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Introdução
Objetivos
O objetivo é compreender o conceito de hierofania, e as diferenças entre o sagrado e
profano, particularmente no que tange ao tempo e às festas religiosas, e assim detectar como
ainda as instituições religiosas se utilizam disto na elaboração de seus discursos para
formatação de suas representações sociais, e como o sagrado se torna um dos elementos na
formação do capital simbólico das instituições religiosas. O conceito de capital simbólico1 foi
criado pelo sociólogo francês Pierre Bordieu, e será objeto de pesquisas posteriores.
A busca por entendimento da metodologia utilizada por Eliade em sua obra é um dos
focos deste trabalho, pois serão essenciais em pesquisas posteriores.
Desenvolvimento
1. Abordagem estruturalista/essencialista
Mircea Eliade introduz a sua obra com uma breve descrição do objeto de estudo das
ciências das religiões. Segundo ele, Max Muller, pioneiro do estudo das religiões, utiliza de
uma expressão amplamente adotada posteriormente pelos diversos cientistas da religião.
Trata-se da “ciência comparada das religiões”. Este termo se encaixa bem com a metodologia
utilizada por Eliade, pois busca encontrar os elementos comuns de diversas religiões a fim de
entender certos fenômenos próprios do campo religioso. Mircea Eliade se utiliza do método
estruturalista, no qual busca compreender elementos presentes em variadas religiões, para
com isso demonstrar estruturas que formam a religiosidade. Sua opção gera apontamentos
interessantes na descrição de obras que se utilizaram da análise comparativa e da análise
estrutural das religiões.
Na retrospectiva de Eliade acerca da análise da religião, o pai da história, Heródoto, é o
primeiro a ser mencionado, pois propôs hipóteses acerca das origens das religiões tidas como
bárbaras, como a do Egito, da Pérsia, da Trácia, dentre outras. Os pré-socráticos, segundo o
autor, indagavam sobre a natureza dos deuses e o valor dos mitos. Platão também assim o
1
Capital simbólico é um termo criado por Pierre Bourdieu para designar certas diferenças de poder existentes na
sociedade ,com as quais algumas pessoas ou instituições podem persuadir os demais de suas ideias. Essa
capacidade diz respeito ao conhecimento, prestígio ou reconhecimento de que gozam pessoas e instituições que
tornam suas mensagens e discursos mais eficazes e convincentes.
fazia. Teofrasto (372-287), sucessor de Aristóteles, é citado como o primeiro historiador das
religiões, com seis livros escritos sobre temática. A partir de Alexandre, o Grande (356-323),
os gregos puderam conhecer as religiões orientais, permitindo que o mundo helênico entrasse
em contato com mitos, ritos e costumes religiosos diferentes. No século III, Epicuro (341-
270) elaborou teorias sobre a existência dos deuses, que seria, para ele, um consenso
universal. No final da Idade Antiga, diz Eliade, os estoicos afirmaram que os nomes variados
dos deuses em religiões diferentes designavam as mesmas divindades, apenas com uma
variação terminológica. Eles já utilizariam um método comparativo, buscando detectar os
mesmos fenômenos em religiões diversas.
No Império Romano, a difusão das religiões orientais gerou um sincretismo religioso
que favoreceu o conhecimento das crenças de diversos povos. Alguns autores apareceram
neste período, a se destacar Plutarco (45-50 c. 125). Para ele, a diversidade de crenças era
apenas aparente, pois determinados simbolismos revelavam a unidade fundamental das
religiões. Sêneca (2-66) posteriormente afirmou que os múltiplos deuses eram aspectos de um
Deus único. No mesmo período, os apologistas cristãos rejeitaram a ideia ao verem os muitos
deuses das religiões pagãs como oposição ao deus único de sua religião.
Para que pudessem fazer a defesa destas ideias, buscavam demonstrar a origem
sobrenatural de sua religião, bem como sua superioridade, e acabavam também explicando a
origem dos deuses pagãos. Para isso, observaram certas semelhanças entre as religiões pagãs e
o cristianismo, demonstrando a superação delas pela nova religião. Isto provocou uma reação
dos pagãos. O sofista Filostrato (c. 175-149) na obra “Vida de Apolônio de Tiana” compara as
crenças indianas, gregas e egípcias. Outros como Porfírio (c. 233- c. 305), Jâmblico (c. 280 c.
230) e Celso, por volta de 178, seguem caminhos analíticos semelhantes.
Na Idade Média, segundo Eliade (1992, p.8), o surgimento do Islã provocou interesse
novamente por compreender outras religiões. O próprio Islã produziu obras neste sentido,
como a que Az Biruní (973-1048) fez descrevendo as religiões indianas. Ibn Hazn (994-
1064), por sua vez, elaborou o “Livro das Soluções decisivas relativas às religiões, seitas e
escolas”, cuja temática era o dualismo masdeíta e maniqueu dos brâmanes, judeus, cristãos,
ateístas e seitas dentro do Islã. Ainda na Idade Média, outras obras de judeus são destacadas
por Eliade por possuírem a mesma abordagem estruturalista. O “Livro das Crenças e
Opiniões”, publicado por volta de 933, no qual é feito uma exposição das religiões dos
brâmanes, cristãos e muçulmanos integrada a uma filosofia religiosa e a obra de Maimônides
(1135-1204), que se trata de um estudo comparativo das religiões, em que o autor busca
explicar as imperfeições do judaísmo.
Na Renascença, o paganismo, assim como outras tradições greco-latinas, é retomado.
Os humanistas do período entendiam que havia uma tradição comum a todas as religiões
latinas, em uma concepção essencialista nítida. Nos séculos seguintes, os avanços com as
descobertas geográficas permitiram novos conhecimentos sobre o homem religioso. Houve a
contribuição dos deístas ingleses, dos filósofos franceses com J.J. Rousseau, Voltaire,
Diderot, d’Alembert e dos iluministas alemães, que se debruçaram sobre o tema da religião
natural.
O estudo da história das religiões foi catalisado por Max Müller (1823- 1900). Em
Essay on Comparative Mythology, escrito em 1856, Müller explica a criação dos mitos como
uma “doença da linguagem”: o que, originariamente, não passava de um nome, nomen,
tornou-se uma divindade, numen. Suas teses só passaram a perder a popularidade pelos fins
do século XIX. A ele atribui-se a responsabilidade pela criação, em 1867, do termo
denominativo dessa área de estudos: Religionswissenschaft, termo que traduzido seria de
Ciência Comparada das Religiões. Para Müller a ciências das religiões deveria ser totalmente
descritiva, cientifica e afastada das concepções elaboradas pela Teologia e pela Filosofia das
Religiões.
A primeira metade do século XIX foi importante no amadurecimento dos estudos
sobre religião, pois outros autores apareceram, abordando de forma semelhante o fenômeno
religioso, como Emile Durkheim (1858-1917), que julgava ter encontrado no totemismo a
explicação sociológica da religião. O termo totem designa, entre os Odjibwa da América, o
animal cujo nome o clã usa e que é considerado o antepassado da raça. Mas as pesquisas de
Frazer, posteriores, mostraram que o totemismo não se difundiu por todo o mundo e que,
portanto, não podia ser considerado a forma religiosa mais antiga. Lucien Lévy-Bruhl
afirmava que o comportamento religioso se explicaria pela mentalidade pré-lógica dos
primitivos. Mas tais hipóteses sociológicas não foram definitivas e se mostraram
insuficientes ou foram ultrapassadas por outras, não ganhando influência.
Atualmente, se ou autor romeno estivesse vivo, talvez elencasse a obra de Peter
Berger, “O dossel sagrado”, como parte da longa tradição de estudos essencialistas sobre as
religiões.
Essa exibição historiográfica é feita na introdução do livro de Mircea Eliade sobre a
essência das religiões. Seu texto é, obviamente, mais rico do que essa breve retrospectiva,
pois o autor elenca mais autores e correntes analíticas. Eliade, com base nessa análise
retrospectiva, faz apontamentos importantes para o historiador das religiões que busca por
métodos, e que precisa decidir seu caminho teórico. Segundo ele existem apenas dois
caminhos para a análise do fenômeno religioso:
3. Conceito de Hierofania
Segundo Eliade (2008, p.7), em uma abordagem que demonstra sua característica
essencialista, as definições do fenômeno religioso apresentadas até hoje mostram uma
característica em comum: à oposição do sagrado e da vida religiosa ao profano e à vida
secular. Por isso, o sagrado pode se definir como o oposto do profano.
O homem vive em um mundo secular, profano, natural. O sagrado então se manifesta,
superando o natural, o profano. A estas manifestações do sagrado Eliade (1992, p. 13) chama
de hierofanias. Etimologicamente, hierofania vem do grego hieros (ἱερός), que designa o
sagrado e faneia (φαίνειν) que significa manifesto. Ou seja, uma manifestação do sagrado.
Eliade (1992, p. 13) afirma que o termo é cômodo, pois dispensa conceituações extras e que
implica, de forma exata, no entendimento do sagrado que se revela.
Analisada de forma essencialista, a história das religiões demonstra que todas elas são
constituídas de hierofanias, como a transformação de uma árvore em árvore sagrada, como o
carvalho para os druidas célticos ou a Yggdrasil dos nórdicos, ou a hierofania maior, a dos
cristãos, com Jesus Cristo, Deus encarnado, manifesto aos homens. A árvore sagrada não é
uma árvore simples e comum e por isso não é adorada e vista assim, mas é uma árvore
diferente, pois a hierofania revela que ela é divina, sagrada e possui elementos sobrenaturais.
Assim, as religiões olham para suas hierofanias, transformando objetos, coisas, pessoas,
elementos e outros, que outrora eram naturais, normais, em místicos, sagrados, carregados de
poder. Eliade (1992, p.13) observa que mesmo manifestando o sagrado, um objeto qualquer
se torna em outra coisa, mas continua sendo ele mesmo, ou seja, uma pedra sagrada continua
sendo uma pedra, pois na aparência nada a distingue das outras. Porém, para aqueles olhos
que enxergaram a revelação do sagrado ali contido, a realidade é transmutada numa realidade
sobrenatural.
O homem sagrado enxerga o mundo por outros olhos, e passa a procurar viver em uma
realidade distinta e se esforça para manter-se o máximo de tempo possível nesta realidade
sobrenatural, sagrada. Mesmo que o homem se torne cada vez mais dessacralizado,
assumindo uma existência profana, seu comportamento religioso não é de forma alguma
abolido, conservando em si traços de religiosidade.
Para compreensão melhor do mundo sacralizado, o autor romeno mais uma vez
demonstra sua abordagem essencialista, ao demonstrar seu método:
4. Local Sagrado
Para viver no Mundo é preciso fundá-lo – e nenhum mundo pode nascer no “caos”
da homogeneidade e da relatividade do espaço profano. A descoberta ou a projeção
de um ponto fixo – o “Centro” – equivale à Criação do Mundo, e não tardaremos a
citar exemplos que mostrarão, de maneira absolutamente clara, o valor cosmogônico
da orientação ritual e da construção do espaço sagrado. Em contrapartida, para a
experiência profana, o espaço. (ELIADE, p. 18,1992)
Para o homem não religioso, os espaços são iguais, neutros, sem quebras ou
roturas. Ele não se diferencia. Contudo, mesmo o homem profano, sem religiosidade,
adota certa visão do sagrado. Para tal homem, existem lugares especiais, como a terra
natal, ou o lugar dos primeiros encontros amorosos, ou locais que foram com os pais
em sua infância. A memória sacraliza o espaço, tornando estes lugares sagrados.
Vemos assim uma hierofania memorial, uma manifestação do sagrado pela memória e
que pode ser observado até em indivíduos não religiosos.
Comparando locais sagrados e profanos, conseguimos observar que a revelação
de espaços sagrados traz ordem, fixando um ponto como centro, em meio a uma
homogeneidade de caos. O homem religioso precisa observar locais como diferentes,
especiais, modificados. A experiência profana mantém os locais como comuns e a
relatividade do espaço.
Vemos em diferentes religiões esta concepção de hierofania espacial. Um
exemplo moderno citado por Eliade é de uma igreja atual. Para o fiel, aquele lugar se
torna diferente, espacial. Mesmo que a igreja esteja ocupando um prédio que antes
tinha outra finalidade, o que é muito comum, como as igrejas que alugam ou compram
cinemas antigos, teatros, casas de eventos. Porém, quando a igreja passa a ocupar tal
espaço, ele se torna diferente, uma referência, um ponto fixo. Ali o mundo ganha
sentido. A porta da igreja divide o espaço sagrado e o profano, se tornando um limiar
entre os dois mundos.
De forma análoga, o ritual de sacralização espacial é transferida para as
habitações. Existem inúmeros ritos que acompanham a entrada na habitação
doméstica: reverências, toques devotados com as mãos. Os judeus mantêm até hoje o
ritual de colocar um artefato que contém pequenos rolos contendo duas passagens da
Torá (Deuteronômio 6:4-9 e 11:13-21 ,chamado Mezuzá). Os judeus costumam beijar
o Mezuzá toda a vez que se passa pela porta, para lembrar-se das orações que estão
contidas ali dentro e os princípios do judaísmo que elas carregam.
Então, é no limiar que o sagrado se define, que o sagrado se manifesta. Eliade
(1992, 19) observa, com seu método essencialista, que é no limiar que se oferecem
sacrifícios às divindades guardiãs. E que também é no limiar que certas culturas
paleoorientais (Babilônia, Egito, Israel) situavam o julgamento. O limiar se torna
muito importante religiosamente pois se trata de um símbolo e, ao mesmo tempo, de
um veículo de passagem.
O templo é um local em que o espaço profano é transcendido. Ali, naquele
local sagrado, é possível a comunicação com os deuses. Esta é a leitura que diversas
religiões fazem do templo, um local em que a comunicação com o mundo divino é
assegurada. Os santuários são “Portas dos Deuses”, por isso, passagens entre o céu e a
terra.
Todo espaço sagrado, portanto, é uma hierofania, que permite destacar
determinado local dos demais. Eliade (1992, p.20), faz uma ilustração utilizando a
Bíblia:
Quando, em Haran, Jacó viu em sonhos a escada que tocava os céus e pela qual os
anjos subiam e desciam, e ouviu o Senhor, que dizia, no cimo: “Eu sou o Eterno, o
Deus de Abraão!”, acordou tomado de temor e gritou: “Quão terrível é este lugar!
Em verdade é aqui a casa de Deus: é aqui a Porta dos Céus!” Agarrou a pedra de que
fizera cabeceira, erigiu a em monumento e verteu azeite sobre ela. A este lugar
chamou Betel, que quer dizer “Casa de Deus” (Gênesis, 28: 1219). O simbolismo
implícito na expressão “Porta dos Céus” é rico e complexo: a teofania consagra um
lugar pelo próprio fato de torná-lo “aberto” para o alto, ou seja, comunicante com o
Céu, ponto paradoxal de passagem de um modo de ser a outro.
5. Tempo Sagrado
Assim como espaço, o tempo profano é homogêneo, igual, contínuo e a hierofania traz
uma quebra a esta homogeneidade. A diferença da mentalidade do homem religioso em
relação ao tempo é que para ele existem intervalos sagrados, que saltam da duração temporal
normal. O tempo sagrado é por natureza reversível, um tempo anterior, primordial se
repetindo no presente. As festas sagradas e os tempos litúrgicos são uma reatualização de um
evento sagrado que aconteceu num em um passado mítico.
Participar de uma festa religiosa significa a saída da duração de um tempo normal, natural,
para ingresso em um tempo mítico reatualizado pela festa. Então, o tempo sagrado é
indefinidamente repetível, não se altera, não flui, não se esgota.
A cada festa reencontra-se o mesmo tempo sagrado, o mesmo da festa no anterior, que é o
mesmo tempo criado e consagrado pelos deuses. Entende-se que na festa a primeira hierofania
temporal é reencontrada, igual ela aconteceu na origem.
Assim como uma igreja é uma hierofania espacial, que torna aquele espaço espacial para o
homem religioso, o serviço religioso que se realiza dentro da igreja torna aquele tempo
diferente, apresentando uma quebra na duração temporal profana.
O cristianismo apresenta uma vertente diferente de hierofania espacial. A maioria das
religiões repete um tempo “primordial” descolado do tempo natural, um tempo mítico, não
identificável. O cristianismo insere seu Deus no tempo cronológico existente. Cristo é uma
figura histórica. Eliade (1992, p.40) afirma que o cristianismo desenvolve-se num tempo
histórico santificado pela encarnação do Filho de Deus.
O tempo festivo permite a inserção no mundo dos deuses, um retorno ao tempo original e
isso permite ao homem religioso adotar um comportamento diferente neste período. Assim,
crê-se que vive em outro tempo.
Eliade (1992, p. 40) descreve a festa dos australianos arunta, em que eles param nos locais
em que o Antepassado esteve e repetem o que eles fizeram. Jejuam durante a cerimônia, não
portam armas e abstêm-se de todo contato com suas mulheres ou com os membros dos outros
clãs. Com este exemplo, é possível observar que o tempo das festas faz do homem
contemporâneo dos deuses naquele momento.
Existe uma estrutura do tempo festivo comum a variadas religiões. Essas estruturas
revelam o método de Eliade, buscando as estruturas e a essência dos fenômenos para elaborar
hipóteses. A festa religiosa tem como estrutura comum um acontecimento passado, em um
tempo mítico sendo reproduzido no presente. Sobre isso:
Referências Bibliográficas
ELIADE, Mircea. O sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 109 p.
_______. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 479 p.