Você está na página 1de 23

VIRTUDE COMPARTILHADA: A CONVERGÊNCIA DE FORTALEZAS HUMANAS

VALIOSAS ATRAVÉS DA CULTURA E DA HISTÓRIA *

Katherine Dahlsgaard **, Martin E. P. Seligman *** e Christopher Peterson ****

Resumo: a psicologia positiva necessita estabelecer um caminho de classificação de traços


positivos, a modo de sustentáculo para a pesquisa, para o diagnóstico e para a intervenção.
Como primeiro passo em direção a essa classificação, os autores examinaram tradições
filosóficas e religiosas na China (o confucionismo e o taoismo), no sul da Ásia (o budismo e o
hinduísmo) e no Ocidente (a filosofia ateniense, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo), a
fim de obter as respostas que cada uma delas fornece a questões de comportamento moral e vida
boa. Os autores encontraram seis virtudes recorrentes nesses escritos: coragem, justiça,
humanidade, temperança, sabedoria e transcendência. Essa convergência sugere um fundamento
não arbitrário para a classificação de forças e virtudes humanas.

Palavras-chave: virtudes, fortalezas de caráter, traços positivos, cultura, psicologia positiva.

Nos últimos anos, têm-se dado passos largos no entendimento, no


tratamento e na prevenção de desordens psicológicas. Há dois manuais de classificação
amplamente aceitos que são fundamentais para esse progresso: o Manual diagnóstico e
estatístico de desordens mentais da Associação Norte-Americana de Psiquiatria (DSM-
IV; 4ª ed., 1994) e a Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial
da Saúde (ICD). As classificações consensuais são importantes porque fornecem um
vocabulário comum para pesquisadores e clínicos de base, possibilitando que haja
comunicação entre grupos profissionais e com o público em geral.

*
Artigo publicado em Review of General Psychology, 2005, vol. 9, nº 3, p. 203-213. Tradução para o
português de Frederico Bonaldo.
**
University of Pennsylvania.
***
University of Pennsylvania.
****
University of Michigan.
2

O DCM-IV e o IAC descrevem muito do que há de errado com as pessoas.


Mas e sobre aquelas coisas que estão certas? Há muito que a psicologia tem ignorado a
excelência humana, em parte porque nos falta um ponto de partida: uma classificação
empiricamente relatada e consensual das virtudes humanas. Não existe nada comparável
ao DSM-IV e ao ICD acerca das fortalezas humanas. Quando os psicólogos falam sobre
saúde mental, bem-estar ou equilíbrio, falam um pouco mais que da ausência de
doenças, de aflições e de desordens, como que se ficar aquém de critérios de diagnóstico
devesse ser a meta pela qual todos nós nos esforçamos (cf. JAHODA, 1958).

Podemos amaldiçoar a escuridão ou acender uma vela. Neste artigo, a nossa


meta é estender o que o DSM-IV e o ICD começaram, propondo uma fundamentação
para o estudo do que está certo em relação às pessoas, mais especificamente as
fortalezas de caráter que contribuem para a realização e, por isto, possibilitam a vida
boa (PETERSON e SELIGMAN, 2004). Seguimos o exemplo do DSM-IV e do ICD ao
propormos um esquema de classificação. A diferença crucial é que o nosso campo não é
a doença psicológica, mas a força psicológica.

A tarefa de propor uma lista exaustiva de virtudes é tão fácil que isto tem
sido feito centenas de vezes. Filósofos morais, teólogos, legisladores, educadores e pais
têm ideias acerca daquilo que significa caráter, e poucos resistiram à tentação de
articular uma lista definitiva das virtudes que constituem a vida p. 204 => bem vivida. A
principal objeção a esquemas prévios de classificação é que eles ficam aquém de serem
universais e que, de fato, são idiossincráticos, culturalmente circunscritos e carregados
de valores tácitos. Em suma, o argumento típico é de que não há universais quando se
trata da virtude.

Mas talvez haja algumas virtudes e valores ubíquos que podem ser
identificados quando os procuramos no nível adequado de abstração. Talvez existam
algumas virtudes tão amplamente reconhecidas, que um veto antropológico (“A tribo
que estudo não tem essa!”) seria mais interessante do que condenatório. Assim,
empreendemos uma pesquisa histórica com dois propósitos complementares. O
primeiro foi uma busca e uma revisão literárias das tentativas mais antigas e influentes
de listar virtudes cruciais para o desenvolvimento humano. A segunda meta foi
empírica: os catálogos de virtudes dos pensadores antigos convergem?
Independentemente da tradição e da cultura, há certas virtudes que são valorizadas
amplamente?
3

Procedimento

Limitamos a pesquisa a tradições antigas reconhecidas pelo seu impacto


prolongado na civilização humana. Na sua pesquisa sobre as filosofias mundiais, Smart
(1999) assinalou a China, a Ásia meridional e o Ocidente como as tradições de
pensamento de influência mais abrangente na história humana. Seguimos o caminho de
Smart e concentramo-nos especificamente no confucionismo e no taoismo, na China; no
budismo e no hinduísmo, na Ásia meridional; e na filosofia ateniense, no judaísmo, no
cristianismo e no islamismo, no Ocidente. Restringimos o nosso exame a textos escritos
destas tradições. Com relutância, excluímos outras culturas intelectualmente férteis, em
que faltam textos legíveis disponíveis.

Dentro das tradições incluídas, procuramos discussões expositivas


consensualmente reconhecidas como as mais antigas, as mais influentes ou,
preferivelmente, como ambas. Buscamos os autores que desenvolveram um catálogo de
maneira deliberada; de modo particular, um catálogo com início e término claros na
forma de enumerar as virtudes explicitamente (por exemplo, os Dez Mandamentos e o
Nobre Caminho Óctuplo).

Quando havia mais de uma possibilidade, escolhemos aquela que refletia os


aspectos mais cruciais da tradição estudada. Assim, por exemplo, não incluímos as
ideias de Pantanjali (1979) sobre as virtudes tal como delineadas em Os Yoga-Sutra.
Embora esse seja o texto basilar da sexta escola ortodoxa (ioga) da filosofia hinduísta,
as virtudes delineadas em Bhagavad Gita (THADANI, 1990) são mais inclusivas e mais
bem conhecidas. Por vezes, nenhum texto específico mostrou-se como o mais
representativo, de modo que incluímos mais de um texto por tradição.

Quando não pudemos encontrar uma exposição deliberada ou concisa sobre


a virtude dentro de uma tradição, optamos por estudar o seu texto mais conhecido,
fontes secundárias respeitadas e, a partir daí, generalizamos. Por exemplo, Confúcio não
desenvolveu uma lista clara de virtudes cruciais em nenhuma parte dos Analectos
(1992); contudo, ele refere-se a virtudes do começo ao fim desta obra. Uma vez que este
texto é tão unanimemente associado à tradição confuciana, concentramos a nossa
investigação nele.
4

Os textos e os seus catálogos de virtudes foram reunidos numa ordem mais


ou menos cronológica. Por vezes, as virtudes nomeadas foram definidas vagamente, de
modo que se consultaram fontes secundárias e colegas especialistas, a fim de
determinarmos o significado de cada termo dentro do seu contexto cultural. A análise
envolveu condensar cada lista por meio da localização de virtudes similares do ponto de
vista temático e da classificação delas de acordo com uma virtude central que se
mostrasse como tal de maneira patente. Com a expressão “virtude central” referimo-nos
a um ideal abstrato que abrange um número de outras virtudes mais específicas, as quais
convergem para a categoria hierárquica mais alta passível de ser identificada de modo
confiável. Por exemplo, a virtude central da justiça é um termo abstrato representativo
dos ideais de outras virtudes específicas captadas por prescrições, leis e regras
procedimentais dirigidas à retidão (BOK, 1995). Dizer que, dentro de uma tradição, as
virtudes particulares convergem para uma virtude central não significa que todas as suas
características alinham-se perfeitamente; significa antes que elas exibem uma
similaridade coerente por terem mais características comuns que características
divergentes (YEARLY, 1990). As virtudes individuais que não puderam – sem alargá-
las ou comprimi-las – ser classificadas dentro de uma categoria central de virtude foram
consideradas diferentes. Além disso, igualmente, dizer que certas virtudes transversais
a tradições convergem para uma virtude central não significa que descobrimos uma
equivalência precisa de determinada virtude entre as culturas. Certamente, uma
abstração como a da justiça significa ligeiramente coisas diferentes – e é valorizada por
razões de algum modo diferentes – de uma cultura para outra. Reiteramos que aquilo
que procuramos foi uma similaridade coerente, isto é, que o significado da hierarquia
mais alta por trás de uma determinada virtude central se alinhasse melhor com as suas
equivalentes transculturais do que com alguma outra virtude central (e.g., há exemplos
da justiça confuciana que têm mais a ver com exemplos da justiça platônica do que com
exemplos da sabedoria platônica). O que identificamos foram casos em que as
similaridades transversais às culturas prevaleceram sobre as diferenças; e reiteramos que
quando a virtude central de uma determinada tradição não tinha uma equivalente
transcultural patente, ela foi examinada separadamente na análise final.
5

Convergência trans-histórica e transcultural

A nossa revisão literária revelou uma similaridade quantitativa


surpreendente entre as culturas e aponta fortemente para uma convergência histórica e
transcultural de seis virtudes centrais: coragem, justiça, humanidade, temperança,
sabedoria e transcendência (vide Tabela 1); lembramos os leitores de que a nossa meta
era discernir amplas similaridades entre tradições, e não argumentar a favor de
equivalências semânticas e culturais exatas. Vejamos como cada uma dessas seis
virtudes centrais é evidente nas diferentes tradições que pesquisamos.

Tabela 1
Virtude centrais
Virtude Descrição
Coragem Forças emocionais que envolvem o exercício da vontade para alcançar metas perante obstáculos,
externos ou internos; os exemplos incluem a valentia, a perseverança e a autenticidade (honestidade).
Justiça Forças cívicas que sustentam a vida comunitária saudável; os exemplos incluem a retidão, a liderança
e a cidadania (trabalho conjunto).
Humanidade Forças interpessoais que envolvem “cuidar e tornar-se amigo” dos outros (TAYLOR ET ALII, 2000);
os exemplos incluem o amor e a bondade.
Temperança Forças que protegem contra os excessos; os exemplos incluem o perdão, a humildade, a prudência e
o autocontrole.
Sabedoria Forças cognitivas que envolvem a aquisição e o uso do conhecimento; os exemplos
incluem a criatividade, a curiosidade, o juízo e a perspectiva (proporcionar conselho aos outros).
Transcendência Forças que estabelecem conexões com o universo mais abrangente e que, por isto, proporcionam
sentido; os exemplos incluem a gratidão, a esperança e a espiritualidade.

Virtudes confucianas

Os ensinamentos de Confúcio (551-479 a.C.) são os mais influentes na


história do pensamento e da civilização chinesas. A sua moral e a sua filosofia política,
com o seu enfoco prescritivo na educação e na liderança, tornou-se a religião oficial da
China no século II a.C. e, após isto, tornou-se estudo obrigatório durante 2.000 anos
(SMART, 1999).

Os seus ensinamentos foram registrados principalmente na forma de


aforismos, a maior parte coligida de forma confiável nos Analectos (CONFUCIUS,
1992). Os seus comentários sobre as virtudes estão espalhados pelos Analectos e não
6

são apresentados como um catálogo formal. No entanto, estudiosos concordam que há


quatro ou cinco virtudes centrais assumidas nos princípios do confucionismo: jen
(traduzida variadamente como humanidade, sensibilidade humana ou benevolência), zhi
(sabedoria ou perspicácia) e, possivelmente, xin (veracidade, sinceridade ou boa fé)
(CLEARY, 1992; DO-DINH, 1969; HABERMAN, 1998a).

A humanidade é a virtude mais exaltada por Confúcio. Ao longo dos


Analectos, este sentimento central permeia todos os outros. Por exemplo, o ideal
confuciano de dever (yi) não prescreve a aquiescência humilde de muitos a uns poucos
desmerecedores e poderosos; denota antes o respeito mútuo que as pessoas têm de ter
umas com as outras, começando pelo relacionamento familiar e estendendo-se ao estado
(HUANG, 1997).

O preceito confuciano da boa etiqueta (li) também se entende melhor como


uma diretriz de tratar os outros com sensibilidade; Confúcio (1992, p. 127) escreveu:
“Dominar-se e lançar mão de cortesia é humanidade” (12:1). Assim, o cultivo da
cortesia e da deferência no comportamento cotidiano do indivíduo equivale ao cultivo
da humanidade, porque os modos e a deferência dizem mais respeito à consideração
para com os sentimentos alheios do que à adesão estrita a regras e a usos cerimoniais
vazios. A sabedoria confuciana (zhi) é mais bem entendida como a aplicação funcional
de um intelecto informado à humanidade, à justiça e à etiqueta, ao passo que a
veracidade (xin) é aquilo que se exemplifica pela fidelidade aos ideais das quatro
virtudes precedentes (CLEARY, 1992).

Confúcio não mencionou a temperança de modo explícito, mas a


importância que dá à vida humanizada encontra-se fortemente subentendida. Presume-
se que a importância conferida a ritos envolve respeito pela propriedade e pelo
autocontrole tanto quanto pela humanidade. Tanto nos seus afazeres pessoais como nos
Analectos, Confúcio promoveu a modéstia e o autocontrole. Nos Analectos, elogia
como virtuosos aqueles que vivem de modo simples (6:10), abstidos de ostentações de
autoengrandecimento (6:14) ou da extravagância (3:4), e situa o trabalho árduo acima
da recompensa (6:22).

Outra virtude central não nomeada explicitamente é a transcendência. Os


chineses não acreditavam num legislador divino; e o enfoque filosófico p. 206=> de
Confúcio é claramente os aspectos seculares e racionais do funcionamento humano, e
não o seu aspecto cósmico ou espiritual (5:13 e 11:12). Isto não significa que Confúcio
7

ignore completamente o transcendente ou que o relegue à insignificância (HALL e


AMES, 1987). Por exemplo, a excelência na conduta moral coaduna-se com o status do
transcendente: Confúcio evoca o paraíso ao discutir a origem da virtude (7:23) e exorta
a reverência pelos sábios cuja virtude perfeita é modelada de acordo com o divino (6:17
e 16:8; veja-se também HABERMAN, 1998a).

Virtudes taoístas

O criador do taoismo, Lao Tsé (aproximadamente, 570 a.C – ?) é tido como


contemporâneo de Confúcio, embora haja algum debate acerca de se ele foi um só sábio
ou vários, e de se a obra primária a ele atribuída, o Tao Te Ching (LAO TZU, 1963),
produziu-se muito depois da sua morte (GRAHAM, 1998; KOHN, 1998; LYNN, 1999).
O seu princípio central é a transcendência: o Tao ou Caminho, que governa os céus e a
terra, é indescritível, incognoscível e até mesmo inominável (LAO TZU, 1963, cap. 1).
Também é intraduzível: O Caminho (o seu ideograma chinês retrata uma cabeça em
movimento) refere-se simultaneamente a direção, movimento, método e pensamento, e
não há uma palavra única que represente a profundidade do seu significado total. Além
disso, é o criador de todas as coisas, inclusive da virtude (Te), mas não age: O Caminho
é espontâneo e sem esforço (CHENG, 2000; WONG, 1997).

Muitas vezes, o texto do Tao Te Ching é críptico; e as tentativas –


particularmente as ocidentais – de interpretar os seus versos nunca podem ser definitivas
(CLARKE, 2000; LAFARGUE, 1998). Assim como Confúcio, Lao Tsé tentou usar a
sua filosofia para reformar os governantes e melhorar a sociedade, mas não enfatizou a
virtude como interação social (CHENG, 2000). Aquilo em que Lao Tsé mais acreditava
era na virtude da “naturalidade” ou “espontaneidade” (tzu-jan), ou aquela qualidade de
ser sem esforço. Os estudiosos tendem a concordar que a naturalidade é a virtude
cardeal do taoismo, sendo a inação o método para realizar a naturalidade na vida social
(CHENG, 2000). O ponto é que Lao Tsé estimava outras virtudes, mas apenas se elas
surgissem da espontaneidade, que era a mais alta. No Tao Te Ching, mais adiante, ele
cita explicitamente como importantes as virtudes da humanidade, da justiça e da
correção, mas somente após (ou na presença de) esta mais alta (cap. 38).

Da mesma forma, a sabedoria é defendida tanto para os governantes como


para as pessoas do povo, mas apenas se esse conhecimento é amostra verdadeira do
8

Caminho, e não uma amostra superficial, usada para a artimanha; segundo Lao Tsé
(1963), um governante sábio é “um homem de sutileza [, mas] com profunda
perspicácia” (cap. 15); ele não “insiste nos seus próprios pontos de vista, de modo que
tem uma visão clara”, nem “se justifica, de modo que vê a verdade” (cap. 22; vejam-se
também os caps. 3, 19, 33 e 49). E a temperança, em termos tanto de humildade como
de contenção de buscar os falsos deuses da riqueza material e do privilégio, também é
defendida uma e outra vez: “Quem se torna arrogante com a riqueza e com o poder […]
semeia as sementes do seu próprio infortúnio” (cap. 9); “quem se gaba das suas próprias
conquistas prejudica a sua credibilidade […] quem é arrogante não experimenta
crescimento algum em sabedoria” (cap. 24); “quem conhece a glória e mantém a
humildade […] é suficiente na virtude eterna” (cap. 28).

Virtudes budistas

O budismo é uma tradição filosófico-religiosa de grande variedade e de


longo alcance; hoje, os seus princípios e práticas estendem-se da Ásia meridional –
lugar onde nasceu – à China, ao Tibete, à Coreia, ao Japão, à Tailândia, à Indonésia e a
outros lugares. No entanto, a origem de todos os ensinamentos remonta-se ao Buda
(563?–483? a.C.) ou “Iluminado”, que viveu na mesma época de Confúcio e seis
séculos antes de Jesus. Os textos canônicos descrevem a sua renúncia à sua vida
tradicional e confortável para procurar o fim do sofrimento crônico da vida, da morte e
o renascimento (samsāra). Após anos de viagem, ascetismo e meditação iogue, o Buda
deparou com o caminho da iluminação, com o nirvana: o destino derradeiro da
existência, o estado de êxtase ocasionado por uma supressão do eu e dos seus desejos
(BHATT, 2001). O Buda acreditava que, com o tipo certo de prática, todos poderiam
atingir o nirvana, e passou o resto da sua vida ensinando às pessoas o caminho para ele
(DUTT, 1983).

Se há um catálogo fundamental de virtudes no budismo clássico este é o


Nobre Caminho Óctuplo, um subconjunto da doutrina mais abrangente das Quatro
Nobres Verdades (ārya satyāni) que o Buda pregou no seu primeiríssimo sermão. As
Quatro Nobres Verdades são: (1) a vida é sofrimento; (2) a causa deste sofrimento é o
“pecado de nascimento” de apetite ou desejo; (3) o sofrimento só termina p. 207 => no
nirvana, na extinção do desejo; e (4) só se pode atingir o nirvana quando se segue o
Nobre Caminho (ou Caminho do Meio), uma estratégia de oito pontas para contrariar a
9

tendência inata em direção ao desejo. O Nobre Caminho Óctuplo, por sua vez, evoca a
noção de perfeição ou correção no (1) entendimento, (2) no pensamento, (3) no falar,
(4) na ação, (5) na subsistência, (6) no esforço, (7) na atenção plena e (8) na
concentração (FOWLER, 1999; veja-se também CARTER e PALIHAWADANA,
2000).

Um catálogo de virtudes budista posterior é composto por aquelas que se


conhecem como as Cinco Virtudes ou Preceitos (pānca-sīla). Trata-se de abstenções,
cantadas ritualmente, de (1) causar dano a coisas viventes, (2) de tomar aquilo que não é
dado (roubo ou fraude), (3) de condutas equivocadas referentes aos prazeres dos
sentidos, (4) do discurso falso (mentir) e (5) de estados de inconsciência decorrentes de
bebidas alcoólicas ou drogas (HARVEY, 1990). Podem-se notar noções de humanidade
e de justiça no primeiro, no segundo e no quarto preceitos, e diretivas fortes relativas à
temperança ou autocontenção no terceiro e no quarto preceitos.

Por fim, há as quatro Virtudes Universais (apramāna, também conhecidas


como “incomensuráveis”) do budismo: benevolência (maitrī), compaixão (karunā),
alegria (muditā) e equanimidade (upeksā; veja-se NAGAO, 2000). Estas virtudes
também são mencionadas em vários textos canônicos; dizem respeito a aspectos
práticos (enquanto opostos a aspectos teóricos) do budismo e são claras defesas da
humanidade.

Ao enfatizar a não-dualidade e a iluminação, o budismo é tradição


francamente transcendente. Como resultado do seu princípio fundamental da
impermanência de todas as coisas, provavelmente frustra os esforços hermenêuticos
ocidentais. Armstrong (2001) alertou contra a interpretação da seção do Caminho
Óctuplo relativa à ação como uma espécie de coletânea de diretrizes morais; fazê-lo
seria obscurecer o ensinamento budista (isto é, o de que a adesão voluntária a estes
preceitos ajuda a remover entraves para a claridade e para a iluminação) com noções
ocidentais de reverência em face de um poder mais alto. Também é importante fazer
notar que as virtudes budistas não são entidades metafisicamente estáveis (porque não
há entidades estáveis no budismo), como ocorre em muitas tradições; elas são antes
tendências de pensamento ou de comportamento concebidas para pôr fim ao apetite.
10

Virtudes hinduístas

A coleção de textos sagrados conhecida como os Upanishads trata de


aspectos espirituais e metafísicos do hinduísmo; o mais antigo desses textos parece
datar do século sétimo ou sexto antes da era cristã, pouco antes do surgimento do
budismo. O mais antigo, Brihadaranyaka Upanishad, elucida alguns dos princípios
teológicos centrais do hinduísmo antigo e moderno: o princípio unificador do brâman, o
poder absoluto sagrado e o criador do universo; a noção associada da interconexidade
de todas as coisas, isto é, de como tudo remonta ao brâman em última instância; e o
ciclo do renascimento, que advém da mescla do eu com o brâman (HABERMAN,
1998b; LEAMAN, 1999). O hinduísmo e o budismo divergem quanto à noção de eu: na
tradição mais antiga, o eu é eterno, universal e indistinguível do brâman; na tradição
mais recente, não há qualquer eu permanente nem criador final (HARVEY, 1990).

O hinduísmo enfatiza as virtudes pessoais, como a abnegação e a renúncia;


estas virtudes promovem o automelhoramento na vida presente ou um potencial de
salvação ou de alcance de uma casta mais alta na próxima. Consequentemente, um
catálogo de virtudes hinduístas, tal como exposto no texto sagrado do Bhagavad Gita
(THADANI, 1990), está entrelaçado com noções de casta. Esse texto descreve uma
sociedade estratificada composta de brâmanes (aristocratas instruídos), xátrias
(soldados), vaixás (trabalhadores agrícolas e pequenos comerciantes) e sudras
(trabalhadores servis). Cada uma das quatro castas diferencia-se pelas virtudes
características exibidas pelos seus membros. A espiritualidade do brâmane mostra-se na
penitência, no autocontrole, na paciência, na pureza, na retidão, no conhecimento, na
experiência e na fé; as qualidades atribuídas à casta militar incluem a valentia, a
destreza, a glória, a fortaleza e a caridade (generosidade); e as virtudes do devido
desempenho laboral são atribuídas às castas mais baixas – espera-se pouco dessas
pessoas nas suas vidas presentes do ponto de vista das conquistas espirituais e
intelectuais (THADANI, 1990).

Com a sua ênfase no melhoramento pessoal, o hinduísmo ecoa o budismo,


mas contrasta nitidamente com a crença confuciana (e, mais tarde, com a ateniense) na
virtude como cidadania. Ainda que os seus significados possuam certa especificidade
cultural, as virtudes centrais estão tematicamente presentes na tradição hinduísta.
Vejamos a sabedoria: embora o ideal hinduísta (e também o budista) de alcance do
conhecimento transcendental do eu não seja diretamente comparável com a noção
11

confuciana da p. 208 => importância da sabedoria adquirida por meio da educação e da


experiência, o tema do alcance de um conhecimento mais alto é central em todas as
tradições. A transcendência, tal como evocada pelo conceito de brâman, encontra-se
difundida ao longo do Bhagavad Gita. E exemplos de justiça (retidão), coragem
(valentia), temperança (comedimento) e humanidade (caridade) aparecem como
virtudes atribuídas a castas específicas. Note-se também que o conceito de justiça
entrelaça-se com a crença hinduísta de que as ações numa vida ajudam a determinar a
casta a que se pertencerá na próxima. O fato de o texto atribuir virtudes diferentes para
castas diferentes não argumenta a favor da não ubiquidade dentro desta cultura; é difícil
imaginar que a cultura hinduísta sustente a bravura para os soldados e a covardia para
todos os demais.

Virtudes atenienses

O primeiro catálogo ocidental das virtudes principais foi articulado por


Platão (427-347 a.C.) na República, a sua grande obra sobre a sociedade humana ideal.
Nela, Platão, usando Sócrates como o seu porta-voz, propõe a sabedoria (sophia), a
coragem (andreia), o autodomínio (sophrosyne) e a justiça (dikaiosynê) como as quatro
virtudes centrais da cidade ideal (1968, IV, 427e). Ele argumenta que estas quatro
qualidades compõem uma hierarquia de virtudes cívicas baseadas na classe social,
ancorada na estrutura da alma individual (IV, 441c). Isto é, a divisão desejável das
virtudes cívicas – a sabedoria pertence à classe governante e a coragem, à classe militar
– é espelhada no funcionamento saudável da psicologia individual. A alma tem as suas
divisões e a cada uma delas pertence uma virtude: a sabedoria é exercida pela razão, a
coragem é exercida pela parte “briosa” e o autodomínio é imposto ao apetite. Tanto no
caso cívico como no individual, há justiça (ação moral) quando cada divisão leva a cabo
a tarefa a ela atribuída (IV, 443d-e; veja-se JOHANSEN, 1991/1998). Esta visão
platônica da virtude é comparável à noção hinduísta já delineada: as virtudes são
categorizadas de acordo com estratos profissionais e de classe social.

Na Ética a Nicômaco, Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, deu


continuidade ao argumento de que o comportamento virtuoso é uma prática social
exercida por um cidadão de uma cidade ideal (2000, V, I, 1129a). Para Aristóteles, a
virtude é uma habilidade adquirida que se aprende por meio de tentativa e erro. A isto se
relaciona a sua caracterização da virtude conhecida como a doutrina do meio: a pessoa
12

depara com uma situação e, fiando-se na razão, na experiência e no contexto, seleciona


um curso de ação entre dois extremos, um de deficiência e outro de excesso. O meio
entre esses dois extremos é virtude (1107a). Por exemplo, a generosidade é o meio entre
o desperdício e a mesquinhez (1120a); a coragem é meio entre a covardia e a
temeridade (1116a).

A lista aristotélica de virtudes inclui as quatro originais de Platão (coragem,


justiça, temperança e sabedoria) e outras que Aristóteles acrescenta, como a
generosidade, a sagacidade, a amizade, a veracidade, a magnificência e a
magnanimidade ou grandeza de alma (ARISTOTLE, 2000, IV). As duas últimas podem
soar estranhas ao leitor moderno; a magnificência tem a ver com gastar liberalmente, de
um modo refinado, com itens honrosos, tais como o sacrifício e os barcos de combate
(IV, II); a grandeza de alma refere-se a considerar a si mesmo como digno de grandes
coisas, particularmente da honra (IV, III).

Nem Platão nem Aristóteles nomeiam a transcendência como uma virtude.


Mas, tal como ocorre com Confúcio, a noção de transcendência como um bem crucial
permeia as suas obras. Na República, Platão descreve como a cidade ideal seria
governada. Os filósofos, cuja constituição virtuosa interna os põe acima de interesses
egoístas, devem governar. Mas ele admite que esse estado não se realiza na terra, de
modo que o homem mortal deve olhar para os céus para encontrar o seu modelo (IX,
592a-b). Aristóteles evoca a transcendência quando discorre sobre a relação entre
virtude e felicidade (eudaimonia). Para ele (ARISTOTLE, 2000, p. 194), a felicidade é
“a atividade de acordo com a virtude” (X, VII, 1177a). No último livro da Ética a
Nicômaco, Aristóteles diz-nos que, entre todas as virtudes, a sabedoria é a mais perfeita
e que o exercício dela – a contemplação – constitui a felicidade perfeita. “Então, se o
intelecto é algo divino comparado ao homem, a vida de acordo com ele também será
divina comparada à vida humana” (ARISTOTLE, 2000, X, VII, 1177b, p. 194).

Da mesma maneira, a humanidade (gentileza, amor) nunca foi


especificamente nomeada como virtude em nenhum dos relatos atenienses. No entanto,
as noções de humanidade compartilhada, da importância da amizade, de generosidade e
atos de caridade, de proporcionar prazer aos outros ao invés de dor, estão espalhadas ao
longo de ambas as obras.
13

p. 209=>

Virtudes cristãs

As Sete Virtudes Celestiais, a enumeração cristã clássica das forças


humanas, estão descritas na Summa theologiae (1273/1989) de Tomás de Aquino
(1224-1274). Em razão de essa obra ser celebrada como uma interpretação bem
sucedida da filosofia (pagã) aristotélica, falamos desse texto antes de falarmos dos
textos judaicos.

No seu catálogo de virtudes, Tomás de Aquino suprimiu todos os


acréscimos de Aristóteles em relação a Platão. Construiu a sua lista retendo as virtudes
cardeais da temperança, da coragem, da justiça e da sabedoria, e acrescentando as três
virtudes teologais propostas por São Paulo: fé, esperança e caridade (ou amor). Tomás
argumentou em favor de uma organização hierárquica das virtudes. Entre as virtudes
cardeais, a sabedoria é a mais importante; mas as virtudes transcendentes da fé e da
esperança são mais importantes que ela; e, de todas as sete, a caridade (amor) reina
como suprema. Note-se que dentro das Sete Virtudes Celestiais, Tomás de Aquino
enumera aquelas que acreditamos serem as seis virtudes centrais: ele apresenta as quatro
virtudes cardeais pelos seus nomes, evoca a transcendência por meio das virtudes da fé
e da esperança, e evoca a humanidade através da virtude da caridade.

Virtudes judaicas

Na Bíblia hebraica, há duas seções particularmente concernentes às virtudes


estimadas pela cultura judaica: o relato dos Dez Mandamentos recebidos por Moisés, no
Êxodo, e os dois livros dos Provérbios, que fornecem instruções específicas sobre as
consequências das virtudes e dos vícios. Os Dez Mandamentos é uma lista de “tu deves”
e de “tu não deves” da qual podem ser tiradas conclusões acerca das virtudes
sustentadas nessa tradição. Os Mandamentos proíbem o politeísmo, a idolatria, tomar o
nome de Deus em vão, o assassinato, o adultério, o roubo, a mentira e a cobiça; e ordena
que o sábado seja santificado e que os pais sejam honrados (Êxodo 20: 1-17, Revised
Standard Version). A justiça está subentendida nas proibições do assassinato, do roubo
e da mentira; a temperança, nas relativas ao adultério e à cobiça; e a transcendência
encontra-se na origem divina dos mandamentos.
14

O intuito principal dos Provérbios era transmitir instruções sábias à


juventude judaica sobre comportamento moral e religioso. As linhas iniciais do primeiro
livro dos Provérbios são uma chamada à edificação e são muito claras ao identificar as
virtudes estimadas pelo judaísmo – por exemplo, sabedoria, justiça e prudência. Os
livros II e IV dos Provérbios são atribuídos a Salomão e tratam especificamente do
comportamento virtuoso (e também de admoestações contra os vícios). Muitas das
máximas ainda são bem conhecidas (por exemplo, “Um homem que não sabe dominar-
se é como uma cidade desmantelada e sem muralhas”). Os versículos dos Provérbios
são abundantes e estimulam muitas virtudes; dentre elas, a integridade (coragem); a
retidão, a liderança justa e a fidedignidade (justiça); o amor, a benevolência e a
gentileza (humanidade); a diligência, a prudência, a humildade e o comedimento
(temperança); a esperança e o temor-amor a Deus (transcendência); e o entendimento, o
conhecimento e o respeito às instruções recebidas (sabedoria).

Virtudes islâmicas

As crenças e práticas centrais do islamismo tomaram forma durante e pouco


depois da vida de Maomé (570-632 d.C.). As revelações que o anjo Gabriel comunicou-
lhe, registradas em 114 capítulos do escrito sagrado conhecido como Corão
(“recitação”), fundam a pretensão de Maomé de ser o sucessor de Jesus e o último dos
profetas. As revelações também assentaram as bases para o seu ensinamento novo, que
rapidamente transformou-se na fé islâmica organizada (LEAMAN, 2002).

Embora difira do judaísmo e do cristianismo em pontos cruciais, o


islamismo foi influenciado por estas e outras religiões, e possui alguns dos valores delas
(MAHDI, 2001). Acredita-se que as ideias apresentadas no Corão germinaram a
tendência para o pensamento filosófico; por sua vez, considera-se que a principal
influência sobre o desenvolvimento da filosofia islâmica são os gregos, ainda que com
algumas tensões indianas (DUNLOP, 1971).

A filosofia islâmica distingue-se pela inclusão e importância central de Deus


(LEAMAN, 2002). Mahdi (2001) escreveu que a “atitude singular” que tem
caracterizado historicamente a comunidade islâmica é a “gratidão pela revelação e pela
lei divina” (p. 17), de modo que não é de surpreender que o transcendente exerça um
15

papel central e poderoso na maioria dos primeiros textos filosóficos, com a exceção do
seguinte.

Al-Farabi (870-950 d.C.) distingue-se como o “primeiro lógico e metafísico


destacado do Islã” (FAKHRY, 1983, p. 107). Ele também é p. 210 => conhecido pelas
suas numerosas obras interpretativas da filosofia de Platão e Aristóteles, e o seu
catálogo de virtudes mais conciso, apresentado em Fusul al-Madani (Aforismos do
estadista; ALFARABI, 1961) é altamente reminiscente do deles. Embora esse catálogo
seja inusual por causa da sua relativa omissão do divino, inclui-se nele o tópico do
tratamento das virtudes por parte de Al-Farabi em razão de este ser geralmente
considerado o fundador da filosofia islâmica.

O Fusul al-Madani é composto de 96 aforismos que tratam amplamente da


saúde da alma. Especificamente, Al-Farabi (1961) descreve o governo que melhor nutre
a alma individual na sua busca por perfeição. Esta também é uma obra claramente
política; Al-Farabi não evoca o profeta especificamente e raramente menciona a
revelação e a filosofia; o seu foco é antes a cidade-estado, e ele menciona e descreve
constantemente as atividades do cidadão e do governante ideais (BUTTERWORTH,
2001).

Muito do catálogo de Al-Farabi (1961) é familiar: a justiça na cidade-estado


é uma preocupação central e a virtude é o caminho do meio entre dois extremos, o que
ecoa a doutrina aristotélica do meio (Aforismos 61-67). Al-Farabi também tomou
emprestado dos atenienses a noção da divisão da alma: a alma está dividida nas partes
racional e apetitiva, e o exercício de cada uma delas constitui as correspondentes
virtudes racionais e morais (Aforismos 8 e 9).

Parece que as virtudes da primeira categoria são as virtudes pessoais de


contemplação, ao passo que as da segunda são as virtudes sociais, necessárias no
relacionamento com os outros. Aquelas incluídas na categoria racional são “a sabedoria,
o intelecto, a engenhosidade, a vivacidade mental e o entendimento excelente”; aquelas
da categoria ética são “a moderação, a coragem, a liberalidade (generosidade) e a
justiça” (Aforismo 8). Vemos, assim, uma repetição das virtudes platônicas, com o
acréscimo de uma virtude de humanidade central (a generosidade) que se situa no
mesmo patamar das restantes. Apesar da sua omissão específica do profeta, a
transcendência está presente no relato de Al-Farabi (1961), dada a sua afirmação de que
16

a religião e a filosofia podem ser harmonizadas, e de que o exercício da virtude é um ato


espiritual em si mesmo (por exemplo, Aforismos 68, 81, 86, 87 e 94).

Tabela 2
Convergência das virtudes
Tradição Coragem Justiça Humanidade Temperança Sabedoria Transcendência
Confucionismo E E T E T
Taoísmo E E E E T
Budismo E E E T E
Hinduísmo E E E E E E
Filosofia ateniense E E E E E T
Cristianismo E E E E E E
Judaísmo E E E E E E
Islamismo E E E E E E
Nota: E = explicitamente nomeada; T = tematicamente subentendida.

Conclusão

O estímulo para este projeto foi a nossa tentativa de criar uma classificação
consensual das forças humanas, evitando a crítica de que qualquer lista específica que
propuséssemos fosse cultural ou historicamente idiossincrática (PETERSON e
SELIGMAN, 2004). A lição primária que aprendemos do nosso exercício histórico é a
de que há convergência através do tempo, do espaço e das tradições culturais acerca de
certas virtudes centrais. Uma vez que uma tradição contagiou outra e dado que um
catálogo inspirou e então abriu caminho para o seguinte, as virtudes centrais particulares
voltavam a apresentar-se, numa espécie de agradável tenacidade. Enquanto outras
apareciam em algumas listas e depois se perdiam, certas virtudes tinham um poder de
permanência real, tanto explícito como subentendido.

Deixando de lado as diferenças entre virtudes e valores, esses traços gerais


estão em consonância com os esforços correspondentes na filosofia e na psicologia de
identificar valores “universais” (vejam-se BOK, 1995 e SCHWARTZ, 1994). Eles
também coincidem com as listas contemporâneas de traços que predispõem os
indivíduos à boa vida (psicológica), chame-se saúde mental positiva, bem-estar
17

psicológico, virtudes psicossociais, autorrealização, maturidade psicossocial ou


felicidade autêntica (PETERSON e SELIGMAN, 2004). Eles também estão conformes
com os traços considerados mais desejáveis num parceiro amoroso (BUSS, 1989) ou
num amigo (NATIONAL OPINION RESEARCH CENTER, 2001), com diferenças
individuais identificadas como conducentes à excelência nos ambientes de trabalho
contemporâneos (BUCKINGHAM e CLIFTON, 2001) e com as virtudes celebradas nos
séculos mais recentes pelos filósofos ocidentais (COMTE-SPONVILLE, 1995/2001).

As advertências possuem uma ordem. Primeiramente, faz sentido perguntar


se as seis virtudes centrais são igualmente ubíquas. Provavelmente, não (veja-se a
Tabela 2). A justiça e a humanidade aparecem como as mais confiáveis pelo papel que
exercem em cada lista das tradições; elas tendem a ser nomeadas explicitamente e
suspeitamos – dada a sua importância crucial para a sobrevivência até mesmo da menor
sociedade – que sejam verdadeiramente universais (BOK, 1995; DE WAAL, 2000;
RIDLEY, 1996). A temperança e a sabedoria vêm logo atrás, em segundo lugar: ao
menos na nossa pesquisa sobre as culturas com longas tradições literárias, elas estão
presentes de maneira confiável e normalmente de forma explícita. A transcendência
parece ser a próxima virtude mais ubíqua, ocupando a quinta posição somente porque é
a mais tematicamente subentendida das seis centrais; a transcendência nem sempre é
nomeada explicitamente, mas a noção de que há um significado mais alto ou um
propósito para a vida, de base religiosa ou não, inspira cada tradição na medida em que,
até mesmo em algumas listas decididamente não religiosas, p. 211 => (como o
confucionismo e a filosofia ateniense), a noção de virtude a serviço do paraíso ou dos
deuses parece ser aceita como verdadeira. Por fim, a coragem é a mais explicitamente
nomeada (normalmente, como valentia física) na maioria das listas, mas é ausente em
outras, notadamente nas das tradições confuciana, taoista e budista. Duvidamos que isto
signifique que a bravura não seja valorizada nestas tradições; além disso, definições
mais modernas de coragem, que estendem o seu significado para além dos campos de
batalha e o aplicam à fortaleza em outros domínios, podem ser prontamente detectadas
nas suas literaturas clássicas (por exemplo, YEARLY, 1990).

Em segundo lugar, encontramos variabilidade através das culturas em


termos da virtude que é a mais estimada. Cada tradição nomeou certo número de
virtudes como adequadas ou necessárias para a vida bem vivida, mas não há duas listas
idênticas e – o que não surpreende – muitas virtudes que encontramos caem por terra
18

por não passarem no teste de ubiquidade, até mesmo por meio de critérios expansivos e
variáveis. Entre as virtudes circunscritas a uma tradição (não ubíquas), há algumas
familiares para quem vive no aqui e agora, como, por exemplo, a sagacidade e a glória.
Outras virtudes circunscritas a uma tradição parecem exóticas sob a nossa perspectiva,
como, por exemplo, a magnificência e a naturalidade. Evidentemente, estes exemplos de
virtudes não ubíquas são importantes e merecem séria atenção por parte dos psicólogos,
mas não constituem a preocupação principal do seu mister. À medida que o nosso
projeto de classificação se desenvolver, esperamos voltar a essas virtudes menos
ubíquas, circunscritas a culturas.

Em terceiro lugar, todas as tradições que pesquisamos provêm de sociedades


grandes, cultas e de longa história, dotadas de cidades, moeda, leis e divisão do
trabalho. Nenhuma dessas culturas existe ou existiu em total isolamento das outras.
Embora estejamos muito interessados no assunto, não fingimos saber se as virtudes
centrais que identificamos caracterizam sociedades pequenas, ou de breve história, ou
ágrafas ou constituídas em torno da caça. No entanto, o campo de pesquisa
contemporâneo conduzido por Biswas-Diener e Diener (2003) tem confirmado as
virtudes centrais aqui identificadas entre os masai (ao oeste do Quênia) e os inuítes
polares (ao norte da Groelândia).

Em suma, a nossa pesquisa de religiões e tradições filosóficas influentes


revelou seis tipos amplos de virtudes de caráter ubíquo. Esta conclusão tem implicações
importantes para o nosso intento de classificar traços positivos. O mais significativo é
que temos uma base não arbitrária para enfocarmos certos tipos de virtudes em vez de
outros. Muito do discurso social costumeiro sobre “caráter” pende para uma ou outra
direção por causa de valores que não chegam a ser política e pessoalmente universais.
Embora a nossa classificação seja precisamente sobre esses valores, ela é descritiva
daqueles que são ubíquos, e não prescritiva nem idiossincrática.

Usamos estas seis virtudes centrais para organizar uma lista mais longa de
forças de caráter mais específicas (PETERSON e SELIGMAN, 2004). Optamos por
esta estratégia por várias razões, incluída a já mencionada complexidade das virtudes
gerais. Em cada caso, podemos pensar em diversos modos de alcançar a virtude geral; e
a nossa meta de medição final conduziu-nos a enfocarmos estas rotas mais específicas
(a que chamamos “forças”) até as virtudes centrais. Assim, a virtude da “humanidade” é
alcançada, por um lado, pelas forças da gentileza e, por outro, do amor. De modo
19

similar, a virtude da temperança tem várias rotas: humildade, prudência e autocontrole.


A implicação prática desta classificação é que ela sugere quais forças de caráter são
similares e quais não são.

Em quarto lugar, a ubiquidade destas virtudes centrais sugere a


possibilidade da universalidade e uma teoria profunda sobre a excelência moral
formulada em termos evolutivos (WRIGHT, 1994). Uma possibilidade é que estas
virtudes sejam puramente culturais: características adquiridas requeridas pelas
sociedades de longa história, com moeda, cultas, com cidades e com massivas divisões
do trabalho. Outra possibilidade é que as virtudes centrais sejam puramente biológicas e
definam o “animal moral”. E uma terceira possibilidade – aquela à qual nos inclinamos
– é que elas sejam evolutivamente predispostas. Estes estilos particulares de
comportamento podem ter surgido e podem ter sido mantidos em razão de cada um
deles reconhecer um problema crucial de sobrevivência a ser resolvido.

Com frequência, os filósofos referem-se às virtudes como corretivas, no


sentido de que elas contrabalanceiam alguma dificuldade inerente à condição humana,
alguma tentação que precisa ser resistida ou alguma motivação que necessita ser
recanalizada para algo bom (YEARLY, 1990, p. 16). Não precisaríamos propor a
virtude da coragem se as pessoas não titubeassem (às vezes) para fazer a coisa certa por
medo ou a virtude da temperança se as pessoas não fossem (às vezes) descuidadas. Sem
os mecanismos predispostos biologicamente que permitiram aos nossos antepassados
gerar, reconhecer e celebrar virtudes corretivas, os seus grupos sociais ter-se-iam
extinguido rapidamente. Acreditamos que as virtudes ubíquas são as que permitem que
o animal humano lute contra aquilo que é mais obscuro dentro de nós e triunfe sobre
ele.
20

Referências

ALFARABI. Aphorisms of the stateman. Trad. D. M. Dunlop. Cambridge (England):


Cambridge University Press, 1961.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and statistical manual of


mental disordens. 4th ed. Washington, D.C.: Author, 1994.

AQUINAS, Thomas. Summa theologiae. Trad. T. McDermott. Westminster (MD):


Christian Classics, 1989 (obra original publicada em 1273).

ARISTOTLE. Nicomachean ethics. Trad. R. Crisp. Cambridge (England): Cambridge


University Press, 2000.

ARMSTRONG, Karen. Buddha. New York: Penguin Group, 2001.

BHATT, Siddheshwar Rameshwar. The Buddhist doctrine of universal compassion and


quality life. In: SINGH, Raghwendra Pratap; MCLEAN, George F. (eds.). The
Buddhist world view. Faridabad (India): Om, 2001, p. 111-120.

BISWAS-DIENER, Robert; DIENER, Edward. From the equator to the north pole: a
study of character strengths. Unpublished manuscript, 2003.

BOK, Sissela. Common values. Columbia: University of Missouri Press, 1995.

BUCKINGHAM, Marcus; CLIFTON, Donald O. Now, discover your strengths. New


York: Free Press, 2001.

BUSS, David M. Sex differences in human mate preferences: evolutionary hypotheses


tested in 37 cultures. Behavioral and Brain Sciences n. 12, 1989, p. 1-14.

BUTTERWORTH, Charles E. Introduction to selected aphorisms. In:


BUTTERWORTH, Charles E. (trad.). Alfarabi: the political writings. Ithaca
(NY): Cornell University Press, 2001, p. 3-10.

CARTER, John Ross; PALIHAWADANA, Mahinda (trads.). The dhammapada. New


York: Oxford University Press, 2000.

CHENG, David Hong. On Lao Tzu. Belmont (CA): Wadsworth, 2000.

CLARKE, John J. The Tao of the West: western transformations of Taoist thought.
New York: Routledge, 2000.
21

CLEARY, Thomas. Introduction. In: CLEARY, Thomas (trad.). The essential


Confucius. New York: Harper Collins, 1992, p. 1-11.

COMTE-SPONVILLE, André. A small treatise on the great virtues. Trad. C.


Temerson. New York: Metropolitan Books, 2001.

CONFUCIUS. Analects. Trad. D. Hinton. Washington, D. C.: Counterpoint, 1992.

DE WAAL, Frans. Primates – A natural heritage of conflict resolution. Science n. 289,


2000, July 28, p. 586-590.

DO-DIHN, Pierre. Confucius and Chinese humanism. Trad. C. L. Markmann. New


York: Funk & Wagnalls, 1969.

DUNLOP, Douglas Morton. Arab civilization to A.D. 1500. London: Longman, 1971.

DUTT, Romesh Chunder. Buddhism & Buddhist civilisation in India. Delhi (India):
Seema, 1983.

FAKHRY, Majid. A history of Islamic philosophy. 2nd ed. New York: Columbia
University Press.

FOWLER, Merv. Buddhism: beliefs and practices. Portland (OR): Sussex Academic
Press, 1999.

GRAHAM, Angus Charles. The origins of the legend of Lao Tan. In: KOHN, L.;
LAFARGUE, M. (eds.). Lao-tzu and the Tao-te-ching. Albany: State
University of New York Press, p. 23-40.

HABERMAN, David L. Confucianism: the way of the sages. In: STEVENSON, Leslie;
HABERMAN, David L. (eds.). Ten theories of human nature. 3rd ed. New
York: Oxford University Press, 1998a, p. 25-44.

HABERMAN, David L. Upanishadic Hinduism: quest for ultimate knowledge. In:


STEVENSON, Leslie; HABERMAN, David L. (eds.). Ten theories of human
nature. 3rd ed. New York: Oxford University Press, 1998b, p. 45-67.

HALL, David L.; AMES, Roger T. Thinking through Confucius. Albany: State
University of New York Press, 1987.

HARVEY, Peter. An introduction to Buddhism: teaching, history and practices.


Cambridge (England): Cambridge University Press, 1990.
22

HUANG, Chichung. Terms. In: HUANG, Chichung (trad.). The analects of Confucius.
New York: Oxford University Press, p. 14-35.

JAHODA, Marie. Current concepts of positive mental health. New York: Basic
Books, 1958.

JOHANSEN, Karsten Friis. A history of ancient philosophy: from the beginnings to


Augustine. Trad. H. Rosenmeier. New York: Routledge, 1991.

KOHN, Livia. The Lao-tzu myth. In: KOHN, Livia; LAFARGUE, Michael (eds.). Lao-
tzu and the Tao-te-ching. Albany: State University of New York Press, 1998,
p. 41-62.

LAFARGUE, Michael. Recovering the Tao-t-ching’s original meaning: some remarks


on historical hermeneutics. In: KOHN, Livia; LAFARGUE, Michael (eds.).
Lao-tzu and the Tao-te-ching. Albany: State University of New York Press,
1998, p. 255-276.

LAO TZU. Tao te ching. Trad. D. C. Lau. New York: Viking Penguin, 1963.

LEAMAN, Oliver. Key concepts in Eastern philosophy. New York: Routledge, 1999.

LEAMAN, Oliver. An introduction to classical Islamic philosophy. New York:


Cambridge University Press, 2002.

LYNN, Richard John. Introduction. In: LYNN, Richard John (trad.). The classic of the
way and virtue: a new translation of the Tao-te-ching of Laozi as interpreted by
Wang Bi. New York: Columbia University Press, 1999, p. 3-29.

MAHDI, Muhsin S. Alfarabi and the foundations of Islamic political philosophy.


Chicago: University of Chicago Press, 2001.

NAGAO, Gadjin M. The Bodhisattva’s compassion described in The mahāyāna-


sūtrālamkāra. In: SILK, Jonathan Alan (ed.). Wisdom, compassion, and the
search for understanding: the Buddhist studies legacy of Gadjin M. Nagao.
Honolulu: University of Hawaii Press, 2000, p. 1-38.

NATIONAL OPINION RESEARCH CENTER. General Social Survey: 1972-1998


cumulative codebook. Disponível em http://www.icpsr.umich.edu/GSS/ (acesso
em 25 de dezembro de 2003).
23

PANTAJALI. The yoga-sutra. Trad. G. Feuerstein. Folkstone (England): Dawson,


1979.

PETERSON, Christopher; SELIGMAN, Martin E. P. Character strengths and


virtues: a handbook and classification. Washington, D. C.: American
Psychological Association, 2004.

PLATO. Republic. Trad. A. Bloom. New York: Basic Books, 1968.

RIDLEY, Matt. The origins of virtue: human instincts and the evolution of
cooperation. New York: Penguin Books, 1996.

SCHWARTZ, Shalom H. Are there universal aspects in the structure and content of
human values? Journal of Social Issues, n. 50, v. 4, 1994, p. 19-45.

SMART, Ninian. World philosophies. New York: Routledge, 1999.

TAYLOR, Shelley E.; KLEIN, Laura Cousino; LEWIS, Brian P.; GRUENEWALD,
Tara L.; GURUNG, Regan A. R.; UPDEGRAFF, John A. Biobehavioral
responses to stress in females: tend-and-befriend, not fight-or-flight.
Psychological Review, n. 107, 2000, p. 411-429.

THADANI, N. V. (trad.). The bhagavad gita. New Delhi (India): Munshiram


Manoharlal, 1990.

WONG, Eva. The Shambhala guide to Taoism. Boston: Shambhala, 1997.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. International classification of diseases and


related health problems. 10th rev. Geneva (Switzerland): Author.

WRIGHT, Robert. The moral animal: the new science of evolutionary psychology.
New York: Random House, 1994.

YEARLEY, Lee H. Mencius and Aquinas: theories of virtue and conceptions of


courage. Albany: State University of New York Press, 1990.

Você também pode gostar