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OS VAMPIROS DE POPPY Z.

BRITE COMO REPRESENTAÇÕES QUE


DESESTABILIZAM NOÇÕES HEGEMÔNICAS DE CORPO, GÊNERO E
SEXUALIDADE

Andrio J. R. dos Santos1

Resumo: A ficção gótica do autor transgênero Poppy Z. Brite frequentemente apresenta questões
relativas à corpo, gênero e sexualidade. Os personagens de Brite são, na imensa maioria, gays e
bissexuais culturalmente proscritos pela sociedade hegemônica. Este é o caso de Nothing, o
protagonista de Lost Souls, romance que reinterpreta diversas questões do gótico e sobre o mito
literário do vampiro. Em Brite, os vampiros não são transformados ou amaldiçoados — eles não são
uma “perversão” do sangue humano; eles se descobrem vampiros durante a adolescência. Trata-se
de uma analogia à identidade de gênero e a narrativa de Nothing ilustra essa questão. Ele embarca
numa roadtrip no intuito de encontrar algo com que se identifique, uma busca relativa à sua
identidade de gênero. No romance, a cultura pós-punk, a bissexualidade e a androginia de Nothing
desabrocham em uma noção de autoafirmação da identidade, uma vez que Nothing se descobre
vampiro e constrói sua identidade de gênero a partir de um ato performativo, fruto de uma contínua
estilização do corpo. O “gênero vampiresco” dos vampiros de Brite se apresenta, como ilustra
Judith Butler, como algo essencialmente queer. Tendo isso em vista, pretendo discorrer sobre como
a representação dos personagens de Brite pode desestabilizar noções hegemônicas de gênero. Como
fundamentação teórica e critica, baseio-me em autoras como Lauretis, Butler e Lopes Louro.
Palavras-chave: Teoria queer. Identidade de gênero. Judith Butler. Poppy Z. Brite.

Introdução

Em Lost Souls (1992), o autor atualiza o mito literário do vampiro a partir das teorias de
gênero, afastando-o das convenções que o associam a maldições de cunho místico e religioso. Os
vampiros de Brite não são pessoas contaminadas com “sangue ruim”, e sim outra espécie de seres
viventes, existindo secretamente entre os humanos. Além disso, a natureza dos vampiros de Brite
está relacionada à identidade de gênero, que se refere a um ato performativo, fruto de uma contínua
estilização do corpo (BUTLER, 2019). O “gênero vampiresco” dos vampiros de Brite se apresenta
como uma representação queer.
O mesmo pode ser dito de outras obras do artista, tais como Drawing Blood (1993), em que
o ato performativo de estilização do corpo ocupa papel central em relação à identidade de gênero de
Trevor McGee e Zachary Bosch. Além disso, Brite explora diversas questões relativas à
sexualidade dos personagens, ambos pansexuais. Já em The Larazus Heart (1999), romance escrito

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Doutor em Letras – Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, Brasil.
Vinculado ao estágio pós-doutoral do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da UFSM, sob supervisão do
prof. Dr. Anselmo Peres Alós. E-mail de contato: andriosantoscontato@hotmail.com. Bolsa PNPD/CAPES [O presente
trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) –
Código de Financiamento 001].
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no universo multimidiático que nasceu com a graphic novel O Corvo, de 1981, escrita e ilustrada
por James O'barr, Brite explora questões relativas ao corpo no desenvolvimento do protagonista,
Jared, assim como em relação a sua irmã e amante, Lucrece DuBois, uma mulher trans. As
ansiedades sociais relativas à literatura gótica são verificáveis nesse romance, uma vez que enredo
se refere a um assassino em sério cujas vítimas são LGBTQ+.
Pretendo traçar, no presente artigo, um comentário sobre questões de gênero relativas à
ficção gótica “vampiresca”, sobretudo nas representações dos personagens de Lost Souls, obra do
autor transgênero Poppy Z. Brite. Intento demonstrar que as representações dos personagens de
Brite, em Lost Souls, são capazes de desestabilizar noções hegemônicas sobre corpo, gênero e
sexualidade. Para dar conta desse problema de pesquisa, trabalho a partir das concepções críticas e
teóricas que norteiam as pesquisas sobre ficção gótica, teorias de gênero e teoria queer,
desenvolvidas por autoras como Teresa de Lauretis (1994), Judith Butler (2019), Guacira Lopes
Louro (2016), David Punter (2001), Robert Martin (1998) e Eric Savoy (1998).

A ficção gótica & o mito literário do vampiro: questões sobre gênero

Autores como David Punter (2001), Robert Martin (1998) e Eric Savoy (1998) comentam
que, embora existam diversas noções críticas em relação a esse tipo de ficção, o gótico se
caracteriza como um modo narrativo — estetizado, possuidor de convenções temáticas e estilísticas
específicas — nascido de uma visão de mundo desencantada. Os autores concordam que a ficção
gótica é marcada por um tipo de ansiedade em relação ao outro. Esse outro costuma emergir na
forma de uma alteridade desumanizada, por isso as narrativas góticas são povoados por criaturas
monstruosas e sobrenaturais que simbolizam aquilo que é considerado irracional, incontrolável e
incompreensível pela sociedade hegemônica.
Robert Martin (1998) comenta que o gótico é um campo discursivo em que um eu coletivo e
estabelecido é confrontado pelo retorno de uma alteridade reprimida. Essa tensão normalmente
conduz a narrativa ao confronto e, por vezes, à dissolução do outro ou de certos paradigmas. Como
campo discursivo, o gótico se relaciona a uma visão de mundo, algo que Martin (1998) associa a
noção de abjeção cunhada por Julia Kristeva em Powers of Horror (1980). A abjeção diz respeito a
um processo que compreende a exclusão de tudo aquilo que contraria as normas político-sociais de
uma sociedade, esse algo “abjeto”, que necessita ser afastado do meio social e que é, por vezes,
empregado como uma forma simbólica de representação de medos, ansiedades e desejos

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reprimidos; ao representar tais questões, o objeto abjeto assume a função, em face à cultura
hegemônica, de normatizar o que é e o que não é social e politicamente aceitável.
Essa seria uma das principais características da ficção gótica: funcionar como uma espécie
de catalisador dos medos e anseios de uma sociedade. Por isso o gótico é capaz de simbolizar
questões relativas à sexualidade, gênero, raça, miscigenação e imigração; questões essas que são
constantes da ficção gótica, frequentemente encarnadas nas personagens. A caracterização de
personagens nas narrativas góticas está relativamente atrelada a suas principais características, das
quais posso destacar três como principais: os personagens, a ambientação e o passado reprimido. Os
personagens do gótico são criaturas dúbias, atormentadas e, não raramente, expostas como
monstruosas — todo monstro é uma corporificação metafórica dos desejos, medos e ansiedades de
um lugar e época, como o vampiro aristocrático em Dracula (1897), ou a criatura inominada em
Frankenstein (1823). A ambientação, o locus horribilis (FRANÇA, 2017), onde se desenvolve a
narrativa frequentemente apresenta-se como um lugar sufocante, opressivo, que dá substância à
visão de mundo desencantada do gótico, como a ambientação de Lowood, em Jane Eyre (1847). O
passado sombrio se refere a algo reprimido, um pecado ou segredo perverso, cometido por uma
coletividade — família, classe ou indivíduos — que retorna para assombrar o presente dos
protagonistas. Essas características estão inter-relacionadas e atuam sobre a construção dos
personagens protagonistas.
Em narrativas góticas, os protagonistas são comumente conduzidos a confrontar-se com
medos e/ou desejos obscuros, psicologicamente suprimidos ou refreados, relativos a questões
individuais ou coletivas. Trata-se de uma construção de personagens que remete a uma dualidade
psicológica, uma vez que este intenta reconciliar seus medos ou desejos suprimidos antes mesmo de
resolvê-los (MILBANK, 2002). Um exemplo pode ser visto na obra de Mary Shelley, Frankenstein,
de 1818, em que Victor cria seu “monstro” de forma artificial, a partir de partes de outros
cadáveres, imerso na dualidade entre alquimia e medicina, misticismo e cientificismo. A narrativa
de Mary Shelley reflete uma das angústias do século XVIII vitoriano: a inconstância ou lacunas do
conhecimento, em particular sobre o corpo e a morte, em uma época marcada por avanços
tecnológicos e econômicos do então Império Britânico. Segundo Hogle,

O Gótico encontra sua expressão a partir da maneira como nos auxilia a tratar e a
dissimular alguns dos mais intensos desejos, dilemas e fontes de ansiedade, de instâncias
mais internas e mentais até àquelas de abrangência social e cultural, através da história da
cultura ocidental, desde o século XVIII. (HOGLE, 2002, p. 9)

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Leslie Fiedler (1960) menciona que, particularmente sob uma ótica político-social,
personagens de narrativas góticas do século XVIII e XIX estão frequentemente imersos em riqueza
aristocrática, em esplendor místico religioso e no desejo de superar tais forças político-sociais
representantes do status-quo. Trata-se de uma caracterização que explora “a condição atormentada
de uma criatura suspensa entre os extremos da fé e do ceticismo, beatitude e horror, vida e
apagamento, amor e ódio — e angustiado pela indefinível culpa por um crime qualquer, o qual ele
não recorda de ter cometido” (MCGINLEY, 1996: 72). No geral, os medos e anseios que o gótico
simboliza e ao mesmo tempo mascara, por vezes de forma hiperbólica, apresentam-se de maneira
contraditória e, por isso, tornam-se uma característica marcante desse tipo de literatura:

Este padrão de medos e desejos contraditórios, hiperbolicamente verbalizados, assentado


sobre um “fundo” de caos e morte, representado em um estilo descaradamente ficcional,
permanece um elemento consistente do Gótico, mesmo que os termos e características
dessa combinação mudem com as transformações da sociedade ocidental nos séculos XVIII
e XIX. (HOGLE, 2002, p. 10)

Questões relativas a gênero são constantes nas narrativas góticas. Nesse caso, a ficção gótica
“vampiresca” apresenta-se como um exemplo fecundo, uma vez que o vampiro se apresenta como
uma figura dúbia, ao mesmo tempo morta e viva, cuja origem comumente se relaciona à deturpação
daquilo que é considerado humano. O vampiro predador em Dracula (1897) apresenta-se como um
bom exemplo dessa questão. Martin Wood (1999) comenta que o vampiro pode simbolizar uma
ameaça social advinda da indefinição de gênero e, na obra de Bram Stoker, o vampiro alimenta
Jonathan Harker literalmente com o sangue de seu seio, o que desestabiliza noções de
masculinidade e maternidade. Além disso, o mesmo autor comenta que a descrição de Drácula, o
nariz aquilino e o formato do rosto do personagem, assemelham-se a descrições de imigrantes
orientais na Inglaterra Vitoriana e, assim, o vampiro de Stoker também se relaciona à ansiedade
social diante da imigração — o medo da dissolução da identidade nacional, problemas de raça e de
classes.
Boa parte das obras de ficção vampiresca culmina em uma resolução moralizante e
heteronormativa, reafirmando valores da sociedade hegemônica. Em Dracula, Lucy tem três
pretendentes e diverte-se com a atenção recebida enquanto não se decide qual deles noivar. Ela
confidencia a Mina Harker que gostaria de poder se casar com os três. Essa figura feminina com
anseios poliamorosos acaba sendo transformada em vampira, cujas vítimas preferidas são crianças.
Ou seja, na obra de Stoker, a figura feminina que não se condiciona ao seu papel social de gênero

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corre o risco de atrair monstros noturnos, como se ao negar-se a cumprir seu papel na sociedade
vitoriana e tornar-se mãe, Lucy tenha se tornado a antítese de uma figura materna: uma infanticida.
Outro exemplo interessante apresenta-se na novela Carmilla (1872), de Sheridan Le Fanu. A
vampira Carmilla é uma hóspede fortuita na mansão afastada da família de Laura. Sua presença
gera certo estranhamento no pai de Laura e em seus empregados, pois a jovem não possui os ditos
modos de uma dama, não pensa em se casar e tem estranhos hábitos noturnos. Por outro lado, Laura
se afeiçoa pela vampira; a relação homoerótica entre Laura e Carmilla transborda em diversos
momentos; no passeio ao luar, quando ambas se aconchegam sob um velho carvalho, ou quando
Laura acorda de terríveis pesadelos e apenas a presença de Carmilla é capaz de acamá-la. A própria
Carmilla parece não ter completo conhecimento sobre sua natureza vampiresca, ela insinua em
vários momentos que, ao contrário do que o pai de Laura mais tarde deduz, deseja transformar
Laura em vampira, para que elas se tornem amantes eternas: “você deve me amar e juntar-se a mim
na morte, ou odiar-me e da mesma forma me acompanhar, odiando-me na morte e além dela” (LE
FANU, 2018, p. 43). Mas Carmilla parece não saber como realizar seu intento. E nem tem tempo de
descobrir. Os três homens presentes na narrativa, o pai de Laura, o Barão Vordenburg e o general
Spielsdorf, deduzem que Carmilla deseja matar Laura e que Laura está enfeitiçada por Carmilla, o
que explicaria seu comportamento “desviante”. Assim, eles assumem as rédeas da narrativa,
caçando e destruindo Carmilla.
Pouco mais de um século depois da publicação da novela de Le Fanu, Anne Rice publica
Interview with the Vampire (1974). Gary Hoppenstand (1996) comenta que a obra da autora se
relaciona com a efervescência cultural norte-americana da década de 1960 — o Gay Rights
Movement estruturou-se, focando em políticas afirmativas e encorajando o orgulho gay e a
autoafirmação; a implementação da Equal Rights Amendment, que garante igualdade de direitos
aos norte-americanos, independentemente de cor, classe ou gênero; a instituição da pílula
contraceptiva; a emergência da contracultura; e o desenvolvimento dos estudos feministas e de
gênero nas universidades.
Considerando o pano de fundo sociocultural, não surpreende que Rice tenha subvertido
diversas questões presentes na ficção vampiresca. O protagonista Louis é um vampiro com
consciência, diferente do Ruthwen de Polidori, antagonista de The Vampyre (1819). Enquanto
Ruthwen persegue e se alimenta de jovens desavisadas, Louis se apaixona pelo vampiro Lestat. A
relação de Loius e Lestat é marcada por uma proximidade física e sensual desprovida da valoração

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negativa associada, por exemplo, as questões relativas a gênero em Drácula. Lestat transforma
Louis em vampiro em uma cena repleta de sensualidade e intimidade:

“Now listen to me, Louis,” he said, and he lay down beside me now on the steps, his
movement so graceful and so personal that at once it made me think of a lover. I recoiled.
But he put his right arm around me and pulled me close to his chest. Never had I been this
close to him before, and […] he sank his teeth into my neck. (RICE, 1974, p. 18)

A proximidade do contato torna-se evidente quando Louis menciona que Lestat deita-se ao
seu lado (lay down beside me); essa aproximação possui tal grau de intimidade que faz de fato o
protagonista pensar em um amante (made me think of a lover). Então Lestat envolve Louis em seus
braços (put his right arma around me), aconchega-o, então bebe o sangue do protagonista. Essa
cena, repleta de delicadeza e erotismo, contrasta com a violência do ato de beber sangue em obras
como Dracula, The Vampyr e mesmo Carmilla — quando a vampira se alimenta de outras jovens
que não Laura.
Mais tarde, Lestat transforma uma menina de seis anos em vampira, Claudia, e Jane Plumb
(1996) comenta que Louis, Lestat e Claudia formam um tipo de família que desestabiliza o
paradigma estabelecido a respeito de família — algo que Poppy Z. Brite desenvolve, conforme
comento na próxima seção. Louis é um vampiro empático, dotado de consciência e mortalmente
angustiado; ele acredita que a natureza vampiresca representa algo pecaminoso e maléfico. Para ele,
Deus jamais teria concebido uma criatura que necessita consumir sangue humano para existir,
concepção que o atormenta. Embora Rice dedique grande energia à discussão sobre o bem e o mal,
as relações homoafetivas não são tratadas no romance como “desvios de conduta”, como
comumente acontece na ficção gótica vampiresca. Não há final moralizante e heteronormativo. E
Rice segue na publicação de suas Crônicas Vampirescas, desenvolvendo as peripécias de seu
principal herói, Lestat.

Os vampiros de Poppy Z. Brite como representações que desestabilizam noções hegemônicas


de gênero

A partir do século XVIII, autores norte-americanos releem o gótico, desenvolvendo um tipo


de ficção chamada de American Gothic (Gótico Americano). Allan Lloyd-Smith (2004) menciona
que a produção ficcional inicial norte-americana apresentava um traço subalterno, em termos pós-
colonialistas, sendo uma versão largamente imitativa, se não um tanto “excêntrica”, de um tipo de
literatura produzida por uma cultura dominante, no caso, a Britânica. Lloyd-Smith (2004) baseia-se
em características imitativas que lê em obras como Wieland (1798) ou Arthur Mervyn (1799), de
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Charles Brocken Brown. Brown tinha, de fato, modelos imitativos específicos, uma vez que
admirava os ingleses William Godwin e Mary Shelley.
A distinção cultural e geográfica entre a Europa e a América provoca um exercício inicial de
releitura da ficção gótica, o que faz com que os autores norte-americanos substituam as montanhas
do Velho Mundo pelos pântanos do Louisiana, o monastério abandonado pela igreja da colônia, o
castelo remoto pelo casarão de plantação, a corrupção da aristocracia pela das famílias ricas, a
ansiedade frente aos resquícios do paganismo pela experiência bruta da colonização (“frontier
experience”). Nessa mesma medida, o Gótico Americano se transforma em decorrência de sua
própria cultura inquieta. Muitos desses temas e questões são tratados, por exemplo, em The Fall of
the House of Usher (1839), de Edgar Allan Poe. A atmosfera decadente da mansão isolada, assim
como o declínio da linhagem familiar, estão entre as primeiras imagens vistas na obra. Além disso,
há os interesses místicos de Roderick Usher, criatura atormentada, que sofre de hiperestesia, cuja
imagem não se conforma com noções hegemônicas de gênero — Roderick, como muitos
personagens góticos, possui traços andróginos; além disso, existe a menção ao possível incesto com
a irmã Madeline. Ao final, o legado fraturado de almas também arruinadas — por obsessões e
crimes indizíveis — desmorona alegoricamente quando o próprio casarão vai-se ao chão. Porque a
ruína, na ficção gótica, costuma ser a última a deixar o palco.
O gótico Americano apresenta uma vertente chamada Southern Gothic (Gótico Sulista), que
se tornou predominante no século XX. O gótico sulista explora, entre outras questões pertinentes à
tradição gótica, a presença da violência latente sob o verniz da aparente civilidade da sociedade.
Assim como na ficção gótica em geral, o gótico sulista aufere tensão a partir de segredos e
urgências sombrias e da violência passada reprimida, questões que tendem a emergir no decorrer da
narrativa. Tais elementos são comuns nas obras de autores como William Faulkner e Flanery
O'connor. Esse tipo de ficção passou a se diluir a partir da década de 1960, mas diversos autores
seguiram utilizando-se de suas convenções.
Poppy Z. Brite é frequentemente lido como um autor que escreve gótico sulista. O nome
atribuído de Brite foi Melissa Ann Brite, mas desde a tenra idade ele identifica-se como um homem
gay. Depois de passar por sua redesignação de gênero, entre 2010 e 2012 (as datas não são claras),
Brite assumiu o nome social de Billy Martin, embora continue assinando sua ficção como Poppy Z.
Brite. Seus personagens são geralmente gays ou pansexuais e questões de gênero são constantes.
Suas obras apresentam descrições gráficas envolvendo sexo, mortes e outros elementos
característicos do horror na ficção gótica.

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Lost Souls (1992), romance de estreia, se reporta às “narrativas vampirescas” da ficção
gótica, apresentando personagens vampiros não conformantes com as normas da sociedade
hegemônica. De fato, boa parte dos personagens são impetuosos em relação a seus desejos. Assim
como Anne Rice reescreve o mito literário do vampiro em Interview with the Vampire, o romance
de Brite é original na ficção gótica vampiresca. Em Rice, assim como em boa tarde das ficções de
vampiro, o sangue ocupa lugar central na transformação de um indivíduo humano em vampiro. Mas
os vampiros de Lost Souls procriam através de relações heterossexuais, algo que Christian explica a
Wallace quando este o chama de morto-vivo e amaldiçoado: “I am alive. I was born as you were
born. [...] I am not the creature of your myths. I did not rise from the grave. I have never been one
of your race, Wallace Creech — I am of a different one” (BRITE, 1992, p. 90).
Na passagem, questões gênero rompem a superfície do romance. Christian, um sujeito alto,
delgado, de rosto levemente andrógino, afirma que “I am of a different one”, ou seja, não pertence
ao escopo social heteronormativo referente à gênero, o qual Wallace julga como único e definitivo.
Em Brite, os vampiros não são transformados, e sim nascidos de tal forma. Ao remover a questão
do “sangue ruim” da equação, Brite elimina metáforas e associações do estado vampiresco a
doenças, infecções e maldições, típicas desse mito literário.
William Hughes comenta que “são tecidas distinções em âmbito de biologia e não de
teologia: os vampiros são uma raça paralela ao invés de um desvio do paradigma humano” (2007, p.
145). Por outro lado, o processo de nascimento quase sempre resulta na morte da mãe, por isso,
vampiras têm uma enorme relutância em se reproduzir, o que torna humanas uma opção viável para
dar continuidade à linhagem vampiresca. Isso também causa a dissolução da espécie e, dessa forma,
Brite inverte a noção de que o vampiro é criado através da perversão ou infecção do sangue humano
puro, uma vez que, em Brite, é o sangue humano que contamina o vampiresco, diluindo-o e fazendo
com que os vampiros mais jovens sejam capazes de digerir comida, beber álcool e sair ao sol. Essas
não são necessariamente características negativas, são apenas humanas. Em certa medida, elas
estreitam os laços entre humanos e vampiros. E mesmo que Brite tenha dado aos seus vampiros a
capacidade de se adequar ao mundo humano, eles não têm disposição para tal. Eles são marginais,
deslocados, outcasts.
Os jovens vampiros Zillah, Twig e Molochai são apresentados como góticos errantes
(relacionados à subcultura gótica) com uma fome insaciável por drogas, álcool, junk food, sexo e
sangue. Eles viajam em um van pelos Estados Unidos, alimentando-se de mochileiros e outras
presas oportunas. Os personagens apresentam uma relação complexa: eles são “as much as a family

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as anyone could be, anywhere, ever” (BRITE, 1992, p. 83) e, ao mesmo tempo, são amantes e um
tipo de bando selvagem, vivendo sem qualquer apreço pelas normas do mundo diurno. A identidade
de gênero dos personagens está relaciona a sua origem vampiresca. Zillah, líder do grupo, é um
bom exemplo disso. Ele é descrito da seguinte forma:

Zillah was the most beautiful of the three, with a smooth, symmetrical, androgynous face,
with brilliant eyes as green as the last drop of Chartreuse in the bottle. Only Zilla’s hands
gave away his gender; they were large and strong and heavily veined beneath the thin white
skin. He wore his nails long and pointed, and he wore his caramel-colored hair tied back
with a purple silk scarf. Wisps of the ponytail had escaped, framing the stunning face, the
achingly green eyes. (BRITE, 1992, p. 5-6)

Zillah é descrito como belo, andrógino. Apesar de as mãos de Zillah sugerirem certa noção
hegemônica de masculinidade, uma vez que são fortes, de veias salientes, elas também são descritas
de forma sensual, “large and strong and heavily veined beneath the thin white skin”, num convite a
contemplá-las, como se a narrativa sugerisse, ao focar na descrição das mãos, que tudo está ao
alcance do toque deste vampiro malicioso.
Judith Butler comenta que “[...] gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de
atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo
para produzir a aparência de uma substância” (BUTLER, 2019, p. 59). Nesse sentido, essa
performance vampiresca de Zillah — representado pela androginia, pelo cabelo colorido amarrado
por um laço de seda, a aplicação de maquiagem, em contraste com suas mãos grandes e fortes —
funciona como uma imagem que desestabiliza a noção hegemônica de masculinidade. Segundo
Butler, o gênero é uma construção performativa, daí que

se a verdade interna do gênero é uma fabricação, e se o gênero verdadeiro é uma fantasia


instituída e inscrita sobre a superfície dos corpos, então parece que os gêneros não podem
ser nem verdadeiros nem falsos, mas somente produzidos como efeitos de verdade de um
discurso sobre a identidade primária e estável. (BUTLER, 2010, p. 195)

Além disso, a perspectiva estetizante que permeia a representação de Zillah se apresenta


como algo essencialmente queer, no sentido de uma construção de identidade de gênero nas
margens do discurso hegemônico heteronormativo, em um nível subjetivo de autorrepresentação
(LAURETIS, 1994). Zillah — assim como Twig e Molochai — se afirma como um sujeito
marginal e a construção de sua identidade de gênero encontra um paralelo nos apontamentos de
Guacira Lopes Louro sobre o sujeito queer, uma vez que o sujeito queer se refere a “um jeito de
pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que
desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade” (LOURO,
2016, p. 7).
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Somada à representação estetizante, performativa, de Zillah como um vampiro gótico, ou
seja, uma figura jovial, andrógina, de fato atrelada a subcultura homônima, soma-se seu modo de
vida. Os vampiros percorrem as rodovias norte-americanas em sua van, vivendo literalmente à
margem do mundo diurno, assim como em relação a tudo o que define esse mesmo mundo. Nesse
sentido, a identidade de gênero de Zillah também se relaciona a sua noção de família. A dinâmica
das famílias vampirescas de Brite não é definida por convenções administrativas — a
consanguinidade, a herança, a tradição, a paternidade — e sim por um senso erótico e empático; e a
questão erótica está atrelada ao tema do sangue. Nothing, filho e amante de Zillah, comenta que
“blood meant the end of aloneness” (BRITE, 1992, p. 158), ou seja, que a conexão sensual
proporcionada pelo sangue compartilhado é capaz de gerar um forte senso de conexão e
comunidade, de pertencimento. Além disso, os vampiros de Brite são, em essência, pansexuais, e só
se relacionam afetivamente com outros de sua espécie. Esse tipo de relação também sugere o caráter
disfuncional das relações heteronormativas do romance. As famílias vampirescas apresentam-se
complexas, porém funcionais, já as famílias humanas são sempre disfuncionais, permeadas por
inúmeras instâncias de violência, como no caso do pai abusador de Jessie e do pai autoritário de
Ann.

Considerações finais

Pensar o gênero como um ato performativo, conforme Judith Butler (2019) defende em seus
Problemas de Gênero, possibilita ler a representação dos personagens vampirescos em relação às
terias de gênero. Em particular, compreender os vampiros de Brite como figuras ambíguas, cujas
características mais marcantes — a androginia, a pansexualidade e a sensualidade latente — desafia
noções de heterossexualidade compulsória. A partir dessa leitura, é possível aproximar personagens
como Zillah, conforme demonstrado, de noção de queer, uma vez que uma identidade complexa
emerge das relações — e tensões — que fundamentam tais personagens.
A identidade de gênero de Zillah relaciona-se a sua natureza vampiresca, e os vampiros de
Brite, ameaçadores como são, encontram na margem uma forma de pertencimento. Eles se agrupam
e resistem, recusando-se a tornar-se àquilo que necessita ser expurgado em prol da manutenção da
ordem das coisas. Ao invés disso, a narrativa arrasta os paradigmas heteronormativos a um ponto
perigoso, em que ameaçam diluir-se frente à força da representação vampiresca. Nesse sentido, esse
processo é algo ao mesmo tempo individual e social, assim como político. Essas questões são
pertinentes porque não há final moralizante e heteronormativo. Ao mesmo tempo, a representação
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dos vampiros de Brite se afasta gradualmente de representações hegemônicas de corpo, gênero e
sexualidade no decorrer da narrativa, criando personagens que desestabilizam tais noções
hegemônicas.

Referências

AUERBACH, Nina. Our Vampires, Ourselves. Chicago, IL: University of Chicago, 1995.
BRITE, Poppy Z. Lost Souls. New York: Random House, Inc: 1992.
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BROWNE, Ray B; HOPPENSTAND, Gary. Introduction: Vampires, Witches, Mummies, and
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Poppy Z. Brite vampires as representations which destabilize hegemonic notions of body,


gender, and sexuality

Abstract: Poppy Z. Brite is an American, transgender author and his gothic fiction often raises
questions regarding body, gender, and sexuality. The majority of Brite's characters are gay and
bisexual men culturally outcast by hegemonic society. This is the case concerning Nothing, the
main character of Lost Souls, a novel which rereads several Gothic themes and the vampire literary
myth. In Brite’s fiction, vampires are not transformed or cursed—they are not a "perversion" of
human blood; they find themselves vampires during their adolescence. This may be read as an
analogy to gender identity, and Nothing's narrative illustrates the subject. He goes on a roadtrip
longing to find something that helps him recognize himself, searching for his gender identity.
Nothing's post-punk culture, bisexuality and androgyny flourish into a notion of self-affirmation, as
Nothing realizes he is a vampire and builds his gender identity through a performative act—a
product of ongoing stylization of the body. The “vampire gender” of Brite vampires presents itself,
as Judith Butler illustrates, as essentially queer. In this sense, I aim to discuss how the
representation of Brite's characters may destabilize hegemonic notions of gender. As a theoretical
and critical background, I approach authors such as Lauretis, Butler, and Lopes Louro.
Keywords: Queer theory. Gender identity. Judith Butler. Poppy Z. Brite.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X

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