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Resumo: A discussão acerca da questão animal tem ganhado grandes dimensões, sobretudo nas
últimas décadas, período em que cresceram as críticas aos discursos antropocêntricos do
humanismo. O questionamento da supremacia humana sobre os demais seres viventes mobilizou o
trabalho de pesquisadores/as dos mais diferentes campos do conhecimento, como a biologia, as
ciências humanas, a crítica literária e os feminismos. Inscrita dentro deste debate, Humana festa
(2008), de Regina Rheda, destaca-se pelo seu engajamento com os direitos dos animais, e pode ser
o primeiro – e talvez único – romance brasileiro a abordar o veganismo como postura ética e
política, como proposta de fuga do antropocentrismo e como forma de amenizar os impactos
decorrentes da relação que o ser humano estabeleceu com a própria espécie, com os outros animais
e com o planeta. Mais do que isso, Humana festa ainda demonstra como são possíveis os diálogos
entre as teorias feministas e os direitos dos animais, uma vez que sinaliza a relação existente entre a
opressão sofrida pelas mulheres e pelos animais. É, portanto, uma obra imprescindível para os
Estudos Animais e para a crítica literária feminista contemporânea.
Palavras-chave: Literatura. Feminismo. Veganismo. Humana Festa.
1 Literatura e transgressão
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Mestranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis, SC - Brasil).
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Professora Doutora da Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis, SC - Brasil).
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opressão, como o racismo, o machismo, o especismo e o naturismo3. O romance de Regina Rheda,
porém, não é a primeira obra literária brasileira a apresentar o animal como personagem digno de
consideração moral. Outros escritores já se preocuparam com a relação entre humanos e animais em
obras anteriores à Humana festa, como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos,
Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. Muitas vezes, contudo, o animal apareceu na
literatura como metáfora da situação do ser humano, geralmente para marcar uma vivência
negativa, ou seja, uma situação de desumanização. Podemos observar esta característica da
literatura brasileira em diversas obras, como no poema de Manuel Bandeira, O bicho (1947):
O bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
O animal na literatura apareceu, também, como espécie de duplo do próprio ser humano, no
intuito de simbolizar o que nossa espécie tem de instintivo, rústico, rude, ou seja, para deflagrar a
animalidade do ser humano.
O espaço de interesse pela animalidade na literatura, entretanto, cresceu nos últimos anos,
sobretudo a partir de uma perspectiva que foge das circunscrições metafóricas. Obras que se
afastam da perspectiva antropocêntrica de representação dos animais estão cada vez mais comuns
na literatura, não somente em consequência da crescente preocupação ecológica que marca a
sociedade contemporânea, mas também por conta de uma tomada de consciência por parte de
3 Greeta Gaard chama de naturismo a visão ocidental de que a natureza está subordinada ao ser humano, o que resulta
na devastação ambiental, na morte de ecossistemas, na extinção de diversas espécies, ou seja, na dominação daquilo que
passamos a chamar de natureza (GAARD, 2011).
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escritores e artistas das problemáticas envolvidas na relação entre os seres humanos e os outros
seres viventes.
Humana festa é uma dessas obras. Nela, o animal não serve simplesmente como recurso
metafórico, tampouco ocupa um espaço de representação em favor (da construção) da subjetividade
humana. O animal, em Humana festa, é apresentado como sujeito senciente – que sente dor, medo,
prazer –, consciente sobre si e sobre os outros, portanto digno de direitos e de consideração moral.
A obra pode ser um dos primeiros – e talvez um dos únicos – romances da literatura universal cujo
tema principal é o veganismo. É, portanto, uma obra fundamental para os Estudos Animais, o qual
vem se firmando como espaço de entrecruzamento de diversos campos do conhecimento, tais como
a biologia, a crítica literária e os feminismos.
Ideias de canário (1863), Crônica dos burros (1892), A metamorfose (1915), Vidas secas
(1938), Conversa de bois (1946), O búfalo (1960), A paixão segundo G.H (1964), Meu tio o Iauretê
(1969), A vida dos animais (2002), Elizabeth Costello (2003), De gados e homens (2013). Todas
estas obras, escritas por autores/as de épocas e procedências diferentes, abordam de alguma forma a
alteridade animal. Algumas delas, como De gados e homens, da brasileira Ana Paula Maia,
demonstram com primazia como a violência contra os animais está relacionada a outras formas de
subjugação, como a opressão de classe e de raça. Nenhuma delas, porém, apresenta tão bem quanto
Humana festa a ideia de que o machismo, a misoginia e o especismo são violências pertencentes a
mesma lógica de dominação. Ainda que todas provoquem reflexões acerca da relação que o ser
humano estabeleceu com os outros seres viventes, apenas o romance de Regina Rheda avança na
questão mais central que circunda humanos e animais: para que possamos modificar o paradigma de
violência contra os animais, é preciso mudar radicalmente a nossa alimentação. Pode-se dizer,
então, que Humana festa é o primeiro romance feminista vegano da literatura brasileira – e talvez
da literatura universal.
Publicado em 2008, Humana festa é o quinto livro em português da escritora paulista Regina
Rheda. Quatro anos após a publicação da obra no Brasil, em 2012, Humana festa foi publicado
também nos Estados Unidos, país onde a autora reside desde 1999. Da mesma forma que Regina
Rheda se divide entre estes dois países, sua obra é um romance interamericano, situado nos Estados
Unidos e no Brasil, mais especificamente numa fazenda do Mato Grosso.
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Marcado por personagens mulheres, há três em especial as quais quero destacar. A primeira
é Dona Orquídea, funcionária da fazenda Bezerra Leitão, onde se desenrola grande parte da
narrativa. Dona Orquídea, mesmo sem conhecimento formal, é vegana por empatia e recusa-se a
comer animais, mas é obrigada a matá-los e a cozinhá-los por conta de sua profissão. A personagem
fala pouco sobre seus hábitos alimentares, pois se sente “torta” (RHEDA, 2008, p. 91) e deslocada,
num contexto em que a exploração de sujeitos humanos e não humanos é completamente
naturalizada. Dona Orquídea está inserida num ambiente carnívoro e com estruturas de gênero, raça
e classe que a silenciam e a impossibilitam de agir de acordo com sua própria vontade: “Mas quem
era Dona Orquídea para distinguir o certo do errado? Não sabia escrever. Não tinha nada de seu.
Não mandava na casa, no chiqueiro, em si mesma. Só aceitava e obedecia”. (RHEDA, 2008, p. 84).
A segunda personagem é a estadunidense Megan, namorada de Diogo, herdeiro da fazenda
Bezerra Leitão. Com a visita dos dois à fazenda, Dona Orquídea tem contato, pela primeira vez,
com outras pessoas que não se utilizam de animais para a alimentação. Embora Dona Orquídea
simpatizasse com Megan por conta de suas semelhanças, as diferenças que as colocavam em
posições sociais tão distintas, somadas à impossibilidade de comunicação linguística, tornaram a
relação das duas superficial. Megan é dedicada e procura parecer humilde, mas não consegue conter
sua insensibilidade burguesa quando, ao acompanhar Dona Orquídea em seu trabalho na lavoura,
limita-se a tirar fotos da senhora cansada e marcada pela pobreza e pela exploração. Como aponta
Isabela Isfahani-Hammond, o ativismo de Dona Orquídea “se distingue por sua conexão a uma série
de lutas – pela igualdade socioeconômica, redistribuição de terras, proteção ambiental e desafio aos
interesses econômicos dos Estados Unidos” (ISFAHANI-HAMMOND, 2011, p. 348),
representados no romance pela Holly Hill, espécie de Monsanto, que apoia a transformação da
fazenda Bezerra Leitão numa usina de criação intensiva. Dona Orquídea aparece, portanto, como
uma proposta alternativa de ativismo pelos direitos dos animais, interligado a outros movimentos de
contestação e libertação.
A terceira personagem é Mortandela, porca da fazenda e amiga de Dona Orquídea. A
princípio, Mortandela foi dada a Zé Luís, filho de Dona Orquídea. O jovem gostava da porca, até
que passou a ser alvo de piadas dos outros trabalhadores da fazenda. Decide, então, mesmo contra
sua vontade, abandonar Mortandela. Zé Luís tentava defender sua masculinidade da forma que lhe
era imposta pelo seu círculo de relações, ou seja, não havia espaço para a afetividade com outros
animais, pois essa concepção de subjetividade masculina machuca, assassina e consome animais. É
justamente em relação a essa faceta da subjetividade humana masculina que Derrida apresenta o
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termo “carnofalogocentrismo” (ADAMS, 2012). Segundo o autor, o sujeito pleno não é apenas
aquele que detém razão e linguagem, nem somente é branco e do sexo masculino. O sujeito é,
também, carnívoro e capaz de provocar dor em outros animais, humanos e não humanos.
Dona Orquídea, desaprovando a atitude do filho, resgatou Mortandela. Talvez por conta da
desumanização à qual foram submetidas, estudos apontam que as mulheres têm mais facilidade para
criar laço e afetividade com os animais. Não é à toa que, de acordo com Carol J. Adams (2012),
aproximadamente 80% dos integrantes de movimentos pela defesa dos animais nos Estados Unidos
são mulheres. Corrobora a tese de Carol J. Adams o fato de que sejam mulheres as maiores
referências literárias e acadêmicas no campo dos Estudos Animais no Brasil, como Maria Esther
Maciel, Sônia Felipe, Daniela Rosendo, Regina Rheda, Ana Paula Maia e Patrícia Lessa.
A relação entre Dona Orquídea e as porcas é autêntica e nasce de forma espontânea,
alimentada pela identificação com o sofrimento. Enquanto assiste à dor das porcas confinadas, a
trabalhadora rural compreende a política do matadouro e sofre com a condição daqueles sujeitos
engaiolados.
Mortandela e as outras porcas não somente são sujeitos que pertencem a um grupo
desprivilegiado, o dos animais, como são fêmeas deste grupo. As fêmeas não humanas geralmente
são utilizadas para a reprodução e, em muitos casos, para a produção de leite. Uma porca como
Mortandela, por exemplo, passa sua vida adulta em uma instalação de confinamento intensivo, até
perder sua capacidade reprodutiva, quando, então, é levada ao abate.
Antes de Derrida cunhar o termo “carnofalogocentrismo”, Carol J. Adams, em A política
sexual da carne, já havia apresentado a teoria do “referente ausente”, segundo a qual é o mesmo
processo político e simbólico que transforma em comestível o corpo dos animais e em sexualizado
o corpo das mulheres, dentro da mesma lógica de dominação. Para Carol Adams, é por meio da
estrutura do referente ausente que se institucionaliza e se naturaliza o pensamento patriarcal,
misógino, especista e racista. Através da linguagem, o animal torna-se ausente: seu corpo retalhado
e desmembrado vira carne, alimento, churrasco, hambúrguer, vitela, salsicha, salame, calabresa e
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qualquer coisa que se afaste do referente animal. De acordo com a autora, “os animais vivos são,
portanto, os referentes ausentes do conceito de carne. O referente ausente nos permite esquecer que
o animal como uma entidade independente; além disso, nos capacita a resistir aos esforços para
tornar presente os animais” (ADAMS, 2012, p. 79). Também por meio da linguagem, a mulher
torna-se ausente: seu corpo objetificado, violado, violentado transforma-se em “bunda”, “peito”,
“coxa”, “rabo”, pedaços que existem para serem consumidos.
A relação entre essas duas formas de opressão fica ainda mais nítida quando refletimos
sobre as metáforas utilizadas para descrever a experiência de violência sofrida pelas mulheres.
Quando abusadas psicológica ou fisicamente, muitas mulheres se comparam a “pedaços de carne”,
dizem se sentir em “açougues” ou comentam que alguns homens são “abutres”, “predadores”,
“caçadores”. Isso demonstra que, “quando mulheres são vítimas de tais violência, o tratamento dado
aos animais é lembrado” (ADAMS, 2012, p. 85), uma vez que esse tipo de violência está pautado
justamente na desumanização dos corpos femininos.
É importante lembrar que a separação entre humano e animal ocorreu, efetivamente, na era
moderna, quando triunfou o pensamento cartesiano. Para María Lugones (2014), a hierarquia
dicotômica entre o humano e o não humano é a dicotomia central da modernidade colonial. Esta
dicotomia, que Valentim (2014) denomina de “a Grande Divisão”, é um dos eixos estruturantes do
pensamento ocidental e é também responsável pela relação que o ser humano estabeleceu com a
própria espécie e com o planeta. São inúmeras e devastadoras as consequências dessa relação,
como, por exemplo, os processos de colonização e de racialização, o machismo e a misoginia, o
racismo, a destruição dos ecossistemas, a mudança climática, a extinção de diversas espécies, a
naturalização da exploração e da morte de sujeitos (humanos e não humanos).
É razoável afirmar, então, que o termo humanidade é um conceito de caráter político que
serviu, ao longo da história, como mecanismo para justificar não apenas a exploração animal, mas
também a colonização, a dominação e a violência contra determinados sujeitos humanos,
considerados, na escala hierárquica de humanidade, abaixo do Sujeito (homem, branco, ocidental,
heterossexual). Esta é a premissa clássica do humanismo, o qual afirma o valor do “homem” e,
consequentemente, rebaixa tudo e todos que não cabem na categoria “humano”.
Ainda de acordo com María Lugones,
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Os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as eram classificados/as
como espécies não humanas – como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. O
homem europeu, burguês, colonial moderno tornou-se um sujeito/agente, apto a decidir,
para a vida pública e o governo, um ser de civilização, heterossexual, cristão, um ser de
mente e razão. A mulher europeia burguesa não era entendida como seu complemento, mas
como alguém que reproduzia raça e capital por meio de sua pureza sexual, sua passividade,
e por estar atada ao lar a serviço do homem branco europeu burguês. (LUGONES, 2014,
936).
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cometida contra as mulheres quanto a exploração dos animais não humanos são formas de
dominação que estão imbricadas umas nas outras.
4 Referências
BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. 20ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
GAARD, Greta. Rumo ao ecofeminismo queer. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n.
1, 197-223, jan/abril. 2011.
MACIEL, Maria Esther. Poéticas do animal. In: ______(Org.). Pensar/Escrever o animal: ensaios
de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora UFSC, 2011. p. 85-100
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