Leitura de “O idioma analítico de John Wilkins”, em Outras inquisições (1952), de
Borges. Maria Esther Maciel (1963) é professora de Teoria e Literatura Comparada na UFMG. Pós-doc em cinema pela Universidade de Londres. Tem livros acadêmicos, livros de ensaio e livros de ficção. Desenvolveu desde os primeiros anos do século XXI uma pesquisa sobre “inventário” e outra sobre “animais na literatura brasileira”. o Sobretudo nessa segunda pesquisa, a professora percorreu compêndios, bestiários, livros de zoologia, antigos e contemporâneos, conseguindo grande acumulação de material. Estreou na ficção com O livro de Zenóbia, finalista do prêmio Portugal Telecom de 2005. Seu segundo romance, O livro dos nomes, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, do Prêmio Portugal Telecom e do Prêmio Jabuti em 2009. Recebeu menção especial no Prêmio Casa de las Américas 2009. Foi uma dos representantes do Brasil na Feira do Livro de Frankfurt em 2013[2]. Participou da mesa "O Falcão e a Fênix" na Feira Literária de Paraty em 2016. Tem artigos e textos literários publicados em vários periódicos do Brasil e do exterior. É colaboradora do caderno Ilustrada, Folha de S.Paulo, desde 2012. O livro foi publicado em 2021, pela Todavia, ilustrações de Júlia Panadés. o Esteticamente, as ilustrações resgatam os registros feitos por naturalistas, antigos botânicos. Junto com os nomes em latim e o esquema lexicográfico, dão feição de enciclopédia ao volume. Claro que os animais inventados reservam novidades nesses “índices ficcionais de verdade”. o As relações aqui são mais profundas, porque à luz da ciência moderna, os bestiários não são necessariamente ciência, mas uma ciência incipiente, empírica. O texto em parte emula a ordem direta dessas descrições, em parte investe na fabulação. Três observações de início: o A seriação proposta pela obra é onomástica, isto é, a classificação por nomes sobrepõe as outras classificação, inclusive a classificação por espécie. o As entradas da pequena enciclopédia estão pelo nome vulgar dos animais, pelo nome como são conhecidos. Por aqui, podemos inverter o raciocínio e pensar nas repetições da cultura popular, e também na humanização e na empatia da cultura popular, ao chamar os animais/plantas de joão, maria, viuvinha etc., o que é notado e recolhido pela autora. Em vários verbetes, são trazidos outros nomes populares das espécies ou então seus parentescos. Os nomes comuns e a designação de viuvinha ou noivinha aproximam os bichos das pessoas. o Ao embaralhar ciência e literatura tendo no horizonte a verdade, também acho que a pergunta se coloca: como se chega mais facilmente à verdade, pela arte ou pela ciência? Ou uma pergunta mais modesta: o que nos move como leitores, o prazer literário ou a curiosidade científica? A composição das entradas é muito rica, tem comentários agudos (“Se a chamam de boba, é apenas porque seu voo é desavisado e lento.”), onomatopeias (“ríu... ríu...”), entrechos poéticos (“Apenas as crianças – e quando muito pequenas – entendem o que essa maria fala.” / Dia desses, via uma delas (saíra-viúva) – acho que fêmea por conta da cor azul-esverdeada – sobre uma árvore oblíqua e encurvada, quase seca. Parecia ter um leve incômodo no olhar, esperando algo que desconheço. Deixava-se acontecer, atenta à hora e vez de cada coisa”), recolhas de curiosos lances de costumes populares (“Um dado curioso é que, para ter sonhos eróticos vívidos, muitas mulheres põem um ramo dessa maria sob o travesseiro, em noites de lua cheia”), humor (“Fedes? Ao que ela responde, de forma robusta, porém acanhada: “Fedo” / “Quase ninguém imagina que esse joão possa ser um tubarão, mas ele é.”) e eventualmente, em tom ameno, a tragédia da vida (“Reza a lenda que, antes de ser peixe, ele foi um homem que caiu nas águas do mar quando embriagado.”). Embora a autora recuse um tanto essa leitura, há um movimento de humanização das espécies reunidas com a manutenção dos indivíduos em suas próprias espécies. Podemos considerar um verbete melhor ou pior à luz da síntese obtida, caso a caso. Isto é, em que medida temos um esforço de alteridade, em que medida temos um efeito de humanização. Dúvida que também se desdobra para a pergunta: são pessoas ou são bichos? (em entrevista, a autora disse que queria representar a bichicidade dos bichos, mas acho que nem sempre ela consegue). Quando se humaniza demasiado, aliás, o efeito é, no rigor do termo, patético. o “Maria-Farinha”: “Seu maior pavor é ser jogada viva em água fervente, como fazem os humanos quando querem devorá-la. Até pesadelos ela tem, às vezes, ao pensar nessa maldade.” o “Maria-Peidorreira”: “Mas se ela solta gases, ninguém sabe.” O patético chega a infantilizar-se e dar um ar infanto-juvenil à passagem. Dentro do lúdico da proposta, esta palheta de cores é coerente? o “Maria-Luísa”: “está sempre em desassossego por saber que a qualquer momento pode ser capturada e comida pelos homens, como já aconteceu com muitas de suas amigas, também marias”. A autora cita também um exercício de empatia com as espécies, o que nos sugere também a possibilidade de ler como ecoliteratura. o Esse movimento é reiterado quando comentários ambientais são inseridos dentro dos verbetes. “Há pouco tempo, li a notícia de que uma dessas marias, por falta de tocas, fez de uma garrafa PET a sua morada, nas águas sujas de um rio.” (trecho que aparece quase idêntico algumas páginas adiante) Também as questões de gênero estão presentes, sobretudo na série das marias, em que o discurso de solidariedade sobrepõe ao discurso da competição. Há também o João- Grande, uma garça morena e solitária: “não se sabe por que tem nome de homem... De sua parte qualquer um de seus nomes vale. A nenhuma deles faz ressalvas.” Duas críticas de fundo: o A lógica proposta pelas listas é fabulosa, lúdica, desacomodadora, nas postulação de novos princípios para a organização dos seres. Mas me parece o tempo todo um grande ideia sem maior desenvolvimento ou expansão. Não se trata de um compêndio estupendo, mas de uma amostra modesta, divertida, interessante e bem editada. o Mesmo a quantidade de recursos literários esperada não se apresenta, com muitas repetições de formato e de fórmulas: li outro dia, alguém me falou etc. Há ainda alguns problemas crassos de estilo, como este: “O casal, ao que se sabe, é monogâmico. No entanto há quem diga que há casos em que a fêmea trai o marido. É quando ele, atormentado pelo ciúme, a enclausura dentro do ninho e lacra a porta. Contudo, segundo os cientistas, isso é mentira.” A existência de algumas espécies não existentes na natureza insere um giro a mais na organização do livro. Quando percebemos o primeiro deles (Maria Vai com as Outras), nos questionamos se teríamos passado por algum que consideramos verdadeiro, mas que na verdade não existe. Ou melhor, quem disse que para ser verdeiro precisa existir? o João Doidão É um besouro ruivo, de vida estranha. É chamado também de “artista do fogo” e vive nas cercanias de algumas tribos indígenas do Amazonas. É comprido, de cabeça grande, olhos salientes, com pelos esparços espalhados por suas antenas alongadas. Gosta dos emaranhados de folhas e dos galhos de árvores magras. Uma de suas peculiaridades mais notáveis é que, quando se enfurece, fricciona suas pernas escanifres, soltando faíscas que podem incendiar tod o entorno do lugar em que se encontra. Alguns índios contam com ele – que faz as vezes de fósforo – para acender fogueiras. É sensitivo, com uma vivacidade rara. Às vezes parece desamparado e quase chega a uma modéstia trágica. o Maria Vai com as Outras: É uma humana solidária. Se ela vai com as outras marias, é sobretudo para ajudá-las. E não importa que as outras sejam aves, insetos, plantas ou crustáceos, pois todas as criaturas lhe são caras (...) o Lagarta-dama-do-mato É um réptil com feições humanas que vive nas matas litorâneas. (...) Quando esta no cio, fica tão excitada que todo o seu rabo se abre em flor. Isso assanha as abelhas e colibris, que dela se aproximam com o desejo aceso. Entretanto, avessa a tais assédios, ela se enfurece e captura, com a língua longa e pegajosa, todos os bichos inoportunos que aparecem. o Peixe-banana Encontrável em águas revoltas, é um peixe de olhos trágicos, hábitos estranhos e cauda amarela. (...) Segundo um escritor americano de renome, ele também possui um apetite invejável, que o leva a mergulhar num buraco cheio de bananas, com as quais se refestela para além dos limites de sua fome. E então, tomado por uma febre terrível, ele morre. o Viuvinha-Humana Ela está triste, mas não é triste. O desamparo que lhe é atribuído por outros humanos não existe senão como um saudade doída do que foi irreversivelmente perdido.