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Jacareí, SP
Prefácio
A Roda da Vida ou Roda do Devir (Bhavacakra), ocupa um lugar importante na arte religiosa
popular tibetana, sendo representada em tamanho gigante nas paredes dos templos (gompa),
usualmente no vestíbulo, bem como, em escala reduzida, em rolos pintados (tibetano: thang-ka).
A Roda da Vida é dedicada a todos os seres animados que ainda não tenham atingido o estágio
de liberação espiritual (Nirvana). Portanto, ela ilustra de uma maneira popular a essência do
ensinamento budista, as Quatro Nobres Verdades: a existência do sofrimento, sua origem e sua
causa, a cessação do sofrimento e o caminho que leva à cessação do sofrimento. De fato, estão
nela contidos três próximos ensinamentos inter-relacionados: os três básicos fatores mentais
insalutares (ou inábeis); os seis mundos ou existências; e os elos (nidânas) da cadeia duodécupla
da condicionalidade. Adicionalmente, há que se mencionar as duas interpretações coexistentes
da Roda — aceitas por todas as Escolas, exceto a mais recente delas, a Yogâcârin —, como uma
teoria de renascimento e como uma teoria de desordem mental.
Para melhor entendermos o significado simbólico da Roda e para maior clareza quando da
descrição de seus quadros pictóricos, será útil e conveniente que façamos inicialmente, e de
maneira sucinta, uma apresentação daqueles ensinamentos budistas nela contidos.
O Buda ensina que todas as coisas existentes são marcadas por três
características: (a) impermanência (anicca); (b) insatisfatoriedade ou sofrimento
(dukkha); e (c) insubstancialidade ou "não-eu" (ausência de uma essência
permanente de si próprio) (anattá).
a. Impermanência (anicca)
O termo implica que tudo o que sabemos, tanto no mundo interno quanto no
externo, encontra-se em constante estado de mudança. "Muito antes de a
Química e a Física haverem descoberto a transitoriedade e instabilidade da
matéria/energia, o Buda já se dera conta da impermanência fundamental de
todos os fenômenos — inclusive de tudo aquilo que um homem poderia chamar
de seu "eu"; o corpo e a mente, as sensações, percepções e sentimentos são
instáveis e sujeitos a mudanças."1
As ciências exatas nos ensinam que os objetos, aparentemente sólidos, não são o
que aparentam ser. Os físicos nos contam que a natureza da matéria é
extremamente complexa, sendo ela composta de diminutas partículas em
movimentação violenta, e tendo essas partículas uma realidade apenas relativa.
O mesmo pode ser dito de cada e toda célula em cada e toda coisa viva,
incluindo o homem. Essas células estão constantemente se modificando. A
velocidade de mudança nas células do cérebro e, portanto, da mente não é menos
rápida. De fato, nada no nosso mundo físico ou mental permanece o mesmo por
dois consecutivos instantes. Estabilidade real é uma ilusão, e mesmo a
estabilidade relativa, que parece prevalecer, é, quando muito, um estado
temporário de equilíbrio, passível de ser deslocado a qualquer momento. "O
universo todo está num estado de fluxo, em incessante mudança. Passagem ou
consumação condiciona nova originação, originação leva à mudança e passagem
renovadas. Não há de ser constante, somente vir-a-ser; nada é, tudo acontece. Se
existência fosse um estado permanente de ser, ela não seria vida. Esta incessante
mudança é percebida mais distintamente no nosso próprio curso de vida.
Nascimento, envelhecimento, adoecimento e morte são suas fases." 2, 3
Dukkha poderá também ser visto como uma das coisas mais fundamentais
dentro de nós, porque ela parece ser a força motivadora em tudo quanto
fazemos. Qualquer que seja a ação do corpo ou da mente que executemos, nós a
realizamos porque pensamos que nos levará a uma situação mais satisfatória.
Isto é válido para todas as nossas ações, pequenas e grandes. Se coçamos nosso
nariz é para alterar alguma coisa, para aliviar alguma condição que neste instante
não se mostra satisfatória.
Tratamos, até aqui, de conhecer a força motivadora fundamental que está atrás
da mente. Agora abordaremos a maneira pela qual nossas mentes trabalham.
Elas trabalham de acordo com o que nós chamaremos aqui de lei aparente de
causa e efeito, ações e seus resultados. Não estamos aqui preocupados se,
filosoficamente, isso é ou não é verdadeiro. Estamos, sim, preocupados com o
fato de que nós modelamos nossas vidas sobre a suposição de causa e efeito, e
toda a nossa compreensão do mundo é colorida por essa maneira de pensar.
Freqüentemente perguntamos, após algum evento, "por que isto ocorreu?", ou
"qual era a causa disto?", ou "o que fiz para merecer isto?". Todas essas
perguntas são concernentes às ações passadas tendo resultados no presente, mas
nós as fazemos também com relação às ações presentes tendo resultados no
futuro. "Se eu faço isto, aquilo acontecerá". Um jogador de xadrez faz isto o
tempo todo. Todas estas questões são baseadas no desejo de ver o que fez surgir
os resultados no presente, ou na tentativa de predizer o futuro a partir das ações
presentes. O fato de que toda esta atividade, no passado e no futuro, nos
obscurece o aqui e o agora, é omitido ou negligenciado.
Baseado nessa aparente lei de ações e resultados, o Buda ensinou que a origem
ou a causa do dukkha é desejo ou anelo. Tal como um bom médico que, após ter
reconhecido a natureza do mal, diagnostica-lhe a causa, assim Buda define a
origem da dor e sofrimento: "É a sede, que conduz ainda ao renascimento,
acompanhada do apego ao prazer, encontrando o seu prazer aqui e ali, é a sede
do desejo, a sede da existência, a sede da inexistência." (Samyutta Nikâya, V
421).
Mas, como essa ignorância origina-se? A explicação ortodoxa é que ela surge no
nascimento, como decorrência de uma vida prévia. Como vivíamos num estado
de ignorância naquela vida, nossa mente e consciência nesta presente vida são
coloridas e condicionadas por aquela ignorância, e isto continuará na vida
vindoura e na seguinte, e assim interminavelmente, a não ser que a erradiquemos
agora.
Aqui alguém poderia objetar dizendo que, embora existência não fosse puro
prazer, ela não obstante mantém de reserva suficiente alegria para uma
valorização mais positiva. De fato, o Buda de maneira alguma nega prazeres e
experiências prazerosas. Ao contrário, ele os encara como parte fixa da vida,
pois de outro modo não apareceriam tão sedutores quanto o são. Seus critérios
de julgamento são mais profundos: é da permanência que ele faz seu padrão de
verdadeira felicidade. Toda coisa alegre e querida termina em sofrimento porque
é transitória; é uma falsa felicidade, porquanto ela terá de ser contrabalançada
com tristeza e lágrimas. Quando de sua estadia em Sâvathi, a doadora do
"Mosteiro do Parque Leste", a matrona Visâkhâ, aproximou-se de Gotama numa
hora imprópria e com seus cabelos e roupas molhados (do banho ritual) para
contar-lhe da morte de sua amada neta, ele consolou a mulher lamentosa com
estas palavras: "Aquele que tem uma centena de coisas queridas, Visâkhâ, tem
uma centena de sofrimentos; aquele que tem noventa…, dez…, cinco…, duas…
coisas queridas, tem noventa…, dez…, cinco…, dois sofrimentos. Para aquele
que não tem coisa querida não há sofrimento. Aqueles, eu declaro, são sem
pesar, sem paixão e livres de desespero.
Quaisquer múltiplos pesares, tristezas e sofrimentos que haja neste mundo, estes
surgem em dependência das coisas queridas; eles não surgem quando não há
nada querido". (Udâna, VIII 8)
Como é que o dukkha surge desta situação? Em resumo, podemos dizer que
desde a infância estamos sendo constantemente condicionados pelos pais,
parentes, instituições sociais, etc. Existe uma tensão constante entre as ações
naturais que gostaríamos de empreender — mas que nos são proibidas pela
sociedade — e outras impostas pela mesma, mas que não nos permite viver em
plena felicidade. Essa tensão projeta-se na nossa mente e influencia nossa
personalidade. Todos os condicionamentos da infância vão surgir na vida adulta
e são a causa direta do dukkha."4
Finalmente, devemos compreender que falar de um ego, uma alma ou eu, é mera
convenção lingüística e não se refere a uma entidade objetiva. "Verdade" tem
diferentes níveis. Na linguagem convencional, uma pessoa é considerada como
existindo e até ter renascido após a morte, porquanto na vida diária é legítimo
falar do "eu" e de "mim mesmo" da mesma maneira que o físico tem de se
referir aos objetos como "sólidos", ainda sabendo não serem, no último caso,
sólidos. É importante compreender que tais referências são corretas somente em
termos de verdade relativa e não de absoluta.
2. Renascimento e Carma
Dado que o budismo rejeita a existência de uma alma, seria errado falar de uma
transmigração de alma. O que o budismo ensina, isto sim, é renascimento.
"Imagine uma mesa de bilhar com as três bolas. Quando se impele a primeira
bola, o impulso cinético é transferido à segunda e daquela à terceira, sem que
qualquer coisa material venha a ser transmitida da primeira à terceira bola.
Similarmente, cada forma de existência condiciona a subseqüente, que é então
considerada como seu renascimento. No entanto, nenhuma alma transmigra
através da corrente de renascimentos. Entre pessoa "A" e seu renascimento "B"
não há, nem mesmo parcialmente, identidade, mas sim uma relação de
Originação Condicionada e dependência. A pessoa "B" é contingente da
pessoa "A", nada mais."2
[…] pela cessação da ignorância ocorre o cessar das atividades intencionais; pela cessação das
atividades intencionais, o cessar da consciência; … pela cessação do nascimento cessam a
velhice e morte, o pesar, a lamentação, o sofrimento, a tristeza, e o desespero. Tal é a cessação
desta inteira massa de males".
"O próprio nome originação condicionada indica como é que a relação entre os
elos da cadeia devem ser entendidos. Esta não é dependência causal porquanto
causa é o termo técnico para uma causa que por si só, sem nenhum fator
assistente, produz um efeito. A dependência dos elos, conforme já foi
mencionado acima, é mais de condicionamento, porque cada elo é um conditio,
isto é, uma condição ao lado de outras para os elos sucessivos virem à tona."2
Entre as pinturas de caverna em Ajanta (séc. VII d.C.) está uma representação
pictórica identificada pelo Dr L.A.Waddell como sendo a Roda do Vir-a-Ser
(Bhavacakra). A forma usualmente representada no Tibet tem 6 raios. Os cinco
destinos foram aumentados para seis fazendo dos asuras, os deuses rebeldes,
carreira separada.
Dissemos antes, ao falar do renascimento e originação condicionada, que
renascimento (pessoa) B é contingente da pessoa A. Se a existência B será mais
propícia à libertação ou menos não é uma questão de acaso. Aqui, também, a
originação condicionada está em jogo. São os feitos (kamma, carma), consciente
e intencionalmente cumpridos, que determinam a qualidade da próxima forma
de existência. Ações-intenções salutares conduzem a um renascimento salutar,
ações-intenções insalutares a um renascimento insalutar. Depende de cada um
amoldar seus próprios renascimentos futuros.
Carma é uma lei natural neutra que não admite exceção ou interferência, mas do
qual, agindo concordantemente, o homem poderá se valer para obter o
renascimento desejado. Desnecessário se torna mencionar que mesmo o
renascimento mais feliz não é ainda libertação.
A resposta de Buda é psicológica. Não é a ação em si, ele explica, que determina
o futuro cármico, mas sim seu motivo, a atitude mental que a precede: não a
execução da ação, mas a ação-intenção amolda a existência futura. Suponhamos
alguém que seja impedido de executar uma ação intencionada, por
circunstâncias externas: a mera ação-intenção é suficiente para produzir o efeito
cármico correspondente. Somente aqueles feitos que a pessoa realiza sem
avidez, ódio e delusão, estarão livres de resultados cármicos. Agir mas sem
avidez pelo sucesso, livre do desejo de prejudicar qualquer um e usando a razão
— este é o caminho budista da libertação.
"Ature isto, brâmane! O amadurecimento de um feito (kamma) pelo qual tu podias ferver muitos
anos… no inferno, o amadurecimento deste feito tu agora experimentas nesta tua vida."
(Majjhima Nikâya, II 86).
Destas premissas filosóficas e religiosas o Buda deriva sua ética. Bons, isto é,
salutares, são todos aqueles tipos de conduta que enfraquecem o desejo, o ódio e
a ignorância:
Quem quer que se entregue a estes males básicos andará ao longo da Senda
Escura, que leva aos infernos e aos maus renascimentos. O outro caminho é a
Senda da Bem-aventurança, que conduz a melhores renascimentos e às alturas,
à libertação final (Nirvana). Ambas as sendas são ilustradas pelo anel que
circunda o centro do thanka, um escuro e outro claro. Na metade clara, à
esquerda, vêem-se pessoas modestamente vestidas e de aparência feliz, em
movimento ascendente; e na outra metade, escura, miseráveis nus, acorrentados
juntos, são vistos mergulhando para baixo com expressões de angústia e terror.
"Como resultado de vitórias ou derrotas relativas na sua contenda com o ego, os
seres sensitivos ascendem ou tombam dentro da esfera do Samsâra, cada
ascensão sendo sucedida por uma queda se um mau carma (ação) for adquirido
na nova existência; e cada queda sendo sucedida por uma ascensão quando o
mau carma for eliminado ou se o ser adquirir mérito. Todos estes seres
perambulam infinitamente entre os seis estados da existência."7
(II) Perto do topo do desenho, à direita, está o Buda no seu manto açafrão de
mendicante, apontando a um entendimento apropriado do Ensinamento e
conformidade com a Lei Universal como o único caminho rumo à libertação.
Em outras versões, o Buda aponta não na Roda, mas numa outra, menor e muito
bonita, com oito raios — "a roda de Asoka", que por mais de dois mil anos tem
servido como símbolo do Dharma, isto é, o ensinamento de Buda, e em outro
sentido, a Lei Universal.
Notas
1. Ven. H.Saddhatissa - O Caminho do Buda (V. bibliografia).
2. H.W.Schumann - Buddhism: an outline of its teachings and schools (London, Rider, 1976)
"O treinamento de acordo com o método de incorporação do real consiste, enquanto sentado
em meditação, em fechar os olhos e em dirigir para trás a contemplação, ponderando sobre este
corpo humano que cresce da infância à idade adulta e então à velhice e termina na morte, e
sobre cada uma das suas células que muda e é substituída por uma nova a cada segundo,
ininterruptamente, e que é, portanto, totalmente irreal: isto mostra que não há realidade de um
ego existente que possa ser evidenciado. Então o praticante deverá dirigir para o seu interior a
contemplação olhando para dentro dos pensamentos que emergem na sua mente e fluem
incessantemente; ele descobrirá que pensamentos do passado se foram, que os presentes não
permanecem e que os do futuro ainda não chegaram. Então deverá indagar a si próprio: Qual
dentre estes pensamentos é minha mente? Deste modo ele perceberá que sua falsa mente, que
assim surge e cai, é também irreal e destituída de Realidade. Gradualmente, ele tornar-se-á
familiar com esta irrealidade e sua falsa mente chegará então a um término por si mesma. Onde
a falsa mente queda, a Realidade aparece."
(Yin Shih Tsu: Meditação Experimental para a Promoção de Saúde "Ching Tso Wei Shang Shih
Yen T an"; do livro, Lu K uan Yu - The Secrets of Chinese Meditation, London, Rider).
5. Nas escrituras budistas, existem outras divisões destes agregados em 2 e 3 grupos. Assim, não
há nada absoluto ou final acerca destes cinco agregados; eles são simples classificações abstratas
usadas na análise budista da existência humana, úteis como categorias analíticas, mas eles
próprios conceitos, assim como "indivíduo" é um mero conceito, não tendo nenhuma realidade
permanente.
B.Ch.Olschak & Geshé T.Wangyal - Mystic Art of Ancient Tibet (G.Allen & Unwin, London,
1973).
Ch.Trungpa, Rinpoche - Visual Dharma: The Buddhist Art of Tibet (Shambhala, Berkeley,
1975).
J. & M.Arguelles - Mandala (Shambhala, Berkeley, 1972).
Nissim Cohen
(upâsaka Dhammasâri)