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HISTÓRIA DAS

RELIGIÕES

Mayara Joice Dionizio


Introdução à religião
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Conceituar a religião por uma perspectiva histórica e filosófica.


 Definir a religião a partir de uma visão cultural e espitemológica.
 Caracterizar a religião a partir das bases teológicas e sociais. 

Introdução
A história da humanidade foi construída conjuntamente à história da
religião e da filosofia. Nesse contexto, não há como dissociar a religião de
seu contexto histórico ou como separar a história do exercício crítico da
filosofia sobre ela, sobre os fatos que ocorreram e as representações de
um determinado período — é o que se dá desde a Antiguidade Grega.
Desde os primórdios, a religião encontra-se presente em todas as
sociedades das quais temos vestígios documentais. Na Grécia Antiga,
o politeísmo estruturava o modo grego de pensar a realidade, de com-
preendê-la; posteriormente, na Idade Média, a religião cristã se tornou
central e centralizadora; já na Idade Moderna, temos o desmembramento
das ciências humanas em distintas disciplinas, e a sociologia, a princípio,
encarrega-se de pensar a religião a partir de uma epistemologia social.
Entretanto, cabe ressaltar que, desde a Idade Média, a teologia já vinha
desenvolvendo um trabalho de pesquisa sobre a religião cristã.
Neste capítulo, você vai conhecer a religião em suas relações históricas
e filosóficas. Além disso, vai ver como a religião passou a ser pensada
culturalmente e epistemologicamente a partir da modernidade. Por
fim, vai analisar quais são as bases teológicas e como elas se relacionam
com as bases sociais.
2 Introdução à religião

1 A religião por uma perspectiva histórica


e filosófica
Há muito tempo é reconhecida a relação entre histórica e filosofia, ou melhor,
a impossibilidade de dissociá-las. Do mesmo modo que podemos pensar que a
história só consegue ser pensada e problematizada a partir de um posiciona-
mento crítico/reflexivo, próprio à filosofia, a filosofia só pode compreender-se
em seu desenvolvimento a partir da organização histórica da filosofia e dos
contextos periódicos da história de modo mais geral. Por isso, para pensar a
religião a partir de seu desenvolvimento, contexto e fenômeno, é necessário
pensá-la por meio da história e da filosofia de forma correlacional.
Nos primórdios da sociedade ocidental, principalmente na sociedade grega,
a religião já se apresentava como um dos pilares da organização social e
cultural (JAEGER, 1995). Nesse contexto, as manifestações gregas, ainda
que no período do auge do desenvolvimento filosófico, tinham forte relação
com a religião pagã. As quatro estações que conhecemos, por exemplo, eram
compreendidas por meio da mitologia: Deméter (deusa do trigo) teve uma
filha com Zeus à qual deram o nome de Perséfone. Porém, Hades (irmão de
Zeus, seu tio) se apaixonou pela jovem e a raptou em um dia que ela colhia
flores pelos campos; Deméter ficou triste e furiosa, parou de se alimentar e
deu início a um período estéril em relação à colheita. A humanidade padecia
de fome, e Zeus ordenou que Hades libertasse Perséfone. Em vez disso, Hades
propôs a Deméter que Perséfone ficasse seis meses na companhia da mãe e
seis meses em sua companhia, visto que ambos acabaram por se apaixonar:
assim surgiram as estações do ano, seis meses de verão e primavera, que é
quando Perséfone está com a mãe, seguidos de seis meses entre outono e
inverno, que é quando Perséfone vai para o submundo ficar com Hades e sua
mãe se entristece. Esse é um exemplo da necessidade de explicação acerca
da realidade e da justificativa sobrenatural.
Já em vistas a uma racionalização maior dessa realidade, para os filóso-
fos, desde os pré-socráticos a Aristóteles, as investigações acerca de uma
teoria do conhecimento eram paralelas à existência cultural e, por vezes, até
concomitantes a alguns discursos religiosos pagãos. Platão, em A República
(1987), não abandona o uso de algumas divindades, ainda que em busca de uma
racionalização da organização social baseada em uma metafísica outra. Assim,
a teoria do conhecimento platônica é fundamentada no mundo inteligível,
aquele da alma, das ideias, da verdade e que reverbera no mundo legível, no
mundo dos sentidos, nas formas imperfeitas, nos valores, tais como o “Bem”.
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Tal teoria veio a ser ressignificada pelo filósofo Santo Agostinho (1997)
durante a Idade Média e deu as bases para a consolidação do cristianismo.
O mesmo ocorreu com a filosofia aristotélica: o filósofo grego Aristóteles
(2001), diferentemente de Platão, compreendia que a verdade está nas coisas
em si. Sua teoria do conhecimento defende que a essência das coisas consiste
em suas funções, em suas formas; para tanto, categorizou-as em quatro causas:
causa formal, causa eficiente, causa final e causa material.

Tomemos o exemplo de uma árvore: a semente em potência é a causa material;


quando floresce e chega à forma de árvore, têm-se a causa formal. Quem (ou o acaso
de ter caído na terra e ter florescido) é a causa eficiente, e a causa final é aquela que
configura o propósito da árvore — dar frutos, produzir sombra, etc.

Tomás de Aquino (1225–1274), conhecido como o príncipe da filoso-


fia escolástica, buscou pensar essas causas formais unindo-as em relação à
comprovação da existência de Deus. Para tanto, desenvolve cinco vias que a
comprovariam, como você confere a seguir (LOHR, 1993).

 Se existe uma substância geradora de tudo, uma causa material, essa


causa é Deus.
 Existe um motor imóvel, ou seja, se tudo que existe é resultado das causas
em infinitas relações, essas causas devem ter uma origem, que é Deus.
 Há seres necessários (aqueles que existem e não podem deixar de ser) e
aqueles que podem vir a ser (seres possíveis); Deus é um ser necessário
e, sem ele, nada existe.
 Níveis de perfeição de acordo com a relação com Deus — aqueles que
mais se aproximam do sagrado mais perfeitos são: anjos, sacerdotes,
seres humanos, animais, etc.
 Se no mundo há uma ordem racional, uma lógica entre causa e efeito,
essa ordem é Deus.

Essas contribuições ajudaram a consolidar o cristianismo enquanto religião


oficial (LOHR, 1993). Durante os séculos XI e XVII, dado o contexto político
e religioso — as Cruzadas, o confronto entre cristianismo e islamismo e, com
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isso, a disputa pelo Mediterrâneo —, fez-se necessário garantir historicamente


os fundamentos do cristianismo e da fé. Nesse sentido, a filosofia traz à religião
cristã um argumento racional. Na Idade Média, a religião fundamentava toda
a vida social, ao ponto que o que conhecemos por ciências humanas só foi
desenvolvido dentro dos muros das igrejas e dos monastérios. A economia
desse período era não só organizada pela Igreja e pela Coroa, mas também as
riquezas produzidas eram destinadas a essas duas instituições. Em relação às
artes, sua produção também tinha finalidades religiosas, como ornamentar,
construir igrejas; retratar a nobreza e o clero. Entretanto, é com o Renasci-
mento, que tinha como lema o “renascer das trevas” — dado o obscurantismo
religioso, a Idade Média ficou conhecida com Idade das Trevas — que vemos
mudanças humanistas e reformistas (LOHR, 1993).
No século XVI, surgem tensões entre setores da Igreja Católica: clérigos
defensores de uma vertente mais conservadora do cristianismo entram em uma
disputa teológica com os protestantes, que começam a indagar sobre as práticas
da Igreja, principalmente em relação à prática de indulgências (LOHR, 1993).
Nesse contexto, surge o movimento protestante liderado por João Calvino e
Martinho Lutero, que, por meio da publicação das 95 teses afixadas na porta
do Castelo de Wittenberg, iniciaram a Reforma Protestante.
À mesma época, o Renascimento estabelece uma abertura cultural, social
e econômica: a arte se volta ao humano, à formação humana com bases na
racionalidade, na compreensão da natureza por meio da ciência e da ligação
com o cosmos. A burguesia ascende e rompe com o feudalismo, estabelecendo
novas aberturas comerciais e fortalecendo as cidades; também economica-
mente, começa a busca por novos territórios não conquistados com as Grandes
Navegações (LOHR, 1993).
Assim, a culturas desses novos territórios passam a ser vistas como pri-
mitivas ou exóticas e, com isso, ocorre a comparação entre as culturas — o
modo de conquista se torna a imposição cultural e religiosa a esses povos. Do
ponto de vista histórico e filosófico, as práticas já iniciadas ao fim da Idade
Média e pelo movimento protestante se tornam um instrumento indispensá-
vel de trabalho: a tradução, a filologia, o detalhamento de tudo que pudesse
contribuir à história e à reflexão sobre a religião (LOHR, 1993).
Entretanto, é no século XVIII, na Idade Moderna, que a religião se torna
objeto de investigação das ciências humanas, quando o conhecimento co-
meça a se fragmentar em áreas do conhecimento (RUSSELL, 2004). Avanços
científicos começam a trazer novas formas de compreender a realidade, e os
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seus fenômenos — pesquisas como as de Charles Darwin sobre etnologia e


etnografia — encorajam mudanças nas formas de entendimento sobre alte-
ridade cultural.
Outrossim, a Revolução Industrial consolida diversas mudanças no campo
social, político e econômico, visto que os meios de produção passam a ser
tomados pelas máquinas, o que acaba por intensificar o racionalismo pregado
pelo Iluminismo e pela corrente materialista — que a religião sucumbiria
frente à evolução cientifica (RUSSELL, 2004). Contudo, a sociologia se volta
à religião e, desse interesse, surge outra área de investigação, a antropologia.
Ambas as áreas tomam a religião como objeto de estudo com a finalidade de
compreender a religião enquanto fenômeno social e cultural. A religião, então,
passa a ser pensada de duas formas:

 uma ilusão, uma projeção do humano no sagrado, na natureza e que


deve ser desfeita pela razão;
 a sistematização da opressão, pois legitima a hierarquia econômica,
social e cultural e leva os indivíduos a se submeterem e, quando muito,
a buscarem consolo, conforto, nesse sagrado além-mundo.

Os pensadores desse período apostavam que a religião deixaria de existir,


uma vez que a razão, enfim, estava se tornando a base de tudo.
Conclui-se, então, que a história e a filosofia sempre trataram da religião
em relação aos seus fundamentos e impactos (RUSSELL, 2004). Cabe di-
zer que, se a filosofia consegue pensar o fenômeno da religião, é porque a
história traz a exegese das escrituras, a documentação relativa às religiões,
aos costumes, aos valores e aos contextos sociais. Por outro lado, a história,
na Idade Moderna, por se pretender científica, passa a lidar com o problema
epistemológico positivista, que também se relaciona à religião.
Para além da questão em torno da verdade histórica, encontra-se a pro-
blematização em torno da teoria do conhecimento sociológico e histórico
acerca da seguinte questão: a religião configura a mais primitiva forma de
composição da sociedade? Se sim, podemos falar em uma universalidade
da religião? A verdade pode ser alcançada por meio do estudo histórico,
filosófico e sociológico da religião enquanto fenômeno social? Isso, inde-
pendentemente das abordagens, culmina no mesmo ponto: a religião deve
ser refletida enquanto necessidade social se pretendemos compreender a
formação social, cultural e psíquica da humanidade.
6 Introdução à religião

2 A religião a partir de uma visão cultural


e espitemológica
A Idade Moderna inaugurou outra forma de abordar a complexidade re-
ligiosa. Se antes a religião não era amplamente questionada acerca da
sua função social e psicológica, com o advento da modernidade, esses
questionamentos se tornaram centrais. Quando começou, no século XV, a
modernidade serviu de contexto investigativo para as áreas mais distintas
do saber. Isto é, dada a modernização científica e industrial, os efeitos dessa
nova racionalidade serviram para tematizar e problematizar esse indivíduo
moderno e os seus confl itos. É nesse contexto que a religião passa a ser
pensada como instituição organizacional da sociedade e como necessidade
humana explicativa da realidade, o que sugere que haja uma predisposição
racional investigativa nessas esferas sociais: se o individuo busca formas
de compreender o mundo por meio da religião, uma explicação científica
poderia acabar com essa ilusão.
Vale ressaltar que o contexto moderno apresentava um modo de vida
tecnocrático. Com o advento da industrialização, as jornadas de trabalho se
intensificaram, chegando a 16 horas diárias (RUSSELL, 2004). Os detentores
dos meios de produção viram na produção industrial um modo de intensificar
a produção e, consequentemente, aumentar o lucro. Do ponto de vista estético,
como explanam Adorno e Horkheimer (1995), acabou-se por desenvolver a
chamada indústria cultural, que ficou responsável por substituir a arte, enquanto
participante da vida ativa do sujeito, para preencher aquelas mentes cansadas
com entretenimento de mercado.
É nesse sentido que a indústria cultural se diferencia da cultura de massa.
Segundo Adorno e Horkheimer (1995), a indústria cultural, apesar de mas-
sificar, padronizar as mentes, é feita pelo mercado com esse propósito; já a
cultura de massa é proveniente do povo, de uma cultura popular para o povo e
que vem dele. A lógica do sistema, tal como é proposta por esses pensadores,
trabalha com a seguinte premissa: o trabalhador é explorado pelo sistema
economicamente, uma vez que é alienado de sua produção, não recebe o
lucro (mais-valia) pelo que produz e cumpre jornadas exaustivas; o tempo
que lhe sobra é pouco, quando muito, e o cansaço retira desse individuo a
capacidade de contemplar uma obra de arte que exija mais disponibilidade
reflexiva. É, então, que a indústria cultural age, levando entretenimento em
forma de entorpecimento reflexivo, produtos culturais de fácil acesso e sem
necessidade reflexiva.
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Vários autores (Marx, Freud, Comte, entre outros) passam a pensar o


discurso religioso pelo mesmo viés: discurso de entorpecimento, conformismo
e resignação. Marx (2005), por exemplo, defendia que a religião tinha duas
funcionalidades: a de legitimar o direito do opressor em explorar o oprimido
e, por vezes, como lugar de consolo. Nessa mesma linha de compreensão,
segue a teoria freudiana, que argumenta em torno da projeção paterna da
ideia de Deus.
Segundo Freud (2013), o indivíduo, na primeira infância, passa por um
trauma, que é o da ruptura materna: o bebê, ao nascer, compreende-se como
um só com a mãe, mas essa relação é rompida com a descoberta da presença
do pai. Quando o pai adentra a cena materna, o bebê se dá conta de que não
existe apenas ele/mãe, mas, sim, ele, a mãe e um outro que, por vezes, retira-
-lhe a mãe. Assim, a presença paterna se torna motivo de afeto e de disputa:
ao mesmo tempo que esse bebê quer a proteção do pai, também o rejeita por
ter que lutar pela atenção da mãe. Para Freud (2013), esse primeiro trauma
é constituinte do indivíduo e o acompanha durante a idade adulta. Deus é
a projeção desse pai que protege, que recompensa. O indivíduo terceiriza a
responsabilidade em torno da sua própria vida e de escolhas que se tornam
responsabilidades de um plano maior e divino. Isso é o que também funda-
mentará o existencialismo sartreano no século XX: Deus é aquele que se torna
responsável porque o individuo não consegue lidar com o vazio e a falta de
sentido da existência.
Nesse eixo de leitura, encontram-se autores como Émile Durkheim e Max
Weber, que dão profundas contribuições ao pensamento sociológico da religião,
principalmente no que compete a uma epistemologia da religião. Durkheim,
sociólogo francês, desde o início de suas obras, demonstrava uma inquietação
constante com o fenômeno religioso que se intensificou mais ao fim de sua vida
e obra. Apesar disso, suas obras que tratam da religião complementam as obras
anteriores, em que se apresenta um estudo sociológico a fundo de outros setores
da sociedade. Encontra-se, na obra As formas elementares da vida religiosa
(1912), a teoria sobre o primado ontológico enquanto investigação social. Uma
teoria do conhecimento, para Durkheim (1996), por meio da religião, faz-se
possível como estudo da realidade coletiva, fenômeno que se dá na religião.
Para tanto, é preciso diferenciar sagrado de profano: segundo a obra durkhei-
miana, a distinção se dá justamente na institucionalização da religião. Assim,
é religião aquela que, mediante ritos, crenças e práticas religiosas, tem como
membros uma coletividade; já o profano são práticas que configuram um fim
em si mesmo, um exercício mais individual, ou mesmo espiritual, que não cria
corpo coletivo. Essa divisão serve para o sociólogo compreender de que forma
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o corpo religioso possibilita o estatuto de uma verdade cientifica sociológica.


Para Durkheim, a sociedade se formou em torno do que ele chama de formas
elementares, que nada mais são do que os identitarismos coletivos. Uma vez
que em todas as sociedades, mesmo naquelas das quais que só nos restam
vestígios, há comprovações da existência de práticas religiosas, é possível, de
acordo com Durkheim, que a primeira formação e organização social tenha
sido a religiosa. O conhecimento, então, seria fruto dessas relações sociais,
dessa coletividade: “[...] estas [as categorias do conhecimento] nasceram na
e da religião; são um produto do pensamento religioso” (DURKHEIM, 1984
p. 211). Se os indivíduos se unem identitariamente — por gênero, crenças,
entre outros — e, gravitando sobre os mesmos pensamentos, criam normas e
regras tanto religiosas quanto sociais, econômicas e culturais, o que passa a
ser estabelecido como verdade é o produto desse meio.
Pois bem, o desenvolvimento social, cultural e econômico é fruto dessa
relação quando, por exemplo, um sujeito discorda de algo e leva a questão ao
público de sua comunidade, o que gera um debate que será guiado por esse
conjunto de esferas sociais e que, inevitavelmente, chegará a uma conclusão.
São essas conclusões que formam o conhecimento, o estabelecimento de uma
verdade, a discussão sobre ela e, por vezes, a mudança de paradigma. A tarefa
da sociologia da religião é, então, a de investigar, por meio da racionalidade,
as representações coletivas religiosas como expressão de uma lógica social,
de uma consciência coletiva estrutural e estruturante.
Já para Max Weber (1996), a relação entre a religião e a possibilidade de
se alcançar o conhecimento acontece por meio do estudo do sentido subjetivo.
Vale ressaltar que, para Weber, a função da sociologia enquanto ciência é a de
examinar o sentido, não de formá-lo, mas, antes, de desfazê-lo para melhor
explicá-lo. A religião, enquanto instituição, é aquela que constitui o indivíduo
e onde ele deposita, ajusta seus anseios sobre a própria vida; outrossim, é ela
que realiza também o desenvolvimento comunitário.
Nesse contexto, a coexistência entre a realidade subjetiva e a comunidade
se dá de forma plural e contingente e, assim, torna-se um lugar de realização
da tradição sociocultural de uma sociedade. Contudo (WEBER, 1996), não
há como separar historicamente a razão do sentido; ambos, apesar de em
alguns momentos mais distanciados, participam da mesma cultura. Nesse
contexto, Weber (1996) aponta que, na modernidade, a ciência e a religião se
separaram porque a racionalidade se debruçou indiretamente sobre o sentido
religioso, a fim de desfazê-lo, e, desse modo, o sentido religioso passou a ter
valor direto para a teologia. A partir disso, ocorre a divisão entre teologia e
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ciência: enquanto a primeira busca entender o sentido religioso em si, a segunda


busca compreender o sentido religioso para comprovar a si, e não a ele, o que
sugere uma divisão entre ciência e vida, entre subjetividade e objetividade,
pois a ciência só pode se ocupar da religião enquanto produtora de valores e
formas de sentido.
Weber (1996) compreende nessa relação uma dialética ascética. De um lado,
têm-se a ciência, que não pode produzir sentido religioso, apenas descobri-lo
por meio de seu próprio obscurecimento; por outro lado, tem-se a subjetividade,
que se afirma no querer do sentido religioso, dentro do qual a ciência só pode
buscar interpretar como uma realização autônoma, ainda que imposta cultu-
ralmente, de um juízo de valor. Assim, quem busca o sentido religioso não se
encontra em uma menoridade intelectual, em uma menoridade racional, mas,
sim, em um ato de escolha subjetiva que a ciência não alcança. É o que permite
a Weber (1996) afirmar que, quando se trata da investigação sociológica da
religião, o discurso religioso é tão válido quanto o científico, uma vez que há
uma adequação entre mundo e visão de mundo que é dada por esse mesmo
discurso. Trata-se, portanto, de um ajuste da realidade ao sentido religioso
que foge à decodificação racional empreendida pela ciência.
Conclui-se que os avanços científicos na modernidade trouxeram à tessitura
social, cultural, política, econômica, sociológica, histórica e filosófica uma série
de mudanças em torno da relação homem/sociedade. A partir desse marco,
as ciências humanas se desenvolveram enquanto investigações científicas a
partir dos fenômenos sociais e, por conseguinte, religiosos, o que acabou por
inaugurar uma nova compreensão da religiosidade como organização social
ampla e suas implicações até a atualidade.

Você sabia que os avanços da modernidade não influenciaram apenas as ciências


humanas? Sim, a influência que esses avanços exerceram sobre as artes foi muito
grande. Um dos romances mais conhecidos, aclamados e adaptados para distintos
formatos, O Frankenstein ou o Prometeu moderno (1831), é fruto desse período. Sua
escritora, Mary Shelley, escreveu-o depois de perder o seu filho ainda bebê para uma
forte pneumonia. Nesse contexto, as experiências cientificas e medicinais em torno
de técnicas de ressuscitação começaram a ser testadas e noticiadas pelos jornais, o
que influenciou a escrita de seu romance. Até hoje, essa é uma das obras que mais
representa esse período histórico e os seus dilemas.
10 Introdução à religião

3 A religião a partir das bases teológicas


e sociais
Para compreendermos melhor as bases teológicas, bem como sociais, voltemos,
antes de tudo, à origem do termo teologia e a sua cristianização. A origem do
termo é grega, e de cunho fortemente filosófico, mas, atualmente, é interpre-
tado como “caminho” para se chegar a Deus ou “discurso de Deus”. Porém,
na antiguidade grega, era empregado de três formas (BURCKHARDT, 1964):

 como estudo e discurso mitológico;


 para dissertar sobre a cosmologia e a filosofia em uma correlação, a
partir da obra aristotélica, interpretada também como metafísica;
 como palavra dirigida ao público por meio do teatro e outras formas
de celebração religiosa — soprada pelos deuses aos sacerdotes ou pelas
ninfas aos poetas e atores.

Durante muito tempo, os teóricos da religião cristã evitaram o uso do termo


para se referir a Deus ou às Escrituras Sagradas dada a sua origem considerada
pagã (PEPIN, 1983). Contudo, no período helênico, ocorreu um grande sin-
cretismo religioso entre o politeísmo pagão e o monoteísmo cristão — foram
os padres gregos Justino, Clemente e Orígenes que difundiram o termo ao
se tratar do Deus cristão. No período seguinte, o da Idade Média, a teologia
passou a significar revelação divina que se dava de forma racional, ou seja,
a revelação que Deus faz por meio da faculdade racional, interpretação que
tem como base a cristianização da filosofia platônica por Santo Agostinho.
Em termos modernos, a teologia passa a ser pensada não cientificamente,
de acordo com todas as outras áreas do saber que buscavam reforçar “o século
das luzes”, mas, sim, de um modo especulativo (HESSELGRAVE, 1988).
A teologia parte de uma categorização científica em relação à organização
documental, à exegese de sua própria história e também em relação às suas
doutrinas e práticas, mas se afirma como especulativa em seu esforço por
demonstrar uma lógica racional e interna para as crenças religiosas. Nesse
contexto, muito se deve à relação traçada entre religião e razão a partir da filo-
sofia de São Tomas de Aquino, que inaugurou um caráter científico da teologia.
Aristóteles deu as bases para o estudo da lógica, inclusive, científica. Isto é,
se por meio da categorização a filosofia aristotélica defende uma ciência que
se fundamenta no conhecimento da substância, enquanto essência universal,
a teologia ganha muito em se respaldar nos estudos aristotélicos para chegar
a Deus, o que sugere a figura do teólogo como um crente reflexivo sobre a
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sua fé. A teologia é, então, o esforço em compreender, por meio da história,


os atos de Deus, sua revelação (HESSELGRAVE, 1988).
Desde então, pode-se dizer que houve distintas interpretações em relação
ao caminho para se chegar a Deus, o caminho de acesso ao sagrado (HES-
SELGRAVE, 1988). Para entender as bases da teologia e suas relações sociais,
primeiramente, cabe ressaltar que a teologia é composta de distintos estudos
de distintas correntes, mas existem algumas bases que norteiam esses estudos,
e, em seu desenvolvimento histórico, relacionam-se aos contextos sociais dos
diferentes períodos da história. Afinal, a teologia habita entre as ciências hu-
manas, mas pode ela ser considerada uma ciência? Essa questão inaugural dos
estudos sobre a religião na modernidade só pode ter uma resposta contingente.
Ou seja, a teologia tem lugar nas pesquisas acadêmicas, é objeto de estudo
das ciências humanas, enquanto fenômeno religioso; contudo, a teologia trata
também do sentido religioso em si, da questão da fé em si, e isso a ciência não
pode teorizar, pois pertence ao campo subjetivo.
De acordo com o teólogo suíço-alemão Dietrich Ritschl, em seu livro
A lógica da teologia (1994), a teologia é também um jogo entre ciência e
fé. Nesse jogo, o teólogo é aquele que tem como tarefa comparar, pesquisar,
estudar para além dos documentos sagrados, científicos e históricos, uma
melhor forma de expressar a revelação — tal como pontuou Paulo, “a fé vem
da pregação”. Já nos campos teórico e acadêmico, o que se espera da teologia
é uma sustentação argumentativa acerca da gramática teológica. Ou seja, é
por meio da expressão gramatical em relação às afirmações bíblicas que se
chega a uma possível identidade cristã, entre quem escuta, quem lê e aquele que
escreve, pesquisa e fala, o que possibilita fazer da escritura sagrada uma fonte
para os ensinamentos teológicos enquanto caminhos para o sagrado, para Deus.
Com isso, tocamos na dimensão estruturalista do sentido e da linguagem, que
fornece, de acordo com a antropologia de Lévi-Strauss (2008), por exemplo,
uma subjetividade histórica que perdura por uma estrutura cultura religiosa.
Assim, em toda e qualquer leitura, temos de lidar com o aberto da escrita:
a palavra é aberta, é iterável de acordo com o contexto histórico, temporal,
social, cultural e outros, todos entrecruzados nessa relação em que se situa o
sujeito que lê. A partir disso, podemos dizer que a compreensão é aberta, o
que significa que o autor desaparece no texto. Alguns teóricos, como Ritschl
(1994), afirmam que essa compreensão estruturalista que relega a estrutura do
texto ao sentido do texto não é aplicável à escrita teológica: porque longe de
ser uma escrita outra, a escrita sobre as escrituras sagradas está fundamentada
em axiomas implícitos. Isso não significa que tais axiomas não se deslocam ou
não mudam, mas, antes, formam uma linguagem própria, conhecida a quem
12 Introdução à religião

compartilha a mesma fé, uma espécie de jogo de linguagem que ultrapassa


o tempo e os contextos. É assim que esses autores tratam a identidade cristã,
de origem católica, a partir de uma teologia universal.
Essa base teológica, a de uma linguagem primária, é o que permite que
leigos participem e usufruam do argumento teológico. Entretanto, cabe dizer
que o estudo teológico do ponto de vista acadêmico, ou seja, da pesquisa e da
exegese, necessita de instrumentos que só a formação adequada pode fornecer. É
nesse sentido que a teologia se aproxima da ciência, na busca por uma verdade,
ainda que teológica e não absoluta. Por isso, a verdade teológica é mais aberta à
discussão e à crítica, uma vez que seu objeto de estudo não é concreto, é subjetivo,
é a fé. A dúvida desempenha nesse estudo um papel crucial, pois possibilita que
a teologia não se funde em dogmas; por outro lado, o questionamento deve ser
comedido, evitando, assim, um ceticismo. Trata-se, então, dos mesmos cuidados
que a ciência mantém, os de evitar o dogmatismo e o ceticismo, como ressalta
Dalferth (2000, p. 61): “[...] negação de uma diferença sustentável entre opinião
e conhecimento”. Com isso, chegamos à relação social que o estudo teológico
tem. Ao mesmo tempo que a produção teológica é acadêmica, ela é acessível a
todos. Ou, como disse Lutero (apud MOLTMANN, 2004, p. 17-18), “[...] todos
somos teólogos, o que significa cada cristão. Todos somos chamados de teólogos,
de modo que todos somos cristãos”.
Desse modo, podemos afirmar que a teologia tem um caráter público e,
portanto, social. No período de transição, de transformação, de certa forma,
do helenismo para o cristianismo, houve revoltas e conflitos. Os escravos
que não podiam comungar dos ritos e das práticas religiosas gregas aderiram
massivamente à nova religião, a cristã. Muito disso se deve aos ensinamentos
de Cristo que começaram a ser proclamados, principalmente por Pedro, falando
de igualdade entre todos. Maior do que qualquer finalidade, o propósito da
teologia é público e, por isso, oferece-se a ampla intersecção e a debate com
outras áreas do conhecimento no contexto social. A exemplo disso, podemos
ressaltar o movimento da teologia da libertação, que se baseava, também,
na sociologia e na filosofia, que defendia que a teologia tinha o dever de
libertar as pessoas das injustiças sociais e econômicas. Trata-se, portanto,
de uma possibilidade de releitura, de abertura ao conhecimento, bem como
de demonstrar os limites do conhecimento. Assim, ao contrário do que se
refere corriqueiramente à Idade Média e que acabou por se tornar a missão
científica na modernidade — que a ciência, assim como a política, precisava
ser libertada das mãos da Igreja —, atualmente, a problematização é inversa:
lidamos com os limites da ciência, e isso têm levado a distintos impactos
psicológicos, sociais, éticos, entre outros.
Introdução à religião 13

Conclui-se que a teologia enquanto ciência desempenha um importante


papel, pois, além de contribuir para um estudo mais afinado e aprofundado das
Escrituras Sagradas, também apresenta um limite à compreensão científica.
Por outro lado, a teologia também tem um papel contingente, uma vez que
participa da sociedade, ou seja, é pública. Lembremos que a teologia, nesse
contexto, ocupa distintos períodos históricos. Para ser reconhecida, enquanto
possibilidade de pesquisa acerca das Escrituras Sagradas, a teologia já é admi-
tida pela Igreja por um duplo lugar: obra da razão e da fé. Por isso, a relação
entre filosofia e teologia se faz tão profunda. Desse modo, a revelação feita
por Deus só pode ser conhecida por meio da reflexão, o que é uma atividade
inerente ao pensar, ao filosofar. Assim, a teologia faz um estudo em que não
se nega a fé nem a razão. No sentido social, a teologia tem uma importante
função: a de indicar o caminho à experiência com o sagrado, com Deus. Isso
tem apresentado distintos desafios na contemporaneidade: lidar com os avanços
tecnológicos, científicos, culturais e políticos. Para tanto, deve-se considerar
esses avanços e trabalhar com eles; do contrário, a teologia se encerraria em
um isolamento cultural e doutrinário. O que cabe à teologia, em relação à
comunidade, é expressar a experiência da fé para os fiéis de modo a inseri-la
no contexto cultural e social de seu momento histórico.

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Introdução à religião 15

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