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CONFISSÕES DE UM

ATEU BUDISTA

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Stephen Batchelor

CONFISSÕES DE UM
ATEU BUDISTA

Tradução:
GILSON CÉSAR CARDOSO DE SOUSA

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Título do original: Confession of a Buddhist Atheist.
Copyright © 2010 Stephen Batchelor.
Publicado nos Estados Unidos pela Spigel & Grau, um selo da The Random House Publishing Group,
uma divisão da Random House, Inc, Nova York.
Copyright da edição brasileira © 2012 Editora Pensamento-Cultrix Ltda.
Texto de acordo com as novas regras ortográficas da língua portuguesa.
1a edição 2012.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou usada de qualquer
forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de
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citados em resenhas críticas ou artigos de revistas.
A Editora Pensamento não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços
convencionais ou eletrônicos citados neste livro.
Coordenação editorial: Denise de C. Rocha Delela e Roseli de S. Ferraz
Preparação de originais: Roseli de S. Ferraz
Design da capa: Christopher Sergio
Diagramação: Fama Editoração Eletrônica
Revisão: Claudete Agua de Melo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Batchelor, Stephen
Confissões de um ateu budista / Stephen Batchelor ; tradução Gilson
César Cardoso de Sousa. — São Paulo : Pensamento, 2012.

Título original: Confession of a Buddhist atheist.


Bibliografia.
ISBN 978-85-315-1806-5

1. Batchelor, Stephen 2. Biografia espiritual — Grã-Bretanha


3. Budistas — Autobiografia I. Título.

12-11034 CDD-294.3923092

Índices para catálogo sistemático:


1. Budistas : Autobiografia 294.3923092

Direitos de tradução para o Brasil


adquiridos com exclusividade pela
EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA.
Rua Dr. Mário Vicente, 368 — 04270-000 — São Paulo, SP
Fone: (11) 2066-9000 — Fax: (11) 2066-9008
E-mail: atendimento@editorapensamento.com.br
http://www.editorapensamento.com.br
que se reserva a propriedade literária desta tradução.
Foi feito o depósito legal.

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Não tenho apenas cem1 nem quinhentos, mas um número
bem maior de seguidores leigos, homens e mulheres,
meus discípulos trajados de branco que gozam os prazeres
sensuais, obedecem às minhas instruções e atendem aos
meus conselhos depois de superar a dúvida, livrar-se da
perplexidade, ganhar coragem e tornar-se independentes
dos outros graças ao meu ensinamento.
— Sidarta Gautama

Histórias são impossíveis,2 mas é impossível viver sem


histórias. Que enrascada!
— Wim Wenders

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SUMÁRIO

Agradecimentos..................................................................................... 9
Prefácio.................................................................................................. 11

Primeira Parte: Monge


  1. Um budista fracassado (I)............................................................... 17
  2. Com o pé na estrada........................................................................ 23
  3. O seminarista.................................................................................. 36
  4. Enguia coleante............................................................................... 52
  5. O estar-no-mundo........................................................................... 68
  6. Grande dúvida................................................................................. 87

Segunda Parte: Leigo


  7. Um budista fracassado (II).............................................................. 113
  8. Sidarta Gautama.............................................................................. 133
  9. A Estrada do Norte.......................................................................... 149
10. Contra a corrente............................................................................ 166
11. Abrindo caminho............................................................................ 179
12. Aceitar o sofrimento........................................................................ 195
13. No bosque de Jeta............................................................................ 210
14. Um ateu irônico.............................................................................. 223
15. A vingança de Vidudabha................................................................ 235
16. Deuses e demônios.......................................................................... 248
17. É preciso seguir o caminho com cuidado....................................... 268
18. Um budista secular.......................................................................... 284

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Apêndices
1. O Cânone Páli................................................................................. 303
2. Sidarta Gautama esteve em Taxilã?................................................. 308
3. O giro da Roda do Dharma.............................................................. 316
4. Mapa: a Índia do Buda..................................................................... 319

Notas..................................................................................................... 322
Glossário............................................................................................... 341
Bibliografia............................................................................................ 348

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AGRADECIMENTOS

Devo muito a todas as pessoas, passadas e presentes, que menciono


nas páginas subsequentes, sem as quais Confissões de um Ateu Budista
não poderia ter sido escrito. Agradeço a Darius Cuplinskas, Chris
Desser, Antonia Macaro, John Peacock, Marjorie Silverman, Mark
Vernon e Gay Watson, que leram o livro todo em manuscrito e de-
ram sugestões inestimáveis para melhorá-lo; a Allan Hunt Badiner e
Shantum Seth por me mostrarem a Índia do Buda; a Richard Gom-
brich por me iniciar nos mistérios da língua páli; a Stephen Schettini
por iluminar a trilha autobiográfica; a Peter Maddock por suas lem-
branças de Naavra Thera; a Ilona Wille por suas recordações de Fred
Varley; a Anne Amos e Mike Smith pelos cafés da manhã além de toda
expectativa; à minha agente Anne Edelstein por seu entusiasmo pelo
livro desde o início; e à minha editora Cindy Spiegel por garantir que
ele chegasse à forma final.

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PREFÁCIO

Confissões de um Ateu Budista conta a história de uma jornada de 37


anos pela tradição do budismo. Começa com o meu encontro na Ín-
dia, aos 19 anos, com o Dalai Lama e os ensinamentos do budismo
tibetano, terminando com as reflexões de um leigo de 56 anos, um
budista secular e não sectário residente no interior da França. Uma
vez que não fui criado como budista, esta é uma história de conver-
são. Fala de meu fascínio pelo budismo e de minha luta para chegar
a bons termos com certas doutrinas — a reencarnação, por exemplo
— que achava difícil aceitar e com instituições religiosas autoritárias
que resistem à crítica e à inovação. Minhas lutas pessoais talvez espe-
lhem um conflito cultural maior entre a perspectiva de uma religião
asiática tradicional e as intuições da modernidade leiga.
Meu contato com as formas tradicionais do budismo me levou a
perguntar, com crescente ansiedade: quem foi o homem Sidarta Gau-
tama, o Buda? Em que espécie de ambiente viveu? Que há de distin-
to e original em seu ensinamento? Comecei a perceber que muitas
coisas apresentadas, de boa-fé, como “budismo” não passavam de
doutrinas e práticas desenvolvidas séculos depois da morte do Buda,
em circunstâncias bem diversas das que o cercavam enquanto vivo.
Ao longo de sua história, o budismo revelou uma notável capacidade
de adaptar-se a situações novas e de reinventar-se sob formas apro-
priadas às necessidades dos novos adeptos. Entretanto, essa mesma

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capacidade de apresentar-se em roupagem diferente também serviu
para obscurecer as origens da tradição e a figura de seu fundador.
Hoje, em muitas escolas do budismo, raramente se estudam os dis-
cursos de Sidarta Gautama, enquanto o próprio homem costuma ser,
com frequência, alçado à condição de um deus.
A busca das origens do budismo levou-me a estudar o cânone
páli, corpo de ensinamentos na antiga língua páli atribuídos a Sidarta
Gautama. Embora esses textos não sejam transcrições literais das pa-
lavras do Buda, ainda assim preservam os elementos mais primitivos
de seu ensinamento e nos dão alguns vislumbres do complexo meio
social e político de seu tempo. A busca também me levou de volta
à Índia para visitar os lugares, mencionados no cânone páli, onde o
Buda viveu e ensinou há quase 25 séculos. Esses estudos, as pesqui-
sas de campo e o inestimável Dictionary of Pali Proper Names, de G. P.
Malalasekera, permitiram-me reconstituir uma narrativa da vida do
Buda alicerçada em suas relações com benfeitores, familiares e discí-
pulos, no quadro das tensões políticas e sociais da época.
Muitas das pessoas que aparecem neste livro são ou foram mon-
ges budistas. Contudo, o termo “monge” (ou “monja”) não significa
no budismo exatamente a mesma coisa que no contexto cristão. A pa-
lavra páli para “monge” é bhikkhu, que quer dizer literalmente “men-
digo”. (“Monja” é bhikkhuni, com a mesma acepção.) Um bhikkhu
ou uma bhikkhuni são pessoas que renunciaram à sociedade para se
devotar à prática dos ensinamentos do Buda. Ao ser ordenados, os
bhikkhus e bhikkhunis fazem mais de duzentos votos (muitos deles
pequenas convenções comportamentais). Devotam-se a uma vida de
castidade e pobreza, mas — ao menos tradicionalmente — são in-
centivados a levar uma vida errante e a sobreviver de esmolas. Além

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de cultivar a simplicidade, a solidão e a contemplação, bhikkhus e
bhikkhunis também ensinam quando alguém a isso os convida, dando
conselhos e assistência pastoral aos necessitados. O budismo não faz
distinção entre monge e sacerdote.
Fui monge budista (primeiro noviço, depois bhikkhu) por dez
anos; depois de despir o hábito, passei a viver como leigo casado.
Como não pertenço a nenhuma instituição ou tradição budista, falta-
-me um “lar” no mundo do budismo. Tornei-me um professor itine-
rante free-lance, visitando qualquer ponto do globo onde seja convi-
dado para compartilhar o que aprendi.
Confissões de um Ateu Budista é escrito a partir da perspectiva de
um leigo que procura seriamente viver segundo os valores budistas
num contexto secular e moderno. Não busco a preservação dos dog-
mas e instituições das formas tradicionais do budismo asiático, como
se elas tivessem um valor intrínseco independente das condições nas
quais surgiram. Em minha opinião, o budismo é como um organismo
vivo. Para florescer fora dos guetos em que se enclausuram os adeptos,
precisa enfrentar o desafio de compreender, interagindo e adaptando-
-se a um ambiente bem diverso daquele em que se desenvolveu.
Como o livro foi escrito para o público geral, omiti todos os acen-
tos diacríticos das palavras pális. Eles aparecem, porém, nas notas,
apêndices e glossário.
Stephen Batchelor

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pr i m e i ra p a rte

MONGE

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Capítulo 1

U M BUDISTA
FRAC A SSADO (I)

D
ez de março de 1973. Lembro-me da data porque assi-
nala o décimo quarto aniversário da revolta tibetana em
Lhasa, em 1959, que ocasionou a fuga do Dalai Lama
para o exterior, onde ainda permanece. Eu estudava budismo em
Dharamsala, a capital tibetana no exílio, uma antiga estação de mon-
tanha inglesa no Himalaia. A manhã estava escura, úmida, agourenta.
Pouco antes, as nuvens haviam despejado granizo do tamanho de
bolas de golfe em miniatura, agora reunidas em montículos brancos
ao lado da estrada que descia da aldeia de McLeod Ganj até a Bi-
blioteca de Obras e Arquivos Tibetanos, onde seria comemorado o
aniversário.
Uma tenda de lona clara, oscilando ao vento, erguia-se diante da
biblioteca. Embaixo, sentados, um grupo de monges idosos com seus
mantos cor de açafrão, aristocratas com longas chubas cinzentas e o
superintendente de polícia indiano de Kotwali Bazaar. Juntei-me à
multidão reunida num amplo terraço logo abaixo e esperei o início

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da solenidade. O Dalai Lama, um homem ágil de 38 anos, cabeça
raspada, subiu a um palco improvisado. Todos, num movimento es-
pontâneo, se prostraram como um só homem no chão lamacento. Ele
leu um discurso que o assobio do vento mal deixava ouvir, no idioma
tibetano que eu ainda não entendia e numa velocidade que jamais
poderia igualar. De vez em quando, uma gota de chuva caía do céu
pesado de nuvens.
Fui desviado de minhas reflexões sobre a má sina do Tibete por
um som áspero, semelhante ao de uma trombeta. Agachado com as
pernas abertas sobre uma saliência da encosta íngreme que ladea-
va a biblioteca, perto de uma fogueira enfumaçada, estava um lama
de óculos, com os cabelos em desalinho amarrados num coque, so-
prando uma trompa de osso e agitando uma sineta. Trazia um manto
branco, com apliques de vermelho, lançado descuidosamente sobre
o ombro esquerdo. Quando não soprava o instrumento, resmungava
algo que parecia uma série de imprecações contra as nuvens trove-
jantes, a mão direita estendida num mudra ameaçador, gesto ritual
de advertência em caso de perigo. Vez por outra, pousando a trompa
de osso, vibrava um rosário de sementes de mostarda na direção da
neblina agourenta.
Ouviu-se então um barulho tremendo. A chuva martelou os te-
tos de ferro corrugado dos prédios residenciais na extremidade mais
distante da biblioteca, encobrindo as palavras do Dalai Lama. O ru-
ído persistiu por vários minutos. O lama, na encosta, bateu os pés,
soprou a trompa e agitou a sineta com redobrado ânimo. As pesadas
gotas que caíam sobre os dignitários e a multidão cessaram de súbito.
Depois que o Dalai Lama se foi e a multidão se dispersou, juntei-
-me a um pequeno grupo de colegas injis. Em tom respeitoso, discor-

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remos sobre o modo como o lama da encosta — cujo nome era Yeshe
Dorje — impedira que a tempestade nos encharcasse. Eu disse então:
“E vocês ainda podem ouvir a chuva caindo à nossa volta, perto da
biblioteca e nos prédios públicos lá atrás.” Os outros concordaram e
sorriram numa unanimidade cheia de admiração.
Enquanto eu falava, sabia muito bem que não dizia a verdade.
Não ouvira chuva nenhuma nos tetos atrás de mim. Nem uma gota
sequer. Mas, para me convencer de que o lama evitara mesmo a chuva
com seus ritos e encantamentos, eu tinha de acreditar que ele cria-
ra um guarda-chuva mágico para proteger a multidão da água. Do
contrário, o que acontecera não seria tão notável. Quem já não viu,
em chão seco, a chuva cair a curta distância de onde estava? Talvez
tivesse sido apenas uma chuvarada rápida de montanha nas colinas
próximas. Nenhum de nós, porém, admitiria semelhante possibilida-
de, pois correríamos o risco de questionar a proeza do lama e, impli-
citamente, todo o elaborado sistema de crenças do budismo tibetano.
Por muitos anos, continuei a pregar a mesma mentira. Era meu
exemplo favorito (e único) de uma experiência, em primeira mão,
dos poderes sobrenaturais dos lamas tibetanos. Mas, estranhamente,
sempre que a contava, não sentia que fosse uma mentira. Aceitara
os preceitos budistas leigos e logo faria os votos monásticos. Leva-
va bastante a sério a proibição de mentir. Em outras circunstâncias,
evitaria escrupulosamente, e até neuroticamente, espalhar a mínima
falsidade. No entanto, de algum modo, aquela parecia desculpável.
Às vezes, tentava me persuadir de que talvez fosse verdade: a chuva
caíra atrás de mim sem que eu me desse conta. Os outros — embora
sugestionados por minhas palavras — haviam confirmado tudo. Mas
esse malabarismo lógico não me convenceu por muito tempo.

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Acho que minha mentira não soava como tal porque servia para
reafirmar o que eu acreditava ser uma grande verdade. Minhas pala-
vras eram a expressão sincera e espontânea de uma crença que com-
partilhávamos apaixonadamente. Circunstância curiosa, não sentia
que “eu” as houvesse pronunciado: algo maior que todos nós devia
tê-las extraído de meus lábios. Além disso, a verdade maior — a cujo
serviço pusera aquela mentira — nos fora ensinada por homens de
moral e intelecto irrepreensíveis. Monges tão afáveis, doutos e ilu-
minados jamais nos enganariam. Eles mesmos sempre propunham
que não aceitássemos suas lições sem antes testá-las tão cuidadosa-
mente quanto um ourives ao avaliar o ouro. Uma vez que os próprios
monges haviam submetido aqueles ensinamentos a rigoroso escrutí-
nio durante seus anos de aprendizado e meditação, sem dúvida não
falavam por mera convicção cega e sim com base em experiência e
conhecimento diretos. Ergo: Yeshe Dorje estancara a chuva com sua
trompa, sua sineta, suas sementes de mostarda e seus encantamentos.
Na manhã seguinte, alguém pediu ao mestre da biblioteca, Geshe
Dhargyey, que dissesse alguma coisa sobre as práticas usadas para
controlar o tempo. Geshe-la (como o chamávamos) pertencia à eru-
dita escola Geluk em que o Dalai Lama fora educado. Além de um
conhecimento enciclopédico da ortodoxia Geluk, era dono de uma
jovialidade exuberante, que se transfundia em risadas sonoras. A per-
gunta pareceu perturbá-lo. Franziu o cenho e disse por fim, em tom
de desaprovação: “Aquilo não foi bom. Nada compassivo. Magoa os
devas.” Os devas em questão pertencem a uma classe inferior de deu-
ses que controlam os fenômenos meteorológicos. Pressioná-los com
mantras, mudras e sementes de mostarda é ato de violência. Geshe-
-la, defensor da compaixão universal, não podia aceitar isso. Fiquei

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surpreso com sua presteza em criticar Yeshe Dorje, um membro da
Nyingma, a antiga escola do budismo tibetano. E por que, perguntei-
-me, o Dalai Lama — encarnação viva da piedade — tolerava a práti-
ca de um ritual que ofendia os devas?
Os lamas tibetanos tinham uma visão de mundo totalmente con-
trária àquela em que eu havia sido criado. Recebendo toda a sua edu-
cação nos mosteiros do antigo Tibete, nada sabiam das descobertas
das ciências naturais. Ignoravam por completo as modernas discipli-
nas da cosmologia, física e biologia. Também não tinham notícia das
tradições literárias, filosóficas e religiosas que floresciam fora de sua
terra. Para eles, todo o conhecimento necessário aos seres humanos
já fora ensinado séculos antes pelo Buda e seus discípulos, ficando
preservado no Kangyur e no Tengyur (o cânone budista tibetano). Ali
se aprende que a Terra é um continente triangular num vasto oceano
dominado pelo formidável monte Sumeru, em torno do qual o Sol, a
Lua e os planetas orbitam. Impulsionados pelas forças das boas e más
ações cometidas ao longo de incontáveis existências anteriores, os se-
res vão renascendo como deuses, titãs, humanos, animais, fantasmas
e criaturas demoníacas até terem a sorte de conhecer e pôr em prática
as lições do Buda, o que os capacitará a fugir do ciclo de renascimen-
tos para sempre. Além disso, como seguidores do Mahayana (o Gran-
de Veículo), os budistas tibetanos juram continuar reencarnando, a
bem de todas as criaturas, até que a última delas seja libertada. Entre
todas as religiões do mundo, acreditam que só o budismo seja capaz
de pôr fim ao sofrimento. E, entre as várias espécies de budismo, a
mais eficaz, rápida e completa é a preservada no Tibete.
Eu acreditava em tudo isso. Ou, mais exatamente: eu queria acre-
ditar. Nunca antes me deparara com uma verdade em nome da qual

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desejasse mentir. No entanto, tal como a vejo hoje, a mentira não
brotara da convicção e sim da dúvida. Fui atiçado pela ânsia de crer.
Ao contrário de alguns contemporâneos, a quem invejava, eu jamais
aceitaria incondicionalmente a tradicional visão de mundo dos bu-
distas. Nem conseguiria substituir meus próprios juízos pela sujeição
cega à autoridade de um lama “raiz” — indispensável para a prática
dos tantras superiores e único caminho, alegava-se, para obter a per-
feita iluminação nesta vida. Independentemente de quanto tentasse
ignorá-la ou racionalizá-la, aquela insinceridade continuava me im-
portunando num recesso escuro e hermético de minha mente. Pelos
critérios de meus mestres tibetanos, eu era um budista fracassado.

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