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Campo Geral e Torto Arado: opacidades e realismo

Se vocês se lembram de “Campo geral”, novela que compõe o vigoroso conjunto do


Corpo de baile (1956), de Guimarães Rosa, temos ali um narrador em terceira pessoa que
estabelece uma relação bem peculiar com o mundo e com as personagens narrados. De um
lado, Miguilim, o protagonista, é “um certo Miguilim” e Mutum, onde ele mora, “é longe,
longe daqui”, isto é, desde o começo da novela não são poucos os sinais de distância entre o
que se narra e quem narra. Ao mesmo tempo, sobretudo pelo uso do discurso indireto livre
mas não só, seja na presença marcante de diminutivos (“cabecinha”, “cabacinha”, “tardinha”,
irmãozinhos” etc.), seja no aparecimento mesmo de sintagmas inteiros que parecem pertencer
às personagens (como “aqueles pássaros macios”, “mais vistosa do mundo”, entre outros), ou
ainda, vá lá, pela sensação muito clara de que Miguilim narra junto aquela história de luto
pelo irmão menor e melhor, Dito, e de “voroço” pelo desarranjo de pai, mãe e tio, aquela
mesma distância é encurtada e a voz do narrador está impregnada do universo de “Campo
geral”. Salvo engano, uma precursora na observação e no ensaio dos desdobramentos dessa
mistura foi Clara de Andrade Alvim em seu ensaio para Os pobres na literatura brasileira.

Como costuma ocorrer no universo roseano, noções incompatíves, como “distãncia”


e “proximidade”, são compatibilizadas e não contrapostas. À luz do dilema hamletiano, é ou
não é, a resposta atualizada de Rosa seria: é e não é; por hipótese, dando versão metafísica à
cordialidade brasileira, como nação mágica em que, mediante violência, tudo pode ser ou
conviver (PASTA JÚNIOR, 1999). Voltando à novela, talvez esteja ali, elaborada na forma e
com implicações importantes, como veremos, uma elaboração dessa desmedida,
transcedental, compatibilidade, mas em roupagem mais modesta do que em Grande sertão:
veredas, aqui elaborando adulto e criança, como também história e memória – modéstia não
significa sempre menor importância, bom reparar. Pela distância, também pelo pressuposto de
que o leitor está mais distante do que próximo em relação àquele mundo, somos capazes de
realizar uma leitura crítica daquela organização da família de um tomador de conta. Pela
proximidade, em outra chave, sentimos os assombros e as dores, especialmente de Miguilim,
da ruptura e da recomposição daquela unidade familiar, que passa pelo triângulo amoroso
entre Béro (Bernardo Caz), a Mãe (Maria Francisca Cessim Caz) e Tio Terêz, mas também
envolve matriarcas, bichos, costumes e tais. Sublinhando-se aqui o narrador como uma
espécie de mediador daquele mundo.

Em passagens decisivas da narrativa, esse tipo de mediação se faz notar mais


facilmente, como, por exemplo, no trecho abaixo, logo nos primeiros tempos do enredo,
quando Vovó Izidra manda Tio Terêz ir embora, “por nunca mais, na mesma hora”.:

Mas Vovó Izidra vinha saindo de seu quarto escuro, carregava a almofada de
crivo na mão, caçando tio Terez. - "Menino, você ainda está aí?!" -;ela
queria que Miguilim fosse para longe, não ouvir o que ela ia dizer a tio
Terez. Miguilim parava perto da porta, escutava. O que ela estava dizendo:
estava mandando tio Terez ir embora. Mais falava, com uma curta brabeza
diferente, palavras raspadas. Forcejava que tio Terez fosse embora, por
nunca mais, na mesma da hora. Falava que por umas coisas assim é que há
questão de brigas e mortes, desmanchando com as famílias. TioTerez nem
não respondia nada. Como é que ela podia mandar tio Terez embora, quando
vinha aquela chuvada forte, a gente já pressentia até derradeiro ameaço dela
entrando no cheiro do ar?! Tio Terez só perguntou: - "Posso nem dar adeus à
Nhanina?..." Não, não podia, não. Vo Izidra se endurecia de magreza,
aquelas verrugas pretas na cara, com o compridos fios de pêlo
desenroscados, ela destoava na voz, no pescoço es pichava parecendo uma
porção de cordas, um pavor avermelhado.

“Bloqueados” pela visão de Miguilim, poderíamos ler a cena como um gesto


precavido da matriarca por envolvimento futuro entre o tio e a mãe. Mas se olhamos pelas
frestas, colhendo o que nos resta das falas das personagens pelo discurso indireto, “por umas
coisas assim é que há questões de briga e de morte”, ou se lemos com lucidez o que é dito em
discurso direto, “Posso nem dar adeus à Nhanina?”, percebemos que o adultério já existiu ou
existe e Vovó Izidra não está agindo antes, mas no preciso momento e com urgência. Isso
posto, para o que aqui se discute – de maneira análoga a como aparece em Dom Casmurro,
aliás, ou seja, um debate antigo mas que precisa ser sempre resposto –, interessa menos saber
se Tio Terêz e a Mãe já se frequentavam e mais pelo modo como a forma está armada de
modo a mostrar e a esconder concomitantemente. Noutros termos, temos duas visões
distintas, eventualmente até opostas – Mutum, afinal, é o sertão do Jeca Tatu ou paragem
edênica? –, sobrepostas, com o perdão da licença poética, promovendo certa espessura, certa
densidade, certa opacidade, cujo efeito não é não enxergarmos nitidamente aquele mundo,
mas enxergarmos mais de uma perspectiva sobre a mesma matéria, ou enxergando a própria
impossibilidade de enxergar, intensificando o efeito de realismo.
Se a leitura ou o leitor quiserem uma versão mais ampla desses dois mundos, vale a
leitura atenta do “Particulares de ‘Campo geral’, novela de Guimarães Rosa” (GALANO,
1994), artigo em que Ana Maria Galano, num gesto austero e, no limite, anti-encantatório,
dissipa o feitiço roseano para argumentar que a linha geral que resulta, no miúdo, em
maturação de Miguilim, traça no detalhe o princípio da modernização do campo, que
aposentaria aquele tipo de arranjo meio que familiar e no fio do bigode, por algo mais
profissionalizado e contratual. Talvez ali não esteja a leitura ritualística, pactária, que defendo
também ser um dos caminhos para a força de “Campo geral”, pensando no “Romance de
Rosa”, mas para nossos fins está de ótimo tamanho.

De um salto chegamos ao premiado romance Torto Arado (2019), de Itamar Vieira


Júnior. Em muitos aspectos, as duas narrativas não se comparam. O arco de tempo expresso
no romance de Itamar é mais amplo, podendo, inclusive, ser lido como um romance histórico
das população quilombolas. O conteúdo mágico é bastante presente no livro recente, quer nas
atividades nos jarês exercida por Zeca Chapéu Grande, quer na terceira parte do livro, narrada
por Santa Rita Pescadeira. As três histórias são narradas em primeira pessoa – por duas
mulheres negras e por uma entidade – e isso instala um ponto de vista interno e implicado às
questões daquela comunidade de trabalhadores. Enfim, um sem número de diferenças.

Vamos, contudo, tomar o caminho inverso de reflexão e abordar um único ponto de


articulação em que essas diferenças são eloquentes sobre as duas obras, qual seja, os impactos
de “certa tonalidade didática” (OTSUKA & RABELLO) do romance de Itamar, não só nos
efeitos de realismo do romance, mas também como solução estética dada pelo autor, com
grandes implicações sobre a obra e sua recepção. A expressão de Otsuka e Rabello em seu
precioso artigo sobre Torto Arado refere-se ao funcionamento do romance como um caminho
para reconhecimento do Brasil pelos brasileiros, uma função tradicional do romance
romântico e realista no país, e também como indicador, pela vingança metafísica da entidade,
da insuficiência das formas tradicionais de luta e “impulso para a invenção de novas formas
que a imaginação literária figura em seus próprios termos.” Vale a nota de que o romance
funciona também por suas contradições, com os autores bem observam.

Eu gostaria de expandir essa disposição didática para abarcar uma questão específica,
que talvez tenha a ver com o que há de pop no livro. Ou melhor, à tradição romanesca que o
livro recupera, de comportar-se como um espelho nítido em que nos reconhecemos, desejo
acrescer o que há no livro de resolução do irresolvido, como modo de se relacionar com seu
horizonte de recepção. Se vocês concordam comigo que há certo esforço em “Campo geral”
para deixar irresolvido o irresolvível, quero argumentar aqui, muito brevemente, que não há o
que se não se resolva em Torto arado.

A começar pelas narradoras... Se a saída para uma espécie de narrativa “em terceira
pessoa” na parte três é corajosa, me questiono muito se há o mínimo estranhamento
necessário na tomada da palavra de Bibiana e Belonísia nas partes um e dois. Isto é, se essas
duas mulheres, negras, pobres, quilombolas, do interior da Bahia são um outro em relação a
mim, por que raios eu as compreendo tão plenamente? Não há algo de estranho que seu
mundo me pareça tão próprio? Talvez com o tempo seja possível precisar quais aspectos
materiais daquele mundo não ganham correspondência na perspectiva e na linguagem,
experiências que soariam cifradas a nós, peculiaridades no letramento das narradoras,
aspectos humanamente contraditórios daquelas perspectivas etc. Se posso dizer que é
transparente demais – como, por exemplo, Cidade de deus em relação a Sobrevivendo no
inferno, ambos de 1997 –, quais as implicações dessa transparência para efeito do realismo do
livro.

Esse movimento de tornar mais legível, mais palatável, também está na maneira
como o enredo se encaminha. Com exceção da marcante cena inicial, do corte involuntário na
língua com a faca artefato que concretizará a vingança ao final do livro, mesmo os trechos
mais drásticos, como a morte de Severo, parecem enovelados para que se esquive do encontro
com o real. Por exemplo: Belonísia, cuja língua foi parcialmente ceifada – aliás, numa
imagem muito bonita, ela é o próprio torto arado que intitula o romance –, só sera narrada se
comunicando por sinais na página 232, depois da narração de Bibiana e trinta páginas depois
de sua própria narração; e quase não o fará no restante do romance. Ou mesmo na linha
mestra da narrativa, por maiores que sejam as forças contrárias, as heroínas e heróis sempre
triunfam. Melhor dizendo: a conciliação promovida por Zeca Chapéu Grande é interrompida
pelos avanços da constituição e pela mobilização dos jovens; o modo brutalizado da
administração age rapidamente assassinando o principal líder da insurreição, então a vitória
final é transferida para outro plano, como se dissesse, se estamos perdendo, é porque ainda
não acabou, em veia sensivelmente nacional-popular.
Por fim, gostaria de mencionar somente um momento em que a máquina ficcional do
romance sofre uma pequena pane e que talvez seja esclarecedor para a leitura que busco
desenvolver aqui. É o momento do discurso de Bibiana, na presença de Salomão e dos outros
moradores de Água Negra após a morte de Severo:

“A mentira de que ele cuidava de plantio de maconha não ficará de pé. Nós
sabemos quem planta”, disse sem desviar o olhar do povo à sua frente. “Nós
moramos na periferia da cidade [Bibiana tinha passado um tempo na
cidade] , e lá os policiais usavam a mesma desculpa de drogas para entrar
nas casas, matando o povo preto. Não precisa nem sem julgado nos tribunais,
a polícia tem licença para matar e dizer que foi troca de tiros. Nós sabíamos
que não era troca de tiros. Que era extermínio.”
A passagem não poderia ser mais artificial. E faz pensar por que o assunto do extermínio da
população negra da periferia urbana está aqui articulado às dificuldades do reconhecimento de
direitos das comunidades rurais quilombolas. Sobretudo porque essa articulação simplesmente
não retorna em nenhum outro momento do romance.

Em que medida não haveria aqui, no sentido literal, a descaracterização do particular


para permitir identificação mais irrestrita? Como figuram na obra as questões de
representatividade e de ancestralidade? Os jarês, ilustrativamente, são uma prática religiosa de
matriz africana específica da região recortada pelo romance, uma mistura de candomblé,
umbanda, catolicismo e cardecismo. As personagens envolvidas, inclusive Santa Rita
Pescadeira, a narradora da terceira parte do romance, aparecem para nós num estilo
translúcido que, no fundo, parece não reproduzir o que haveria do estranho, do espanto, do
encontro com o outro. Ou estou errado? Em que medida é dever do estilo a reprodução
daquilo que não se apreende, em especial tendo no horizonte determinada comunidade leitura
que parece ter o romance de Itamar Vieira Júnior?

 Pergunta da atualidade ou não dos contos no país da milícia.


 Bandidagem normalizada.
 Rosa elide a proteção da propriedade privada na ação dos jagunços.
 Que visão da ordem e da desordem estariam formuladas naqueles dois contos? Como
se relacionam com o desenvolvimentismo e com a intensificação dos conflitos sociais?
(ligas camponesas)
 Outras formas de mediação e de violência em relação a GSV.
 Suspensão da resposta violenta.
 Violência da intimição x controle da linguagem.
 Ele é um famigerado, mas não se vangloria de sua fama.
 Em que medida essa relação se estabelece, entre GSV, jagunço bang-bang e
desenvolvimentismo, vs jagunço murchado, desarmado, e alguns anos depois? Como
o tempo histórico se acelera dessa forma num tempo tão exíguo? Esse ingresso nas
nações civilizadas.
 Civilidade e cordialidade. Seria o jagunço cordial o ápice da compatibilização? Ou o
jagunço é ele mesmo um signo agressivo da cordialidade na obra do Rosa, porque faz
valer o que manda seu coração?
 O mito – o presente de remontaria ao jagunço de antes ou ao jagunço de depois?
 Inivisibilizadas as forças populares.

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