Antropologia da Religião. antropológica da religião por vezes Podem estar carregados de uma concepção Mailson Fernandes Cabral de Souza sobre a religião que tenha como o seu Introdução Horizonte o cristianismo, estabelecendo categorias que, quando aplicadas para Jack David Eller é professor adjunto de Outras religiões, são incompatíveis para Antropologia na University of analisá-las; f) o caráter local e prático da Northern Colorado. Doutorou-se em Cultura e da religião. Visto que as religiões antropologia pela Universidade de Boston, são multiformes internamente, uma tendo como seu trabalho de campo as Mesma religião poderá variar a depender mudanças religiosas e processos culturais do seu contexto. entre o povo Warlpiri da Austrália Central. São esses temas que orientam o eixo Seus estudos se concentram nas áreas de expositivo do livro, dividido em doze religião, violência e antropologia Capítulos, e suas respectivas análises. A psicológica. Publicado originalmente em proposta da obra é fazer uma antropologia inglês em 2007, pela editora Routledge, o da religião comprometida em investigar as livro Uma introdução à antropologia da manifestações sociais contemporâneas e religião (Introducing anthropology of as formas com que elas se associam com a religion: culture to the ultimate), trata-se da religião. primeira obra do autor traduzida para o Escopo da obra português. O livro se encontra em sua O primeiro capítulo apresenta as principais segunda edição, revista e ampliada, definições e teorias do campo publicada pela mesma editora em 2015, antropológico. Para Eller, a melhor maneira sendo esta a versão traduzida para o de entender a antropologia seria português. A obra é fruto do ensino e concebendo-a como a ciência da experiências de pesquisa de Eller e de sua diversidade dos seres humanos, em seus busca por desenvolver uma série de temas corpos e comportamentos. A antropologia determinantes não só para compreender a da religião seria, portanto, a investigação religião, mas também a abordagem científica da diversidade das religiões antropológica do Fenômeno. humanas. Nesse contexto, o conceito de cultura é central, posto que o estudo A obra está organizada em seis temas: a) a antropológico implica em olhar algo como diversidade das religiões, isto é, como elas comportamento humano aprendido e variam entre elas ao redor do mundo sob compartilhado. múltiplas formas; b) a diversidade no Essa orientação básica da antropologia interior das religiões, ou seja, como dentro levaria em consideração três aspectos de uma religião existe uma variedade de da perspectiva antropológica. crenças e práticas distribuídas no tempo e espaço; c) a integração da religião com sua a) A antropologia procede através da cultura circundante. Posto que todas as descrição comparativa ou intercultural. partes de uma cultura estejam Uma vez que o processo é seu o trabalho de interconectadas e se influenciam campo, o método principal da antropologia mutuamente, a religião tenderia a é a observação participante. Seu produto é reproduzir um ethos de cada cultura e o estudo de caso ou etnografia e sua sociedade em que está inscrita. d) a peculiaridade seria usar o particular para Modularidade da religião, uma vez que dizer algo sobre o geral; esta última não é entendida como b) A antropologia adota uma posição de monolítica e única, mas um composto de holismo. Parte-se da muitos elementos, podendo ela ter seus premissa que qualquer cultura é um todo cognatos não religiosos (política, economia mais ou menos integrado com partes que gênero, etc.); e) a relatividade da operam de maneiras específicas uma em representações de coisas, mas são coisas relação à outra e que contribuem para o repletas de poder, inclusive podendo esse funcionamento do todo. As quatro áreas poder ser o seu sentido. O mesmo vale para de atividade de todas as culturas os especialistas religiosos: apesar de não (economia, parentesco, política e religião) representarem seres e forças religiosas, eles se articulam nessa perspectiva, ligando se podem substituir essas entidades, atuando também às questões mais difusas de como seus representantes ou linguagem e gênero, refletindo-as e intermediários no mundo humano. A afetando-as mutuamente; religião, no olhar da antropologia, poderia c) A antropologia defende o princípio do ser considerada como um conjunto de relativismo cultural, posto que ela reflete o símbolos, sendo a própria cultura um entendimento que cada cultura tem seus sistema simbólico, dos quais a religião é um próprios padrões de compreensão e filão, embora particularmente relevante. julgamento. Nesse sentido, o relativismo Seria tarefa da antropologia interpretar ou cultural seria um resultado do estudo decodificar esses símbolos. intercultural e holístico. O segundo capítulo trata da crença A função dos símbolos consistiria em religiosa e das entidades e conceitos a controlar o comportamento. Os símbolos religiosos significam algo, mas também são ela subjacentes. O autor afirma que qualquer religião contém certas ideias e algo (objetos, palavras ou ações). Os concepções sobre tipos de coisas que símbolos podem, inclusive, ser coisas ou existem no mundo, com que elas se forças: espaços sagrados, ícones, talismãs, parecem e o que elas fizeram. Isso poderia amuletos, relíquias, máscaras, textos; ou ser classificado como a ontologia que cada pessoas que eles representam, o corpo religião encarna, os existentes que ela humano, textos, especialistas religiosos postula: seres, forças e fatos da realidade (xamã, sacerdote, oráculo, profeta, religiosa. médium, asteca, monge, mendicante, Esses elementos são chamados de crenças feiticeiro, bruxo). da religião. O quarto capítulo examina a linguagem As crenças religiosas são um subconjunto religiosa que, muitas vezes, é entendida das crenças em geral. Enquanto como mito. Este último, na verdade, é uma questão subjetiva ou psicológica, as forma extremamente comum e importante crenças são adicional e necessariamente de discurso religioso, mas de modo algum interpretadas como estados mentais dos seria a sua única forma, ao passo que a indivíduos. Ou seja, se dissermos que uma linguagem religiosa seria um espectro mais pessoa crê em algo, fazemos uma afirmação amplo em que se situam as diferentes a respeito das representações mentais formas do discurso religioso (oração, dessa pessoa. Elas seriam o conjunto de encantamentos, cantos, provérbios, ideias religiosas sobre seres e forças que literaturas sapiencial e litúrgica, etc.). fundamentariam um determinado sistema cultural. Esses seres podem ser seres O mito, dessa forma, é compreendido como religiosos, espíritos humanos e espíritos não uma linguagem religiosa “um tipo de humanos, ao passo que as forças religiosas história, especificamente uma história que podem designar um tipo de energia, destino envolve os feitos dos espíritos ou ancestrais ou sorte. A presença e a ênfase desses humanos. Numa palavra, os mitos são elementos irão depender de cada religião e narrativas a respeito das atividades e seu respectivo contexto aventuras destes seres” (ELLER, 2018, p. 137). Ele representa uma aparição do cultural. O terceiro capítulo trata do sentido sagrado no meio do profano. Alguns tipos e e poder espiritual no mundo físico e social, temas de mitos recorrentes nas culturas são isto é, os símbolos e os especialistas os mitos de criação, dilúvio, matar um religiosos. Os símbolos não são meras monstro, caso de incesto, rivalidade entre irmãos, castração e divindade andrógina. normas, ela é potencialmente a mais Em síntese, os mitos são repositórios de segura. ideias culturais sobre temas como cosmologia e cosmogonia. A antropologia analisa a moralidade levando em conta a diversidade, a O quinto capítulo tem por finalidade construção social e a relatividade da observar e examinar o sentido, a função, linguagem. A moralidade é entendia como o origem e variedade do ritual. Os rituais são acúmulo muito variado de moralidades – compostos de diferentes atividades: assim como a compreensão do conceito de oração, música, exercícios fisiológicos religião segue o mesmo raciocínio. O autor (automutilação, jejum, uso de drogas, etc.), constata que em muitos casos “os estudos exortação, mito, simulação, poder, tabus, da moralidade têm sido tentativas não festas, sacrifícios, congregação, inspiração, tanto de descrever e explicar a moralidade simbolismo e objetos religiosos. Eles têm quanto de propor uma – ou a – moralidade funções técnicas e terapêuticas, assim verdadeira ou melhor” (ELLER, 2018, p. como podem possuir caráter ideológico, 208). A moralidade seria uma consequência acarretando muitos gêneros de ação, indo de viver num grupo social e ser sensível a da linguagem a itens materiais, comidas e ele, configurando-se como uma prática outros elementos. social. Mesmo sendo um fenômeno O sétimo capítulo examina a permanente primariamente religioso, o ritual não exige a construção da religião. O autor ressalta que priori nenhuma crença sobrenatural. A mesmo as religiões mais tradicionais já tendência em ver o ritual como algo foram dinâmicas e nenhuma fase específica estritamente religioso, adverte Eller, delas foi a verdadeira ou a tradicional. distorce tanto a religião quanto o ritual. Embora muitas tradições reivindiquem que se ocupam do passado, disso não se pode Em síntese, os rituais são entendidos como deduzir que esse passado seja componente chave da religião. necessariamente antigo ou sequer real. O Toda interação social humana acontece sob autor ressalta que esse processo não é tão um código de convívio que comenta, moderno quanto possa parecer: “a representa e leva a cabo essas interações. invenção da tradição não é exclusiva do Em razão disso, as interações religiosas mundo moderno. A tradicionalização de devem ser compreendidas como instâncias sociedades tradicionais tem sido mais difícil de um código comportamental e simbólico. de ver e de aceitar” (ELLER, 2018, p. 247). Por conseguinte, o comportamento Esses movimentos de mudança religiosa, religioso também deve ser considerado ao por seu turno, também criam novos menos parcialmente real, posto que os movimentos religiosos que “surgem como rituais não são meramente informativos, respostas, acomodações ou protestos mas transformadores dessas interações. contra circunstâncias sociais novas e O sexto capítulo analisa a relação entre insatisfatórias. Por isso, [...] explicá los é religião e moralidade, sendo esta última examinar as relações dinâmicas entre estes concebida como códigos ou padrões de movimentos religiosos e a sociedade comportamento individual atuando em emergente na qual eles ocorrem” (ELLER, conjunto com a ordem e as instituições da 2018, p. 251). Ou seja, eles surgem quando sociedade. O interesse é descobrir como os indivíduos se encontram em esses sistemas contribuem para a sociedade circunstâncias de tensão social crônica, e para a construção e decorrente da combinação mal sucedida entre suas crenças e transformação dos indivíduos. Embora a religião não seja a única fonte de sansões e comportamentos atuais e o funcionamento do seu novo mundo social. O oitavo capítulo enfoca o fenômeno das interpretam e praticam. Em razão disso, as religiões translocais (o islã e o cristianismo). fronteiras entre religião oficial e vernácula O capítulo explora as categorias, são sempre borradas, da mesma forma desenvolvidas por Robert Redfield, de como ficam borradas as fronteiras entre as religiões locais e religiões translocais, isto é, diferentes religiões e entre religião e não pequenas e grandes tradições. O primeiro religião. Na atualidade, uma das termo se refere às pequenas religiões que importantes formas de atualização da foram produtos de experiências de um tipo religião vernácula se dá por meio da TV e do de sociedade pequena que, ao menos no cinema, assim como pelas novas seu início, eram autônomas e tecnologias (internet, redes sociais, etc.). autossuficientes, sendo socialmente Outra forma de atualização ocorre por meio homogêneas e com forte senso da relação com os negócios e a economia. desolidariedade de grupo. O segundo termo Num contexto de contra identificação ao se refere às religiões que, situadas capitalismo, há os movimentos de emcircunstâncias sociais e políticas em economias ocultas, que se caracterizam expansão, tiveram seu ethos de religião como respostas religiosas à conjuntura redefinido. As religiões translocais são capitalista, contra suas formas de desenraizadas de seu contexto espoliação e injustiças e suas misteriosas socialprimário para se tornarem religiões normas e operações. O décimo capítulo faz itinerantes e, em muitos uma análise das relações entre religião e casos,missionárias/proselitistas. Elas violência. O autor argumenta que as também se caracterizam por serem compreensões sobre a relação entre movimentos de associação voluntária, religião e violência sofrem de três tendem a ser individualistas e possuem uma problemas: examinam um número muito elaboração da sua ortodoxia por escrito (um limitado de religiões, em geral o cânone), sendo o cristianismo e o islamismo cristianismo e o islamismo; consideram uma as religiões translocais mais bem sucedidas quantidade limitada de casos, terrorismo e em sua expansão. Ao pensar a antropologia guerra santa; tendem a culpar ou isentar a do cristianismo, o autor ressalta que ela foi religião da violência. Uma compreensão a última grande área da antropologia mais precisa da violência da religião exigiria religiosa a ser examinada pela literatura um exame de maior abrangência das etnográfica. Algumas das razões apontadas religiões e considerar que a violência não é para isso são: os antropólogos avaliarem o inerente ou inimiga da religião, mas um cristianismo como uma presença intrusa em comportamento construído culturalmente, cosmologias locais; os significados do consequente de condições sociais cristianismo serem óbvios para os específicas, que não são exclusivas da antropólogos pelo fato de que quase a religião, mas que são comuns a ela. O autor totalidade dos pesquisadores serem lembra que existem diferentes formas de pertences a uma cultura cristianizada. Eller violência, e que tendemos a pensar também destaca a importância da somente grandes explosões de violência antropologia estudar o cristianismo oriental física (como ataques terroristas e guerras), (ortodoxo e copta), ainda pouco mas também há violência estrutural, investigado, sobretudo por ter diferenças política, simbólica. Nesse sentido, a religião muito pontuais em relação ao cristianismo pode funcionar como explicação e ocidental. O nono capítulo examina como o justificação da violência. “A religião faz fenômeno da religião centralizada, parte da cultura e a violência faz parte da profissionalizada e padronizada leva a cultura. É quase inevitável, portanto, que variações entre o que a religião oficial diz e religião e violência acabem entrelaçadas. o que as pessoas realmente praticam. A [...] a religião deve ajudar as pessoas a expressão religião vernácula designa a entender a violência empírica e inegável no religião como ela é vivida, isto é, como as mundo natural e social e pode também pessoas se encontram com ela, a entendem, servir, ela própria, como razão da violência em certas situações contra certos alvos” O autor argumenta que dois pontos (ELLER, 2018, p. 364-365). O décimo precisam ser considerados. primeiro capítulo investiga as relações entre a) O fundamentalismo religioso é para secularismo e irreligião. Umas das alguma coisa, isto é, promove aquilo que dificuldades, para os antropólogos, de se constitui a cosmovisão e a verdade para os estudar o secularismo se deve ao fato de seus praticantes; que ele não possui um topos, isto, é uma b) O fundamentalismo religioso é contra comunidade, não está delimitado em alguma coisa, estabelecendo uma atitude determinados locais para que se possa fazer exclusivista, tensa e até militante. Da um trabalho de campo. Por isso, o mesma forma que existem múltiplos modos secularismo tende a ser interpretado, em de religiosidade, também existem muitos casos, como inexistente ou diferentes modos de fundamentalismo, antinatural e antissocial em determinados nem todos políticos e nem todos violentos. grupos humanos. A teoria da secularização Portanto, o fundamentalismo não seria um tem sido uma marca no campo da sociologia fenômeno monolítico e a relação entre e da antropologia por mais de um século. fundamentalistas e a sociedade circundante Ela defende que com o advento da não assumiria uma única forma modernidade a religião tenderia a ser (conflituosa). Os fundamentalismos não são reduzida à esfera privada e que a sua força programas puramente negativos e representatividade no espaço público (oposicionistas de uma ordem), mas perderia força e representatividade. O também a favor de determinadas causas. Os conjunto desses processos produziu à fundamentalismos são movimentos de progressiva automização dos setores sociais revitalização religiosa que surgem em todas em relação ao domínio do sentido religioso as sociedades durante períodos de e das instituições. Eller argumenta que uma perturbação e declínio social. Eles não antropologia do secularismo deve analisar o representam a boa ou a má religião, mas secularismo como uma doutrina social e uma das muitas variações que a religião política, e o secular como um conceito ou pode assumir em determinadas categoria social. O secularismo e circunstâncias históricas e sociais . o secular, da forma como são concebidos Considerações finais hoje, são produtos do pensar europeu ocidental, sendo toda essa discussão fruto A obra introduz o leitor em temas-chave do da experiência ocidental na qual o campo da antropologia, além de aplicar cristianismo traçou a linha divisória entre uma abordagem antropológica ao estudo religião e mundo, sagrado e profano, da religião no mundo contemporâneo, tendo as ciências sociais absorvido essas trazendo diferentes relatos etnográficos ao categorias. O uso de terminologias como longo dos capítulos. O autor examina secular, secularismo, irreligião ou ateísmo também questões importantes como também estariam atravessados pelo moralidade, violência, fundamentalismo, mesmo problema. secularização e novos movimentos O décimo segundo capítulo analisa o religiosos. fundamentalismo religioso. O No entanto, a obra carece de uma fundamentalismo não é exclusivo da apresentação sobre o autor e lança o leitor religião, mas é um estilo de civilização que direto ao texto. Não haveria problema pode ocorrer em qualquer área da cultura. nisso, não fosse o caso deste ser o primeiro Embora ele possa ser um fenômeno livro de Jack David Eller traduzido para o moderno, ou pelo menos certa forma de português e o fato de seus trabalhos ainda resposta aos desafios postos pela serem pouco difundidos nos ciclos de modernidade, é possível identificá-los estudos de religião no país. O que não se também em contextos pré-modernos. configura propriamente como um demérito do livro, mas talvez um descuido na apresentação da obra para a nossa língua. No que se refere ao conteúdo do livro, deve-se reconhecer o esforço do autor em produzir tamanha sistematização de temas da antropologia da religião e a bibliografia atualizada da qual ele se serve. Nesse sentido, a obra pode ser considerada um verdadeiro manual, introduzindo o leitor aos atuais debates que se travam no âmbito da antropologia, além de possuir uma linguagem acessível para quem está minimamente familiarizado com os conceitos e vocabulário antropológicos. O ponto negativo que pode ser apontado é a falta de um capítulo final que sintetizasse o percurso feito na obra. Embora ao término de cada capítulo sejam levantadas questões sobre os tópicos abordados, faltou ao autor levar a cabo algum tipo de encaminhamento geral das discussões suscitadas ao longo do seu trabalho, dada a extensão da obra e do conteúdo nela abordado, dificultando a produção de uma síntese do texto por parte do leitor.