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Mas Vovó Izidra vinha saindo de seu quarto escuro, carregava a almofada de
crivo na mão, caçando tio Terez. - "Menino, você ainda está aí?!" -;ela
queria que Miguilim fosse para longe, não ouvir o que ela ia dizer a tio
Terez. Miguilim parava perto da porta, escutava. O que ela estava dizendo:
estava mandando tio Terez ir embora. Mais falava, com uma curta brabeza
diferente, palavras raspadas. Forcejava que tio Terez fosse embora, por
nunca mais, na mesma da hora. Falava que por umas coisas assim é que há
questão de brigas e mortes, desmanchando com as famílias. TioTerez nem
não respondia nada. Como é que ela podia mandar tio Terez embora, quando
vinha aquela chuvada forte, a gente já pressentia até derradeiro ameaço dela
entrando no cheiro do ar?! Tio Terez só perguntou: - "Posso nem dar adeus à
Nhanina?..." Não, não podia, não. Vo Izidra se endurecia de magreza,
aquelas verrugas pretas na cara, com o compridos fios de pêlo
desenroscados, ela destoava na voz, no pescoço es pichava parecendo uma
porção de cordas, um pavor avermelhado.
Eu gostaria de expandir essa disposição didática para abarcar uma questão específica,
que talvez tenha a ver com o que há de pop no livro. Ou melhor, à tradição romanesca que o
livro recupera, de comportar-se como um espelho nítido em que nos reconhecemos, desejo
acrescer o que há no livro de resolução do irresolvido, como modo de se relacionar com seu
horizonte de recepção. Se vocês concordam comigo que há certo esforço em “Campo geral”
para deixar irresolvido o irresolvível, quero argumentar aqui, muito brevemente, que não há o
que se não se resolva em Torto arado.
A começar pelas narradoras... Se a saída para uma espécie de narrativa “em terceira
pessoa” na parte três é corajosa, me questiono muito se há o mínimo estranhamento
necessário na tomada da palavra de Bibiana e Belonísia nas partes um e dois. Isto é, se essas
duas mulheres, negras, pobres, quilombolas, do interior da Bahia são um outro em relação a
mim, por que raios eu as compreendo tão plenamente? Não há algo de estranho que seu
mundo me pareça tão próprio? Talvez com o tempo seja possível precisar quais aspectos
materiais daquele mundo não ganham correspondência na perspectiva e na linguagem,
experiências que soariam cifradas a nós, peculiaridades no letramento das narradoras,
aspectos humanamente contraditórios daquelas perspectivas etc. Se posso dizer que é
transparente demais – como, por exemplo, Cidade de deus em relação a Sobrevivendo no
inferno, ambos de 1997 –, quais as implicações dessa transparência para efeito do realismo do
livro.
Esse movimento de tornar mais legível, mais palatável, também está na maneira
como o enredo se encaminha. Com exceção da marcante cena inicial, do corte involuntário na
língua com a faca artefato que concretizará a vingança ao final do livro, mesmo os trechos
mais drásticos, como a morte de Severo, parecem enovelados para que se esquive do encontro
com o real. Por exemplo: Belonísia, cuja língua foi parcialmente ceifada – aliás, numa
imagem muito bonita, ela é o próprio torto arado que intitula o romance –, só sera narrada se
comunicando por sinais na página 232, depois da narração de Bibiana e trinta páginas depois
de sua própria narração; e quase não o fará no restante do romance. Ou mesmo na linha
mestra da narrativa, por maiores que sejam as forças contrárias, as heroínas e heróis sempre
triunfam. Melhor dizendo: a conciliação promovida por Zeca Chapéu Grande é interrompida
pelos avanços da constituição e pela mobilização dos jovens; o modo brutalizado da
administração age rapidamente assassinando o principal líder da insurreição, então a vitória
final é transferida para outro plano, como se dissesse, se estamos perdendo, é porque ainda
não acabou, em veia sensivelmente nacional-popular.
Por fim, gostaria de mencionar somente um momento em que a máquina ficcional do
romance sofre uma pequena pane e que talvez seja esclarecedor para a leitura que busco
desenvolver aqui. É o momento do discurso de Bibiana, na presença de Salomão e dos outros
moradores de Água Negra após a morte de Severo:
“A mentira de que ele cuidava de plantio de maconha não ficará de pé. Nós
sabemos quem planta”, disse sem desviar o olhar do povo à sua frente. “Nós
moramos na periferia da cidade [Bibiana tinha passado um tempo na
cidade] , e lá os policiais usavam a mesma desculpa de drogas para entrar
nas casas, matando o povo preto. Não precisa nem sem julgado nos tribunais,
a polícia tem licença para matar e dizer que foi troca de tiros. Nós sabíamos
que não era troca de tiros. Que era extermínio.”
A passagem não poderia ser mais artificial. E faz pensar por que o assunto do extermínio da
população negra da periferia urbana está aqui articulado às dificuldades do reconhecimento de
direitos das comunidades rurais quilombolas. Sobretudo porque essa articulação simplesmente
não retorna em nenhum outro momento do romance.