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escravidão
RESUMO: Tendo como linha de análise os estudos sociais, esse trabalho tem por objetivo
refletir sobre a situação escravocrata e racista a que os elfos domésticos são acometidos na série
infanto-juvenil Harry Potter. Na obra em questão, os elfos não são reconhecidos como sujeitos,
sendo objetificados, o que “legitima” o discurso hierarquizante dos bruxos para vê-los como
seres inferiores, tomá-los como propriedade e escravizá-los. Com o objetivo de desenvolver a
análise, mobiliza-se um referencial teórico sobre racismo, pós-colonialismo e resistência a fim
de discutir as relações entre preconceito racial, escravidão, colonialismo e literatura; a
invisibilidade dos elfos domésticos na narrativa; o discurso do opressor, bem como o do
oprimido. Mais além, sendo a obra uma metáfora da sociedade, pondera-se sobre que grupo
social os elfos domésticos estariam representando, chegando-se à conclusão de que eles
simbolizam os não-britânicos e não-brancos, ou seja, os imigrantes, que foram no passado
escravizados, e que hoje devem se tornar “invisíveis” perante a sociedade europeia para serem
aceitos. Sendo um reflexo da sociedade, vemos que ao fim dos volumes da série a situação dos
elfos domésticos permanece imutável, assim como os não-britânicos não-brancos ainda são
marginalizados, ficando aquém da sociedade, uma vez que há marcas do período colonial que
não foram extirpadas.
PALAVRAS-CHAVE: Racismo; escravidão; elfos domésticos; Harry Potter.
ABSTRACT: Taking on account the analysis of social studies, this work’s purpose is to bethink
the enslaver and racist situation house-elves pass through in the Harry Potter series. In these
books, the elves are not seen as subjects, being objectified, what “legitimizes” the wizards’
hierarchical discourse to continue treating them as inferior beings, taking them as property and
slavering them. Aiming the development of the analysis, we mobilize a theoretical bibliography
concerning racism, post-colonialism and resistance to discuss the connections among racial
prejudice, slavery, colonialism and literature; the invisibility of the house-elves in the books; the
speech of the oppressor as well as the oppressed. Furthermore, being the narrative a metaphor of
society, we target a debate over the social group house-elves would represent, getting to the
conclusion that they symbolize the non-British and non-white, that means, the immigrants, who
were slaved in the past, and need to become “invisible” today in the European society to be
accepted. As a reflex of society, in the end of the seven books of the series there are no changes
in the house-elves’ situation, just as the non-British and non-white are still marginalized, being
apart of society, once there are traces of the colonial period that were not eradicated even
nowadays.
KEY-WORDS: Racism; slavery; house-elves; Harry Potter.
INTRODUÇÃO
1
Referimo-nos aos livros Harry Potter e a pedra filosofal, Harry Potter e a câmara secreta, Harry Potter e o
prisioneiro de Askaban, Harry Potter e o Cálice de Fogo, Harry Potter e a Ordem da Fênix, Harry Potter e o
enigma do Príncipe e Harry Potter e as Relíquias da Morte.
2
Entrevista disponível online em: http://www.sobresites.com/literaturajuvenil/entrevista17.htm. Último acesso em
29/08/15 às 00:20.
(2008) e Todorov (1986), tendo como foco o pós-colonialismo e utilizando os estudos sociais
como linha de análise.
1. RACISMO E LITERATURA
Assim, vemos que a essência do preconceito racial não se limita à herança de atributos físicos,
mas de características intelectuais que inferiorizam o sujeito, “justificando”, então, sua
exploração:
3
Do original: ““Racism” is the name given to a type of behavior which consists in the display of contempt or
aggressiveness toward other people on account of physical differences (other than those of sex) between them
and oneself.” (TODOROV, 1986, p. 370).
4
Do original: “considers a group’s unchangeable physical characteristics to be linked in a direct, causal way to
psychological or intellectual characteristics, and which on this basis distinguishes between ‘superior’ and
‘inferior’ racial groups.” (ASHCROFT et al, 2007, p. 181).
outro, o que faz com que o pensamento racista não seja inato, mas um processo aprendido e
“amplamente discursivo, isto é, baseado na conversação e no contar de histórias diárias, nos
livros, na literatura, no cinema, nos artigos de jornal, nos programas de tv, nos estudos
científicos, entre outros.” (DIJK, 2012, p. 15). Podemos notar, deste modo, que a literatura, ao
refletir sua época, tem o poder tanto de denunciar o racismo existente quanto de reafirmá-lo.
“O estudo de Letras implica o estudo do homem, sua relação consigo mesmo e com o
mundo, e sua relação com os outros.” Mais exatamente, o estudo da obra remete a
círculos concêntricos cada vez mais amplos: o dos outros escritos do mesmo autor, o da
literatura nacional, o da literatura mundial; mas seu contexto final, o mais importante
de todos, nos é efetivamente dado pela própria natureza humana. Todas as grandes
obras, qualquer que seja a sua origem, demandam uma reflexão dessa dimensão.
(TODOROV, 2010b, pp. 89-90).
5
Do original: “Racialist and colonialist authors of the nineteenth century, in promulgating racism, were completely
in accordance with popular opinion of their time. Critics in the final decades of the twentieth century, in
condemning racism, resemble their predecessors even as they contradict them: they too are in accordance with
popular opinion.” (TODOROV, 1986, p. 378).
em Harry Potter.
que se quer um “recriador” da realidade e senhor absoluto de seu mundo de ficção, que
ele pretende transmitir ao leitor como verdade (e não como invenção, assumindo-se
como total conhecedor dos fatos e conflitos, do dentro e do fora das personagens e,
inclusive, de seu presente, passado e futuro. (COELHO, 2000, pp. 67-68).
Essa escolha de narrador é de extrema importância, pois o leitor pressupõe que está tendo
domínio total dos fatos, uma vez que o narrador demonstra possuir controle absoluto da
narrativa e conhecer até o íntimo das personagens:
Os Dursley se deitaram. A Sra. Dursley adormeceu logo mas o Sr. Dursley continuou
acordado, pensando no que acontecera. Seu último consolo antes de adormecer foi
pensar que mesmo que os Potter estivessem envolvidos, não havia razão para se
aproximarem dele e da Sra. Dursley. Os Potter sabiam muito bem o que pensavam
deles e de gente de sua laia... Não via como ele e Petúnia poderiam se envolver com
nada que estivesse acontecendo. O Sr. Dursley bocejou e se virou. Isso não poderia
afetá-los...
Como estava enganado. (ROWLING, 2000a, p. 12).
Porém, a narração também é influenciada pelo foco narrativo, e no caso da série Harry
Potter este é onisciente de consciência parcial:
quando apenas parte do que acontece é revelado ao leitor, pois o narrador se limita ao
ângulo de visão de apenas uma personagem e esta passa a ser uma espécie de “filtro”
através da qual a trama da narrativa flui. (COELHO, 2000, p. 69).
A partir do momento em que Harry Potter aparece na trama, temos a sua perspectiva do que
acontece. Segundo Jean Pouillon, no foco onisciente de consciência parcial,
tudo fica centralizado numa única personagem [...] a visão mais nítida é a da
personagem central. Na realidade, esta é a central, não porque seja vista no centro, mas
sim porque é sempre a partir dela que vemos os outros [...] é com ela que vivemos os
acontecimentos registrados pelo narrador. (POUILLON, 1974 apud COELHO, 2000, p.
69)
Muito mais tarde, deitado no seu armário, Harry desejou ter um relógio. Não sabia que
horas eram e não tinha certeza se os Dursley já estariam dormindo. Até que estivessem,
ele não poderia se arriscar a ir escondido até a cozinha buscar alguma coisa para comer.
Vivia com os Dursley havia quase dez anos, dez infelizes anos, desde que se lembrava,
desde que era bebê e seus pais tinham morrido naquele acidente de carro. (ROWLING,
2000a, p. 30),
visto que é dito que os pais de Potter morreram em um acidente de carro, pois essa é a verdade
que Harry conhecia (na realidade eles foram assassinados por Voldemort).
O foco narrativo é essencial na percepção do tema “racismo” na obra, uma vez que,
majoritariamente, apenas teremos acesso à visão de Harry Potter dos fatos. Assim, tratando-se
de uma série dividida em sete volumes, sendo o primeiro classificado como infantil e o último
como juvenil, a primeira aparição de um elfo doméstico na narrativa dá-se em Harry Potter e a
câmara secreta (ROWLING, 2000b) através do personagem Dobby, mas como estamos vendo
os acontecimentos pelo olhar de um garoto de 11-12 anos, a situação racista e escravocrata
vivenciada por Dobby parece uma exceção e não algo rotineiro inclusive dentro de Hogwarts.
Em Harry Potter e o Cálice de Fogo (ROWLING, 2001), Harry Potter e seus amigos
estão mais velhos, então sua visão acerca do mundo que o cerca torna-se mais madura e crítica,
e só então, pela voz da personagem Hermione Granger, a situação dos elfos domésticos ganha
destaque e o leitor toma conhecimento da dimensão do abuso que não só Dobby, mas todos os
elfos domésticos sofrem.
Na tradição ocidental, tanto antiga quanto colonial, definia-se o escravo através de três
características básicas: 1) sua pessoa era propriedade de outrem; 2) sua vontade estava
subordinada à autoridade do seu dono; 3) seu trabalho era obtido mediante coação. A
condição do escravo era hereditária e a propriedade sobre ele transmissível. Apesar de
sua incapacidade jurídica, não era incapaz plenamente: pelo contrário, a tortura e os
mais duros castigos eram-lhe reservados pela legislação. (CARDOSO, 1995, p. 85)
Raça e preconceito racial estão intimamente ligados à escravidão de uma forma que não
dá para separá-los completamente: “Tem sido sugerido por alguns comentaristas que a
escravidão deu a luz ao racismo, pelo menos na sua forma moderna, assim como o racismo foi a
desculpa para os excessos da escravidão.” [tradução nossa]6 . Assim, através da recusa em
admitir que sejam sujeitos, os elfos domésticos recebem o estatuto de objeto; com a sua raça
sendo vista e aceita na sociedade como inferior, torna-se mais fácil tomá-los como propriedade e
escravizá-los.
Porém, apesar de ser mencionado que elfos domésticos são comuns em “grandes casas
senhoriais, castelos e lugares do gênero” (ROWLING, 2000b, p. 31), o único elfo visto por
Harry Potter, e consequentemente citado durante todo o volume, é Dobby, aparecendo como
uma criatura que sofre nas mãos dos Malfoy – família rica e conservadora a que serve:
Lúcio Malfoy ficou prado por um instante, e Harry viu distintamente sua mão direita
fazer um gesto involuntário como se quisesse alcançar a varinha. Em vez disso, ele se
6
Do original: “It has been suggested by some commentators that slavery gave birth to racism, at least in its modern
form, just as racism became the excuse for slavery’s excesses.” (DAVIDSON, 1994 apud ASHCROFT et al,
2007, p. 196)
virou para o elfo doméstico.
– Vamos embora, Dobby!
Abriu a porta com violência e quando o elfo veio correndo para alcançá-lo, ele o
chutou porta afora. Eles ouviram Dobby guinchar de dor por todo o corredor.
(ROWLING, 2000b, p. 283).
Mas como Lúcio Malfoy foi um seguidor de Voldemort e demonstra apreço pelas Artes das
Trevas, sendo avesso até a bruxos mestiços (filhos de não-bruxos), essa atitude opressora parece
aos olhos do personagem Harry Potter (e portanto do leitor) algo restrito à família em questão.
Até que em Harry Potter e o Cálice de Fogo (ROWLING, 2001), um livro de passagem entre a
fase infantil e a juvenil de Harry, vemos que a questão escravista é maior do que aparenta.
Na obra referida acima, tomamos conhecimento de outro elfo doméstico: Winky, que
serve à família dos Crouchs, e ela nos dá mais informações sobre a condição dos elfos
domésticos ao falar sobre o elfo Dobby, que conseguiu sua tão sonhada liberdade da família a
que pertencia:
[sobre Dobby] A liberdade está subindo à cabeça dele – disse Winky tristemente. –
Idéias acima da condição social dele, meu senhor. Não consegue outro emprego, meu
senhor. [...] Ele está exigindo pagamento pelo trabalho que faz, meu senhor. [...] Elfos
domésticos não recebem pagamento, meu senhor! [...] Ele fica fazendo todo tipo de
feitiço avançado, meu senhor, o que não fica bem para um elfo doméstico. [...] Elfos
domésticos não nasceram para se divertir, Harry Potter – disse Winky com firmeza, por
trás das mãos. – Elfos domésticos fazem o que são mandados fazer. Eu não estou
gostando nem um pouco da altura, Harry Potter... – ela olhou para a borda do camarote
e engoliu em seco – ... mas meu dono me mandou para o camarote de honra e eu
obedeço, meu senhor. (pp. 82-83).
Pelo discurso de Winky pode ser observado que há os elfos domésticos que
internalizam a ideologia escravista, reproduzindo a fala de seu dominador, bem como os que não
internalizam, como é o caso do elfo Dobby, que queria ser livre. Quando o discurso do
dominante é muito forte, o dominado tende a incorporá-lo e reproduzi-lo: “o colonizado busca a
assimilação, ou seja, tenta trocar de pele, adotando aquela que lhe parece cheia de atrativos: a
figura do colonizador”. (FIGUEIREDO, 1998 apud ALEIXO, 2011, p. 67).
Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de
inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural – toma posição
diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto
mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua
selva. (FANON, 2008, p. 34).
– Pode ficar tranquilo que ela será castigada – acrescentou o Sr. Crouch friamente.
– M-m-meu senhor... – gaguejou Winky, olhando para o Sr. Crouch, seus olhos rasos de
lágrimas. – M-m-meu senhor, p-p-por favor...
O Sr. Crouch encarou o elfo, seu rosto ainda mais agressivo, cada ruga nele
profundamente marcada. Não havia piedade em seu olhar. (p. 113).
Vemos, ainda, que a agressão ao outro que é diferente ultrapassa o limite verbal, sendo comum
tornar-se físico:
Como, em sua maioria, o leitor tem apenas a visão do personagem focalizador (Harry
Potter) dos fatos, somente no capítulo doze do mesmo livro, através de uma conversa entre
Hermione Granger e Nick Quase sem Cabeça, em que Harry Potter estava presente, é que
tomamos conhecimento de que Hogwarts, o colégio visto como modelo de igualdade e justiça,
também faz uso do serviço de elfos domésticos:
– Tem elfos domésticos aqui? – perguntou, encarando Nick Quase Sem Cabeça com
uma expressão de horror. – Aqui em Hogwarts?
– Claro que sim – disse o fantasma, parecendo surpreso com a reação da garota. – O
maior número que existe em uma habitação na Grã-Bratanha, acho. Mais de cem.
– Eu nunca vi nenhum! – exclamou Hermione.
– Bom, eles raramente deixam a cozinha durante o dia, não é? Saem à noite para fazer
limpeza... abastecer as lareiras e coisas assim... quero dizer, não é esperado que fiquem
à vista. Essa é a marca de um bom elfo doméstico, não é, que não se saiba que ele
existe.
Hermione ficou olhando o fantasma.
– Mas eles recebem salário? – perguntou ela. – Têm férias, não têm? Licença médica,
aposentadoria e todo o resto?
Nick Quase Sem Cabeça deu gargalhadas tão gostosas que sua gola de rufos
escorregou, e a cabeça despencou para o lado e ficou balançando nos poucos
centímetros de pele e músculo fantasmais que ainda a ligava ao pescoço.
– Licença para tratamento médico e aposentadoria? [...] Elfos domésticos não querem
licenças nem aposentadorias.
Hermione olhou para o prato de comida em que mal tocara, juntou os talheres e
afastou-o.
– Ora, vamos, Mi-oinc – disse Rony, cuspindo, sem querer, fragmentos de pudim de
carne em Harry. – Opa... desculpe, Harry... – E engoliu. – Você não vai arranjar
licenças para eles deixando de comer!
– Trabalho escravo – disse a garota, respirando com força pelo nariz. – Foi isso que
preparou este jantar. Trabalho escravo.
E recusou-se a continuar a comer. (pp. 147-148).
A citação mencionada é uma das mais importantes quanto ao tema que nos ocupa, pois
nesse diálogo Hermione denuncia toda a situação racista a que os elfos são acometidos:
a) Primeiramente podemos notar a naturalização do discurso de Nick Quase Sem Cabeça
quanto à situação dos elfos domésticos, o que demonstra que aquela é uma condição
rotineira que nem merece atenção ou questionamento.
b) Dando continuidade à análise, observamos a invisibilidade dos elfos domésticos no meio
em que vivem – “não é esperado que fiquem à vista. Essa é a marca de um bom elfo
doméstico, não é, que não se saiba que ele existe.” (p. 147). Durante toda a série eles
estarão presentes pela ausência.
c) Ainda, vemos que Nick Quase Sem Cabeça fala dos elfos domésticos, mas não a eles:
“Ora, é falando ao outro (não dando-lhe ordens, mas dialogando com ele), e somente
então, que reconheço nele uma qualidade de sujeito, comparável ao que eu mesmo sou.”
(TODOROV, 2010a, p. 190), o que não acontece no caso da narrativa – Nick usa seu
status e poder para falar pelos elfos, mesmo sem dialogar com eles para saber sua
verdadeira opinião sobre o assunto: “Elfos domésticos não querem licenças nem
aposentadorias.” (p. 148), uma vez que “não sendo sujeitos, não tem querer”
(TODOROV, 2010a, p. 189).
d) Além disso, temos a indiferença demonstrada por Rony Weasley quanto à situação do
elfos. Mesmo não sendo um bruxo pertencente à nobreza, que possui um elfo doméstico,
Rony aceita a condição deles e age com apatia, uma vez que a escravidão e racismo
contra os elfos não o afeta diretamente. Rony, então, representa aqueles não estão
explicitamente ligados ao racismo/à escravidão, mas o perpetuam indiretamente no seu
dia-a-dia, auxiliando, assim, na manutenção do preconceito.
Desta forma, eles só podem fazer parte do mesmo meio que os britânicos (que seriam os bruxos
de sangue-puro) se permanecerem invisíveis.
Ao se colocarem como superiores, os bruxos (bem como os britânicos) hierarquizam a
sociedade, uma vez que alguém só pode pertencer a um status alto se houver quem preencha o
inferior: “A inferiorização é o correlato nativo da superiorização europeia.” (FANON, 2008, p.
90).
uma noção coletiva que identifica a “nós” europeus contra todos “aqueles” não-
europeus, e de fato pode ser argumentado que o principal componente da cultura
européia é precisamente o que torna essa cultura hegemônica tanto na Europa quanto
fora dela: a idéia de uma identidade européia como sendo superior em comparação com
todos os povos e culturas não europeus. (SAID, 1990, p. 19)
Assim como as famílias bruxas ricas são dependentes dos elfos domésticos para servi-
los, a sociedade branca britânica também depende dos imigrantes para mão-de-obra barata e
serviço braçal. Mas não é aceitável que um estrangeiro chegue a uma alta posição, bem como o
fato de Dobby ter se tornado um elfo livre que exigia salário foi visto com maus olhos pelos
outros personagens, pois a partir desse momento ele se fez presente, ele passou a existir, a se
reconhecer como sujeito e se impor, mudando as estruturas sociais pré-estabelecidas. Como
consequência, a atitude de todos a sua volta foi equivalente à encontrada quando um negro ou
imigrante aspira a um grande cargo social – tentaram dissuadi-lo, aconselhando-o a voltar à
posição inferiorizada que pressupõem que ele deveria ocupar:
Hermione, apesar de bruxa, é filha de pais trouxas (termo usado para designar os humanos que
não são bruxos), sendo, então, uma nascida-trouxa; por conseguinte, ela também sofria
discriminação por sua condição, o que pode tê-la levado a compreender a situação de abuso que
os elfos domésticos estavam sofrendo: “Podem-se descobrir os outros em si mesmo”
(TODOROV, 2010a, p. 3). Apesar da posição privilegiada por ter nascido bruxa, ao sofrer
preconceito, Hermione foi capaz de se colocar na condição do outro e sentir empatia, o que a
levou a criar o F.A.L.E., Fundo de Apoio à Liberação dos Elfos.
Porém, como “Viver a diferença na igualdade: é mais fácil dizer do que fazer.”
(ALEIXO, 2011, p. 363), apenas Hermione Granger se comove com a situação dos elfos
domésticos, e a narrativa termina sem haver melhoras significativas na condição em que eles
vivem, o que também reflete a sociedade europeia: apesar de toda a discussão acerca do racismo
e preconceito, a posição dos não-britânicos não-brancos continua sendo abaixo da média, se
comparada à dos britânicos brancos: “Era importante, dissera Dumbledore, lutar, e recomeçar a
lutar, e continuar a lutar, porque somente assim o mal poderia ser acuado, embora jamais
erradicado…” (ROWLING, 2005, p. 504). No entanto, como bem nos lembra Aleixo (2011), a
luta pelo fim da marginalização racial não deve se extinguir pois “Resistir contra a dominação
exercida pelo poder imperial seria assim o único caminho para o resgate da subjetividade dos
povos oprimidos.” (p. 61).
CONCLUSÃO
Todos os assuntos que nos remetem à construção do ser humano como sujeito pensante
merecem ser discutidos. Assim, analisamos ao longo desse trabalho como o racismo é abordado
na série Harry Potter, de J. K. Rowling, através da figura dos elfos domésticos, na qual o tema
que nos ocupa é apresentado pela forma como eles são tratados pelas famílias a que servem.
Para ponderar sobre o tema proposto, primeiro discutimos sobre a definição de racismo,
sua relação com o colonialismo, e o poder que o discurso literário possui tanto de reafirmar
situações de opressão quanto denunciá-las; dando sequência, analisamos a estrutura da narrativa
de Harry Potter para compreendermos o porquê dos elfos domésticos serem invisíveis ao longo
dos livros, o que nos permitiu notar que os enxergamos pelo olhar do personagem focalizador –
Harry Potter. A partir desse conhecimento, ponderamos sobre como os elfos domésticos (não)
são mostrados na narrativa, apontando o racismo que legitima sua escravidão para, por fim,
compreender que eles representam metaforicamente os não-britânicos não-brancos, que estão à
margem da sociedade. Conclui-se, então, que, assim como os imigrantes e negros continuam
sendo oprimidos pela sociedade, os elfos domésticos, sendo uma representação daqueles, ao
término da série também não usufruem de grandes melhorias na sua condição de oprimido.
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