homens, na melhor forma de organização.

Depois de falar da natureza humana sem atacar de forma frontal a


tradição crista, e de mostrar a importância paradigmática de Roma,
Maquiavel com eça o quarto capítulo de maneira quase provocativa. Já
no título anuncia: "A desunião da plebe e do senado Romano tornou
aquela república livre e potente". A simples evocação do caráter positivo
dos conflitos internos de uma cidade era uma provocação para uma
cidade que se acostumara a considerar os conflitos como a causa de sua
desgraça'"'. Maquiavel não recua do desafio. Em primeiro lugar, ataca
aqueles que acreditavam ser a força romana o resultado apenas de uma
boa fortuna e de uma boa disciplina militar: "Não posso negar que a
fortuna e a milícia contribuíram para a criação do império romano; mas
me parece que se esquece que onde existe uma boa milícia, existem
também boas leis (onVme), e raras vezes não se encontra também uma
boa fortuna". Essa afirmação não contradiz apenas a interpretação tradi­
cional da origem da força romana, ela a destrói completamente. Maquiavel
não hesita em concluir: "Mas retornemos aos aspectos particulares da­
quela cidade. Digo que aqueles que condenam os tumultos entre os
nobres e a plebe condenam a causa primeira da liberdade romana, le­
vando em conta mais os rumores e os gritos que nasciam desses tumul­
tos do que os bons efeitos que eles produziam"'^.
Não é difícil medir a verdadeira revolução operada por essa afirma­
ção. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a condenação dos confli­
tos internos era um dos raros pontos em tomo do qual todos os florentinos

101. Q. SKiNNER, .Po/Mc#/ 7&cM,g% Cambridge Uníversity


Press, 1980, 182.
102. MACHIAVELLI, I, 4.
tinham a mesma opinião*^. De Dante aos humanistas^, todos se apres­
savam em demonstrar seu papel negativo na vida política da ddade. Para
ilustrar esse acordo, basta considerar a bela passagem do
de Marsílio de Pádua, que prova que o ódio aos conflitos se estendia
muito além das fronteiras ftorentinas: "Mas como os contrários engen­
dram os contrários, é da discórdia, contrário da tranquilidade, que pro­
vêm, para toda sociedade civil ou reino, as piores consequências e in­
convenientes, como o demonstra — o que não é segredo para ninguém
— o exemplo do reino da Itália"^. Maquiavel contradiz explicitamente
toda a tradição italiana do "trecento" e do "quattrocento" para descortinar
uma perspectiva absolutamente original. A questão da liberdade, que até
aqui tratáramos como aquela da instituição primitiva de instituições re­
publicanas, é totalmente transformada pelo capítulo em questão. Final­
mente, estamos diante das novas terras que o explorador Maquiavel nos
havia prometido no começo dos DtscoKH.
Deixando de lado a questão tradicional das origens das instituições,
que parecia ser o melhor caminho para a compreensão do tema que nos
interessa, nosso autor nos mostra não somente que a liberdade deve ser
pensada a partir dos conflitos internos de uma cidade, mas também que
nossas idéias sobre a criação das instituições políticas devem ser revistas.
A liberdade, tão adorada pelos florentínos, mas tão pouco realizada, é o
produto de forças em luta, o resultado de um processo que não pode ser
extinto com o tempo. Os conflitos são os produtores da melhor das
instituições, e não o elemento incongruente de um período infeliz na
história de um povo. Maquiavel resume seu pensamento numa frase
lapidar: "...e deve-se considerar como existem em toda república dois
humores diversos: o do povo e o dos grandes, e toda lei que se faz em
favor da liberdade nasce da desunião entre eles"^.
Para passar da idéia de uma sociedade ideal inteiramente voltada
para a paz ao elogio da sociedade tumultuãria, foi preciso um enorme
esforço de elaboração. Para fortalecer a criação de um novo continente,
Maquiavel lançou mão do fato de que nenhuma sociedade viveu até hoje

103. G. SASSO, òp. cit., 456.


104. É interessante ver como Dante considera a Monarquia Universa! como uma sotu-
ção pata os probiemas causados pela existência de conflitos na cidade. DANTE,
IV, 4, Gailimard, 1965. Ver: H. BONADEO, CorrMpNoM, í&e
71we q f /V. University of Caüfomía Press, 1973, 35-
105. MARSILE DE PADOUE, í e dtá&Msenr- A? J. Vrin, 1968. Pata as reiaçòes
entre Maquiavel e Marcilio, ver: A. TOSCANO, e /V. Longo,
1981.
106. MACHIAVELLI, jPiscorxí, I, 4.
sem conflitos. Se isso não prova que eles tiveram um papel positivo na
história, demonstra, pelo menos, que uma sociedade totalmente imersa
na paz é talvez a ficção de mentes bondosas, mas não o espelho da
condição humana. A novidade, portanto, não é a afirmação da maldade
dos homens, mas a de que essa maldade não impede a criação de ins­
tituições boas. Mais radicalmente ainda, podemos dizer que é da propen­
são ao conflito que nasce a possibilidade da liberdade. A liberdade é,
portanto, o resultado dos conflitos, uma solução possível de uma luta
que não pode ser extinta por nenhuma criação humana. De uma proble­
mática antropológica passamos a conceber a política como uma forma
da guerra. Mas a guerra não significa aqui a pura negatividade, ela apon­
ta para o verdadeiro ponto de partida de toda reflexão sobre a política,
que é a existência de desejos opostos na "polis".
Voltando, assim, ao tema dos desejos opostos que povoam as cida­
des, aprendemos com a sequência do texto que o desejo do povo é que
está mais próximo da liberdade, pois, não sendo um desejo de poder,
mostra uma face importante da liberdade: a não-opressão. "E os desejos
dos povos iivres raras vezes são perniciosos à liberdade, porque nascem
ou da opressão que eles sofrem, ou da suspeiçao de que poderão soffê-
la"'<".
Das duas forças principais que dividem a cidade, não podemos dizer
que elas sejam o inverso simétrico uma da outra. O povo, não visando à
mesma coisa que os grandes, não pode ser compreendido pela imagem
do inimigo organizado num campo de batalha. Daí resulta que a liberdade
não é um meio termo estático que satisfaz os desejos dos dois opo­
nentes. Tal fim é absofutamente impossível de ser alcançado por dois
adversários que não têm o mesmo objetivo. A liberdade, mais do que
uma solução permanente para as lutas internas de uma cidade, é o signo
de sua capacidade de acolher forças que, não podendo ser satisfeitas,
não deixam de buscar meios de se exprimir.
A riqueza do capítulo nos convida a nos determos mais longamente
na interpretação de seus argumentos. A própria natureza dos conflitos
não é fácil de ser elucidada. Pocock, por exemplo, chega à conclusão de
que, se a união é fruto da desunião, sua fonte deve ser uma ação irra­
cional, e não um produto da razão. Para operar essa ação irracional, não
lhe parece existir outro agente capaz senão a "fo rtu n a"***.
Sua interpretação tem o mérito de nos lembrar que nossa questão só
pode ser pensada a partir daquela mais geral da ação humana, mas não

107. idetn, I, 4.
108. J. G. A. POCOCK, op. cit., 194.
nos parece que o intérprete tenha sido sensível à verdadeira revolução
provocada pelo capítulo em questão. De fato, Maquiavel fala da "fortu­
na" no segundo capítulo como um dos agentes da construção de Roma;
porém a existência dos conflitos na origem de suas instituições mostra
exatamente a insuficiência de se pensar sua criação simplesmente levan­
do-se em consideração as obras do acaso. As leis que visam regular os
conflitos, longe de se contentarem em aprisionar a irracionalidade dos
desejos humanos em uma camisa de força que impediría sua manifesta­
ção, criam o espaço no qual eles adquirem uma nova forma de
racionalidade. Como nos mostra Claude Lefort, as leis "nascem da
desmesura do desejo de liberdade, o qual está relacionado com o apetite
dos oprimidos — que procuram um desaguadouro para sua ambição — ,
mas que não podem ser reduzidos a ele, pois, rigorosamente falando, ele
não tem objeto, é pura negatividade, recusa da opressão""^.
Se considerarmos ainda o conjunto da obra maquiaveliana, veremos
que o quarto capítulo dos DtscorM encontra ecos em quase todos os seus
escritos sobre a liberdade. Para tomarmos apenas um exemplo, basta
lembrar o elogio que Maquiavel faz das cidades alemãs em seu
dc/fg <XMC
Nesse texto, aprendemos que a idéia de conflito não deve ser enten­
dida como uma espécie de lei matemática, que opera sempre do mesmo
jeito. Na Suíça, os conflitos também originaram a liberdade, mas, pela
situação especial desse país e pela história desse povo, fizeram das
pequenas repúblicas um conjunto vulnerável aos ataques das grandes
potências"". Fazendo o elogio da "libera liberta", Maquiavel não deixa de
observar que a desunião de tipo feudal era capaz de fazer surgir um
povo livre, mas não uma república potente. Dizer, portanto, que os
conflitos estão na origem da liberdade romana não significa que possa­
mos reduzi-los a uma espécie de entidade metafísica, que tomaria o
lugar da idéia de origem empregada pelos humanistas. Os tumultos ro­
manos não são tumultos abstratos, uma simples categoria analítica, mas
o retrato vivo da história da constituição de uma sociedade livre.
O trigésimo sétimo capítulo, nuançando as conclusões do quarto
capítulo, nos mostra que os mesmos conflitos que fizeram de Roma uma
cidade livre a fizeram perder a liberdade. Maquiavel analisa então as
lutas que se seguiram à promulgação da lei agrária. De um lado, os
nobres não aceitaram a perda de suas propriedades; de outro, o povo
insistiu em seu direito de posse dos novos territórios. O esquema segui-

109. c. LEFORT, op. cit., 477.


110. G. SASSO, op. cit., 269-273.
do por nosso autor é o mesmo dos textos anteriores: descreve-se a for­
mulação de uma nova lei. O que falha, no entanto, nesse processo, que pa­
rece seguir exatamente os mesmos passos da instituição das leis que
fizeram de Roma uma potência? Maquiavel insiste em dizer que não
basta criar leis, é preciso que elas sejam capazes de esconjurar os ódios
que se formam em toda disputa poiítica. No caso romano, os desejos
opostos dos nobres e do povo haviam provocado uma tal ruptura no
corpo social, que a vitória dos nobres nas disputas legislativas só podia
significar a perda da liberdade. Uma sociedade que não é mais capaz da
canalizar seus conflitos por seus mecanismos legais, não é mais uma
sociedade livre.
Percebendo, entretanto, que essa conclusão poderia conduzir o lei­
tor a identificar uma contradição em seu pensamento, Maquiavel declara:
"Tal foi, pois, o princípio e o fim da lei agrária. E ainda que tivéssemos
mostrado em outro lugar como em Roma a inimizade entre o senado e
a plebe a mantiveram livre, por nascer dessa inimizade leis em favor da
liberdade, e por isso pareça estranha a conclusão de nossa analise sobre
a lei agrária, não mudo minha opinião: porque a ambição dos grandes
é sem hm, e se por várias vias e modos ela não é controlada, em pouco
tempo arruina a cidade""'.
A compreensão plena dessa proposição exige o estudo da decadên­
cia romana, que será o tema de nosso quarto capítulo. Mas, por si só, ela
aponta para toda a complexidade da questão que estamos analisando.
Agora, Roma não é mais vista como a república modelo, mas como uma
cidade destruída pelas lutas dos grupos rivais. Mostrando a fragilidade da
"melhor cidade", Maquiavel contribui para que o estudo do caso florentino
possa ser feito a partir dos mesmos parâmetros que o guiam em sua
análise do caso romano. As misérias provocadas pela existência da luta
de facções podem ser nocivas a todas as cidades e isso demonstra, para
o leitor que tivesse tido a pretensão de fazer de Roma uma cidade ideal,
que estudar sua história é estudar a história dos tempos presentes"^. Não
existe, pois, em Maquiavel um elogio cego dos conflitos, mas a busca da
verdadeira origem da liberdade. Porém, dizer que os conflitos são a
origem da liberdade não nos dispensa de refletir sobre a relação das leis
e das formas constitucionais, nem sobre a natureza das instituições repu­
blicanas. Uma ruptura essencial com a tradição acaba, no entanto, de se
operar. Rejeitando a idéia de que a paz e a estabilidade são os objetivos
de toda ação política, Maquiavel introduz não somente uma nova manei-

111. MACHÍAVELLI, íMscofS!, I, 37.


112. C. LEFORT, op. cit., 514.
ra de pensar a liberdade, mas uma nova forma de analisar a política. De
um pensamento incapaz de criticar as indecisões dos homens públicos
e que se contentava em afirmar a importância da concórdia, somos con­
duzidos a um universo em constante mutação, de tal forma que a ima­
gem de uma sociedade calma e prudente, tão cara aos humanistas, se
evapora.
Antes de prosseguir em nossas análises de alguns capítulos dos
j%sro7$?', vamos analisar a hipótese que alguns intérpretes avançaram e
que retém dos conflitos apenas seus aspectos negativos. L Berlin, por
exemplo, considera que para Maquiavel a sociedade é o palco das lutas
entre grupos que só podem ser controladas pelo uso da força e da
persuasão"^. Tal íntepretação visa, em primeiro lugar, aproximar
Maquiavel de Hobbes e deixa de lado o fato de que para o autor florentino
a própria persuasão é fruto do conflito de classes. A utilização da força,
além disso, não é para ele mais que uma possibilidade entre outras e é
impotente para suprimir os desejos opostos que povoam as cidades. Se
o paralelo com Hobbes é em muitos pontos evidente, e já foi explorado
por muitos estudiosos do período, não nos parece que ele seja a melhor
maneira de se compreender o quarto capítulo dos Z)ÃscoKH. Para Hobbes,
a problemática dos conflitos é inseparável daquela da origem da socia­
bilidade dos homens; para Maquiavel, a questão da origem da sociabi­
lidade é secundária, ainda que muitas de suas conclusões estejam de
acordo com as de H obbes.^
Antes de terminar, uma última observação se impõe. Analisando a
dedicatória, havíamos evocado a estratégia empregada por Maquiavel
para conquistar os leitores de seu tempo. Um dos artifícios é o de falar
a linguagem da tradição, hipótese que parece ser desmentida pelo elogio
que ele faz dos conflitos internos. Para compreender o impacto de suas
teorias sobre a juventude florentina é necessário, no entanto, lembrar
que a análise das "pratiche" demonstra que os jovens estavam mais do
que propensos a receber novos ensinamentos, depois da frustração
provocada pela queda da república em 1512. O pensamento de Maquiavel,
apesar de radical, conserva laços com a tradição. Se a novidade do ca­
pítulo destrói a lógica da sedução baseada unicamente na conservação,
ela nos mostra um pensamento que, mesmo em seus momentos de

113-1. BERL1N, "The oíiginality of Machíavelli* ínM. P. GILMORE,


G.C. Sansoní, 1972, 165.
114. Para uma comparação interessante entre Maquiavel e Hobbes, ver: R. ESPOSITO,
O ficie e .MáccAárw#? <? A? Lignon,
1984, cap. 5-
extrema audácia, é capaz de manter seus leitores ligados à tradição. A
crítica da idéia de estabilidade deixou intacta a crença na força da liber­
dade romana e na possibilidade de compreendê-la através do estudo da
história. Maquiavel desenraíza o leitor por operações que nunca revelam
todo seu sentido. A surpresa provocada pelo escândalo incita a continuar
a leitura, a sedução continua a trabalhar no interior da ruptura com a
tradição. Da mesma forma que a obra dissimula seu sentido, não desvela
completamente sua estratégia de sedução.

//.4. á Mbercfocfe e as formas consf/fac/ona/s


O quinto capítulo retoma a questão da liberdade à luz de sua análise
constitucional. Desde o começo aprendemos que: "...aqueles que com
prudência constituíram tuna república ordenaram entre as coisas mais
necessárias uma guarda para a liberdade'"^. Essa primeira afirmação nos
incita a esquecer o papel que tiveram os tumultos em Roma, para abor­
dar o problema da melhor garantia para a liberdade no quadro clássico
da análise das instituições. De fato, depois de ter mostrado a importância
dos conflitos na gênese da liberdade, Maquiavel se contenta em falar
daqueles que fundaram as repúblicas: os legisladores. Esse procedimen­
to se esclarece quando percebemos que o que está em jogo não é a
história romana, mas a história das repúblicas em geral.
Trata-se de operar a escolha entre dois modelos: o das repúblicas
aristocráticas — Esparta e Veneza — , que confiam a guarda da liberdade
à nobreza, ou o das repúblicas democráticas — Roma — , que a confiam
ao povo. No fogo cruzado dos argumentos, Maquiavel conduz a resposta
a um ponto de equilíbrio. De um lado, o exemplo romano prova que o
povo é o melhor guardião da liberdade, uma vez que ele não tem ne­
nhuma razão de querer perdê-la; de outro lado, o exemplo de Esparta
prova que a duração de uma constituição depende da estabilidade da
camada dominante e que a nobreza se comporta melhor quando ela não
se sente ameaçada pelo povo.
O equilíbrio da posição maquiaveliana é aparente, mas essencial
para o desenvolvimento do argumento. É necessário não se esquecer
que os três Estados analisados eram considerados repúblicas mistas"^, e,
dentre eles, Veneza ocupava um lugar privilegiado no imaginário dos
homens políticos de seu tempo'V Se o objetivo de Maquiavel era mos-

115. MACHIAVELLI, /Hícon% I, 5-


116. G. CADONI já observou a dificuldade dessa passagem, op. cie., 182.
117. Para a discussão sobre a importância de Veneza na vida política florentina ven F.
RATTAGHA, "La dottrina delio Stato misto nei poiitici frorentini dei Rrnascímento" in TWfisRg
Z?rn#o, VII, 1$27.
trar as diferenças existentes entre Roma e Veneza, ele insiste, entretanto,
sobre a importância da forma mista de governo, à qual ele mesmo havia
aderido no começo dos Dfscorsr. Assim, nesse momento do texto, o
ponto em comum entre as diversas constituições se reduz à idéia de que
em todos os casos o governo se divide entre o povo e os nobres.
Porém, o capítulo introduz nuances que nos obrigam a pôr a ques­
tão da verdadeira escolha de Maquiavel. Inicialmente, somos levados a
pensar que a divisão é entre as repúblicas que querem conquistar e
aquelas que querem conservar. Mas o próprio autor não parece satisfeito
com essa divisão, pois, logo depois, ele volta a tratar da questão em
termos das repúblicas que querem conquistar e aquelas que temem perder
o já conquistado"". Usando o exemplo romano de dois plebeus — Marcus
Menenius e Marcus Fulvius — que, depois de terem sido eleitos ditador
e mestre da cavalaria, foram conduzidos a renunciar para provar sua
inocência, Maquiavel chega dessa vez a uma posição inequívoca: o povo,
apesar de causar perturbações na cidade, tem um desejo mais verdadeiro
de salvaguardar a liberdade do que os nobres que desejam sempre con­
quistar novas posições na "polis"'"*. O longo caminho percorrido serve
finalmente para o secretário florentino manifestar sua preferência no
quadro das repúblicas mistas, pela forma mais democrática.
Como já observou Claude Lefort*^, é a tese aristocrática que desmo­
rona. Uma república como Veneza podia resistir aos ataques do tempo,
mas não podia ser livre no mesmo sentido que Roma havia sido. Os
nobres jamais têm o simples desejo de conservar o que já possuem.
Desejando sempre mais, põem a liberdade em risco. A república mista
que, no segundo capítulo, parecia ser um modelo único, multiplica-se
agora em suas diversas manifestações. A divisão do poder pode se fazer
tanto numa ótica democrática, como numa ótica aristocrática. Se o quinto
capítulo nos permite saber que a opção de Maquiavel é pelo modelo
romano, como teórico ele não pode deixar de lado as repúblicas aristo­
cráticas, que tanta influência tinham sobre a mentalidade dos homens
políticos florentinos. Ao longo de todo o livro, continua o diálogo com
os dois modelos de repúblicas mistas.
No sexto capítulo, Maquiavel volta a tratar o tema dos conflitos sociais.
O leitor pode estranhar que, depois de anunciar uma tese tão radical, ele
tenha deixado de lado a discussão de aspectos importantes que tinham
ficado obscuros, para discutir um tema tradicional do pensamento poiíti-

118. MACHIAVEUJ, I, 5.
119. Idem, I, 5.
120. C. LEFORT, op. cit., 478.
co da época. Na verdade, a volta ao tema das repúblicas mistas tinha por
objetivo confrontar a radicalidade das teses do quarto capítulo com aquelas
tradicionais, que faziam da estabilidade o parâmetro maior para o julga­
mento das formas de governo. Depois de ter chocado o leitor por meio
de proposições revolucionárias, Maquiavel efetua um movimento surpre­
endente, questionando suas próprias proposições:
"Ora, tendo aqueles tumultos durado até o tempo dos Gracos, eles
foram a razão da ruína do 'vivere libero'. Alguns poderíam desejar que
Roma tivesse feito os mesmos progressos, sem que nela tivessem exis­
tido tantas inimizades. Pareceu-me, portanto, que era uma coisa digna de
consideração ver se Roma podería ter-se ordenado de forma a não deixar
espaço para as controvérsias"'^'.
A importância do confronto entre o exemplo romano e o das outras
repúblicas pode ser explicado se lembrarmos que o leitor ao qual se
dirige Maquiavel vivia, desde a época de Savonarola, sob o impacto do
mito de Veneza. Assim, é a essa república que ele dirige seus primeiros
ataques, mostrando que seu sucesso é o resultado de uma posição geo­
gráfica única e do fato de que sua nobreza foi constituída por todos os
seus primeiros habitantes, não havendo motivos para que os conflitos
entre os grupos marcassem desde o início sua história. "11 caso piu che
la prudenza", diz Maquiavel, contribuiu para a longa duração de Veneza.
Quanto a Esparta, assegurando a igualdade das fortunas e impedindo a
entrada de estrangeiros, ela pôde se manter igual a si mesma por muitos
séculos. Nos dois casos, foram as dimensões reduzidas do Estado que
garantiram uma solução durável para o conflito de classes.
Para fazer de Roma uma república pacífica, era preciso ou bem não
usar o povo no exército, ou bem evitar a entrada dos estrangeiros.
Maquiavel observa com ironia: "De modo que, querendo acabar com a
razão dos tumultos, acabava-se ao mesmo tempo com a razão de seu
império"'^. Chegamos assim a uma conclusão fundamental: a identidade
entre a liberdade e a potência'^. Essa nova conclusão completa a ruptura
radical com a tradição que se anunciava no quarto capítulo. Os humanistas
haviam salientado os laços existentes entre a liberdade e a riqueza de
Florença, mas jamais foram capazes de elucidar o mistério da força ro-

121. MACHIAVELLt, DKcwsi, I, 6.


122. Idem, I, 6.
125. "E non si cede percio al gusto delle formule, se si dice che, in ultima analisi, il
contenuto deita 'tibertà* è per MachiaveUi, la 'potenza', che la libettà stimola ed tnnalza":
G. SASSO, op. cit., 475.
mana. Para eles, a liberdade podia ser compreendida pelo recurso à
teoria das origens e pela escolha da forma adequada de governo, mas
nessa escolha não lhes parecia que dois modelos se opusessem.
Maquiavel, ao contrário, insiste na diferença entre os regimes capa­
zes de expandir e aqueles destinados apenas à conservação^^. Sob a
cobertura da descrição fria de uma república estável, ele revela a fraque­
za dos humanistas, que nunca foram capazes de pensar o Estado partin­
do de suas contradições. Descrevendo as relações internas, assim como
as externas, como elementos estáticos, eles não compreenderam que a
liberdade em relação aos outros Estados era, em grande medida, o resul­
tado da resolução dos conflitos de classes. O verdadeiro desafio não é,
pois, o da estabilidade, mas o da potência.
Depois de sugerir que uma "ciência" pode nos ajudar a construir
uma forma política estável, Maquiavel nos confronta com a idéia de um
universo instável, em que as leis do bom senso e da prudência se reve­
lam impotentes para dominar as gigantescas forças em luta: "Mas, estan­
do todas as coisas dos homens em movimento, e não podendo se esta­
bilizar, é necessário ou que subam ou que desçam. Muitas coisas que a
razão não te induz a fazer, a necessidade o faz"'^.
Roma se impôs não porque tivesse cumprido todas as exigências de
um modelo abstrato, mas porque foi capaz de afrontar as ameaças do
tempo durante mais de 300 anos e ainda assim manter viva sua energia
criadora. Falar de liberdade não é, pois, falar de uma forma política
estável, mas da criação contínua das condições da potência. Veneza e
Esparta, que pareciam produto de uma prudência superior, revelam-se
como fruto privilegiado do acaso. É verdade que elas permaneceram
livres por um longo penodo, que seus habitantes podiam se exprimir no
seio das instituições, mas elas foram sempre prisioneiras de sua escolha
aristocrática. O sucesso que conheceram foi sempre o resultado de uma
combinação feliz e rara de fenômenos. Roma, ao contrário, afrontou as
provas mais duras do destino e construiu sua liberdade apesar de todos
os limites de sua condição. Só ela pode nos revelar o segredo da potên­
cia das repúblicas.
Desenvolvendo sua teoria da liberdade, Maquiavel desacreditava, ao
mesmo tempo, o modelo veneziano aos olhos de seus contemporâneos.
Se todos tinham horror aos conflitos, era justamente porque toda a histó-

124. MACHIAVELU, tXsconH, I, 6.


125. Idem, I, é.
ria de Flcmença fora atravessada por lutas internas, desde o "duecento".
Nesse caso, como transformar Veneza no modelo a ser seguido, se o
passado florentino já destinara a cidade a outros cam inhos'^ Roma, sim,
podia inspirar seus concidadãos, pois somente ela vivera o desafio da
contingência e fizera das disputas intestinas o motor de seu progresso
t
em direção ao império.
Apesar do que acabamos de ver, alguns autores acharam que
Maquiavel defendia as repúblicas apenas como uma forma arcaica de
sustentar a teoria do regime mis to A esses intérpretes escapou não
: !- somente a natureza da adesão maquiaveliana à dita teoria, mas, sobre­
f
tudo, que ele veio justamente romper com a idéia de modelo ideal em
política'2". Maquiavel abre o pensamento político para a crítica do regime
ideal, rompendo não apenas com a tradição cristã, mas também com a
grega. Pensar o político no âmbito da contingência foi um desafio que
Aristóteles aceitou.
Pensar a contingência sem o socorro da forma ideal reguladora é o
passo definitivo de Maquiavel para a modernidade. Esse passo deixou
marcas em todo o percurso teórico do autor florentino, obrigando-nos,
a cada vez que nos defrontamos com um tema tradicional, a lembrar que
não mais dispomos do conforto de um ideal regulador que, mesmo
distante das formas reais de poder, servia para nos guiar nas difíceis
i
veredas da política. Assim, no sétimo capítulo, quando Maquiavel trata a
-i
questão da justiça, não há a menor sombra de uma idéia reguladora de
justiça a guiar suas questões. Tratando da possibilidade de acusar os
adversários por meios legais, nosso autor não faz apelo a categorias da
ética tradicional.

i !. 126. Sobre Maquiavel e Veneza ver: F. GILBEKT, "MachiaveMi e Venezia" in


e % 3KO 319; I. CERVEU1, e A? crisf Sinto VèfKgr&mo, Guitta
Editore, 1974; P. AMIQUET, í'<%g<? d b r Aa et Fénetiens, A
1 Michel, 1963-
127. A. RENAUDET, Afnc6A3M?/, Galliniard, 1942,144. Depois de examinar a questão do
governo misto, conciut: "Mais U apparait bien qu'un teí programme est à !a mesure de ia
cíté antique ou de ia commune médiêvale, et non pas du grand état modeme, dont pourtant
Machiavei eút souhaité ia naissance en ltatie*. Para uma crítica detalhada de seu trabalho
ver: C. LEFORT, op, cit., 178.
128. Opomo-nos, aqui, à tese de Skinner que afirma: "Machiavelii thiníts it possible, at
ieast ín theory, for a community to enjoy firee way under a monarchical form o f govemment.
For there is no reason in principie why a King shouid not organize the iaws o f this kingdom
in such a way that they refiect the generai wiii". Q. SKINNER, A^en o/AegntfM? Íf6erfy,
p. 207. Eie parte de uma concepção formai da iiberdade ("iiberty is only a possibiiity for
members o f a seif-govemíng communities in whích the wiii o f the body poiitíc determines
its own actions"), para tirar conciusôes que não tevam em consideração o movimento de
constituição do pensamento maquiaveiiano.
O que lhe interessa, em primeiro lugar, é estudar a regulação das
relações do indivíduo e do Estado e revelar de maneira clara aos leitores
a origem das leis e a inevitável ruptura do corpo social: "... essas insti­
tuições produzem dois efeitos úteis na república. O primeiro é que os
cidadãos, por medo de serem acusados, nada tentam contra o Estado, e,
se o fazem, são rapidamente punidos. O outro é que se criam os canais
para a expressão dos humores que nascem nas cidades, de algum modo,
contra alguns cidadãos"'^.
Maquiavel abandona a idéia da justiça como aplicação na cidade dos
"princípios éticos eternos", para concebê-la como uma expressão possí­
vel do conflito de classes. Não é tanto contra a ética tradicional que ele
lança seus ataques, mas contra a idéia de que uma regulação do conflito
poderia anulá-lo completamente. Para ele, os conflitos devem expressar-
-se através dos mecanismos legais, sob a pena de destruírem o tecido
social. É, pois, em um regime de leis que pensa Maquiavel quando nos
fala das repúblicas, e não em uma constituição ideal abstrata, incapaz de
mostrar suas próprias contradições'^. A sociedade "justa" é, portanto, a
dos conflitos, mas é, sobretudo, a que em seus excessos é capaz de
encontrar uma solução pública para o conflito de seus cidadãos'^'.
A perdição de uma cidade é o produto da opacidade de suas leis.
Nenhuma cidade provou melhor a verdade dessa afirmação do que Flo-
rença. A constituição de 1494 previu a participação do povo nos negó­
cios públicos, mas não conseguiu dar expressão a seus antagonismos. Se
um regime livre pressupõe a participação, não pode se resumir a órgãos
como o "Consiglio Maggiore"'^. É preciso que ele escape à tentação dos
modelos ideais e que abandone a ficção da total transparência de seus
elementos, para se pôr diante da possibilidade sempre presente da morte.
A Florença de Savonarola e de Soderini procurava vivamente a estabili­
dade, sem se dar conta de que para isso era preciso enfrentar o profundo
dilaceramento de seu corpo social. O papel do Estado não é, então, nem
o do mediador neutro, nem o do juiz impessoal, mas o de se opor, pela
força das leis, à ação destruidora dos desejos particularistas.
Maquiavel pensa que o Estado tem um papel universal, que, no
entanto, não tem nada a ver com a universalidade da monarquia de
Dante. Também nele trata-se de evitar a explosão das paixões na cidade,
mas não através de um regulador universal, e sim pela transformação do

129. MACHIAVBLLI, ZHscon% I, 7.


130. C. LEFORT, op. cit., 477.
131. MACHIAVELLI, íHscoMí, I, 7.
132. A esse respeito, A. ANZILOTn, op. cit., 28.
domínio privado em domínio público. ^ As leis positivas são fruto da
vontade humana, porém podem exprimir o universal, à medida que dão
conteúdo racionai aos desejos mais disparatados dos cidadãos, transfbr-
mando-os em energia criativa para a cidade.
A conversão dos desejos particulares em ação, visando ao bem
público, sugere a Maquiavel, no oitavo capítulo, uma dupla crítica à
teoria da maldade natural dos homens, que ele mesmo havia avançado
no terceiro capítulo'^. No capítulo que estamos analisando, Maquiavel
converte a problemática abstrata da natureza humana no questionamento
sobre a natureza dos desejos humanos, dando assim um tom realista ao
que se anunciara como uma questão clássica da origem metafísica do
mal. Os desejos têm sua terra natal na oposição entre o "povo" e os
"grandes", mas a análise do efeito político das calúnias nos faz recusar
a idéia que poderia ter sido suscitada pela problemática tia conservação
da liberdade: a de uma bondade natural dos desejos do povo. O que
Maquiavel procura demonstrar é que na análise dos desejos que povoam
as cidades não há lugar para considerações de ordem moral. O povo não
é o depositário do bom desejo, oposto ao desejo perverso dos nobres.
O jogo político, desenrolando-se essencialmente no terreno indeterminado
das ações humanas, não nos permite falar do bom e do mau desejo, mas
apenas das ações que são nocivas e das que colaboram para a manuten­
ção da liberdade. A natureza humana tende, é certo, para o mal, mas
esse pendor não impede que os homens desejem o bem e o façam
efetivamente, ainda que movidos apenas pelo desejo de salvar a própria
vida. A liberdade tem sua origem nessa dessemelhança dos desejos, e é
o resultado da solução, sempre temporária, que os diversos povos dão
à luta de classes.
Portanto, o que diferencia Maquiavel dos humanistas cívicos não é
o fato de ter descoberto o papel e a importância das leis, mas o de saber
compreender que as leis são fruto do conflito infinito de desejos opostos.
Isso explica por que Maquiavel nunca acreditou numa solução definitiva
do conflito social. Os desejos, sendo não somente contraditórios, mas de
naturezas diversas, não podem ser anulados por uma solução constitu­
cional, nem mesmo pela mais perfeita a seus olhos: a república.
* * *

A análise dos oito primeiros capítulos dos .Díscotxt abarca quase


todos os elementos teóricos que marcaram a ruptura de Maquiavel com

133. DANTE, M o n a r c a I, 14, 5.


134. C. LEFORT, op. cit., 436.
o humanismo cívico, no que diz respeito à questão da liberdade. Vemos
aparecer nesses capítulos a consideração da importância dos conflitos, a
associação da liberdade e da potência, a crítica da ilusão constitucional,
a análise das leis que transformam a violência privada em justiça pública.
Tantos elementos que nos lembram o humanismo cívico e que demons­
tram, ao mesmo tempo, a amplitude da ruptura instaurada com a tradi­
ção. Seria ingênuo de nossa parte pensar que apenas em oito capítulos
Maquiavel teria concentrado todo o segredo de sua obra. O fato, no
entanto, é que nenhuma das idéias avançadas nesses primeiros capítulos
íbi deixada de lado no restante da obra, ainda que os capítulos subse­
quentes desenvolvam temas absolutamente novos e que pela própria
natureza modificam sensivelmente algumas considerações do início da
obra.

/A5. As /e/s em uma repúb/Zca


Depois de ter mostrado a importância das acusações em uma cidade
livre e o papel das instituições que permitem ao povo exprimir seus
ódios, Maquiavel volta, no nono capítulo, ao tema tradicional da funda­
ção de Roma, insistindo na unidade que se forja sob a mão hábil dos
f u n d a d o r e s ^ , o "primeiro ato" adquire assim um estatuto particular,
pois dele parece depender todo o destino da cidade. Os fundadores
merecem todos os elogios, mas é preciso notar que sua obra, desenvol-
vendo-se no tempo, refletindo-se na história de um povo, pode ser julgada
pelos critérios mais objetivos: a grandeza e a riqueza da cidade. A opa­
cidade na qual se desenrola a criação é compensada pela transparência
dos efeitos que são experimentados ao longo da vida de todos os cida­
dãos de sucessivas gerações.
Essa possibilidade suscitou a Maquiavel uma dificuldade suplemen­
tar, no momento em que se dedicou à análise dos atos de Rômulo. Como
explicar, com efeito, que ele tenha fundado uma monarquia, e não uma
república? Maquiavel encontra a saída para o dilema no qual se meteu
lembrando que na monarquia as leis eram tão boas que permitiram aos
romanos adquirir a liberdade logo após a queda dos Tarquínios*^.

135- C. Lefbrt observou o caráter "clássico" desse capítuio: op. cit., 491.
136. "H che si vide poi quando Roma divenne libera per ia cacciata de' Tarquinii, dove
da' Rotnani non fu innovato aicun ordini deüo antico, se non che in luogo duno Re
perpetuo fbssero due Consoii annuati. It che testifica tutti gii ordini primi di quelia città
essere stati piü conformi a uno vivem civiie e iibero che ad uno assoiuto e tirannico".
MACHIAVELM, i, 9.
Retoma, dessa maneira, ao tema da liberdade "em germe", mostran­
do que Roma pôde escapar aos perigos da monarquia porque seu come­
ço foi bom e continha a "possibilidade" da potência.
Alguns intérpretes insistiram nesse ponto para mostrar que a identi­
ficação da liberdade com a república mista não é inteiramente correta^?.
Se efetivamente não podemos considerar as teorias maquiavelianas como
resultantes de uma concepção juddico-formal do "vivere libero", não nos
parece que o método típico de alguns historiadores das idéias, que con­
siste em isolar algumas citações de um autor e fazer delas uma teoria à
parte, seja o mais adequado para compreender o pensamento de nosso
'^ ' autor. É preciso observar que Maquiavel repete, no nono e no décimo
capítulo, a mesma estratégia de sedução do leitor que utilizara antes.
Resguardando-se atrás de formulas tradicionais, avança cautelosamente
pelas novas terras que descobre, sem que para tanto seja obrigado a
afrontar a tradição a cada afirmação de sua obra. O regime misto é,
assim, a expressão formal mais adequada para a liberdade, mesmo que
sejamos pouco a pouco conduzidos a suspeitar que essa afirmação seja
insuficiente para a compreensão plena do fenômeno da liberdade.
Nos capítulos seguintes, nosso autor completa o que Gennaro Sasso
acreditou ser o núcleo de seu pensamento*^. Em primeiro lugar, ele
expõe suas teorias sobre a religião, deixando de lado a timidez dos
humanistas e expondo o problema fundamentalmente em termos de
relações de força entre o clero e o Estado. Mais uma vez, pelo atalho da
questão da fundação, Maquiavel reflete sobre o papel da religião na
consolidação da vida institucional de um povo. As crenças religiosas são
para ele o instrumento capaz de evitar que o terror que acompanha o
primeiro gesto do fundador se desvaneça no ar, sob o efeito devastador
do tempo. Ao "bom legislador", fundador de "belas repúblicas", ele opõe
o fundador das religiões, que protegido por um suposto diálogo com
Deus, afronta a batalha contra a degeneração. Maquiavel não diz que
todas as religiões são falsas, meros produtos da imaginação de legislado­
res hábeis. Diz apenas que não se pode desprezar o conteúdo cívico das
religiões, se não quisermos abdicar da compreensão de uma parte im­
portante de sua essência. "E verdadeiramente jamais existiu um criador
de leis extraordinárias que não tenha recorrido a Deus, porque de outra
maneira não teria sido aceito. Com efeito, muitos são os princípios bons

137. Guillemaín diz: "Ü ne iattache pas ã un régime déterminé encore que sa íorme !a
plus accomptie se presente sous ta rÉpubtique", op. cit., 321.
138. "Con i capito!i compresi fra ií primo e it diciottesimo, !a teoria poÜtica dei ZMscotsi
ouò dirsi sostanxiabnente deÜneata ed esaurita": G. SASSO, op. cit., 519-
conhecidos petos legisladores prudentes, que não possuem em si razão
evidente para serem aceitos pelos homens"*^.
A problemática da religião destrói a imagem de uma fundação tran­
quila, que as análises anteriores sugeriram, levando-nos a um universo
cheio de perigos e incertezas***. Não se trata de desqualificar a figura do
legislador, mas de confrontar sua obra com a ação do tempo. Maquiavel
fbrça-nos, dessa maneira, a refletir sobre a conservação das formas ins­
tituídas abrindo as portas para a discussão do tema da corrupção. Vamos
deixar de lado, por enquanto, essa discussão, mas é importante notar
que sua introdução marca uma reviravolta no texto*'*'. O aparecimento
da figura do tempo na reflexão política nos obriga a pensar na resistência
à degenerescência como uma das tarefas mais difíceis da ação humana.
A corrupção não é o resultado de uma má fundação, mas um processo,
ao longo do qual os homens se mostram incapazes de reencontrar o
sentido do gesto fundador. O estudo da liberdade em suas formas con­
cretas de existência implica o conhecimento dos meios práticos de evitar
sua perda. Para tanto, não basta um bom corpo de leis, pois elas só
podem ser eficazes quando se mostram capazes de traduzir no plano
jurídico as mutações constantes que afetam as sociedades humanas.
Os ecos dessa discussão são sentidos em todo os TMscotyf, mas é
no capítulo vinte e quatro do primeiro livro que encontramos um trata­
mento paradigmático. Apesar de começar com a afirmação da importân­
cia de se retornar aos princípios da cidade — "E quando essas leis
são bem observadas, uma cidade vive muito tempo, de outra maneira se
arruinará rapidamente"*^", o que ressalta na leitura do capítulo é a
necessidade de se pensar a liberdade a partir da análise da ação humana.
Antes de tudo, é preciso observar que o respeito às leis não se impõe por
razões formais, mas porque representam a expressão visível da liberda­
de. Cada vez que são atacadas, é o "vivem libero" que está em perigo.
Como prova o exemplo de Manlius Capitolinus, o Estado deve proteger-
-se contra todo poder que, do interior, ameace romper o equilíbrio das
leis. Não se trata de uma guerra do Estado contra o indivíduo, mas de
evitar o mal radical em política, que é a corrupção do corpo social'^.

139. MACMAVELÜ, 1. 11.


140. Ver a esse respeito o artigo de H. MANSF1ELD, "Necessity in the Beginrtings of
Cities" in A. PAREL (ed.), T&e Ga&KAía oM /T&i&Mqp&y,
University of Toronto Press, 1972, 101.
141. Estudaremos a problemática dos capítulos 11 a 18 em nosso quarto capítulo.
142. MACmAVELLI, ZHycond, I, 24.
143. P. MEiNECKE parece ter visto essa diferença quando afirma: "C'est pourquoi la
primauté de la raison d État sur le droit positif, qui, comme nous le verrons, devait être une
des grandes maximes de la raison d'État au XVI!*"* siècle, ne joue encore aucun rôle chez
Machiavel": ÍTdée de fM&on d2&af dans f&ís&drtp des 4ert%& rnodeme^ Droz, 1973, 46.
Nesse contexto, a diferença que Maquiavei introduz entre violência pri­
vada e violência pública, através da análise das recompensas que eram
dadas pela República Romana, é essencial para a compreensão das mi­
sérias de seu tempo. Não foi Florença que deu o exemplo da confusão
entre luta de facções e conflitos de classes? Não provava sua história
recente que as lutas intestinas eram incapazes de criar um regime livre,
por desconhecerem os desejos opostos que povoam uma cidade? Os
homens podem até mesmo procurar o bem comum, com o foi o caso de
Soderini, mas serão sempre prisioneiros da ilusão jurídica se forem inca­
pazes de ver que o corpo social comporta uma fratura que nenhuma
constituição pode desconhecer.
Para Maquiavei, a ilusão da unidade leva os homens a desconhecer
as dificuldades de se transformar um estado. Isso o obriga a fazer o
elogio da prudência, sugerindo uma certa proximidade com o tema
aristotélico, para se desembaraçar da herança dos debates constitucio­
nais de seu tempo. "Aquele que deseja ou quer reformar uma cidade,
para poder ser aceito e para que possa se manter com o consentimento
de todos, deve necessariamente salvaguardar pelo menos a sombra das
antigas instituições, a fim de que o povo mal perceba as mudanças,
ainda que as novas instituições sejam totalmente diferente das antigas"^.
A crítica maquiaveliana não é a da associação entre liberdade e
regime de leis, ela visa sobretudo à crença de muitos dos homens polí­
ticos florentinos de que seria possível salvar a república simplesmente
escolhendo uma nova organização para o Estado. Não se trata nem mesmo
de provar a força da tradição, mas de mostrar a dificuldade que acom­
panha todo ato de fundação. Para a maioria dos florentinos, a solução
estava na imitação de Veneza. As instituições deveriam ser reformadas,
sem que a cidade fosse obrigada a se defrontar com a dura realidade das
lutas internas que a destruíam. Mostrando as dificuldades que Roma
encontrou para conservar sua constituição, Maquiavei denuncia a esteri­
lidade de um debate que escondia o sentido profundo dos antagonismos
que constituem a cidade.
Devemos, entretanto, reafirmar que Maquiavei não abandona a as­
sociação entre regime livre e regime de leis, ele suaviza suas conclusões,
de maneira a nos preparar para a crítica radical da idéia de "fundamento
primitivo da cidade". Para chegar a formular seu ponto de vista, ele
caminha com cuidado. Assim, no trigésimo quarto capítulo, mais uma
vez é feito o elogio das leis romanas, através da análise da questão da
ditadura; "E se vê que o Ditador, uma vez que ibi criado pelas leis

344. MACHfAVBLU, I, 2$.


públicas e não por autoridade própria, fez bem â cidade; porque os
magistrados que fazem mal à república são aqueles criados por vias
extraordinárias, não aqueles criados por vias normais, como nos mostra
o exemplo romano onde nenhum ditador fez jamais senão o bem para
a república"^.
A ditadura romana foi uma descoberta do acaso, uma solução que
nasceu no curso das sucessivas guerras nas quais a cidade se envolveu.
Ela reafirma a importância do respeito às leis, mas revela-nos também a
dimensão contingente da história. É pela ação presente, pela criação de
meios extraordinários, que uma república afronta os ataques do tempo.
É da mistura entre a ação criativa e a constituição que nascem os poderes
de resistência à corrupção. Maquiavei convida assim os republicanos a
exprimir em termos legais o que o tempo os obrigará de qualquer ma­
neira a fazer.
Apesar da aversão que nosso autor manifesta pelos modelos formais
de uma forma estável de governo, o leitor poderia deixar-se levar pela
ilusão de que ele constrói uma história ideai de Roma, a fim de provar
a infalibilidade de sua opção. A análise da experiência dos decênviros
destrói essa impressão. Em primeiro lugar, Maquiavei mostra que mesmo
um povo que demonstra um grande amor pela liberdade está submetido
aos efeitos destruidores do tempo. Em segundo lugar, ele evita radicalizar
suas conclusões a respeito das ações extraordinárias e da liberdade. É
verdade que os decênviros puderam ser controlados pelo amor que o
povo ainda tinha pela liberdade, mas Maquiavei alerta-nos contra uma
crença muito exagerada na memória do povo.
O movimento de destruição do mito de uma Roma infalível comple­
ta-se no trigésimo sétimo capítulo, onde, falando da lei agrária, Maquiavei
declara: "De fato, todas as vezes que os homens não podem combater
por necessidade, combatem por ambição; a qual é tão potente no peito
dos homens que jamais os abandona, por mais alto que eles se tenham
elevado. A razão disso é que a natureza criou os homens de tal maneira
que podem desejar tudo, mas não conseguir tudo; de tal forma que,
sendo maior o desejo do que a capacidade de satisfazê-lo, resulta daí o
descontentamento com aquilo que se possui e a pouca satisfação daque­
les que possuem alguma coisa"
Esse capítulo introduz elementos fundamentais para a compreensão
do papel dos conflitos internos na formação de uma sociedade livre. Ele
nos impede de olhar para os conflitos como que para realidades transpa-

145. Idem, !, 34.


146. Ibidem, í, 37.
rentes, que por seu simples aparecer desvelam o sentido de sua existên­
cia. Maquiavel mostra justamente que os conflitos não podem ser redu­
zidos às suas manifestações mais imediatas, que não podem ser confun­
didos com a luta pela posse dos bens materiais, com a disputa pelos
cargos públicos, ou mesmo com a querela em torno dos territórios con­
quistados nas guerras. A divisão da qual nos fala Maquiavel não é his­
tórica, mas toda história tem nela suas raízes. Compreender o sentido de
suas palavras sobre os conflitos é compreender, ao mesmo tempo, sua
ruptura com a tradição cristã, fundada sobre o mistério da revelação e da
consciência moral dos homens, e com a tradição humanista, fundada o
mito da fundação perfeita.
Mostrando-nos que nada pode apagar o caráter instável da vida
política, que as "boas leis" esbarram em limites objetivos, Maquiavel
sugere-nos uma nova perspectiva para o estudo da liberdade. Somos
levados a ver que, contrariamente a uma longa tradição italiana, que
remonta a Bartolus de Sassoferato, e que fazia da tirania o oposto da
liberdade, é o Estado corrompido que se opõe à república, e não sim­
plesmente as tiranias clássicas da Renascença. A república também não
é mais vista como o resultado de uma fundação ideal, mas como fruto
da ação contínua dos homens na "polis". Nesse universo em permanente
movimento, as leis são uma referência importante, mas exprimem, ao
mesmo tempo, o que a política tem de ambíguo e provisório. É verdade
que não podemos falar de república onde não existe uma expressão
jurídica da liberdade, onde o bem público não domina o interesse pri­
vado, onde não existe igualdade entre os homens; mas todas essas ins­
tituições, todas essas condições não são essências capazes de garantir a
paz e a tranquilidade de um povo para sempre. A importância da corrup­
ção esta em que, colocando-se com o o inverso da liberdade, desvela-nos
a importância da ação humana na construção de toda sociedade. O
estudo das leis livra-nos da ilusão constitucional, para nos obrigar a
aceitar a contingência do político. Confirmando nossas hipóteses anteri­
ores, a corrupção revela-nos novas veredas'*?,

11.ó. O desejo de liberdade


Em nossas análises anteriores, fizemos alusão à escolha democrática
de Maquiavel, que se manifesta pela crítica do modelo veneziano e pelo

147. Nossas análises mostram os limites tias interpretações que, como a de GuiUemain,
querem negar a importância das leis no pensamento de Maquiavel. B. GUiLLEMAíN, op.
cit., 321: "La liberte machiavelienne est bien une liberte des citoyens dans ia cité, une
liberte civüe. Rien à voir avec ce que nous appelons Hberté politíque ou liberté civile".
elogio si Roma^s. A afirmação de suas preferências democráticas, no
entanto, deve ser considerada com prudência, pois o termo democracia
tinha pouco uso na época e certamente não correspondia à imagem que
Maquiavel tinha do modelo romano. Ao atacar Veneza ele na verdade
pensava em um regime com grande participação popular — um governo
"largo"— contra um regime aristocrático — um governo "stretto". Tanto
a teoria dos conflitos, como a dos desejos opostos que povoam as cida­
des, fazem-nos acreditar que a compreensão do fenomêno da liberdade
passa pela compreensão do papel desempenhado pelo povo na vida de
uma república livre. É a essa investigação que nos dedicaremos agora.
Comecemos por uma afirmação enigmática feita no vigésimo sétimo
capítulo: "São rarissimas as vezes que os homens são inteiramente maus
ou inteiramente bons". O capítulo é dedicado ao estudo do comporta­
mento do tirano de Perúgia — João Paulo Baglioni— , que, tendo tido a
oportunidade de matar o Papa, recuou diante de suas vestimentas sagra­
das. Maquiavel, ao analisar sua fraqueza, volta ao tipo de homem que
caracterizara destituído de todo respeito pelas coisas humanas, para
concluir: "...os homens não sabem ser nem honrosamente maus, nem
perfeitamente bons, e como uma maldade tem em si alguma coisa de
grande ou é generosa em alguma parte, os homens não sabem praticá-
O secretário florentino conhecia o fascínio exercido pela figura do
tirano sobre os jovens de seu tempo, sobretudo depois do sucesso de
alguns de seus contemporâneos, que pareciam ter conservado o poder
pelo uso destemperado da força. Ele procura destruir o mito que se
desenvolvia, contra as aspirações republicanas, de que o uso desregrado
da força era a solução ideal para os problemas políticos. Entretanto,
repetir os ataques à tirania nada mais seria do que reafirmar um discurso
que desde a Idade Média dominava o pensamento político Rorentino.
Maquiavel escolhe uma via completamente nova, ao mostrar que não é
o mal absoluto que devia ser negado, pois ele tem um certo parentesco
com a virtude, e sim o mal banal, que, prendendo-se ao caráter exterior
da violência, é incapaz de alcançar a grandeza. Os tiranos são criticados
não pelo uso da força, mas pela mediocridade do uso que fazem dos
meios extraordinários. Mais do que nos conduzir a um debate sobre
questões éticas, em que suas afirmações seriam certamente julgadas
extremas, ele nos mostra que a compreensão do comportamento político
dos homens é a compreensão do comportamento político medíocre dos
homens.

148. O que nos opõe A M. COL1SH, que díz: "On the othef hand, MachtaveiÜ sometimes
identiRes aristocracy wíth tiberty": op. cit., 338.
149. MACHIAVELLI, ZXsco?% I, 27.
Nessa lógica, não é de se espantar que os capítulos seguintes se
dediquem ao estudo da indecisão natural dos homens e da gratidão do
povo, deixando de lado a análise das ações radicais, que revelam, â luz
da história, serem quase um mito. Maquiavel nos prepara para pensar na
defesa da liberdade como um ato que leva em conta os imperativos de
um corpo social dividido por desejos opostos. O exemplo do tirano de
Perúgia desperta-nos para as dificuldades que o ator político encontra
diante de si quando decide imprimir suas marcas no mundo. Já havíamos
visto o quanto é difícil mudar a constituição de um Estado para fazer
dele um Estado republicano. Partindo do extremo oposto, o da tirania,
Maquiavei levanta dúvidas quanto â possibilidade de se compreender a
política usando apenas as armas da razão, mesmo quando os dados
naturais parecem prestar-se a isso. Ele nos prepara, pois, para interrogar
os desejos do povo, tomando como referência, em primeiro lugar, as
sociedades corrompidas, e, em segundo lugar, a contingência na qual
somos obrigados a decidir quando agimos na cidade. A tirania é, assim,
o campo fecundo para a compreensão dos desejos que povoam as cida­
des, obrigando-nos a abandonar a hipótese naturalista, que fazia do estudo
dos impulsos básicos dos homens um ponto de partida inabalável para
a compreensão da política.
Em nosso caminho, mais uma vez o capítulo trinta e sete marca uma
reviravolta no texto maquiaveliano. Dessa vez, o tema que nos interessa
é o da ambição'^. A primeira afirmação à qual somos confrontados é a
da infinitude dos desejos, da qual deduzimos que nenhuma prudência
natural pode exercer o papel de mediadora dos conflitos. A conclusão
que podemos tirar é que a política jamais se regula inteiramente pela
natureza, mesmo quando aparentemente uma das partes em conflito tem
todo o interesse em conservar a liberdade, e, assim, em agir de acordo
com a natureza de seus próprios desejos. Esse é um tema antigo na obra
de Maquiavel. Já em 1509, quando dedicava seu capítulo "Di ambizione"
a Luigi Guicciardini*3\ Maquiavel mostrava que a idéia de ambição não
podia ser trocada pela de desejo, mas que ela dem onstrava a
irracionalidade dos atores políticos. Essa irracionalidade só pode ser
apreendida, é verdade, se considerarmos o objetivo ao qual deveria ten­
der o povo: a liberdade.'^ Sua importância não está, no entanto, em

150. Para a importância do tema em Maquiavei cf. G. SASSO, op. cit., 246.
151. A Carta de 29 de novembro de 1509 mostra quat é a data de composição do
capituio. Ver MACHIAVELL1, Ze?/ew, FeitrineÜ), 1981, 106.
152. É interessante observar os seguintes versos: "Ma se votessi saper la ragione /
perch'una gente imperi e l'a)tra pianga / regnando ín ogni loco Ambizione, / e perché
Francia vittrice rimanga / da Paitra parte, perché Itaiia tutta / Un mur d'affanni tempestoso
franga, / e perché n queste parti sia redutta / ia penitenzia di quei tristo seme / che
Ambizione e Avarizia frutta: / se con Ambizion congiunto è insieme un cor íeroce, una
virtute armata / quiví dei proprio mai rato si teme. MACH1AVELL1, "Di Ambizione", in Tidte
Ze Qpefe, Sansoni, 1971, 985.
mostrar que as ações do povo são incompatíveis com seus desejos, mas
que não podemos evitar as veredas obscuras da ação em nome da ob­
jetividade natural dos desejos.
No quadragésimo capítulo, Maquiavel demonstra essa mesma tese
de maneira ainda mais radical. Aprendemos nos capítulos anteriores que
a melhor guarda para a liberdade é o povo, e que isso se deve ao lato
de que ele tem o desejo natural de conservá-la. Se essa tese permanece
válida, somos conduzidos a ver que ela não implica uma teoria da ação
natural. De acordo com a análise dos desejos, a tirania tem sua origem
sempre naqueles que querem monopolizar o Estado em proveito pró­
prio. O que Maquiavel demonstra, no capítulo que estamos analisando,
é que essa afirmação revela apenas metade da verdade sobre as tiranias:
"... pela mesma razão pela qual nascem a maior parte das tiranias na
cidade: desejo excessivo do povo em ser livre e desejo excessivo dos
nobres de comandar"'^.
O povo é, portanto, um agente da corrupção. Deseja a conservação
da constituição livre, mas não lhe é possível fazer sempre desse desejo
a mola para uma ação virtuosa na "polis". Se o desejo da liberdade é
inextinguível, ele também não conhece os limites da prudência e se
exerce sempre no mesmo sentido, mesmo quando ao longo do tempo
isso venha a mostrar-se danoso para seus objetivos. Maquiavel impede-
-nos, dessa maneira, de julgar os desejos políticos através de categorias
próprias da ética. Não há lugar para se falar do bom desejo e do mau
desejo, nem da bondade natural de uma classe. Aprendemos, ao contrá­
rio, que existe uma conduta tirânica do povo, pois, se ele está sempre
na origem de um poder sólido, como demonstram algumas análises d'O
Príncipe, também pode fazer nascer uma tirania. Nosso autor conclui:
"De onde decorre que os tiranos que são amigos do povo e inimigos dos
grandes são mais seguros, por ser sua violência defendida por uma força
maior do que aquela daqueles que têm o povo como inimigo e a nobre­
za como amiga"*^.
O capítulo finaliza a crítica da concepção puramente jurídica da
liberdade, restituindo-nos a imagem da política como um campo de forças.
O desejo de liberdade não implica a existência de um saber da conser­
vação que ajudaria todos a compreender as ações necessárias para a
manutenção do "vivere libero"; ainda que Maquiavel nos ensine que o
povo é sempre o apoio mais sólido para um poder qualquer. No caso
dos decênviros, como no caso da ieí agrária, o povo não mudou sua

155. MACHIAVELU, Díscorsi, I, 40.


154. Idem, !, 40.
"natureza", mas revelou que seu desejo não é, por si sõ, uma garantia
contra a corrupção. Certamente, Maquiavel não abandona a associação
entre liberdade e lei; introduz, no entanto, novos elementos, que forta­
lecem nossa hipótese de que todo estudo da questão da liberdade deve
ser, ao mesmo, tempo um estudo da questão da a ç ã o ^ .
A crítica à concepção puramente jurídica da liberdade não significa
que a representação legal não tenha papel na "polis". Uma leitura atenta
do texto maquiaveliano mostra-nos que ela ocupa o lugar do mediador,
sem o qual nenhuma vida política é possível. Maquiavel fomece-nos um
exemplo ao analisar o caso do abandono da cidade pelo povo numa
situação de conflito com a nobreza'^. Deixando a cidade entregue aos
nobres, o povo manifestou com toda clareza a natureza de seus desejos
rompendo os laços jurídicos e exigindo um retomo às origens. Nesse
momento de uma transparência quase total quanto ao objeto do desejo
de uma das classes, a incapacidade do povo de traduzir em palavras suas
reivindicações impediu a ação eficaz. Era necessário exprimir a força que
se concentrava na vontade de destruição e, para isso, encontrar um
modo de expressão, ou passar à ação através de um jogo de mediações.
A pura violência poderia ter resultado na morte dos "Dieci", mas mesmo
nessa situação haveria um "depois", a exigir uma resposta para a questão
da instituição da liberdade.
A lei não é em si a origem da liberdade, mas essa não existe sem sua
expressão formal. Para que a potência que lhe é associada possa se
manifestar, é preciso que o povo reconheça nas instituições a figura de
seu desejo. A história de Florença tem como exemplo Savonarola'^, que,
não vendo nas leis senão um meio sem essência, acreditava poder trocã-
-las por uma série de discursos eficazes. Essa convicção o levou a se
distanciar do povo que o sustentava e ser condenado à morte.
A existência de mediações na vida política, entretanto, não transfor­
ma os aparelhos jurídicos em mecanismos capazes de garantir a transpa­
rência das ações do povo. Por isso, o desejo de liberdade pode estar na
origem tanto de uma democracia com o de uma tirania, sem que a natu­
reza do desejo popular tenha sido alterada. Isso levou alguns intérpretes
a atribuir ao povo apenas um papel passivo na política. Essa é a postura
de Gennaro Sasso que afirma: "Ainda que tenha sido expressa na harmo­
nia da 'politeia', a matéria do humor popular permanece, no fundo,
alheia ao processo que a toma ativa: o que significa que a 'virtú', que por

155. Ibidem, 1, 40.


156. Ibidem, 1, 44.
157. Ibidem, I, 45.
vezes a ilumina, não pertence à matéria — que é por isso privada de luz
própria — , é uma 'virtü', se assim podemos dizer, de segundo grau"^.
Chabod adota um ponto de vista parecido, criticando a confiança
ingênua que alguns autores manifestam no povo: "E, portanto, essa
confiança confusa no povo, mais forte do que qualquer pessimismo
teórico, mas que é necessária para que as armas lhe sejam entregues, é
um sentimento ingênuo e obscuro, incapaz de se clarificar e de fugir das
contradições"*^.
Mesmo que as duas afirmações não tenham o mesmo sentido, con-
duzem-nos a uma mesma reflexão sobre os desejos populares. Se o
desejo popular, que é essencialmente desejo de liberdade, fosse total­
mente passivo, não estaria ele desde o início condenado ao fracasso?
Nessas condições, o saber da política, que é sempre um saber operativo,
não seria unicamente aquele da nobreza, que em sua objetividade se
confronta sempre com o desejo cego de liberdade? A conclusão não
podería ser mais estranha para um autor que conduz sua análise sob o
signo da potência romana, tomada não como um modelo, mas como o
produto de uma ação contínua na "polis". Maquiavel critica, é verdade,
a indecisão do povo, mas não anula o alcance de sua ação. Para apre­
ender o sentido de seu texto ê preciso recordar que seus caminhos são
sinuosos e que ele nunca desvela todo o sentido de seu percurso.
A estratégia maquiaveliana, segundo Claude Lefort, é a de voltar a
certos temas clássicos dos aristocratas, para convidar o leitor a segui-lo
por caminhos inesperados**^. Assim, no quadragésimo sétimo capítulo,
ele faz um elogio dos "grandi" para demonstrar a prudência popular na
condução dos negócios públicos. Suas observações não poderiam ter um
endereço mais certo: Florença. Com efeito, os homens políticos florentinos
haviam evidenciado sua total incapacidade de tomar decisões corajosas,
quando o que estava em jogo era a sobrevivência da república*^. A
facção democrática, liderada por Soderini, hesitando em tomar o contro­
le do Estado na crise que antecedeu a queda da república em 1512,
demonstrou que desconhecia os mecanismos da própria força*^.
A crítica da aristocracia é sempre acompanhada, nos Díscorsi, de
uma análise detalhada das ações do povo. Não há dúvida de que
Maquiavel procura demonstrar que o único elemento capaz de construir

158. G. SASSO, op. cit., 509.


159. F. CHABOD, -ScrHM SM Einaudi, 1982, 88.
160. C. LEFORT, op. cit., 522.
161. MACHIAVELLI, DKconri, I, 50.
162. Idem, I, 52.
uma república potente é o elemento popular, mas nunca cede à tentação
de fazer um elogio ingênuo das ações populares. No qúinquagésimo
terceiro capítulo, mais uma vez ele repete essa estratégia. De início,
somos confrontados com a instabilidade do povo. Ele firma que em
certas situações o povo deseja a ruína do Estado. Essa possibilidade se
explica porque o elemento popular "moíte volte ingannato da una falsa
immagine di bene desidera la rovina su a "^ . Se Maquiavel contenta o
leitor aristocrático, mostrando que não se pode atribuir apenas aos "gran­
des" a falência do modelo florentino, ele o faz porque está convencido
de que a causa do fracasso popular em manter a liberdade não é o seu
desejo, mas uma falsa interpretação de seu objeto. O capítulo nos con­
duz a duas conclusões diferentes. Em primeiro lugar, Maquiavel retoma
à questão das representações, mostrando que a política não existe em
um espaço neutro e transparente, mas num mundo povoado por ima­
gens e símbolos cujos significados não são nunca imediatamente acessí­
veis aos atores políticos. Em segundo lugar, ele nos mostra que o vazio
dos signos é preenchido pelos próprios atores, que, ocupando o lugar
simbólico dos desejos, criam a ilusão de possuírem a chave para a sua
compreensão.
Essa ambiguidade da política permite a Maquiavel dizer, no capítulo
seguinte, que a destruição do Estado não é fruto do desejo de liberdade,
mas de sua má apropriação. É claro que todo desejo só se manifesta
quando apropriado; a política se efetua sempre no jogo de mediações,
em que as rupturas originais do corpo social se manifestam. Mas a con­
sequência prática da segunda conclusão é que podemos identificar o
ator responsável pela expressão dos desejos populares e, assim, compre­
ender por que o povo pode ser enganado, ligando-se a uma falsa repre­
sentação de seu desejo. Maquiavel escolhe, entretanto, o caminho inver­
so para fazer a crítica da aristocracia. É pelo elogio dos grandes homens,
capazes de conduzir uma multidão a agir em favor do bem público e da
liberdade, que ele mostra que é o desejo sem limites de possuir que
conduz os membros da aristocracia a buscar a aliança com as classes
populares e, assim, a destruir a liberdade^. O povo também participa da
destruição do Estado, sustentando partidos, ligando-se a projetos políti­
cos, mas, distante dos mecanismos de decisão e poder, ele o faz por
acreditar serem seus atos um espelho de suas esperanças.
Maquiavel conclui contra toda a tradição, que: "...os defeitos que os
escritores atribuem às multidões podem ser atribuídos a todos os ho-

163. Ibidem, I, 53.


164. Ibidem, I, 54.
mens, sobretudo aos príncipes, porque alguém que não seja governado
pelas leis fatia os mesmos erros que a multidão ignorante"^. A compa­
ração com os ptíncipes não visa desculpar o povo pelos seus erros, nem
a negar a fascinação exercida pelos demagogos sobre os homens co­
muns. É enquanto fonte do poder que ele se mostra mais confiável; é em
sua capacidade de aceitar o império das leis que ele se mostra mais
constante. Incapaz de visar ao poder como um puro objeto, o povo não
pode deixar de desejar não ser oprimido. Não há no pensamento de
Maquiavel, no entanto, nenhuma idealização do povo. O que é criticado
violentamente é a tese aristocrática, a esperança dos "ottimati" florentinos
de fundar uma nova Veneza, excluindo inteiramente o povo.
Os intérpretes que, baseados nos capítulos aos quais nos referimos,
viram no povo apenas uma força passiva, parecem ter deixado de lado
uma das dimensões essenciais do ensinamento de Maquiavel. Como
observa Lefbrt'^, o povo não pode ter o mesmo saber que o príncipe,
pois ele só existe em seu conjunto, como uma unidade que revela um
dos humores constitutivos da cidade^?. Ora, as ações visíveis são sempre
o efeito da presença de atores particulares ou de multidões sem rosto.
Nesse caso, é totalmente inútil tentar buscar uma "virtu" popular seme­
lhante à dos príncipes. Isto não implica que o povo não possa manifestar
um certo saber, que sua ação não reflita um saber operativo que é
essencial para a construção da liberdade. Seus gestos não são semelhan­
tes aos gestos magníficos que constroem os mitos da história de um país;
eles se mostram através das ações de resistência contra a opressão, atra­
vés da constância na defesa das leis. Mantendo-se fiel a seus desejos, o
povo age continuamente contra os príncipes e, portanto, faz de sua ação,
de natureza diversa da dos "grandí", um dos pilares sobre os quais se
erige a vida política. A análise do desejo de liberdade confirma que a
divisão do corpo social é sempre a fonte de sua instituição, mas dissolve
a pretensão de alguns autores de construir, a partir das ações dos prín­
cipes, uma ciência positiva da política.

//./. A cfíáca dos mode/os e o quesfão da fundação


No primeiro capítulo do segundo livro dos DtscoK% Maquiavel reto­
ma a discussão da importância da "fortuna" para a edificação da potência
romana. Contra a tradição (Plutarco, Tito Lívio), afirma que a "virtu"

l 6$. Ibidem, I, 58.


166. C. LEFORT, op. cit., 523.
167. MACHIAVELU, Díscond, I, 57.
romana fbi, aliada à sua disciplina, a causa de sua grandeza. Embora esse
tema seja de grande importância, eie apenas prepara a discussão do
segundo capítulo. Aí Maquiavel faz alusão às repúblicas que existiam em
tomo do território romano, repúblicas que são quase sempre esquecidas
quando se trata de pensar a forma mista de governo, uma vez que só
Esparta e Veneza parecem merecer, ao lado de Roma, esse supremo
elogio'^. Ora, o confronto entre Roma e as repúblicas vizinhas fornece-
nos o exemplo de uma guerra em que os dois lados lutam pela mesma
causa: a conservação da liberdade. Como era de se esperar, essa é a
guerra mais temvel, pois opõe dois povos que se batem pela conserva­
ção de uma forma constitucional que é a expressão de seus desejos.
Maquiavel afirma que na longa história de lutas dos romanos essas foram
suas batalhas mais duras: "Nada foi mais difícil para os romanos do que
superar os povos vizinhos, que naqueles tempos tinham ainda um gran­
de amor pela liberdade, de tal forma que só foram subjugados porque
uma 'virtú' maior a eles se opôs"'^.
Repetindo a tese da associação entre liberdade e potência, Maquiavel
afirma que Roma foi não somente uma república virtuosa, mas a mais
virtuosa, num mundo povoado por repúblicas fortes e livres'?". Se sua
função exemplar se vê reforçada por essa comparação com as cidades
livres, ela serve mais uma vez para demonstrar que o fundamento da
potência é a liberdade: "...porque a experiência demonstra que as cida­
des só ampliam seus domínios e se tornam mais ricas quando são li­
vres"*?'. Nesse ponto do texto, nosso autor lança novas luzes sobre a
atuação do povo na construção de uma forma mista de governo. Essas
considerações desmentem mais uma vez os intérpretes que insistiram na
passividade do povo. Delas emetge a imagem de um povo que dedica
uma enorme energia à preservação da liberdade. Essa energia nasce de
sua participação nos negócios do Estado, de sua confiança no futuro, na
capacidade de enfrentar os inimigos externos e internos'^.

168. CADONI, em seu artigo, não considera as repúblicas vizinhas de Roma como
exemplos de cidades livres. Ver também A. SCOLAR1, "il concetto di libettà in Niccolo
Machiaveüi" in AM e memorte AccrMeraia í# AgrícrdlMfa, Scienze e ígffere Ver&wt,
serie V, Voi X, n. 110, 1933
169. MACHIAVELL1, Discorsi, H, 2.
170. Idem, 11, 2.
171. Ibidem, H, 2.
172. "Ferché quiví si vede maggiori popoli, per essere e' connubii piú liberi, piú
desiderabiii dagii uomini; perché ciascuno ptocrea volentíeri quegli figíiuoíí che crede
potere nutrire, non dubitando che íi patrimonío gii sia toito, e ch'ei conosce non soiamente
che nascono liberi e non schiaví ma ch'ei possono mediante ia virtu ioro diventare principt":
Ibidem, II, 2.
O retrato extremamente favorável que o secretário traça das repúbli­
cas traz consigo o peso de uma terrível contradição. Ao empregar o povo
para a conquista, Roma certamente demonstrou sua capacidade de ação,
o vigor de suas instituições. Tudo isso, no entanto, só pôde ser efetivo
porque Roma destruiu todas as repúblicas vizinhas e, com elas, a liber­
dade de todos os povos da Itália. Da liberdade nasceu a servidão de um
número enorme de repúblicas. Como já observou G. Sasso*^, esse é um
dos pontos mais difíceis de serem compreendidos e também um dos
mais importantes do pensamento republicano de Maquiavel. A conquista
efetuada por uma república não somente é natural, mas a mais eficaz,
pois está na natureza desse regime expandir seus limites e desejar o
infinito: "E de todas as servidões, a mais dura é a dos que se submetem
a uma república. Em primeiro lugar, porque, sendo as repúblicas mais
duráveis, dificilmente se pode esperar o fim de sua dominação; em se­
gundo lugar, porque o Rm das repúblicas é enfraquecer e destruir os
outros corpos, para engrandecer o seu"'?**.
A política romana é a expressão necessária de toda expansão co­
mandada pelo desejo de liberdade, Esse movimento do pensamento
maquiaveliano tende a destruir a especificidade da história romana. Se
Roma exerceu a conquista melhor do que todas as outras cidades, ela o
fez realizando uma essência que é comum a todas as repúblicas. Sua
história é única, mas sua singularidade está no fato de ter realizado uma
tendência universal das formas livres de governo. O modelo romano é,
assim, o ideal para o estudo do presente, porque ele cumpriu, no pas­
sado, todas as exigências de uma forma virtuosa de governo. Ele nos
permite passar ao exemplo de Florença sem nenhuma transição. Mas o
paradoxo da força republicana complica-se ainda mais quando Maquiavel,
diante da miséria de seu tempo, pergunta o porquê de os homens de
hoje serem menos ligados à liberdade. Sua resposta passa, é verdade,
pela condenação da religião católica, mas é em Roma que se encontra
a raiz das desgraças de sua época: "Ainda que eu creia que a razão disso
tudo é que o Império Romano com suas armas e sua grandeza destruiu
todas as repúblicas e todos os 'vivcri civili"*^.
Para fugir do paradoxo, Maquiavel recorre ao exemplo das repúbli­
cas toscanas, que formaram uma liga para se defender, sem buscar a
expansão ilimitada de seus limites individuais*^. Mas, ainda que Roma

173. G. SASSO, op. cit., 485^86.


174. MACHIAVELLí, ZM-rcots*, 11, 2.
175. Idem, 11, 2.
176. Ibidem, 11, 3.

m
fosse apenas uma possibilidade entre muitas, revelava em toda sua ple­
nitude os limites de um desejo, que só pela expansão conserva sua
essência. O trágico, no entanto, não é a possibilidade sempre presente
de se perder a liberdade, mas que os mecanismos de sua destruição são
melhor operados pelas formas mais livres de governo.
Uma verdadeira revolução foi operada por Maquiavel no pensamen­
to republicano. Ao mesmo tempo em que ele expôs as conquistas roma­
nas e a grandeza de sua "virtu", exibiu suas fraquezas. Não se trata mais
de dizer, como Políbío e os humanistas cívicos, que uma forma republi­
cana está submetida âs leis do tempo. Trata-se de mostrar que na raiz de
sua destruição está sua própria necessidade de expansão. Já sabíamos
que o estudo da liberdade exige o da ação política, que um regime
corrompido se opõe a um regime livre; acabamos de descobrir que os
mecanismos que geram a potência geram também a corrupção. A forma
como a questão da liberdade fora tratada pelos pensadores florentinos,
de Bruni a Savonarola, e que gestou uma ideologia coerente no seio das
classes dominantes, se revelou inteiramente falaciosa. Maquiavel comba­
te ao longo dos quase todas as teorias republicanas florentinas,
mas é na associação da liberdade com a destruição das repúblicas do
passado que ele atinge o auge de suas críticas à tradição'??.
E preciso ver, no entanto, que o paradoxo da potência não destrói
as conclusões anteriores, que fazem do "vivere libero" a íbrma mais
perfeita de sociedade. Para Maquiavel, a liberdade é sempre sinônimo de
potência, como mostra o primeiro livro da Cucrm'?^, mas o
modelo romano não é mais pensado como a expressão de uma perfeição
a ser imitada em qualquer tempo, em qualquer lugar. O conflito de Roma
com seus vizinhos prova que a "verdade" de sua história foi construída
com base na destruição da história das outras repúblicas, que possuíam
as mesmas possibilidades que a república vencedora. A história de Roma
foi exemplar por causa de sua fabulosa disciplina militar, da capacidade
de ação de seus homens, mas não por possuir um destino particular.
Essa maneira de ver as coisas faz Maquiavel voltar ao velho tema da
origem da liberdade Horentina: "Era então, como já foi dito, a Toscana
potente, plena de religião, de 'virtu', tinha seus costumes e sua língua
pátria. Tudo isso foi destruído pela potência romana, de tal forma que
dela só permaneceu a memória de seu nomc'"^.

177. C. LEFORT, op. cit., 544-545.


178. MACHIAVELLI, gwíyrw, I, 307.
179. MACHIAVELLI, Dtsconst, H, 5-
Destruindo o mito da origem etrusca da liberdade, Maquiavel realiza
uma crítica apenas parcial da tradição Üorentina, pois deixa vivo o mito
da liberdade comunal e das guerras vitoriosas contra os Visconti, que
tanta influência tiveram sobre os homens políticos de seu tempo, Será
preciso aguardar o terceiro livro dos Discorst, para estudarmos as críticas
maquiavelianas a essa última resistência da tradição florentina contra os
ataques de seu pensamento.
O primeiro capítulo do terceiro livro coloca-nos diante do problema
da renovação do que o secretário dorentino chama de corpos mistos.
Trata-se de estudar uma forma de resistir à destruição inexorável que as
forças do tempo operam em todos os corpos que são fruto da vontade
humana. Maquiavel com eça afirmando que, para resistir à corrupção, é
necessário conservar todo o brilho do primeiro momento, mas ele nos
adverte para o fato de que o primeiro momento não deve ser compre­
endido em sentido puramente histórico. Ele nos fala de um primeiro
momento em que a igualdade entre os homens é mais do que um sim­
ples desejo, em que as leis possuem a capacidade efetiva de guiar as
ações humanas, mas evita dizer o que era central para os humanistas, a
saber, que esse momento possui em si todo o sentido da história futura.
O secretário nota, então, que, para retornar a esse momento inaugural de
um corpo misto, é preciso recorrer a dois caminhos: aos acidentes exte­
riores, ou aos acidentes internos^. Da análise das duas possibilidades,
em que se destaca a figura de Camilo"", fica claro que o verdadeiro
objeto de Maquiavel são os homens, os legisladores, capazes de criar as
leis como verdadeiros demiurgos. Assim, não se trata mais de estudar
uma história factual, mas a fundação repetida das bases imaginárias e
simbólicas das sociedades. Para que isso seja possível, é preciso restituir
aos homens o terror originário que os convenceu a aderir, no passado,
a uma dada forma de organização social. Alguns autores, como Leo
Strauss'^, insistiram no caráter negativo do terror originário. Parece-nos
que tal maneira de ver as coisas apenas dificulta a compreensão da
natureza radical das ações que povoam os primeiros momentos de uma
sociedade. Pará Maquiavel, a "boa lei" não é a que íbí enunciada nos
tempos imemoriais, mas aquela que restitui o sentido do que os homens
acreditam ser a fundação primeira de uma cidade. A primeira consequência
dessa perspectiva é que Maquiavel apaga a diferença entre a "primeira
fundação" e todas as que se seguem.

t80. Idem, Hl, 1.


181. Ibidem, m, 1.
182. L. STRAUSS, op. cit., 186-187.
A ideologia florentina do começo mostrava-se inútil no combate à
corrupção, porque só abordava a questão do ponto de vista deformado
do "bom passado". Os homens políticos florentinos foram incapazes de
pensar a liberdade sem fazer referência aos "bons momentos da liberda­
de florentina"; não conseguiram ver que as belas ações só são úteis se
elas podem anular a distancia que nos separa dos momentos exemplares
do passado. A problemática do começo não é outra coisa senão a neces­
sidade que toda sociedade experimenta de uma fundação contínua'^.
As críticas maquiaveiianas à tradição trazem novas exigências para
nosso estudo sobre o sentido da liberdade em sua obra. Em primeiro
lugar, aprendemos que nenhum estudo como o nosso pode deixar de
lado uma análise mais detalhada da ação política. Em segundo lugar, o
fato de que todas as sociedades tendem a se corromper exige uma aná­
lise detalhada da questão do tempo na política. Antes, no entanto, de nos
dedicarmos a essas questões, vamos estudar alguns capítulos d'O Prw -
que certamente nos ajudarão a esclarecer algumas de nossas afir­
mações anteriores'^.

!!!. A LIBERDADE N O P#//VC/Pf

A análise que faremos de algumas passagens d'O PnKc$x? deixa de


iado a discussão sobre suas relações com os fMsccfxt, assim como sobre
a cronologia das duas obras'^. Ainda que essas questões sejam essenciais
para todo estudo que abranja o conjunto da obra maquiaveliana, não as
trataremos aqui, pois nosso interesse se limita a fornecer novos elemen­
tos que confirmam as hipóteses por nós avançadas.
Vamos com eçar pelo quinto capítulo d' O Príncipe, onde Maquiave!
nos fala das repúblicas num tom que já nos ú familiar depois de nossa
leitura dos Discoryf. O problema levantado é o da conquista, mas
Maquiave! introduz uma inflexão fundamental, ao mostrar que as repú­
blicas são mais difíceis de conquistar, porque o apelo ao nome da antiga
liberdade é um inimigo difícil de ser vencido"*. Seus argumentos são,
nesse ponto do texto, perfeitamente tradicionais, porque ele não faz

183. No terceiro iivro, Maquiavei refere-se ã questão nos capítulos 22 e 49.


184. Alguns historiadores, como M. Coíish acreditaram que a questão só podería ser
corretamente compreendida através de uma análise das A nosso ver,
os D&rord contêm todos os elementos necessários para o esclarecimento do problema.
185. H. BARON, "The Príncipe and the puzzle o f the date of the Discorsi" in
et ^eMR&saMce, XVin, 1956, 405-428
186. MACHíAVELLt, 7/ V.
mais do que lembrar que uma constitutição livre é aquela capaz de
mobilizar a energia dos cidadãos, e que essa energia pode ser emprega­
da para a defesa contra os inimigos externos. Maquiavel retoma ainda o
tema humanista do amor da liberdade falando-nos da "memória da liber­
dade". O elogio implícito nesse percurso não deixa dúvidas de que ele
quer deixar clara a superioridade dos regimes livres sobre todos os outros.
Para aqueles que ainda duvidassem de suas intenções, ele termina o
capítulo de uma forma inequívoca: "Nas repúblicas há mais vida, mais
ódio, mais desejo de vingança; nem a memória da antiga liberdade nos
deixa, ou pode nos deixar descansar; de tal forma que a melhor maneira
é destruí-las, ou habitá-las'"^.
A imagem de uma cidade livre é da potência interna, do transborda-
mento de energia, do amor e do ódio. Poderiamos utilizar esse capítulo
para mostrar a adesão irrefutável de Maquiavel às tese republicanas, para
conferir a O Pnhc%x? o estatuto de uma obra técnica sobre o poder'^.
Mas o retrato que nosso autor nos oferece, n '0 não tem a
mesma coerência que terá mais tarde nos Dtscorsi. Maquiavel faz, n '0
Pnnc%)c, uma descrição fenomenológica da república, um elogio a sua
força interna, mas nada, por enquanto, permite-nos apreender as origens
de tal potência. Poderiamos nos refugiar na tese cronológica e dizer que
nosso autor não tinha nenhuma razão para desenvolver os temas que
evoca, uma vez que o faria mais tarde nos DísccKd. No entanto, ao fazer
o elogio das repúblicas, Maquiavel chama nossa atenção para um pro­
blema que não pode ser circunscrito ao espaço republicano: a importân­
cia do elemento popular em todas as formas políticas. É verdade que
uma análise dos primeiros capítulos da obra já teria chamado nossa
atenção para o problema'^, mas é o exemplo das repúblicas que nos
conduz a ver no povo algo mais do que um elemento constitutivo do
jogo político; ele nos força a ver no povo um ator político fundamental.
A importância do capítulo não reside, portanto, no elogio da liberdade,
mas na indicação de que todo regime se constitui como resultado da
presença de atores políticos diversos em seu interior.
Essa sugestão só será plenamente desenvolvida no nono capítulo.
Maquiavel aborda a questão dos principados que são conquistados pela
habilidade política, mostrando com isso que todo estudo da conquista
baseado unicamente na análise da força está condenado ao fracasso.
"Em toda cidade existem dois humores diferentes. Decorre daí que o

187. Idem, V.
188. Como mostra Procacct, op. cit. 313; esse foi o caso de muitos intérpretes.
189- Reíerímo-nos aqui ao exame da monarquia turca, que esclarece a questão da
passividade popuiar: IV.
povo deseja não ser comandado nem oprimido; os grandes desejam
comandar e oprimir. Desses dois apetites diversos nasce nas cidades um
dos três efeitos: ou o principado, ou a liberdade, ou a anarquia"'**.
Nossos estudos anteriores já nos haviam ensinado a reconhecer nos
conflitos sociais a fonte da liberdade. A análise dos capítulos d'O Prw -
nos mostra que todas as formas políticas são o resultado desses
conflitos^'. Ao misturar, no entanto, a questão das repúblicas à dos prin­
cipados e das monarquias, Maquiavel nos permite ir mais longe no es­
tudo da relação existente entre as repúblicas e as monarquias. Já haví­
amos visto que algumas frases de nosso autor sugeriram a alguns intér­
pretes que a liberdade podia ser pensada como um mero detalhe da
constituição e que, assim, podia ser compartilhada por várias formas de
governo'^. O capítulo dedicado aos principados civis permite-nos
aprofundar a reflexão sobre a questão.
O que Maquiavel chama de principado civii'^ diferencia-se dos outros
pelo fato de que aí o príncipe age com a consciência da existência na
"polis" de desejos inconciliáveis. Ele se toma príncipe porque encarna,
num momento determinado, o desejo de uma das ciasses. Desde o iní­
cio, uma parte da população o apoia, mas o faz na esperança de que ele
a proteja contra os ataques da outra parte. O piíncipe não é nesse caso
o mediador (como foram os reis de Esparta), mas o representante de um
dos lados em luta e que busca a vitória a qualquer preço. Desse conflito
podem surgir duas soluções: ou uma aristocracia ou um regime popular.
Maquiavel não hesita em declarar sua preferência pelo segundo regime:
"Concluo somente que ao príncipe é necessário ser amigo do povo; de
outra forma não terá remédio na adversidade"'**.
A escolha de Maquiavel não deve ser entendida, no entanto, como
derivada meramente de seus desejos pessoais; ele fornece argumentos
de grande densidade teórica para justificá-la. O príncipe que se alia ao
povo deve satisfazer apenas seu desejo de não-opressão, mas não terá
nele um concorrente ao poder. Essa característica do desejo popular faz
do povo o aliado perfeito para aquele que quer governar, pois ele nunca
encontrará em seu caminho alguém que vise ao mesmo objeto. Mas o

190. MACHIAVELLI, 7/ IXL


191. C. LEFORT, op. cit., 381.
192. H. BARON repete essa teoria em: "Machiaveüi: The RepubÜcan Citizen and the
author o f the FrfMce" in T&ügRsá Msforíca/ 7?enfet^ LXXVI, 1961, 226: "...ii may
be found in monarchie as weli as republics".
193. G. CADONI dedicou um iivro a essa questão, que nos será de grande vaiia:
TiEgHo e cM/c, Buizoni, 1974.
194. MACHIAVELLI, 7/ TTíMcipc, IX
fato mesmo de que o príncipe não tenha de ver no povo um concorrente
impõe limites a essa aliança. Com eleito, é próprio dos que ocupam o
poder desejar expandir as fronteiras de sua ação. Num primeiro momen­
to, ele poderá vencer seus adversários usando a força dos que não de­
sejam ocupar o mesmo lugar que ele. Mas ao combater os nobres, o
príncipe nunca poderá satisfazer plenamente os desejos populares, pois,
como mostra Claude Lcíort, são desejos sem objeto, pura negatividade,
e, assim, não podem ser satisfeitos*^. O príncipe pode ocupar o lugar
simbólico da justiça, à medida que impede o desejo dos grandes de se
manifestar e que mascara a distância que o separa do povo, mas ele não
poderá jamais ser "desejo popular", uma vez que sua existência mesma
é "desejo de potência".
Os limites de um principado civil aparecem sempre no momento em
que o príncipe dá formas a seu desejo e não mais responde simplesmen­
te aos anseios populares. É, assim, quando o governante tenta fazer de
seu reino uma monarquia absoluta, que toda a ambiguidade desse regi­
me se manifesta'^. Ao tomar o poder em nome do povo, o novo
governante é obrigado a criar mecanismos institucionais que garantam
uma certa participação de um grande número de cidadãos nas decisões
do governo. Esses mecanismos institucionais dão o gosto da liberdade ao
povo. No momento em que o príncipe radicaliza sua vontade de poder,
os instrumentos que o ajudaram a subir também serão aqueles da resis­
tência a seu poder.
Fica evidente, por essas considerações, que a questão da liberdade
é central para a compreensão da natureza dos principados civis, mas isso
não nos autoriza a pensar que possamos falar indistintamente de liber­
dade nas repúblicas e nas monarquias. O que podemos concluir é que
todo regime é uma solução dos conflitos de classes e que, assim, uma
forma livre é sempre uma possibilidade inscrita no corpo social. O apoio
popular é a chave da potência de uma república, que será a única forma
capaz de desenvolver plenamente o que os principados civis apenas
esboçarão.
O décimo capítulo, ao abordar a questão da defesa da cidade contra
os ataques de forças estrangeiras, confirma nossas conclusões ajudando-
-nos a clarear as distinções que fizemos entre uma forma verdadeiramen­
te livre e um principado civil. No caso de um ataque externo, somente
a adesão do povo pode fornecer uma saída paia a cidade sitiada. Essa

195. C.LEFORT, op. cit., 386.


196. MACHIAVELLI, IX,
constatação é válida tanto para as republicas como para os principados.
Embora essa constatação tenha algo de universal, ela serve para esclare­
cer o porquê da superioridade militar das repúblicas. Maquiavel insiste
que o elemento popular é a única arma eficiente contra o inimigo exter­
no, mas para que possa ser eficaz é preciso que ele veja na resistência
uma defesa de suas aspirações. Ora, o príncipe pode dar segurança ao
povo, jamais a liberdade. Pode contar com sua "boa vontade", jamais
satisfazer seus desejos. Não podendo, portanto, ser plenamente porta-
-vo2 de sua vontade, ele não terá nunca o gozo de toda sua f o r ç a i
A política não é, pois, o espelho das decisões jurídicas ou da escolha
voluntária das formas constitucionais. Eia é o campo onde as forças
sociais se batem e de onde nasce a possibilidade da vida social. Não é,
portanto, estranho que a liberdade seja um problema em todas as formas
de governo, uma vez que ela nasce do desejo de não-opressâo do povo,
e do resultado das lutas que ele desencadeia na "polis". Das formas
políticas, apenas as repúblicas podem se beneficiar inteiramente da força
e da potência que resultam dos desejos populares. Os principados civis,
adotando algumas características das repúblicas e beneficiando-se de
algumas de suas vantagens, e de algum de seus riscos, mostram-nos que
não basta um conjunto de boas leis para que tenhamos um regime apto
a conquistar e a resistir aos ataques. É preciso que o povo tenha a
certeza de ter onde afogar sua ira e seus desejos, para que a potência
seja o resultado de suas lutas contra os "grandes".

197. G, CADOM, op. clt., 178.


Capítuto )H

A AÇÃO FUNDADORA E A
CONSTRUÇÃO CONTÍNUA DA
LiBERDADE

Nossas análises anteriores conduziram-nos a concluir que Maquiavel


rompe de maneira decisiva com a tradição republicana florentina ao
analisar a construção da liberdade romana. Essa ruptura, no entanto, não
pode ser compreendida simplesmente como sendo a descoberta de uma
nova definição do conceito de liberdade. Para apreender sua profundi­
dade, é preciso explorar algumas sugestões lançadas em nosso capítulo
anterior. A principal dessas sugestões diz respeito ao papel do ator político
na construção de um regime livre. É daro que, enunciada de maneira
sucinta, essa nova exigência pode soar com o algo banal, pois os
humanistas cívicos não pararam de dizer que a república exige a parti­
cipação de todos os cidadãos, que somente da inclusão de um número
cada vez maior de atores no processo de decisão nasce a força de um
regime'. Essas afirmações tinham, no entanto, algo de abstrato, à medida
que nenhum dos pensadores Horentinos anteriores a Maquiavel havia
explorado a fundo as contradições existentes entre suas posições teóri­
cas e a natureza aristocrática do regime florentino do "quattrocento".
Essa ambiguidade tinha uma forte razão política de existir e nós a com­
preendemos muito bem quando examinamos os discursos públicos do
início do "cinquecento"^ Agir significava respeitar um certo número de
regras, ditadas tanto pela educação clássica, como pelas exigências po­
líticas mais imediatas. A nenhum dos humanistas ocorreu que a ação
política, sendo essencialmente criação, representava um risco para a
sociedade, assim com o a possibilidade de sua conservação.

1. Esse traço está presente mesmo em suas anáMses constitucionais. L. BRUNI, "On the
constitution of the Florentines" in E. CQCHRANE, H e RenatssatK% The Uníversity o f
Chicago Press, 1986.
2. Referimo-nos ãs "pratiche".
Maquiavel abre os ZMscoKH' fãlando-nos sobre a grandeza da funda­
ção, e apontando para as dificuldades de se tomar como modelo homens
como Rômulo, num período de decadência como o da Renascença^. Essa
primeira advertência serve para que não nos enganemos quanto à difi­
culdade de um estudo sobre a questão da ação. Se o agir político é difícil
de ser compreendido, isso se deve sobretudo ao fato de que temos de
compreender tanto a natureza do gesto criador — do gesto de fundação
— como a natureza do gesto de conservação, num mundo marcado pela
contingência. Nossa tareia será, portanto, apreender as diferenças e as
semelhanças que nos permitam falar da criação das novas formas polí-
ticas e compreender a razão de sua destruição. Para tanto, escolhemos
priorizar o estudo da criação dos regimes em situações em que a corrup­
ção já operou a destruição das condições ideais para a ação. Essa escolha
não está desprovida de riscos. Ela nos obrigará a prestar mais atenção ã
ação dos príncipes, que fundaram principados, do que à ação dos gran­
des generais romanos, que, através de sua "virtu", fizeram a grandeza da
república. Estamos convencidos, no entanto, de que, partindo do estudo
da questão da ação n '0 e associando-o à análise de temas
correlatos nos estamos sendo fiéis ao caminho de Maquíavel,
que, fazendo de Roma o paradigma da ação política, buscou sempre ver
no comportamento de seus homens o que ele tinha de universal e o que
podia servir de exemplo para os homens de seu tempo. O leitor, conhe­
cedor do terceiro livro dos Dásconn, podería objetar que aí encontramos
os exemplos da "virtu" que se exerce no terreno da liberdade, que aí
temos o exemplo de uma ação que se exerce em um mundo balizado
pelas exigências de uma sociedade acostumada a respeitar suas leis. Essa
é sem dúvida a ação que melhor revela a essência de um regime livre.
Dedicando-nos, em primeiro lugar, aos príncipes estamos mergulhando
em um terreno movediço, onde a criação é quase um desafio à lei, onde
o ator age na ilusão de ser um demiurgo que retira do nada o sentido
das linhas que desenha no mundo político. Trata-se, no mais das vezes,
de uma simples ilusão, mas que, por nos situar diante da ação como
criação absoluta, nos abre o campo para a compreensão do caráter cri­
ador da ação livre. Optamos por um desvio que certamente é uma visão
parcial da ação, mas que, por sua radlcalidade, nos parece capaz de
iluminar com uma luz diferente o caminho de construção de uma forma
livre de governo.

3. MACHIAVELLI, ZXycofsf, I, 9.
1. A POLÍTICA C O M O CRIAÇÃO; A FUNDAÇÃO
E A CONSERVAÇÃO

A oçõo dos pdhc/pes.' o conquRfo


Em nosso capítulo anterior, fixemos alusão à hipótese de que
Maquiavel utiliza certos recursos literários, e aborda certas questões, no
intuito de seduzir seus leitores. Essa sedução tem n' O PrÍMC%x? a forma
de um convite à ação. Logo nas primeiras linhas, ele oferece sua obra
como quem oferece um presente, cuja principal característica é ajudar o
destinatário a fazer aquilo que a realidade o obrigará de qualquer manei­
ra a fazer*. O estranho nessa oferta é que Maquiavel se dirige a Lourenço
de Médici na suposição de que ele não possui aquilo que é necessário
a seu sucesso —- "la cognizione delle azioni delir uomini grandi". Mesmo
descu!pando-se por sua presunção, o presente maquíaveliano não deixa
de trazer uma crítica àquele a quem é dirigido^, Maquiavel dá a seu saber
um alcance universal e isso nos garante que ele pode ser transmitido aos
outros homens. Fossem suas observações meras especulações, não terí-
am valor para os que querem governar. O saber, produto de uma longa
observação da experiência, é ao mesmo tempo um convite à ação e um
guia para os atores.
A dedicatória d' O Príncipe, no entanto, tem para o leitor dos
um sabor de provocação. Com efeito, Maquiavel chega a criticar em sua
obra republicana os que dedicam suas obras aos príncipes; fala de seus
jovens amigos, entretanto, como homens talentosos, que mereciam ocu­
par o lugar dos príncipes. Nosso autor pode, com justiça, ser acusado de
agir com ironia em relação a todos aqueles a quem dedica suas obras.
Nessa perpectiva, ele dedicaria seus escritos a pessoas em evidência
apenas para provar que o verdadeiro governante deveria ser o autor,
capaz de falar com tanta propriedade dos temas que interessam àqueles
que governam. Essa hipótese é plausível, mas serve apenas para ocultar
um problema muito mais complexo, que é o da unidade da obra
maquiaveliana.
Leo Strauss, que optou pela soiução que acabamos de sugerir, resu­
me assim sua visão da questão: "Tentaremos pois compreender a relação
entre os dois livros partindo da idéia seguinte: O Pr?*7?c%x? é a versão do
ensinamento de Maquiavel que se dirige aos príncipes reinantes; os

4. MACHIAVELU, # Príncipe, Introdução.


5. ídeni, Introdução.
1
i

Díycorsi, a que se dirige àqueles que poderíam vir a sê-lo'**. Podemos


concordar com Strauss, quando ele mostra que não existe necessaria­
mente uma contradição entre o sentido d'O Pbnctpc e o dos
mas dificilmente seguiremos sua sugestão de que o ponto de encontro
das duas obras é a crítica á teologia cristã?, também acreditamos que
devemos buscar um sentido para a unidade da obra, no lugar de nos
contentarmos com a simples afirmação de suas diferenças, não nos pa­
rece que o melhor caminho seja a redução do alcance de suas proposi­
ções. Falar do campo do político em Maquiavei como aquele unicamente
dos príncipes implica o esquecimento brutal de todas as suas reflexões
sobre as repúblicas, e, sobretudo, na redução da política à arte da con­
quista, em detrimento da ação virtuosa dos grandes atores republicanos,
que pouco tem a ver com o desejo de expansão dos principados". Man­
ter a diferença entre a ação dos príncipes e a dos republicanos não
resolve necessariamente nosso problema, mas fornece-nos uma pista
para transformar nossa leitura d'O ao mesmo tempo, em uma
investigação sobre o sentido da ação em geral e sobre a especificidade
da ação republicana.
* * *

O começa com a classificação das formas políticas em duas


grandes categorias: as repúblicas e os principados. Essa classificação
parece indicar que nossa sugestão anterior coincide com a intenção ini­
cial da obra, mas cometeriamos um engano em ver aí apenas um esforço
de delimitação do campo de pesquisa de nosso autor. É preciso notar
que, antes de mais nada, Maquiavei desfecha um ataque terrível à tradi­
ção, contentando-se com uma classificação extremamente simplificada
das formas políticas.^ Desde os antigos, e ao longo de toda a Idade
Média, estabelecer as diferenças entre a arístocaracia, a tirania, a oligar­
quia, a monarquia e a anarquia sempre tinha sido uma das tarefas fun­
damentais do pensamento político. Maquiavei despreza a tradição, dei­
xando de lado não só a multiplicidade das formas, mas também as con­
siderações sobre a natureza do Estado. Ele começa pela análise dos
diversos tipos de principado, separando os hereditários dos novos. Se os
primeiros se mantêm através da continuidade propiciada pelos costu-

6. L. STRAUSS, .OMMáss Payot, 1982, 52.


7. tdem, 163-164.
8. Ibidem, 107.
9. C. LEFOKT mostra toda a novidade desse procedimento com relação às obras da
Renascença: í e tnami/ /beMMie. 346.
10. MACHIAVELLI, M.
mes*°, os segundos oferecem o verdadeiro desafio para o estudioso da
política: "Ma nei príncipato nuovo consistono le difBcultà"*'.
As inovações são vistas por muitos intérpretes como o avesso da
verdadeira política. Se elas atraem o olhar do teórico, é porque nos
ajudam a refazer a geneaíogia das formas estáveis*^, mostrando que, lá
onde os costumes governam, os homens resistem melhor aos ataques
virulentos do tempo. Se aceitarmos essa hipótese símpiiftcadoía, seremos
obrigados a concluir que os principados hereditários possuem uma ca­
racterística que c o objetivo de todos os príncipes novos; a estabilidade*^
De certa forma, Maquiavei estaria de acordo com Santo Tomás, para
quem os costumes são uma espécie de segunda natureza, capaz de nos
fazer escapar da contingência da política ordinária. Nessa lógica, os prín­
cipes hereditários seriam meros guardiães da ordem estabelecida —
"perchê basta solo non preteiire Tordíne de' sua antenati"'*.
Se lembrarmos as criticas ferozes que Maquiavei faz, nos à
idéia de estabiiidade, seremos levados a pôr em dúvida a hipótese que
acabamos de levantar. Em primeiro lugar, o elogio dos principados he­
reditários é por demais exagerado, para que não suspeitemos das inten­
ções de nosso autor. É impossível não pensar em sedução quando ele
adere de maneira tão explícita à tradição, logo depois de tê-la despreza­
do. Em segundo lugar, a figura do príncipe novo aínda é uma incógnita
para nós e será preciso esperar os próximos capítulos para compreender
seu significado. Esse primeiro movimento do texto é, assim, uma mera
deíimitação do campo de pesquisa, que visa ganhar a adesão do leitor
que podería ter suspeitado das intenções radicais do autor.
Logo no com eço do terceiro capítulo, Maquiavei nos dá novos ele­
mentos para pensar nossa questão. Ele expõe com toda clareza as difi­
culdades que esperam aqueles que querem fundar um principado novo:
a natureza mutável dos homens e a desilusão que se segue a toda mudança
política^. O recurso à "natureza humana", para explicar os problemas
dos principados novos, é no mínimo estranho. Sem abordar a questão
propriamente antropológica, é difícil dizer por que Maquiavei recorre a
uma tal ordem de considerações, quando tratava-se simplesmente de
estudar uma diferença que se baseia nos fatos históricos. Seria necessário
mostrar como uma segunda natureza, baseada nos costumes, é capaz de

H . Idetn, m .
12. J. G. A. POCOCK, 7Be 358.
33- Pocock tüz: "He is contrasted with the heteditary prince, and so must be thought
of as stfivíng to attain the stahiiity o f the iatter", op. cit., 161.
14. MACHtAVELLI, 33 Prwc%x?, H.
15 . Ibidetn, IU.
evitar os inconvenientes próprios a toda transformação. Nosso autor, no
entanto, não fornece as explicações requeridas e passa a analisar a con­
quista de um ponto de vista g e r a iF a ia n d o da conquista de Aiiião por
Luís XH, Maquiavel retoma ao problema dos principados antigos. Vista
a partir das condições concretas da vida política italiana de seu tempo,
a estabilidade não aparece como uma "segunda natureza", como havía­
mos suposto, mas simplesmente com o uma resistência ao desejo de
expansão dos príncipes. O interessante nessa reviravolta maquiaveiiana
é que tanto a resistência à conquista, como a dificuldade de se manter
um país conquistado nascem do fato de que os desejos humanos são
variáveis e podem servir ao conquistador num dia e destruí-lo no outro.
Luís XII provou na pele essa instabilidade, quando viu virar-se contra ele
o mesmo povo que havia desejado sua vinda'?. Partindo de um caso
particular da conquista de uma cidade do Norte, Maquiavel enuncia de
uma maneira direta o que parece ser um saber universal da conquista;
"Perdeu, portanto, o Rei Luís a Lombardia porque não observou nenhum
dos termos observados por aqueles que conquistaram alguma província
e quiseram mantê-la"'". Mas não nos enganemos, Maquiavel não busca,
nesse momento do texto, construir um saber baseado em proposições
irrefutáveis; o que lhe interessa é demarcar no campo das ações huma­
nas, o lugar da conquista tido como o que melhor expõe o eterno
movimento que constitui a política. Luís XII, querendo conquistar a
Lombardia, nada mais fez do que seguir e aceitar uma das condições da
vida política: "...é coisa muito natural e ordinária desejar conquistar, e
sempre que os homens o fazem são louvados, e não repreendidos"'". Ao
íazê-lo, no entanto, ele exigiu de si mesmo um saber que não possuía,
passando a merecer o vitupério universal: "...mas quando eles não po­
dem, e querem fazê-lo de qualquer maneira, aqui estão o erro e a repre­
ensão'^".
A estabilidade, atributo dos principados hereditários, não pode ser
vista como uma garantia contra a conquista. Nenhum povo pode garan­
tir-se contra os apetites humanos, mas apenas erigir barreiras que dificul­
tem os ataques dos inimigos externos. A própria distinção que Maquiavel
havia avançado é por demais abstrata diante da universalidade da vonta-

16. Acreditamos que a afirmação de Pocock segundo a qual: "Usage is the oniy aitematíve
to fbitune ", op. cit., 160, está baseada na falsa idéia de que Maquiavel procura a estabi­
lidade como uma solução para os conflitos de classe.
17. MACHtAVELU, 7/ Ffwcipe, 111.
18. Idem, HL
19. Ibidem, 1H.
20. Ibidem, IH.
de de expansão. Um principado hereditário não é, dessa forma, o mo­
delo de regime que deve ser seguido por todos os povos. Revelando
uma dimensão da natureza humana, eles nos permitem pensar a política
como ação contínua, e não, como parecia ser, como luta pela estabilida­
de.
O terceiro capítulo, ao refazer o percurso de Luís XII, põe o proble­
ma das inovações no centro do pensamento maquiaveliano. Nesse sen­
tido, ele expande os limites do texto, que parecia destinado apenas a se
ocupar de questões referentes aos principados. O próprio Maquiavel
recorre a exemplos da república romana para ilustrar seu pensamento
sobre a conquista, sugerindo que nesse terreno nenhuma fronteira sepa­
ra as repúblicas dos principados^'. Luís XII fracassou porque foi Incapaz
de repetir os gestos dos generais romanos, que garantiram a expansão da
república de maneira tão espetacular. Maquiavel faz do desejo de con­
quista um desejo universal, ao qual devemos associar um saber prático.
Se o objeto privilegiado d '0 é o príncipe conquistador, isso não
quer dizer que ele não esteja submetido às mesmas exigências que as
repúbiicas, e que o conhecimento que venhamos a ter de suas ações não
possa ser transformado em conhecimento sobre a política em geral.
Estudando a conquista através do caso particular dos conquistadores
solitários, Maquiavel abre as portas para um estudo mais universal das
condições de criação e destruição de todas as formas políticas.
Considerando a questão dessa maneira, transformamos o ator polí­
tico em um ente abstrato, pois ele pode encarnar-se tanto em uma repú­
blica quanto em um príncipe, quando todo o capítulo é de um realismo
evidente, uma vez que as figuras citadas são personagens conhecidos da
história italiana. Nossa maneira de abordar o problema, no entanto, tem
o mérito de transformar o que pode parecer um análise banal das guer­
ras em uma arqueologia da conquista. Essa estratégia, além do mais,
parece ser a do próprio Maquiavel, que, dando ao seu discurso um tom
"universalista", não evita os embates contra a ideologia política florentina
em seus pontos essenciais. Encontramos um exemplo dessa estratégia de
sedução e combate no momento em que ele discorre sobre a velha
fórmula florentina de "ganhar tempo para tomar as melhores decisões".
Ele começa recorrendo à metáfora médica, tão em moda entre os escri­
tores da Renascença, para falar da necessidade de se preocupar com os
males do corpo, quando esses ainda não ganharam terreno^, e então

21 . Ibidem, III.
22. Não faremos aqui a análise das metáforas orgânicas usadas por Maquiavet, ainda
que seu estudo seja de grande importância pata a compreensão da noção de corpo poH-
tico. Remetemos o ieitor pata: F. GILBERT, "On Machiavelii's idea of virtü" in JfewtissaMce
JWws, 4, 1951; O Prúicipe, 111.
concluir de uma forma que não deixa dúvidas quanto ao seu verdadeiro
objetivo: "Pois os romanos, vendo surgir ao longe algum inconveniente,
sempre encontraram o remédio, e não deixaram jamais que eie tomasse
corpo para fugir de uma guerra, porque sabiam que da guerra não se
pode fugir, mas apenas adiar seu aparecimento em favor dos outros"^.
Claude Lefort resumiu essa maneira de compreender o fenômeno da
conquista dizendo: "Na história não existe nada além do que aparece,
quer dizer, as ações dos homens e os acontecimentos em tomo dos quais
elas se unem; e, por exemplo, a conquista é natural desde que a consi­
deremos como ordinária, como pertencendo à experiência politica pre­
sente e passada"^.
Até aqui, no entanto, não fomos capazes de operar a distinção que
dizíamos estar na raiz de nossos argumentos, ou seja, não fomos capazes
de dizer em que se funda a diferença entre o ator republicano e o prín­
cipe. Uma análise do quarto e do quinto capítulos d'O demons­
tra, entretanto, que a maneira com o abordamos a questão estava errada.
Estudando a campanha de Alexandre e as dificuldades que teve para
vencer, explorando as diferenças que separavam os turcos dos franceses,
Maquiave! nos mostra que, da exterioridade do conquistador, que visa a
seus adversários como puros objetos, devemos passar para a compreen­
são de que o mundo da violência, que caracteriza a guerra, é na verdade
um mundo marcado por complexas relações políticas^. O conquistador,
num primeiro momento, é apenas um destruidor que quer impor sua lei
e para quem pouco importa, na ótica dos que são o alvo de sua sede de
conquista, se se trata de um príncipe ou de uma república^. Mas o pró­
prio conquistador não pode deixar-se levar por essa imagem exterior da
conquista, pois sua ação será mais eficaz à medida que souber reconhe­
cer nas disposições políticas internas de um povo a fonte de sua resistên­
cia. É por isso que as repúblicas são mais difíceis de serem conquistadas
do que os Estados monárquicos. O povo, retirando sua coesão do respei­
to à liberdade — símbolo que a força não destrói — , é um adversário
muito mais feroz do que os súditos de um príncipe, cuja linhagem pode
ser destruída.

23. MACHIAVELLÍ, 7/ Príwcpw, IH.


24. C. LEFORT, op. dt., 358.
25. Idem, 361.
26. Estamos de acordo com Renaudet quando diz: "Pourtant le décret dívin qui condamne
ia socíété des hommes à parcourú* dans le même cercle sans issue la même course étemelle,
ne le pousse pas à mettre en doute le prix de 1'action. Au contraire, peu de doctrines ont,
plus que la sienne, exalté le prix de 1'effort individuel": op. cit., 132.
Maquiavel combate os jovens de seu tempo, que viam na força o
único elemento motriz da política, mostrando que nem mesmo uma
conquista levada a cabo pela força das armas se esgota no momento da
invasão. Ao contrário, os problemas militares são o sinal inequívoco dos
problemas políticos, que o conquistador terá de enfrentar se quiser ga­
rantir a durabilidade das novas instituições. Devemos, pois, distinguir a
conquista — momento da pura negatívidade — da fundação — momen­
to de criação do social. Essa é uma diferença que num certo sentido
interessa apenas ao teórico, porque um povo concreto é sempre ao
mesmo tempo conquistador e alvo da conquista, mas ela nos ensina a
pensar a força num universo povoado por um conjunto de condições
reais e imaginárias que fazem do conquistador um prisioneiro do mundo
que ele pretende submeter ao império de sua vontade. O exemplo
florentino era, nesse sentido, o de uma república cuja liberdade, expres­
sa na constituição, não correspondia à relação que o povo mantinha com
o Estado, e que, assim, se mostrou uma presa fácil no momento da
invasão espanholai Da conquista devemos, pois, passar ao problema da
fundação, que parece esconder os segredos dos grandes atores políticos.

1.2. O pdhc/pe novo; a fundação


O conquistador vitorioso passa, numa fração de segundos, da pura
negatívidade para a posição de criador. Se nenhuma fundação é uma
obra ax-Mz/d/o, se o conquistador reconhece as dificuldades da fundação
no momento mesmo em que tenta destruir as defesas da cidade, ele não
pode fazer nada de positivo para ajudar sua obra de criador de novas
instituições quando ainda ocupa a posição do invasor. Nesse instante,
ele pode servir-se de seus conhecimentos sobre o povo que ataca, para
melhor minar suas resistências, mas ele é apenas um corpo estranho que
não transforma sua ação em algo de positivo. Como inimigo, ele é a pura
exterioridade.
É claro que essa maneira de estudar a questão da fundação é muito
específica, pois considera apenas o caso extremo, no qual ela é resultan­
te da guerra. Nem toda fundação resulta do uso da força, como nos
mostra o próprio Maquiavel. Porém, não podemos deixar de reconhecer
que, procurando estudar a fundação em seu caso-limite, nosso autor
escolhe a maneira mais difícil de elucidar seu significado, mas talvez
também a mais fecunda. Passado o momento da conquista, estamos

27. Referimo-nos aqui aos primeiros capítutos do segundo livro dos DRcorsi.
diante do empreendimento mais importante que pode ser analisado pelo
teórico da política: a fundação de um principado novo^.
Maquiavel procura traçar um perfil detalhado desse momento, como
reconhece no sexto capítulo: "Não devem se espantar se ao falar dos
principados novos, dos príncipes e dos Estados eu utilizar grandes exem­
plos"^. Esses grandes exemplos são buscados em figuras como Moisés,
Ciro e Rômulo; homens cuja principal característica foi a de terem pos­
suído uma "virtu" excepcional. Com isso, Maquiavel sugere que a ação
humana mais difícil e mais importante é a fundação; e que aqueles que
a executam com a ajuda apenas de seus próprios méritos, sem contar
com os favores da "fortuna", merecem o primeiro lugar na galeria dos
grandes homens: "E deve-se considerar que não existe nada mais difícil
de tratar, nem mais duvidoso de se conseguir, nem mais perigoso de se
manejar, do que se transformar em chefe e introduzir novas leis"^.
Essa primeira afirmação, que nos confronta com o problema da
fundação através do estudo de figuras exemplares, é na verdade uma
maneira sutil de nos ensinar a complexidade da questão. De fato, nosso
autor usa o termo "príncipe" para nomear alguns fundadores que tam­
bém serão objeto de suas análises nos quando ele se dedica a
estudar a fundação das grandes repúblicas^'. Se o objeto d'O é
inequívoco — o príncipe novo — , nosso autor autoriza-nos a pensar que
.a problemática da criação de novos principados não é fundamentalmen­
te diferente daquela da criação de novas repúblicas. Ao contrário dos
humanistas cívicos, que buscavam de todas as maneiras possíveis provar
a originalidade da fundação de Roma e de Florença, Maquiavel procura
mostrar que todos os que pretendem criar novas leis terão de vencer
uma série de obstáculos, independentemente da forma que pretendam
dar ao novo regime^. Confrontados a um corpo social, que guarda a
memória de suas antigas leis^, os fundadores aprendem que toda forma

28. C. Lefort diz a esse respeito: "Sans doute ia fondation de PEtat est-elte i'entreprise
la p)us noble, !a pius périUeuse et )a pius gtorieuse qui soit offerte à !a réflexion du
théoricien, puisqu'ei!e confere à un peupfe son identité pofitíque et qu'efie requiert du
prince que s'y aventure la virtu la pius haute", op . cit., 369.
29. MACHIAVELÜ, áí VI.
30. Idem, VI.
31. Quando comparamos esse capítufo com o sexto d'OF7fucipe, e!e adquire uma nova
significação.
32. Os intérpretes contemporâneos estão quase sempre de acordo em dizer que O
é um tratado sobre a inovação Ver, por exempio: Pocock, op. cit., 172; L. Strauss,
op. cit., 154; F. Chabod, op. cit., 55.
33- MACHIAVELLI, ZXscotsi, H, 5-
política é o resultado de uma ação humana localizada no tempo, e não
o desenvolvimento da essência etema de um povo.
Essa apreciação não implica dizer que todos os fundadores são iguais.
Maquiavel oporá aos grandes fundadores a figura sombria do "profeta
desarmado" — Savonarola — , que, perdido em seu sonho milenarista,
não foi capaz de compreender que ocupava o mesmo lugar de Moisés.
Dois são os alvos de nosso autor nesse momento do texto. De um lado,
os humanistas, que acreditavam que as raízes de uma sociedade deviam
ser buscadas em sua história passada, e não nas ações presentes de seus
homens^*; de outro, os "profetas", que não viam que toda renovação
implica a repetição da fundação, ou para falar a linguagem de Maquiavel,
uma fundação contínua^. É por isso que, no sétimo capítulo, Maquiavel
analisa uma figura que pareceu compreender plenamente todas as exi­
gências de uma nova fundação: César Borgia.
Maquiavel conheceu César Borgia como enviado de Florença, quan­
do o príncipe estava no auge de sua carreira^. Suas impressões sobre
esse conquistador foram registradas, sobretudo, em seu célebre escrito:
ár/ jDMCí? e, mais tarde, em seu Descrtzrione

O/zn^roMo Fermo, i/ stgnor P%go/o e % D uca Otymz. Já


nesses primeiros escritos, aparece a forte influência que terá a figura do
Dnc% sobre o secretário florentino. Como observou Sasso^, Maquiavel
viu nele, desde o começo, o príncipe capaz de compreender em toda sua
dificuldade a grandeza da ação fundadora, que ele tentou realizar por
todos os meios disponíveis. Como modelo do "príncipe novo", ele não
deixaria de atrair para o secretário florentino muitas das críticas que lhe
foram feitas em vida. Estudar a relação complexa desses dois persona­
gens escapa aos nossos propósitos,^ mas não podemos deixar de notar
que a análise de seu comportamento esclarece um aspecto essencial do
pensamento maquiaveliano sobre a questão da fundação.
Anteriormente, Maquiavel fizera a distinção entre os fundadores,
levando em conta a "virtu" de cada um deles e sua independência em
relação à "fortuna". Ele observara, além disso, que na Itália de seu tempo

34. MACHtAVELLI, Ví VHHCpe, W.


35- O termo já foi usado antes por Leo Strauss.
36. Maquiavel foi nomeado embaixador junto à corte de César Borgia em outubro de
1502, permanecendo no cargo até janeiro de 1503.
37. G. SASSO, Mccoío MacAiave/A, i! Mulíno, 1980, 69.
38. Para um estudo detalhado da questão ver G. SASSO, AfacA&rfeí# e ássare 2&vg%a,
Elenchos, 1966.
os principados eram conquistados ou pela "virtu", ou com a ajuda da
"fortuna". É precisamente nesse segundo caso que o va!or da ação se
revela plenamente, pois, se a "fortuna" é generosa num primeiro mo­
mento, submete o conquistador às mais duras provas depois de ter-lhe
dado tudo. Nosso autor não hesita assim em dizer que "...não saberia dar
melhores conselhos a um príncipe novo do que o exemplo de suas
ações", pois se ele fracassou não foi culpa de suas ações, "mas de uma
extraordinária e extrema maldade da fortuna"^. César Borgia é o
paradigma do "príncipe novo", porque teve de exercer sua "virtu" em um
universo político onde todas as foiças conspiravam contra seu sucesso.
No meio de seus combates, ele não pôde nem mesmo reclamar para si
os favores divinos — como fizera Savonarola — , mas teve de lutar ao
mesmo tempo contra as forças inimigas e contra uma imagem que o
condenava. Podemos até concordar com a hierarquia dos fundadores
proposta por Pocock, que estabeiece uma diferença entre o legislador, o
profeta e o príncipe novo'^. A análise de César Borgia no entanto, tem
o mérito, pata além das classificações, de nos lembrar que a fundação é
na sua essência, como mostrou Maquiavei nos ZlAcwyf um gesto solitá­
rio^, que cria as leis de um povo, suas representações e suas fraquezas.
Mas ela também está ancorada na história, no círculo dos acontecimen­
tos, e deve ser renovada sempre, sob pena de perder a força inicial.
Buscando compreender a trajetória de César Borgia, Maquiavei nos mostra
que a fundação não pode ser confundida com os momentos memoráveis
do passado, nos quais acreditavam mesmo os florentinos mais céticos a
respeito dos destinos de Plorença, com o era o caso de Rucellai^, mas
que ela se aparenta diretamente com as ações mais corriqueiras do pre­
sente. O que parecia ser assim a "primeira ação" revela-se como a ação
por excelência do ator político. Maquiavei não quer dizer com isso que
César Borgia e Rômulo sejam fundadores idênticos, ou que não se pode
estabelecer nenhuma diferença entre os fundadores de uma república e
os fundadores dos principados. Ele nos mostra, ao contrário, que o re-

39. MACHIAVELU, 7? VII.


40. Pocock afirma; "/I Príncipe continues to be about new princes, but the new prince
belongs to the class of innovators, to which tegislators and prophets a!so belong": op. cit.,
172, mas ele continua: "...that the new prince is not a potential legislator, and that the
legisiator is an ideal type situated at one extreme of the category of innovators, of which
genus the new prince is a species".
41. Nos Dtsconfí, I, 9. ele nos diz: "...considerando adunque tutte queste cose, conchiudo
come a ordinate una republica è necessário essere solo".
42. F. GíLBERT, "Remado Rucellai e gli orti Orícellari" in e % m o tempo,
11 Mulino, 1977,15-66.
sultado da fundação não é independente da vontade do criador. Tam­
bém não é, entretanto, o espelho Hei de seus desejos, uma vez que todos
os fundadores devem enfrentar uma série de obstáculos, próprios a toda
ação humana, e que muitas vezes produzem um resultado muito diferen­
te daquele almejado no começo.
No oitavo capítulo, Maquiavei analisa o caso extremo da fundação
operada pelos "celerados", que não contam nem com a ajuda da "virtu"
nem com a ajuda da "fortuna". Tomando o exemplo de tiranos como
Agátocles da Sicííía, ou ainda o de Oliverotto da Fermo, insiste em mostrar
que homens que não contaram com nenhuma ajuda — "não se pode
atribuir à fortuna ou à virtu aquilo que sem uma e sem outra eles con­
s e g u ir a m " ^ — , e que não hesitaram em agir contra a fé, "matar seus
concidadãos, trair seus amigos," enfrentaram os mesmos desafios dos
grandes homens. Para explicitar sua tese, Maquiavei diz que nas piores
loucuras de Agátocles havia algo em comum com os gestos dos grandes
fundadores: "...porque, se se considerar a 'virtu' de Agátocles ao entrar
e ao sair dos perigos, sua capacidade para suportar as coisas adversas,
não se vê de que maneira ele possa ser julgado inferior ao melhor dos
capitães"^. Mas nosso autor conhece o alcance de suas palavras, ele sabe
que a comparação entre a figura de um dos piores tiranos da Itália e os
generais romanos era por demais explosiva para deixar de atrair a ira de
seus leitores. Assim, depois de sugerir que havia alguma virtude nas
ações dos tiranos, ele se apressa em dizer que, apesar dessa aparência,
não podemos empregar o termo "virtu" para homens celerados que não
se detêm diante de nenhuma crueldade^. Esse aparente recuo não deixa
de produzir os efeitos desejados. Se Maquiavei escapa aos riscos de ser
acusado de defender a tirania, não deixa de desfechar um terrível ataque
contra a tradição humanista no momento em que mostra que, apesar de
não poderem aspirar à glória, os tiranos participam do jogo político, da
mesma maneira que todos aqueles que desejam ver impressas no mundo
as marcas de sua vontade.
Ao diferenciar os tiranos dos grandes fundadores, no entanto,
Maquiavei faz mais do que evitar o desprezo de seus contemporâneos;
ele evita um duplo equívoco. Em primeiro lugar, ele nos mostra que não
podemos pensar a política como algo que prescinde inteiramente da
moral tradicional*^. Sugere, ao contrário, que é na escala dos valores

43. MACHIAVELH, H Arfnc%M, Vm.


44. Idetn, Vt!I.
4$. Ibidem, VHI.
46. Essa é a interpretação de L. Strauss. Fazendo de Maquiavei um combatente anti-
cristão, Strauss confere um valor à moral tradicional, que não corresponde, a nosso ver, ao
sentido da obra maquia veliana.
tradicionais que buscamos a fonte de nossas representações e, assim, é
com eía que julgamos os atos de nosso governantes. Porém, não pode­
mos deduzir daí que a religião tradicional seja a maneira mais segura de
compreender a política. Nesse momento do texto, podemos ser tentados,
como C a s sire r ^ , a afirmar a independência da política com relação à
ética, o que certamente nos impediría de compreender os laços profun­
dos que toda ação guarda com a imagem que produz. Preferímos, ao
contrário, conciuir que toda ação confronta o ator político com a
indeterminação do mundo humano e, contraríamente ao que acredita­
vam os pensadores cristãos, que a viam como o fruto exclusivo da de­
cisão da vontade, só revela sua essência através da rede de significações
que instaura e dentro da qual a história se faz.^ Por isso, não podemos
jamais simplesmente deixar de lado as representações correntes dos
homens. Se a fundação é obra de um só — o príncipe novo — , não pode
ser eficaz se não escapar da lógica da pura força. É preciso que desde
o começo os homens possam acreditar na grandeza dos gestos do prín­
cipe, para que ele próprio possa criar uma imagem de sua obra.
Mais uma vez a idéia de sedução nos vem ao espírito. Maquiavel
reserva para a moral um lugar em seu pensamento, mas esse aparente
vínculo com a tradição implica, na verdade, a destruição de muitos de
seus conceitos básicos. Na tensão entre a ruptura e a adesão, ele nos
convida a seguir seus passos^.
No nono capítulo, depois de ter mostrado, através do estudo das
ações de César Borgia, que a fundação é a combinação entre o gesto de
força do príncipe — ela não pode prescindir do medo — e a adesão às
novas instituições, Maquiavel abre as portas para o estudo de uma nova
dimensão da vida política e que ficara nas sombras no momento da
fundação: a conservação. Temos tendência a ler O Prmripe como um
tratado rigoroso, no interior do qual as questões se sucedem numa lógica
sem falhas^. Ao apresentar o problema dos principados novos, Maquiavel

47. " íTfnce is neither a morai nor an immorai book; it is símpfy a thecnicat book":
E. CASSíRER, of .Rníe, 153-
48. C. Lefort afirma: "De cette incertitude on ne se déiivrent pas non plus en refusant
ihypothèse, c'est-à-dire en condamnant te mal à son origine pour ne pas avoir à juger des
consáquences, car il ne s'agtt pas tant d'apprécier ia conduite d'un homme que de chercher
ie sens d'une situation dont nous ne saurions nous détoumer qu'en faissant hors de nos
prises une part de Pexpérience": op. cit., 378.
49. Num sentido diferente Strauss escreve: "Une des caractéristiques du JTince, c'est de
s'artícuier autour de deux paires d'opposés: à ia fois traíté et texte de combat, il conjugue
un extéríeur traditionnei ã un inténeur rêvofutionnaire* op. cit., 89.
$0. Para um estudo do como um tratado cfássico de poiítica ver: A. GILBERT,
PTiKce and #s Duke University Press, 1938.
parece limitar-se a dizer quais são as condições nas quais um tal tipo de
principado pode nascer. Assim, depois de ter falado dos legisladores,
dos profetas e dos príncipes novos, poderiamos acreditar que o novo
estudo proposto é apenas uma análise comum de uma forma diferente
de fundação. Uma leitura mais atenta do texto mostra-nos, no entanto,
que algo novo foi introduzido no pensamento de nosso autor.
Até aqui o príncipe vira no povo um conjunto indiferenciado, que
resistia mais ou menos â fundação das novas instituições. O príncipe que
chega ao poder pelas mãos de seus concidadãos tem uma visão diferente
dessa "massa informe". Ele percebe que seu poder só pode se originar
nos desejos da "plebe" de se ver livre da opressão, ou no medo dos
"grandes", que, para resistir, ao povo escolhem um príncipe "per potere
sotto la sua ombra síbgare ii loro appetito"^'. Maquiavel retoma aqui à
divisão fundamental da sociedade em dois desejos opostos. Nos Z%co?S3,
ela serve para mostrar o fundamento da liberdade, n '0 demons­
tra que o saber do príncipe jamais é um saber absoluto da ação. Nosso
autor conduz o leitor a pensar que a principal lição que o príncipe deve
retirar da existência na cidade de desejos inconciliáveis ê a da necessida­
de de saber adaptar-se às mais diversas situações^. Mas essa constatação
esconde algo muito mais importante. Com efeito, ao dizer que os desejos
existentes na "polis" são inconciliáveis, ele sugere que não podemos re­
duzi-los a uma contradição simples, da qual é possível encontrar a sínte­
se. Não querendo ser oprimido, o povo passa a ter um papel na fundação
que não é apenas o de resistir à conquista e o de ser a matéria sobre a qual
a criação se efetua. Somos levados a reconhecer que não há ação de
fundação que não implique, ao mesmo tempo, a presença do criador-
-príncipe e a resistência criativa do povo. O paradoxo da força é que eia
tem sua origem exatamente no elemento social que não pensa em usá-la
para criar novas formas, mas apenas para resistir à violência dos conquis­
tadores. Por isso foi possível ao 'Turco" destruir todas as resistências
internas ao seu poder, mas, ao fazê-lo, transformou-se em presa fácil para
os inimigos que conheciam o vazio de sua dominação.
Ao expor a teoria dos dois desejos que habitam a cidade, Maquiavel
não apaga as diferenças evidentes que existem entre as repúblicas e os

51. MACHIAVELü, 7/ -PHnc%x?, IX.


52. C. Lefort afirmou sobre esse ponto: Toutefois, que la thèotie et la pratique ne se
confondent pas, c'est encore de ia théoríe que nous l'apprenons. En afürmant la permanence
du eonflit, en rejetant 1'ídée qu'une forme politique porte en soi ia stabüité, le penseur
reconnaít fa permanence des aócidenfs, et par conséquent, designe la ibnction du prince
comme ceüe d'un sujet qui conquiert la vérité dans un mouvement condnué de rationalisation
de 1'expédence": op. cit., 357.
*
principados, mas força-nos a nuançar nossas conclusões sobre a funda­
ção de novas formas políticas. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o
que deve ser entendido por "resistência ativa do povo". Em nenhum
momento nosso autor diz que o povo pode efetivamente "fundar" um
novo regime. Toda fundação, pelo menos em seu primeiro momento, é
tt fruto do ato solitário de um legislador. Esse momento, no entanto, não
Í!/ dura, não finca raízes no tempo e, assim, pertence a todos os regimes,
indistintamente. Uma vez que o novo poder tiver encontrado seu lugar,
serão as exigências da conservação que comandarão a produção de
# ' * novas leis. Em um principado, o príncipe guarda para si o direito de criar
novas instituições. Em uma republica, o legislador transfere esse direito
para o corpo político. Nos dois casos, porém, o brilho da fundação é
rapidamente eclipsado pelas tarefas que a necessidade da conservação
impõe aos novos poderes. A diferença das constituições, portanto, é
estabelecida pelas soluções que cada regime dá aos conflitos de classe.
É pela conservação que podemos medir a eficácia de uma política.
Antes de passar a analisar a questão da conservação, é preciso evitar
alguns equívocos que nossas afirmações podem ter suscitado. Afirmando
que a fundação não deve ser julgada por sua duração, não queremos
dizer que ela não tem importância na história concreta dos homens. Ao
contrário dos humanistas cívicos, Maquiavel quis justamente mostrar o
quanto era abstrata uma história transformada em objeto de veneração.
Nesse sentido, César Borgia "fundou" um principado como Moisés, mas
Maquiavel não se restringiu a essa constatação, ele quis afirmar a
especificidade do momento que dá origem às leis fundamentais de um
povo. Mais uma vez, ele tinha como adversários os humanistas, mais
uma vez, deixou de lado a idéia da exemplahdade da fundação, para
mostrar a necessidade, para todas as formas que querem resistir ao tem­
po, de uma fundação contínua. Nesse sentido, a realidade dos conflitos
de classe, a corrupção e o império da "fortuna" são fenômenos que nos
impedem de pensar a política como um produto puro da vontade dos
diversos atores^. Confrontando-nos com a complexidade da política,
Maquiavel nos ajuda a restabelecer uma hierarquia, que parecia fundada
num simples olhar positivo sobre "as coisas do mundo".

53- Nesse sentido, adiamos que não se pode compreender a ação, partindo-se exciu-
sivamente da teoria da vontade, como querem alguns historiadores das idéias: "Action in
his sense suggests self-conscious and purposeful motion, seif-directed doing for the
accomplishment o f the goals upon which the actor has deliberated". N. WOOD, "Machiave!H's
humanism o f action" in A. PAREL (e d ), The FbAfica/ Ch/cuÍMS, Universíty o f Toronto Press,
1972, 34-
Em seu percurso, Maquiavel efetuou um duplo movimento com
relação à tradição. De aproximação, por saber compreender a importân­
cia da questão da fundação para todo pensamento político^. Suas pala­
vras ecoam ainda as lições de Cícero que dizia: "Nada aproxima mais a
virtude humana da divina do que a fundação de cidades novas ou a
preservação de cidades já fundadas"^. Afastou-se, porém, tanto dos
pensadores romanos como dos humanistas, ao mostrar que a fundação
devia ser pensada à distância do elogio repetido dos momentos exem­
plares do passado. Para ele, a fundação é por excelência a ação de
criação do social, uma ação que deve renovar-se ao longo de toda a
história de um povo e que deve ser diferenciada da conservação, tal
como ela era concebida pelos homens de seu tempo.

1.3. Po/íKco e represenfação; primeira oborcfogem ba


conservação
Toda fundação traz consigo a exigência de uma política de conser­
vação. No final do segundo capítulo, Maquiavel já tinha advertido o
leitor, ao dizer: "...porque toda mudança traz consigo o germe de uma
outra mudança"^. Nesse ponto do texto, podíamos ainda ser tentados
pela imagem da oposição radical entre as formas estáveis de governo e
as formas novas. Mas as críticas radicais disparadas por nosso autor
contra a ilusão dos homens de seu tempo — a de que o objetivo de toda
política é a estabilidade — , faz-nos mais uma vez suspeitar de suas
intenções.
No momento em que o legislador ou o príncipe "decidem" criar uma
nova forma política, são tragados pela necessidade de agir^. Essa "neces­
sidade de agir" mostra-nos simplesmente que todo ocupante do poder
tende a lutar por sua conservação, a conservar os eleitos de sua conquis­
ta e, assim, fazer durar no tempo os efeitos do "primeiro gesto". Esse
confronto do ator político com a conservação é, acima de tudo, o conffon-

54. H. ARENDT, La crise í/e Gatiimard, 1988, 202.


55. CÍCERO N, D<? ia Gamier-Fiammarion, 1%5, t7. É preciso observar que
Maquiavel não conhecia esse texto, que só foi redescoberto em 1820.
56. MACHIAVELÜ, íi P rtn cp ^ 11.
57. Apesar de não estarmos de acordo com as conclusões de Pocock, suas análises
parecem-nos bastante interessantes. "Here it is simply assumed that by the fact of hís own
irmovation, the piince inhabits a context in which human behavior is only partty tegitimized
and oniy partty subjected to the rules of morality. Consequently, the intelligence of the
prince — his nírfti — includes the skiH necessary to know when it is possible to act as if
the rules o f motaiity (whose validity in itself is nowhere denied) were in force and to be
relied on as goveming the behavior o f the others, and when it is not"; op. cit., 177 .
to do ator com o tempo e suas mazelas. No momento da fundação, ele
se defronta com todas as dificuldades do agir humano, mas não tem de
se preocupar com as raízes temporais de seus gestos. Passado o brilho
do primeiro momento, sua "virtú", que foi capaz de quebrar a ordem das
coisas do mundo, vê-se ãs voltas com a "fortuna". Esse confronto, no
entanto, não é o mesmo em todas as formas constitucionais. Podemos
mesmo dizer que, se a conservação confronta o teórico com o problema
da ação de maneira privilegiada, ela o faz porque o confronta não só
com os imperativos da resistência á contingência e com a possibilidade
de corrupção do corpo político, mas, sobretudo, porque revela a dimen­
são essencial da "fortuna" para a vida política. Ainda é cedo para tratar­
mos da polaridade "virtu-fortuna", mas desde já podemos ver que ela
parece resumir os impasses de uma teoria da ação. Continuemos nosso
caminho.
A partir do décimo segundo capítulo d'O Maquiave! deixa
de lado os problemas da conquista e passa a estudar as relações que se
estabelecem entre o novo poder e os súditos. Mesmo sem nos ocupar
com os detalhes da argumentação maquiaveliana, é possível reter algu­
mas conclusões importantes para nosso estudo da liberdade. Em primei­
ro lugar, descobrimos a importância da questão militar no pensamento
de nosso autor. É na consideração dos aspectos militares da cidadania
que Maquiavel esclarece o lugar cio povo na construção de toda forma
política. Nas repúblicas, já havíamos visto, cabe ao povo a guarda da
liberdade; nos principados cabe-lhe a defesa contra os inimigos. Se essa
tarefa existe também nas repúblicas, considerada do ponto de vista dos
principados, eia nos permite a compreensão de uma dimensão da força
popular que não pode ser deixada de lado em nenhuma forma consti­
tucional. Por ser o único capaz de salvar a cidade das ameaças externas,
o povo é também o único a assegurar a estabilidade interna. Sua "virtu"
é de outra natureza que a do príncipe, mas não pode ser esquecida em
nenhum regime que queira se resguardar dos eleitos do tempo. Maquiavel
conclui: "... sem exército próprio, nenhum principado é seguro; ao con­
trário, é obrigado a se defrontar com a 'fortuna', não existindo 'virtú' que
na adversidade seja capaz de defendê-lo"^.
Uma segunda conclusão completa o quadro de nossas análises. Ao
longo de nossa interrogação sobre as repúblicas, aprendemos que elas
devem ser compreendidas através da análise das ações que as fundaram
e que as sustentam. Para dar consistência à essa idéia, Maquiavel fez toda

58. MACHtAVEUJ, // XOI.


uma crítica da tradição florcntina, mas também da romana (Poiíbio), que
procurava ver nos mitos as imagens capazes de nos desvelar os segredos
do funcionamento dos diversos regimes. Se é evidente que o estudo da
história é de grande valia para nossa busca, nosso autor nos faz ver que
cie só é eficaz quando deixamos de lado a busca da constituição perfeita,
que podería nos servir de modelo em todas as situações. Podemos dizer,
então, que cada regime vem ao mundo pela fundação, que condiciona
seu destino, mas eies só encontram sua essência no movimento que os
conserva. A conservação de um regime não pode, no entanto, ser enten­
dida pelo simples recurso aos modelos abstratos ou à história, ela é fruto
da ação criativa dos homens. Se ela depende evidentemente da eficácia
das instituições criadas pelos fundadores e das resultantes do conflito de
classes, guarda uma dimensão inovadora da ação, que não pode ser
subsumida por nenhuma regra institucional. É na compreensão dessa
dimensão infinitamente instituidora da ação humana que Maquiavel se
lança a partir do décimo quinto capítulo.
Esse capítulo começa com uma referência que se tomou célebre na
história de interpretação da obra. Maquiavel, depois de se desculpar por
sua pretensão, diz: "Mas, sendo minha intenção escrever algo de útil para
quem por tal se interesse, pareceu-me mais conveniente ir direto à ver­
dade efetiva (wrtaá das coisas, do que à imaginação dos
mesmos, pois muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos
ou conhecidos como tendo realmente existido. Em verdade, hã tanta
diferença de como se vive e como se deveria viver, que aquele que
abandone o que se faz por aquilo que se deveria fazer, aprenderá antes
o caminho de sua ruína do que o de sua preservação"^,
Quando se trata de discutir aspectos metodológicos do pensamento
maquiaveliano, é sem dúvida a esse capítulo que os intérpretes recor­
rem. A idéia de uma "verità effettuaíe", que se opõe "alia imaginazione",
serviu como critério para distinguir o realismo de sua obra do "idealis­
mo" dos humanistas. F. Gilbert, por exemplo, afirma sem meias medidas
que o realismo moderno nasceu com esse capítulo, "no qual Maquiavel
fala dos princípios subjacentes a todas as suas observações"^*.
Mas nem todos os intérpretes acreditaram poder resumir o ponto de
partida de Maquiavel a uma única observação. Se é evidente que o
referido capítulo é essencial para a compreensão do "método" de
Maquiavel, seda estranho que um autor tão complexo se tivesse deixado

59. Idem, XV.


60. F. GILBERT, "li conceito umanistico di Príncipe e íí 'Principe' di MachiaveHi* in
Í%2CJ&&H3S%% Ê* % SMC 171.
aprisionar em uma fórmula aparentemente tão simples. Para fugir dessa
simplificação, alguns interpretes recorreram a textos como a carta de
Maquiavei a Francesco Vettori do dia 29 de abril de 1513, na qual analisa
as relações da França com a E sp a n h a ''*. De posse desse material, chega­
ram a novas conclusões. Sasso afirma: "Por isso, no lugar de um princí­
pio unitário que, sendo real, contenha em sí, sem divergência ou contra­
dição, a 'ratio', existem dois princípios de qualidade diversa e nâo ime­
diatamente coincidentes: a realidade e a 'ratio'. Como a realidade é de­
sordem e insegurança, a 'ratio' deve vencê-la, freá-la, ordená-la"^.
Embora não seja nosso desejo discutir em detalhes a questão do
realismo em Maquiavei, a interpretação de Sasso ajuda-nos a evitar certos
equívocos. É preciso reconhecer, em primeiro lugar, que o secretário
florentino se dedicou a atacar todos os pressupostos metafísicos que
comandavam as análises políticas de muitos dos humanistas. No entanto,
quando ele nos faia dá "verità effettuale", não podemos deduzir que, do
abandono da idéia de uma comunidade reguladora ideal, possamos passar
a uma comunidade "real", cujos contornos seriam transparentes. Se ele
se lança, a partir do décimo quinto capítulo, à análise das virtudes asso­
ciadas à prática política, seguindo um caminho clássico, é porque sabe
que o real não pode ser alcançado como um alvo pelo olhar exterior do
príncipe. O real, sendo fruto da ação criativa dos homems, não é um
lugar que possa ser designado como uma essência fixa fora do tempo.
Produto da capacidade demiúrgica dos atores políticos, ele traz em si o
veneno da contingência. Maquiavei, é verdade, convida-nos a abandonar
os conceitos metafísicos dos humanistas, mas não sugere com isso que
possamos substituí-los por uma ciência inteiramente positiva (realista) da
política. O que parecia ser uma característica das repúblicas, a saber, que
elas só existem pelas ações de fundação e criação de seus habitantes,
mostra-se como a verdade de todas as formas políticas. Por isso, o prín­
cipe que deseja conservar seus domínios tem de abandonar a idéia de
que o poder pode ser resumido ao exercício da força, para buscar raízes
em sua dimensão simbólica e imaginária.
Para continuar seu caminho, Maquiavei escolheu a rota dos "speculum
principis", que, desde o "trecento", faziam parte da literatura política
italiana^. Escolhendo a forma desses pequenos tratados, o secretário

61. MACHIAVELÜ, Feltrínelli, 1981, 250.


62. G. SASSO, op. cit., 310.
63. Veja, sobretudo, a introdução ao livro jã citado de A. Gilbert. Para uma relação
completa dos "speculum principis" escritos do sécuio XIÍ ao século XVI ver: L. K. BORN,
"Erasmus on Political Ethics" in TWtfíca/ Science Quátfer^ XUII, 1928, 541.
escolheu também tratar a questão da dimensão simbólica do poder atra­
vés das noções morais herdadas da tradição cristã. Assim ele põe o
problema como uma questão técnica que pode ser solucionada pelo
recurso aos manuais da boa conduta pública. Não resta dúvida de que,
quando Maquiavei se deixa aprisionar tão facilmente pela estrutura tra­
dicional dos panfletos moralizantes de sua época, mais uma vez pensa
em seduzir seus leitores. Mas ao lançar a discussão em tomo dos "valo­
res", nosso autor não se esquece de que seu verdadeiro problema é o da
conservação do poder e, por consequência, que nenhuma das exigências
do décimo quinto capítulo podem ser deixadas de lado. Ao valor ético
indiscutível das virtudes tradicionais, contrapõe a realidade da ruptura
do corpo político instaurada pelos dois desejos opostos que o habitam.
A conservação, que num primeiro momento parece uma tarefa "prática"
do príncipe, toma-se um problema extremamente complexo, quando
associada à idéia de que nenhuma transparência é possível no universo
das ações humanas. Nesse terreno, as virtudes cristãs podem talvez garantir
um comportamento humano, mas não a sustentação do poder. O misté­
rio da conservação, no entanto, é que, se ela não pode ser assegurada
pelo recurso aos valores éticos tradicionais, também não pode simples­
mente esquecê-los. No momento de agir, os homens representam suas
ações de acordo com uma certa escala de valores. Acontece que muitas
vezes essa escala de valores é justa mente aquela que se mostrou incapaz
de explicar a natureza do gesto que agora deve justificar. Os homens,
incapazes de discernir entre o ser e a aparência das coisas, acabam por
se fiar no que vêem e por compreendê-las com os instrumentos que
herdaram, sem que uma verdade efetiva das coisas possa mostrar-se
translúcida a seus olhares desejosos de saber. Não podendo desvelar o
segredo íntimo do mundo, somos levados a representá-lo.
O príncipe, para manter o poder, tem de considerar o fato de que sua
existência suscita uma imagem de seu poder. Dado que não pode con­
fiar na "essência" de seu gesto — na intenção, no sentido agostiniano — ,
deve tentar produzir uma leitura de suas ações que possa ser aceita pelos
súditos como a verdade de seus movimentos. Poderiamos ser tentados,
nesse momento, a acreditar que Maquiavei substitui o "Bem", no sentido
em que é empregado pelos antigos, pelo "útil". Para que tal interpretação
fosse verdadeira, seda necessádo, no entanto, que o príncipe tivesse um
controle absoluto sobre todas as dimensões do poder, inclusive a imagi­
nária^. O que Maquiavei nos ensina é justamente o contrádo. O pdncipe

64. C. LEFORT, op. cit., 405-


é prisioneiro do jogo de produção das imagens, ele mesmo só é príncipe
porque os outros o representam como tal. Nesse jogo, pode apenas
evitar que suas palavras ou gestos pareçam estar em contradição com a
escala de valores tradicionais, que normalmente serve de guia para os
julgamentos dos homens. Mas essa escala, sendo ela própria fruto da
interação da tradição ética com o presente, não pode ser inteiramente
conhecida por n in g u é m .^ Ao príncipe resta, então, proteger-se da ima­
gem ruim e esperar que sua imagem esteja de acordo com a que os
homens fazem do bom príncipe. Maquiavel resumiu isso num trecho
célebre d'O "Um príncipe, portanto, deve ter muito cuidado em
não deixar escapar de sua boca nada que não seja repleto das cinco
qualidades mencionadas, para parecer, ao vê-lo e ouvi-lo, todo piedade,
todo fé, todo integridade, todo humanidade, todo religião; e nada existe
mais necessário de ser aparentado do que esta última qualidade. É que
os homens em geral julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, porque
a todos cabe ver, mas poucos são capazes de sentir"^.
A conservação é, consequentemente, fruto dos atos do príncipe —
a guerra, a justiça, a administração — , mas também da representação
que acompanha toda ação humana. Está, portanto, condenada à
indeterminação que é própria à vida em comum dos homens. Para resu­
mir, podemos dizer, com Merieau-Ponty: "É, pois, uma condição funda­
mental da política desenvolver-se na aparência"^.
Nossas conclusões não revelam apenas exigências às quais os prín­
cipes estão submetidos; elas nos mostram as condições nas quais todas
as formas políticas existem. Vemos, assim, Maquiavel dizer de Soderini
que ele foi um dos maiores defensores da liberdade, mas que não soube
conservar o poder^. Da mesma maneira, elogia o uso que os romanos
faziam da religião nos momentos difíceis da república^. Nos dois casos,
é no domínio da representação que devemos buscar a explicação para
o resultado das ações, que não poderíam ser compreendidas simples­
mente à luz de considerações positivas sobre as forças em luta. Isso dito,
não podemos deduzir que o poder seja um vazio que é preenchido pelas
ilusões humanas. Para refutar essa interpretação, basta olhar para a pró­
pria história italiana da época. Florença, que sempre se vira como uma

65. Sobre a relação entre ética e política no pensamento de Maquiavel ver: G.Sasso, op.
cit., 418-420; L. Sttauss, op. cit., 104; P. Chabtxi, op. cit., 65-66; J. G. A. Pocock, op. cit.,
167-177; C. Lefort, op. cit., p. 406; I. Berlin, op. cit., p. 179-197.
66. MACHIAVELLI, XVIU.
67. M. MERLEAU-PONTY, "Note sur Machiavel" ín Gallimard, 1960, p. 273-
68. MACHIAVELLI, LMKXttYf, I, 52.
69- ídetn, 1, 11-12-13-14-15.
cidade tivre e que se orgulhava de sua liberdade, não foi capaz de
construir as instituições necessárias para resistir aos efeitos do tempo^.
Mostrando-nos a dimensão imaginária do poder, Maquiavel convida-nos
a pensar sobre o significado da ação num mundo mergulhado na con­
tingência.

M. "V/rfú" e "Foríuna"
O décimo quarto capítulo d'O Prwcipe começa com uma exortação
aos príncipes para que sigam o caminho traçado nos capítulos anterio­
res, se desejam conservar o poder". Essa maneira de abordar a questão
revela, no entanto, sua limitação, quando Maquiavel, analisando as ra­
zões do fracasso do duque de Milão e do rei de Nápoles, mostra-nos que
não basta refletir sobre as condições reais do exercício do poder, uma
vez que esse saber é produto da ação contínua dos homens na cidade.
Se em todo fracasso podemos identificar um fator objetivo — não ter
sido capaz de ganhar o apoio do povo, por exemplo — , existe sempre
uma dimensão que ultrapassa essa simples constatação de inadequação
a um modelo universal. Os próprios príncipes abrem as portas para um
aspecto importante de toda análise política, quando acusam a "fortuna"
de ser a responsável por seus insucessos^. Nosso autor aproveita a deixa
e introduz um conceito sem o qual o de "fortuna" perde toda a força;
fala-nos da importância da "virtu": "E aquelas defesas são boas, são cer­
tas, são duráveis, quando dependem de ti e de tua virtü"^.
Ao longo d' O os temas da "virtu" e da "fortuna" estiveram
presentes, sem que Maquiavel tenha se preocupado em dar um trata­
mento sistemático a nenhum deles e, sobretudo, sem que tenha estuda­
do de maneira coerente a relação existente entre os dois?'. O capítulo ao
qual nos referimos enfrenta justamente a necessidade de se estudar a
relação entre "virtu" e "fortuna", como meio de aprofundar as constatações
às quais a análise da conservação nos conduziu.

70. C. Lefort afirma: "Machiavel ne prétend pas reventr du paraltre â 1'être; ii interroge
ie paraitre dans ia certítude que ie prince n'existe que pour les autres, que sont être est
au-dehors. Sa critique se dépioie dans ie seut ordre des apparences", óp. cit., 408.
71. MACHIAVELÜ, 7/ /Vlwipe, XXIV.
72. "Pertanto questi nostri principi che erano statí moití anni nei principato !oro, per
averio dipoi perso non accusino ia fortuna ma ia ígnavia ioto": idem, XXIV.
73. Ibidem, XXIV.
74. Maquiavel refere-se ã questão nos capítuios VI, VII, VIH, XI, XIV, XIX, XXV de O
PrtMc%pe
Ao voltar sua atenção para essa questão, Maquiave! retoma na ver­
dade a um problema que desde a Antigüidade havia interessado aos
filósofos políticos, mas que também fora um dos pontos mais importan­
tes do humanismo cívico^. Aristóteles refere-se à questão da "fortuna"
tanto no quadro de suas discussões sobre a física, com o em sua
metafísica^. Para ele, a "fortuna" existe quando a causa se produz por si
mesma, em vão. Enquanto conceito, no entanto, eia só revela seu sen­
tido quando analisada junto com o "azar" ("automaton"), do qual faz
parte. Ou seja, a "fortuna" é um caso particular do azar, é o azar aplicado
aos seres capazes de escolher, e não a todos os seres. Apesar de se
referir explicitamente aos homens, Aristóteles reserva-lhe um papel pe­
queno na definição da vida política. Na TWíNca, diz: "...é também por
essa razão que a fortuna favorável é necessariamente diferente da felici­
dade. Os bens exteriores à alma são o produto do azar e da fortuna,
enquanto ninguém é justo, nem temperante graças à fortuna, nem como
seu efeito. Segue-se, logicamente, se usarmos os mesmos argumentos,
esta verdade, a de que o melhor Estado também é felíz quando age
segundo o Bem"??. Com os pensadores romanos, tivemos uma mudança
na maneira de considerar a "fortuna". Se para Aristóteles ela é apenas
uma parte dos múltiplos fatores que influenciam na condução dos negó­
cios públicos, passa a ocupar um lugar de destaque no pensamento
político romano. O pensador grego havia chegado ao problema pelas
vias da física e foi extremamente prudente ao fazer a ponte para os
problemas humanos. Para Cícero, ao contrário, não há a menor dúvida
de que a "fortuna" pode influenciar os destinos humanos. Ele vê nela
uma força capaz de ajudar os homens, mas também de destruí-los. "A
Potência da fortuna é grande, em um sentido como no outro, para nos
favorecer, com o para nos contrariar — A imagem fria do azar é trans­
formada pela idéia de uma força volúvel e caprichosa, que escolhe seus
prediletos e seus inimigos. A humanização do conceito faz dele uma
peça-chave no esforço de compreensão da vida social.
Mas não foi Cícero, nem os outros grandes pensadores romanos, que
contribuíram para a difusão do conceito no Ocidente cristão. Boécio, em

75. Além da obra já citada de R. Ridolfi, é importante consultar: O. TOMMASIN1,


e scrMM /V /oro w/az/one co/ wa3&&ZaueHMMo, E. Loescher, 1883-
3911, para um estudo da formação intelectual de Maquiavel.
76. AR1STOTE, Belles lettres, H, 4-6; Ar J. Vrin, 1970, V 30.1025;
Vl.2.1025; VII 7. 1032.
77. Idem, i n J. Vrin, 1982.VII, 1. 1323b 20-30.
78. C1CERON, %/es JecoOx, Gallimard, 1962, Ví, 19-
sua obra A 6b?zso/%ç<ão <%a cristalizou a imagem à qual todos
recorreram a partir de então, quando se tratou de pensar a contingência
da ação"". Embora seu livro não seja de filosofia política, resultou do
confronto com as dificuldades de uma ação na esfera dos negócios
públicos. Boécio sistematizou suas experiências através da luta entre a
"fortuna" e a "virtü". Ele afirma, em primeiro lugar, que não há exercício
da "vírtu" que não implique confronto com a "fortuna". Desde que aban­
donamos nosso recolhimento, para nos dedicarmos à ação política,
estamos submetidos à contingência do mundo. Para fugir da contingên­
cia, é preciso buscar a filosofia, deixar de lado a tentação de construir
um regime melhor e dedicar-se à busca do saber. O que mais chama a
atenção no pensamento de Boécio não é que ele condene a ação polí­
tica, mas que ele mostre não haver ação virtuosa que não implique ao
mesmo tempo a abertura de uma janela para o indeterminado; não há
"virtü" que não desperte a força contraditória da "fortuna".
Não iremos refazer aqui a história da transmissão dos conceitos ao
longo de toda a idade Média. Basta, para nossos propósitos, estar atentos
ao fato de que Maquiavel se refere a uma tradição extremamente rica e
complexa quando decide, já no final d'O Príncipe, tratar de maneira
sistemática a questão.
* * *

Antes de voltarmos nossa atenção para os capítulos finais d'O /W?í-


c%7<^ seria proveitoso observar como, ao longo de seus primeiros escri­
tos, Maquiavel construiu um edifício no qual não podería faltar a coluna
da "virtu", nem a da "fortuna"."' A esse respeito, talvez a figura mais
eloquente na obra de Maquiavel tenha sido a de César Borgia. Já nos
referimos à admiração que o secretário nutriu por esse príncipe italiano;
sabemos também que não podemos pensá-la, como fizeram muitos in­
térpretes, como um elogio à força e à audácia. César Borgia interessa a
Maquiavel porque fbí o paradigma do príncipe que, partindo de condi­
ções favoráveis, teve de enfrentar os reveses da "fortuna". Sua função é
paradigmática porque concentra os extremos da "fortuna" e os da "virtü".
feito governante pelas graças de seu pai eleito Papa, cedo aprendeu que
a boa "fortuna" do começo não faria mais do que exacerbar as dificul­
dades do futuro. De um Estado conquistado com muita facilidade, pas-

79. BOETHIUS, C&fMo&zttow q f Penguin Books, 1986.


80. J. G. A. POCOCK, op. cit., 3Sss.
81. "A partire da questo momento, con una forza e una diammaticità sconosciute alie
ptecendenti espressione dei suo pensiero, si afíacia, negti scritti di Machiavelli, il tema deiia
fortuna". G. SASSO, op. cit., p. 72.
sou a um mundo onde os obstáculos se multiplicariam na razão inversa
da falta de raizes de sua obra*".
Utilizando o exemplo do duque, Maquiavel pretende mostrar duas
coisas. Em primeiro lugar, que a "fortuna" pode auxiliar na fundação de
um novo principado, mas que seu concurso não pode ser entendido
como uma vantagem <2 prton. Na verdade, uma "boa fortuna" não faz
mais do que exigir uma "virtü" excepcional. A segunda lição que pode­
mos tirar do caso César Borgia ê que os dois conceitos só fazem sentido
quando referidos um ao outro. O duque pôde aproveitar-se da situação
favorável de ter um papa como pai, mas não pôde escapar das tramas
da "fortuna". Mais do que nos mostrar a importância da "fortuna",
Maquiavel incita-nos a pensar sobre as condições nas quais se desenro­
lam as ações criativas dos homens. César Borgia, um escolhido da "for­
tuna", foi derrotado justamente pela deusa que fizera dele seu protegido,
pois, como diz Maquiavel: "Non fu sua colpa, perché nacque da una
estraordinaria ed estrema malignità di fortuna"^.
A partir desse ponto, o secretário florentino distancia-se inteiramente
do humanismo cívico. Em primeiro lugar, porque a imagem da "fortuna"
deve mudar. Não é possível pensá-la como uma força exterior que do
alto de seus poderes governa todos os negócios humanos. Mesmo seus
favores são acompanhados de um exigência de ação, ela é a gêmea da
"virtü". A "virtú" também não pode mais ser compreendida como fruto
de uma boa educação. O exemplo de César Borgia serve justamente para
destruir a idéia de que a boa ação deve ser sempre acompanhada pelos
mais nobres sentimentos. Maquiavel não hesita, assim, em dizer que
aquele que quiser subverter os antigos sistemas, que quiser se mostrar
magnânimo e liberal, conquistar o respeito dos reis e dos grandes, "non
può trovare e piu esempli che le azioni de costui"**. Ele não procura, ao
recorrer ao exemplo de César Borgia, definir o conceito de "virtü" (que
deve mudar de acordo com as circunstâncias)^, mas escapa ao terreno
teórico dos humanistas. Para ilustrar sua posição, lança mão dos exem­
plos de Manlius Torquatus e de Valerius Corvinus. Um, por sua severi­
dade, e outro, por sua docilidade, foram capazes de grandes ações, sem
que possamos assinalar em seus atos uma espécie de essência comum,

82. MACHIAVELLI, V/ VH.


83. Idem, VH.
84. tbidem, VH.
8$. Whitfield tem razão quando diz: "There is no doctrine of virtü in MachiaveUi. If there
were it wouid be easy to díscover in his works; but MachiaveUi was not given to such
theorizing". J. H. WHITFIELD, Biackweit, 1947, 95.
constituidora da capacidade dos atores de imprimir sua marca criativa no
tempo**.
A primeira conclusão à qual podemos chegar é que o problema que
nos interessa aqui nos conduz à indetermina ção do campo do político,
o que nos impede de reduzir nossa interrogação sobre a conservação à
questão tradicional relativa à boa e à má forma de governo. O fato de
que cada sociedade adquire sua especificidade como resultado da ação
de seus sujeitos dá uma nova dimensão ao problema dos dois conceitos
que estamos analisando. O duque representou uma possibilidade, um
exemplo que nos ajuda a pensar o problema dos principados novos, mas
não é o modelo absoluto da "virtü". Usando esse termo para designar
tanto um personagem como César Borgia, quanto pára falar da ação dos
grandes fundadores, Maquiavel nos mostra que a questão da ação ultra­
passa de longe o simples elogio dos grandes personagens e a descrição
de seus gestos.
Essas primeiras considerações podem ser enriquecidas pelo recurso
a certos textos m enores de nosso autor e que por vezes são
desconsiderados pelos intérpretes. Um exemplo disso é o "Capitulo" Df
EorfMiM. Nessa pequena obra, Maquiavel faz um descrição poética da
"volubil creatura". Num primeiro momento, ele se contenta com o retrato
clássico de deusa que comanda nosso destino — ("Questa incostante dea
e mobil diva/ Gl'indegni spesso sopra un seggio pone/ Dove chi degno
n'è, mai non arrÍva")*\Tal descrição estava perfeitamente de acordo com
a tradição florentina, como podemos constatar comparando-a com o
texto de Dante na no qual ele também traça um perfil
da dama que age sem apelo sobre os destinos humanos^. No momento,
no entanto, de descrever o palácio onde habita a deusa, Maquiavel,
modificando a tradição, já não fala da roda da "fortuna", mas de várias
rodas: "Dentro, con tante ruote vi si gira/ Quant'è vario il salire a quelle
cose/ Dove ciascun che vive pon la mira"^.
Esse pequeno detalhe pode parecer insignificante, se considerarmos
que em um poema se busca uma imagem que não pode ser lida como
um texto teórico. No entanto, a continuação do capítulo parecè indicar
que a escolha da imagem das várias rodas não foi feita sem segundas

86. MACHIAVELÜ, Discrnsí, HI, 22.


87. MACHIAVELÜ, Dt AbrfHfM, 34-36.
88. Ounte Atiít-nos da ibítuna em DANTE, A? Inferno, VII, 79-%.
89. MACHIAVELÜ, D? TbHKtM, 61-63-
intenções. Na tradição ocidental, o fato de apresentar a "fortuna" como
o mestre de uma roda serviu sempre para mostrar a ínexorabiiidade de
suas decisões**. Se somos surpreendidos no ponto mais elevado da roda
por uma decisão desfavorável da deusa, nada pode evitar nossa desgra­
ça. Com a imagem das várias rodas, Maquiavel nos abre uma porta para
pensarmos a importância da ação humana e descobrir que não há deusa
que não seja feita da mesma matéria que nós^. Embora a "virtú" não seja
nomeada no poema, não resta a menor dúvida de que é neta que nosso
autor pensava quando, em face dos poderes da deusa, enfatiza a possi­
bilidade da resistência a seus poderes.
Maquiavel não chega nesse poema a conclusões encorajadoras. Apesar
da porta aberta, deixa a entender que o poder da "fortuna" é infinito e
que enfrentamos muitas dificuldades para contrariá-lo ("Non è nel mon­
do cosa alcuna etem a/ Fortuna vuol cosí, che se n'abbella,/ Accio che '1
suo poter piu si discerna")^.
O pessimismo dessa obra não dominará o pensamento do secretário
florentino. A partir daí, longe de ceder ao fatalismo, ele buscará desco­
brir os mecanismos que nos permitem escapar da aparente condenação
à força do destino. Assim, alguns anos mais tarde, no ele
levantará a mesma questão, partindo, no entanto, não mais da imagem
onipotente da "fortuna", mas de sua luta com a "virtu". Nessa mudança
de ponto de vista, Maquiavel não abandona os pressupostos realistas de
sua análise. Combate a corrente humanista representada por Pic de Ja
Mirandoia^, que via no homem um ser dotado de possibilidades infini­
tas, lembrando a dura realidade da Itália destruída por guerras e marcada
pela incapacidade de seus homens políticos para enfrentar os desafios
do tempo. Soderini era, nesse caso, um exemplo perfeito. Ameaçado
pelas conspirações das grandes famílias, que desejavam instalar uma

90. Ver a esse respeito: T. FLANAGAN, "The concept od fortuna in Machiavelli" in A.


PAREL, 1972.
91. MACHtAVELLI, ZM PorfMfM, 112-117.
92. Idetn, ibidem, 121-123.
93. Não faremos aqui uma discussão sobre a data desse escrito, que acreditamos ser
1$12. Para uma discussão detalhada sobre essa questão, ver: G. SASSO, op. cit., 192-193:
"...tomerà nei GAM&izzi al Soderini, scritti in questí giomi, fra ii 13 e ii 21 settembre dei
1506, e non atia fine dei 1512 o nei primi giomi dei 1513, 'post res perditas, come, fino a
qualche tempo addietro, in genere si credette".
94. Ver a esse respeito: E. CASSIRER, ZfidtnídK ef cosmos <%HMS fd A&dosqpAie de fg
Rewntssgnce, Minuít, 1983, cap. 3.
oligarquia em Florença, e peios partidários dos Médicis, ele não soube
preparar sua defesa e viu-se só eom as tropas espanholas batendo ás
portas da cidade em 1512.
Maquiavel chegou mesmo a dizer que aqueie que for sábio e chegar
a desvendar os segredos do tempo poderá resistir sempre aos ataques da
"fortuna" e "comandar os fatos e as estrelas"^. Ele não sugere com isso
que tal homem exista, ou mesmo que possa existir. O que lhe interessa
é mostrar que, para pensarmos a ação política é preciso não creditar à
"fortuna" mais do que ela pode efetivamente fazer. Se reconhecemos
que a ação humana é criadora de nossas realidades, é preciso seguir até
o fim dessa determinação e chegar à conclusão de que todo o problema
reside na "virtu", e não na "fortuna", que aparece no curso de nossos
atos apenas como uma força de oposição, como um obstáculo a ser
transposto.
A reflexão de nosso autor no pequeno escrito que acabamos de citar
não resume o sentido de sua obra. Deslocando o eixo para a "virtú", ele
apenas abandonou a corrente pessimista da tradição, â qual parecia ter
aderido, para pensar a partir de um novo ponto de vista. Só no vigésimo
quinto capítulo d'O ele concluirá seu caminho.
Maquiavel com eça o capítulo retomando à formulação clássica da
questão e atribuindo o governo do mundo à "fortuna e a Deus, que não
podem ser corrigidos com a prudência humana"^. Sua intenção só pode
ser a de seduzir o leitor, levando-o para caminhos que não lhe pareçam
estranhos, pois ele ousa mesmo misturar a "fortuna" com a providência
divina, com o se entre o cristinianismo e a teoria política romana não
houvesse um fosso. Essa aparente mistura visa, na verdade, reduzir o
problema à idéia de que existem forças exteriores à vontade humana que
influenciam de maneira decisiva nosso destino, mas que não podem ser
responsabilizadas sozinhas por nossos erros e acertos. Maquiavel conclui
o primeiro movimento do capítulo dizendo: "Contudo, para que o nosso
livre-arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a fortuna seja
o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixa governar
a outra metade, ou quase"^.
A primeira coisa que salta aos olhos é que a recorrência ao conceito
de livre-arbítrio, que até então não havia tido nenhum papel em suas

95. MACHÍAVELÜ, "Ghiribizzí" in Ztyfew, 228-231.


96. MACHÍAVELÜ, V/ XXV.
97. Idem, XXV.
formulações. Sendo de origem cristã^, e muito usado pelos humanistas
italianos^, é empregado n '0 apenas para nos lembrar que, ape­
sar da "fortuna", existe sempre um lugar para a ação criativa em nossas
vidas. Maquiavel repete, assim, sua estratégia de recorrer a um aspecto
da tradição que ele combate, para destruir a crença dos homens de seu
tempo em alguma idéia que lhe pareça incompatível com seu esforço de
compreensão do mundo político.
A seqüência do texto confirma nossa suposição. Depois de ter con­
duzido o leitor a aceitar a maneira tradicional de expor a questão,
Maquiavel se dedica a criticar os pressupostos que pareciam ser os seus.
A associação entre "fortuna" e providência divina não resiste às primeiras
análises. Longe de procurar descrever ou aprofundar o estudo da relação
entre os dois conceitos, nosso autor contenta-se em descrever a "fortuna"
como um rio impetuoso, que em nada lembra a vontade divina^. Logo
em seguida, referindo-se à história italiana, ele nos mostra que na ver­
dade qualquer representação da "fortuna" serve apenas para desviar nossa
atenção do lato de que não podemos conhecer todos os seus movimen­
tos e de que eles só espelham nosso desconhecimento dos limites da
própria ação humana. Por isso, Maquiavel, como já fizera no Chtrtóázzi,
transforma a questão da "fortuna" na de suas relações com a "virtu". Se
o mundo está em eterna mutação, esse fato só é significativo porque os
homens, incapazes de abandonar suas regras de conduta, são tragados
pela força dos acontecimentos. O inimigo do homem não é, portanto,
uma força misteriosa, mas sua própria "natureza", que não se adapta
facilmente à maleabilidade do mundo e ao fluxo infinito do tempo. Ele
conclui: "Por isso, o homem cauteloso, quando é tempo de passar para
o ímpeto, não sabe fazê-lo e, em consequência, cai em ruína, dado que
se mudasse de natureza de acordo com os tempos e com as coisas, a sua
fortuna não se modificaria""".
Não devemos transformar as observações de Maquiavel a respeito da
natureza humana em uma espécie de a n t r o p o l o g i a ^ . Ao se referir aos
homens e à sua incapacidade de mudar com o tempo, ele não procura
definir nossa natureza, nem mesmo nos ensinar uma regra que sirva para

98. H. ARENDT, I # /'asprif — A? poM/oir; PUF, 1983, 105ss.


99- Ver a esse respeito: LORENZO VALLA, Oe A&ew Ar&ltWo, Riccardo Ricciardi, 1977.
100. C. LEFORT, op. cit., 440.
101. MACHIAVELU, 71 XXV.
102. Esse é o argumento de N. WOOD em seu artigo "Machiavel!i's Humanism of
Action" . Eie diz.- "One reason for the basic role o f action ín MachiaveJlfs way o f thinking
is because of his faith that what men become is, subject to the iimits of their nature, within
their power to determine": p. 44.
nossas ações em todas as situações. Agindo de uma mesma maneira,
chegamos muitas vezes a resuitados opostos'**. O que Maquiavei procu­
ra nos mostrar é que toda ação política é um gesto de criação contínua
do social; que o ator só pode ter confiança na própria força, embora o
recurso à tradição seja não só válido, mas muitas vezes necessário, para
aqueles que são obrigados a inventar a cada momento o próprio cami­
nho. Com isso, ele não incorpora o pessimismo da tradição à qual alude
no começo do capítulo. Como já mostrou Medeau-Ponty; "Ele descarta
com o mesmo gesto a esperança e o desespero. Se existe uma adversi­
dade, ela não tem nome, não tem intenção; não podemos encontrar em
nenhum lugar um obstáculo para a feitura do qual não contribuímos, por
nossos erros ou faltas; não podemos limitar de nenhuma maneira nosso
poder"'**.
Quando, no final do capítulo, ele aconselha a ser impetuoso e não
circunspecto, não é uma regra universal que enuncia; não é a crença no
poder da vontade humana, que pela simples decisão pode imprimir no
mundo as marcas de seu desejo. Nenhuma ação tem lugar num universo
transparente, onde as coordenadas são conhecidas <3 prton. Ao contrá­
rio, toda decisão política deve enfrentar a indeterminação do mundo
histórico e levar em conta a obscuridade do próprio caminho. É nesse
sentido que toda ação é uma criação, e não no sentido de que a vontade
possa ser pensada como um demiurgo capaz de refazer o mundo a cada
momento.
O abandono da certeza do mundo não implica, no entanto, o aban­
dono de um certo saber sobre a política. Claude Lefort mostra isso de
maneira clara quando diz: "É da concepção de um racional positivo —
de uma lógica em si das operações do sujeito político — que Maquiavel
foge, mas não para lhe opor aquela de um irracional positivo — o irra­
cional dos teólogos ou dos astrólogos — , mas para fazer surgir, pela
manutenção da contradição, a ligação do saber e do não-saber, da téc­
nica e da aventura; onde se descobre sempre a implicação daquele que
nomeamos sujeito e daquele que nomeamos objeto""*.
Empregando a imagem da mulher pata falar da "fortuna" e designan­
do os jovens como os atores mais capazes de enfrentá-la"^, Maquiavei

103. MACHIAVELLI, 7/ XXV. "Di qui nasce quello ho detto, che dua diversa­
mente operando sortrscono el medesimo efFetto, e dua egualtnente operando, l'uno si
conduce ai suo fine e 1'aitro no".
104. M. MERLEAU-PONTY, op. cit., 273.
103. C. LEFORT, op. cit., 444.
106. Para um estudo sobre a reiação de Maquiavei com os jovens ver: C. LEFORT, íes
Jôrmes de GaUimard, 1978, cap. 9-
distancia-se de maneira definitiva dos humanistas. Embora implique um
certo saber, a "virtü" não é, como queria Petrarca, o resultado de uma
boa preparação para a vida em comum. Ela designa a capacidade de
estar presente no mundo, de saber apreender a ocasião, de saber se
modificar, de saber agir contra toda tradição. Num certo sentido, eia não
pode ser definida, porque se cria a si própria em seus combates com a
"fortuna", e, assim, deve incorporar a mutabiiidade que a desafia*"?.
Nossas conclusões conduzem-nos a descobrir uma outra dimensão
da hipótese que avançamos no final de nosso segundo capítulo. Havía­
mos recusado dar uma definição puramente formal da liberdade, identiíicá-
-la simplesmente com a república mista. Compreendemos agora que
todas as formas políticas são o resultado das ações que as fundam e as
conservam e é por essa constância da ação que adquirem sua identidade.
Sabemos, no entanto, que a ação, que a eterna luta entre a "virtü" e a
"fortuna" não podem ser entendidas através de um conjunto de propo­
sições coerentes, fruto de um saber positivo. O sujeito político, no seu
gesto de criação do presente, é sempre confrontado com a indeterminação
do campo histórico, ele não pode jamais conhecer todas as etapas de seu
caminho. Isso corresponde a dizer que nenhuma república pode identi­
ficar-se ínteiramente com algum modelo teórico, que ela é sempre o
resultado das ações que a fundam e a conservam no tempo. Isso não
quer dizer que não exista diferença entre as diversas formas constitu­
cionais. Cada regime tem a face das soluções que dá aos conflitos que
constituem toda sociedade humana. Podemos recorrer ao passado como
a uma fonte de inspiração, mas não podemos esperar fazer da imitação
a regra da ação política.

Ao escolher tratar a questão da "virtü" e da "fortuna" tomando como


referência o penúltimo capítulo do f incorremos no perigo de ter
sugerido ao leitor que o modelo d' O príncipe novo revela a verdade de
todo ator político. Dizendo, por exemplo, que toda ação é uma invenção
contínua da organização política, podemos ter deixado escapar a idéia
de que toda ação é invenção, a partir do nada, de toda a rede de relações
que constitui nossas sociedades. Nessa ótica, estaríamos sempre próxi­
mos do terror que comanda toda fundação, estaríamos condenados ao
total desconhecimento do futuro, restando-nos apenas, como consolo, a
imagem do passado exemplar. Se tal equívoco se produziu, ele teve
certamente nosso concurso, mas tem de ser desfeito. Usar como modelo

107. MACHIAVELÜ, XXV.


a figura do príncipe novo pareceu-nos adequado para nos confrontar
com a questão que nos interessa, lá onde nenhuma mediação é possível,
lá onde a "virtü" do ator tem de se defrontar com a "fortuna" sem o apoio
dos costumes que enfraquecem nossa inventividade, mas que também
nos protegem. O próprio Maquiaveí chamou atenção para os principa­
dos hereditários, mas abandonou-os, por não fornecerem, com o manto
da tradição que os envolve, a melhor ocasião para o estudioso da polí­
tica que quer deslindar os mistérios da ação. Ao segui-lo, no entanto,
deixamos de lado um campo fértil de estudo e que não pode ser resu­
mido pelo recurso ao caso extremo do príncipe novo: as repúblicas.
Com efeito, os grandes generais romanos, quando realizaram os atos
memoráveis que os imortalizaram, não agiram num mundo igual ao dos
pequenos senhores da Itália Renascentista. Havia, a envolvê-los, uma
relação com a cidade que, sendo de outra natureza que a dos príncipes
com seus súditos, modificava o sentido e a forma da suas ações. Estudar
a questão da "virtü" e da "fortuna" no terreno das repúblicas certamente
trará novas luzes para nosso problema.
No primeiro capítulo do segundo livro dos Dtscoryt, Maquiaveí afir­
ma, contra toda a tradição, que os sucessos de Roma deveram-se a sua
"virtü", e não aos favores da "fortuna". Na sequência de suas análises,
aprendemos que essa mudança de ponto de vista implica o deslocamen­
to do eixo de sua interrogação da questão dos limites da "fortuna" para
as da "virtü". Isso corresponde a dizer que a "fortuna" interessa ao teó­
rico da ação apenas enquanto um obstáculo às nossas ações, e assim,
que ela pode ser compreendida, como já sugeriu Claude Lefort, como
uma espécia de "não-virtu"***. Nosso autor, aliás, confirma essa interpre­
tação quando, comentando as conquistas romanas, mostra que os povos
que observarem os mesmos preceitos que os romanos terão menos
necessidade de se fiar na "fortuna"^. Ele conclui: "De modo que eu
creio que a fortuna que tiveram os romanos nesse lugar, a terão todos
os phncipes que procederem como eles e possuírem a mesma virtü
Deslocando a questão para a "virtü", Maquiaveí releva o aspecto fundante
de toda ação humana, ao mesmo tempo em que abandona o terreno dos
humanistas, que recorriam aos dois conceitos para mostrar a impossibi­
lidade na qual nos encontramos de resistir aos ataques do tempo.

108. C. Lefoit já observou, num outro contexto: "Le combat entre Fortuna et Virtú
s'avere imagina ire: l homme n'a d'adversaire que luí-même, ia fortune n'est rien d'autre que
ia non-viftu, ia virtú que mattrise du monde et de soí": op. cit., 441.
109. MACHIAVELü, Discorxí, 11,1.
110. Idem, II, 1.
Essas conclusões, entretanto, têm de ser vistas com alguma reserva.
Se o secretário florentino lança um ataque feroz contra aqueles que
fazem do conhecimento da natureza da "fortuna" uma espécie de saber
positivo, que interdita toda a viabilidade de uma ação criativa na cidade,
ele não deixa de nos lembrar, no vigésimo nono capítulo, que a mudan­
ça faz parte da ordem do mundo e, portanto, que é razoável esperarmos
que também as coisas humanas estejam submetidas à mesma lei'". Com
isso ele nos mostra que, se podemos pensar a "fortuna" com o o negativo
da "virtu", isso não quer dizer que possuamos um domínio perfeito do
tempo e que possamos escapar de suas garras. A metade obscura de
nossas vidas, à qual damos o nome de "fortuna", não é menos ativa por
ser compreendida como parte de nossas próprias ações. Assim, Maquiavel
alerta-nos para o fato de que podemos opor alguma resistência à "fortu­
na", mas não descartã-la em nome de um saber positivo qualquer —
"...gli uomini possono secondare la fortuna e non opporsegli". A
contrapartida do vazio de nosso saber é que também não temos qual­
quer motivo para deixar de agir, uma vez que, não conhecendo os ca­
minhos da "fortuna", temos todos os motivos para continuar a esperar
um bom resultado'^.
O que íbí dito até aqui aplica-se tanto às repúblicas quanto aos
principados. Maquiavel expõe, assim, a unidade de seu pensamento,
demonstrando que as condições gerais do exercício do poder não mu­
dam segundo as formas constitucionais. Mas essa conclusão geral carre­
ga consigo a exigência de uma especificação. Se os phncipes são lança­
dos num mundo de contingência que é igual para todos, não contam
com as mesmas armas para o exercício da "virtu". O que, num primeiro
momento, é igual para todos, rapidamente se transforma diante da pe­
culiaridade da solução dos conflitos de classe. É nessa hora que as repú­
blicas, fruto de uma adesão dos homens a um desejo de liberdade e às
instituições que o exprimem, revelam-se muito mais fortes para resistir
aos ataques do tempo. Essa diferença, Maquiavel faz questão de dizer,
não advém da natureza dos indivíduos que compõem cada forma social.
Todos revelam igual dificuldade em mudar com o tempo e por isso se
transformam em presas fáceis da "fortuna" quando os tempos são adver­
sos. Numa república, no entanto, os homens não agem como indivíduos,
como atores individuais que devem representar seu papel sem o concur­
so de outros recursos que a própria "virtú"; eles agem com o o produto
de sua "virtu" e da forma política que os criou. For essa razão nosso

111. Ibidem, H, 29.


112. Ibidem, II, 29,
autor diz que "...daí nasce que uma república tem maior vida e conserva
a boa fortuna mais tempo do que um principado, porque pode adaptar­
-se meihor âs mudanças do tempo, peio recurso à diversidade de seus
cídadãos""3.
Depreendemos daí que, embora os príncipes nos confrontem com
um caso mais próximo da situação na quai se exerce a "virtu" dos fun­
dadores, peia soJidão na qual agem, eles não resumem toda a dimensão
do agir humano e não representam o caso mais bem-sucedido de resis­
tência aos efeitos do tempo. As repúblicas, ao contrário, fornecendo o
exemplo de um ator que age em nome de suas instituições e que por
isso mesmo pode esperar uma certa continuidade em seus atos, demons­
tra que a solução que é dada aos conflitos de classe afeta diretamente o
equilíbrio da luta entre a "virtu" e a "fortuna". Os grandes generais roma­
nos, quando saíam a campo, não eram obrigados a reinventar todo o
percurso de seus combates, eles agiam como uma "pessoa coletiva", que
possui o dom de guardar um pouco da força que lhe foi dada pela ação
dos outros cidadãos.
Ao falarmos de "pessoa coletiva" não estamos, no entanto, nos es­
quecendo da distinção que Maquiavel faz entre a ação dos grandes
generais e a do povo* Se em toda sua obra ele não se cansou de dizer
que sem o apoio do povo não há poder que possa ter a esperança de
durar, também nunca deixou de lado a especificidade da ação popular
e a necessidade da existência nas repúblicas de homens que, como
Camilo, saibam desabar a ordem das coisas e criar novas formas de ação.
Quando nos referimos à "pessoa coletiva", estamos dizendo que é pos­
sível agir na cidade com meios que são fruto da associação dos homens,
ou dito de outra forma, que é possível falar de uma "virtu" coletiva, que
acompanha a ação dos atores republicanos e que lhes dá uma clara
superioridade sobre os príncipes que contam somente com o refúgio da
própria "virtu". Percebemos, assim, que não é preciso recorrer ao meca­
nismo das assembléias para vermos em ação uma força que é o produto
da vontade de muitos. Num mundo condenado à contingência, a conti­
nuidade das instituições livres e seus mecanismos de reprodução garan­
tem aos cidadãos de uma república o recurso a uma "virtu" superior, que
soube conservar a lição de seus embates anteriores com a "fortuna" e
resistir aos efeitos destrutores do tempo.
A especificidade da "virtu" republicana nos leva a acreditar que é
preciso estudar de perto as ações que a constituem. Sem termos a pre-

113. Ibidem, HI, 9-


114. Ibidem, UI, 31.
tensão de esgotar a análise da questão da "vjrtu" e da "fortuna", pensa­
mos que a melhor íbrma de continuá-la é prestando uma atenção espe­
cial ãs formas radicais da ação política: a cidadania militar e a fundação
contínua.

!!. A POLÍTICA E A CONSERVAÇÃO

//.l, A cicfadan/a mMíar


O problema militar interessou Maquiavel desde 1500, quando ele
esteve no campo de batalhas de Pisa e pôde constatar com os próprios
olhos a indisciplina das tropas m e rce n á ria s'E ssa experiência seria mais
tarde confirmada peias dificuldades florenttnas em ganinar a guerra e
pelo exemplo de César Borgia, que procurou consolidar suas posições
criando uma milícia própria, evitando assim os riscos de deixar sua defesa
nas mãos de militares profissionais"^. Dessa forma, Maquia vel se ligava
a uma longa tradição humanista que, desde Petrarca, punha em questão
o valor das tropas alugadas. Durante o período de Savonarola, um tra­
tado de Domenico Cechi — e FHe/io&g — havia reacendido
a discussão em torno da questão e certamente o jovem secretário da
república também foi influenciado pelos autores de então"
Nesse período de aprendizado e descoberta, Maquiavel elegeu dois
modelos que marcariam sua obra. O primeiro foi César Borgia, sobre o
qual já falamos anteriormente. O segundo foi Antonio Giacomini
Tebalducci, comissário em Valdichiana em 1502, que ganharia uma im­
portante batalha em 1505 contra Bartolomeo d'Alviano. Ele seria, a partir
de então, o modelo do capitão dedicado â pátria e o exemplo do guer­
reiro republicano"^.
Maquiavel aproveitaria todas essas influências para formular um plano
de rearmamento de Florença a partir de 1505"^. Munido de idéias e de
ideais, ele tentaria por todos os modos convencer a "signoria" de que só
a formação de uma milícia própria podería salvar Florença das ameaças

115. G. SASSO, op. cit., p. 157.


116. Ver a esse respeito o sétimo capítulo de O .Pr&!C%pe.
117. F. CHABOD, op. cit., 330.
118. MACHtAVELU, OecentwA? &-coMdo, 28-36.
119. Notar os seguintes textos de Maquiavel ORcotyo de#bn#tMfV /o Sía/o 6% FfreMze
6M7H/ (1506); ZMíCOfXO c (1506); í/e/&t
<%7-3raM2e(1506); ComsMAoper /le/ez/one de/ j&M/ehe e
de invasão. O problema, no entanto, era mais complexo do que uma
simples tomada de posição administrativa. De um lado, Maquiavel con­
tava com a compreensão de Soderini, que manifestava total apoio a seu
secretário^. De outro lado, entretanto, ele devia confrontar-se com um
universo político que estava longe de ser inteiramente favorável a seus
planos. O "Gonfalonieri" enfrentava, desde sua ascensão ao poder, a
oposição frontal de uma parte da aristocracia dirigida por homens como
Alamanno e Jacopo Salviati e Bernardo Rucellai, e a total desaprovação
dos partidários dos Medieis. Todos esses grupos olhavam com apreensão
para uma milícia popular, que podería se transformar num instrumento
poderoso nas mãos de um novo tirano'^. Os partidários de Soderini
também tinham dúvidas quanto à eficácia de tal medida, vista por eles
como uma faca de dois gumes. Como seria sugerido por Paolo Vettori^,
os camponeses armados poderiam transformar-se no instrumento de
conquista do poder pelos Médicis, através do uso das velhas desavenças
entre os habitantes do condado e da cidade.
Maquiavel, em 1506, não desconhecia esses problemas; ele sabia
que a cidade estava dividida, que os homens políticos não conheciam os
perigos da situação e que uma milícia não seria nessas condições uma
solução milagrosa para todas as mazelas da sociedade. Porém, diante da
fraqueza do governo e da pressão da oposição, convenceu-se de que
essa era a única via possível. No famoso Dáscorso def/bndíMRrne /o
d/ /rreTíze %//<? afirma: "Deixo de lado a discussão se seria bom ou
não dotar o Vosso Estado de uma milícia própria, porque todos sabemos
que quem diz império, reino, principado ou república, quem diz homens
que comandam, começando do primeiro grau até ao chefe de bandidos,
diz também justiça e exércitos"^.
A partir de 1506, Maquiavel tudo faria para transformar seu projeto
em realidade. Deixando de lado as discussões teóricas, concentrou-se
inteiramente nas tarefas práticas de organização de um exército, numa
cidade que há muito perdera o hábito de ver seus cidadãos lutando pela
defesa de suas fronteiras. Ao fazer da urgência prática o ponto de partida

120. Basta olhar as cartas de Niccoto Valori em que eie faz referência ao apoia de
Soderini a Maquiavei. Ver a carta de Niccolo Valori a Maquiavei de 28 de outubro de 1502
e a de 31 de outubro de 1502. p 91-93-
121. G. SASSO, op. cit., 162.
122. Ver a esse respeito: FAOLO VETTORI, "Ricordi di Faolo Vettori al Catdinafe de'
Mediei sopra le cose di Firenze" ín R. ALBERTINI, Fireuze -KepMpMcxr a/
Einaudi, 1970, 357-359-
123. N. MACHiAVELLI, "Discorso deH'oidinare fo Stato di Firenze aile armi", in Opere,
465.
de sua reflexão sobre a questão militar, Maquiavel estava longe de avan­
çar simples argumentos de ocasião. A defesa da liberdade parecia-lhe,
seja por causa da situação interna, seja por causa da situação externa,
exigir uma ação rápida e uma tomada de posição sem ambiguidades, o
que Soderíni não se mostrara capaz de fazer. Assim, tomou para si a
tarefa não só de tentar organizar os primeiros corpos de recrutas, mas
também de convencer seus concidadãos, recorrendo a argumentos que
lembravam a associação, que mais tarde terá grande importância em sua
obra, entre as boas leis e as boas armas: "Vós tendes pouca justiça e
nenhuma arma, e o único jeito de reavê-las é organizando o exército
através de deliberação pública e mantê-io com as boas leis"*^.
A derrota de 1512 pôs fim âs esperanças do secretário florentino,
mas o convenceu de que o processo de fundação e conservação de uma
república não é independente da escolha de sua estratégia de defesa. A
partir de então, a questão militar terá um papel fundamental em toda sua
produção teórica, abrindo seu pensamento para horizontes que haviam
sido apenas esboçados em seus primeiros escritos. Tentaremos agora
estudar alguns momentos de sua obra nos quais é mais evidente essa
preocupação.
No segundo livro dos Dtscorst, Maquiavel aborda longa mente o tema
que nos interessa. A fim de preparar o leitor para suas análises, ele
submete a história romana a uma leitura "realista", que, aproveitando-se
do fato de que os homens políticos de seu tempo achavam natural pen­
sar as questões políticas através do recurso à história antiga, desfaz al­
guns equívocos que a idealização do passado transformara em verdades
absolutas. No sexto capítulo, nosso autor contenta-se com a enunciação
do problema'^, para se lançar, no oitavo capítulo, a uma análise que
esclarece o sentido de seus cautelosos primeiros passos.
A primeira distinção é entre as guerras levadas a cabo por repúbli­
cas, ou príncipes, que desejam expandir seu território'^, ç aquelas
conduzidas por povos que são levados a abandonar seu lugar de origem
para buscar refúgio em terras que querem "possuir totalmente e expulsar
ou matar os antigos habitantes"^?. Essa diferenciação nos ajuda a ver que
o verdadeiro mérito dos exércitos romanos não foi o de ter conquistado
muitas províncias, mas o de ter resistido a invasões terríveis, que exigi­
ram toda a "virtu" do povo para serem repelidas*^. Desse modo, Maquiavel

124. Idem, 465.


125. N. MACHIAVELLI, ZMscond, II, 6.
126. Idem, II, 8.
127. Ibidem, II, 8.
128. Ibidem, II, 8.
sugere que há uma hierarquia das guerras e que as conduzidas pela
necessidade são as mais terríveis.
Essa segunda forma de guerra abre as portas para a compreensão da
indeterminação do espaço histórico. Com isso nosso autor nos mostra
que não existe, do ponto de vista da guerra, nenhuma diferença essen­
cial entre uma grande república e uma pequena. Em ambos os casos, o
exercício da arte militar é parte da resistência á contingência do mundo.
A grande sabedoria dos romanos foi, então, nem tanto a de saber fazer
a guerra, mas a de ter reconhecido seu caráter universal. Maquiavel íáz
dessa constatação o pomo de partida de suas reflexões nos capítulos
seguintes.
O tema do décimo capítulo sintetiza o percurso de Maquiavel. Liga­
-se aí a análise da crença típica dos homens de seu tempo na força do
dinheiro ao exame dos argumentos retirados da história da Antiguidade.
O autor começa mostrando aos príncipes que se lançam numa guerra
que é fácil começar um ataque, mas extremamemente difícil prever os
resultados de uma ação'^. A partir daí, o raciocínio orienta-se em duas
direções. Num primeiro momento, trata-se de aproximar a guerra da
imagem da "fortuna", para mostrar que não é possível agir em liberdade
e esperar um total conhecimento do curso da ação. Maquiavel cria a
ilusão, convidando-nos à prudência, de que é possível raciocinar sobre
as condições reais de um combate "antes da guerra". Tal artifício, evitan­
do uma imagem puramente negativa da guerra, serve, na verdade, para
sugerir que o fenômeno militar é de mesma natureza que a política.
Da aproximação da guerra com a "fortuna", Maquiavel parte para
uma segunda direção, que é consequência da primeira: mostrar que o
conceito fundamental para se pensar os conflitos entre povos é o de
"virtu". Assim, para rebater a crença na força do dinheiro, apela pata a
"virtu" dos bons soldados e mostra que somente da capacidade de res­
ponder aos ataques inimigos nasce uma paz d u r a d o u r a .^ É claro que os
povos não estão sempre à beira de um conflito, mas é preciso evitar a
idéia de que a paz é um meio termo estático que não exige nenhuma
"virtu" para sua conservação. Ao voltar â oposição entre a "virtu" e a
"fortuna" para compreender a proximidade da guerra e da política, des­
cobrimos que o comportamento de um povo na guerra não é diferente
do dos tempos de paz. Política e guerra são faces de uma mesma exis­
tência, forjada nas veredas da ação. Claude Lefòrt tem razão quando diz:
"A guerra, vista como cataclisma natural, revela outra coisa que o choque

129. Ibidem, H, 10.


130. Ibidem, n, 10.
universal dos apetites; ela mostra a impossibilidade de circunscrever o
espaço-mundo da política aos limites da razão"'^'.
Com os argumentos anteriores, abandonamos a idéia de que é pos­
sível pensar a política através do recorte do tempo submetido à "fortu­
na", e do tempo feliz, livre de sua influência maléfica. O estudo da
guerra confronta-nos com o fato de que estamos sempre diante da pos­
sibilidade da conquista, seja como conquistador, seja como conquistado,
— e que a diferença entre a conquista e a conservação, que parece
dominar O Prmc%7<^ é fruto do olhar do historiador, que escolhe um
momento delimitado da história de um povo para construir seu modelo.
Se deixarmos de lado essa abstração, veremos que a "íbrfuna" representa
a possibilidade sempre presente da contigência, do inesperado, a exigir
uma "virtü" para nos proteger de seus golpes.
Não vemos, assim, como fazer dos costumes a arma contra a "fortu­
na", como sugere P o co ck ^. A naturalidade da guerra decorre justamente
de que não somos capazes de deixar de ver no outro um estranho que
rompe o equilíbrio do corpo político. Ainda que fosse possível pensar
um regime absoiutamente estávei, continuariam a existir povos vizinhos
cuja alteridade seria sempre uma ameaça para a paz interior. A estabili­
dade de um regime espelha a capacidade de preparar a guerra. Sua
legitimidade não decorre, portanto, somente da representativídade e
constância de suas instituições, mas também do fato que ele é capaz de
resolver o conflito de classes de maneira a tornar possível a conquista e
a resistência.
Para compreender os capítulos dedicados à questão militar, no se­
gundo livro dos jDiscorst, é preciso tomar como ponto de partida o fato
de que a conquista — momento da diferença absoluta entre os atores
políticos — está estreitamente ligada à conservação — resolução possí­
vel do conflito de classes. Todo estudo da guerra exige a compreensão
da política interior e vice-versa. É por isso que podemos dizer que a
política e a guerra são gêmeas, sem apagar a diferença evidente entre
conflitos interiores e conflitos exteriores.
Essas observações nos permitem compreender por que Maquiavel,
discutindo os problemas da guerra, retorna à questão da lentidão de
certos Estados em tomar decisões*^, isso deriva de que o modo de

131. C. LEFORT, op. cit., 551.


132. J. G. A. POCOCK, op. cit., 177-178.
133- "Non sono meno nocive ancora ie deiiberazione lento e tarde che le ambigue,
massime quelle che si hanno a ditiberare ín favore di alcuno amico, perché cott la lentezza
loro non si aíuta persona, e nuocesi a se medesimo". N. MACHÍAVELLÍ, Idem, II, 15.
preparação da guerra não é diferente do modo de organização da vida
política interna. Ora, a capacidade de tomar decisões depende da "virtü"
de um povo, o que nos faz esperar que uma república será sempre capaz
de responder ãs ameaças exteriores de forma mais eficaz do que uma
oligarquia e ainda mais do que uma tirania. A classe dirigente pode
sempre desejar conquistar novas terras, ou evitar uma guerra fazendo
uso de artimanhas diplomáticas, mas não pode fazer a guerra sozinha,
como sonhavam os nobres medievais. Disso decorre que quanto maior
é a participação popular nos negócios do Estado, mais o povo se sente
concernido com seus problemas, mais participa das decisões, com mais
vontade se lança numa guerra. A crítica que Maquiavel faz dos costumes
florentinos é, desse ponto de vista, uma crítica de sua classe dirigente,
mas também uma constatação da falta de "virtu" de todo seu povo'^.
Cometeriamos um engano, no entanto, se transformássemos a con­
clusão anterior numa verdade absoluta, numa lei que ligaria de maneira
indissociável a capacidade de tomar decisões e a forma republicana'^. O
que interessa a Maquiavel não é discutir os mecanismos institucionais
que permitem a tomada de decisões, mas a compreensão de que, a cada
forma constitucional, corresponde uma maneira de responder às exigên­
cias da guerra. Podemos esperar, então, que a conservação exprima o
conflito de classes e destaque as diferenças essenciais que existem entre
os diversos regimes na condução dos conflitos externos.
Continuando a leitura do segundo livro dos Dtscofst, temos a impres­
são, do capítulo XVI ao XVIII, de que Maquiavel quer tratar o problema
militar à luz de considerações meramente técnicas. Isso era de se esperar
num autor da Renascença, uma vez que a invenção da artilharia e o fim
do ideal medieval do guerreiro nobre levaram muitos autores a buscar um
novo modelo para a compreensão da guerra'^. Mesmo participando desse
movimento, nosso autor aproveita essas discussões para aprofundar sua
visão das ligações entre política e guerra. Tal procedimento levou certos
intérpretes a acreditar que o pensamento militar é um simples fogo de
retórica, desprovido de interesse real no que concerne às questões espe-

134. "E se i Fiorentini avessono notato questo testo, non arebbono avuto co' Franciosi
né tanti danni né tanti noie quanto ebbono nella passata che il re Lutgi XH íece in Italia
contro a Lodovico duca di Milano": ibidem, It, 15.
135- Maquiavel havia dito no primeiro livro dos Dtscord.- "Ma la piu cattiva parte che
abbíano le tepubliche deboli è essere irresolute; in modo che tutti i partiti che ie pigiiono,
gli pigliono per tbrza, e se vien loto íatto a)cun bene, lo fanno forzate e non per prudenza
loro". Ibidem, I, 38.
136. A melhor reíerênda para a questão é: C. C. EAYLEY, W&ratKÍ áoclefy
Uníversity o f Toronto Press, 1%1.
cíficas de que t r a t a i O interessante dessa crítica é que ela já se fazia na
época de Maquiavel e foi respondida de maneira sagaz no décimo oitavo
capítulo, onde se recusa o recurso à figura de Aníbal, como exemplo de
que a infantaria era uma força superada. Maquiavel mostra que o argu­
mento de autoridade (Renaudet recorre a Napoieão para fundamentar
suas observações) é facilmente combatido se lembrarmos que a República
romana produziu dezenas de grandes capitães, enquanto Aníbal foi um
só, e derrotado no fim pela "virtu" rom ana^.
Não levando em consideração o furor retórico de Renaudet, pode­
mos apreciar o aspecto técnico do pensamento de Maquiavel de uma
outra maneira. Sua percepção do papel da artilharia não pode ser vista
como um comentário meramente técnico; o que lhe interessa na infan­
taria é que ela expõe a nossos olhos o nervo da guerra: a "virtú" dos
combatentes. Clausewitz reconheceu que essa dimensão do pensamento
do secretário permanece extremamente atual, mesmo com todos os pro­
gressos na arte militar e as evidentes modificações na forma dos comba-
tes'3*.
Mas deixemos de lado os detalhes técnicos e retornemos ã ligação
entre guerra e política^. As discussões sobre a organização do exército
romano, a artilharia e a infantaria mostram-nos como o povo romano
participava da conservação e da expansão do Estado. A análise da arti­
lharia^, longe de negar a importância dessa nova invenção, convence­
mos de que ela não muda substancialmente a relação dos homens com
a "fortuna" — da qual a guerra é uma imagem. A conclusão de Maquiavel
é que nenhuma transformação técnica é capaz de modificar o papel da
"virtu" na condução dos negócios públicos^". Não se trata de dizer que

137. A. RENAUDET, op. cit., 107.


138. N. MACHtAVELLt, II, 18.
139. F. GiLBERT, "L'Art deila Guerra" in <? í7 y w tcwpo, H Mulino, 1977, 287.
Ver tamMm a esse respeito a carta de Ciausewitz pubiicada em: FICHTE, Payot,
1981, 197.
140. Toriginalità e !a forza deli'atteggía mento di Machiaveüí sono cosi dovute
aifampiezza delia sua concezíone; egli abbmcciú 1'lntero compiesso dei problemi miiitari
e si rese conto deii esistenza di unintima reiazione tra il particoiare técnico miiitare e il
conceito generaie deiia guerra, tra ie istituzioni miiitari e 1'organizzazione política". F.
GíLBERT, op. cit., 283-
141. N. MACHIAVELLI, DFrccsí, 11, 17.
142. "Tanto che se gii uomini non dlmostrano particularmente la loro virtu, nasce non
dalle artigiierie, ma dai cattivi ordini e dalla debolezza degii esercitt, i quali mancando di
virtu nel tutto, non la possono mostrare nella parte". Idem, 11, 17. Clausewitz ioi sensível
a esses argumentos, como demostram as linhas seguintes: ^'avoue que j'ai une très haute
idée de la supériorité de cette façon de iaire ia guerre ou une vertu guerrière anime dans
ses plus inúmes parties 1'armée tout entière, et oú Peffort fbndamental de 1'art mÜitaire est
dans 1'utilisation la plus achevée de cette vertu guerrière ; et, )e l'avoue aussi, je crois
qu'e!ie écrasera tout autre art militaire, aussi paríait soit-ii en tant que produit de
1'entendement...": op. cit., 202.
a arte da guerra não mudou com os séculos, mas sim de mostrar que a
mudança dos costumes militares dos italianos, ao longo do "trecento" e
do "quattrocento", deveu-se muito mais a mudanças política do que à
invenção da artilharia^. É preciso, pois, ao estudar o problema militar,
recorrer sempre âs suas implicações políticas.
O elogio da infantaria é, nesse sentido, exemplar. Durante suas
experiências como comissário, Maquiavel pôde constatar como é difícil
formar um corpo de infantaria. Isso não se deve à natureza dos homens,
mas à natureza de suas relações com o Estado. Podemos concluir que a
organização de uma milícia popular é o momento em que melhor se
constata a importância do elemento popular na criação de um Estado
forte. A guerra é, desse ponto de vista, uma experiência privilegiada,
pois é a expressão da forma mais radical de participação do povo nos
negócios da cidade. Essa questão vinha sendo levantada, desde Bruni,
mas ficara sem resposta, uma vez que o humanista ainda via na milícia
um instrumento de controle aristocrático da vida política. A descoberta
de Maquiavel não é, portanto, a da importância de uma boa milícia, mas
sim de que uma boa milícia exige uma forma democrática de governo^.
Nossa conclusão remete-nos ao tema da conservação. Chegamos
novamente à formulação inversa à dos intérpretes que vêem no povo
apenas uma força passiva na cidade. A análise da questão militar mostra­
mos que é defendendo a pátria dos ataques externos que o povo atinge
o maior grau de participação nos negócios da cidade, mas essa forma de
integração só tem sentido porque é uma forma radical de relação com o
Estado, e não porque seja a única reservada ao povo. Para Maquiavel, ao
contrário, o exercício da cidadania em uma república implica o serviço
militar, o cidadão é fúndamentalmente um cídadão-soldado. Com isso
ele nos leva a pensar que existe algo como uma conservação contínua
da cidade, que sendo diferente da fundação contínua, nasce da mesma
exigência de criação ininterrupta do social.
Não podemos deduzir daí que Maquiavel apague a diferença existen­
te entre as ações do povo e as dos grandes homens. Em toda sua obra,
não cessou de afirmar que toda cidade tem necessidade de grandes homens
para vencer os obstáculos da " f o r t u n a " ^ , o que ele mostra, usando para

143- "EU infra i pecati de' principi italiani, che hanno íatto ItaÜa serva de' forestierí, non
ei è ii maggiore che avete tenuto poco conto di questo ordine, ed avere volto tutta la sua
cura alia milizia a cavalío. H quate disordine è nato per la malignitã de' capi, e per )a
ignoranza di coloro che tenevano stato": idem, II, 18.
144. Idem, ítárfe gnema, Proemio.
145- Ibidem, II, 22.
isso o exempio dos tiranos que constroem fortalezas para se isolar do
povo, é que não é possível erigir uma cidade forte sem a compreensão
do papel essencial da "virtu" popular. O tirano, ao buscar refugio num
edíficio — símbolo de uma distância que ele deseja infinita — , mostra
apenas a vontade de tomar real sua representação do poder, fazendo de
forças imaginárias o alicerce de um poder absoluto. O confronto com
outros povos demonstra o quanto se enganam os que querem suprimir
a presença do povo na vida pública'^.
O longo movimento de aproximação da política com a guerra, do
qual esboçamos alguns momentos, é concluído no trigésimo capítulo do
segundo livro dos Díscorst.'^ Voltando a analisar a relação da potência
econômica com a força militar, Maquiavel mostra que a tradição aristo­
crática de confiar a defesa da cidade a mercenários fazia parte de um
desejo voluntário de enfraquecimento do povo. Essa política deliberada
de destruição do elemento popular e, como vimos, das bases de um
poder sólido e durável, escondeu-se no que podia parecer um raciocínio
evidente para homens acostumados a pagar por sua defesa. Nosso autor
conclui: "Seria por demais longo contar quanta terra os florentinos e os
venezianos compraram, do que resultou grandes desordens, pois o que
se adquire com ouro não se sabe defender com o ferro"''"*.
Em lugar de acusar a "fortuna" pelos fracassos das repúblicas italia­
nas, Maquiavel mostra que a fraqueza militar era devida a uma política
deliberada de destruição da antiga ordem militar. Guardando o nome da
liberdade, a Itália era governada pela aristocracia ou pelos tiranos, des­
prezando o único elemento que poderia tê-la socorrido nas invasões
estrangeiras'^. Não bastava, como queria a facção mais democrática d e .
Florença, dar espaço ao povo nos órgãos deliberativos, era preciso criar
mecanismos que permitissem a expressão do desejo de liberdade. O
mecanismo mais eficaz dessa participação é justamente a milícia. Através
da questão militar, confirmamos a idéia, que já havíamos avançado, de
que uma república não é apenas o conjunto de suas instituições, mas sim
o fruto de uma "virtü", que se exerce constantemente no espaço públi­
co '^ . Daqui podemos passar diretamente para a análise da problemática
da fundação contínua.

146. Ibidem, U, 24.


147. "La vérité qu'enseigne ie phénomène de ia guerre et que recouvrent ies modemes,
croyants et inctoyants, morai istes et réatistes, c'est donc ceile-iã même que nous entrevoyons
à l'examen de t organisation interne de ia cité. Le discouns de ia guerre et ie díscours de
ia poiitique ne font qu'un": C. LEFORT, op. cit., 556.
148. N. MACHIAVELLI, Discorsi, H, 30.
149- Idem, H, 30.
150. ibidem, il, 30.
//.2. /\ funcfoçõo coof/nuo
No primeiro livro dos Maquiavel afirma que nenhuma fun­
dação pode escapar aos efeitos do tempo. Isso nos leva a pensar que os
atos de conservação que acabamos de estudar, mesmo em sua forma
mais radical da cidadania militar, não são capazes de frear o processo de
corrupção que se instaura tão logo um corpo político nasce. Para tentar
descobrir uma maneira de resistir aos efeitos do tempo, devemos, de um
lado, estudar mais a fundo o processo de corrupção — tema de nosso
próximo capítulo — , e de outro, buscar no universo das ações humanas
uma que seja capaz de devolver à "polis" toda a íbrça do primeiro
momento. O ponto de partida para essa interrogação nos é fornecido
pelos humanistas em sua eterna busca da idade de ouro da cidade: o
momento da fundação. Maquiavel não partilhava das crenças de seus
predecessores, mas também partiu da importância do primeiro momento
para pensar o combate à corrupção.
No final do primeiro livro^', Maquiavel mostra que a relação entre
os grandes capitães e a "plebe" não podem ser consideradas simples­
mente como relações de autoridade e dominação. Através do estudo do
papel que um grande homem pode ter diante de uma multidão exaltada,
chegamos â conclusão de que não podemos reduzir a luta de classes ao
choque de desejos opostos e inconciliáveis. Se Maquiavel diz que a
classe dirigente é a responsável pela corrupção,*^ ele evita, elogiando os
grandes homens, a ilusão da existência na sociedade de uma "classe
boa", que em nada contribuiría para a destruição das formas políticas.
O tema da fundação contínua é precedido, no segundo livro dos
DiscoKH, pelo elogio do papel do povo na conservação do Estado, atra­
vés da participação na defesa da cidade e nos mecanismos de decisão,
e pela afirmação, aparentemente contraditória, da importância dos gran­
des homens e da ação individual^. Criticando Veneza por não permitir
a seus generais agir livremente, Maquiavel mostra que existe uma esfera
da ação que depende da "virtu" de um grande homem e não pode ser
substituída pela boa regulação da vida institucional^. Estamos diante da
questão da fundação contínua.

151. Ibidem, I, $3, 54.


152. Ibidem, I, 58, 59
153. "E per dimostrare a qualunque quanto le azíone deg!i uomini particolari faces sono
grande Roma a causassino in queita città moíti buoni effetti, verro alia narrazione e discorso
di quegti, intra e termini de' quati questo terzo libro ed ultima parte di questa prima deca
si conciuderà": ibidem, in, 1.
154. "Questa parte si è piú votontíeri notata da me perché io veggo che le repubiiche
de' presenti tempi come è ta Viniziana e Fiorentina la intendono aitrimenti: e se gli loro
capitani, prowerditori o commessari hanno a piantare una artiglieria, lo vogjiono intendere
e consigíiare. 11 quate modo menta quaHa iaude che meritano gli aitri, i quaii tutte insieme
le hanno condotte ne' termini che a! presente si truovano": ibidem, H, 33.
O primeiro capitulo do terceiro livro dos Discorst contém o núcleo
da doutrina de Maquiavel sobre o tema que nos interessa. Devemos
notar, de início, que o tema da fundação era conhecido dos humanistas,
que buscavam no passado o momento exemplar da constituição da ci­
dade. Nosso autor começa assim sua reflexão atacando a idéia de que a
fundação é um problema que diz respeito apenas ao passado. Sua estra­
tégia é a de começar falando do problema através do recurso à metáfora
do corpo, da fundação dos corpos mistos, para nos levar a pensar que
a fundação não é algo próprio do político, mas da vida humana em
gerar 55. Não somente as cidades são fundadas, mas também as religiões,
as seitas e outras formas de organização social. Ao fazer uso da metáfora
orgânica, no entanto, Maquiavel não sugere que a fundação seja um
fenômeno "natural"^. Sua intenção é simplesmente a de destruir o mito
florentino da criação perfeita e abrir o campo para uma reflexão que leve
em conta a ação e a contingência do mundo em que esse mito existe.
A primeira novidade do capítulo é a afirmação de que, se quiserem
resistir aos efeitos da corrupção, todas as formas políticas devem voltar
aos princípios de sua existência^? Afirmando que todas as formas de­
vem operar a volta a sua constituição original, Maquiavel põe em xeque
toda a tradição do humanismo cívico, para a qual o retomo ao primeiro
momento significava, antes de tudo, um retomo à liberdade original. Ao
universalizar essa exigência, o secretário destrói o mito do privilégio
florentino e abre as portas à interrogação da eficácia da ação humana
num mundo ameaçado pelo apetite devorador do tempo. É claro que as
diferenças dos regimes não desaparecem, que cada forma política con­
tínua a poder ser identificada pelas leis positivas que a compõem, mas
não temos mais qualquer garantia de que a liberdade será conservada,
pelo simples fato de que um povo escolheu a forma republicana no
momento de criação de suas instituições.
Assim, quando, em seguida, Maquiavel afirma que a fundação con­
tínua é fruto da ação de um homem ou de uma lei^, estamos em con­
dição de concluir que se trata de uma exigência â qual se quer dar um
caráter universal. Deixando de lado qualquer classificação abstrata dos
regimes, passa-se a pensar o retomo ao passado em confronto com as

155. Ibídem, 31, 1.


156. Maquiavel insiste sobre a metáfora do corpo. "E questí dottori di medicina dicono,
parlando de' coipi degii uomini: Quod quotidic aggregatur aiiquid, quand quadoque indiget
euratione": idem, 111, 1.
157. Ibidem, 111, 1.
158. "Surge adunque questo bene nelie repubüche, o per virtú d'un uomo oper virtü
d'uno ordine". Ibídem, 31, 1.
exigências do presente e, portanto, como um imperativo de qualquer
ação visando à conservação dos regimes. Podemos resumir a problemá­
tica da fundação contínua através da bela fórmula de Claude Lefort: "Tal
é a verdade do retomo às origens: não um retomo ao passado, mas uma
resposta, no presente, análoga à que foi dada no p a s s a d o " '^ .
As ações espetaculares, assim como as novas leis, sào, pois, sempre
medidas radicais, que se mostram capazes de operar a difícil tarefa da
conservação, ou seja, a resistência â c o r ru p ç ã o '* ". Com isso não se está
dizendo que o passado não tenha interesse para o presente. Ao contrá­
rio, as ações dos grandes capitães servem sempre como fonte de inspi­
ração para nós. O que se vê através dessa exemplaridade é que não
existe propriamente diferença entre as diversas fundações pelas quais
uma república deve passar e, consequentemente, que nossos gestos têm
de ser de mesma natureza e valor que os de nossos heróis do passado'*'.
Ao evocar a renovação da Igreja realizada por São Francisco, assim
como a refundação da monarquia francesa, Maquiavel reafirma a tese de
que a fundação não se reduz ao momento histórico no qual foram cria­
das as leis de um povo, mas que eia implica a ocupação imaginária do lu­
gar de união entre o povo e seu princípio de organização. Não há lugar,
portanto, para se falar de um privilégio florentino, em todos os casos,
as formas políticas devem produzir, no momento de seu aparecimento,
um imagem do poder capaz de reunir os homens e conservá-los nessa
união.
Ao fim do primeiro capítulo, estamos em condições de compreender
por que Maquiavel insistiu tanto, nos dois primeiros livros dos Dtscorsr,
na importância dos grandes homens para a conservação de uma repúbli­
ca. O grande capitão republicano não é admirado nem por sua persona­
lidade, nem pelo espetacular de suas ações, mas por compreender que
as leis são fruto da ação humana e, assim, que devemos muitas vezes
violá-las para recuperar sua força imaginária. Não é, portanto, do bom
cidadão que depende, no limite, a conservação de um regime, mas
daquele que, compreendendo o caráter humano das leis, as transgride,
quando necessário, para que o comum dos homens continue a tratá-las
como universais. Esse gesto de recriação contínua do social, no entanto,
não é possível a partir apenas da decisão de uma mente privilegiada. É
necessário que haja coincidência entre as condições efetivas de uma
sociedade, o desejo de seus fundadores e o estágio de corrupção de seu

159. C. LEFORT, op. cit., 601.


160. N. MACHÍAVBLLI, ühcotyi. II!, 1.
161. C. LEFORT, op. cit., 601.
povo'^. A fundação contínua é necessária exatamente porque toda for­
ma política corre o risco de se degenerar, a tal ponto que a ação humana
perde sua força criadora, ou dito de uma outra forma, que a fundação
não seja mais possível.
O primeiro momento é descrito, por isso, como um momento de
grandeza e de horror. No terceiro capítulo do terceiro livro dos Dtscofsí,
Maquiavel afirma que a indiferença de Brutus diante da morte de seus
filhos fbi essencial para a construção da república rom ana^. Sem ela,
não havería o exemplo de que a coisa pública pode ser mais importante
do que os sentimentos paternos, que as leis têm algo de terrível, porque
são filhas dos homens, mas estão acima deles e devem modelá-los à
imagem de um corpo político que lhes é superior, isso não quer dizer
que devamos tratar a questão da fundação através da análise da passa­
gem da "boa natureza" humana à sociedade política, como sugere Leo
Strauss^. Num certo sentido, ao recusar a herança medieval, que con­
siderava o pecado originai como um dado primordial para se pensar a
política, Maquiavel não adere inteiramente à tese, que será mais tarde de
Hobbes, de que se deve partir da natureza humana e do contrato para
se pensar a instituição das sociedades políticas. Sua estratégia é a de
aceitar o conceito romano de fundação, antes de lhe conferir uma nova
significação. Isso era essenciai para recuperar uma idéia que deixara de
fazer sentido há muito tempo. Para os medievais, o rei era simplesmente
o executor de leis cuja origem estava em Deus. Nesse sentido, mesmo o
soberano não tinha o direito de criar novas leis, e a ação política estava
restrita ao gestos de conservação. Isso explica a grande importância da
noção de estabilidade no pensamento político medieval, idéia que con­
servou sua força até a época de nosso autor'^. Fica claro, assim, por que
Maquiavel tinha necessidade de partir da tradição clássica para propor
algo tão radical quanto sua teoria da fundação contínua. Num mundo

162. Nesse sentido estamos de acordo com Lefort quando diz: "Penser 1'action, et
d abord déterminer quetque chose comme une action, n'est possible qu'à ]a condition de
1'articuier á 1'institution et de découvrir !e tripie rapport qui 1'ordonne à la !oi, au reel et à
la vérité": op. cit., 605.
163. N. MACHIAVELL1, HI, 3.
164. Leo Strauss interpreta o retomo ao começo de uma maneira "antropológica": "Bn
gÉnérat, le rétour au commencement signifie le retour à la terreur qui accompagne ta
fbndatton. Ce que Machiavet entend par retour au commencement, c'est !e retour A la
terreur primordiale ou originelle, celle qui précède toute terreur qui est te fait de 1'homme
et qui permet de comprendre pourquoí le íbndateur peut et doit íaire usage de la terreur.
Ce que Machiavet entend per retour au commencement, c'est le retour à !a terreur inhérente
à la situation propre à l'homme, le retour á sa vulnérabilité essentielle": op. cit., 186.
165. E. KANTOROW1CZ, Impem tore, Garzanti, 1988, 213.
dominado peta idéia da paz e da segurança, era preciso recorrer à his­
tória para reveiar as exigências do presente.
Não nos afastamos com isso de nossas considerações anteriores,
nem estamos sugerindo que a cidadania militar não seja essencial para
a grandeza de uma república*^. Apenas radicalizamos o que já havíamos
mostrado através do estudo da "fortuna" e da "virtú", a saber, que a
contigência do mundo faz do corpo político a obra inacabada de um
artista que não consegue fugir das tramas de seu pior inimigo: o tempo.
Por isso, o movimento de identificação do homem político com o grande
capitão se completa, no trigésimo primeiro capítulo do terceiro Üvro dos
Díycoryt, com a análise tias ações de Camilo, que destaca o papel infi­
nitamente superior da "virtú" na economia de um pensamento dedicado
a desvendar os mistérios da política. Maquiavel, num movimento surpre­
endente, nos diz que os grandes homens "têm sempre o mesmo ânimo
e isso, em consonância com seu modo de viver, faz com que a fortuna
não tenha domínio sobre eles"'*?.
Esse texto não deixa de ser surpreendente, e isso por dois motivos.
Em primeiro lugar, porque Maquiavel, depois de analisar longamente o
comportamento dos grandes capitães, nos diz que eles estão acima da
"fortuna" e podem responder a seus golpes. Para chegar a essa conclu­
são que modifica muitas de suas afirmações anteriores, ou pelo menos,
nos convida a reler os fMscorsf com olhos novos, ele abole a distinção
entre o homem de guerra e o homem político^. Ora, para efetuar esse
passo ousado, a evocação de Camilo era essencial. No trigésimo capítu­
lo, nosso autor já havia notado que sua "virtú" militar estava estreitamen­
te associada à sua devoção à causa republicana^. Assim o guerreiro, em
sua forma mais perfeita, é também o cidadão mais perfeito. Organizando
a defesa da cidade contra três inimigos diferentes, Camilo mostra que,
respeitando profundamente a lei, era o único capaz de desvelar os
mecanismos de sua produção. Ao contrário, por exemplo, de Sodenni,

166. Lefort sugere que o terceiro livro seja compreendido a partir de sua significação
política: "Ce retour aux conditions presentes de 1'action nous incite à penser que !es
analyses qui précédent, les íongues considérations touchant la stratégie du capitaíne au
combat et la nature de son autorité ont une portée politique immédiate, que la même
réflexion se poursuit depuis le déhut du livre par des voíes différentes": op. cit. 627-28.
167. N. MACHIAVELLI, Discofsf, IH, 31.
168. Idem, HI, 31-
169. Maquiavel insiste, no trigésimo capítuio, em afirmar a importância de Camilo:
"Laltro notabile È 1'ordine che Cammillo dette dentro e fuori per ia salute dt Roma".
que sempre confiou na boa sorte'?", Camilo não esperava nada da "for­
tuna" e agia sempre como se fosse a pior possível, exigindo o máximo
de sua "virtu"'?'.
Existe ainda uma segunda razão para nossa surpresa diante do ca­
pitulo ao qual fizemos referência. Maquiave! nos diz que os grandes
homens não mudam com a "fortuna", depois de ter afirmado, no nono
capítulo, que é preciso saber mudar para resistir a seus ataques'^. Como
primeiro passo para a compreensão do paradoxo, talvez devamos con­
siderar as ações dos grandes capitães partindo de uma abordagem dife­
rente daquela da oposição entre "virtu" e "fortuna". Nesse caso, Camilo
seria uma figura exemplar não porque possuísse uma "virtu" perfeita —
Maquiave! não deixa de criticar seus laços com a aristocracia e a parcia­
lidade de algumas de suas decisões — , mas porque, através de seus atos,
somos confrontados com a verdadeira lógica da construção da liberdade.
O capitão que foi capaz de salvar Roma, depois da invasão dos gauleses,
só pôde fazê-lo porque sabia que toda lei deve ser sempre refeita e, para
tanto, é preciso excitar a imaginação dos homens com um novo espetá­
culo de terror salutar. As contradições que parecíamos descobrir no
pensamento de Maquiave! nos ajudam, na verdade, a mostrar as exigên­
cias de uma ação que destrói paradigmas tradicionais do pensamento
político. É claro que nossas conclusões a respeito da "virtu" e da "fortu­
na" continuam válidas, desde que saibamos reconhecer que a ameaça da
corrupção suscita problemas que não podem ser resolvidos pela simples
análise das políticas de conservação.
O trigésimo primeiro capítulo do terceiro livro dos Díscots? marca,
portanto, uma virada no pensamento de Maquiave!. Explorando ao mesmo
tempo a grandeza da "virtu" romana e a fraqueza da república venezia­
na, ele mostra que cada povo constitui sua identidade através de ações
que permitem conservar suas leis contra o efeito demolidor do tempo.
Durante a história concreta de uma república, ou de qualquer outra

170. "Que!!'attro credeva, cot tempo, con la bontà, con ia fortuna sua, cot beneficare
atcurto, spegnere questa invidia, vedendosi di assai fresca età, e con tanti nuovi favori che
gfi anecava et modo de! suo procedere, che credeva potere superare queüi tanti che per
invidia se gti opponevano, sanza atcuno scandoto, violenza e tumuito; e non sapeva che
it tempo non si puo aspettare, la bontà non basta, !a fortuna varia e la malignità non truova
dono che la plachi": idem, Hl, 30.
171. Ihidem, Hí, 31-
172. Trata-se de um tema que será repetido mais tarde em í # C&sfmccfo
"Credo bene che questo nasca che voíendo !a fortuna dimostrare at mondo di
essere quetta che íaccia gti uomini grandi e non !a prudenza, comincia a dimostrare !e sue
fbrze in tempo che ia prudenza non ci possa avere alcuna parte, anzi da tei si abbi a
ricognoscere il tutto": Qpen?, 533.
forma política, a "fortuna" pode mudar de rosto várias vezes, mas não
afastará jamais a ameaça, que paira sobre a cidade, de corrupção de suas
instituições. É por isso que a "virtú" do grande capitão deve ultrapassar
os horizontes do tempo presente, a fim de compreender a luta infinita
para a constituição das leis de uma cidade — a fundação contínua. Nesse
caminho, a "fortuna" poderá ajudá-lo em sua tarefa, mas não apagará a
possibilidade de destruição do corpo político. Resta, então, aos homens
agir, na esperança de encontrar as veredas que, pelo menos, retardem a
ferocidade da corrupção.
Capítulo H/

OS LiMÍTES DA AÇÃO: A CORRUPÇÃO

Nós nos propomos a estudar neste capítulo a questão da corrupção


e suas implicações para uma teoria da ação. Analisar esse problema em
uma obra da Renascença obriga-nos a refletir sobre um tema
freqüentemente relacionado em trabalhos de autores da época: a lógica
das transformações históricas. Com efeito, para a maior parte dos escri­
tores italianos do período, a corrupção era um fenômeno inerente ao
curso das "coisas do mundo". Em seu desejo de romper com a tradição
cristã e retomar as bases conceituais tia Antiguidade, voltou-se à noção
de tempo cíclico e à sua consequência lógica, ou seja, a de que toda
sociedade política está sujeita à corrupção'.
Foi partindo desses pressupostos que os intérpretes de Maquiavel se
dividiram na hora de abordar a questão. Na tradição interpretativa, po­
demos destacar duas maneiras de tratar o problema. Segundo alguns, é
necessário se interrogar sobre as causas da corrupção, o que deve con­
duzir-nos a um estudo da natureza humana e das formas de condiciona­
mento dos diversos modos de vida e de ação por ela influenciados.
Segundo outros, a corrupção é um dado da história e como tal deve ser
pesquisada. Interessa muito mais descobrir a lógica de seu desenvolvi­
mento do que suas causas.

1. NATUREZA HUMANA E HISTÓRIA

A quesfõo do nofurezo humano em Maqu/ave/


Dentre os que escolheram a primeira via, podemos citar Mossini,
que produziu uma interpretação instigante da obra do secretário
florentino". Para ele, a corrupção da natureza humana está na raiz daque-

1. Veja a esse respeito: J. G. A. POCOCK, T&e MomefH 3-4.


2. L. MOSSINI, A&cess%à e A%g<? A. Giuifre, 1%2.
verdade que Maquiavel não dá qualquer importância à idéia grega da
sociabilidade natural dos homens, também não reduz seu pensamento à
afirmação da corrupção da natureza humana e de suas consequências.
Acreditamos que, contra Mossini, talvez seja mais fecundo pensar que o
etemo desejo de mudança não faz mais do que espelhar a indeterminação
do campo político, convidando-nos a procurar as vias obscuras da cons­
trução do social pela ação contínua dos homens na cidade^.

/A2, Moqu/ove/ e Po/Áb/o


Para compreender a questão da corrupção em Maquiavel, é melhor,
a nosso ver, escolher a segunda via que evocamos no começo do capí­
tulo, ou seja, compreender o fenômeno partindo do estudo de sua con­
cepção da história. Para tanto é necessário saber se existe algo como
uma "filosofia da história" em sua obra, se existe uma concepção da
temporalidade da qual podemos deduzir uma lógica do desenvolvimen­
to dos acontecimentos históricos.
Uma primeira leitura do segundo capítulo dos D?'sco?3v parece indi­
car que Maquiavel compartilha com alguns autores clássicos uma certa
concepção da história. Essa proximidade é sugerida pela classificação
dos regimes políticos que ele utiliza (Principato, Ottimati, Popolare), e da
idéia de que esses regimes "puros" se degeneram em formas imperfei­
tas^. Para explicar essa degradação, ele recorre a uma explicação difícil
de ser compreendida de imediato. Ele diz que as formas se degradam
porque nos regimes mais perfeitos há uma semelhança entre os vícios e
as virtudes ("per la similitude che ha in questo caso la virtude ed il
vizio")^. O estranho dessa explicação é que não se diz por que a
corrupção nasce da "similitude" entre o vício e a virtude nos regimes
"puros". Ele deixa o leitor imerso na perplexidade, para expor, numa
linguagem cheia de imaginação, o processo "natural" de formação das
sociedades políticas. Descreve-se, assim, como os homens, que viviam
como bestas, escolhem um rei e como a realeza degenera-se naturalmen­
te em uma tirania. Essa tirania engendra uma aristocracia que, ao se
degenerar, cria uma oligarquia. Todo o processo encontra seu fim com

13- F. Gilbert dá uma solução diferente da de Mossini para o problema das relações
entre "natureza humana" e "leis políticas": "In tuttí i suoí scrittt Machiavelli enuncia il
principio che gli uomini sono universalmente cattivi, e 1'ipotesi delia partecipazione di tuttí
gli uomini a un'identica natura è la premessa delia sua fede nellesitenza di leggi polittche
di validità generaie": F. GILBERT, Macbiawfff e CMfccínrdÍMf, Einaudl, 1970, 162.
14. N. MACHIAVELLI, ZXycotsí, 1-2.
1$. Idem, 1-2.
o nascimento da democracia e sua transformação posterior em anarquia.
Maquiavei conclui essa descrição dizendo que "esse é o círculo no qual,
girando, todas as repúblicas se governaram"^.
Para um leitor da Renascença, seria fácil constatar que Maquiavel
segue em sua descrição o sexto livro das de Políbio. Aderindo
a uma visão clássica da questão, recusando a concepção cristã do tempo
linear, o secretário florentino evita o choque com as mentalidades con­
servadoras de seu tempo, mas não nos desvela inteiramente o sentido de
seu gesto. Isso nos incita a fazer uma comparação mais detalhada do
texto dos dois autores, sobretudo porque Maquiavel deixa na sombra
uma explicação que é essencial para os nossos propósitos, ao não dizer
por que o regime misto é o melhor regime e pode escapar da corrupção.
A primeira coisa que observamos, ao comparar os dois textos, é que
na descrição de Maquiavel, da origem da realeza, os homens vivem
numa espécie de "estado de natureza": "...porque no princípio do mun­
do, sendo raros os habitantes, viviam um tempo dispersos como as fe-
ras"*7. Políbio, ao contrário, não faz referência à origem do mundo, mas
ao princípio do ciclo de constituições que quer descrever. Esse primeiro
momento não é para ele um momento de "não-sociabilidade", mas de
"sociabilidade fraca"
Mais radicalmente, podemos dizer que não existe em Políbio uma
teoria da origem da sociabilidade, pois ele acredita, seguindo a tradição
grega, que ela é imanente ao homem. O que lhe interessa é mostrar de
que maneira os ciclos da história se encadeiam, e como, depois da des­
truição das formas políticas, os homens podem voltar a percorrer os
mesmos caminhos de antes. Se analisarmos com cuidado a obra do his­
toriador grego, veremos que ele deixa sem resposta um bom número de
questões referentes à passagem de uma forma corrompida a uma forma
não-corrompida de governo, do mesmo modo que não esclarece intei­
ramente nossas dúvidas sobre a natureza do regime misto. No final do
seu raciocínio, ele mostra, no entanto, que o processo de degradação das
constituições é inevitável e fornece ao leitor, por esse meio, um ponto
de partida para o estudo dos diversos regimes^.
Maquiavel utiliza a teoria polibiana para convencer seu leitor de que
também possui uma base sólida, a partir da qual pode empreender seu
estudo sobre as repúblicas. Além do mais, ele aproveita a deixa para

16. Ibidem, 1-2.


17. Ibidem, 1-2
18. POLYBE, /RMoíras, Les Beltes Lettres, 1977, Ví, 5-
19. Idem, VI, 9.
justificar a escolha do regime misto como modelo de constituição repu­
blicana. Nesse momento do texto, a república romana aparece não so­
mente como aquela que conheceu grandes glórias, mas também como
aquela que melhor cumpriu as exigências impostas pela "lei natural" a
todas as formas de governo que querem escapar da corrupção que ameaça
os regimes puros.
Para que a adesão do secretário florentino fosse completa, era pre­
ciso que ele declarasse explicitamente que aderia à idéia de um etemo
retomo e, assim, que o modelo de Políbio servia taml)ém para compre­
ender a política de seu tempo. Se Maquiavel diz que o tempo é cíclico,
também não deixa de nuançar de tal forma essa afirmação, que termina­
mos por achar que a ciclicídade do tempo é apenas um paradigma abs­
trato, capaz de apontar uma tendência, mas não de desvelar o reai. Com
efeito, depois de assumir que a história é cíclica, acrescenta: "... mas
raras vezes os governos retornam ao mesmo ponto, porque quase ne­
nhuma república pode durar tanto que possa passar muitas vezes por
essas mutações e permanecer viva"^.
O mínimo que podemos conciuír dessas observações é que a adesão
de Maquiavel às teorias de Políbio é apenas parctaP'. O importante, no
entanto, é que, ao final do segundo capítulo, podemos afirmar que a,
corrupção é um "processo natural", que revela a lei atemporal à qual
todas as repúblicas estão submetidas, conclusão plenamente confirmada
ao longo dos
Estamos diante de uma afirmação decisiva, mas devemos reconhecer
sua insuficiência. Dizer que a corrupção é um fenômeno natural, nada
esclarece sobre os limites que impõe à ação humana. Sem dúvida,
Maquiavel estava consciente dessa limitação, vista a importância que
confere aos atos de conservação e criação e o elogio que faz dos grandes
homens da república romana. Ele prefere, no entanto, calar-se sobre as
dificuldades que apontamos e conduzir seu leitor a pensar que já possui
um paradigma para o estudo de Roma que domina o primeiro livro dos
Discorsf.

20. N. MACHIAVELM, fMícotsí, 1-2.


21. Para uma análise detalhada das relações de Maquiavel com Políbio ver: G. COLONNA
D ISTRIA, f '%?? a&ar ef J. Vrin, 1980, 155-206.
Concordamos em muitos pontos com suas conclusões, sobretudo quando diz; "Machiavel
n'est nullement fldèle à Polybe, il ne s'interesse pas à l'aspect strictement constitutionnel
des faits polítiques. La croyance en un retour cyctique des mêmes Événements ne nous
permettrait pas de répondre à ce que la necessite toujours imprévisibie nous met sur ie
bras" (aqui p. 164).
22. N. MACHIAVELU, ZMycorx?, ni-1.
Se ficamos insatisfeitos com os argumentos até aqui analisados, ao
menos poderiamos pensar que, ao apontar o caráter natural da corrupção,
descartamos de vez a tese de Mossini. Como fenômeno natural, a
corrupção seguiría uma lei que diz respeito a todo o "cosmos" e não
somente ao homem em sua singularidade, o que desviaria a discussão da
questão da natureza humana.
Nossas certezas não resistem nem mesmo â leitura do terceiro capí­
tulo. De maneira surpreendente, nosso autor fala mais uma vez da "mal­
dade dos homens" como um dado fundamental de toda teoria política:
"Como demonstram todos os que estudam as sociedades políticas, e
como a história está cheia de exemplos, é necessário, para os que gover­
nam as repúblicas e criam leis, pressupor que os homens são maus, e
que, sempre que puderem, darão vazão à maldade que lhes é própria"^.
Para entender essa reviravolta do texto maquiaveliano, devemos lembrar
que Políbio nunca falou da natureza humana quando analisava a
corrupção. Para ele, trata-se de uma "necessidade natural", à qual estamos
submetidos, sem que sejamos capazes de descobrir as razões mais pro­
fundas^. Poderiamos talvez pensar que Maquiavel, aceitando a lei do
etemo retomo, procura ir mais longe que seu mestre para descobrir a
"causa" da corrupção, partindo da análise da "natureza humana". O que,
para Políbio, era uma "necessidade natural"^, seria, para Maquiavel, uma
lei imanente aos homens. Ora, para aceitar essa interpretação, seria pre­
ciso poder explicar como é possível a existência de regimes "bons" na
história — Esparta, por exemplo — , ou, dito de outra forma, como
podemos falar de "virtú" referindo-nos a uma natureza essencialmente
corrompida.
Já vimos que Maquiavel jamais intepreta a "virtu" como um dado
antropológico. Para ele, a "virtú" exprime uma capacidade de agir no
interesse do bem público, nada deixando supor que o ciclo das consti­
tuições possa ser interpretado como manifestação de uma natureza má.
Ao contrário, o que devemos explicar é a maneira como a corrupção
impede a "virtú" de se manifestar nas cidades onde já atingiu graus
elevados. Dessa maneira, não resolvemos inteiramente o problema que
o capítulo suscita, mas podemos pelo menos adiar a solução de um

23. !dem, ! 3
24. Ele nos diz, ao contrário: "Como a espécie humana se distingue dos outros seres
vivos por possuir inteligência e razão, seria estranho que uma tai diferença de conduta não
fosse notada, como no caso dos animais" POLYBE, op. cit., V!, 6.
25. Poiíhio M a de "necessidade natural": "Ucutgo, de fato, estava consciente de que as
mudanças em questão produziam-se em virtude de uma necessidade natural": op. cit., V,
10.
enigma que também não pode ser desvelado pelo simples recurso a uma
idéia desfavorável da natureza humana. Ao atrair o leitor para o berço da
tradição^, Maquíavel evita, na verdade, que ele se choque contra as
terríveis revelações do quarto capítulo a respeito do conflito de classes.
Assim, pelo menos em parte, a evocação da natureza humana não pode
ser compreeendída esquecendo-se o esforço de sedução do leitor que
caracteriza a obra maquiaveltana. Como acontece com todas as afirma­
ções do segundo capítulo, é preciso esperar o desenvolvimento do livro
para descobrir-lhes o significado.
Constatando, mais uma vez, que uma leitura linear do texto é inca­
paz de nos reveiar seus segredos, achamos que talvez fosse interessante
estudar um pouco melhor Políbio, para compreender o uso que faz
Maquíavel de seus escritos. Uma primeira observação que desperta nossa
atenção é que o historiador grego estava plenamente consciente de suas
limitações. Ao retomar a imagem do círculo — noção que vinha da física
— ele simplificava ao máximo sua visão do desenvolvimento dos acon­
tecimentos singulares e contingentes. É verdade que isso foi possível
porque ele recorreu à idéia de tempo circular, que permitia que abando­
nasse fatos que de qualquer maneira perderíam seu significado diante do
desenrolar inexorável da história. Políbio podia fazer uso dessa concep­
ção da temporalidade sem se preocupar com uma grande elaboração
teórica que há muito já se incorporara â tradição. Esse uso traía, entre­
tanto, uma grave deficiência teórica.
Platão e Aristóteles também recorrem à imagem do círculo para
estudar os fenômenos da geração e da corrupção característicos da
"physis". Aristóteies, no entanto, não concebe o tempo como um concei­
to capaz de explicar a instabilidade das formas políticas. Ao contrário,
ele busca na lei do etemo retomo o exemplo de uma essência — o
tempo — que existe para além das mudanças aparentes que o afetam^.
Políbio, por sua vez, descreve as transformações sociais como se fossem
fenômenos comparáveis âs mudanças da natureza^. Em virtude dessa
simplificação, diz que a "fortuna" é o agente responsável pelo desenrolar
dos ciclos da história. Se o ciclo exprime uma "necessidade dos corpos
mistos", a "fortuna" é seu motor, sendo, por isso mesmo, portadora de

26. Colonna dlstria já aludiu ao fato de que Maquíavel (D. I. 2) critica Agostinho através
da teoria do etemo retomo: op, cit., 164.
27. De fato, na A&fc#, Aristóteies fafa-nos do "tempo" em sua dimensão física, e do
"tempo" dos fenômenos sociais, mostrando que os dois pertencem à mesma essência.
ARISTOTE, Les Belfes Lettres, 1926, IV, 223b.
28. Pocock resume assim essa idéia: "To Pofybius the cycle was a physis, a naturai cycíe
of birth, growth and death through which republics were bound to pas": op. cit., 77.
uma finalidade que está ausente na obra de Maquíavel^. A intervenção
da "fortuna" no mundo não é assim um gesto cego. Embora não saiba­
mos qual o sentido exato de sua ação, podemos estar certos de que ela
conduz a um fim determinado. Para Maquíavel, ao contrário, a "fortuna"
é um elemento importante para a compreensão dos acontecimentos,
pois nos lembra que somente a "virtú" pode enfrentar as ameaças do
tempo, ainda que não saibamos em que sentido a roda da história vai
girará
Diante das evidentes fraquezas da obra de Políbio, só compreende­
mos a importância que teve para toda a Renascença italiana, assim com o
para M aq u íavel,se nos lembrarmos das perguntas que parece respon­
der. Os humanistas haviam procurado desesperadamente uma maneira
de salvar a república dos efeitos do tempo. Sendo ela, no entanto,um
regime como os outros, com o poderia esperar alcançar a eternidade^
Políbio explicava não somente as razões do processo de degradação —
a corrupção — , mas também a maneira de evitá-lo — o regime misto. Ele
fornecia assim uma teoria capaz de se opor ao modeio cristão e de
conferir legitimidade a uma escolha que parecia aos pensadores medie­
vais mero capricho da vontade. A eficácia de sua influência deveu-se,
sem dúvida, á simplicidade da solução que apresenta e por ter evitado
tocar nos problemas filosóficos que suas idéias suscitavam. Recorrendo
à tradição grega, ele deixa de lado suas dificuldades, mas também sua
profundidade.
Nesse sentido, vale a pena lembrar que Platão não aplica mecanica­
mente o modelo do eterno retomo ao processo de transformação das
constituições. No ele fala da corrupção como um processo que
atinge, em primeiro lugar, o regime ideal e, em segundo lugar, os regi­
mes reais^. Na ele nos mostra, no entanto, que é preciso

29. Ver COLONNA D?STT3A, op. cit., 179ss.


$0. "Cependant ce qui chex Polybe demeure, lotsque ia recherche des causes échoue,
un résídu imponderabíe, devient pour Machiavet ta nature constante de ce que 1'homme
affronte en étant soumis aux événements et aux cífconstances": idem, 187.
31. N. MACHIAVELU, ORcotsL 11-29.
32. Ver POCOCK, op. cit., 75-76. Para a importância do modeto cictico durante a
Renascença, ver; F. E- MANUEL, qf7%%ogq&6fcoí T7ís?or% Stanford University Press,
1965, Chapítre 3. Sua conclusão a respeito do sucesso da teoria cíclica durante a Renas­
cença é interessante: "...many o f the cydicai theoríes o f the Reítaissartce, strange as it may
seem; were directed not against the idea o f progress, for it had not yet come into existence
in its modem guise, hut against the concept of regres sion of an absolute and irreversibie
fali from the pinnacle of excellence of the ancients, who had become final and deítnitive
modeis o f anistie and Üterary fbrms": p. 65.
33. Ver PLATÃO, "Le Poiitique" in OeMfnss GaiÜmard, 1950, 302a.
distinguir a passagem do regime ideal aos regimes reais das transforma­
ções que ocorrem nas constituições reais. Para íázer tai distinção, deve­
mos ievar em conta que as causas que provocam a degeneração do
regime mais perfeito não são de mesma natureza que as causas que
explicam as transformações sucessivas dos regimes. No primeiro caso,
Platão recorre à metáfora das musas, para mostrar que nada pode esca­
par aos poderes da corrupção, que seria preciso descobrir os segredos
de "Chronos" para evitar a destruição do melhor regime^. Mesmo afir­
mando que não podemos impedir a corrupção, ele nos diz que, se sou­
béssemos combinar o número de nascimentos com o número de mortes,
estaríamos a salvo das garras do tempo. No entanto, nossa natureza faz
que a boa proporção nunca seja encontrada e, assim, da primeira trans­
formação somos levados a transformações sucessivas, provocadas, so­
bretudo, pelo excesso na aplicação do princípio que define cada regime.
Ou seja, é à medida que a democracia exagera na aplicação do princípio
de igualdade que ela se destróf\ Na Fq&MÚ/íct?, Platão sugere que o
processo de corrupção é, no fundo, o processo de criação e destruição
de tipos de homens que correspondem, por seu temperamento, à essên­
cia do regime. Cada vez que o "homem aristocrático" perde sua identi­
dade, por ter levado longe demais suas pretensões à virtude, ele provoca
a destruição da aristocracia. No Fo/Aíco, Platão expõe um ponto de vista
ainda mais radical, porque nos diz que os regimes se corrompem sempre
por serem imperfeitos e, portanto, não poderem nem sonhar com o
equilíbrio da forma perfeita^.
Mesmo um observador superficial podería notar que Políbio não
leva em conta a grande complexidade do pensamento de Platão. Assim,
por exemplo, ele confere um caráter político a um fenômeno que em
Platão é de natureza cósmica, ou seja, a passagem do reino de "Chronos"
ao reino de "Zeus"^. Se Platão tivesse acreditado que o tempo das trans­
formações políticas é cíclico, da mesma maneira que o tempo da natu­
reza, seria impossível saber por que ele nunca afirmou que, do regime
mais degenerado, a tirania, podemos voltar ao mais perfeito, como fez
Políbio. Talvez a confusão se esclareça, pelo menos parcialmente, se
observarmos que a passagem do Fo/Aicoque parece ter inspirado Políbio^
fala da destruição de um "estado de coisas" que não tem qualquer rela-

34. PLATON, i a VHI, 546b.


35- Mem, I a VHI, 562.
36. idem, l e 302.
37. Idem, l e FP/if&yMe, 270-274.
38. Referimo-nos à passagem que parece ter influenciado Poiíbio (MfáP&iKy VI, 5) na
obra de Platão, Io Ho/MgMe, 270a.
ção com a política, uma vez que se produz nos domínios de "Zeus", e
não nos de "Chronos"^. Não tendo levado a sério a palavra das musas,
Políbio teria deixado de lado uma distinção conceituai fundamental.
A conclusão a que podemos chegar, porém, não é tanto que o his­
toriador foi um leitor desatento do filósofo, mas, sim, que ele se serviu
de uma autoridade para legitimar sua própria teoria. Esse recurso à au­
toridade fica ainda mais claro quando analisamos a teoria do regime
misto, de fundamental importância na economia da obra polibiana. Em
primeiro lugar, devemos observar que, se Platão hesitou quanto ao nú­
mero de regimes existentes^, Aristóteles mostrou que por detrás das
denominações clássicas se esconde um número considerável de regimes
reais. Nesse contexto, o regime misto (a república temperada) é visto,
em primeiro lugar, como uma mistura de democracia e de oligarquia^'.
Num segundo momento, Aristóteles diz, no entanto, que esse regime
não é diferente de uma espécie de regime aristocrático, que nasce da
mistura da virtude, da riqueza e do elemento popular^. Nos dois casos,
entretanto, Aristóteles sabe que a solução que eles trazem para o proble­
ma da corrupção é limitada. Sem dúvida, o regime misto é concebido
como um meio para se evitar a instabilidade das democracias e das
oligarquias, através do equilíbrio de seus elementos dissonantes. Mas
essa busca de harmonia não resulta em um otimismo exagerado quanto
à eficácia da solução encontrada. Ao analisarmos, por exemplo, o quinto
livro da constatamos que Aristóteles submete a república tem­
perada ás mesmas críticas feitas aos outros regimes^. Se é evidente que
o regime misto é superior às outras constituições**, ele não é uma solu­
ção miraculosa para os problemas e conflitos da cidade.
A simplificação operada por Políbio fica ainda mais evidente por
sabermos que para ele o regime misto era a solução perfeita para os
problemas da corrupção. Se afirma que mesmo Roma se corrompería um
dia, no começo de sua obra ele havia definido o regime ideal como uma
balança de poderes, que, pela reunião de elementos antagônicos, é ca­
paz de evitar o movimento de degeneração das constituições.

39- PLATÃO, íe PoHNgtíe, 2?3e.


40. De fato Platão se refere na Za IX, 580, a 5 regimes, enquanto no Ze
/WffáyMe, 302a se refere a 7, incluindo o regime idea!.
41. ANSTOTE, I a PoHHgue, J. Vrin, 1982, IV, 8, 1293b.
42. Idem, IV, 7, 1293b.
43 T. A. SINCLAIR }á observou que, se a a república é a forma que melhor resiste à
corrupção, e!a não é tratada de maneira especial no quinto livro da PoáMca; Mstoíre de %a
j&ensée Payot, 1953, 241.
44. ARISTOTE, Za PoRMfym?, IV, 11, 1296a.
Para retomar a Maquiavel, acreditamos poder afirmar que sua ade­
são à teoria do caráter cíclico das constituições não faz mais do que
introduzir a problemática da corrupção. Aceitando, em aparência, a sim­
plicidade da explicação poiibiana para uma questão que fora tratada por
sua época somente através da recuperação dos modelos clássicos, ele
nos abre as portas para a reflexão sobre os limites da ação criativa na
cidade.

/.3. Maqru/ave/ hKfor/acfor


Para compreender a questão da corrupção na obra de Maquiavel, é
fundamental examinar sua concepção da história. Evidentemente não
podemos dizer que ela se reduz ao uso das teorias de Políbio. Se pode­
mos partir da idéia de que o tempo é cíclico, essa constatação deve ser
acompanhada do estudo do uso dos exemplos romanos, devendo-se
considerar ainda que Maquiavel escreveu uma história de Florença, ten­
do de enfrentar não só problemas metodológicos, mas também de partir
de uma dada concepção dos acontecimentos históricos.
O historiador Maquiavel foi herdeiro de uma rica tradição, que com­
binava os escritores gregos e rom anos com os humanistas do
"quattrocento" que, desde Petrarca haviam-se interessado pelos proble­
mas históricos e histonográficos^. Florença, em particular, viu a tradição
dos "cronistas" ser suplantada pelo esforço de homens como Bruni e
Rucellai, que não puderam mais se contentar com a simples anotação
dos fatos atinentes a uma família ou a um grupo social^. Também nesse
domínio, pareceu-lhes essencial imitar os clássicos.
Os historiadores do "quattrocento" haviam partido da teoria da ori­
gem privilegiada para romper com os escritores medievais e propor uma
nova leitura da história. A geração de Maquiavel partiu da constatação de
que a corrupção dominava a vida política ílorentina para tentar pensar
de uma maneira radicalmente nova a transformação das constituições^.

45. Para uma visão de conjunto da historiografia italiana da Renascença ver: E.


COCHRANE, ARforarns <2" d in %?<? R&fMtissawce; The University of
Chicago Press, 1981.
46. E. Cochrane diz: "Chronicie, then was not history, nevertheless, the chronictes o f the
fourteenth century made an indispensable contribution o f the rise o f history in the fríteenth
century": op. cit., 14.
47. F. Gilbert faz uma análise brilhante da passagem da história para a política na obra
de Maquiavel e Guícciatdini: "La Storia si víenne awicinando alia política, perché si pensave
che essa potesse insegnare qualcosa circa la condotta política, il íunxionamento delle
istituzioni e iazione di governo"; op. cit., 195.
Para analisar a ruptura que ocorreu entre o secretário florentino e
seus predecessores é importante notar, em primeiro lugar, que os histo­
riadores do "quattrocento" praticamente não se preocuparam com ques­
tões referentes à metodologia do trabalho histórico. Para eles, bastava
afirmar que a história pertence ao domínio das humanidades e o proble­
ma estava resolvido^. Fazendo da imitação dos clássicos o caminho para
a exposição dos acontecimentos do passado, eles encobriam ao mesmo
tempo o fato de os antigos não se terem preocupado em definir melhor
o estatuto da história.^ A descrição do passado era um exercício próxi­
mo da literatura. Era assim, na verdade, que os humanistas exergavam o
trabalho que faziam. Tratava-se de uma prática que não necessitava de
fundamentação teórica^.
Apesar desse desprezo pela reflexão propriamente metodológica,
alguns historiadores preocuparam-se em explicar o caminho que deveria
ser seguido por aqueles que se dispusessem a escrever sobre a história
de suas cidades. Dentre os poucos que se lançaram nessa busca, desta-
cou-se Giovanni Pontano (1429-1503)5'. Sua obra, yicftMy, seria o modelo
de todos os humanistas que, no final do "quattrocento", tentaram guiar
seus exercícios históricos pela imitação perfeita do modelo romano^.
Pontano considerava os acontecimentos político-militares como os
únicos merecedores da atenção dos historiadores. Para compreendê-los,
era preciso procurar esclarecer todas as circunstâncias que haviam con­
tribuído para seu nascimento, sem que isso implicasse a busca de uma
espécie de consciência do processo histórico. O que interessava a Pontano
era a organização formal dos escritos, única capaz de fazer surgir da
descrição dos fatos algo mais do que uma simples agregação de dados
referentes a um período. O que se desejava era uma historiografia de

48. Idem, 195.


49. F. Giibert observa que, dentre os escritores da Antiguidade, somente Aristóteies em
sua .Poética, e Cícero, em seu De Oraton?, refletiram sobre a questão da metodologia
histórica.
$0. Tal foi o caso de Poggio Bracciotini, como mostra E. COCHRANE: "But Poggio was
interested in atl branches of literature chiefly as a means of showing off the witty, down-
-to-earth, coUoquiai Latia style that was to make him one of the most wídely read authors
o f his century. He was interested in studying history iargely for the prttof it fumished for
his theses about the instability of atl things": op. cit., 29.
51. F. G1LBERT, op. cit., 178ss.; E. COCHRANE, op. cit., 151-158. Para o contexto em
que escreveu Pontano ver: G. M. ANSELMl, Ffcenche sa/Afachiaw#? sfortco, Pacini Editore,
1979.
52. F. Giibert mostra a influência que sofreu Bernardo Rucellai quando escreveu seu
tratado — De Pe/Zb /Ba/ico cowfMeníariMS — publicado somente em 1724 em Londres, op.
dt., 182.
"exemplos", pragmática, em que o Am — a Mágísfna V;7<ge, ao sentido
ciceroniano — não se confundia com o objeto de análise — os aconte­
cimentos políticos e militares^. Para cumprir suas funções, no entanto, a
história deveria escolher os modelos adequados, sob pena de ver o
esforço de descrição do passado se perder em banalidades. Para Pontano,
com o para muitos outros historiadores, o paradigma historiográfico en-
contrava-se em Salústio e em Tito Lívio. Se a história era fundamental­
mente, em sua forma, imitação, era necessário escolher o bom modelo
para se alcançar o melhor resultado possível**.
Imitar significava aprender com os mestres do passado como orga­
nizar os capítulos, como usar certos artifícios de estilo, como escolher os
acontecimentos que deveríam ser narrados^*. Para descrever uma guerra,
por exemplo, bastava seguir o esquema traçado por Salústio em sua
obra*\ Mas essa exigência puramente formal era também acompanhada
por uma exigência ética. Os humanistas, seguindo o /)<? Oraron?, de
Cícero, acreditavam que a história fazia parte da retórica e por isso de­
veria ensinar as verdades descobertas pela f ilo s o fia ^ , o que se buscava
era escrever uma "história exemplar" — "la stoiia insegna con gli esemplí",
dizia Pontano^— , uma história cuja função era sobretudo pedagógica.
Assim, quando Rucellat dizia que a história não devia permitir a expres­
são de uma mentira, ele pensava nas verdades morais e na filosofia, e
não na exatidão dos fatos narrados^. A história era, para os humanistas,
fundamentalmente uma "história educativa".
Se a corrente htstoriogiáfica, que acabamos de descrever, foi domi­
nante no "quattrocento", a ela se juntou uma série de historiadores que
começaram a se preocupar com a objetividade dos relatos que faziam
sobre os acontecimentos do passado. Dentre eles, devemos destacar
Tristano Calco (1455-1515). Como chefe dos arquivos de Milão, ele ten-

53- ANSELMI, op. cit., 11-13- "Ocorre quindi non confortdere Arte ed oggetto neUa
pagina dei Pontano, anche se non v'è dubbio cbe it primo spesso finisca, di & dalle
íntenzioni, per condizionare Ü secondo in modo che st è potuto pariare di stcriogra&a
'pragmatica' tout-court".
54. SABELLICO, "Oratio de Laudibus historiae in Titom Livium" in Opera, Basiléia, 1560,
voi. IV, 482.
55. "NeüAcMzyü Pontano cita in particolare ia 'brevitas' et ia 'ceieritas', chtarendo questi
termini con citazicni da Saiiustio e da tivio, e dice che servendosi di taii mezzi stilistici
iautom puõ dam ai tempo stesso una cognizione deilo sfondo generaie e degii eiementi
partícoiari, e limpressione di un rápido svoigersi degii eventt"; F. OILBERT, op. cit., 179-
56. Idem, 180.
57. Ibidem, 185-
58. PONTANO, AcKny, 1; citado por F. Gilbert, op. cit., 185.
59. Idem, 185.
tou escrever uma história da cidade partindo do maior número possível
de informações coletadas em documentos à sua disposição^. O que lhe
interessava não eram os "exemplos, mas a descrição de uma totalidade
capaz de restituir o sentido dos acontecimentos passados**'. Para atingir
esses objetivos, era preciso deixar de lado a exigência de brevidade, que
caracterizava a história educativa, e recorrer a todas as fontes disponí­
veis: arquivos pessoais, crônicas, documentos diplomáticos, histórias
antigas. Nessa mesma perspectiva, outros historiadores, como Lorenzo
Valia, procuraram mostrar que o ponto de partida para o descobrimento
da "verdade histórica** era a busca incessante da imparcialidade na des­
crição do passado.^ Para os nossos propósitos, pouco importa que esses
historiadores não tenham sido capazes de escrever uma história à altura
de suas próprias exigências. Superando a "história educativa", eles abri­
ram as portas para a historiografia moderna^.
Antes de analisar os efeitos dessas discussões metodológicas na obra
de Maquiavel, devemos chamar a atenção para a especificidade dos
humanistas florentinos nesse domínio. Bruni, por exemplo, escreveu uma
história de Florença cujo rigor ultrapassa em muito o de outros escritores
da época^. Além disso, fazendo da liberdade originária um princípio
uniftcador de sua obra, pôde descrever todas as mutações pelas quais
passou a cidade de um ponto de vísta universal, sem deixar de lado a
especificidade de sua história^. A historiografia ílorentina deve, assim,
ser estudada como um caso à parte^, e não resta a menor dúvida de que
as influências que sofreu Maquiavel nesse domínio foram extremamente
complexas^.
Não nos interessa, no entanto, refazer todo o percurso do confronto
entre o fututo historiador de Florença e a tradição. Se recorremos à

60. E. COCHRANE, op. cit., 115.


61. G. M. ANSELMt, op. cit., 21.
62. Idem, 25.
63. Sobre a obra de Calco ver: E. COCHRANE, op. cit., 166. Para Valia ver; G. M.
ANSELMI, op. cit., 30. "E da ritenere, oommutique, che ia statto nel quaie venne a trovatsl
il VaUa storico, se da un lato riflette precise condizioni sociali, daíTaltro è anche eHètto di
una incompiuta eíaborazione epistemíca suMa storia e suoi nessi con l'ideologia e la política".
64. "At the same time, Bruni fteely departed from his models whenever they seemed
to be inappropriate to his subject. Like most renaissance humanists, he looked upon ntodels
as guides, rtf^ as authorities, and he detmed 'imitation' — imitatio — as an incentive, not
as an impediment, to originality": E. COCHRANE, op. cit., 3.
65. G. M. ANSELMt, op. cít., 66. Ver também: H. BARON, The Crisls q f the RaHy Rahan
chapitre 3 et 4.
66. G. M. ANSELMI, op. cit., 58.
67. Para um estudo detalhado sobre as fontes históricas de Maquiavel ver: G. M. ANSELMt,
op. cit., chapitre 3.
análise de suas relações com a historiografia da época, foi simplesmente
na esperança de descobrir os traços de uma "concepção da história", que
nos ajude a esclarecer o sentido da corrupção dos regimes políticos^.
* * *

No dia 8 de novembro de 1520, Maquiavel foi convidado pelos Medieis


para executar a primeira tarefa de longo prazo para a cidade após sua
destituição do cargo de secretário da república: escrever a história de
Florença^. Todos os historiadores do "quattrocento" haviam executado
esse trabalho na qualidade de secretários da república, sem receber nada
em troca, além do prestígio que esse tipo de obra conferia^. Maquiavel,
ao aceitar o encargo, sabia que corria perigo, pois, apesar de sua mani­
festa boa vontade, ainda era suspeito aos olhos dos novos senhores/'
Sua escolha metodológica, como nos mostra sua carta do dia 30 de
agosto de 1524 para Guicciardini^, reflete as dificuldades de adaptação
de um fervoroso republicano aos novos tempos. Nesse contexto, ele
decidiu, pelo menos no que toca à forma de seu escrito, seguir os
humanistas"^, entanto, as graves divergências teóricas que caracteri­
zam toda sua obrá" não puderam ser atenuadas pelo emprego da retó­
rica clássica e pelo uso de fontes conhecidas por todos.
Podemos estar certos, assim, de que toda análise das
terá de enfrentar o problema de descobrir por detrás de uma
apresentação tradicional, um conteúdo revolucionário. No que nos con-

Ó8. Deixaremos de lado L? de áHsfTMcnwf para dedica rtno-nos exciu-


sivamente à sua grande obra histórica. F. GiLBERT, AtdcA&2M?#f c % suo tempo, 294.
69. O "Studio Fiorentino" se dirigiu assim a Maquiavel: "...conduxerunt Nicholaum de
Machiavelüs eivem üorentinum ad serviendum dicto eorum officio, et inter alia ad
componendum annalía et cronacas Fiorent et alia faciendum..." citado por P. V1LLARI,
Mcco/o t? i sMoi iemp/, Le Monnier, 1887, vol Iíi, p. 121.
70. F. Giibert mostra que Veneza empregou, quatro anos antes, Andréa Navagero para
fazer o mesmo serviço. Era a primeira vez que uma república italiana pagava pot esse tipo
de serviço: op. cit., 292.
71. Para as circunstâncias nas quais as Af&Mórías foram escritas ver: A. GAROSC1, le
j&toríe PfonendMe de/ AfacA/ane///, G. Giappíchelli, 1973, troisième partle.
72. Ver N. MACHIAVELLI, Zedere, Feltfinellt, 1981, 417. "Ho atteso et attendo in villa
a scrivere la historia, et pagherei dieci soldi, non vogiio di piu, che voi fosse in lato che
io potessi mostrare dove io sono, perché, havendo a venire a certi particulari, hareí
bisogno di intendere da voi se offendo troppo o con lo esaítare o con lo abbassare le cose;
pure io mi verrò consigliando, et ingegnerommi di fare in modo che, dicendo il vero,
nessuno si possa dolere".
73. F. GILBERT, op. cit., 295.
74. "Tuttavia, proprio si diviene pienamente consapevoli degli sfbrzi di MachtavelH di
adequare le sue /storfe F/orvnt/we a un modelio prescritto, si diviene anche consapevoli
di una sorprendente ed impressionante differenza tra le storie delle città-stato degli umanisti
e le Istorie Fiorentine di Machiaveüi". F. GILBERT, op. cit,, 295-
cerne, podemos partir da idéia de Gilbert de que as podem ser
tidas como um grande tratado sobre a corrupção, o que por si só já é
aigo revolucionário para a época, e tentar descobrir de que maneira elas
contribuem para a elucidação de nosso problema^. Essa sugestão, que
parece livrar-nos de uma tarefa árdua, contém, no entanto, uma armadi­
lha. De fato, para estudar essa obra de Maquiavel, não contamos com
uma interpretação exaustiva de seu conteúdo que possa nos guiar^.
Delimitar um tema preciso no interior de uma obra extremamente com­
plexa comporta riscos enormes para o intérprete. Isolar uma parte de um
todo, como se os capítulos fossem entidades autônomas, que não parti­
cipassem da estratégia geral de exposição do autor, pode levar-nos a
desconsiderar que a forma de uma obra de pensamento faz muitas vezes
parte de uma estratégia de sedução do leitor. Conscientes dos riscos que
corremos, vamos nos deter apenas na análises dos capítulos introdutórios
dos cinco primeiros livros, que comportam uma discussão metodológica
capaz, a nosso ver, de fornecer novos elementos para a compreensão da
questão da corrupção^.
já na dedicatória das Histórias Fforeníúias, sentimos toda a tensão
que domina a obra. Maquiavel nos fala, em primeiro lugar, do respeito
à tradição retórica, para afirmar, logo depois, que ele deve ser acompa­
nhado por uma profunda preocupação com a verdade dos fatos descri­
tos; "...in queste mia descrizione, non maculando la veritá di satisfare a
ciascuno"^. A afirmação dessa exigência de verdade é bastante íncomum
para uma dedicatória, sobretudo porque Maquiavel declara que não elo­
giar aqueles a quem a obra se destina é uma condição essencial para se
atingir a maior fidelidade possível aos fatos^.
A estratégia de combate contra os eschtores do passado parece
anunciar-se desde o começo da obra. Sabemos, por exemplo, que a
coerência lógica dos discursos, mesmo quando fictícios, era uma exigên­
cia da "história educativa". Maquiavel, ao aceitar essa regra da tradição,
num contexto que não era o de Pontano, lhe confere um outro signifi­
cado. Para os humanistas, os discursos dos grandes personagens conhr-

75. Idem, 503.


76. Paia nossas análises recortemos a P. E BONDANELLA, n/dcA/we#/ t&e A tí o/*
Aís?o% Wayne State University, 1973; P. CARü, ConRV&Mto <%g# sfwdt std resto
6%e#e áRorie TTofetd/we <# /V MacA/doe#/, R. Accademia dei Lincei, 1903; L. ZANZI,
de%3 tM/MTM e / pofwáfgmt sforfA- 1/ Metodb de/ lacaia, 1981; C-
DIONISOTTI, "Machiaveüi storico" in Einaudi, 1980, 365-409.
77. G. M. ANSELMI, op. cit., cap. 2.
78. N. MACmAVEUJ, Dedica.
79. Idem, Dedica.
rnavam uma verdade ética, que estava no fundamento de sua prática
historiográfica. Aceitando a função "exemplar" dos discursos, Maquiavei
não lhes confere, no entanto, uma função de transmissão dos valores
morais, e sim o papel de favorecer a maior inteligibilidade possível dos
acontecimentos pesquisados**.
O afrontamento com a tradição, que a dedicatória anuncia de forma
tão surpreendente, confirma-se no "Proêmio", de tal maneira que somos
levados a perguntar se nosso autor teria abandonado sua estratégia de
sedução do leitor, justamente numa obra em que os perigos de uma
exposição franca de suas idéias poderiam ser fatais. Para responder a
essa indagação devemos, sem dúvida, caminhar um pouco mais em nossas
análises. Devemos observar, no entanto, que ao atacar de maneira fron­
tal os historiadores do passado, Maquiavei evita cuidadosamente o ter­
reno minado das discussões sobre o regime atual de Florença. Fazendo
crer que os inimigos são os homens de letras, ele abre o caminho para
uma crítica sutil aos senhores de seu tempo. Aguardemos, porém, o
desenrolar da obra.
O ataque a seus colegas de ofício baseia-se, na verdade, na crítica do
tratamento que todos deram aos conflitos internos, relegados a um se­
gundo plano, distante da honra concedida ao estudo das coisas da guer­
ra. Segundo Maquiavei, Bruni e Poggio haviam descrito com maestria as
relações de Florença com as outras cidades da Itália, mas haviam descui­
dado do estudo do papel dos conflitos na política interna*'*. Dirigir essa
crítica a Bruni era certamente um exagero, pois era conhecida a acuidade
com a qual ele tratara as lutas entre partidos adversos em sua história de
Florença^. Uma leitura atenta do texto mostra-nos, no entanto, que a
crítica maquiaveliana não se endereça apenas a Bruni, nem concerne
somente â sua "omissão". Os humanistas do "quattrocento" haviam insis­
tido, com muita frequência, no paralelismo existente entre a história
romana e a florentina. Para eles, a potência florentina era facilmente
explicável, quando se recordava o princípio organizador das instituições
republicanas florentinas. Maquiavei parte do ponto de vista oposto.

80. Ver a esse respeito: GJM. ANSELMI, op. cit., 91: G. SASSO fez observações interes­
santes sobre a influência da história educativa na formação de Maquiavei: M
sforíH swo ^xtA#co, 109.
81. "... ho trovato come neiia descrizione deiie guerte fatte dai Fiorentini con i principi
e popoii forestieri sono difigentissimi, ma deite civiii discordie e deiie intrinseche inimicizie,
e degii effetti che da queile sono nati, aveme una parte ai tutto taciuta e queifaitra in modo
brevemente descritta che ai leggenti non puote arrecare utile o piacere aicuno". N.
MACHIAVELLI, /stofie FYorewftwe, proemio.
82. G. M. ANSELMI, op. cit., 92.
Mostrando que não podemos reduzir o estudo dos conflitos de classe ao
estudo da oposição formal entre a "plebe" e a classe dirigente, ele nos
alerta para a fragilidade das concepções humanistas. Conhecendo perfei-
tamente a obra de Bruni, e sabendo que ele fala dos conflitos internos^,
o secretário florentino prepara um ataque devastador, a partir do que
parecera uma simples querela metodológica"^.
Os humanistas foram acusados de escrever um história que refletia
apenas a concepção que a própria elite tinha da luta de classes"^; de
fazer uma propaganda muito semelhante à que era feita pelas tiranias,
sem buscar aprofundar o conhecimento das verdadeiras causas da des­
graça que se abateu sobre a cidade quando ela foi confrontada com os
inimigos externos. A própria concepção da liberdade dos humanistas é
posta em dúvida por Maquiavei, que enxerga nela apenas uma maneira
de travestir a concepção aristocrática da cidade partilhada por muitos
dos escritores do "quattrocento"**'. O que era, assim, uma simples disputa
acadêmica revela-se uma verdadeira critica de toda a classe dirigente e
de seus arautos. O "Proêmio", em lugar de nos propor um estudo da
história florentina através de sua grandeza, confronta-nos com a exigên­
cia de refletir sobre seu fracasso.
Quando Maquiavei aborda, no primeiro capítulo do segundo livro,
o tema das fundações das cidades é com um novo olhar que devemos
abordar suas disputas com seus contemporâneos. Ao contrário de suas
outras obras, as Ms%ón<%s abordam o problema da fundação sob a ótica
da oposição entre a natureza e a "indústria" humana.
A natureza é vista, em primeiro lugar, como um obstáculo "físico",
mas não como um conjunto de forças que possa, em sua lógica interna,
contribuir de maneira decisiva para a construção de uma cidade "virtuo­
sa", ou seu contrário. Enquanto obstáculo, a natureza é apenas um dado
a mais, que não fornece sozinha a chave para a compreensão da história
dos homens*?. Mas, se Maquiavei nega que a natureza tenha primazia na

83. Maquiavei diz: "Ma avendo io dipoi diiigentemente letto gli sedai ioro...". Idem,
proemio.
84. Ibidem, proemio.
85. Ver G. M. ANSELMI, op. cit., %-97.
86. Estamos de acordo com Sasso quando ete diz: "E ottenuta, ai contrario, in virtú di
un lungo iavoro di discrimina zione e di anaiisi, condotto su una realtâ che non nasconde,
ne!Í'essenza, il suo segreto, ma pone un problema, contíene una sfida, eleva, con il suo
stesso star ii, di fronte alTuomo, una minacia di catástrofe e di morte": op. cit., 360.
87. Sasso já observou, em um outro contexto, o papeHimite que as ieis têm no pen­
samento de Maquiavei: "Senonché, il naturalismo dei Machiavelli non è (come è stato tante
volte ripetuto) una teoria, uno schema metafísico, coscientemente elaborato come la legge
intrínseca degli organismi politici: è píuttosto un limite — e la consequenza di un limite —
speculaüvo...": op. cit., 515-
determinação dos negócios humanos"", ele é obrigado a alargar a signi­
ficação dos conflitos internos, sob pena de fazer deles uma espécie de
determinante em última instância da história. Maquiavel não cai nessa
armadilha. Se a natureza não é a fonte absoluta para a compreensão da
história, nenhum conceito pode ocupar esse lugar. Seu pensamento
historiográftco possui as mesmas exigências de seu pensamento políti­
co"^. Os conflitos de classe são fundamentais, à medida que revelam uma
dimensão essencial da "polis", mas não enquanto conceito absoluto, que
viria ocupar o lugar que fora da liberdade no pensamento humanista.
A longa série de introduções dos diversos livros das
através da quais Maquiavel dá coerência a seu trabalho de
historiador, atinge no quinto e sexto capítulo o seu ápice*'. A constatação
de que as disputas metodológicas encobriam uma disputa política vio­
lenta é confirmada na descrição dramática da situação das cidades italia­
nas no com eço do "cinquecento". Maquiavel escolhe mais uma vez o
mito da liberdade florentina para desfechar seus ataques. Ele começa
negando que a oposição, cara aos humanistas, entre república e tirania
sirva para a compreensão das misérias de seu tempo. No quinto livro ele
vai ainda mais longe, denunciando sem ambiguidade o uso ideológico
dos termos: "As cidades, sobretudo as que não são bem ordenadas, e
que se dizem repúblicas, variam a forma de suas constituições, não entre
a liberdade e a servidão, como muitos acreditam, mas entre a servidão
e a licença'^'.
Essa nova crítica do uso que os humanistas faziam do conceito de
liberdade permite-nos reencontrar certos pontos de nossas análises an­
teriores da questão. Na passagem que acabamos de citar, Maquiavel
mostra que a liberdade deve ser associada a outra coisa que ao simples
nome das instituições. Como sabemos, a verdadeira liberdade exige o
respeito às leis e a submissão dos cidadãos aos princípios de organização
do Estado; nada disso existia nas repúblicas de seu tempo^. Maquiavel
nos lembra, além disso, que toda cidade que pode encontrar um legis-

88. N. MACHIAVELLI, Afo/ie ÍI, 1.


89. "I) modelio umanistico em per Machiavelli uno schema in cui egli inseriva quasi di
straforo íl suo messaggío político. Le Rforfe FYoneHMfK? sono coloríte dagli interessi poíitíci
dí Machiaveiii e dai problemi dei suo tempo": F. GILBERT, e 203-
204.
90. Deve-se notar que as introduções aos seis primeiros Üvrps ibram escritas depois da
conclusão. G. M. ANSELMI, op. cit., 88, nota 22.
91. N. MACHIAVELU, IV, 1.
92. Queremos dizer, com isso, que Maquiavel imagina um quadro constitucional no
qual os desejos opostos se reconhecem e se exprimem por meios legais.
lador capaz de lhe dar boas leis, e de convencer seus habitantes a segui­
do, deve considerar-se extremamente afortunada^. Essa felicidade, no
entanto, não basta. É preciso que, ao legislador, se siga uma série de
cidadãos que, pelo amor da liberdade, decidam não abandonar o cami­
nho traçado no momento da fundação^*.
O que, para nós, é simples repetição de teorias que já estudamos em
outras passagens da obra, se conclui com uma análise sombria do tempo
presente. Maquiavel, depois de criticar a incapacidade das repúblicas
italianas de imitar a Antiguidade, afirma que as repúblicas variam em sua
época de um governo tirânico a um governo licencioso, sem guardar a
menor proximidade com os verdadeiros princípios constituidores da li­
berdade^. Daí podemos concluir que o verdadeiro retrato da itália não
era o de um palco de uma luta acirrada entre as repúblicas e as tiranias,
mas o de uma terra onde a corrupção grassava.
Distanciando-se das idéias dos humanistas, Maquiavel revelava a
dimensão sombria das sociedades corrompidas. A verdadeira oposição
teórica, que podia ajudar na compreensão da realidade de seu tempo,
era entre as sociedades livres e as sociedades corrompidas. A Florença
que emerge de suas análises é uma cidade corrompida, dominada pelas
lutas internas, e não a pátria de um humanismo triunfante. Para escrever
a história da cidade, era preciso partir da idéia de corrupção, não da de
liberdade.
Não é surpreendente, assim, que no primeiro capítulo do quinto
livro, quando Maquiavel volta a estudar a teoria dos ciclos constitucio­
nais, confira-se uma importância muito maior à idéia de corrupção do
que a que ela tivera no segundo capítulo do primeiro livro dos DtscoKM.
Nas HtsMrtas descreve-se o ciclo dos regimes levando-se
em consideração, sobretudo, a oposição entre a "ordine" e a "disordine"^.
A circularidade da história é uma lei natural transcendente, um limite ao
qual todas as coisas estão submetidas, sem que a transformação dos
regimes em seus opostos possa ser considerada um caso especial da lei.
A corrupção — "il disordine" — é muito mais importante do que a
simples diferença entre as diversas íbrmas de governo.
Contrariamente, assim, à interpretação de Mossini, à qual já nos
referimos, acreditamos que os limites que a natureza impõe às ações
humanas não são imanentes ao homem. A distinção entre extenoridade

93- N. MACHIAVELLI, A/oríe IV, 1.


94. Idem, IV, 1.
95. Ibidem, IV, 1.
96. Ibidem, V, 1.
e interioridade das leis é apenas aparente. Para que as leis se possam
manifestar, é preciso que as ações humanas correspondam, em seus
resultados, à circularidade da história, com o nos sugere Maquiavel no
seguinte trecho: "Porque a virtu dá nascimento à tranquilidade, a tranqüi-
iidade cria o ócio, e o ócio a desordem, a desordem cria a ruína, dela
nasce a ordem, da ordem a 'virtü', e dessa, a glória e a boa fortuna"^.
Essa corresp on d ên cia n ão im plica, no entanto, uma forma de
determinismo nas ações humanas. Não existe um agente externo ao
homem que o conduza sempre em direção a um objetivo preciso — a
salvação cristã, por exemplo. Para Maquiavel, não há um ponto de vista
fora da história, do qual possamos contemplar o desenrolar da corrupção.
A exterioridade das leis naturais, seu caráter necessário só podem ser
apreendidos do interior da experiência humana de construção do mun­
do, e, portanto, do interior de um mundo que tem como possibilidade
permanente a corrupção de suas formas.
Num certo sentido, ao manifestar sua confiança na repetitívidade da
história, Maquiavel apenas enuncia uma teoria corrente na Renascença^;
mas ao interpretá-la a seu modo, ele rompe definitivamente com seus
antecessores. Para compreender o sentido dessa ruptura, devemos recor­
dar que o ponto de partida do secretário era a corrupção extrema que
dominava até os meandros da vida pública italiana^. Ao contrário dos
humanistas, e sem que isso signifique uma espécie de elemento
apocalíptico em seu pensamento — como acreditam certos intérpretes'""
— Maquiavel fazia da ausência de liberdade e grandeza uma possibili­
dade de renovação. Como a Itália havia atingido o ponto mais baixo de
seu desenvolvimento, seguindo as leis naturais, podíamos esperar, ou
que ela partisse para um novo ciclo de expansão, ou que se arruinasse
de vez. Não há nessa maneira de pensar nada que lembre o determinismo
medieval. O que nosso autor ressalta é a importância da ação humana
na construção dos destinos da cidade; se o ciclo nos fornece o paradigma
geral para a compreensão da história, ele nada nos ensina sobre a par­
ticularidade de cada comunidade. Nesse sentido, Maquiavel não partici­
pa nem da antiga visão de um retomo cíclico dos acontecimentos, nem

97. Ibidem, V, 1.
98. G. M. ANSBLMI, op; cit., 105.
99. F- GILBERT, AíacAtafe/H e % suo ieog?o, 291-318.
100. "La corruzione dilagante, e íl declínio sempre píu rápido, che Machiavelti dípingeva
nelie precipitano in una situazione in cui i'aitemativa è o 1'annichiiimento
o ia redenzione. li pensiero di MachiaveiÜ contíeni un eiemento apocaiittico": ident, 310.
da concepção moderna da história; sua posição, no interior do pensa­
mento historiográfico da Renascença é absolutamente original"".
O caráter repetitivo da história significava, para Maquiavel, que
podemos compreendê-la através da analise de um número finito de si­
tuações. Talvez possamos resumir seu pensamento sobre a história, di­
zendo que os limites naturais da expansão são os limites da "virtú". A
imitação é possível porque no passado já se manifestaram situações que
fazem parte dos limites humanos, e não, como acreditavam os humanistas,
porque podemos contemplar a história de um ponto de vista que lhe é
exterior e copiar suas formas. A corrupção é, desse ponto de vista, uma
"lei natural", que, em sua inexorabilidade, traça os caminhos da história
humana. Mas, nesse momento de nossas análises, pouco adianta dizer
que a corrupção exprime uma lei da natureza, se não sabemos o que
significa uma "lei natural" em Maquiavel. Devemos recorrer a outros
textos para esclarecer nossa dúvida.
No segundo livro das /%/dnárs fala-se da natureza como
de algo que limita a ação humana. O tratamento dado ao problema, no
quinto livro, não acordando nenhuma importância à descoberta de as­
pectos particulares da "lei natural", leva-nos a pensar que devemos
interpretá-la como um reconhecimento da existência de uma dimensão
"necessária" no curso dos acontecimentos; mas isso não implica a des­
coberta de leis positivas, que por serem transcendentes ao homem,
governariam inteiramente sua existência. A natureza, considerada como
um conjunto de forças físicas, é antes de tudo um limite para a ação; ela
tem apenas um papel negativo na determinação da história. Quaisquer
que sejam nossos atos, a circularidade da história se impõe, mas essa
limitação só pode ser vista a partir de nossos próprios atos, e não de um
modelo abstrato, que estaria para além do humano"^. A existência de
limites não implica que devamos buscar incessantemente o sentido da
determinação natural, ao contrário, convida-nos, através do estudo do
passado, a construir, pela ação presente, os mecanismos da potência de
uma cidade. É preciso ver, além disso, que o que chamamos "lei natural"
é na realidade a coexistência de uma etema mutabilidade das coisas
humanas, com a lei "fixa" do eterno retomo. Ela estabelece os limites
que tomam possível todo conhecimento sobre as coisas humanas, mas,

101. "Nessun sentiero manifesto connette ie Istorie Fíorentine di Machiaveiii con gii
sviluppi deita moderna storiogtafta": ibidem, 513.
102. Estamos de acordo com ZANZÍ, quando afirma: "Tocca aii'uomo, questa è ia
moraie própria deüa sua sorte, di íarsi interprete in maniera sempre nuova deiie sue fbrze
per cercare di reagire a una contrarietà naturate che ricomincia sempre: op. cit., 27.
ao mesmo tempo, só existe como determinação através da constante
mudança do mundo histórico. A história se realiza, portanto, na tensão
entre o mutável e o imutável, pela mediação da natureza e da política,
compreeendida como eterna criação^. Nesse movimento, interessa-nos
muito mais descobrir o sentido das ações na história, do que tentar atá-
-las a um hipotético fundamento metafísico'^.

!!. A ANÁLISE DA CORRUPÇÃO NOS D/SCORS/

M . Os anfececfenfes feódcos
Alguns intérpretes insistiram em afirmar que a importância da análise
da corrupção na obra de Maquiavel está ligada ao lato de ele ter sido o
primeiro escritor renascentista a estudar o tema de maneira a p r o fu n d a d a '^ .
Segundo eles, a elucidação dos múltiplos sentidos que o conceito toma
na obra é suficiente para desvendar o segredo de sua originalidade. Não
acreditamos que a melhor maneira de se conhecer o sentido de um
conceito no interior de uma obra de pensamento seja a enumeração de
seus significados, achamos que a simples evocação da originalidade do
autor não faz mais do que esconder os verdadeiros problemas que ela
encerra. Portanto, ao resgatar algumas abordagens de temas semelhantes
ao da corrupção na literatura filosófica anterior a Maquiavel, não estamos
propondo uma espécie de história do conceito; procuramos apenas
mostrar que a forma de Maquiavel responder a cettas questões assinala
ao mesmo uma ligação e uma ruptura com a tradição'^.
A questão da corrupção foi quase totalmente esquecida pelos pen­
sadores cristãos durante a Idade Média. Santo Agostinho, por exemplo,
considerava o tempo uma criação divina, que ajudava na compreensão
do processo escatológico, mas que não suscitava de modo algum a questão

103. "Mel iaboratono deMa storia .si manifestano e si deposita no, attraverso variazloni a
caso, i paradigmi deüa natura: ii corso delle cose, osservato attraverso la critica storiografica,
si comporte anche di 'cicli compiuti', nei quati si manifesta tl senso possibile dei processo":
idem, 27.
104. G. SASSO, op; cit., 443.
10$. "Niccolò Machiavelli is the first thínker o f the Renaissance to have studied both
deepiy and extensíveiy the concept and ro!e o f corruption in politicai and social liíe": A.
BONADEO, cow/7it rtrrd pozwr irt ihe hoMN o/* Mccofo
University of Califórnia Press, 1973-
106. Esse foi o caso de Bonadeo que tentou compreender a corrupção através de suas
diversas "definições". Nessa perspectiva, não é estranho que a descoberta dos "agentes da
corrupção" tenha lhe parecido um problema fundamental.
da repetitividade do mundo A corrupção não tinha significado num
mundo finito, que deveria terminar com a redenção Anal. O processo de
salvação concernia somente â "Cidade de Deus", e não â "Cidade Terres­
tre". Falar de degradação dos regimes em nada podia interessar a ho­
mens que viam a política como o resultado do pecado originar**. Para
Santo Agostinho, a história humana, e em consequência, a história dos
regimes políticos, só interessava à medida que delimitava o espaço da
profecia, que estabelecia o terreno de encontro entre a palavra divina e
a decadência humana.
Essa maneira de compreender a história influenciou de forma deci­
siva o pensamento político medieval até o começo do "quattrocento"'**.
A expansão da influência do Estado e a propagação do aristoteíismo, no
entanto, levaram muitos teóricos a se interessarem pela questão da con­
tinuidade dos regimes políticos"". Na verdade, o ataque ao pensamento
agostiniano fora iniciado pelos averroístas, que tentaram mostrar não
haver diferença entre o conceito de tempo Anito e o conceito aristotélico
de "tempo eterno". A resposta dos seguidores de Agostinho consistiu
basicamente em lembrar aos adversários que o tempo devia ser compre­
endido em sua dupla Aguração. Havia, de um lado, o "aeternitas" (o
tempo sagrado) e, de outro, o "tempus" (o tempo humano)"'. Qualquer
tentativa de aArmação de uma eternidade que não estava em Deus só
podia provir de um perigoso erro doutrinai.
Essa resposta estava longe de satisfazer às necessidades de um Es­
tado que ocupava a cada dia um espaço mais importante na vida das
pessoas, e que tinha necessidade de fundamentação teórica para seu
poder. A solução encontrada pelos Alósoíbs escolásAcos foi a de manter
intacto o edifício agostiniano e recuperar uma velha noção, a de "aevum".
O "aevum" era uma infinidade que, compreendendo o passado e o fu­
turo, não Anha o mesmo caráter do tempo sagrado. Na tradição, em o
tempo dos anjos; serviu aos Alósoíbs medievais para deAnír uma dimen­
são dentro da qual as formas políticas podiam manifestar sua pretensão
à eternidade"^.

107. E. KANTOROWICZ, Xingar íwo Bostas, Princeton University Press, 1957, 275.
108. R. A. MARKUS, ata? Soc&%y iw %?e tAeofdgy q f AMgusKwe,
Cambridge University Press, 1970, 9.
109- Sobre a influência de Agostinho no pensamento político medieval ver: H. X.
ARQUiLLiERE, poM&yMe, J. Vdn, 1955-
110. E. KANTOROWICZ, op. cit., cap. 4.
111. "The great crisís in man's apptoach to Ume, while previously latent, carne to a
head when the doctrine o f uncteatedness and inftnite continuity o f the wodd was recovered
frorn aristntelian phílosophy": idem, 275.
112. Ibidem, 279-280.
As disputas eruditas foram acompanhadas por um grande esforço de
formulação jurídica do problema da eternidade do Império. O que ator­
mentava os juristas não eram tanto as querelas teológicas, mas a questão
da legitimidade e da continuidade de um poder que buscava, ao mesmo
tempo, a garantia da legalidade de seus atos e a estabilidade de sua
constituição. Para que fique mais clara a natureza das dificuldades en­
frentadas pelos juristas, basta lembrar que a simples coleta anual de
impostos só era considerada legítima se o príncipe pudesse provar que,
trabalhando para o fortalecimento do poder temporal, nada mais fazia do
que garantir seu direito â existência eterna"^.
A defesa da eternidade do Império criou as condições necessárias
para o reaparecimento do problema da corrupção no pensamento polí­
tico da Renascença. Os juristas medievais só se interessaram pelo proble­
ma de maneira secundária"', porque o que lhes importava era a questão
da conservação no tempo da estrutura universalista do Império. Cabia-
-!hes mostrar de que maneira as instituições imperiais, em sua forma,
comportavam um elemento de continuidade que as uniam à dimensão
atemporal do Império. Nessa busca, é evidente que a corrupção não
podia intervir, pois o objetivo visado era justamente a demonstração de
que, no essencial, o poder imperial não estava submetido às leis do
"tempus". O desenvolvimento das repúblicas italianas mudou completa­
mente os dados da questão.'^ Sendo, por essência, estruturas particula­
res, que visavam a ser reconhecidas, tanto quanto o Império, como for­
mas legítimas de governo, elas modificaram todo o sentido da interroga­
ção sobre o tempo, dando margem ao surgimento do problema da cor­
rupção.
No pensamento político florentino, a tensão se manifestou através da
busca de um regime político que pudesse impedir a degeneração à qual
todas as repúblicas pareciam estar condenadas. Já nos referimos muitas
vezes à importância que teve a idéia de "república mista" para o pensa­
mento humanista; aqui interessa-nos mostrar que a busca de um regime

113. Ibidem, 286.


114. Como demonstra o lato de que Baidus faz referência explicita à questão em seus
escritos: "Now, however, the disposítions of the world have changed, as says Aristote in De
et Afundo, not in the sense that the world wíll generate and corrupt, but its disposítions:
and there is nothing imperishable under the sun. The cause o f corruption namely is, all by
itself Time and although the empire is forever ..., it neverthless does not remam in the
same status because it dweiís in continuous rnotion": BALDUS, CbusíRa, f, 328, nS, íol 103.
Citado por E. KANTOROWICZ, op. cit., 299.
115. Para as primeiras formulações jurídicas do problema republicano ver: Q. SKlNNElt,
The AoMMí&zdons o f ALodem Po/tdcn/ 7&0Mgj% Cambridge University Press, 1980, 49-65.
repubiicano ideai se fez no quadro de uma oposição frontal aos teóricos
da continuidade do Império. O problema da corrupção reaparece, por­
tanto, não somente porque o humanismo ressuscitou os clássicos gregos
e romanos, mas, sobretudo, porque as repúblicas exigiam uma resposta
diferente para o problema da continuidade posto pelos teóricos medie­
vais"^.
Paia estudar o tema da corrupção em Maquiavel, devemos levar em
consideração que ele responde a uma questão que estava no centro dos
debates políticos há já quase trezentos anos. Pouco interessa, portanto,
que ele tenha sido um dos primeiros a recuperar o uso do conceito; sua
originalidade está em ter formulado uma teoria revolucionária para a
época, e não de ter realizado o trabalho de um arqueólogo das palavras.

//.2, /?e//g/óo e ccvnjpçóo


Os capítulos dedicados à análise da questão da religião"? preparam
os temas dominantes daqueles que constituirão o núcleo da doutrina
maquiaveliana da corrupção. Em toda a sua obra, Maquiavel insiste no
papel da religião na conservação da "virtú" de uma cidade"^, opondo
com frequência as sociedades corrompidas àquelas em que a religião é
ainda uma força viva. Apesar de sugestiva, essa constatação não deve
conduzir-nos a conclusões apressadas. Para examinar a relação das reli­
giões, compreendidas como fenômeno tipicamente social, com a destrui­
ção das leis e a consequente corrupção do Estado, é preciso lembrar que
a problemática da religião é tratada por Maquiavel no interior de seu
estudo sobre a fundação. O elogio a Numa, no décimo primeiro capítulo
do primeiro livro dos HMcorsi', é justificado não só porque ele tinha
sentimentos bons e piedosos, mas, sobretudo, porque foi capaz de con­
servar no tempo os bons efeitos da fundação através da instituição de
cerimônias r e l ig io s a s " ^ A extensão do elogio pode ser medida pelo fato
de Maquiavel não ter hesitado em dizer que o trabalho de Numa foi mais
importante do que o de Rôm uío^. O primeiro rei de Roma foi um

116. Para uma discussão sobre a importância dos juristas na formulação do "direito
imperial", no finat da Idade Média ver: E. KANTOROWICZ, .Fedcvico /wperafom, Garzantí,
1988, 266-271.
117. Referimo-nos aqui aos capítulos 11 a 15 do primeiro livro dos ZMscerd.
118. "Quelli principi o quelle republiche le quali si vogliono mantenere incorrotte,
hanno sopra ogni aitra cosa a mantenere incorrotte íe cerimonte delia loro reiigione, e
tenerle sempre nella loro venera zione": N. MACHIAVELU, ZMscors^ 1-12.
119. Idem 1-11.
120. "Talché se si avesse a disputare a quale principe Roma fusse piò obligata, o a
Romolo o a Numa, credo piu tosto Numa otterrebbe il primo grado: perché dove è reiigione
facilmente sl possono introdurre l'armi, e dove sono 1'armi e non reiigione, con diíEcultà
si puo introdurre queila": ibidem, í-11.
homem de uma "virtu' extraordinária, mas isso não foi suficiente para
assegurar à cidade a continuidade de suas leis*^. Numa, cuja "virtu"
talvez fosse menor, compreendeu que era preciso encontrar uma manei­
ra de perpetuar o "terror" que inspiravam os atos de Rômulo. Sem essa
passagem ao domínio da conservação e da representação, toda fundação
é destruída peio tempo. A religião é importante porque transfere a uma
OTdem transcendente o papel de guardião das leis originais que perten­
cera ao fundador, quando este ainda era vivo. Tal passagem, no entanto,
só é possível se a representação religiosa é acompanhada, na cidade, por
uma grande capacidade de ação de seus cidadãos.
A análise de Maquiavel do uso que os romanos faziam da religião
mostra-nos que ele não via no fenômeno religioso uma simples "repre­
sentação falsa" da realidade, ou uma invenção imaginária capaz de con­
solar os homens em sua condição de dominados. O exemplo de
Savonaroía prova exatamente o contrário. Capaz de persuadir os
florentinos de que tinha relações privilegiadas com Deus, ele não pôde
transformar isso nas bases de um poder durável. Seu exemplo permite-
-nos concluir que a religião só é uma força ativa na vida de uma cidade
quando seus habitantes ainda não se corromperam, quando as institui­
ções são ainda suficientemente saudáveis para preservar a energia do
primeiro momento. O poder de acreditar depende do de agir. A esse res­
peito, Maquiavel tinira uma péssima opinião de seu tempo, visto como
de uma corrupção generalizada. Nessa percepção, a Igreja era tida como
a responsável não só pela decadência dos costumes, mas sobretudo pela
incapacidade de ação dos homens políticos*^. Com isso, Maquiavel que­
ria dizer que a força de uma sociedade deve ser medida, não pela ima­
gem que tem de si mesma, mas por sua real capacidade de resistir aos
ataques do tempo.
No décimo quinto capítulo, ele nos dá o exemplo dos samnitas, que,
recorrendo ao fervor religioso, não foram capazes de resistir ao ataque
do exército romano'^; o que confirma o que acabamos de dizer. A dimen-

121. "Donde nasce che gii regni i quali dípendono solo daiia virtu d'uno uomo sono
poco durabiií: perché quella virtu manca con la vita di queMo, e fade volte accade che ia
sia rinfrescata con ia successione...": ihidem, 1-11.
122. "Né si puo farc altra maggiore coniettura delia dectinazione d essa, quanto è vedete
come quelli populi che sono piú propinqui alia chiesa romana, capo delia reiigione. E chi
considerasse i fondamenti suoi, e vedesse i'uso presente quanto è diverso da queiii,
giudtcherebbe essere propinquo sanza dubio o ia rovína o Ü frageiio": ibidem, 1-12.
123. "E venuti ai conflitto, furono superati i Samniti, perché ia virtu romana, e ii timore
conceputo per le passate totte, supero qualunque ostinazione ei potessero avere presa per
virtu deiia reiigione e per ii giuramento preso": ibidem, 1-15.
são simbólica da religião é essencial, à medida que dã profundidade e
estabilidade a um poder que, na ausência de mediações, se destruiría no
exercício da pura violência. Representado por imagens que apelam para
a transcendência, guiado por ritos que comunicam aos homens a vonta­
de de Deus, o poder espera conservar a força da fundação e escapar aos
efeitos do tempo. Tudo isso, no entanto, depende da capacidade de ação
do povo, de ter ele guardado viva no coração a "virtu" dos primeiros
momentos. A religião, nesse contexto, é apenas uma mediação para a
"virtu", mas confirma-se, assim, nossa hipótese de que a corrupção deve
ser pensada como um limite ao poder de criação de uma sociedade.
Podemos concluir, evitando as falsas generalizações, que a problemática
da corrupção deve ser tratada a partir do estudo das condições da ação,
dentre as quais se encontra o grau de religiosidade de um povo.

M.3. Uòercfacfe e corrupção


O décimo sexto capítulo do primeiro livro dos Discorsi remete-nos
mais uma vez ao estudo da fundação. Nesse ponto do texto, não se trata
mais de mostrar a importância do tema, mas de remetê-lo às condições
do tempo presente. Criticando a Igreja'**, Maquiavel mostra que as difi­
culdades enfrentadas pelos homens de sua época transcendiam suas
causas particulares. Os homens, criados no cativeiro, dificilmente esca­
pam do jugo de algum senhor, ainda que o queiram e conservem energia
para tanto'^. o povo configura-se, assim, como uma matéria a ser mo­
delada, mas uma matéria de uma natureza especial, pois guarda em si a
memória de suas experiências passadas'^. Isso explica por que Maquiavel
havia dito que os habitantes ignorantes das montanhas se prestam me­
lhor â criação de uma nova república.^' Distantes da multiplicidade de
costumes que caracteriza os povos urbanos, eles ainda podem receber os
golpes do legislador-escultor sem resistir à sua vontade criadora. Dedu-

124. "E perché molti sono d'opinione che il bene essere delle città dltatia nasca datia
chíesa romana, voglio contro a essa discorrem quelle ragíoni che mi occorrono, e ne
aiteghero due potentissime le qua!i secondo me non hanno repugnanzia": ibidem, 1-12.
125. Ibidem, 1-16.
126. Pocock já observou o uso de palavras como "matéria" nas análises maquiavelianas
das relações entre legisladores e povo: op. cít., 207.
127. "E sanza dubbio chi volesse ne* presenti tempi fare una republica, piu facilità
troverrebbe negli uomini montanari, dove non È alcuna civíltà, che in quelli che sono usi
a vivere nelle cittadi dove ta civíltà è conotta ; ed uno scultore trarrà piu facilmente una
bella statua d'un marmo rozzo, che d'uno male abbozzato da altrui": N. MACUIAVELU,
jKíCorsí, 1-1.
zimos daí que a liberdade, embora sendo possível em todos os lugares,
é uma flor rara, que depende de condições especiais. Um povo corrom­
pido não pode saboreá-la: "Porque um povo que se corrompeu não
pode, nem mesmo por um tempo pequeno, viver ltvre"^.
Esse percurso sinuoso, que vai da problemática da fundação, pas­
sando pelas críticas à Igreja, até a afirmação da corrupção como empe­
cilho maior para a vivência da liberdade, desfere um golpe mortal nos
humanistas, que viam na liberdade um bem adorado por todos. Maquiavel
destrói o mito florentino da liberdade mostrando que, ao contrário do
que acreditavam os escritores do passado, a liberdade é sempre objeto
de críticas violentas, e de escassa defesa da parte daqueles que por ela
são beneficiados^. Isso explica por que os legisladores são obrigados a
atemorizar os homens para solidificar sua obra, por que a conservação
de uma república implica uma ação contínua na cidade'^. Construção
frágil, submetida âs mais diversas contrariedades, a república livre não
conta nem mesmo com uma imagem unânime no seio das diversas ca­
madas sociais'3'. Ao contrário, a representação dos homens está intima­
mente ligada ao lugar que eles ocupam em relação ao poder estabele­
cido e ao uso de suas benesses. Alguns desejam a liberdade porque
querem participar do poder; outros porque desejam a s e g u r a n ç a ^ ; pou­
cos porque vêem nela uma forma de promover o bem de todos. Para
que essa obra possa existir, é preciso uma dose de vontade, de determi­
nação e de força muito maior do que a que a Itália reunia na Renascença.
A crítica de Maquiavel aos humanistas é, assim, menos contra a definição
que davam da liberdade, do que contra o desconhecimento manifesto da
corrupção que grassava e que se constituía num obstáculo quase
intransponível para o desenvolvimento de repúblicas livres.
Essa constatação sugere-nos que a circularidade da história deve ser
interpretada de uma forma diferente da avançada no segundo capítulo
dos Pela ligação que Maquiavel estabelece entre fundação e

128. Idem, 1- 16.


129. Ibidem, 1-16 .
130. Ibidem, 1-16.
131. Ciaude Lefort diz a esse respeito: "Or teiie est bien ia remarque quí jette une lueur
crueiie sur ie fbnctionnement des répubiiques: ta iiberté dont on fait si grand cas recouvre
pour ies uns ta chance de commander et pour les autres ia securité": í e /ngíMt# <%? /beMMV.
4% .
132. "Ma quanto atfaitro popolare desiderio di riavere ia sua tibertã, non potendo ii
príncipe sodisfargii, debbe esaminare quaii cagioni sono quetie che gii fanno desiderare
d'essere iibert: e troverrâ che una piccota parte di toro destdera di essere iibera per
comandam, ma tutti gtí aitri, che sono infinite, desiderano ia iibertâ per vivem sicurt": N.
MACHtAVELLI, DRcotyf, 1-16.
corrupção, somos conduzidos a pensar que a verdadeira circularidade da
história se exprime no processo de criação e destruição da liberdade.
Nesse caso, o parâmetro para se medir a repetitívidade dos acontecimen­
tos é a "virtu", e não mais a classificação tradicional dos regimes segundo
a natureza dos governos. Entretanto, para que possamos defender tal
tese, é preciso estudar com mais cuidado alguns capítulos que modifi­
cam o sentido de afirmações para as quais já chamamos a atenção.
No décimo sétimo capítulo do primeiro livro, Maquiavel volta ao
tema da diferença entre as lutas políticas, para insistir na distância que
separa os regimes livres dos que são incapazes de vir a sê-lo. O exemplo
de Roma revela, através de uma análise mais aprofundada de sua histó­
ria, que essa diferença tem suas raízes na corrupção. A Roma do primeiro
Brutus não era mais a do segundo Brutus, não porque não existissem
mais homens virtuosos, mas porque eles não mais tinham como exprimir
a virtude. No primeiro caso, o corpo político, ainda são, acomodava-se
ao regime republicano; no segundo, não havia nele nem mesmo o de­
sejo da liberdade*^. A verdadeira diferença é, pois, entre os povos cor­
rompidos e os povos não-corrompidos; entre os que anseiam pela liber­
dade e os que não a têm nem mesmo na esfera de suas possibilidades*^
Para compreender essa observação, é preciso notar, no entanto, que
a corrupção não é um absoluto, mas comporta graus e diferenciações.
Numa determinada cidade, por exemplo, a classe dirigente pode estar
eorrompida, mas o povo não; nesse caso, a liberdade é ainda possível.
Se, ao contrário, o povo se corrompeu e se habituou ás leis de um
príncipe, aí, então, não há mais esperança de ver nascer a liberdade, a
menos que um acontecimento extraordinário venha a interceder*^. A
distinção, assim, entre povos corrompidos e povos sãos tem uma impor­
tância fundamental para o teórico que pretende compreender as mazelas
de seu próprio tempo. É a partir da determinação dos "possíveis" de um
regime que esclarecemos o sentido de suas ações. Desse modo, para
Maquiavel, não havia nada de estranho no fato de Milão, nem Nápoles,
não terem podido conservar a liberdade quando a oportunidade se

133. É interessante notar que Plutarco acreditava que a "virtu" dos dois Brutus tinha
sido igual, embora o segundo tivesse sido influenciado pela filosofia. Nesse aspecto a
influência de Piutarco sobre Maquiavel parece-nos evidente. Ven PLUTARCH, ZfMes qf
AbMe Cnac&ms The Modem Líbrary, s.d, 1186.
134. N. MACH1AVELLI, Discotxí, 1-17.
135. "E debbesí presuppore per cosa veríssima che una città corrotta che viva sotto uno
príncipe, come che quel prinípe con tutta la sua stirpe si spenga, maí non si puo ridurre
libera...": idem, 1-17.
Incapaz de enunciar uma regra universal para o combate á corrup­
ção nas repúblicas, nosso autor contenta-se em confessar seu próprio
fracasso na tentativa de compreender os limites do esforço humano de
criação continua da liberdade'^. Deixando de lado as fórmulas polibianas,
que reconfortam o leitor afirmando a existência de ciclos históricos bem
determinados, Maquiavel confronta-nos com a indeterminação da ação
humana e com nossa incapacidade de reduzi-la a um modelo inteira­
mente racional. Sendo um elemento constitutivo de todos os regimes, a
corrupção é um limite impossível de ser transposto pelos atores políti­
cos.
Para tentar vencer o impasse teórico que essa confissão implica,
alguns intérpretes, como Pocock, tentaram definir a corrupção como
uma forma radicalizada da "fortuna", e por conseguinte, como algo que
pode ser compreendido pelo aprofundamento de algumas noções clás­
sicas'^. A corrupção tendería, no pensamento de Maquiavel, a ocupar o
lugar da "fortuna", sem alterar-lhe inteiramente a significação'^. Pode­
mos concordar com Pocock e dizer que para compreender a corrupção,
devemos partir de uma teoria da ação baseada no conceito de "virtu".
Mas tal ponto de partida, que tendería a fazer da "fortuna" um agente da
corrupção no mundo, como pensara Poltbio, não era o de Maquiavei. Eie
procura mostrar, ao contrário, que a corrupção impõe iimites à ação
humana que escapam a toda vontade de racionalização. Maquiavel não
menciona a "fortuna" nos capítulos em que analisa a corrupção'^. Em
aiguns casos, ele diz ser o nascimento da desigualdade o fator social que
dá origem â corrupção'^ em outros, cita a perda da "vírtü" militar e do
sentido da dignidade da coisa pública como sendo os responsáveis.'^"
Em nenhum momento faz referência à "fortuna" como sendo o agente
primeiro da degeneração, preferindo apontar as desigualdades sociais
como as causadoras maiores'^'. Embora a Maquiavei pareça evidente que

145. Ete nos faia em termos como "quasi impossíbiie", ou "ia difficultà o impossibiiità*.
146. J. G. A. POCOCK, op. cit., 207.
147. Idem, 211.
148. Recusamos aqui o enítxque dos historiadores das idéias que querem estudar o
fenômeno da corrupção reduzindo-o às suas causas objetivas. Ver p. ex. A. BONADEO, op.
cit., 30ss.
14$. "Perchè taJe corruxiofie e poca attitudine aüa vita libera nasce da una inequaiitã
che é in queHa città..." N. MACHIAVELLI, AMscofSí, I, 17.
150. "Questa sicurtà e questa deboiezza de' nimici íece che il popoio romano nei dare
ii consoiato non riguardava piu ia virtu ma ia grazia, tirando a quel grado queiii che megtio
sapevano intrattenere gii uomini, non queMí che sapevano megiio vincere i nimici, dipoi,
da queiii che avevano piu grazia ei discesono a dado a quegii che avevano piu potenza":
idem, !, 18.
151. Ibidem, I, 5$.
toda teoria da ação deve levar em conta a polaridade "virtü "-"fortuna",
parece-nos mais razoável, aceitando nossa hipótese de que a "fortuna" é
uma forma negativa da "virtü", concluir que a corrupção marca, na ver­
dade, os limites até onde pode ir nosso esforço de compreensão da
polaridade apontada. Toda teoria da ação tem na elucidação do sentido
da degeneração dos regimes políticos um dos seus problemas maiores.
Tendo indicado alguns pontos essenciais do pensamento de
Maquiavel sobre a corrupção, duas questões devem ainda ser abordadas.
Em primeiro lugar, devemos saber se as conclusões às quais chegamos
são válidas para todas as formas constitucionais, ou se se limitam âs
repúblicas. Em segundo lugar, devemos nos perguntar pelas consequên­
cias do que acabamos de dizer para a formulação de uma nova visão da
história.

M.4. Cowupçóo, po/íf/ca e fi/sfór/a


Para tentar responder à primeira pergunta, é preciso voltar ao qüin-
quagésimo quinto capítulo do primeiro livro dos Dfscofsf. Partindo da
constatação da corrupção generalizada dos povos de seu tempo'^,
Maquiavel se interroga sobre as possibilidades que são oferecidas ao
legislador que decide enfrentar a difícil tarefa de fundar uma sociedade
livre ("vivere político"). Tal problema já se apresentara a nosso autor no
décimo oitavo capítulo, quando ele analisa a questão numa república
que, embora corrompida, conserva ainda alguns elementos de sua antiga
grandeza. A solução apresentada implicava um "retomo" a um Estado
monárquico ("stato regio") que, pela força de seu regente, punha fim ãs
ambições desmesuradas de seus cidadãos'**. Tal possibilidade exige, no
entanto, como observa Maquiavel no final do capítulo, que o povo não
esteja ainda corrompido'**.
Poderiamos pensar que nosso autor não faz mais do que retornar às
teses que anunciara antes; hipótese aparentemente confirmada pelo fato
de ele começar o capítulo falando da força do elemento popular em
Roma na época de Camilo. Mas essa afirmação é rapidamente abando­
nada e o texto passa a estudar algumas repúblicas do tempo de Maquiavel.
Referindo-se à Alemanha, ele menciona a igualdade reinante e as razões

152. "E verament dove non è questa bontâ non si puo sperare nuüa di bene, come non
si puo sperate ncüe provinde che in questt tempi si veggono conotte; come è ia itaiia
sopra tutte aitre, ed ancora la Francia e !a Spagna di taie corrozione ntengono parte:
ihidem, i, 55.
153. ihidem, I, 18.
154. Ibidem, I, 38.
do sucesso da permanência da liberdade: "A outra razão é que naquelas
repúblicas, onde se manteve o 'vivere político' incorrompido, não se
suporta que nenhum cidadão viva com o 'gentiluomo', ao contrário,
mantêm-se entre todos uma pefeíta igualdade'"^. O conceito de
"gentiluomo" parece conter a chave para a compreensão das duas idéias
que dominam o capítulo: a igualdade e a desigualdade. Uma república
igualitária define-se pela inexistência de "gentiluomini", enquanto a de­
sigualdade existe onde alguns vivem de rendas, sem se preocupar com
o cultivo da terra, ou com o respeito às leis da cidade'^.
A identificação entre a desigualdade e a presença dos "gentiluomini"
na cidade levou alguns intérpretes a acreditarem que poderíam resumir
as causas da corrupção a esse fator de desequilíbrio social'^. Se a hipó­
tese parece-nos sugestiva, deixa de lado, a nosso ver, alguns passos
essenciais da análise do capítulo. Se é fecundo pensar que a desigualda­
de é uma das causas fundamentais da corrupção, é importante notar que
Maquiavel acompanha essa formulação com precisões que enriquecem
enormemente nossas conclusões anteriores'^. Nos primeiros capítulos
dos Dtycoysí, nosso autor acentua a indeterminação do campo político
contra a qual se batem os atores políticos de uma república corrompida.
No fim do primeiro livro, procura mostrar quais são as vias que se abrem
para os homens políticos dispostos a enfrentar a difícil tarefa da funda­
ção. Segundo ele, duas são as possibilidades. Os que querem construir
uma república onde existem "gentiluomini" devem destruí-los em pri­
meiro lugar, e depois erguer as instituições sobre a base da igualdade.
Para os que desejam construir um principado, ou reino, em uma terra
acostumada à igualdade, é preciso instaurar a desigualdade criando uma
nobreza e aliando-se a ela'^.
A análise maquiavelíana recupera a divisão dos regimes políticos em
repúblicas e principados, que fora sugerida em O através do
estudo dos efeitos da igualdade e da desigualdade na constituição das
formas constitucionais. Tal retomo não deixa de ser uma redução do
campo dos "possíveis", tal como vinha sendo apresentado, mas acredita-

155. Ibidem, I, 55
156. Ibidem, I, 55.
157. Pocock parece ter conferido um lugar importante à análise das causas da corrup­
ção em seus estudos. "If it is the castles and retainers of the 'gentiluomini' that make them
a cause o f inequality and corruption, the uncorrupt republic must be a State lacking military
dependecies and one characteristic of "equality" must be that alí are warrior a l i k e o p . cit.,
210 .
158. G. SASSO, op. cit., 522ss.
159. N. MACmAVELU, Dtscorsf, I, 55.
mos que ela esconde um aprofundamento importante de algumas pro­
blemáticas que vinham sendo estudadas"***. O capítulo que estamos ana­
lisando tem, acima de tudo, um alcance político imediato. Maquiavel
demonstra que Florença era uma república acostumada com a igualdade,
o que tomava vã a esperança daqueles que viam nos Medieis os funda­
dores de uma aristocracia estável. Acostumada ao viver livre, a cidade
nunca deixaria de oferecer uma grande resistência ao atos daqueles que
quisessem alterar as bases de sua organização social^'. Mas o capítulo
tem ainda um outro interesse.
Até aqui a corrupção íbi vista como um limite da ação humana,
como uma degradação da "virtü" de uma república. No qüinquagésimo
quinto capítulo, Maquiavel, sem desprezar suas conclusões anteriores,
procura pensar o fenômeno da corrupção como correlato do da funda­
ção. Assim, da mesma forma que era possível fazer uma analogia entre
a fundação de Roma e a de Florença, não apagando as diferenças evi­
dentes da história das duas repúblicas, também podemos pensar que a
corrupção é uma limitação natural da ação humana, um efeito do tempo
do qual não escapam nem mesmo as repúblicas mais virtuosas. Nesse
sentido não há nenhuma razão para acreditar que a análise que vinha
sendo feita concernia apenas às repúblicas; todas as formas políticas
tinham seu destino traçado pela resolução dos conflitos de classe e pela
maior ou menor igualdade existente entre seus cidadãos.
Com isso, respondemos parcialmente à nossa primeira pergunta,
mostrando que é possível generalizar as análises sobre a corrupção
partindo da equação entre a igualdade e a desigualdade. Mas esse ponto
de chegada nada mais fez, num certo sentido, que tomar mais premente
nosso estudo sobre o segundo ponto que deixáramos suspenso, pois nos
mostrou que não é possível falar das transformações dos regimes sem
que se faça referência a um lógica das transformações históricas.
* * *

Para abordar nossa segunda pergunta vamos passar agora a analisar


o "Proêmio" do segundo livro dos ZXycoryf Vários intérpretes serviram-
-se dessas páginas para tentar compreender o sentido da "imitação" dos
antigos, que parece inspirar o autor* Sem desconsiderar a importância
dessa questão, vamos reduzir nossas investigações à busca das modifica­
ções que ocorreram, no pensamento de Maquiavel, em relação ao segun-

láO. G. SASSO, op. cit., 524.


lô l. C. LEFORT, op. cit., 527.
162. No trabalho de Lefort, a idéia de que o "pfoemio" é uma crítica da tradição, tem
um iugar de destaque, op. cit., 523ss.
do capítulo dos .Otscond, depois que ele introduziu o estudo da corrup­
ção no núcleo de suas análises políticas.
O Troêm io" começa com um formidável ataque à tradição. Maquiavei
dedica-se a destruir a crença humanista na exemplaridade do passado.
Depois de dizer que os homens se enganam com frequência em seus
julgamentos históricos, Maquiavei procura descobrir as razões dos erros
que eles são levados a cometer. A primeira coisa que aprendemos é que
a correção dos juízos que proferimos depende da "virtú" da cidade na
qual habitamos. Se a cidade está em processo de expansão, é pratica­
mente certo que nos enganaremos, pois o passado nos parecerá ainda
mais glorioso do que o presente. Se, ao contrário, vivemos em uma
cidade que decai, teremos então boas razões para elogiar o passado e
fazer dele um bom julgamento.
Essa associação entre a "virtu" de uma cidade e a correção dos
julgamentos dos homens introduziría uma estranha teoria do conheci­
mento no pensamento de nosso autor, não estivessem suas intenções
muito distantes desse propósito. O que Maquiavei pretende através des­
se percurso é voltar ao tema da circularidade da história, sem contudo
voltará descrição dos ciclos constitucionais. O que emerge de suas análises
é o fato inelutável da corrupção de todas as formas políticas'^. A corrup­
ção é vista então como perda da "virtu", num mundo que está, ele
mesmo, em etema mutação: "...porque estando as coisas humanas sem­
pre em movimento, convém que subam ou decaiam". Este modelo, no
entanto, da "virtú" e da corrupção só se aplica quando consideramos
uma sociedade particular. É na ordem da particularidade que o fenôme­
no da corrupção é natural e se impõe como uma lei da natureza; na
ordem do universal — no mundo como um todo — , nenhuma mudança
é possível: "E pensando sobre com o essas coisas ocorrem, julgo que o
mundo sempre esteve do mesmo jeito"
Ao afirmar o caráter imutável do mundo, nosso autor oferece um
caminho para que respondamos a duas questões diferentes. Em primei­
ro, lugar trata-se de saber por que nos enganamos em nossas análises
históricas. Maquiavei sugere que, em nossa incapacidade de visar ao
mundo de um ponto de vista universal, apreendemos o passado e o
presente de uma maneira parciaí — no seio de uma sociedade particular
— , o que nos conduz a perder de vista o fato de sempre existir no
mundo a mesma proporção de bem e de mal. Essa resposta, porém, não
satisfaz inteiramente nosso autor. Ele reformula a questão em novos

163. N. MACHIAVBLÍI, H, ptuemio.


164. Idem, H, proemio.
termos, mostrando que, se nossos juízos são ruins pelo fato de desco­
nhecermos o passado, não deveriamos cometer enganos em nossos jul­
gamentos sobre o presente, que conhecemos tão bem. Os velhos, em
particular, deveríam ser capazes de bem considerar o passado próximo
e o presente, tendo-os vivido igualmente.
Maquiavei não oferece, de imediato, outra resposta para essa difícil
questão, antes nos põe diante do desafio de saber em que medida as
transformações que observamos no mundo — a expansão e a corrup­
ção — , não são mais do que ilusões em um universo cuja energia total
se conserva sempre, apesar de sua constante redistribuição pelas várias
partes da terra. Para responder a essa nova indagação, é preciso saber,
em primeiro lugar, qual o significado, no pensamento de Maquiavei, da
idéia de que o mundo é sempre o mesmo.
Para tentar esclarecer esse ponto, devemos observar que o que nosso
autor considera como sendo invariável é a "virtú" em sua integridade.
Ora, já vimos que a "virtú' exprime a capacidade de agir de um povo;
que ela implica a expansão dos domínios territoriais e a possibilidade do
fracasso. É difícil pensar que Maquiavei, nesse momento do texto, tenha
mudado o sentido do conceito, para associá-lo a uma "essência do mundo"
que, em sua plenitude eterna, garantida a unidade metafísica das formas
políticas. A leitura do "Proêmio" sugere, ao contrário, que nosso autor
continua a usar o conceito da mesma maneira que o faz ao longo de sua
obra. A migração periódica da "virtú" está, além do mais, em perfeito
acordo com a problemática dos limites da potência que já trabalhamos
e que nos conduziu a reconhecer a importância do problema da
corrupção. Somos levados a pensar, assim, que o caráter imutável do
mundo significa simplesmente que no mundo sempre é dado esperar
que a ação será capaz de recriar as condições necessárias para o
surgimento de sociedades fortes e livres. Dado que toda república, ou
império, em sua particularidade, está condenada a uma existência tem­
poral finita, a "virtú" poderá desenvolver-se em um outro povo; a deca­
dência de uma república, portanto, não é nada mais do que a condição
necessária para o surgimento de um novo poder. A derrocada de Roma
foi, assim, a condição para que os povos, que antes estavam sujeitos a
seu domínio, se desenvolvessem e assumissem suas qualidades.^
Não há, pois, razão para supormos que exista, para Maquiavei, uma
"quantidade" de "virtú" que se conserva ao longo do tempo. O mundo
que ele estuda era geograficamente limitado, as fronteiras que separa-

16$. Ibidem, H, proemio.


vam os povos aos quais ele se refere eram bastante próximas umas das
outras para que a expansão de uma república se fizesse sempre ao preço
da liberdade das outras'**. .Quanto à "virtú", ela se distribuía de forma
mais homogênea, o que significa que nenhuma república estava em
condições de assegurar sua dominação sobre uma parte, considerável do
mundo. Nessas condições, devemos repetir que, para Maquíavel, o de­
senvolvimento da "virtu" implicava necessariamente a expansão, e que,
assim, a compreensão da imutabilidade do mundo como possibilidade
sempre presente da conquista não está em contradição com suas análises
da liberdade, ou mesmo com a criação de grandes impérios.
As observações que acabamos de fazer levam-nos a tirar duas con­
clusões. Em primeiro lugar, é preciso notar que, insistindo nos limites da
"virtú", Maquiavel cria as condições para que compreendamos a corrupção
tanto em sua dimensão singular, como em sua dimensão universal. Isso
implica dizer que a corrupção descreve o processo necessário de degra­
dação de todas as cidades, mas não que essas cidades estarão submeti­
das a mudanças cíclicas em suas constituições. Podemos, então, concluir
que não existe em Maquíavel nem uma teoria da história no sentido
moderno, nem uma teoria nos moldes de Políbio. A história se repete
sempre pela possibilidade de criação de novas formas políticas virtuosas
— jamais em suas configurações singulares'^.
Podemos agora retomar à nossa questão inicial e tentar encontrar
um resposta para os erros de julgamento que os homens cometem quan­
do analisam a história. Às considerações de ordem puramente histórica,
Maquíavel acrescenta algumas observações de caráter antropológico que
fornecem um quadro sutil das relações que os homens mantém com o
presente. Diz ele: "Sendo, além do mais, os. apetites humanos insaciáveis,
porque a natureza lhes permite desejar todas as coisas, e a 'fortuna'
alcançar poucas; resulta daí que as mentes humanas estão sempre des­
contentes, e os homens, entediados com o que possuem. Isso os leva a
desaprovar os tempos presentes, a elogiar o passado e a desejar o futuro,
ainda que não sejam movidos por uma justa razâo"'^.
Devemos observar que, ao falar da natureza humana, Maquíavel
atrai nossa atenção para o desejo que a constitui e não para sua maldade.

166. Maquiave! fa!a dos seguintes povos no "proemio": "Assíria", "Media", "Pérsia",
"Roma", "it regno de' Turchi", "Grécia", "Magna". Ver também: ZMycoTs/ 11-5.
167. Estamos em desacordo com Coicnna d lstria quando diz: "H existe une ioi de
Í'histoire: ia passe d'un empire à un autre, sans que cette marche soit regiée ou
soumise à une finaiíté": op. cit., 176.
168. N. MACHIAVELLI, ZHícotst, II, proemio.
Contrariamente às teses que examinamos no começo de nosso capítulo,
não vemos surgir, ao longo da obra maquiaveliana, qualquer relação
entre a corrupção e a natureza humana. Os homens são ievados a ela­
borar um representação deformada do presente por sua própria
insaciabilidade. Desejamos sempre a ação, mas não podemos conhecer
<3p w r ? seus resultados. O que emerge, pois, das análises de Maquíavel,
é a afirmação de que a capacidade de agir politicamente é uma das
características essenciais do homem, num mundo que não pode ter seus
segredos inteiramente desvendados por uma teoria. Ao contrário do que
sugere o segundo capítulo dos Dáarorst, Maquíavel não possui uma teo­
ria acabada da história, o que o leva a convidar o leitor a aproveitar as
lições do passado, para desenvolver, no presente, a antiga "virtu".
CONCLUSÃO

Ao iongo de toda nossa pesquisa, a questão da iiberdade ocupou um


lugar essencial, mesmo quando nos aventuramos a explorar terras apa­
rentemente distantes. Nesse percurso, tivemos como guia o fato de que
o pensamento de Maquiavel foi uma verdadeira máquina de guerra contra
o humanismo cívico. Mas essa luta constante contra as teorias dominan­
tes da época ocorreu num contexto em que nosso autor, ao mesmo
tempo em que desfechava ataques violentos, aderia a muitos de seus
pressupostos. Essa tática permitiu-lhe romper com o pensamento cristão
— pelo menos no que este tinha de anti político — e com o platonismo,
que começava a influenciar os pensadores italianos de então. O caráter
original de sua teoria, porém, nem sempre é percebido, devido, talvez,
à própria forma como é exposta, isso motivou-nos a concluir com algu­
mas reflexões sobre a originalidade do pensamento maquiaveliano.
Para começar, partimos da obra de uma autora cujas preocupações
são próximas das de Maquiavel e que, no entanto, não confere muita
importância a suas teorias sobre a liberdade. Hannah Arendt, em um
capítulo do livro o e o insiste na importância do
surgimento, com Santo Agostinho, da noção de livre-arbítrio. O que lhe
interessa não é tanto a análise conceituai da obra agostiniana, mas o fato
de ter esta noção influenciado de maneira decisiva a filosofia política
modema, como nos mostra a seguinte passagem: "Devido ao desvio
filosófico da ação para a força de vontade, da liberdade como um estado
de ser manifesto na ação para o livre-arbítrio, o ideal de liberdade dei­
xou de ser o virtuosismo no sentido que mencionamos anteriormente,
tomando-se a soberania, o ideal de um livre-arbítrio, independente dos
outros e eventualmente prevalecendo sobre eles"'.
Ao longo de toda a argumentação de Arendt, em que a oposição
entre a concepção clássica do agir e a separação modema entre a esfera
do livre-arbítrio e a da liberdade política têm um papel fundamental, não
encontramos sequer referência ao humanismo cívico e à solução dada

1. H. Arendt, I # crise CMAMfe, Gaüimard, 1972, 211.


por Maquiavel ao problema de que ela tratai Entretanto, não retomamos
a ela no intuito de criar polêmica, ou de acusá-la da não ter compreen­
dido a história das idéias, Nada mais estranho a nossos propósitos, so­
bretudo quando sabemos que suas posições políticas fazem dela uma
legítima herdeira do republicanismo da Renascença. O que nos interessa
é apenas mostrar o caráter complexo e original do pensamento de
Maquiavel sobre a liberdade, partindo de uma análise que tem outros
pressupostos.
insistimos, em nossos estudos, na associação entre liberdade e ação,
embora estivéssemos conscientes de que não basta falar da ligação pro­
funda existente entre os dois conceitos, se não formos capazes de mos­
trar como a ação pode efetivar-se num mundo dominado pela contin­
gência. Portanto, procurar elucidar as condições de possibilidade e os
limites que governam os atos humanos é uma condição essencial para
toda reflexão sobre a liberdade. Isso explica por que dedicamos tantas
páginas ao estudo da "virtü" e da "fortuna", da cidadania militar, ou
ainda da corrupção e dos limites que ela impõe à ação. Ao ler Arendt,
no entanto, podemos ser conduzidos a pensar que o humanismo cívico
não fez mais do que repetir os passos da tradição. De fato, não encon­
tramos nos autores do "quattrocento", nem em Maquiavel, a problemá­
tica da vontade associada à liberdade, muito menos a idéia de que há
contradição entre a afirmação da liberdade interior e o caráter eminen­
temente prático da liberdade política.
Arendt tem razão quando nos fala da liberdade como algo que existe
necessariamente no campo do político, quando a associa à nossa capa­
cidade de recriar continuamente os espaços públicos^, embora veja nessa
descrição o sinal de uma possibilidade que, embora presente nos ho-
mens^, desapareceu da filosofia moderna e de nossas experiências coti­
dianas. Nosso estudo sobre Maquiavel nos conduz a conclusões diferen­
tes.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que, partindo do universo teórico
dos antigos, Maquiavel fundou um continente totalmente novo, não se
limitando a repetir fórmulas consagradas pela tradição. Isso pode ser
constatado, por exemplo, quando ele nos fala da fundação contínua, que
não tem o mesmo significado que as antigas teorias da criação das

2. Arendt dtz que para Maquiavel a "virtu" tem o mesmo significado que para os
antigos, o que parece sugerir que não ha nada em seu pensamento, nesse aspecto, que o
distinga dos gregos e dos romanos: op. cit., 199.
3. Idem, 217.
4. Ibidem, 219.
constituições. Ou ainda, quando deixa inteiramente de lado a noção de
"cidade ideal", que servia como termo regulador de toda teoria política
antiga. Maquiavel não aceita que modelos ideais, ou mesmo exemplos
históricos, possam servir de guias "absolutos" para nossas ações. Se uti­
liza em sua obra repetidamente a imagem da potência romana, é menos
para fazer-lhe o elogio, e mais para mostrar-nos que as exigências do
presente não podem ser satisfeitas pela simples imitação do passado.
Para aprofundar nossas reflexões sobre a originalidade da obra
maquiaveliana, retomemos mais uma vez às considerações de Arendt.
Num dado momento, ela afirma que os pensadores modernos confundi­
ram liberdade e segurança, o que impediu-nos de ter do problema a
mesma clareza dos antigos^. Sem entrar no mérito dessa afirmação, não
devemos atribuir a Maquiavel uma crítica radical de tal associação, e isso
de um ponto de vista totalmente diferente do da Antiguidade? Não foi ele
um crítico impiedoso das ilusões dos homens políticos florentinos, que
tentavam imitar a República de Veneza, exatamente porque confundiam
segurança com liberdade? Arendt, preocupada em mostrar as rupturas
que o nascimento do conceito de livre-arbítrio operou, deixa de lado
certos aspectos das sociedades democráticas que, a nosso ver, podem
ser pensados a partir da obra maquiaveliana.
Arendt privilegia, na última parte de seu capítulo, a idéia de que a
liberdade é sempre um começo, uma criação que é ao mesmo tempo
uma fundação. Com isso, ela despreza a análise mais aprofundada dos
processos de conservação, que chega mesmo a identificar com certos
processos automáticos das sociedades modernas. Não é por acaso que a
distinção entre "agere" e "gerere" tem para ela uma significação tão gran­
de. Interessa-lhe, antes de tudo, o gesto magnífico que destrói a conti­
nuidade; interessa-lhe a aparição de "uma improbabilidade infinita"; mas
ela deixa de lado as ações repetitivas que caracterizam em grande me­
dida nossa vida política cotidiana.
Maquiavel também procurou mostrar a importância do gesto funda­
dor, mas, contrariamente a Arendt, soube compreender que a grandeza
do "primeiro momento" retira sua ibrça do interior do processo que
chamamos "conservação". Para ele, é da confrontação da lei com a
possibilidade de sua destruição que nasce á consciência da importância
das ações que instituem a unidade do corpo social. Sem a continuidade
entre os dois momentos, a grandeza da fundação das repúblicas não
podería ser diferenciada da barbárie do tirano, que anula a resistência

5. Ibidem, i94.
dos súditos através do uso contínuo de atos de terror. A liberdade, que
se origina no gesto dos legisladores, se conserva pelo retomo contínuo
da "polis" ãs condições que presidiram sua criação, mas também pela
conservação contínua das instituições que guardam a memória viva do
momento original. O pensamento maquiaveliano permite-nos, pois, fa­
zer a crítica tanto daqueles que, fascinados pela grandeza do passado,
são incapazes de compreender as exigências sempre renovadas da ação
política, como daqueles que identificam a liberdade à realização da
"melhor constituição".
Aceitando o desafio de interpretar os conceitos maquiavelianos, que
em sua complexidade podem parecer-nos distantes de nossa realidade,
acreditamos que sua concepção da liberdade é de grande interesse para
todos os que buscam elucidar alguns dos difíceis problemas das demo­
cracias modernas. Eles ajudam-nos, contra os nostálgicos das grandes
revoluções, e contra o niilismo conformista de certos apóstolos da pós-
-modernidade, a pensar a liberdade como fruto da ação dos sujeitos
políticos, num mundo em que a audácia dos grandes legisladores deve
combinar-se com a mais perfeita consciência do papel essencial das leis
que guardam os segredos da tradição. Tendo vivido em um época em
que a "fundação magnífica" era apenas uma imagem do passado,
Maquiavel nos toma capazes de pensar a fundação contínua da liberda­
de como uma exigência de todas as sociedades democráticas.
HBDOGRAFiA

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