Você está na página 1de 10

Exercícios de zooliteratura

em Machado de Assis e Guimarães Rosa


Maria Esther Maciel

O que sabemos sobre os animais é um índice de nosso poder,


e assim é um índice que nos separa deles. Quanto mais julga-
mos saber, mais distantes eles ficam.
John Berger

O esforço de sondar o espaço mais intrínseco da vida animal nunca dei-


xou de desafiar poetas e escritores de todos os tempos e tradições. Seja através
da descrição do comportamento e dos traços constitutivos dos animais de
várias espécies, realidades e irrealidades, pelas vias da alegoria e da erudição,
seja através da tentativa de os antropomorfizar e converter em metáforas do
humano, muitos foram e são os autores voltados para à prática daquilo a que
se pode chamar hoje, no campo dos estudos literários, zooliteratura. Nesse rol
ainda se incluem escritores que, avessos à ideia de circunscrever os bichos aos
limites da mera representação alegórica, procuraram captá-los também fora
desses contornos, optando por mostrar um vínculo afectivo ou uma espécie
de compromisso ético com eles. Neste caso, cada bicho — tomado na sua
insubstituível singularidade e subtraído da carga alegórica que a tradição dos
bestiários antigos depositou sobre o mundo zoológico — passa a ser visto
como um sujeito dotado de inteligência, sensibilidade, competências e saberes
diferenciados sobre o mundo. E que, portanto, deve ser preservado das práticas
de sujeição e crueldade às quais os animais em geral vêm sendo submetidos
ao longo dos tempos.
No Brasil, a miríade de escritores voltados para um enfoque mais cons-
ciencioso dos animais é expressiva, remontando à segunda metade do século
XIX, sobretudo com Machado de Assis, que dedicou memoráveis contos, cró-
nicas e passagens de romances à situação dos animais no mundo dominado
pela ciência e pelo triunfo do racionalismo moderno. Vale dizer que ele foi um
dos primeiros escritores brasileiros a fazer o elogio do vegetarianismo, numa

126
crónica sobre a greve de açougueiros ocorrida na cidade do Rio de Janeiro em
18931, e a abordar criticamente a crueldade das práticas de vivissecção comuns
nos laboratórios científicos do tempo. Além disso, manifestou-se contra as tou-
radas e a exploração da força animal no trabalho, revelou a sua simpatia pelas
sociedades protectoras de animais2 e explicitou a sua visão céptica sobre as
filosofias humanistas amparadas na noção de racionalidade, a exemplo tanto
da teoria do «humanitismo» apresentada nos romances Memórias Póstumas
de Brás Cubas e Quincas Borba quanto no emaranhamento, neste último, das
noções de humanidade, animalidade e loucura.
Se Machado de Assis pode ser considerado, assim, o primeiro escritor
brasileiro a tratar da questão do animal sob um prisma ético, pode-se dizer
que Guimarães Rosa foi o grande animalista das letras brasileiras do século
XX, uma vez que, desde os seus primeiros livros, nunca deixou de conferir aos
animais uma especial atenção, tomando-os quase sempre como sujeitos acti-
vos, fora do amansamento antropomórfico e moralizador que constitui grande
parte da zooliteratura ocidental. Não à toa Graciliano Ramos, ao comentar os
contos de Sagarana em «Conversa dos Bastidores», ressaltou que nas pági-
nas dessa obra «fervilham bichos», «exibidos com peladuras, esparavões e
os necessários movimentos de orelhas e rabos»3. Além disso, os embates, as
interacções, o corpo-a-corpo dos homens com o mundo animal são bastante
frequentes nas suas narrativas, indiciando o vivo interesse do escritor em
abordar as afinidades e os limites que há entre humanos e inumanos. Ao que
se soma também o interesse do escritor em observar os aquários e os bichos
enjaulados nos jardins zoológicos do mundo, como atestam as instigantes
séries «Aquário» e «Zôo», do livro póstumo Ave Palavra4.
No que se refere especificamente à série dos jardins zoológicos, Rosa
escreveu seis textos, cada um dedicado a um zoo por ele visitado: o Whipsnade
Park, de Londres; o zoo da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro; o
Hagenbeks-Tierpark, de Hamburgo-Stellingen (que aparece também no
quinto texto); o Jardin des Plantes, de Paris; e o Parc Zoologique du Bois de
Vincennes. Compostos de fragmentos, esses escritos oferecem-se também
como notas de viagem e exercícios de afecto de quem gosta de animais e se
interessa por eles. Cada extracto afigura-se como um topos alternativo, por-
que poético, para um grupo ou um animal específico, numa ordenação que
poderia ser (ou não) a da instituição visitada. Percebe-se, no conjunto, um
misto de admiração, assombro, curiosidade, ludismo, ternura, compaixão e
cumplicidade do narrador em relação às dezenas e dezenas de espécies que
descreve, atento às particularidades de comportamento de cada um dos bichos
retratados e, simultaneamente, procurando deles extrair uma linguagem, como
se pode constatar nos trechos abaixo, extraídos do «Jardin des Plantes»5:

127
O arganaz: um joão ratão, cor de urucum, que fica em pé, retaco e irritado,
eriça os bigodes, gesticula. Aberta, de raiva, sua boquinha preta se arredonda,
frige, atiça perdigotos. É o rato-de-honras. Tem ombros, tem boa barba. Seria
capaz de brigar com o resto do mundo.

O Mangusto, só a diminutivos. Eis: um coisinho, bibichinho ruivo, ratote,


minusculim, que assoma por entre as finas grades a cabecinha triangularzinha.
Mimo de azougue, todo pessoa e curiosidade, forte pingo de vida. Segura as gra-
des, empunha-as, com os bracinhos para trás e o peito ostentado, num desabuso
de prisioneiro veterano. Mas enfeitaram-lhe o pescoço com uma fitinha azul, que
parece agradar-lhe mais que muitíssimo.

Chama a atenção, numa das secções, uma frase que parece justificar toda
a série zoológica de Rosa: «Amar os animais é aprendizado de humanidade.»6
Do que se depreende um propósito também ético do escritor ao poetizar a
existência desses seres que estão à mercê dos seus tratadores. A compaixão não
deixa, portanto, de ser um ingrediente importante para que tal aprendizagem
se efective, o que o próprio Rosa demonstra ao mencionar repetidamente um
ratinho branco que foi colocado pelos funcionários do zoológico dentro da
jaula de uma cascavel, para que os visitantes pudessem ver o espectáculo da
devoração. O escritor, nesses fragmentos, entra na pele do rato e, como que
por contágio, traz para o corpo das palavras o tremor e o olhar «transido,
arrepiado» do animalzinho comprimido num dos cantos da parede de tela,
«no lugar mais longe que pôde»7. Vê-se aí, encenada, a contundente frase
que Coetzee lança no seu A Vida dos Animais: «quem diz que a vida importa
menos para os animais do que para nós nunca segurou nas mãos um animal
que luta pela própria vida; todo o seu ser está na carne viva»8.
Inventariar todos os animais que compõem o bestiário de Rosa seria
uma tarefa árdua, para não dizer insana. Listas zoológicas abundam na sua
obra — em especial no Grande Sertão: Veredas —, indo de centenas de nomes
de bois e vacas a dezenas de espécies espalhadas pelo sertão mineiro ou con-
finadas nos jardins zoológicos do mundo. Para não mencionar a exploração
que o autor faz dos traços de animalidade do humano, como em «Meu Tio o
Iauaretê», que trata da transformação de um onceiro num homem-onça, por
um processo de contágio. No conto, o devir do homem em animal é encenado
na própria superfície da linguagem que também se zoomorfiza através da
desarticulação das palavras e do uso de onomatopeias estranhas, alheias ao
léxico humano.
Através desse repertório múltiplo, composto a partir de uma relação
intrínseca com o mundo dos bichos e de um profundo respeito pela «outri-
dade» radical que os animais representam para a nossa racionalidade, Rosa

128
não deixa de questionar as assertivas filosóficas que insistem numa suposta
«pobreza de mundo» dos seres não-humanos. Além disso, ele critica vee-
mentemente a violência contra estes, num exercício de explícita compaixão,
como vimos a propósito do ratinho branco e podemos atestar também no
conto «O Burrinho-Pedrês», de Sagarana, em que o narrador se «cola» à
subjectividade do «miúdo e resignado»9 burro de carga, «Sete-de-Ouros»,
para contar a história sofrida de um animal marcado a ferro e sempre às voltas
com chibatadas e esporas.
Aliás, a história da escravidão dos burros já havia sido tratada por Ma-
chado de Assis na «Crônica dos Burros», de 1892, na qual relata uma interes-
sante conversa entre dois desses animais sobre a possibilidade de ficarem livres
da exploração humana por causa da expansão do uso da tracção eléctrica nos
bondes do Rio de Janeiro. Destaca-se, na crónica, o que o mais céptico diz ao
outro: «Tu não conheces a história da nossa espécie, colega; ignoras a vida dos
burros desde o começo do mundo. Tu nem refletes que, tendo o Salvador dos
homens nascido entre nós, honrando nossa humildade com a sua, nem no dia
de Natal escapamos da pancadaria cristã.»10
Notável nessa crónica e noutros textos de Machado de Assis é o uso paró-
dico que ele faz das fábulas, ao dar voz e palavras aos animais. A diferença em
relação à fabula tradicional é que os animais, neste caso, não são antropomor-
fizados e nem estão ao serviço da edificação humana, mas aparecem como
animais-animais que expressam o que o autor imagina que eles falariam se
pudessem fazer uso da linguagem verbal11. Em geral, as falas têm um propósito
crítico em relação à humanidade, aos usos cruéis da razão e à impotência desta
diante de outros saberes que não os racionais.
Esse recurso ficcional de o narrador entrar na subjectividade animal para
tentar imaginar, pelo uso da primeira pessoa do discurso, possíveis emoções,
pensamentos e inquietações próprias dos seres não-humanos é também pra-
ticado por Rosa, como atesta o conto «Conversa de Bois», de Sagarana, que
traz uma conversa similar à dos burros de Machado, embora sem as ironias
da crónica machadiana. As personagens são oito bois de guia, que lamentam
a sua condição de animais com «os flancos a sangrar» e expressam as suas
opiniões sobre a crueldade dos homens. Um deles chega a dizer: «O homem
é um bicho esmochado, que não devia haver»12, num tom de descrença em
relação ao mundo daqueles que são responsáveis pelas coisas ruins que acon-
tecem com os bichos.
É uma fala que lembra muito também um poema de Drummond, «Um
Boi Vê os Homens»13, no qual o poeta, no rasto de Rosa, confere voz a um
«eu-bovino» que — no exercício de uma linguagem que não é necessaria-
mente a sua — rumina o seu próprio conhecimento sobre a espécie humana,
lamentando a pobreza de mundo inerente a esta e indagando sobre a necessi-

129
dade que os homens têm de ser cruéis. Por outras palavras, o boi — movido
por uma percepção que supostamente ultrapassa as divisas da razão legitimada
pela sociedade dos homens — não apenas põe em xeque a capacidade destes
de entender outros mundos que não o amparado por essa mesma razão, mas
também revela uma visão própria das coisas que existem e compõem aquilo a
que chamamos vida.
Vê-se que a persona bovina de Drummond — tal como a de Rosa, ao dar
voz aos seus bois, e a de Machado, ao relatar as falas dos burros de carga —
procura encarnar uma subjectividade possível (ainda que inventada) de um ser
que, nos confins de si mesmo, é sempre outro em relação ao que julgamos cap-
turar pela força da imaginação. Isso, se considerarmos que entre os animais e os
humanos predomina a ausência de uma linguagem comum, ausência esta que
instaura uma distância mútua e uma radical diferença entre eles. No entanto,
sabemos que tal distância/diferença não anula necessariamente aquilo que os
aproxima e os coloca em relação também de afinidade. Falar sobre um animal
ou assumir a sua persona não deixa de ser também um gesto de espelhamento,
de identificação com ele. Por outras palavras, o exercício da animalidade que
nos habita14.
De qualquer maneira, essas tentativas ficcionais de apreensão do «eu»
dos bichos trazem inevitavelmente para o debate algumas indagações. Até que
ponto se pode falar propriamente de uma subjectividade animal? A percepção
do mundo pelos sentidos, a capacidade de sofrer e de construir o seu próprio
espaço vital serão evidências bastantes para que os animais sejam considerados
seres complexos, capazes de sentir, criar, comunicar entre si e até mesmo de
pensar?
Montaigne foi um dos primeiros a chamar a atenção para a complexidade
desses viventes não humanos, ao mostrar que os bichos, dotados de variadas
faculdades, «fazem coisas que ultrapassam de muito aquilo de que somos
capazes, coisas que não conseguimos imitar e que nossa imaginação não nos
permite sequer conceber»15. Considerações, aliás, que só muito recentemente
encontraram amparo científico, graças sobretudo às descobertas da etologia
contemporânea, ramo transdisciplinar da zoologia dedicado ao estudo do
comportamento animal. O etólogo Dominique Lestel, por exemplo, no seu já
clássico As Origens Animais da Cultura, aponta a extraordinária diversidade de
comportamentos e competências dos bichos, que vão da habilidade estética
até formas elaboradas de comunicação. No que se refere à habilidade das aves
na construção de ninhos, o estudioso lembra que, para os fazerem, «as aves
tecem, colam, sobrepõem, entrecruzam, empilham, escavam, enlaçam, enro-
lam, assentam, cosem e atapetam», valendo-se não apenas de folhas e ramos,
como também de «musgo, erva, terra, excrementos, saliva, pêlos, filamentos
de teias de aranha, fibras de algodão, pedaços de lã, ramos espinhosos e

130
sementes»16, cuidadosamente separados e combinados. Já no que diz respeito
à comunicação, ele explica que uma ave canora dos pântanos europeus «revela­
‑se capaz de imitar setenta e oito outras espécies de aves»17, que a vocalização
de certos animais apresenta distinções individuais ou regionais, e que os gritos
de um sagui podem obedecer a uma semântica bastante precisa18.
Diante de tais descobertas, quem garante que os animais estão impedidos
de pensar, ainda que de uma forma muito diferente da nossa, e ter uma voz que
se inscreve na linguagem? Estará, como indaga Lestel, a nossa racionalidade
suficientemente desenvolvida para explicar uma «racionalidade» que lhe é
estranha, caso esta realmente exista? Tal parece ser a discussão que Machado
de Assis sugere em «Idéias de Canário», ao confrontar as concepções de
mundo de um canário e de um cientista incapaz de entender e explicar a
sabedoria da ave19. O conto traz a história de um ornitologista que encontra
numa loja escura, «atulhada de cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas,
enferrujadas»20, uma gaiola com um canário dentro. O canário trila e a sua
linguagem entra nos ouvidos do homem como se fosse de gente. Este, intrigado
com a habilidade da ave em falar, pergunta-lhe se não tinha saudade do espaço
azul e infinito. Ao que o canário responde: «Mas, caro homem, que quer
dizer espaço azul e infinito?» O homem pergunta-lhe, então, o que pensa do
mundo. A resposta do canário é a seguinte: «o mundo é uma loja de belchior,
com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o
canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí tudo é
ilusão e mentira»21. O ornitólogo compra o pássaro, dá-lhe uma ampla nova
gaiola e leva-o para o jardim da sua própria casa, com propósitos de «alfabetar
a língua» do canário, «estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os
sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências». Três semanas
depois de intensa interlocução com o canário, o homem pede-lhe que repita
a definição do mundo. E o canário diz: «é um jardim assaz largo com repuxo
no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por
cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular,
donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira». Quando o pássaro foge
e o ornitólogo finalmente o reencontra num galho de árvore de uma chácara,
pede-lhe que continue a conversa sobre o mundo composto de um jardim com
repuxo. O diálogo que se segue, e encerra o conto, é o seguinte:

— Que jardim? que repuxo?


— O mundo, meu querido.
— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo,
concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.
Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até
já fora uma loja de belchior. . .

131
— De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas
de belchior?22

Através da sabedoria do canário, Machado de Assis troça da arrogância


científica e das limitações humanas no que diz respeito ao entendimento do
mundo. Ao atribuir ao pássaro o que filósofos como Heidegger e Agamben,
na esteira de Rilke, chamaram a experiência do Aberto, o escritor brasileiro
contraria a assertiva heideggeriana de que o animal, «pobre de mundo», se
situa fora do ser, numa zona de não-conhecimento. Desafia assim, com o seu
canário, aquilo a que Agamben chama «máquina antropológica do huma-
nismo»23, tradicionalmente assente na fractura cartesiana que separa homem
e animal, e não deixa de ironizar, por antecipação, o que Heidegger afirmaria
muitos anos depois através da famosa tese de que «a pedra é sem mundo, o
animal é pobre de mundo e o homem é formador de mundo»24.
É neste sentido que o conto machadiano se poderia aproximar das refle-
xões de Derrida na conferência O Animal Que logo Sou, de 1999. Nesse texto,
originalmente uma palestra, o filósofo argelino, ao discutir a referida tese hei-
deggeriana, realiza uma espécie de desconstrução do humanismo logocêntrico
do Ocidente, questionando também toda uma linhagem de filósofos como
Descartes, Levinas e Lacan, que, como Heidegger, usaram o animal enquanto
um mero teorema para justificar a racionalidade e a linguagem humanas como
propriedades diferenciais dos humanos em relação aos outros animais. A isso
Derrida acrescenta também toda uma preocupação de ordem ética, chamando
a atenção para a forma como o logocentrismo contribuiu para legitimar a sujei-
ção animal, o que, segundo ele, configura uma grande violência, «mesmo que
seja no sentido mais neutro do ponto de vista moral desse termo»25. E cita, a
seguir, as experiências genéticas, os abatedouros, o extermínio de espécies, a
exploração da energia animal, a produção alimentar de carne, o inferno das
granjas e fazendas industriais como evidências de tal violência, afirmando
no final: «Ninguém mais pode negar seriamente e por muito tempo que os
homens fazem tudo o que podem para dissimular essa crueldade, para organi-
zar em escala mundial o esquecimento ou o desconhecimento dessa violência
que alguns poderiam comparar aos piores genocídios.»26
O facto é que Guimarães Rosa e Machado de Assis não se furtam a tra-
zer à tona, nos seus escritos, a memória dessa crueldade, chegando mesmo a
estabelecer nexos entre a violência contra os animais e a violência contra as
pessoas; entre vitimização de animais e problemas sociais humanos, o que
se pode constatar sobretudo na obra de Machado. Exemplar, nesse caso, é o
terrível «Conto Alexandrino»27, que parece prefigurar os horrores cometidos
pelos médicos nazis nos campos de concentração, ao mostrar como as práti-
cas de vivissecção de animais (no caso do conto, ratos) realizadas em nome

132
do progresso da ciência moderna podem culminar também na dissecação e
amputação de seres humanos tidos, pela lógica hierárquica das instâncias de
poder, como inferiores, anómalos, insanos, incapazes e supostamente nocivos
à sociedade.
Escrito no apogeu do cientificismo do século XIX, o conto de Machado
narra a história de dois cientistas que, em busca da fama, mudam-se para
a Alexandria de Ptolomeu e passam a dissecar ratos vivos com o intuito
de provar que o sangue de rato, dado a beber, ainda quente, a um homem,
pode fazer deste um ratoneiro, um larápio. E visto que, segundo Machado,
«a ciência, como a guerra, tem necessidades imperiosas»28, as personagens
cometem as maiores atrocidades contra os pobres bichos, deixando preocupa-
dos os «cães, rolas, pavões e outros animais ameaçados de igual destino»29.
Como a experiência, por incrível que pareça, acaba por dar certo, os cientistas
tornam-se ladrões e começam a fazer sucessivos furtos, até serem presos e
condenados à morte. Então, um famoso anatomista da cidade, inspirado pelas
experiências de vivissecção dos ratos, resolve transformar prisioneiros em
cobaias, submetendo-os aos mais cruéis métodos de intervenção científica,
sob a alegação de que a «sujeição dos réus à experiência anatômica era um
modo indireto de servir à moral, visto que o terror do escalpelo impediria a
prática de muitos crimes»30. Entre as vítimas estão, por ironia do destino (ou
melhor, do autor), os dois sábios cientistas que escalpelaram, vivos, dezenas de
ratos. O autor, assim, problematiza no plano da ficção aquilo a que a filósofa
Armelle le Bras-Chopard chamou discurso dominante no Ocidente, ou seja,
o discurso que define o homem a partir da sua dominação sobre os animais
e, ao mesmo tempo, utiliza o animal para justificar a dominação sobre outros
seres humanos.31
Assim, tanto Rosa como Machado, na tentativa de investigar — pelos
poderes da imaginação — a subjectividade desse «completamente outro» que
é o animal, e discutir as relações que os homens mantêm com ele, constroem,
cada um a seu modo (Rosa dando primazia aos afectos e Machado à ironia),
um repertório zoológico bem particular. Abrem, dessa forma, um campo fértil
para os escritores deste novo milénio, que agora têm — mais do que nunca — a
tarefa de repensar a questão dos animais sob o prisma da lamentável situação
de barbárie do mundo. O que não garante, entretanto, que a literatura possa,
algum dia, fechar os matadouros.

133
NOTAS

1 Machado de Assis, Obra Completa, vol. 3, p. 576-8.


2 Ver as crónicas machadianas de 15/08/1876, 15/03/1877, 13/02/1888, 16/10/1892 e
05/03/1893 em Machado de Assis, ob. cit.
3 Graciliano Ramos, Linhas Tortas, p. 249. [NÃO ESTÁ NA BIBLIO]
4 João Guimarães Rosa, Ficção Completa, vol. 2, p. 915-1188.
5 Idem, ibid., p. 1111-15.
6 Ibid., p. 1023.
7 Ibid., p. 1111.
8 J. M. Coetzee, A Vida dos Animais, p. 78.
9 João Guimarães Rosa, ob. cit., vol. 1, p. 199.
10 Machado de Assis, ob. cit., p. 551.
11 Derrida, a propósito da fábula, diz o seguinte: «Seria preciso sobretudo evitar a fábula. A
fabulação, conhecemos sua história, permanece um amansamento antropomórfico, um assu-
jeitamento moralizador, uma domesticação. Sempre um discurso do homem sobre o homem,
para o homem.» Cf. Jacques Derrida, O Animal Que logo Sou, p. 70.
12 João Guimarães Rosa, ob. cit., vol. 1, p. 410.
13 Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, p. 266.
14 Sobre este tema, ver Maria Esther Maciel, O Animal Escrito.
15 Montaigne, «Apologia de Raymond Sebond», p. 118.
16 Dominique Lestel, As Origens Animais da Cultura, p. 59.
17 Idem, ibid., p. 108.
18 Ibid., p. 183.
19 Machado de Assis, ob. cit., vol. 2, p. 611-14.
20 Idem, ibid., p. 611.
21 Ibid., p. 613.
22 Ibid., p. 614.
23 Agamben desenvolve o conceito de «máquina antropológica» no livro L’Aperto. L’uomo e
l’animale, de 2002. Segundo ele, «na medida em que nela está em jogo a produção do humano
mediante a oposição homem/animal, humano/inumano, a máquina funciona necessariamente
mediante uma exclusão (que é também e sempre já uma captura) e uma inclusão (que é tam-
bém e sempre já uma exclusão)». Tradução minha da edição em inglês. Cf. Giorgio Agamben,
The Open, p. 37.
24 Martin Heidegger, Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: Mundo, Finitude e Solidão,
p. 229.
25 Jacques Derrida, ob. cit., p. 51.
26 Idem, ibid., p. 52.
27 Machado de Assis, ob. cit., vol. 2, p. 411-17.
28 Idem, ibid., p. 413.
29 Ibid., p. 417.
30 Ibid., p. 415.
31 Armelle le Bras-Chopard, Le Zoo des Philosophes, p. 2.

134
Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio, The Open. Man and Animal, trad. Kevin Attell, Stanford, Stanford University
Press, 2004.
ANDRADE, Carlos Drummond de, Poesia e Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1979.
ASSIS, Machado de, «Conto Alexandrino. Ideias de Canário», Obra Completa — vol. 2, Rio de
Janeiro, Nova Aguilar, 1985, p. 441-417 e 611-14.
——— , Obra Completa, vol. 3 — Crônicas, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, p. 323-775.
COETZEE, J. M., A Vida dos Animais, trad. José Rubens Siqueira, São Paulo, Companhia das
Letras, 2002.
DERRIDA, Jacques, O Animal Que logo Sou, trad. Fábio Landa, São Paulo, Editora UNESP, 2002.
HEIDEGGER, Martin, Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: Mundo, Finitude e Solidão, Rio de
Janeiro, Forense Universitária, 2003.
LE BRAS-CHOPARD, Armelle, Le Zoo des philosophes, Paris, Plon, 2000.
Lestel, Dominique, As Origens Animais da Cultura, trad. Maria João Reis, Lisboa, Instituto
Piaget, 2002.
MACIEL, Maria Esther, O Animal Escrito. Um Olhar sobre a Zooliteratura Contemporânea, São
Paulo, Lumme, 2008.
MONTAIGNE, Michel de, «Apologia de Raymond Sebond», Ensaios II, trad. Sérgio Milliet, São
Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 204-79.
ROSA, João Guimarães, Ficção Completa (vols. 1 e 2), Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994.

135

Você também pode gostar