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IRRESISTÍVEL HADES

série deuses gregos

Michelle Castelli
Copyright © 2023 Michelle Castelli

Capa e Arte da capa: Michelle Castelli


Revisão: Lília de Jesus Silva
Diagramação: Michelle Castelli

Produzido no Brasil

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)

Todos os direitos reservados a autora.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos
da imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera
coincidência.
Para minha mãe, que me ensinou a sonhar e acreditar nos meus sonhos, não
importando a época ou a minha idade.
Não resista ao inevitável.

Hades
Índice

Página do título
Dedicatória
Epígrafe
Nota da Autora
Introdução
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo X
Capítulo XI
Capítulo XII
Capítulo XIII
Capítulo XVI
Capítulo XV
Capítulo XVI
Capítulo XVII
Capítulo XVIII
Capítulo XIX
Capítulo XX
Capítulo XXI
Capítulo XXII
Capítulo XXIII
Capítulo XXIV
Capítulo XXV
Capítulo XXVI
Capítulo XXVII
Capítulo XXVIII
Capítulo XXIX
Capítulo XXX
Capítulo XXXI
Capítulo XXXII
Capítulo XXXIII
Capítulo XXXIV
Epílogo
Próximo livro da série
Nota da Autora

Este livro não conta a história de Hades e Perséfone.


Tomei a liberdade de colocar em cada deus grego características
criadas por mim, meu intuito é o entretenimento, não querendo deturpar
qualquer imagem ou crença.
Por exemplo: em algumas histórias antigas, Hades tem filhos, porém
sempre existe outra história que diz que o referido filho de Hades era filho
de outro pai. Então, pensei: “isso está estranho, era pai ou não era pai?” Daí,
a mente pensou: “ele não era, provavelmente nem podia ter filhos, mas por
ser um deus, as pessoas criavam esse tipo de história, associando a ele os
filhos dos outros”. E, bom, Perséfone teve vários casos, então aquela visão
de Perséfone doce, pura e roubada eu não engoli. E que rompante doido de
Hades foi esse de roubar do nada a guria? Não existem muitas histórias de
casos amorosos de Hades, então o cara não era do tipo louco de desejo ou
pegador igual o irmão mais novo, Zeus.
Associando a isso ao meu verdadeiro vício por mitologia grega
(desde o início da adolescência), nasceu a ideia de que Hades merecia um
filho dele, sem nenhum outro possível pai, com alguém que fosse
exatamente o oposto dele. Sabe aquilo de escuridão e luz? Tormento e paz?
Alguém além da juventude virginal e primaveril de Perséfone, alguém com
bondade e amor... E assim nasceu Carolina.
Sim, até mesmo em minha mente ela foi criada e destinada para
Hades.
Escrever sobre “personagens” tão conhecidos é sempre um desafio,
então qualquer coisa a respeito que você queira corrigir, ou adicionar, pode
entrar em contato comigo pelo e-mail millecastelli@gmail.com.
Introdução

Comecei a escrever HADES em 2017 e o concluí em 2023. Nesse


período, muitas coisas aconteceram na minha vida, posso dizer que comecei
a escrever com uma cabeça e terminei com outra. Foi difícil me conectar
com a Carolina na metade do caminho. Eu não conseguia mais ver as coisas
com "os olhos da alma", como ela. E por isso parei por tantos anos…
Afinal, quando a gente está no Tártaro[1] da vida, é quase impossível sonhar
com os Campos Elísios[2] e com a brisa suave que sopra nele.
Carolina era essa brisa, a versão mais doce e ingênua que eu poderia
imaginar, alguém realmente bom e de coração puro. E ela não falava mais
comigo, apenas me olhava de longe, com os olhos lindos e impressionantes
marejados. Sim, ela tinha pena de quem me tornei e eu dava de ombros,
ocupada demais com meus problemas, com meu Tártaro pessoal.
Foi numa tarde ensolarada, enquanto estava fumando um cigarro e
pensando nos meus infortúnios que ela chegou de mansinho outra vez.
Sentou-se do meu lado e esperou eu notá-la. Senti a brisa me tocar
novamente. A brisa dos Campos Elísios, aquela que aquieta o coração e traz
paz…
Então larguei o cigarro, fiz um chá, me sentei e terminei a sua história.
Espero que você tenha momentos divertidos, de paz e esperança com
esse livro. E se estiver em meio ao seu Tártaro pessoal, que possa por alguns
momentos sonhar com os Campos Elísios. Afinal, o que é bom nunca desiste
de nós (assim como a Carolina não desistiu de mim). É só você dar a
oportunidade para ele se aproximar.
Boa leitura ❤️.
Capítulo I
SUBMUNDO

Submundo, data irrelevante.

Hades

— VOCÊ ESTÁ O QUÊ?!! — eu urro tão alto que as paredes e colunas


do meu palácio tremem.
Perséfone, minha esposa, está na minha frente; ela ergue o queixo em
desafio e mais uma vez diz:
— Estou grávida.
Eu não controlo, explodo em chamas de ódio, que como uma bomba
vai devastando tudo ao redor. Quando a nuvem intensa e flamejante se
dissipa, os móveis e paredes de ferro, prata e ouro, estão incandescentes. E
Perséfone está com as roupas e pele queimadas. Pele que logo ela regenera,
mas continua inteiramente nua em minha frente, me causando absolutamente
nenhum sentimento, como já acontece há alguns séculos.
— E posso saber quem é o pai?!!! — pergunto mais controlado, mas
ainda em chamas.
Ela tenta cobrir os seios pequenos e perfeitos. Eu apenas estalo os
dedos e uma túnica negra a envolve.
— Obrigada — ela se surpreende com minha atitude.
— Não me agradeça, apenas não consigo mais olhar para você sem
suas vestes — passo a mão pelos cabelos flamejantes, fazendo-os voltarem
ao normal, tentando me controlar, fazer a raiva recuar, mas está difícil.
As traições de Perséfone nunca me importaram. Há séculos nosso
casamento é apenas um acordo que eu devo cumprir. Ela não quer voltar a
morar com Deméter e eu preciso de sua ajuda. Durante os três meses que
fica comigo, ela organiza a casa e até mesmo o Submundo. Quando ela está
aqui, eu posso me ausentar, respirar ar puro, buscar pessoalmente algumas
almas, me divertir um pouco.
— O filho é de Hermes — ela ergue outra vez o queixo.
Respiro fundo.
— Pelo menos não foi de Zeus, como das outras vezes. Já estava
cansado das desculpas que vocês inventavam — eu me sirvo de uma dose de
tequila. — Já contou a felizardo que ele será pai? — sem querer a raiva me
faz espatifar o copo em minhas mãos. — Tártaro!
— Já. A criança nascerá quando eu estiver com minha mãe. Darei ela
às ninfas, como fiz com as outras. Quando eu voltar aqui, tudo estará
normal. — ela diz com simplicidade.
— Quando se tornou essa megera sem coração, Perséfone? Quando a
conheci, era doce e pura. — pergunto enquanto pegar outro copo e me sirvo
de mais uma dose de bebida.
A gargalhada dela me faz trancar a mandíbula.
— Acha que alguém doce e pura se interessaria por você, Hades? Por
favor! Você se iludiu achando que eu era assim. — ela se aproxima
ondulando os quadris, me olhando com desejo nos olhos escuros. — Acha
que se eu fosse pura teria ido para a cama com você no minuto em que
ficamos a sós? No instante em que me tocou?
Ela passa as mãos pelos meus ombros, se aproximando e eu sinto seu
desejo me envolver.
— Eu nunca deveria tê-la roubado. — penso em voz alta, pela
milionésima vez.
— Mas roubou. Ficou louco de desejo, achando que minha inocência
inexistente pudesse lhe converter de algum jeito. Você sempre subestimou os
outros. — as mãos dela descem pelo meu peito, abdômen e procuram meu
membro.
Eu deixo, para ela notar o que seu toque provoca em meu corpo:
nada.
— Você sempre foi ardilosa, pena que quando notei já era tarde
demais. Mais uma alma podre aqui não fez diferença nenhuma. Me solte,
Perséfone. Não irá conseguir nada "dele". — digo, me referindo ao meu
membro adormecido na mão dela, que o solta irritada. Me aproximo e
sussurro junto ao seu ouvido. — Não importa quantos você tenha, com
quantos deuses e semideuses você se deite, sempre irá querer o meu, mas
não o terá nunca mais.
Me afasto, a revolta crescendo outra vez dentro de mim e as chamas
irradiando pelo meu corpo.
— Hades, quantas vezes terei que pedir desculpas? Foi em um
momento de raiva! — ela faz beicinho. — Eu amo tudo em você, amor. —
ela se aproxima outra vez. — E "ele" é perfeito, o maior e mais maravilhoso
de todos. Poxa! Você sabe disso! E quando eu disse que "ele" não servia para
nada, no caso fazer filhos, foi porque você achou que aquela ninfa estava
grávida de você! Um absurdo!
— Perséfone? CALE A BOCA!!! — eu urro mais uma vez e tudo
estremece. Me seguro para não liberar minha energia aqui mesmo, acabar
com todo meu reino e fazê-la virar pó, mesmo sendo imortal.
Ela se encolhe. Com os olhos muito arregalados e se curvando até o
chão, ela recua.
Sei que minha forma mudou. Estou em minha essência e isso a
assusta.
Respiro fundo, vejo Hso, meu mordomo fantasma, se materializar
com sua brancura infinita próximo a mim. Ele está curvado e não me olha.
— As moiras solicitam sua presença, amo — ele diz muito
tranquilamente.
— Vou em um minuto — digo isso e ele some outra vez.
— Lacaio imundo. — Perséfone torce a boca. Ela não suporta que
nenhum subalterno se aproxime de sua presença e se Hso veio, mesmo
sabendo que ela pode e com certeza irá castigá-lo, é porque é urgente.
Eu me retiro da sala, deixando minha esposa para trás. Mas antes de
passar pela porta, eu me detenho:
— Sabe que se quiser, pode ficar com a criança. — eu me arrependo
do que digo. Mas talvez, mesmo não sendo meu filho, eu possa criá-lo.
— Sabe o quanto odeio crianças, Hades. E mesmo assim, jamais
traria uma para cá.
Eu concordo com a cabeça, tomando uma decisão.
— Leve todas as suas coisas, Perséfone. Não precisa mais voltar
daqui a nove meses.
A gargalhada dela me faz rever a possibilidade de deixá-la sair viva
dessa relação.
— E quem cuidará de seu mundo quando estiver ocupado torturando,
julgando ou matando lá em cima?
— Não você. Não mais — eu me viro para a mulher que um dia
achei que fosse me completar, mas que é tão podre quanto eu mesmo, com o
olhar flamejante e ela apenas abaixa a cabeça, contrariada, mas aceitando o
rompimento.
Me afasto com passos firmes.
Hermes fez um filho em minha mulher, aquele moleque atrevido!
Certo que não temos relações há alguns séculos, certo que ela não é obrigada
a ser fiel e nunca esperei que fosse, mas grávida?! Outra vez?! E não quer a
criança! Quando eu não posso fazer filho nenhum. Quando eu nunca terei
meus descendentes.
— Tártaro!!! — eu grito exasperado, saindo de minha casa, a
construção enorme em mármore negro e ferro, como nos antigos templos
que os mortais nos faziam e que agora foram substituídos por aquelas
construções horríveis.
Aos portões está Cérbero inquieto. As três cabeças aspiram o ar
quando eu saio e ele balança levemente a cauda.
— Quieto, Cérbero! — eu rosno para ele, que se deita com as
cabeças enormes sobre as patas, voltando a roer um fêmur ou qualquer coisa
desse tipo.
Às margens do rio do ódio, o Estige, eu mentalizo a gruta das Moiras
e em segundos estou lá. A escuridão me cerca e a tênue luz esverdeada me
guia para onde as três estão: de frente a uma enorme roca de fiar.
— Ainda usam essa coisa antiga? Nem Zeus usa mais os apetrechos
antigos! E olha que ele é o ultrapassado do time — me aproximo e a mais
jovem, com cabelos repicados e piercing no nariz, vem até mim. — E aí,
Cloto? – a cumprimento e ela bate na minha mão, largando por um minuto o
fuso que tecia a vida de algum infeliz.
— Já falei para elas, Hades, mas não me escutam! – ela diz revirando
os olhos.
— Você só fala besteiras! — diz a mais velha, com cabelos grisalhos
e poucos dentes, com sua tesoura grande e afiada, cortando um entre tantos
fios que se emaranham neste lugar, matando mais um. Ela me encara, o
brilho esverdeado do seu olhar sendo dirigido a mim. — Vejo que continua
lindo, Hades! Hum, hum...
— Obrigado! Pena que não posso dizer o mesmo, Átropos — reviro
os olhos e ela sorri ainda mais.
— Chega de tagarelice inútil! Temos que dizer logo o que vimos! —
a mulher jovem e bonita, Láquesis, enrola outra bola de fio brilhante.
— E o que viram? Por que me chamaram? Certamente não tem...
— Vimos seu futuro — elas dizem em uníssono.
— O quê? O que viram? — pergunto mais uma vez, agora com
cautela. Elas raramente dividem o que veem com os outros. — E o que
querem?
— Não queremos nada... Ainda. — Outra vez as palavras são ditas
em trio. — Vimos sua semente germinando, seu sonho se realizando.
Eu me engasgo. Tusso e me seguro na parede de pedra.
— Um filho? Não. Perséfone me...
— Não de Perséfone, mas com a mortal que pode lhe enxergar.
Enxergá-lo como você realmente é. — as palavras são ditas por todas, então
a mais velha, segurando por sua vez a roca, diz:
— O deus da destruição jamais poderia criar algo. O deus do fim
jamais poderia iniciar. O deus da morte jamais poderia fazer a vida.
— Pula essa parte, que essa merda eu já sei! — digo com raiva.
A mulher, Láquesis, agora toca a roca e começa seu discurso:
— Mas há um jeito. Uma mortal. Uma mortal com coração puro.
Alguém que vê além dos olhos. Alguém que vê com a alma. Ela pode fazer a
vida nascer onde era antes impossível. Ela é a flor que nasce em meio às
pedras, e esta flor irá brotar.
— Poderá ter um filho meu?! — pergunto incrédulo. — Uma mortal?
Eu não me deito com mortais! Eu não...
A jovem pega a roca agora e ela me interrompe:
— Sim, mas que só será concebido quando o poder dela tocar o seu.
Fruto do amor, puro e verdadeiro.
Eu fico catatônico.
— Amor?!!! Estão brincando, não é?! Que droga de brincadeira é
essa?! — eu urro e as pedras do teto da gruta caem aos pares.
— Nós vimos. Vai acontecer — elas dizem ao mesmo tempo outra
vez. — E quando acontecer, você terá duas opções de caminhos a seguir e
disso dependerá o futuro do seu reino.
Dito isso, os olhos das três perdem o brilho esverdeado que haviam
adquirido.
— Acho melhor preparar um quarto no seu palácio negro, Hades. Ah,
e aprender a controlar essas chamas pode ser bom também! — Cloto pisca
um olho pintado de azul florescente para mim. — Só acho.
Eu me viro e me afasto em silêncio, passando a mão nos cabelos,
para fazer as labaredas diminuírem.
Um filho. Mas o preço é muito grande! Amor! Amor!!!!
Não conheço essa merda! O máximo que senti foi aquela loucura por
Perséfone! Mas alguns meses com ela e eu queria jogá-la no Flegetonte, o
rio que passa pelo Tártaro e que é de sangue fervente.
Maldita mulher! Eu queria tê-la apenas porque todos a queriam,
todos iam até Deméter e ela não dava a mão da moça a ninguém. Zeus estava
louco por ela. Ela era linda e delicada e quando eu tive a oportunidade, a
roubei, trouxe para o submundo e ela me aceitou ao primeiro toque. Na
mesma noite ela me pediu a imortalidade, que eu dei de bom grado. Então
começaram os problemas. Descobri que estava "apaixonado" apenas por
causa de uma droga de flecha do filho de Afrodite! E que a pura e doce
Perséfone havia sido de Zeus antes de ser minha, mas como Zeus se negou a
abrir mão de Hera para se casar com ela, eu, idiota, a tornei rainha, que era o
que ela sempre quis. Ela continuou se encontrando com Zeus. Eu tive alguns
poucos casos com ninfas e ondinas, mas nada que superasse o desejo do
momento, ou fosse além disso.
Eu vivo há milhares de anos e nunca conheci o amor, nunca amei ou
fui amado, tampouco me relacionei com uma mortal.
Sei que as Moiras não mentem e nem se enganam, mas acho que
desta vez fizeram alguma confusão das grandes!
Capítulo II
MOIRAS

Brasil, dias atuais.

Carolina

— R$ 38,65. — Eu digo à senhora de cabelos muito grisalhos e rosto


marcado pela idade.
Ela procura na bolsa rasgada pelo excesso de uso a carteira, mas
quando retira a mão, apenas uma nota de R$ 5,00 está ali dentro e depois de
um tempo, mais algumas moedas caem de lá.
Mas o resto do dinheiro... Esse não existe.
— Só um minuto, moça, eu sei que está aqui. Eu juro que tinha
mais... — eu espero com paciência e um sorriso a velhinha continuar
procurando, enquanto vou empacotando suas compras.
Pão. Leite. Ovos. Arroz. Algumas batatas e açúcar. Nada demais.
Tudo essencial e do mais barato, com exceção de uma coisa: um iogurte
grego que está dando uma viagem para a Grécia. Eu sorrio com carinho
diante da esperança dela em comprar aquilo.
Ela suspira.
— Moça, não precisa empacotar, eu vou ter que deixar. Acho que
perdi meu dinheiro, isso que dá morar sozinha. Vou levar só o pão, terei que
passar a pão o final de semana para aprender a não ser caduca. — Ela me dá
um sorriso triste e envergonhado.
Olho para as compras, depois para ela, que se veste miseravelmente e
calculo mentalmente minha quebra de caixa, que já está estourada esse mês,
como sempre.
— A senhora mora sozinha? Não tem medo? — Eu digo, enquanto
ignoro a nota de R$ 5,00 estendida e aperto a tecla que diz que ela me pagou
exatamente R$ 38,65.
— Eu sou mais forte que pareço! — Ela endireita as costas curvadas
e sorri com poucos dentes.
Eu a acompanho.
— Sim, as aparências às vezes enganam. Eu que sei. — Arrumo
meus óculos e arranco a nota fiscal, entregando para ela, que fica pasma me
encarando sem entender e ainda tentando me dar o seu dinheiro.
— Seu troco, senhora. — Eu pego sua mão e fecho em volta do seu
dinheiro. — Tenha um bom final de semana — eu digo cansada, porém feliz
de que meu turno esteja acabando, assim como a semana.
A senhora olha para seu dinheiro e depois para as compras e me
encara, perguntando:
— Por que fez isso?
— Porque não posso deixá-la passar o final de semana apenas
comendo pão! — Eu sussurro o óbvio. — Mas peço desculpas se a ofendi de
alguma maneira, não foi minha intenção.
Ela sorri, um sorriso grande e bonito que a faz parecer mais jovem e
seus olhos se iluminarem em um tom esverdeado. Ela abre uma das sacolas e
me entrega o iogurte, a única coisa supérflua que comprou.
— Para você, Carolina. — Ela diz.
Como assim?! Como sabe o meu nome? Ah! Óbvio! Ela deve ter lido
meu nome no crachá. Dãããh!
— Oh, não, senhora. Imagine, não precisa.
— Precisa, sim — ela pega a minha mão e coloca o potinho no meio
dela. — Vou falar com o segurança que eu dei para você. E quando ganhar
sua viagem para a Grécia, não deixe que nada interfira no seu destino, linda
e doce Carolina.
Eu pisco várias vezes diante do que ela diz, ela sorri e a vejo ir em
direção ao guarda e mostrar a nota olhando para mim, depois acena e vai
embora. O guarda vem até mim e cola uma etiqueta no iogurte.
— A velhinha poderia ter lhe dado uma barra de cereais, se queria
agradar. Acho que você deve é ficar longe de um desses. — Marcos
debocha, enquanto assina o selo que me permite consumir os produtos aqui
dentro.
— Ai, nossa! Como você é engraçado. Da próxima vez que for fazer
uma piada, me avisa antes. Quem sabe se eu forçar sai um sorriso!
Ele ri e me devolve meu "presente".
— Só estou tentando ajudar! — O metido a fortinho endireita as
costas, tentando parecer mais magro e atlético.
— O sujo falando do mal lavado. — Torço a boca. — Obrigada,
Marcos, mas não vou dividir com você.
— Eu não queria que dividisse! — Ele se faz de ofendido.
Eu rio, não aguentando ficar de cara feia muito tempo.
— Queria ele todo para você, guloso?! — pergunto, ainda rindo.
— Claro! É muito pequeno, não dá para dividir! — Ele sai rindo
também.
Eu reviro os olhos. Estou acostumada com as piadinhas de Marcos.
Não sou magra e trabalhar sentada o dia todo não contribui com minhas
medidas, mas nem ligo, não vou ficar me matando em uma academia só para
me mostrar para os outros. Final de semana eu gosto de andar de bicicleta e
dou minhas caminhadas. Minha saúde é de ferro, porém alguns quilinhos
insistem em continuar comigo, fazendo minhas coxas, quadris e a maldita
barriguinha ficarem fora dos padrões perfeitamente estéticos, e eu
sinceramente estou pouco me lixando para isso.
Guardo meu iogurte e atendo mais um cliente. Logo vou estar na
minha cama e vou poder descansar.

✽✽✽

Algumas horas depois estou entrando na pensão onde moro, passo


pelo corredor grande e Lucy me cumprimenta.
— Chegou sexta—feira! — Ela diz animada e com a toalha na
cabeça, saindo do seu quarto, certamente se aprontando para sextar.
Eu sorrio desanimada.
— Ainda me falta mais um dia para acabar minha semana! Pelo
menos amanhã é só até o meio dia! — Eu forço mais um sorriso.
— Ai, que desânimo!!! Carol, você precisa se distrair! Vem comigo
hoje! Vamos dançar e tomar um porre! — ela diz, enquanto eu enfio minha
chave e abro minha porta, entrando e acendendo a luz do meu quarto.
— Eu tô podre de cansada, Lucy, mas prometo que da próxima...
— Carolina Mattos, você sempre diz isso! — Ela me interrompe. —
Não vai ser como da última vez! Eu prometo!
Eu jogo minha bolsa na cama e me sento tirando as sapatilhas, depois
olho para Lucy. Ela é uma ruiva linda: corpão, simpática e muito alegre. Seu
nome quando nasceu era Luciano, mas por se identificar com o gênero
feminino, adotou o nome Lucy. Eu a amo, porém da última vez me deixou
para trás sozinha e saiu com um ex-namorado lindo de doer. Por mim, tudo
bem, imagina se eu iria julgar minha amiga por ter se entusiasmado tanto a
ponto de não lembrar de me avisar que estava da saída, mas a grande merda
foi que ela levou sem querer minha carteira e celular dentro de sua bolsa.
Sabe aquelas ideias de jerico de: "vamos levar só uma bolsinha na
balada, para podermos dançar melhor, coloca tudo aqui... blablabla..." Pois
é! Nessas ideias eu tive que andar mais de três horas na madrugada,
morrendo de medo, sem dinheiro para um táxi, nem telefone para pedir
socorro para as outras amigas da pensão.
— Aquilo foi um acidente! Nem pense que não saio por causa disso,
Lucy! Te proíbo! Você sabe que não saio mais porque não tenho energia para
isso, fico cansada. A música é alta demais, a bebida me pega rápido demais e
eu não sei dançar. Você viu! — Ela ri e eu também.
Julia, outra colega de pensão, aparece entrando no meu quarto.
— Ei! Chegou e não me avisou? — A estudante de farmácia com
metade da cabeça raspada entra sem floreio e se senta do meu lado na cama.
— Estou tentando fazer essa monja sair comigo! — Lucy diz,
torcendo a boca.
— Por que não vai, Carol? Só não esquece de ficar com sua carteira
desta vez! — Ela ri e Lucy mostra a língua para ela.
— Meninas, eu estou um caco! Se fosse para descansar, eu iria! Para
uma praia paradisíaca ou uma rede, ninguém me convida! Eu toparia, com
certeza! — digo e elas riem.
— Você parece uma velha! — Lucy me recrimina.
— Isso me lembra... — eu pego minha bolsa e retiro o iogurte lá de
dentro. — Uma senhora me deu. Disse que eu vou ganhar uma viagem com
isso. — Não conto que paguei as compras dela, pois como a diretora do
orfanato em que cresci dizia: "não saiba sua mão esquerda o que sua direita
gastou..." Ou mais ou menos isso. Sei lá.
— Esse é aquele que está dando uma mega viagem para a Grécia
com tudo pago? — Julia arregala os olhos. — Abre logo, Carol! Fica na
tampa! Eu vi a propaganda!!!
Lucy se aproxima.
— Se não ganhar a viagem, pelo menos tem o iogurte que é bem
bom! — Ela, como sempre, realista, mas tem uma expressão de esperança no
olhar.
— Na tampa, você diz? — Eu pego a tampinha de alumínio e a puxo,
sorrindo com a expectativa delas.
Até parece...
— E então? — Lucy pergunta.
— Pelo amor de Deus! Tem alguma coisa escrita aí? — Julia se
exaspera.
— Pera, gente, eu vou lamber a tampa, tá cheia de iogurte.
hummmmm. Coisa boa! Acho bom vocês pegarem uma colherzinha se...
Fico muda, de olhos arregalados, fitando as palavras impressas na
parte de dentro da tampa de alumínio com letras garrafais que parecem
brilhar:
"Parabéns! A Grécia é o seu destino! E ele espera por você"
Capítulo III
DESTINO

" Não deixe que nada interfira no seu destino".


Foram estas as palavras da velhinha quando me deu o iogurte. E foi
pensando nisso que pedi demissão do meu emprego, para fazer uma viagem
dos sonhos. Emprego eu poderia encontrar outro, mas quando ganharia
novamente uma oportunidade destas? Isso mesmo. Nunca! O raio não cai da
mesma nuvem duas vezes... Ou quase isso. Sei lá.
Eu sou do tipo ferrada. Do tipo que sempre foi ferrada, mas sempre
encontrei pessoas boas pelo meu caminho. No orfanato tinha uma irmã que
sempre me tratava com carinho, nunca vou me esquecer dela, irmã Vera. Na
pensão me dou bem com todas as meninas, e desta vez elas fizeram uma
vaquinha para eu poder comprar uma mala, arrumar os cabelos e tal. Me
deram até roupas! Como disse, gente boa. E ainda vieram se despedir no
aeroporto. Até a dona da pensão, que eu considero como uma mãe, dona
Geni, foi.
Quando entrei no avião, estava tão emocionada e ainda sem acreditar
na minha sorte, que nem notei a pessoa que se sentou ao meu lado.
Unicamente porque eu estava na JANELA!!!
Nunca andei de avião, óbvio. Nunca vi esse luxo! É na tal de classe
econômica, mas quem liga??? Estou no céu! Não literalmente, pois o avião
ainda não saiu do chão.
Rindo sozinha eu pego tudo que vejo. Revistas, papéis, tento ligar a
tvzinha, coloco os fones.
— Primeira vez que você voa? — A voz fina, quase infantil, da
adolescente ao meu lado me assusta.
Me viro e vejo uma moça de uns 16 anos, ou menos, cabelo repicado
colorido, piercing no nariz e olhos muito verdes.
— Sim! — Digo animada e já conto a ela a minha sorte em ter ganho
a promoção.
Conversamos por um bom tempo. Ela vai descer na primeira escala.
Está indo para Boston visitar o pai. Gente boa ela. Me disse que conversar a
tranquiliza, pois tem medo de avião, que mesmo aumentando todo o volume
dos fones, ela fica apreensiva.
Eu conto, então, sobre minha vida na pensão, sobre as loucuras das
meninas, conto sobre minha infância no orfanato, tentando fazer ela esquecer
um pouco o voo, mesmo eu estando louca para mexer em tudo e olhar para
fora.
Rimos e quando dou por mim o avião já está no ar e eu senti apenas
um leve inclinar de poltrona.
Quando descemos na conexão em Boston, ela me abraça ao se
despedir.
— Valeu pelo papo! Tenha uma ótima viagem até seu destino e que
os deuses te acompanhem.
Achei estranho o "deuses", mas agradeci do mesmo modo. Esses
adolescentes são tão diferentes! Amo todos!
Uma hora depois estou em desespero na frente do balcão da
companhia aérea.
— Como assim lose minha passagem?! Como assim don't have? —
Já deu para ver que meu inglês é uma grande porcaria, mas estão dizendo
que aconteceu um problem e só tomorrow, amanhã, vão me encaixar. —
Moço, eu não posso... I can't! Please!! Por favor!
Implorar em outra língua é tão ineficaz quanto na minha própria, pois
o moço me olha com olhar entediado e responde um monte de coisas em
inglês. E que, lógico, eu não entendo patavinas.
— Eu não entendo. No compreendo! No... oh, Deus! Tem alguém
que fala português? Espanhol? Somebody?
Então uma mulher muito elegante e bem-vestida aparece atrás dele,
pergunta sobre meu problem e depois do moço explicar, ela me olha com
pena.
— Hablas español? — Ela pergunta e eu confirmo com a cabeça.
Hablo nada. Mas entendo, como todo brasileiro: um pouquito.
— Perdón, pero tenemos un problema com su pasaje. Mañana
tenemos...
— No moça! Manhana não se puede. Eu ganhei estadia para
amanhana! Tenho que estar em Atenas e no puedo passar la noiche aqui!
Me ajude, por favor! Eu vou perder tudo lo que ganhei! Por favor! Eu
necessito ir me no próximo voo! Por favor, moça, me ajude!
Já deu para ver que meu espanhol também é uma grande porcaria,
mas a moça me olha com pena, com grandes olhos verdes, que parece que eu
já vi em algum lugar... Ela mexe no PC, depois sussurra algo para o moço,
que discute com ela contrariado. Ela apenas sorri, um sorriso misterioso e
então me estende uma passagem.
— Su pasaje. First class. Tenga una óptima viajen ate su destino —
ela continua sorrindo e eu quase dou uma cambalhota de alegria. Na
verdade, eu dei um pulo.
— Obrigada, moça! Muito obrigada!!!
Olho o horário e corro como louca até o portão de embarque,
esbarrando no caminho com uma coluna enorme e indo ao chão, caindo de
bunda no meio do aeroporto. Pagar mico é comigo mesma. Mas a grande
droga foi que perdi meus óculos na queda e um arrepio gelado está subindo
pela minha espinha.
E como quem toma banho é para se molhar (ou quase isso, sei lá), de
quatro mesmo eu procuro meus óculos fugitivos.
— Por que mortais não olham por onde andam? — As palavras ditas
em tom extremamente irado e em PORTUGUÊS me fazem encarar o vulto
na minha frente, que ainda está de pé e parece uma... coluna enorme!
— Foi em você que eu esbarrei?! Desculpa, senhor! Eu estava meio
entusiasmada demais! — dou uma risada e volto a procurar meus óculos.
Ouço um "hunf" vindo dele. E ele parece se distanciar.
— Moço! — Eu o chamo. — Moço! Oh, senhor de preto que parece
uma grande coluna! Moço! — eu ainda estou no chão e vejo o vulto parar.
— Poderia me ajudar a encontrar meus óculos? Ninguém mais aqui me
entende e eu não sei falar "óculos" em inglês. — Dou aquele sorriso
amarelo, envergonhada no "urtimo".
Ele não faz nenhum movimento para me ajudar, apenas me olha e eu
fico com mais vergonha ainda de tê-lo chamado.
— Como que...? — em seguida ele limpa a garganta. — Acha
mesmo que eu a ajudaria? Acha mesmo que eu ficaria prostrado como um
servo enquanto procuro seus "óculos"?
Eu me ergo, desistindo. Parece que o negócio caiu mais longe do que
imaginei.
— Falando assim, parece idiota mesmo. — Eu sorrio para ele, que
mesmo comigo em pé ainda parece enorme e muito alto.
— Como consegue me enxergar? — a voz dele agora não tem a
irritabilidade de antes, apenas curiosidade.
— Não consigo. Só um borrão.
Estreito os olhos tentando fazer o rosto dele entrar em foco, mas na
verdade a única coisa que vejo é um homem de óculos escuros. E parece que
tem cabelos pretos... Ou castanhos muito escuros. Está difícil. Ainda mais
com essa "névoa" intensa e... laranja? É isso mesmo? Laranja? Deve ser a
luz aqui, ou bati a cabeça quando caí? Humm... não lembro desta parte.
Ele se aproxima e para a centímetros do meu rosto, fazendo o seu
próprio entrar em foco. Eu dou um pulo para trás.
— Nossa! — Digo e depois limpo a garganta para disfarçar.
O rosto mais lindo do mundo apareceu na minha frente. Nunca na
minha vida de espectadora de filmes hollywoodianos vi um homem tão
excepcional, tão homem e eu acho que agora já posso morrer, cair dura de
vergonha. Eu chamei o lindão ali para me ajudar a garimpar meus óculos?
Eu, mais do que ninguém, sei que gente bonita é esnobe. Mas ele ainda está
me encarando. O rosto ainda perto o suficiente para eu poder vê-lo: queixo
quadrado, imponente e másculo, com uma covinha, coberto por uma barba
rala. O nariz perfeito, reto e proporcional. Os lábios... minha Nossa Senhora
das Carolinas Boquiabertas. Eu. Nunca. Vi. Uma. Boca. Assim...
— Quero! — Eu digo sem perceber.
— O que? — A voz dele parece profunda e macia, me envolvendo
como uma neblina.
— O que o quê? — Eu sacudo a cabeça e olho para o chão fingindo
procurar os meus óculos. Quero cavar um buraco e me enterrar de vergonha.
— Aqui. — Vejo-o me estender algo.
— Meus óculos!!! — dou um grito de alegria, sorrio e apanho-o de
sua mão, porém meus dedos roçam seu pulso e algo em mim, algo estranho,
acontece.
Um flash tão grande e vivo aparece em minha mente, algo muito
intenso: fogo. Trevas. Gritos. Desejo... Vem e em questão de segundos se
vai. Eu retiro minha mão, puxando-a como se ele a tivesse queimado.
Me encolho. Esse cara é sinistro, lindo e arrogante, tudo o que eu não
gosto.
— Obrigada, moço. — Eu coloco os óculos e quando olho em sua
direção ele não está mais lá. Sumiu. — Ótimo. — Suspiro alto, pegando
minha mala e me dirigindo para o portão de embarque.
Só sei de uma coisa, eu estou indo para a Grécia de primeira classe!
Mostro para a comissária de bordo minha passagem e rindo toda
boba entro no avião.
Primeira classe! Já disse primeira classe? Pois é!
Duas ou apenas uma poltrona de cada lado. Não quatro, como no que
eu vim. E elas são de couro e largas! Quase da largura da minha cama, só
que mais macia! O céu! Ser rico deve ser muito bom! Hum, hum!
Eu estou com tanta sorte que não duvido que algo muito perfeito
aconteça nesta viagem. Algo do tipo... Eu conhecer um homem bom e
decente... Imagina se eu voltasse casada para o Brasil?! Ou nem voltasse!
Morar na Grécia! Que sonho!
Suspiro alto.
Meus sonhos românticos morreram há tanto tempo, que só a simples
ideia já me deixa feliz. É bom voltar a imaginar que posso ser amada,
mesmo que isso esteja longe de acontecer.
Eu tive alguns namorados quando era adolescente. Beijinhos e só.
Mas o último foi tão... Tão péssimo, que eu desisti. O último foi além dos
beijos. Eu não vou mentir que não queria, pois eu queria, mas não daquele
jeito. Não no banco de trás do carro dele. Com pressa, e sem nenhum
carinho ou atenção comigo. Doeu e só. Depois disso ele nunca mais me
procurou, nem atendeu minhas ligações. Devo ser ruim ao extremo mesmo.
O cara me usou como uma... Hummm... Uma trouxa, não tem outra
comparação. Me usou e não gostou. Eu também não gostei, mas imaginei
que se acontecesse outra vez eu poderia gostar, não teria aquela dor horrível.
Pelo menos é o que dizem os livros e as meninas da pensão.
Na verdade-verdadeira eu sempre me identifiquei com uma moça que
vi em um filme uma vez, uma tal de Muriel. O filme? "O Casamento de
Muriel" — Muriel era como eu. Aquela que ninguém queria. E Muriel,
assim como eu, queria porque queria ter alguém, mas sempre acontecia
coisas doidas na hora do "vamos ver" e ela ficou velha e virgem.
Comigo foi quase isso. Perdi minha virgindade com 21 anos, quase
22. Não acho que isso seja bom. Não estava me "guardando", não tive foi
oportunidade! Quando achava um louco para possível candidato, parecia que
até o inferno se abria para interferir! Mas Muriel se casou com um cara loiro
e lindo e teve sua primeira vez. Aí notou que o que ela queria: homem,
casamento e tals não eram tão importantes assim na sua vida. Comigo foi a
mesma coisa. Tive minha primeira vez (ruim pra dedéu) e depois que Bruno
sumiu do mapa, eu me dei conta que não deveria ficar "procurando" homem.
SE fosse para acontecer, aconteceria naturalmente, na hora certa.
Desejo é uma coisa que dá e passa. Ninguém morre de tesão, graças a
Deus! Senão eu já estaria morta há muiiiiito tempo!
Depois de três anos, eu desisti de esperar. Dizem que toda panela tem
sua metade (ou quase isso, sei lá), mas eu não tenho a minha. Só que eu não
vou mentir: eu queria ter. Queria ter uma família. Um amor para toda a vida.
Queria. Mas isso é como ser milionária, são poucas que tem essa sorte. E
poxa... Sorte é uma coisa que definitivamente eu não tenho.
Pelo menos até abrir aquele iogurte! Talvez as coisas comecem a
mudar, finalmente!
Estou indo para as praias mais lindas do planeta! Os maiores pontos
turísticos do mundo e vou ver os gregos, que todo mundo diz serem o padrão
de perfeição masculina! Olhar pode! E quem sabe um grego, não tão lindo,
óbvio, seja gentil comigo... Quem sabe me convide para um jantar ou um
sorvete... Sim... Vai convidar sim. Nem falo a língua deles!
Solto um suspiro olhando pela janela.
É melhor parar de imaginar besteiras. Eu, Carolina, não sou mulher
do tipo que faz homens se esforçarem para conversar. Pelo menos não com
segundas intenções. E eu já desisti de homens! Só porque encontrei com
aquele lindão antes, estou pensando asneiras! Deve ser isso!
Retiro meu livro/guia de viagem de dentro da bolsa. Noto que
alguém se senta ao meu lado e um arrepio gelado percorre minha espinha.
Estranho, mas eu sei quem é, mesmo sem olhar para ele. O cara que
eu esbarrei. O gato sinistro e arrogante.
Finjo não ter notado sua presença e me viro mais ainda para a janela.
— Pretende fingir que não estou aqui a viagem inteira? — Ele parece
estar extremamente aborrecido.
Eu o encaro. Ele está sem óculos e vejo seus olhos castanhos
dourados que parecem ter chamas queimando dentro deles. Não gosto de ser
rude, mas acima de tudo não gosto de arrogância.
— Por que acha que me importo tanto assim com sua presença?
— Não se importa? — Ele parece debochar com uma sobrancelha
erguida.
Eu rio dele.
— Olha, moço, a única coisa que eu me importo é em chegar na
Grécia. Sua presença aqui é irrelevante. — Viro o rosto outra vez para a
janela e escuto sua voz rouca e máscula próxima a mim:
— Se chegar ao seu destino é o que importa, então minha presença
aqui é a única coisa relevante.
Capítulo IV
DESTINO VERSÃO HADES

Um país qualquer. Data Irrelevante.

Hades

Eu soube assim que aquelas doidas das Moiras me disseram para levar
todos de um voo insignificante, que alguma merda iria acontecer.
Imaginei que seria porque deixei o reino nas mãos de Hécate, mesmo
por alguns minutos. Na verdade, alguns minutos são mais que suficiente para
aquela emo acabar com tudo. Ou pelo menos criar uma confusão infernal.
Hécate nunca foi uma boa substituta. Ela é sombria demais, até para meus
padrões, o que é muita coisa. Ela gosta de visitar cemitérios e andar com as
Fúrias. Parei de pedir sua ajuda quando notei que visitar o Tártaro lhe trazia
satisfação, quase felicidade, assim como assistir às punições. Ela é uma boa
assistente e adora levar Cérbero para passear, mas apenas isso. Jamais
poderá julgar imparcialmente as almas ou tomar conta do Submundo para
mim. Não como Perséfone.
Faz seis meses que aquela pé-no-saco se foi. E, como sempre, já
começo a sentir sua falta. Falta, não saudade, que fique bem claro. Não
tenho nenhum sentimento com relação a ela, mas não ter ninguém para me
ajudar, para conversar, fazem os gritos e lamentos do Submundo se tornarem
insuportáveis. Depois de tanto tempo juntos, eu me acostumei com a
presença dela, por mais irritante que ela ou isso seja. Pelo menos era uma
presença, que servia mais para me atazanar do que para me alegrar...
Alegrar? Eu disse alegrar?! Hunf! Nem sei que merda é essa!
É por isso que sempre quis um descendente. Mais do que prolongar a
linhagem, eu quero alguém para dividir os meus domínios. Alguém para
compartilhar meu legado e existência. Perséfone é apenas alguém. Alguém
que me dá raiva, e por vezes asco, mas não deixa de ser alguém.
Hermes, aquele moleque, teve a cara de pau de vir trazer um recado
dela, dizendo que daqui a três meses ela voltará para conversar, para
negociar um acordo.
Talvez ela se ausentar de todo tenha sido uma ideia ruim, afinal três
meses, que é o tempo que ela fica comigo, não é realmente muita coisa...
Algo se choca em mim enquanto estou andando pelo saguão do
aeroporto, onde vou entrar no avião com destino à Grécia. O avião do qual
devo levar as almas. Todas elas.
Me viro para ver que idiota conseguiu me acertar enquanto estou
usando meus óculos da invisibilidade, versão moderna de meu elmo das
trevas e dou de cara com uma mortal caída no chão.
— Por que mortais não olham por onde andam? — pergunto a mim
mesmo, com asco por tudo e por eles. Principalmente por eles. Tolos.
— Foi em você que eu esbarrei?! Desculpa, senhor! Eu estava meio
entusiasmada demais! — ela diz em língua que descende do antigo latim,
depois escuto sua risada, limpa, cristalina.
Não notei que havia falado em voz alta, na língua universal, mas pelo
jeito falei. Como sei ser impossível ela me ver, eu paro para observá-la
melhor. Sua risada me fez estagnar. Ela está no chão e ficando de quatro,
parece tatear o piso. A visão do traseiro grande e redondo espremido em uma
calça jeans justa me faz quase salivar e dobrar o pescoço para apreciar
melhor a visão.
Droga! Mortais! Tentadoras e frágeis. Não são para seu bico!
Aquiete-se!
Ordeno a parte do meu corpo que já está ficando rija diante da
posição que eu mais gosto.
Dou um suspiro irritado, me virando e andando para longe. Não
tenho tempo para isso!
— Moço! — ela diz, naquela língua. — Moço! O senhor de preto
que parece uma grande coluna! Moço! — É comigo? Ela está me
vendo??? Paro e me viro para ela. — Poderia me ajudar a encontrar meus
óculos? Ninguém mais aqui me entende e eu não sei falar "óculos" em inglês
— ela continua.
Sim! Ela me vê! Está sorrindo envergonhada, ainda no chão. E eu
não acredito que isso está acontecendo.
— Como que...? — começo, mas não termino, limpo a garganta, me
lembrando do que ela pediu — Acha mesmo que eu a ajudaria? Acha mesmo
que eu ficaria prostrado como um servo enquanto procuro seus “óculos”? —
Digo mostrando toda a minha irritação quanto a essa situação estapafúrdia.
Será que meu novo elmo não está funcionando? Meu antigo nunca
me deu problemas! Merda de modernidade!
Ela se levanta, parece desistir de achar o tal óculos.
— Falando assim, parece idiota mesmo. — Ela diz sorrindo para
mim, um sorriso enorme e bonito, sem malícia como o de Perséfone. Apenas
um sorriso sincero.
Estreito meus olhos, medindo-a de cima a baixo.
Ela é baixinha e tem curvas fartas. Os seios grandes parecem querer
escapar do decote, me fazendo apertar a mão em punhos, para não ceder ao
impulso de tocá-los... Os cabelos castanhos ondulados fazem contraste com
os olhos límpidos e de um tom indefinido. Parece misturar o azul, verde,
cinza e até mesmo o castanho. Nunca vi olhos assim.
— Como consegue me enxergar? — pergunto sem sentir, imaginando
que deve ser por causa dos olhos estranhos que ela vê o que não deve.
— Não consigo. Só um borrão. — Ela responde com sinceridade e
estreita os olhos.
Eu me aproximo e paro a centímetros do seu rosto, testando-a para
ver se ela realmente consegue me ver. Para minha surpresa, ela dá um pulo
para trás, quase em choque.
Merda! Com certeza ela me viu!
— Nossa! — ela deixa escapar assustada e depois limpa a garganta.
Claro que ela ia se assustar. Ela sente o que todos os mortais sentem
quando me veem. Horror. Temor cru e intenso...
Mas... o quê?!!
O pensamento dela é claro e limpo. Eu me vejo pelos olhos dela, que
se detém em cada ponto do meu rosto. ADMIRANDO, ao invés de temer.
"Nunca na minha vida de espectadora de filmes hollywoodianos vi
um homem tão excepcional, tão homem e eu acho que agora já posso
morrer, cair dura de vergonha. Eu chamei o lindão ali para me ajudar a
garimpar meus óculos? Eu, mais do que ninguém, sei que gente bonita é
esnobe."
Lindão?! Eu?!! Mortais não me acham lindo. Mortais me acham
aterrorizante!
"Minha Nossa Senhora das Carolinas Boquiabertas. Eu. Nunca. Vi.
Uma. Boca. Assim..."
— Quero! — Ela diz sem perceber e eu seguro uma risada.
— O quê? — eu pergunto, querendo que essa "Carolina boquiaberta"
continue falando ou pensando, pois está cada vez mais curioso isso.
— O que o quê? — Ela sacode a cabeça e olha para o chão,
totalmente envergonhada e me deixando impressionado.
Eu até poderia achar que era uma deusa, ou semideusa, mas não é
possível ler os pensamentos dos deuses e seus descendentes. E os dela são
tão claros, que parece que ela própria está falando para mim. É uma mortal.
Uma mortal que consegue me enxergar. Será ela? A tal mortal que as Moiras
me falaram?
Eu faço seus óculos aparecerem em minha mão e os ofereço a ela:
— Aqui — eu lhe digo, com o braço estendido.
— Meus óculos!!! — ela dá um grito de alegria, sorrindo lindamente
e apanhando-o de minha mão.
Porém as pontas de seus dedos roçam meu pulso, antes de se
fecharem ao redor do objeto e algo aparece em minha mente. Não é uma
visão, é mais como uma sensação. Sensação de... Paz. Como a bonança
depois da tormenta. Como a brisa suave e fresca que sopra pelos Campos
Elísios. Uma sensação estranha como um abraço... Um abraço quente e...
carinhoso???
Que porra é essa?!!!
Ela retira sua mão da minha, puxando-a como se eu a tivesse
queimado.
De olhos arregalados, eu observo minha mão, para ver se não está
realmente em chamas, mas não. Não a queimei. Estou estável. Catatônico,
mas estável.
Ela se encolhe. Não sei o que viu quando me tocou, mas nota-se que
não gostou.
— Obrigada, moço. — Ela diz e coloca os óculos de grau e então é
como se não me enxergasse mais. Olha em volta e seu olhar passa por mim,
sem se deter. — Ótimo — ela diz e suspira alto, pegando sua mala e indo
embora.
Ela me enxerga com os olhos da alma, como as Moiras disseram. Por
isso seus óculos não a permitem me ver.
É ela!
Mas e agora? Preciso levar as almas daquele voo. Também preciso ir
atrás dela.
Me decido pela mulher. Mais do que almas novas, eu a quero. Não
ela em si, mas o que pode me proporcionar. Um herdeiro! Por que estou
pensando em sexo?! Tártaro!
Eu nem posso tocar nessas humanas! Vou ter que fazê-la imortal!
Odeio isso! O preço de dar a imortalidade é muito alto, mas por um herdeiro
é aceitável. As divindades e ninfas suportam meu toque. É algo excitante,
elas dizem. Mas para as humanas, meu toque flamejante é mortal.
Sigo-a pelo saguão, vejo-a se dirigir exatamente para o mesmo avião
que tenho que derrubar.
Não acredito! Por isso as Moiras me mandaram aqui, para encontrá-
la. Mas tenho que destruir o avião. Todas as almas. Era isso. Como vou
poupar a todos? Ou a ela? Não posso fazer isso. É interromper o equilíbrio!
Traria consequências enormes. Trabalho triplo durante muitos séculos!
Sem ter ideia do que farei, entro atrás dela e retiro meus óculos
escuros, me sentando na poltrona vaga ao lado da dela.
Ela está lendo e nota exatamente o momento em que me sento. Sabe
que sou eu, mas finge não notar minha presença e se vira mais ainda para a
janela, o que me deixa irritado. Não gosto de perder tempo.
— Pretende fingir que não estou aqui a viagem inteira?
Isso faz ela me encarar, seus olhos parecem ficar cinzas e sinto que
ficou chateada.
— Por que acha que me importo tanto assim com sua presença? —
pergunta, cruzando os braços sobre os seios fartos.
— Não se importa? — ergo uma sobrancelha, desviando o olhar do
decote.
Ela ri, como se eu realmente não fizesse a mínima na vida dela. Sei
que para ela eu não faço mesmo, mas não gostei. Não gostei nenhum pouco
disso. Ela é minha destinada, ME pertence!
— Olha, moço, a única coisa que eu me importo é em chegar na
Grécia. Sua presença aqui é irrelevante. — Ela vira o rosto outra vez para a
janela e eu me aproximo de seu ouvido, aspirando seu perfume doce e suave,
que me rouba o fôlego por alguns segundos.
Depois sussurro:
— Se chegar ao seu destino é o que importa, então minha presença
aqui é a única coisa relevante.
Capítulo V
BARGANHA

Carolina

— Cara, você se acha demais! — Me irrito. Quase nunca me irrito, mas


ele está passando dos limites. — Você acha que o mundo gira ao redor do
seu umbigo! Horrível isso! — torço a boca e dou as costas para ele,
literalmente.
— O meu mundo gira. — Ele responde com voz grave, próximo ao
meu ouvido e eu estremeço sem motivos.
Ou com motivos, pois imaginei ele atrás de mim, falando no meu
ouvido em uma ocasião mais... pecaminosa.
Respiro fundo, tentando acalmar meus pensamentos impróprios com
o desconhecido que está mexendo tanto comigo.
O sinal de apertar os cintos aparece, assim como os comissários
falando várias línguas, menos a minha, e então é a vez do piloto. Em seguida
o avião decola.
Eu continuo lendo meu guia e fingindo que não existe uma força
quase palpável me puxando para o bonitão. Fingindo que não estou quase
deitando a cabeça no ombro dele, que ele não está aqui, que estou
conseguindo ler pelo menos uma palavra deste livro.
Ele parece que perdeu a vontade de falar e eu comecei a ficar
inquieta.
Fecho o livro e me viro para ele, que já estava me encarando com
aquele rosto perfeito.
— Desculpe por ter sido grossa. Eu... exagerei. — Espero ele
responder alguma coisa, mas ele apenas me olha, parecendo querer ver
minha alma, parecendo subitamente que estou despida diante dele, não
apenas de minhas roupas, mas de minha pele, de meus pensamentos, de tudo.
O olhar flamejante, quente, intenso parece me dizer tanta coisa,
prometer tanta coisa e algo que eu não sinto há muito tempo toma conta de
mim: desejo. Puro e quente. Tesão mais propriamente dito. Como eu
sussurrei antes sem perceber: quero. Não sei bem o que, mas eu quero.
Gente! Que coisa é essa?!
Homens bonitos não podem encarar uma moça comum como eu
deste jeito! Como se eu fosse a Angelina Jolie! Como se me quisesse!
Deve ser algum pervertido! Só pode. Está esperando que eu vá fazer
algum "favorzinho" para ele no banheiro.
— Não me olhe assim, eu não gosto de homens. — Sorrio e uso a
mentira de sempre quando quero me livrar de caras que só querem umazinha
e tchau.
— Ótimo! — Ele sorri pela primeira vez, me mostrando seus dentes
perfeitos e muito brancos, seu sorriso que me fez o coração parar uma batida
e reconsiderar a ideia do banheiro... Quem sabe se rolasse uns beijos
intensos eu até... — Pois eu não sou um homem. — Ele completa e eu acho
que perdi alguma coisa.
— Ahhhhhh, entendi. — Eu sorrio com carinho para ele, ops, ela. —
Desculpa se confundi. Eu sou muito lerda às vezes, quase sempre. Tem algo
em você que chama a atenção. Você é modelo? Ou atriz? Ou quem sabe
youtuber?
Já converso melhor com ela, sorrindo abertamente.
Mas algo parece literalmente mudar nela. Os olhos antes quase
dourados ficam negros. Os cabelos adquirem um brilho alaranjado que me
lembra aquela névoa que vi antes. O rosto dela é uma máscara escura e eu
me afasto um pouco. O medo subindo pela minha garganta.
— Me refiro à palavra "homem", de humano. Não o que imaginou.
— diz entredentes.
Então, diante de mim, a íris dela, ops, dele se transforma em chamas.
— Droga! Você é o diabo! — Eu sussurro apavorada, sem conseguir
mover um músculo sequer.
Ele sorri outra vez e passa a mão pelos cabelos negros, que pareciam
estar pegando fogo, fazendo-os voltar ao normal. Ou quase.
— Me chame de Hades. O diabo que vocês imaginam é diferente. —
Ali está o homem mais lindo do mundo outra vez, como se nada tivesse
acontecido, se apresentando!
— Oi. — Eu ergo a mão em um aceno catatônico, sem sequer piscar.
O sorriso dele se amplia.
— Esta é a hora em que você se apresenta, Carolina. — A voz macia
e suave dele me envolve outra vez.
— Como... Como...? — não consigo terminar.
— Como sei seu nome? Sou um deus. Mas acho que isso você já
sabe.
Eu sacudo a cabeça para ele. Lembro de ter lido e assistido vários
filmes sobre isso.
Hades, o deus do Submundo. Não inferno, pois todas as almas vão
para lá e não apenas as más. Lá tem tipo o inferno, o purgatório e até o
paraíso. O deus dos mortos... Mas, ei!!!! Isso me lembra...
— O que está fazendo nesse voo? Vamos todos morrer?
Ele ergue uma sobrancelha, como quem diz: o que você acha?
— Ai, não! Não! Não! Não! — Eu me revolto. — Quando eu
começo a achar que minha vida vai ficar realmente boa eu morro?! Sério
isso, produção?! Droga!!! — Tapo o rosto com as mãos.
Ouço um suspiro aborrecido do meu lado e retiro a mão do rosto,
fuzilando-o com o olhar.
— Não ouse suspirar assim! É tudo culpa sua! Seu... seu maligno! É
diabo, sim!
Me levanto e passo por ele quase subindo por cima do seu colo, o
que me fez quase ter uma parada cardíaca. Abri as pernas e passei pelas dele,
meu traseiro ficou quase na sua cara e quando fui recolher a outra perna para
sair dali, ele me tocou na cintura. Senti suas mãos grandes segurarem cada
lado da minha calça jeans. Depois os dedos subiram um pouco, se infiltrando
por baixo da barra da minha blusa e se afundando na minha pele. A presença
dele pareceu me envolver de todo, em cada célula do meu corpo eu o senti.
Meus joelhos cederam de puro desejo incontrolável e eu caí sentada no seu
colo, de costas para ele, em uma posição quase erótica. Quem eu quero
enganar? Erótica, sim, pois algo sob minhas ancas está duro e eu não resisto
ao impulso de mexer só um pouquinho o quadril para me certificar.
Louca? Não. Apenas não posso perder a oportunidade, né?
O gemido de Hades é solto contra o meu ouvido esquerdo e eu dou
um pulo, saindo do seu colo e correndo pelo corredor, até me fechar no
banheiro. Arranco os óculos e molho o rosto.
— Isso não é real! Isso não é real! Isso não é...
— Ficar repetindo isso lhe ajuda em quê, especificamente? — A
voz dele está atrás de mim e ninguém abriu a porta, ele está aqui
dentro comigo!
Dou um pulo, me virando de frente para ele. Só mesmo o capeta para
ser lindo assim! Minha nossa!
Os olhos dele brilham como a luz de uma chama trêmula.
— Já disse que não sou diabo, nem capeta, nem demônio! — As
palavras duras saem entre os dentes perfeitos.
— Você vai matar todo mundo aqui e quer que eu te chame de
Deus?! Meio impróprio isso. — Eu o encaro. — Não se segue uma mulher
no banheiro! Ou melhor, não se invade um banheiro em que a mulher entrou
para fugir do Hades! — Dou ênfase ao nome dele, mas aí eu noto. — Você
leu meus pensamentos!!!
Tapo a boca com as mãos, apavorada demais para dizer alguma
coisa. Por isso ele fala a minha língua! Por isso ele... Oh Deus! Será que ele
leu o que eu pensei sobre o banheiro? Por isso...
Arregalo os olhos e ele sorri de leve. Sem me conter, passo as vistas
pelo seu corpo. Ele se veste inteiramente de preto. Calças, camiseta e até
mesmo a jaqueta. Tudo de um preto perfeito, parece mais um
roqueiro/motoqueiro/bad boy, do que um deus. Os ombros são largos e ele é
tão grande quanto alto. Forte, intimidador, misterioso e puxa vida, nunca
estive tão perto de um homem tão perfeito. Meu estômago está dando uma
cambalhota.
— Confesso que sua sugestão foi tentadora, mas não me envolvo
com mortais, por mais que ele queira. — ele aponta para a frente da calça,
que estava visivelmente estufada com o volume enorme. — Vim até aqui,
pois quero saber por que motivo conseguiu me ver quando eu estava com
meu elmo. Que tipo de poderes tem?
— Eu? Poderes? Está louco? Eu não tenho poderes! Eu só vi um
borrão e não vi elmo nenhum!
— Elmo das trevas, como eu o chamava antigamente, agora ele se
parece com um óculos escuros, quando eu os coloco nenhum mortal pode
me ver, mas você viu. Como?
Ele se aproxima mais e eu prendo a respiração. O perfume dele é tão
inebriante que me atordoa por alguns instantes.
— Eu não sei. Esbarrei em você, achando que era uma coluna ou
algo assim, aí eu te vi. De óculos escuros e aquela névoa laranja ao redor de
você.
— Névoa laranja? Viu minha áurea?! Não pode! Isso é impossível!
Ninguém pode distinguir um deus! Ninguém jamais fez isso! — a voz dele
sobe dois tons, irada, possessa, como se eu tivesse profanado algum segredo
antigo.
Ergo as duas mãos ao mesmo tempo, como que me rendendo.
— Não fiz por querer! Se você não tivesse vindo falar comigo, eu
nunca saberia que é quem diz ser. Eu achei que era uma visão por causa da
luz.
Ele parece me observar e eu pego meus óculos e tento recolocá-lo,
mas ele evita que eu conclua o movimento, me tomando o objeto das minhas
mãos e fechando a sua própria ao redor deles. Eu ouço o barulho do vidro
sendo estilhaçado e dou um grito:
— Não! Pare! — tento arrancar meu precioso das mãos dele, mas
este não existe mais. Virou pó. — Por que fez isso?! Está me devendo um
óculos! — eu digo com raiva, esquecendo com quem estou falando.
— Ele obscurecia sua visão. — Ele diz simplesmente.
— Agora não posso enxergar além de dois palmos do meu nariz.
Obrigada. — tento passar pelo filho da mãe, mas ele é grande demais, e
intransponível. — Com licença, senhor do inferno, quero voltar para a minha
poltrona e esperar tranquilamente o desastre que vai matar todo mundo aqui
— encaro-o com raiva, mas o cara não se mexe, apenas me olha.
— O que sentiu quando toquei em você? — ele pergunta do nada.
— O quê? — eu dou um passo para trás, fugindo da lembrança e dele
próprio. — Você não lê pensamentos? Deve saber então.
Dou mais um passo e bato com as costas na pia. Ele diminui nossa
curta distância, se colocando a centímetros de mim, porém sem me encostar.
— Eu estava ocupado demais sentindo o que senti, para reparar no
que você estava pensando — ele ergue uma mão, parecendo querer me tocar,
porém se detém milímetros antes.
Minha respiração fica alterada.
— E o que sentiu? — eu pergunto sem notar, olhando dentro dos seus
olhos, que agora parecem que são feitos de ouro derretido.
Umedeço os lábios com a ponta da língua e encaro os dele, a ideia de
beijos intensos está invadindo minha mente outra vez, então a mão dele toca
meu rosto, enquanto seu olhar me aprisiona.
Fogo. Gritos, gemidos, tormento. Dor, aflições e solidão. Desejo,
calor. Sinto tudo isso, vejo tudo isso dentro dele. É como se sua alma
estivesse nua diante de mim. A falta de piedade, de bondade, a raiva e asco
pelo mundo e todos que nele habitam. Uma raiva intensa e espessa. Então
depois eu o vejo em mim, sobre mim, dentro de mim. Tomando tudo com
seu corpo perfeito, moldando-o ao meu, agarrando meu corpo nu, dançando
dentro de mim, com seu membro enorme, me fazendo arquejar e gemer em
seu ouvido, enquanto cravo minhas unhas nas costas musculosas.
Eu o empurro para longe, respirando com dificuldade e saindo
correndo do banheiro, trombando em uma comissária de bordo na saída,
fazendo-a quase derrubar o carrinho que vinha puxando.
— Desculpe, moça! — digo em português mesmo.
Volto para meu lugar com dificuldade, não consigo enxergar os
números das poltronas.
— Venha, eu lhe levo — a voz dele está atrás de mim e eu me afasto.
— Não me toque outra vez! Seu pervertido! Eu sei que é casado com
aquela moça da primavera. Qual nome dela mesmo? Hummm... Perséfone!
Sim, é isso. Não pode ficar colocando essas visões na cabeça dos outros!
Não tem este direito! Não importa quem você é! — reconheço um vulto
marrom que acho ser a minha bolsa sobre uma das poltronas e vou até lá, me
sentado com raiva. O que é estranho. Eu raramente fico com raiva. Sou do
tipo tranquila, mas esse Hades está acabando com minha calma.
Ele é casado! Eu sei da lenda. Ele se apaixonou por Perséfone e a
roubou, mas ela também se apaixonou e agora eu entendo o porquê! Aí, a
mãe dela pediu ela de volta, e tal... Porque a mãe é alguma coisa da natureza
e aí a Terra ficou triste também. Por isso a tal Perséfone fica nove meses
com a mãe e três com Hades, que são o inverno. Ou alguma coisa assim. Sei
lá.
— Não coloquei nada na sua cabeça. Sequer sei o que viu. — ele diz,
sentando-se ao meu lado outra vez e depois passa a mão pelos cabelos já
bagunçados e arrepiados. — Quero uma barganha. — ele anuncia.
— Como?! — Eu quase grito de surpresa e assombro.
— Eu poupo esse avião e todos seus passageiros, incluindo você
mesma, SE aceitar ficar três meses comigo, em meu reino. Os mesmos três
que Perséfone fica quando não está com sua mãe Deméter. Três meses é o
máximo que eu aguento, ou você me aguentaria — ele revira os olhos em
gesto de tédio. — Se não aceitar, eu posso roubá-la como já fiz com a outra,
porém não quero toda aquela dor de cabeça outra vez.
Que papo louco é esse? Visivelmente ele não quer que eu fique por
perto. Não aguenta ninguém mais de três meses? Que tipo de solitário
ermitão esse cara é? Mas me pede uma barganha. As almas de todo um voo
(Isso dá o que? 200, 300 pessoas?)? Por um tempo com ele?! NO SEU
REINO???
— Me quer três meses para quê? Especificamente? — eu estreito os
olhos, achando essa conversa muito louca, mas vindo de quem vem,
obrigatoriamente deve ser levada a sério.
— Para engravidar de um filho meu. — Ele diz em tom imponente,
fazendo meu coração parar por uma ou duas batidas.
E acho que não ouvi direito. Ou morri. Devo ter morrido!
Droga! E nem vi a Grécia.
Capítulo VI
BARGANHA VERSÃO HADES

Hades

— Cara, você se acha demais! — Ela se irrita, tornando seus olhos cinzas
como chumbo. — Você acha que o mundo gira ao redor do seu umbigo!
Horrível isso! — vejo-a torcer a boca e me dar as costas outra vez.
— O meu mundo gira. — Eu respondo próximo ao seu ouvido outra
vez, imaginando-a sob meu domínio... Quer dizer, nos meus domínios...
Tártaro! Essa mortal está me fazendo pensar mais do que nunca em...
O pensamento dela me invade outra vez, a imagem dela nua em
minha frente enquanto eu a possuo por trás, mordendo sua orelha e
sussurrando em seu ouvido me atinge e eu fico estático. Não ouso me mexer.
O desejo dela por mim lhe é tão surpreendente quanto o meu por ela é para
mim.
Quem é essa mortal? O que ela tem de tão diferente das outras? Por
que eu reajo assim perto dela? É como se uma energia me puxasse em sua
direção. Isso não é normal!
O avião decola e ela continua fingindo que lê. Eu apenas a observo.
A pele muito clara, diferente de nós deuses, que somos bronzeados por
natureza. A dela é quase translúcida e parece ser tão macia...
Ela fecha o livro e se vira para mim, que continuo encarando-a.
— Desculpe por ter sido grossa. Eu... exagerei. — Ela diz, me
pegando de surpresa. Por mais que eu consiga ler os seus pensamentos, ela
sempre fala sem pensar. Ou eu estou ocupado demais surpreso com tudo
isso, que não estou conseguindo prestar atenção ao que ela pensa?
Continuo olhando-a, querendo entendê-la, querendo saber se ela é
realmente quem parece ser. Ela mantém meu olhar com os olhos cristalinos.
Queria poder tê-la como tive Perséfone ao primeiro toque. Sem me
conter, incendiado tudo e possuindo seu corpo macio. Fazendo-a implorar
por mais. Por muito mais... Até aproveitar todo seu corpo sensual, sua boca...
Sua...
Vejo os olhos mudarem de cor diante de mim, eles ficam verdes
escuros, e me demonstram tesão. Intenso e selvagem.
" Quero. Não sei bem o que, mas eu quero." — Ela pensa e depois
fica brava. A indignação torna seus olhos cinza outra vez.
"Deve ser algum pervertido! Só pode. Está esperando que eu vá
fazer algum "favorzinho" para ele no banheiro."
A imagem que ela pensou aparece em minha mente, ela ajoelhada na
minha frente, enquanto chupa com força meu...
Droga!!!
Eu me remexo no assento, fazendo a porcaria do meu corpo ficar
quieto e meu membro dentro das calças, fazendo o fogo que já quer explodir
em minha pele se acalmar. Respiro fundo, ainda a encarando.
— Não me olhe assim. Eu não gosto de homens — ela diz, como se
eu pudesse acreditar nisso.
— Ótimo! — Eu sorrio, pensando em como ela irá reagir à notícia
que darei. — Pois eu não sou um homem.
Ela me olha sem entender.
— Ahhhhhh, entendi. Desculpa se confundi. Eu sou muito lerda às
vezes, quase sempre. Tem algo em você que chama a atenção... Você é
modelo? Ou atriz? Ou quem sabe youtuber?
O alívio toma conta de sua face e vejo-a ficar à vontade, sorrindo
abertamente.
“Atriz”???
A confusão dela me irrita. O desejo fugiu do seu olhar, ela não me vê
mais como um possível amante. Agora se dirige a mim com uma "amiga".
A raiva me consome, sinto as labaredas se libertarem, assim como
uma parte de meu lado sombrio.
Noto que ela se afasta um pouco, os olhos, agora castanhos,
arregalados de medo. Eu finalmente sinto o que sempre senti vindo dos
humanos.
— Me refiro à palavra "homem", de humano. Não o que imaginou
— digo entredentes, deixando que ela veja o que há dentro de mim.
— Droga! Você é o diabo! — Ela sussurra apavorada, sem conseguir
mover um músculo sequer.
Eu sorrio outra vez com a sinceridade dela e passo a mão pelos
cabelos, para me controlar.
— Me chame de Hades. O diabo que vocês imaginam é diferente. —
digo e vejo outra vez a admiração nos seus olhos.
— Oi. — Ela ergue a mão, em um aceno catatônico, sem sequer
piscar
Sorrio ainda mais. Como se fosse algo normal para mim. Sorrir.
Ainda mais tantas vezes, ou tão facilmente! Mas não tem como não sorrir.
Não perto dela. Tão sincera e imprevisível. Tão... diferente de todos que já
fiquei próximo.
— Esta é a hora em que você se apresenta, Carolina. — digo,
contendo outro sorriso idiota.
— Como... Como...? — ela começa, mas não termina.
— Como sei seu nome? Sou um deus. Mas acho que isso você já
sabe...
Ela sacode a cabeça, afirmando. Sim. Ela já ouviu falar de mim.
— O que está fazendo nesse voo? Vamos todos morrer? — a
pergunta é feita com mais curiosidade do que medo.
Eu ergo uma sobrancelha, lhe mostrando o óbvio.
— Ai, não! Não! Não! Não! — Ela se revolta. — Quando eu começo
a achar que minha vida vai ficar realmente boa eu morro?! Sério isso,
produção?! Droga!!!— Tapa o rosto com as mãos.
Como sempre, o desespero diante da morte me aborrece. Se ela
começar a chorar, eu me levanto!
Solto um suspiro aborrecido e ela retira as mãos do rosto, me
fuzilando com o olhar.
Opa! Isso vai ser interessante!
— Não ouse suspirar assim! É tudo culpa sua! Seu... seu maligno! É
diabo, sim! — Ela me acusa e se levanta subitamente.
Sem me dar tempo de lhe dar passagem, ela simplesmente passa por
mim, quase subindo por cima do meu colo, o que me deixa totalmente sem
ação. Ela abre as pernas e passa pelas minhas próprias, fazendo as
ancas perfeitas ficarem quase na minha cara, então antes que possa sair, eu
ajo.
Minha vontade dela é enorme. Preciso tocar sua pele. Simplesmente
preciso. Seguro seu quadril com ambas as mãos, depois subo um pouco os
dedos, enfiando-os por baixo da barra de sua blusa, apenas o suficiente para
tocar com a ponta deles a pele macia.
A pele, o cheiro, a presença dela me atordoa. Minha aura a domina
trazendo-a para mim, fazendo-a notar o quanto a quero e o desejo dela me
atinge. Puro e incontrolável. Ela cai sentada no meu colo. De costas para
mim. Fazendo todo meu corpo vibrar com sua proximidade e minha pele
começar a queimar de desejo. Ela mexe os quadris, pressionando meu
membro, que já está desperto sob seu traseiro e eu resisto. Ou melhor, tento,
pois solto um gemido no seu ouvido e minhas chamas começam a se liberar
sem minha permissão.
Ela corre para longe e eu agradeço por isso. Mais um pouco e eu a
teria queimado. Mais um pouco e meu desejo poria fogo em toda essa droga!
Passo a mão pelos cabelos, tentando recuperar o juízo. Esse não sou
eu! Eu nunca me importei com mortais! Nunca as quis! Não sou como meu
irmão Zeus, que parece ter verdadeira tara por elas! Um rápido olhar e está
muito bom. São lindas, parecem ser uma delícia, mas frágeis. Acima de
tudo, frágeis. Toquei apenas em uma e não repeti o meu erro. Jamais.
E agora isso?!! Essa humana me faz ficar louco!!! Que merda é
essa?! Quero me enganar que é por causa do herdeiro, mas nem pensei nisso
enquanto a tocava! Tártaro!
Mentalizo-a e a encontro no banheiro minúsculo desta merda. Vou
até lá e a vejo molhando o rosto.
— Isso não é real! Isso não é real! Isso não é... — ela repete para si
mesma.
— Ficar repetindo isso lhe ajuda em quê, especificamente? — Eu
pergunto, já que mesmo me esforçando, não consigo entender essa mulher.
Ela dá um pulo, se virando de frente para mim.
"Só mesmo o capeta para ser lindo assim! Minha nossa!"
O pensamento dela me atinge e mesmo sem querer, mais uma vez,
perco a calma que pouco me restou.
— Já disse que não sou diabo, nem capeta, nem demônio! — eu digo
entredentes.
— Você vai matar todo mundo aqui e quer que eu te chame de
Deus?! Meio impróprio isso. — Ela me encara, demonstrando toda sua
indignação. — Não se segue uma mulher no banheiro! Ou melhor, não se
invade um banheiro em que a mulher entrou para fugir do Hades! — ela
parece debochar do meu nome, então o entendimento a atinge — Você leu
meus pensamentos!!! — ela tapa a boca com as mãos, em pavor evidente.
"Por isso ele fala a minha língua! Por isso ele... Oh, Deus! Será que
ele leu o que eu pensei sobre o banheiro? Por isso... "
A vejo arregalar os olhos e seguro outra vez uma risada. Ela me
mede de cima a baixo, percorrendo com o olhar cada parte de meu corpo.
— Confesso que sua sugestão foi tentadora, mas não me envolvo
com mortais, por mais que ele queira. — Aponto para meu membro, que
ainda está alterado pela proximidade dela. — Vim até aqui, pois quero saber
por que motivo conseguiu me ver, quando eu estava com meu elmo. Que
tipo de poderes tem? — pergunto sem rodeios.
Quero saber de uma vez se é ela realmente a mortal que procuro.
Nunca tive paciência para cortejar quem quer que seja. Todos os meus
envolvimentos foram rápidos e do tipo: Estou a fim! Você também? Ótimo!
Vamos transar!
Não parece que posso fazer isso com esta. Ela está visivelmente
interessada, mas parece apavorada e irritada com minha presença. Sem
contar que não quero só cama! Claro que não posso negar que quero isso
também. Quero aqui mesmo, nesse banheiro claustrofóbico, como ela
imaginou, ajoelhada, depois por trás... Mas não posso. Não até fazê-la
imortal. E mais do que tudo: eu quero meu herdeiro.
— Eu? Poderes? Está louco? Eu não tenho poderes! Eu só vi um
borrão e não vi elmo nenhum! — Ela se defende parecendo outra vez
irritada.
— Elmo das trevas, como eu o chamava antigamente, agora ele se
parece com um óculos escuros, quando eu os coloco nenhum mortal pode
me ver, mas você viu. Como? — Digo devagar, encarando-a, evitando que
meus pensamentos me traiam outra vez, me fazendo pensar no que NÃO
DEVO! Merda!!!
Me aproximo mais e ela parece prender a respiração. Então responde
como se lembrando:
— Eu não sei. Esbarrei em você, achando que era uma coluna ou
algo assim, aí eu te vi. De óculos escuros e aquela névoa laranja ao redor de
você.
— Névoa laranja? — Eu a interrompo. — Viu minha áurea?! Não
pode! Isso é impossível! Ninguém pode distinguir um deus! Ninguém jamais
fez isso!
Ninguém vê auras! Nem os próprios deuses conseguem distinguir um
deus! Zeus sabe muito bem disso e sempre se aproveita se disfarçando de
"maridos", para poder se deitar com quem quiser. Perséfone disse que foi
assim que engravidou dele uma vez, que ele tinha assumido minha forma. Eu
quase acreditei. Quase.
Ela ergue as duas mãos ao mesmo tempo, como que se rendendo.
— Não fiz por querer! Se você não tivesse vindo falar comigo, eu
nunca saberia que é quem diz ser. Eu achei que era uma visão por causa da
luz. — ela parece se desculpar e mais do que nunca, eu tenho vontade de
conhecer a fundo essa mulher. Bem fundo e com força.
Ela pega seus óculos e tenta recolocá-los, mas eu evito que conclua o
movimento, tomando-lhe o objeto das mãos e amassando-o em minhas
mãos.
Ela grita com raiva:
— Não! Pare! — tenta tirá-los da minha mão, mas já virou pó. — Por
que fez isso?! Está me devendo um óculos — ela avisa com raiva e estreita
os olhos lindos, me encarando como uma igual.
Nunca ninguém fez isso. Nem Perséfone.
— Ele obscurecia sua visão — me obrigo a dizer, meio atônito.
— Agora não posso enxergar além de dois palmos do meu nariz.
Obrigada — ela diz entredentes e tenta passar por mim, mas não lhe dou
passagem, continuo firmemente no meio do seu caminho. — Com licença,
senhor do inferno, quero voltar para a minha poltrona e esperar
tranquilamente o desastre que vai matar todo mundo aqui — ela me encara
com raiva mais uma vez.
Como pode isso? Ela tem tanta coragem assim de me desafiar? É
simplesmente louca? Ou burra o suficiente? Ela sabe quem eu sou! Como
então me afronta deste jeito? Não parece temer a morte. Todos temem a
morte! Todos temem o Hades! Então...?
— O que sentiu quando toquei em você? — pergunto, querendo
saber de uma vez quem é ela e por que é tão diferente.
Ela não gostou do que viu antes e quero que me diga de uma vez!
Não sei se gosto de tudo isso que está acontecendo ou se detesto. É tudo
muito diferente, muito súbito e intenso. E estranho. Estranho demais.
— O quê? — ela dá um passo para trás, fugindo de mim. — Você
não lê pensamentos? Deve saber então. — Desconversa.
Ela recua até bater com as costas na pia. Então eu me aproximo, me
colocando a centímetros do seu corpo, porém sem encostar-lhe.
— Eu estava ocupado demais sentindo o que senti, para reparar no
que você estava pensando — ergo uma mão, eu sei que devo, devo tocá-la
outra vez para me certificar do que senti. Visões, sensações assim são raras,
acontecem apenas quando as Moiras permitem. Quando elas enlaçam dois
fios de destino por alguns momentos. Acho que elas estão brincando
comigo, porém tenho a sensação, a grande sensação de que se tocar nesta
mortal mais uma vez, elas irão me mostrar se é realmente ela a mulher que
procuro.
— E o que sentiu? — ela pergunta olhando dentro dos meus olhos,
umedecendo os lábios com a ponta da língua e encarando os meus,
praticamente implorando por um beijo.
Eu prendo a respiração, tentando acalmar meu impulso de agarrá-la
de uma vez, então eu toco seu rosto, a encarando profundamente.
Outra vez eu sinto, a brisa que sopra pelos Campos Elísios. A
calmaria de uma garoa fina. A paz e tranquilidade de um cantar de pássaros.
Vejo-a claramente diante de mim, o sorriso genuíno, a alma grande, o
carinho pelos menos afortunados, a vontade de melhorar o mundo, de dar
aos outros o carinho que não teve. Eu a vejo com um bebê nos braços,
sorrindo para ele. Me vejo a abraçando, a beijando... Depois a visão se torna
quente. Eu a possuo, me enterrando dentro dela com loucura, com um desejo
tão violento que me atordoa, sinto seu perfume em mim, a textura de sua
pele...
Ela me empurra para longe, eu estou respirando com dificuldade,
minhas pernas parecem tremer e mais uma vez ela foge de mim, saindo
correndo.
— É ela!!! — Digo sem fôlego.
A encontro procurando sua poltrona, se esforçando para distinguir os
números.
— Venha, eu lhe levo — digo atrás dela, tentando ajudar, em uma
das poucas vezes em minha existência, mas ela se afasta.
— Não me toque outra vez! Seu pervertido! Eu sei que é casado com
aquela moça da primavera! Qual nome dela mesmo? Hummm... Perséfone!
Sim, é isso. Não pode ficar colocando essas visões na cabeça dos outros!
Não tem este direito! Não importa quem você é! — ela grita irada e se larga
na sua antiga poltrona, a qual havia deixado a bolsa sobre ela.
— Não coloquei nada na sua cabeça. Sequer sei o que viu. — Digo,
me sentando ao seu lado outra vez. Passo a mão pelos cabelos tentando me
acalmar, a visão mexeu muito comigo. — Quero uma barganha — anuncio.
— Como?! — Ela quase grita de surpresa e assombro.
— Eu poupo esse avião e todos seus passageiros, incluindo você
mesma, SE aceitar ficar três meses comigo, em meu reino. Os mesmos três
que Perséfone fica quando não está com sua mãe Deméter. Três meses é o
máximo que eu aguento, ou você me aguentaria — reviro os olhos. — Se
não aceitar, eu posso roubá-la como já fiz com a outra, porém não quero toda
aquela dor de cabeça outra vez.
Sou sincero. As Moiras me falaram sobre um filho do amor! Idiotice!
Essa merda não existe. Mas eu quero essa mulher, a terei e farei um filho
nela. Eu vi. Mas não posso obrigá-la a ir comigo. Talvez seja esse o tal
"amor" que elas falaram. Talvez ela tenha que aceitar e fazer o filho de
espontânea vontade, e pelo que vi, ela se preocupa com os outros, mesmo
com quem não conhece. Como eu disse antes: quanto mais eu a conheço,
menos a entendo. Três meses serão demais. Em uma semana eu já estarei
morrendo de tédio e ela de ódio. Tenho certeza.
— Me quer três meses para quê, especificamente? — ela estreita os
olhos, desconfiada da minha proposta.
— Para engravidar de um filho meu — digo logo e espero que se
sinta honrada com isso.
Ela DEVE se sentir honrada!
Mas a expressão dela é de puro horror. Acho que essa merda vai ser
mais difícil do que eu pensei a princípio.
Só o que me falta, ter que cortejá-la! Eu nem sei fazer essa droga!
Tártaro! Como vou fazer isso no Submundo? Com os gritos do Tártaro,
Cérbero tentando mastigá-la, fantasmas passeando pelos corredores... Sem
contar Hécate sombria e até mesmo as Fúrias visitando o palácio de vez em
quando? Como vou convencer uma humana a se deitar comigo no meio
desta merda toda? E ainda por "amor"? Por que pelo que entendi, vou ter que
fazê-la se "apaixonar" por mim. Como se isso fosse possível.
Tártaro!
Mas eu vi o bebê. Meu bebê nos braços dela. Então talvez eu tenha
uma chance.
A encaro com uma mísera esperança, aguardando a sua resposta.
Capítulo VII
ACORDO

Carolina

— O quê?! Como assim?! Tipo: gerar o anticristo?! Não mesmo! — eu


demonstro toda a minha indignação quanto a essa ideia absurda.
Ele parece se irritar:
— Quantas vezes preciso dizer que NÃO SOU O DIABO?!! — ele
urra e seus cabelos eternamente desalinhados explodem em chamas laranjas.
— Uau! — meus olhos se arregalam e eu o acho incrivelmente
bonito assim. Irresistível, na verdade.
Ele parece se surpreender com minha atitude, ou pensamento, sei lá,
mas o vejo suavizar as feições. Ainda me olhando surpreso, ele passa a mão
pelos cabelos e as chamas parecem se apagar.
— Faz de novo. — Eu peço encantada.
Ele pisca várias vezes.
— Não ficou com medo?! Nem um pouco? — Ele parece estar
estranhando muito e eu respondo com sinceridade:
— Achei bonito — digo simplesmente, mas na verdade achei mais
do que bonito, achei excitante.
Ele apenas me olha com intensidade e diante de mim os cabelos
ficam em chamas outra vez. É estranho, pois as chamas não consomem nada
e são mais transparentes do que um fogo normal. É quase como se fosse uma
miragem... Estico a mão para tocar, querendo ver se tem calor, se queima,
mas ele segura meu braço.
— Tem um motivo para eu nunca ter me envolvido com mortais —
ele diz e seus olhos estão lindos como ouro derretido. — Elas se queimam
— conclui.
Demoro um pouco para entender o que ele quer dizer com isso. E
quando entendo, eu recolho a mão depressa.
— Você fica em chamas quando está...? — não consigo terminar.
— Achei que já havia notado que não controlo essa coisa — ele diz
aborrecido.
Imagino ele nu em toda sua glória, pegando fogo, literalmente, com
as chamas quase transparentes lambendo seus músculos e a pele bronzeada...
— Minha nossa! — Eu exclamo e sinto minha calcinha molhar.
Encharcar, na verdade.
Quando ele tosse, meio que se afogando ao meu lado, eu percebo que
leu meu pensamento inconveniente.
— Pare de ler meus pensamentos! Isso é falta de educação! — Eu
estreito os olhos e ele ri.
Ele riu.
Sua risada é linda e eu acho que meu coração fugiu de dentro do meu
peito e está dançando macarena no corredor.
O que é isso? Por que minha respiração ficou irregular? Por que eu
não consigo parar de olhar para ele? Não é só por causa de beleza. Nunca
gostei de homem bonito, tenho até aversão, pois sei que são arrogantes e
metidos. Bonitos por fora e horríveis por dentro. Mas este aí... Eu não
consigo tirar os olhos! Sei que é arrogante, mas não pela sua beleza, parece
nem notar o quanto é incrivelmente lindo. Sua arrogância é pelo seu poder,
que convenhamos, não é pouco.
— Por que não faz um filho na sua esposa? — Eu pergunto com voz
baixa, sem notar. A pergunta simplesmente me escapa.
— Eu não tenho mais esposa. — Ele diz, me encarando
intensamente.
— Não tem até daqui três meses, é isso? Vocês, tipo, dão um tempo
quando ela viaja? Ficam abertos para novos relacionamentos? — Eu ainda
não estou entendendo esse lance.
Por que eu?
— Três meses é o tempo perfeito para testar essa loucura das Moiras,
que dizem que uma mortal que conseguiria me ver poderia engravidar de um
filho meu.
Eu pisco, atônita.
— E acha que esta mortal sou eu?! Só porque eu vi você... Não quer
dizer que... — eu começo e diante de mim ele coloca os óculos escuros,
ficando charmoso pra caramba e então a aeromoça chega com o carrinho, me
oferecendo bebidas e petiscos chiques.
Ela não oferece ao Hades e ele ergue uma sobrancelha para mim.
— End my friend? — Eu pergunto para ela, que me olha sem
entender. — Don't go give a ele? — porcaria de inglês!
Vejo Hades segurar a risada do meu lado. Acho que saiu pior do que
eu esperava.
A moça olha ao redor, procurando com os olhos meu tal "amigo".
— Of course! Where is he? — ela sorri e Hades na cara dura abre três
botões da blusa dela, quando a moça se debruça para me entregar um suco.
A blusa se abre e o sutiã bege aparece totalmente, revelando os seios
bonitos da jovem.
Hades vira o rosto para ela, parecendo apreciar a visão e sua mão se
ergue outra vez, na intenção clara de tocá-los. Eu fico chocada com a cara de
pau dele e dou um tapa na sua mão.
O barulho assusta a jovem, que se ergue de um pulo.
A risada de Hades ecoa e a moça procura com os olhos novamente,
querendo, provavelmente, achar quem ri assim.
— Thank you, moça, mas my friend don't are merecendo nothing no
moment. Ah! And you blusa abriu, open. Aí in frente... — eu aponto para a
mulher, que olha para sua blusa e ficando vermelha a abotoa com pressa.
— Oh! Thank you! — nisso ela se vai.
Hades ainda está rindo baixo.
— Foi muito feio o que você fez! — Eu o fuzilo com o olhar.
— Você é a mortal que as Moiras me falaram, só você me vê. — Dito
isso, ele retira os óculos.
— Mas... Eu não... Eu não quero ir para o seu mundo! Eu não quero
transar com você e muito menos ser queimada! E quando tiver filhos, eles
serão frutos do amor! Eu não vou com você. — Explico para ele, que parece
não ter entendido o MEU lado.
— Não quer transar comigo? — Ele ergue uma sobrancelha. —
Esquece que escuto claramente o que você pensa?
Ele diz e meu queixo cai. Sinto minhas bochechas queimarem de
vergonha.
Limpo minha garganta. Se ele acha que vai me deixar sem graça, está
muito enganado.
— Não é porque te acho bonito e sexy que vou para a cama com
você! Pensar é uma coisa, fazer é outra bem diferente! E eu não te conheço,
não gosto de você, não vou dormir com você, muito menos fazer um filho.
Pode achar outra! — eu digo, cruzando os braços.
Mais uma vez me surpreendo com minha estupidez, não costumo ser
assim.
Droga!
Olho para ele, que sacode a cabeça e coça o queixo lindo com a
barba rala.
— Então não aceita minha barganha? — Ele pergunta muito sério.
— Não posso. — Abrando a minha voz. Se ele está pedindo assim,
deve ser algo realmente importante para ele.
Mas não sou eu "a moça". Eu não sou especial. Eu sou só a Carolina!
É só olhar para ele que se nota que deve ser uma top model internacional
para fazer par com o deus do Submundo, não eu!
— Certo. Eu não posso obrigá-la, as Moiras deixaram claro isso.
Você tem que querer e aceitar. Que pena!
Então o avião inteiro começa a piscar e tremer. Máscaras caem dos
compartimentos acima das poltronas, as pessoas gritam, tudo sacode. Um
caos.
Olho para Hades, que tem os olhos muito negros, até o branco deles
está tomado por escuridão e o rosto em sombras.
— Vai matar todo mundo por que não aceito engravidar de um filho
seu?! — Eu elevo minha voz, me fazendo ouvir em meio ao tumulto,
segurando no assento à minha frente.
As pessoas gritam ainda mais e vejo as chamas mais adiante,
devorando as paredes da aeronave e poltronas.
— Pare com isso! — Eu peço em desespero.
— Só se aceitar ir comigo. Três meses, nada mais.
— Três meses? — Eu penso sem ar. Três meses. Não é muito
tempo... — Mas você vai me queimar!!! Não pode ser algo tipo Espírito
Santo? De longe??? — Eu digo, pensando que se eu transar com ele vou me
ferrar e não vai ser pouco.
Além de me queimar, tem o risco enorme de ele ver que sou uma
grande porcaria na cama e provavelmente acabar de uma vez com minha
autoestima minúscula e vontade de fazer/conhecer melhor o sexo. E a pior
de todas as probabilidades: ele ser bom como parece ser e eu ficar louca,
apaixonada por ele. Isso é, de longe, milhões de vezes pior do que ser
queimada viva!
— Posso dar a você a imortalidade... — ele começa, com as
sobrancelhas arqueadas.
Será que leu outra vez meu pensamento?
Merda!
— Não. Não quero. — Eu sou categórica. — Não vou passar o resto
da eternidade vendo as pessoas que eu gosto morrerem! A imortalidade é um
castigo, uma maldição. — Termino com voz baixa.
Ele me olha com olhar estranho.
— Então temos um problema. — Ele parece pensar, mas os gritos de
agonia dos passageiros ainda me deixam perturbada.
Um homem em chamas passa por mim, gritando e se debatendo.
— Por favor! Faça isso parar! — Eu imploro, quase chorando.
— Não resista ao inevitável, Carolina — ele diz tranquilamente
encostando a cabeça na poltrona e fechando os olhos.
— Tudo bem! Eu vou com você! Três meses e só! Mas eu acho que
isso não vai dar certo...
O avião se estabiliza e as chamas desaparecem subitamente.
Ele sorri.
— Ótimo! Mas se engravidar vai ter que ficar até a criança nascer.
Depois pode ir. — Ele parece contente.
— Como assim? Até a criança nascer?! Não! Você disse três meses!
— Eu retruco.
Ele me encara.
— Acha que vou deixar meu filho sair de perto de mim?! Mesmo
dentro de você? — Ele diz entredentes, irado outra vez.
— Como assim?!! A criança não ficará com você! — Eu digo o
óbvio. — Acha que irei parir e seguir minha vida como se nada tivesse
acontecido?!
O que ele está pensando, que vou dar meu filho para ele?! O que
acha que sou?!
Ele me encara sem ação.
— Não pode estar falando sério! — Ele está ultrajado.
— Você é quem não está falando sério! O bebê vai ser meu também!
Eu não vou deixá-lo.
— E como pensa fazer isso?! — A voz dele sobe três notas.
— Hummm... Ele pode te visitar nos finais de semana. E quando
crescer, se ele quiser, pode morar com você... — eu dou a resposta lógica
sobre um filho de pais separados.
Mas é óbvio que não vou querer que meu filho more longe de mim!
Hades explode ao meu lado, os cabelos em chamas, o rosto
escurecido, o avião novamente parece querer se consumir em chamas e
matar a todos. Os gritos e a agonia me envolvem.
— MEU FILHO FICARÁ COMIGO!!! — ele grita possesso.
Eu tapo os ouvidos para não ouvir o lamento e choro dos passageiros.
— Pode nos matar a todos!!! — Eu grito também. — Nunca vou
abandonar um filho meu!!!
Eu fui abandonada quando tinha apenas dois dias. Cresci sem mãe
nem pai. Eu morro aqui, consumida pelas chamas e terei que levar o pecado
de ter matado todos esses inocentes (mesmo que seja sem intenção), mas
nunca, NUNCA vou abrir mão de um bebê!!! MEU BEBÊ! Não importa
quem é o pai. O bebê vai crescer dentro de mim, ele será meu!
Isso é loucura, nunca imaginei ficar grávida de um homem que nunca
vi, mas se for o caso (e esse cara é um deus, então deve estar certo) de eu
realmente engravidar, não vou abrir mão do bebê. Ele que ache outra, porque
eu não posso. Simplesmente NÃO POSSO.
Fecho bem os olhos, apertando-os enquanto tapo mais os ouvidos.
Não quero escutar as pessoas gritando. Não quero escutar os meus próprios
gritos quando o fogo me consumir.
Então alguém toca meu ombro. Sinto um frio correr por minha
espinha e eu sei quem é: Hades.
Abro os olhos e o avião está normal, as pessoas estão dormindo e é
noite. Tudo em paz.
— O quê...?! — Olho para ele, que muito sério, quase contrariado,
me diz:
— Poderá ficar com a criança, então. — Ele me estende a mão em
um aperto, para firmar o acordo.
Eu olho para a mão e fico em dúvidas quanto a apertar ou não. Passo
a mão pelo rosto, tentando recuperar o juízo que acho que perdi no aeroporto
de Boston.
— Eu acho que estas tais Moiras se enganaram, afinal, você pode ter
seus filhos com quem quiser. Muitas vão aceitar, acho até que amar, ter um
filho seu. Afinal, você é lindo e poderoso. Quem não quer um homem
assim? Eu não sou a mulher certa. Não quero a imortalidade e tenho certeza
de que você não vai conseguir fazer o que tem que ser feito comigo. — Eu
dou um sorriso triste, tentando pela última vez fazê-lo entender que isso não
é uma boa ideia.
— Eu nunca tive filhos. Não posso tê-los. Não tenho herdeiros e
nunca os terei. A não ser com "a mortal que pode me enxergar". Ou seja:
você. E pode ter certeza de que consigo fazer "o que tem que ser feito" com
você, com muito gosto — o olhar dele se intensifica e meu coração falha
uma batida.
Ai, nossa! Certo. Ou morro ou aceito. Ou mato todos aqui ou me
torno amante de Hades. Hummm... Pare com isso! Ele pode me matar
queimada! Não é maravilhoso e nem a resposta das minhas preces! Para de
pensar nisso! Gatão, gostoso, mas perigoso! Ele nem me quer, é só porque as
tais Moiras falaram... O que me lembra que tenho que pesquisar no Google
isso de Moiras e essas outras coisas... Hummm. O que eu pensava mesmo?
Ah, sim! Aceitar é o melhor. E também, poxa, coitado, não pode ter filhos.
Eu sou a única que pode ajudar? Sério isso, produção?! Eu?! Tadinho!
Morrendo de medo de ter enlouquecido, eu aperto a mão dele.
O arrepio gelado percorre minha espinha outra vez e meu estômago
dá uma cambalhota.
— Três meses... E nada de me queimar! — Digo sem fôlego.
— Isso será um grande problema! — Ele olha para minha mão e
depois para meu rosto. — Você deve se tornar imortal, não há outro jeito. —
Ele diz, parecendo surpreso.
— Você terá que pensar em outro jeito, então. Deve saber de um jeito
alternativo, sei lá. Você consegue até ficar invisível! Deve conseguir
controlar essas chamas! — ele estreita os olhos e eu puxo a minha mão.
— Hunf! Se fosse fácil assim, eu já teria levado muitas mortais para
a cama! — Ele torce a boca, parecendo um menino contrariado.
Me obrigo a sorrir, achando-o incrivelmente lindo, uma onda de
carinho me tomando o coração.
Pego a mão dele.
— Vamos aos poucos, com paciência. Teremos três meses, não é? —
Eu sorrio e ele me olha como se eu fosse uma aberração.
Me encolho envergonhada e solto a mão dele. Não deveria ter dito, nem feito
nada disso. Droga!
— Não! Eu... Eu não quis deixá-la assim, só não estou acostumado a
ser tratado com ... carinho — ele diz a última palavra como se não a
conhecesse e sem jeito, pega minha mão outra vez.
— É sério isso que não ficou com nenhuma mortal? — Eu não
resisto e pergunto.
Ele olha para a minha mão, que ainda segura e responde com voz
profunda:
— Você será a minha primeira.
Meu coração parou. Limpo a minha garganta e imagino como será
ficar três meses com ele. Então eu me lembro da minha viagem
interrompida, dos meus planos e acho que está na hora de colocar os pingos
nos is.
— Eu vou ficar três meses com você, mas não serei sua prisioneira.
— Digo, olhando para fora.
— Como assim? — Ele está confuso.
Olho para ele e continuo:
— Eu quero conhecer a Grécia. Não vou ficar trancada no
Submundo.
— Está achando que o Submundo é um lugar que pode entrar e sair
quando bem quiser?! — Ele está se irritando outra vez.
— Hades, me escuta — me viro melhor para ele. — Você deve ser
ocupado lá embaixo e tal, mas o que eu vou fazer? Ficar esperando você
voltar? Esperando você ter um tempo para "tentar" fazer um herdeiro? É
isso? Por TRÊS MESES??? Eu quero poder sair e conhecer a Grécia. Posso
voltar todos os dias, não sei como isso funciona, mas eu não vou ficar
trancada lá embaixo. Não é justo.
— Eu não tenho tempo para levá-la em um tour pela Grécia! Tenho
muitas... — ele está passando a mão pelos cabelos rebeldes outra vez e eu o
interrompo:
— Não precisa ir junto, eu vou sozinha! Posso muito bem... — eu
começo, pensando em tudo que posso conhecer, nas pessoas, quem sabe
mais alguns deuses! Imagina que legal!
— Você é minha destinada, não sairá das minhas vistas! E NEM
PENSE EM OUTROS DEUSES! — O cabelo explode em chamas outra vez.
Meu coração parou por um minuto inteiro. Ele me chamou de
"destinada" e se explodiu de ciúmes! Foi isso mesmo? Mas eu nem pensei
nos tais deuses deste jeito!
Meio fora de órbita, eu olho para os cabelos flamejantes e não penso,
eu toco neles.
Capítulo VIII
O SOLITARIO

Os cabelos dele são macios e eu vejo o fogo atravessar minha mão,


tomando-a, mas não queimando. É como um toque, só que diferente. É algo
que parece estimular a minha pele.
Quando olho para Hades, ele está em choque, sequer pisca, parece
que nem respira.
— Você não havia dito que... Aiiiiii!!!! — Recolho a mão depressa,
ardendo, pinicando em uma queimadura infernal. — Merda! — Xingo
baixinho pela minha burrice, segurando a mão, que está vermelha como se
eu tivesse derrubado água fervente nela.
— Eu disse que não deve tocar. — Ele diz entredentes e pega minha
mão, vendo melhor o estrago. — Mas para uma mortal, você aguentou
muito, até demais... Qualquer outra queimaria até os ossos. — Ele diz isso
como se estivesse falando do clima e depois larga minha mão como se nada
tivesse acontecido. — Isso é bom — termina de dizer, com um meio sorriso
aparecendo nos lábios tentadores, o que me dá vontade de gritar.
— Como pode ser bom, se estou com uma queimadura de segundo
grau aqui? — Sopro a mão e vou me levantando em direção ao banheiro,
para jogar água nisso.
Desta vez, Hades me dá passagem e não preciso passar por cima
dele. Ele se levanta também, como se fosse um cavalheiro.
Pois, sim! Sequer perguntou se eu estava bem. Insensível! Mal
educado! Tá que não está nem aí, mas pode muito bem disfarçar. Quer me
engravidar, mas não consegue ter o mínimo de gentileza? Entendi. Enquanto
meu útero estiver saudável, o resto que se exploda.
Não deveria me importar com isso, afinal, nem conheço esse cara,
mas me importo. É capaz dele me matar no processo de possível gravidez e
ele não estar nem aí. Provavelmente erga as calças e vá embora sem olhar
para trás.
— Você se queimou por teimosia. Eu disse que não deveria.
— Certo. Certo. Foi isso mesmo. — Eu interrompo o sermão e me
afasto dele, chegando ao banheiro e jogando água na queimadura. O alívio é
imediato, estava doendo pra dedéu. Droga! Carolina, burra! Tinha que tocar
no fogo? Não poderia só olhar? É certo o que dizem que quem está no fogo é
pra se queimar. Ou isso era sobre a chuva? Ah, sei lá!
Não quero mais sair daqui, a água está fresca e não quero voltar para
o lado dele. Graças a Deus ele não me seguiu ao banheiro desta vez. Quem
sabe me largue de mão e vai atazanar outra?! Afinal, agora deve ter se dado
conta de que isso não vai dar certo. Sentada no vaso sanitário fechado, com a
mão debaixo da água, eu apoio a cabeça na pia.
Minha vida está uma confusão. Sempre foi uma monotonia e agora
ela vira de pernas para o ar, com um tal de deus que eu jurava ser inventado!
Poderia pelo menos ser mais bem-humorado. Assim meus três meses seriam
mais fáceis!
— Desculpe se meu humor não é do seu agrado! — A voz dele ecoa
dentro do banheiro minúsculo e eu dou um pulo/grito, tudo ao mesmo
tempo.
— Quer me matar do coração? — Eu digo, encarando-o com o peito
acelerado.
Então eu vejo que ele está com alguma coisa na mão, que me
estende.
Uma caixinha de primeiros socorros.
— De onde tirou isso? — Eu pergunto abismada.
— Ler pensamentos tem suas vantagens... — ele responde
misteriosamente.
Então me dou conta que ele estava lendo meus pensamentos o tempo
todo. Até o que pensei sobre ele ser um filho da mãe sem sentimentos.
— Eu não lembro de você ter pensado isso antes. — Ele estreita os
olhos.
— Isso é muito feio! — Eu digo, vermelha de vergonha e com raiva.
— Pois é melhor se acostumar, porque seus pensamentos gritam
comigo. Nunca senti isso. Até o que você imagina eu posso ver. — Ele diz,
tirando a caixinha da minha mão, que eu inutilmente tentava abrir e abrindo
ele mesmo. — Sua mente é bem interessante. — Ele quase sorri.
— Sim, deve ser superinteressante ver alguém como eu tendo
pensamentos impróprios com você. Yuhu! — Digo, revirando os olhos.
Ele apanha uma pomada de dentro da caixa. Sem meus óculos eu
nunca poderia distinguir para o que seria, ou para que serviria. Ele pega a
minha mão queimada e eu prendo a respiração enquanto ele passa o remédio
amarelado com cheiro químico sobre a minha pele, com movimentos suaves,
quase sem me tocar.
— Eu estou acostumado a ver mortais sofrendo, isso não me afeta.
Nunca afetou, na verdade. No Submundo há almas chegando o tempo todo.
E todas são julgadas e condenadas.
— Quem as julga? — Eu o interrompo.
— Perséfone e eu, basicamente, mas temos ajuda de três heróis que
foram, em vida, reconhecidos por seu senso de justiça: Minos, seu irmão
Radamanto e Éaco, que também é o responsável pelas portas do mundo
inferior — Ele diz, parecendo a contragosto.
Meu peito fica estranho. Limpo a garganta.
— Mas como você pode julgá-los, se não é piedoso?
— Piedade nada tem a ver com isso. Atena pode dizer que essa
merda toda tem a ver com justiça, mas eu acho que tem a ver com vingança.
Nada ficará impune. Se fizer errado, terá que sofrer as consequências do
Tártaro: sofrimento, dor e agonia. Se teve uma vida digna e com grandes
feitos, irá para os Campos Elísios e passará a eternidade em paz. Simples
assim.
— E quem não foi nem um nem outro, vai para onde? Pessoas
normais, como eu? — pergunto, olhando para minha mão, que agora ele
enrola em um curativo.
— Você iria para os Campos de Asfódelos — ele diz em voz baixa,
parecendo falar com ele mesmo.
— E como é isso? Pois como você mesmo disse, era para esse avião
cair e morrer todos aqui. Como seria o lugar que eu passaria minha morte?
— Eu pergunto sorrindo, pois nunca imaginei que passaria a "morte" em
algum lugar.
Hades me encara muito sério.
— Não importa, você não vai mais para lá. Será mãe de meu
herdeiro. Será imortal.
— Não serei imortal, Hades. Eu não quero isso, já disse. E por que
não quer me dizer o que tem nesses campos?
— Nada! — Ele se exaspera, depois respira fundo e continua mais
calmo: — Não há nada lá. Os Campos de Asfódelos são um grande nada.
Não há luz, não há vento, não há água... Não há nada. Apenas almas, em
uma imensidão escura e sem fim. Quem não fez nada em vida, não merece
nada na morte. — Ele sentencia.
Engulo em seco. Se eu morresse iria ficar vagando na escuridão em
meio a uma multidão de fantasmas para sempre?
— Mas dá para conversar, né? Tipo, fazer amizades, trocar ideias.
Jogar uma bola... Não dá? — Eu pergunto e ele me olha como se eu fosse
louca. — Não me olhe assim, só quero saber se dá para interagir com os
outros! O que tem de louco nisso?
— Não. Não dá para interagir com os outros. Eles não veem uns aos
outros. Não veem nada. — Nisso, ele termina meu curativo e fecha a caixa
de primeiros socorros.
— Ficam quase como eu estou agora, então. — Eu sorrio, tentando
amenizar esta história horrível. — Obrigada pelo curativo, ficou muito bom,
mas você deve ter muita experiência em cuidar de queimaduras — Eu sorrio
para ele, que parece ficar sem jeito.
— Nunca em toda a eternidade cuidei de alguém. Eu firo. Mato.
Torturo. Eu não cuido. — Ele diz com cuidado e um arrepio percorre minha
espinha talvez pela primeira vez de temor.
— Então por que...? — Eu começo, mas não termino.
— Você estava certa, merece um pouco de sensibilidade de minha
parte. Isso não vai dar certo se você me odiar. Na verdade, é exatamente ao
contrário.
Ele parece outra vez sem jeito e eu acho que talvez esses três meses
possam não ser tão terríveis assim.
— Como assim "ao contrário"?
Só que falta ele me dizer que eu tenho que me apaixonar! Aí, ferrou
tudo. Dou uma risada.
Mas Hades continua me encarando, só que desta vez com cenho
franzido, o que me faz parar de rir.
— O que há de tão hilário assim? — Ele estreita os olhos.
Meu queixo cai.
— Como assim? Não é contra você, mas não quero gostar de você,
nem de ninguém! As vezes em que achei que estava apaixonada não foram
boas experiências. Também não acho certo esse tal "acordo". Eu nem sei
como vamos fazer isso! — Cruzo os braços, torcendo a boca. — Não vê o
quanto isso é doido? Não vê que não é assim que as coisas funcionam? —
Eu tento explicar, pois parece que esse Hades não sabe nada sobre mulheres
e paquera.
Os olhos dele brilham em chamas.
— Nunca precisei cortejar mulher nenhuma. Nunca quis nenhuma
apaixonada por mim, me dando dor de cabeça e acabando com meu sossego!
Se não fosse pela maldita Afrodite e seu filho me jogarem aquela flecha, eu
nunca teria roubado Perséfone! Não sei ser galante, não sei fazer essa merda
— os cabelos dele estão outra vez em chamas e eu olho admirada para ele,
segurando minhas mãos para as burras não tocarem outra vez ali. — Eu só
sei ser direto.
— Foi por uma flecha da deusa do amor e do Cupido, que você se
casou com sua esposa? Mas com certeza, depois de tantos anos...
— Depois de tantos anos, eu não suporto mais ela, tampouco ela a
mim. E já disse que não tenho mais esposa.
Eu o encaro, atônita.
— Você é pior que eu! Eu não quero me apaixonar por você porque
sei que vou sofrer. Você, não. Você simplesmente não consegue gostar de
ninguém... Isso é quase como não ter coração! — concluo para mim mesma.
Decidi que não adianta só pensar. Ele fica sabendo igual. Então vou
falar mesmo.
— Brilhante dedução. Ainda bem que não é um coração que faz
herdeiros. — Ele torce a boca.
— Para que quer um herdeiro se não vai amá-lo? — Eu o encaro com
braços cruzados.
Isso faz ele me olhar intensamente, quase com raiva.
— Minhas necessidades ou sentimentos não são de sua conta! — Ele
diz em tom baixo, mas os cabelos flamejantes me dizem que está louco da
vida.
— Está errado. Eu faço parte do projeto "herdeiro", então é da minha
conta, sim, se você irá tratar mal a criança. Por que não quer me contar? Por
que parece querer esconder tudo e mais um pouco de mim? Eu não tenho
poder nenhum contra você. Nem escolha você me deixou... Ah, entendi! Sou
tão insignificante que não preciso de explicações — dou um suspiro e olho
para meu curativo. — Obrigada mais uma vez pelo curativo. Foi muito gentil
da sua parte. Agora acho que podemos voltar para nossos lugares. Quero ver
a Grécia quando o avião a sobrevoar.
Eu olho para a porta sem encará-lo, querendo que ele saia, para eu
poder passar.
— Não... Não é... — Ele começa e se cala. Parece não achar as
palavras e eu passo por ele, destrancando a porta, mas ele segura a minha
mão antes que eu possa abri-la. — Você não é insignificante, é especial para
mim. É minha destinada.
Destinada.
Mais uma vez ele usa essa palavra e meu coração falha uma batida.
Ele está tão próximo...
— Quero um herdeiro como qualquer pai quer um filho. Para ensinar,
para dividir meu reino, para ser meu companheiro e futuramente o senhor do
Submundo. Quem sabe, aí, eu tenha tempo para aprender a cortejar... — um
meio sorriso quase, quase aparece.
Eu estou atordoada. A névoa laranja que irradia dele, a tal aura, me
envolve e parece me puxar. Outra vez sinto a presença dele em cada célula
do meu corpo.
Arquejo.
Tento raciocinar, mas está difícil.
— Suas intenções são boas. Você não é o monstro que quer que eu
acredite que seja... — murmuro, olhando para a boca que está próxima
demais para me deixar conversar direito. — Não deveria ter me dito nada,
poderia ter me iludido e me seduzido... Eu aceitaria de bom grado suas
atenções, se fosse em uma situação diferente, se pensasse que você se
interessou por mim.
Desvio meus olhos da boca tentadora e abro a porta com um esforço
sobre-humano para me afastar dele, sentindo meu peito doer. Frustração é a
palavra que me define.
Queria um beijo. Queria um jantar. Queria uma caminhada na praia
ao luar. E depois, uma noite de amor quente e intenso. É pedir demais? Mas
não. Vou para o inferno fazer um herdeiro com um cara que nunca vi, que
mata, fere e tortura! Ah, e que vai me queimar. Não posso esquecer disso.
Ai, Cristo!
Quando me sento outra vez na minha poltrona, tento pensar no lado
bom desta coisa toda. Minha mão está um pouco melhor, mas ainda arde, o
que dificulta bastante em tentar localizar um ponto positivo nisso.
Um arrepio percorre minha espinha e sei que Hades está outra vez ao
meu lado. Não ergo as vistas. Olhar para ele é perigoso para minha sanidade.
Talvez esse seja o ponto positivo que eu estava procurando: Hades.
— Não sei ser romântico, acho que já notou isso. — Ele diz e eu sou
obrigada a olhar para o rosto perfeito.
Meu coração acelera. Ele parece contrariado.
Eu apenas concordo com a cabeça. E ele coça o queixo com covinha
coberto pela barba rala.
— Mas vou pedir... er... ajuda nessa coisa a Zeus. Ele é o galã dos
irmãos. Poseidon é o aventureiro que não se prende a nada nem a ninguém.
Zeus é o conquistador.
— E você, é quem? — a pergunta sai sozinha, pois ouvir que ele vai
pedir dicas ao devasso do irmão mexeu comigo.
— Eu sou o solitário — ele fala olhando para frente e depois me
encara. — Vou levar você para conhecer a Grécia se é isso que quer, mas já
digo que não posso me ausentar por muito tempo do mundo inferior! Apenas
algumas horas por dia... — ele se cala subitamente, pois eu o abracei em um
rompante de carinho.
— Obrigada! Você deve conhecer tudo! Os lugares mais tops!!! —
Eu digo feliz.
Hades está congelado contra meu corpo e eu me envergonho da
minha atitude. Quando vou me afastando, sinto os braços dele ao redor de
mim. Ele me abraça como faria com alguém que estivesse com saudades. E
eu me deixo ficar por um momento, aproveitando uma sensação nova e
surpreendente de segurança. É como se o tempo de repente parasse, como se
nada fosse me atingir aqui ou que eu não precisasse de mais absolutamente
nada. É estranho sentir isso, mas infinitamente bom.
Quando nos afastamos, eu estou sem jeito e ele também. Olho pela
janela, me ajeitando na poltrona confortável, agora aguardando ansiosa pela
Grécia, mundo inferior e tudo mais.
Olho para ele de canto de olho.
Ah, sim! Tudo mais parece ser alguém que eu vou gostar de conhecer
melhor.
Pensando nisso, eu adormeço sem notar.
Capítulo IX
GRÉCIA

Que a Grécia é linda, todo mundo já sabe. Que o mar é de um azul


magnífico, também. Mas eu não fazia ideia que tivesse tantas ilhas!
Pequenas, grandes... É um amontoado de ilhas espalhadas ao redor desse
oceano lindo!
Quando o avião sobrevoou Atenas, meu queixo caiu. A cidade é
enorme!
Espremi meu nariz na pequena janela e forcei a visão para tentar
colocar em foco a paisagem lá de baixo, o que para minha admirável
surpresa, entrou e consegui distinguir algumas coisas, então babei, gritei, me
entusiasmei, como seria óbvio que eu fosse fazer. Hades continuou ao meu
lado, com um sorriso disfarçado.
— Meu Deus! Que lindo! Olha ali! O que é aquilo?! E aquilo?! Meu
Deus! Eu quero conhecer tudo isso! Eu... Eu quero primeiro entrar no mar!
Sim! Isso com certeza! Eu nunca vi um mar desta cor antes! O que é isso?
Olha aquelas montanhas! Hades! Tá vendo?! — eu olhei para ele, que não
olhava lá para baixo, apenas para mim.
Quando descemos do avião, eu peguei minhas bagagens e me
surpreendi com meu bem-estar. Estou maravilhosamente bem, apesar da
viagem de quase 14 horas com escala, ou o fuso horário de quatro horas a
mais! Talvez Hades tenha feito alguma coisa enquanto eu dormia... Ele me
acompanha por todo o trajeto pelo Aeroporto Internacional de Atenas sem
falar nada, como um guarda-costas.
Eu rio sozinha dos meus pensamentos. Acho que com um guarda-
costas deste, eu estaria melhor que a Whitney Houston naquele filme...
Humm...
Na saída, agora munida de minhas duas pequenas malas mais a bolsa,
vamos em direção ao estacionamento.
— O que há aqui? Vai dizer que você tem um carro? — eu pergunto,
dando risada enquanto ele continua andando em silêncio.
— Esperava que lhe levasse até os portões do mundo inferior com
minha antiga carruagem? Posso invocar meus cavalos agora, mas acho que
chamariam atenção desnecessária.
Nisso, o modesto e discreto Hades para ao lado de um carrão lindo,
preto e de milionário.
— E acha que isso aí não vai chamar a atenção? Sério isso? — e paro
ao lado do que minha ignorância automotiva imagina ser um BMW ou
Ferrari... Ou o Batmóvel...
— É um Lamborghini Aventador — ele explica, abrindo a frente do
carro e enfiando lá minhas malas.
Mas na frente? Como assim?
Vou até lá e vejo que o motor sumiu.
— Hammm... Hades? Alguém roubou o seu motor — eu anuncio. —
Ou você não precisa de um? — vai que ele, tipo, faz o carro funcionar quase
como os Flintstones ...
Ele me encara com uma sobrancelha erguida, depois solta uma
gargalhada e me pego achando-o lindo outra vez.
— O motor fica atrás, minha aeráki — ele diz ainda sorrindo e
fechando o que agora sei ser o porta-malas (na frente igual a um Fusca).
— Você não me xingou, não foi? Porque se xingou, eu vou logo
avisando que eu tenho uma chave e não tenho medo de usá-la nessa sua
pintura preto-fosco-Batman aqui! — eu digo, estreitando os olhos para ele.
Ele sorri ainda mais e quando eu menos espero, me puxa para si pela
minha cintura.
Ele é tão grande e alto, que tem que se inclinar para me olhar nos
olhos e a proximidade me faz colocar a mão em seu peito firme.
— Não, eu não a xinguei — ele diz com voz baixa e então seus
lábios tocam os meus.
O beijo é casto e rápido, um pouco mais demorado que um selinho. E
quando eu tomo consciência de que ele me beijou, se afasta, nem me dando
chance para notar os lábios dele, ou sentir seu gosto, mas mesmo assim meu
coração acelera e minhas pernas tremem.
Ele me encara e vejo os olhos brilharem como uma chama tremula.
Eu o encaro de volta, fascinada pelos olhos, pelo rosto, pela boca dele.
Queria que me beijasse de novo, com gosto. Como beijaria alguém
que desejasse de verdade.
Então eu me afasto dele.
— Não sei o porquê de você insistir nessa coisa toda! — reclamo,
tentando puxar a porta. — Você não consegue nem me beijar, quanto mais...
Ele segura minha mão, colocando a sua por cima e abre a porta, a
empurrando para cima (como o carro do cientista louco do filme De Volta
Para o Futuro)!
— Não a beijo como quero porque não sei se vou queimá-la. E acho
que já se queimou o suficiente... — ele dá essa desculpa esfarrapada.
Eu apenas concordo com a cabeça.
Nem queria mesmo!
Entro, me sentando no banco de couro macio, em um interior lindo e
perfeito, que me dá medo até de encostar. Vai que eu quebro essa...
Hades fecha a minha porta e se senta atrás da direção, dando a
partida em silêncio e o ronco do motor potente me lembra o Relâmpago
McQueen.
Catchau!
Ele voa pelas ruas.
Catchau!
Ele sobe morros em estradas que serpenteiam, à beira de abismos que
tem vista para o mar azul.
Eu admiro a paisagem, ou melhor, o que consigo ver dela, pois Hades
está quase voando com esse carro, e ainda sem meus óculos, com certeza
não é grande coisa o que consigo distinguir. Acho que quem vê de fora só
deve enxergar um borrão preto.
Catchau!
— Não foi uma desculpa esfarrapada — ele declara, assim, do nada.
Eu olho para ele, que mantém os olhos na estrada e só bem depois
vira o rosto para mim.
— Hades, eu já disse que o que eu penso não é o mesmo que eu faria.
Eu pensei que queria um beijo, mas não sei se o aceitaria na prática. Eu
posso pensar que os gregos são uma delícia, mas não quer dizer que eu vá
transar com todos eles, se tiver a oportunidade. Você tem que aprender a
filtrar os meus pensamentos. A maioria é tudo besteira sem sentido, se ainda
não notou! — torço a boca, pois não me agrada em nada que ele fique
achando que eu estou desesperada por um beijo dele.
Até parece! Estou tanto tempo sem ninguém, não preciso
absolutamente de um beijo do cara mais estranho que já conheci. Tô pouco
me lixando! Na verdade, acho que deve ser é muito ruim. Um cara que
nunca beijou mortal nenhuma, nem deve saber do que a gente gosta.
Acostumado com essas divindades de trocentos anos, ele mesmo tem
trocentos anos, deve estar enferrujado, e quem sabe aquele beijo é o beijo
que eles estão acostumados... Vai ver só sabem fazer um papai e mamãe
básico... Ihhhh...
Hades freia o carro repentinamente e graças a Deus eu coloquei o
cinto de segurança, senão já tinha voado pelo para-brisas e caído no mar,
como eu tanto quero... Só que de um jeito péssimo.
Eu olho para ele, que me encara com os cabelos em chamas.
— Que foi? Por que...? — começo a perguntar, mas aí me dou conta
que ele ouviu a porcaria dos meus pensamentos impróprios outra vez. —
Não consigo evitar! Eu penso, sim, besteiras o tempo todo! Não pode levar a
sério! — explico, com as mãos erguidas.
Ele apenas sai do carro e faz a volta, abrindo minha porta e
praticamente me arrancando do banco em silêncio e com cara de quem vai
me mandar para seu reino, sozinha e sem o meu corpo.
— Então, mortal jovem e experiente... Eu sou velho e enferrujado?
Não sei beijar e nem trepar? É isso?
Eu arregalo os meus olhos quando ele se aproxima a ponto de me
pressionar contra o carro.
— Eu não sou experiente assim, mas a tecnologia está aí para
mostrar o que a gente nunca viu. Sabe como é, né? E olha, para um senhor
da sua idade, você tem uma boca muito suja! — digo, evitando um sorriso
irônico.
Adorei isso de velhinho! Velhinho enxuto, mas não deixa de ser um
velhinho.
— Vou lhe mostrar o velhinho! — ele diz entredentes.
Então, sem pedir permissão ou me deixar notar o que fará, ele me
agarra. Sim, a palavra é essa: agarra. Não um beijo casto como antes, mas
um amasso. Um hiper-ultra-mega-amasso.
Ele enfia uma das mãos nos meus cabelos, os segurando pela nuca e
evitando que eu me afaste de sua boca, que toma a minha, invadindo-a com a
língua experiente e me obrigando a corresponder as caricias eróticas que
estimulam minha libido, me fazendo agarrá-lo também, me fazendo colar
mais meu corpo no seu. E quando eu sinto sua outra mão na minha bunda,
puxando meu quadril contra o dele, eu não resisto e fico na ponta dos pés,
para encaixar melhor meu corpo ao dele.
Com uma força surpreendente, ele me ergue e me coloca sentada no
capô do carrão, abrindo minhas pernas com as mãos e enfiando seu corpo no
meio delas, sem interromper o beijo, que ele, não sei como, consegue
aprofundar ainda mais, me devorando a boca, mordendo meu lábio inferior,
para depois beijar-me outra vez, enquanto sou envolvida por seus braços
fortes, fazendo com que eu me sinta feminina e muito gostosa.
O fogo vai correndo pelas minhas veias, incendiando tudo. Quero
ele. Quero tudo dele... Quero conhecer esse cara em todos os sentidos...
Quero... Mas o calor é demais e vai invadindo tudo. É tanto que parece me
queimar... Não! Não parece! Está me queimando! Sinto-o em minhas costas,
braços... Me dando conta que o tal calor não sou eu, mas sim ele que está em
chamas. Eu lhe dou um empurrão com todas as minhas forças.
Pego de surpresa, ele dá dois passos para trás, me olhando atordoado.
Eu tapo a boca com as duas mãos.
Hades está pegando fogo. Literalmente. Os cabelos, os braços, as
roupas. Tudo nele parece queimar e eu não acredito que estava beijando-o
neste estado!
Capítulo X
ESCOLHA

A visão que tenho diante de mim é intensa, Hades está incendiando,


contrastando com o mar safira da paisagem atrás de si e eu me detenho um
instante para admirar, mas o calor ainda está em mim e vejo que meu
casaquinho leve e curto branquinho está queimando também. Eu pulo do
carro, tirando-o com pressa e jogando longe.
O fogo logo o consome e eu me olho correndo no espelho retrovisor,
para ver se meus cabelos ou algo assim não estão em chamas também.
Não. Graças a Deus tudo normal. Porém, tenho certeza de que agora
tenho mais algumas queimaduras pelo corpo. Meus braços e costas estão
ardendo miseravelmente.
Olho outra vez para Hades e ele está apagado novamente, passando a
mão nos cabelos bagunçados, claramente sem jeito.
— Por que suas roupas não queimam também? — eu pergunto com
calma, tentando não pensar no que aconteceu.
Ele me encara, parecendo não acreditar que perguntei isso.
— Por que minhas roupas não queimam?! Eu a machuquei mais uma
vez e você me pergunta DE MINHAS ROUPAS?!! — ele berra.
— Não seja dramático! Eu nem me queimei tanto assim... — baita
mentira, os locais já estão ardendo como o inferno. Ele cruza os braços e me
fuzila com o olhar aborrecido. — Ah, é! Lê pensamentos. Entendi. Já lhe
disse que isso é uma porcaria? Não? Pois agora eu digo: detesto esse negócio
de você saber tudo que eu penso! Já disse que é falta de educação! — então
me viro, entrando outra vez no carro. — Não olhe para cá — eu peço, antes
de fechar a porta.
Aqui dentro eu retiro minha blusa e olho na parte de trás desta. O
tecido está chamuscado, uma mancha escura está ali, parece o formato de
uma ou duas mãos... Como quando a gente queima a roupa com o ferro
elétrico.
Minhas costas devem estar do mesmo jeito, já que não consigo nem
as encostar no banco. Isso sem contar a parte interna dos meus braços. Ainda
bem que não estava com as mãos nos cabelos dele desta vez... Ainda não me
recuperei completamente de minha última burrice.
Encosto a testa no porta-luvas do carro, onde está escrito
"Lamborghini" em letra cursiva, mas forcei tanto as vistas para ler essa
mísera palavra que agora estou com dor de cabeça.
— Minha melhor roupa. Que droga! — murmuro.
Hades abre sua porta e eu cubro meu sutiã com o que restou da
minha blusa destruída.
— Ei! Não entre... — eu até tento evitar, mas agora ele já se sentou
no seu lugar e me olha sem disfarçar. — Vire a cara! Eu ainda...
— Vire-se! Quero ver as queimaduras — ele me interrompe, ainda
me encarando com um olhar que não consigo decifrar.
— Não precisa. Estou bem... — então ele me pega pelos ombros e
me vira de costas para si, afasta meus cabelos e observa em silêncio o
estrago. Então eu o sinto passar algo na minha pele, o mesmo cheiro químico
da pomada do avião.
— Você roubou a pomada, Hades?! — eu não consigo acreditar que
ele pensou nisso!
— Eu sabia que teria que usar essa merda outra vez, só não esperava
que fosse tão cedo. Além das costas, queimou mais algum lugar? — a voz é
séria e em tom baixo.
Eu simplesmente ergo meus braços, mostrando as partes vermelhas
para ele. Grandes partes vermelhas e ardidas.
Ele suspira atrás de mim, me vira e passa por ali também. Depois eu
o vejo recolocar a pomada em um compartimento em sua porta e pegar gaze
e esparadrapo. Em silêncio, ele faz o curativo nos meus braços e até costas.
É quando ele está terminando este que eu digo:
— Você vai ficar perito em tratar queimaduras deste jeito! Só espero
que no final destes três meses eu não esteja parecendo uma múmia! —
comento para distrair o clima, mas só ouço um "hunf" em reposta.
Quando ele termina, uma blusa escura como a noite e tão linda
quanto, aparece em mim. Assim, do nada. E ela me envolve com um tecido
fino e frio, como nunca vi antes.
Meu queixo cai.
Olho para ele que tem uma expressão aborrecida.
— Obrigada — lhe digo sem jeito, pelo olhar quase desapontado
dele.
Hades solta outro grande suspiro mais uma vez e dá a partida no seu
Relâmpago McQueen emo.
— Qual o nome do hotel que vai se hospedar? — ele pergunta
quando faz a volta e retorna pela mesma estrada que viemos.
— Como?! O que disse?! — minha voz falha.
Ele torce a boca.
— Estou abrindo mão do nosso acordo, livrando-a do compromisso
que selamos — ele diz muito baixo.
— O quê?! — não sei como consegui perguntar isso, já que parece
que levei um soco no estômago.
Ele puxa o ar novamente com força.
— Você é muito vulnerável a mim. Não tão vulnerável como as
outras mortais, mas ainda assim é vulnerável. Se não consigo nem a beijar
sem lhe ferir, quanto mais trepar como eu quero! Aquelas Moiras estão
ficando loucas! É isso! LOUCAS! — ele diz exasperado e acelera ainda
mais o carro, que voa pela estrada.
Catchau!
— E que porra de "Catchau" é essa?! — ele ruge com raiva.
Aí eu explodo em uma gargalhada.
Ele está tão irado, frustrado e aborrecido, que quando me olha com
os cabelos em chamas de ódio, eu tento segurar meu riso, mas não consigo.
Então, ainda rindo, eu toco a perna dele. Na verdade, seguro a coxa
musculosa e ele ergue as sobrancelhas, o cabelo voltando ao normal
rapidamente.
— Faça a volta, velhinho boca suja! Vamos para seu reino de uma
vez — eu digo sorrindo.
Ele freia o carro repentinamente de novo.
— O quê?! — ele parece não acreditar que estou falando isso.
— Você é exagerado demais! — reviro os olhos. — Se esses
"acidentes" voltarem a acontecer, só preciso de um pouco de pomada para
queimaduras... Ou quem sabe muita... E isso você tem — rio mais um pouco.
— Não sabe o que está falando! — ele parece surpreso.
— Você quem não entendeu, mas vou repetir já que a audição piora
com a idade: eu estou dizendo que quero ir com você. Quero conhecer seu
reino. Quero ver o que vai acontecer. Quero! — eu o encaro intensamente.
— Notei isso quando estava te beijando. Ou sendo beijada por você... Tanto
faz! Mas descobri que eu quero essa coisa toda, por opção. Não porque você
fez aquele escândalo no avião, mas por escolha. Eu gosto de pensar que vou
ter um bebê voluntarioso e com cabelinhos de fogueira — o simples
pensamento de um pequeno chorando e com os cabelinhos explodindo em
chamas me faz sorrir.
Hades está catatônico e isso com certeza é algo que só eu vi.
Então um sentimento profundo e bom penetra no meu coração.
Hades me encara com intensidade e sem pensar eu me inclino para ele,
seguro seu rosto lindo com ambas as mãos e beijo seus lábios deliciosos.
Não é o beijo casto e etéreo que ele me deu no estacionamento, nem
o amasso de minutos atrás. Apenas um beijo profundo, calmo e perfeito. Os
lábios dele se moldam indescritivelmente aos meus e eu os sugo brincando
com lábio superior, enquanto ele brinca com o meu inferior. Nunca pensei
que os tais “beijos de boca fechada” dos doramas e filmes antigos pudessem
ser tão gostosos e sexys. Meu íntimo se remexe, se agita e meu peito dói.
Uma dor grande e angustiante, mas totalmente tolerável e ao mesmo tempo
boa, por mais estranho que isso possa parecer.
Quando afasto minha boca da dele, vejo os seus olhos brilharem e
que seus cabelos já estão em chamas outra vez.
Eu os observo e sorrio.
— Terá que controlar esse fogo. Acho que com treino você consegue.
Isso se ainda quiser que eu vá com você...
— Claro que quero! — ele me interrompe, parecendo mal-humorado.
— Vou controlar essa merda! Vou dar um jeito — diz e depois respira fundo
várias vezes, fazendo seus cabelos voltarem ao normal.
Eu sorrio para ele.
— Quer muito esse filho, não é? Desculpe por não aceitar a
imortalidade que me ofereceu, mas...
— Acha que digo isso apenas pelo meu herdeiro? — ele me olha
como se eu fosse louca.
— Não? — pergunto com receio.
Ele balança a cabeça.
— Não. Como você disse "Quero". Não entendo nada de mortais...
Mas eu quero passar esses três meses com você, minha aeráki. Se vamos
conseguir fazer meu herdeiro, é outra coisa. Por enquanto, eu apenas quero...
— ele me olha intensamente, com os olhos dourados como ouro derretido,
para depois sussurrar:
— Sua companhia.
Capítulo XI
ESSÊNCIA

Ai.
Ok.
O que eu estava pensado mesmo? Se é que eu estava pensando
alguma coisa... Depois desta eu meio que perdi o rumo de tudo... Hummm...
Limpo a garganta.
— O deus solitário está querendo a companhia de uma mera mortal?
— mordo o lábio, não entendendo essa parte.
Ele estreita os olhos e coloca o batmóvel para funcionar, voltando
para nosso rumo inicial.
— Que parte não entendeu? A parte que eu a acho divertida e nada
entediante? Não sei daqui há alguns dias, mas por enquanto sua companhia
me agrada muito.
— Espero que não diga isso como diria de um cãozinho ou algo
assim... — eu sorrio estupidamente, olhando para o mar lindo outra vez.
— Já tenho um cãozinho, não preciso de mais um — a voz dele tem
um tom descontraído que me chama a atenção. Então me viro e vejo-o
sorrindo consigo mesmo, olhando para frente.
Meu peito dói mais uma vez e isso não é bom. Ao contrário, é
exatamente o oposto de bom.
Mordo o lábio e desvio meu olhar.
— Que bom! Adoro cachorro! — eu digo animada, pensado que pelo
menos vou ter um bichinho para me distrair quando Hades estiver ocupado
com suas coisas de Submundo.
Quando a risada dele me tira de meus pensamentos, eu o encaro
sorrindo também.
— O que foi?
Ele balança a cabeça e depois explica:
— Acho que Cérbero não é esse tipo de cachorro... — ele ainda sorri.
— É ele quem protege os portões do meu palácio. Ninguém entra sem
permissão no mundo inferior, ou sai de lá, Cérbero se encarrega disso para
mim.
— Ele é tipo um cão de guarda. É isso? Ora, ele não deve ser tão
bravo assim! Aposto que com jeitinho eu...
Hades fica sério de repente, me olhando em advertência:
— Você não chegará perto dele! Nem com jeitinho, nem sem
jeitinho, Carolina! — ele está aborrecido outra vez. — Cérbero não hesitará
em atacar você. Mortais são absolutamente proibidos de pisar no Submundo.
Nem pense em se aproximar dele! Em hipótese nenhuma!
— O que seu cãozinho faz com mortais que tentam entrar?! — eu
estupidamente pergunto, para receber um olhar torto em resposta, que me faz
entender o que ele não diz em voz alta. — Você não está falando sério! Não
pode deixar um cão assassino na sua casa!
— Pouco me importa o que ele faz com quem ousa entrar sem
permissão no meu reino, minha aeráki. Não é com confetes e festa de boas-
vindas que governo o Submundo há tantos anos...
— É com punho de ferro, não é? Sem piedade ou bondade por
ninguém — digo em voz baixa. — Foi isso que eu vi quando me tocou pela
primeira vez, vi isso dentro de você — concluo com a voz por um fio.
Isso e outras coisas...
Hades me encara intensamente.
— Por ninguém, não. Descobri que há uma exceção — ele ainda me
olha e depois volta sua atenção para a estrada.
Então cai minha ficha, só agora eu me dou conta que ele iria desistir
de seu maior desejo, de seu herdeiro, porque não queria me machucar.
Eu sorrio sem querer, me sentindo especial pela primeira vez na vida,
possivelmente.
— Hades? O que significa aquela palavra que falou? Do que me
chamou? — ele torce a boca e continua em silêncio. — Não me obrigue a
usar o Google tradutor, velhinho! Pois não sei se o senhor sabe, mas...
— Brisa — ele diz sem tirar os olhos da estrada.
— O quê? — me perdi.
— Eu a chamei de "minha
brisa" — ele me encara com um olhar quase sem jeito, para depois voltar a
sua atenção outra vez para a pista, acelerando ainda mais.
Catchau!
Meu coração parou agora. Respiro devagar para não estragar o
momento.
Minha Brisa.
— É bonito. Vou achar um apelido melhor para você também.
Velhinho parece coisa do Pernalonga. Hummm... — eu me ajeito melhor no
banco, encarando-o. — Que tal: Tocha? Não, porque ele era jovem e louco...
Hummm... Hot? Não. Não sei se merece esse apelido ainda, bom, quase sei...
Já sei! Mestre dos Magos! — ele me olha sem entender e eu desato a rir.
— Mestre dos Magos? — ele ergue apenas uma sobrancelha e eu rio
ainda mais.
— Sim, você é igualzinho! Misterioso, cheio de poderes e velho! —
rio mais um pouco e depois penso bem no desenho da Caverna do Dragão,
para ele ver quem é o Mestre dos Magos.
Ele estreita os olhos para mim.
— Está louca? Não sou parecido com isso! — ele me fuzila com o
olhar, me fazendo rir ainda mais.
— Sim, tem razão. Ele é bonzinho e fofo. Você é ranzinza. Acho que
leva mais jeito para o Vingador, então... — penso no Vingador, com sua
roupa escura e um chifre...
— Não! Nada de chifres aqui! — ele parece zangado outra vez.
Solto uma gargalhada.
— Ai, então eu desisto! Vou te chamar de Hades! — ergo minhas
mãos e ele não resiste e ri comigo. Estamos sorrindo ainda quando os olhos
dele encontram os meus e uma energia estranha parece passar dele para mim
ou vice-versa. Sua aura laranja parece expandir e me tocar.
É como se fôssemos, por este breve momento, iguais.
Depois de um tempo ele desvia o olhar, voltando sua atenção à
estrada, quebrando o encanto, mas eu senti essa coisa estranha e sei que ele
também sentiu.
Ele sai do asfalto e entra em uma pequena estradinha de terra batida,
que termina ao pé de uma enorme montanha.
Ali ele para e desce do carro.
— Fique aqui — ordena quando sai.
Eu desço atrás dele, fingindo não ter ouvido.
— Aonde vai? O que houve? — pergunto quando o vejo parado
observando a montanha.
— Eu disse para ficar no carro, minha aeráki! E feche os olhos — ele
resmunga sem se virar para mim.
— Eu já não enxergo muita coisa e você ainda quer que eu feche os
olhos? Sério isso?
Se bem que depois que cheguei aqui, minha miopia melhorou muito.
Antigamente eu veria apenas um borrão onde Hades está agora, a uma
distância de uns dez passos, mas neste momento eu o vejo muito bem. Não
com todos os detalhes, mas parece que ficar sem meus óculos está me
ajudando a recuperar minha visão. É isso ou essa luz fantástica que existe
aqui na Grécia.
Eu escuto o suspiro alto dele.
— Só as almas trazidas por Hermes podem entrar no Submundo. Não
há uma passagem, ou um portal, apenas um local de evocação que eu
autorizei a Hermes, e este fica muito longe daqui, mas eu posso abrir um
onde bem entender. E gosto deste lugar, já o usei muitas vezes. Só que para
isso preciso estar em minha essência. E isso eu não quero que veja. Agora
volte para o carro e feche esses olhos lindos, Carolina! — ele ruge o final da
frase, tirando toda a fofura do elogio.
Demoro dois segundos para acatar a ordem e ele se vira para mim,
me deixando atordoada.
Seu rosto está em total sombra, os olhos inteiramente negros, até
mesmo a parte branca!
Eu não o espero repetir. Entro outra vez e fecho a porta. Cerro meus
olhos por um instante e apenas por um instante. Primeiro, abro um, espiando
os movimentos dele, mas quando ele vira o Tocha Humana outra vez, eu
abro bem os dois e vejo tudo com olhos e boca escancarados.
Hades está totalmente tomado pelas chamas. A aura enorme e laranja
irradiando por todos os lados. Sua roupa subitamente foi substituída por uma
espécie de toga negra, que deixa à mostra seu peito forte e perfeitamente
esculpido, como também os seus braços enormes, cheios de músculos, que
agora tem alguns apetrechos de ferro, como naquelas armaduras da época
dos gladiadores.
Mas não foi só isso que mudou.
A pele dele está branca azulada, como um cadáver. Seus cabelos,
antes curtos e arrepiados, agora estão até os ombros e uma capa/manto, sei
lá, enorme e parecendo ser feita de escuridão, cai pelas suas costas, se
espalhando pelo chão, como uma neblina negra.
Na sua mão aparece uma foice enorme e cheia de pontas, com a
lâmina muito curva e perigosa.
Hades, o deus dos mortos, do Submundo (agora eu entendo a
comparação que fazem dele com A Morte ou o Diabo), levanta sua foice e
com apenas um golpe ele abre a terra ao meio. Sinto o tremor balançar o
carro e então uma caverna gigantesca aparece onde ele passou sua lâmina.
É neste momento que ele se vira para mim, me pegando em pleno
flagra o encarando.
Não desvio o olhar. Abro a porta e saio do carro, mostrando para ele
que eu vi.
Ele está irado. O rosto em escuridão, os olhos faiscando em seu
pretume total, mas impressionantemente eles brilham intensamente.
— Eu ordenei que ficasse no carro — ele dá um passo em minha
direção. — E acima de tudo: que não olhasse!
A voz dele é grossa e assustadora.
Noto que a toga dele é aberta da cintura para baixo na frente e sob
esta ele usa uma saia como as dos soldados romanos, assim como sandálias
deste mesmo estilo.
Um arrepio de pura luxúria percorre meu corpo.
A imagem toda é uma delícia: masculinidade, força, poder... Eu estou
literalmente babando.
Hades ergue as duas sobrancelhas e o olhar negro dele volta ao
normal.
— O quê...? — ele murmura. — Não irá correr apavorada? Se curvar
implorando misericórdia?
— Se apagar esse fogo todo, eu até me curvo, mas só para descobrir
se você está usando cuecas aí embaixo... — ai, Cristo! Eu disse realmente
isso em voz alta?
Vejo-o piscar várias vezes e depois eu tento desviar as vistas de
vergonha, mas a imagem dele puxa meu olhar mais uma vez.
É definitivamente uma visão irresistível.
Capítulo XII
FLECHADO?

Hades

"É definitivamente uma visão irresistível".


Eu ainda não acredito nisso!
Minha essência a excita? Como pode? Nunca ninguém se excitou
com minha essência!!!
Faço minha foice sumir e me concentro para fazer as chamas
diminuírem. Quando estas se apagam, eu me aproximo dela com cuidado,
ainda em minha essência.
Carolina dá um passo em minha direção, depois mais um. Seus olhos,
agora em um tom verde esmeralda, se detendo em cada detalhe do meu
corpo, desde as sandálias até os meus cabelos.
Quando meu manto de escuridão chega até seus pés, a envolvendo
com a neblina negra do mundo inferior, ela estica o braço e toca meu peito,
na parte em que a toga não cobre.
"É quente! Claro que sendo o Hades não seria frio... Mas até pensei
que seria".
Cubro a sua mão com a minha e encaro seus olhos, depois seus
lábios.
Droga de desejo. Essa mortal está me deixando louco! E o pior é que
não posso fazer o que quero e isso me deixa com mais vontade ainda!
Tártaro! Não posso queimá-la outra vez. Não é só a merda do desejo, é
também essa coisa estranha que sinto quando ela sorri, quando tem algum
pensamento louco e diferente... Ela é especial. Não quero feri-la.
Acho que vou ter que ter uma conversa com Eros! Tenho quase
certeza de que o filho de Afrodite me lançou alguma daquelas malditas
flechas outra vez! Mas se foi isso, eu vou colocar fogo no rabo daquele
moleque! Já ferraram com minha vida uma vez, não vou...
— Hades? — a voz dela é doce e hesitante.
"Me beije".
Ela pede em pensamento.
Respiro fundo, me concentrando em manter meu fogo dentro de
mim, e assim como sou desde o início dos tempos, e deste jeito em que
nunca beijei ninguém antes, eu tomo sua boca macia.
Tento não pensar nela, no seu corpo, no que quero fazer. Penso no
Tártaro, penso nos julgamentos.
Carolina geme contra meus lábios e sua mão agarra meus cabelos,
enquanto a outra passeia pelo meu peito livre do tecido e nu.
A puxo mais para mim, enquanto intensifico o beijo, passando minha
língua na boca gostosa, mordendo seu lábio inferior, ela geme outra vez e eu
penso na droga dos gritos de agonia dos Titãs, nas horríveis Fúrias... Preciso
de ajuda, pois até em Cérbero comendo as tripas de algum infeliz eu penso,
tudo para não queimar essa mulher, que agora está colocando a mão por
debaixo do meu pterugues[3]. Nunca fui dado a usar o perizoma[4], a não ser
em batalhas e ela encontra o que procura. Sua mão se fecha ao redor do meu
membro e eu sinto a droga do meu corpo estremecer.
"Minha Nossa! Isso não é um pinto! Isso é o senhor dos pintos!
Nunca imaginei que esses negócios pudessem ser tão grandes! Que delícia".
Ela pensa enquanto o aperta, o que me obriga a largá-la e me afastar.
Respiro com dificuldade, tentando fazer o fogo ficar controlado.
Carolina me encara, os lábios inchados pelos meus beijos, o rosto
vermelho de excitação.
— Que foi? Você não me queimou. Por que se afastou? — ela dá um
passo em minha direção e eu não tenho forças para me afastar outra vez.
Quero esta mulher com todo meu ser.
— Eu estou me esforçando para não ferrar com tudo, minha aeráki...
Mas você está complicando as coisas! — resmungo, mexendo no cabelo dela
e depois enfiando meu nariz neles, aspirando o perfume que parece me levar
para outra dimensão. Uma dimensão mais... Feliz? Por que eu pensei nisso,
droga?!
— Desculpe se eu descobri que tenho verdadeira tara por homens
que parecem ter saído do inferno. Ou que saíram realmente — ela umedece
os lábios com a ponta da língua e eu tenho que respirar fundo pela milésima
vez. — Eu quero, Hades. Aqui, agora... — ela me beija o ombro, o peito e
procura com a mão meu membro mais uma vez. E ele já está pulsante, duro
e louco para se enterrar nela.
— Carolina, não sei se consigo fazer isso agora... — eu começo, mas
vejo seus olhos mudarem de cor.
Um azul intenso me demonstra que seu sentimento mudou.
"Claro! Óbvio que ele não quer, sua idiota! Onde já se viu, agarrar o
homem deste jeito, só porque sentiu esse desejo louco pela primeira vez na
vida? Ele deve estar esperando ficar bêbado ou algo assim...".
— Você pensa besteiras demais! — eu a repreendo, erguendo-a e
fazendo-a enlaçar meu corpo com as pernas.
Não digo que estou louco por ela e não quero perder o controle desta
merda outra vez.
A prenso no carro, ainda a segurando pela bunda e aperto-a com
gosto. Sinto meu membro erguer as tiras de couro do pterugues, retiro a
blusa dela, sem pressa para ter tempo de me acalmar. Vejo os seios bonitos
dentro do sutiã e com a ajuda dela eu os livro da peça, os tocando pela
primeira vez. Ela geme e fecha os olhos, rendida ao meu toque. Vejo minhas
mãos incendiarem e as retiro rapidamente.
Mordo o lábio com força, apertando as mãos em punhos para meu
desejo diminuir.
Respiro fundo outra vez e inclinando minha cabeça, com as duas
mãos no capô do carro agora e sem oferecer perigo, eu beijo seu pescoço,
passando a língua pela pele sensível, sentindo seu gosto e depois sem a tocar
com nada mais além dos lábios, eu sugo seus seios, um após o outro.
Ela geme alto e eu finjo que não ouço. Estou tão duro que dói, não
posso me distrair com nada.
Mas a mão dela se infiltra pela minha toga, percorrendo meus
músculos, conhecendo minha pele, então ela mesma ergue meu rosto e me
beija, um beijo quente e que me faz perder o pouco controle que eu tão
bravamente estava defendendo.
Agarro-a, abraçando, apertando. Tento passar a mão nas coxas, mas a
maldita calça que ela veste não me permite.
— Nunca mais vista essa coisa! — eu rosno e volto a beijar-lhe a
boca com avidez.
Já me perdi e quando ela me empurra, eu imagino que a machuquei
mais uma vez.
Passo a mão pelos cabelos, esperando seu olhar de dor, mas ela ainda
sorri, e pulando ao chão, ela olha para ambos os lados e depois retira a
horrível calça jeans, ficando apenas de calcinha preta, rendada e
transparente, que me permite ver o pequeno triângulo de pelos que faz a
merda do meu corpo incendiar de vez.
Tento pensar nas coisas do Submundo, nas desgraças e tormentos do
Tártaro, mas não consigo me concentrar. Não sei se por causa das coxas
roliças muito alvas de fora, se por toda a exposição de carne à luz do dia, ou
o olhar de desejo que ela envia para mim. Talvez seja o jeito que os cabelos
castanhos ondulados tocam os mamilos pálidos...
Toda a mistura não me deixa acalmar meu âmago. Estou em chamas
e ela apenas me olha.
— Hades, controle isso. Eu não posso me aproximar com você igual
uma pira olímpica! — ela sorri e eu passo a mão pelos cabelos.
Sou o deus do Submundo! Eu controlo essa merda que existe em
mim e não o contrário!
Respiro fundo e com calma, o fogo vai diminuindo, até cessar de vez.
Então me aproximo dela, expondo meu sorriso de vitória. E sem esperar, a
pressiono no carro mais uma vez.
— Tem certeza de que quer assim, aqui? — minha voz sai mais rouca
e grossa do que normalmente quando estou em minha essência, mas ela não
recua em nenhum momento.
— Quero — ela diz apenas, para depois se pendurar no meu pescoço
e me envolver o corpo com as pernas, em um súbito ataque que não previ.
A seguro por ambas as nádegas, com força, apertando com meus
dedos a pele macia. Beijo mais uma vez sua boca e puxo sua calcinha para o
lado.
— Vou te possuir em pé — aviso no seu ouvido, sentindo um arrepio
de satisfação percorrer meu corpo.
Ela morde meu ombro e geme em resposta.
Pego meu membro e passo pela sua entrada úmida e deliciosa,
estremecendo de antecipação. Sinto meu fogo se libertando e não me
importo, preciso dela com urgência, com...
— Hades, eu não tenho muita experiência... Por isso me fale, me
guie. Certo? — ela diz em meu ouvido.
Congelo.
Paraliso ainda segurando meu membro pulsante. Apenas um
movimento e ela será minha.
Mas como assim "não tem muita experiência"?
— Você é virgem? — pergunto erguendo as sobrancelhas.
Ela sorri sem jeito.
— Não. Eu tive uma... Hum... Experiência no banco de trás do carro
de um antigo namorado. E só isso — ela termina o relato com vergonha.
A lembrança dela é nítida para mim. Como sempre acontece quando
ela pensa em algo com concentração, eu vejo. Isso só acontece com ela e é,
no mínimo, constrangedor.
Vejo um desgraçado sentado possuindo-a de costas, sem se importar
com nada além do que ele próprio sente. A dor que ela sentiu, a sua
vergonha e insatisfação são como um balde de gelo em mim.
Qual a diferença entre mim e aquele infeliz? Exatamente. Nenhuma.
Iria possui-la no meio da estrada, em minha essência, minha forma
mais poderosa e perigosa. Estava sentindo o descontrole surgir, mas faria do
mesmo modo. Em pé, apenas arredando sua calcinha.
— Tártaro! — eu rujo e a largo no chão.
Faço um vestido negro sem decotes e que vai até os pés cobrir cada
centímetro de pele dela, depois volto à minha forma normal.
Respiro fundo e entro na droga do carro.
Ela ainda está lá fora sem entender minha atitude.
Abro a porta para ela.
— Entre logo, Carolina! A esta altura Hécate já destruiu o meu reino!
— falo qualquer merda para ela entrar de uma vez, o que ela faz em silêncio.
Até os pensamentos dela estão em silêncio e eu acho isso muito estranho.
— Poderia fazer esse vestido um pouco mais curto, por favor? Estou
com calor — ela pede olhando para fora, enquanto guio o carro para dentro
da passagem que abri.
Eu faço o que ela pede, porém seu silêncio é angustiante. Embora eu
queira quebrar algumas paredes por causa da raiva e da frustração, não
consigo parar de pensar que ela precisa que eu explique o porquê de fazer
aquilo, embora eu não queira dar explicação nenhuma!
— Carolina... — começo, porém ela me interrompe.
— Não precisa dizer nada, Hades — ela diz com voz baixa e ainda
olhando para fora e eu agradeço por não ter que falar coisa alguma.
Quando eu paro o carro, já dentro da passagem para o mundo
inferior, saio do automóvel para agora fechar a abertura, mudo para minha
essência mais uma vez e sinto novamente o olhar dela sobre mim. Me viro
em sua direção e ela me olha nos olhos.
Nunca vi seus olhos assim, azuis cinzentos, quase brancos de tão
claros.
Então me dou conta que a magoei e não foi pouco.
Mas como direi que parei porque acho que ela merece mais? O que
ela vai achar se eu falar que mesmo sabendo que poderia machucá-la de
verdade, eu estava decidido a ir em frente e possui-la?
Não vou falar nada, ela pode achar o que quiser. Não vou contar que
estou mais preocupado com ela do que comigo, que estou querendo
fazer amor com ela, com calma, com paixão e não simplesmente trepar.
Aaaaah, não! Merda!!! Eu vou matar Eros!!!
Capítulo XIII
TRAVESSIA

Carolina

Mais uma vez eu espiono Hades pelo canto dos olhos. Ele está lindo e
másculo além da conta novamente. Parece irado e mais do que nunca o que
realmente é: o deus dos mortos.
Tão poderoso, tão incrível... Como pude achar, por um instante que
fosse, que ele poderia querer algo comigo? Sou uma idiota mesmo, me
atirando para cima dele, pedindo para ele fazer amor comigo (que vergonha),
contando sobre a minha experiência terrível.
Bom, pensando bem, talvez seja por isso que ele não me queira.
Talvez achasse que eu fosse virgem... E ficou desapontado. Talvez tenha
imaginado que eu fosse uma experiente fogosa, já que estava querendo
transar com ele ao ar livre, em plena luz do dia...
De qualquer forma, essa não foi e com certeza não será a última vez
em que algo aconteceu errado para que eu não pudesse ter meus "momentos
de paixão". Pelo menos desta vez ele não me queimou, o que é estranho...
Acho que na verdade ele está começando a dominar suas chamas... Ou só
não estava sentindo nada mesmo, nada do tipo que o fizesse perder o
controle... Sei lá.
Dou um grande suspiro. Acho melhor desistir dessa coisa toda,
afinal. Melhor parar por aqui e dar meia volta, mas apenas a expectativa de
tê-lo por perto é tão fabulosa, que não consigo pensar em ir embora.
Acho que perdi o pouco juízo que ainda tinha.
Olho para o outro lado enquanto Hades fecha a passagem pela
montanha e volta a ser o homem lindo e bronzeado que conheci. O cenho
dele está fechado e a ira parece transpirar por seus poros, algo o está
revoltando e eu não faço ideia do que seja.
Quando ele se senta atrás da direção, eu olho para fora, desviando
assim as vistas, tentando não pensar em nada.
O carro é então guiado em uma estrada de terra, que parece se
aprofundar pela caverna enorme e sombria.
Após alguns quilômetros de declive, que foram percorridos
inteiramente em silêncio, Hades para o carro próximo a um enorme rio onde
uma intensa neblina branca cerca sua margem. Ele desliga e salta para fora,
abrindo em seguida o porta-malas e retirando minhas bagagens de lá. Dou
um suspiro e apanho a minha bolsa, a colocando a tiracolo e saindo do
batmóvel.
Terminamos de descer o pequeno morro em direção ao rio gigante,
eu presto atenção nas pedras pelo caminho, nas variações de terreno, pois
para pessoas desastradas por natureza como eu, isso aqui é um prato cheio
para que acabe com o nariz enterrado no chão.
— Desculpe — eu ouço-o dizer com sua voz poderosa e baixa, e ergo
as vistas, atônita.
É neste momento que meu pé esquerdo se prende em uma fenda na
terra dura e perco o equilíbrio, indo rapidamente de encontro ao solo, mas
um braço de Hades interrompe minha queda iminente e eu me agarro a ele
com força.
Nossos olhos se encontram e eu perco o rumo dos meus batimentos
cardíacos diante do par castanho e intenso que me encara.
— Obrigada — eu murmuro sem notar, me ajeitando e retirando meu
pé da fenda que o prendia. — Pelo que você está se desculpando...? —
começo, porém me calo, pois um movimento chamou minha atenção, um
movimento na névoa.
Viro meu rosto e estreito melhor a visão, colocando a névoa estranha
em foco, começo então a distinguir formas... Rostos... Pessoas...
Fantasmas!!!!
O grito horrível sai da minha garganta. Pulo para trás de Hades.
A margem do rio está cheia de fantasmas! Centenas, milhares deles!
Andando de um lado para o outro, perecendo perdidos.
— Não tenha medo, não lhe farão mal — ele diz, como se estivesse
falando sobre moscas. — E eu falava sobre o que aconteceu, sobre...
Carolina! Já disse que não lhe farão nada!
Eu não me mexo. Para falar a verdade me encolho mais ainda, me
escondendo atrás de suas costas.
— Hades, eu não... — eu começo, sem saber como terminar.
— Venha — ele diz, pegando minha mão e terminando a descida, me
arrastado junto, literalmente.
Quando os fantasmas veem Hades, eles abrem passagem, como se
reconhecessem sua superioridade (ou melhor: reconhecendo sua divindade),
a multidão de almas faz reverência para ele, se curvando, ou apenas
inclinando a cabeça.
Eu tremo, apertando mais ainda sua mão, seu braço todo, para ser
sincera, pois estou quase pendurada nele.
A brancura infinita e semitransparente dos espíritos me dá calafrios,
suas expressões são as mais variadas, mas em sua maioria estão carregadas
de tristeza. Uma tristeza tão grande e intensa que meu coração dói.
Me detenho na caminhada.
— Hades? Por que eles estão aqui? — pergunto, agora que o susto já
está passando.
— Eles não têm o tributo para dar a Caronte — ele diz sem explicar
nada e eu apenas o encaro, querendo a história toda. Hades revira os olhos e
respira fundo, depois continua: — Certo, você não sabe sobre isso também...
— diz, torcendo a boca e passando a mão pelos cabelos arrepiados. —
Caronte é o barqueiro que leva as almas pelo rio Estige, no caso, esse aqui,
até as portas do meu reino, onde serão julgadas, mas para ele fazer isso é
necessário que lhe paguem um Óbolo.
— O que é isso?
— Uma moeda antiga, colocavam uma sob a língua do morto, para
pagar Caronte, mas o costume está se perdendo e por isso cada vez mais há
almas aqui, em uma quantidade que me irrita — ele termina mal-humorado.
— Quer dizer que, só por causa de um costume antigo, essas pessoas
não terão julgamento? Estão condenadas a ficar aqui para sempre?! — a
indignação na minha voz é extrema e Hades me encara muito sério.
— Não para sempre. Apenas 100 anos... Ora! Não me olhe assim!
Todos sabem que é assim que as coisas funcionam.
— Trocentos anos atrás até poderia ser, mas hoje em dia, não.
Ninguém nem sabe o que é um óvulo.
— Óbolo — ele corrige.
— Que seja — eu continuo. — Ninguém sabe mais o que é isso! É
um absurdo você ainda continuar achando que pessoas do século XXI vão
colocar uma moeda antiga junto com um defunto. Você nunca ouviu falar em
saqueadores de túmulos?
Ele apenas me encara sério, como sempre e eu lhe devolvo o olhar,
esperando sua resposta, exigindo uma saída.
— Saída? — ele ergue uma sobrancelha, como se nem tivesse
passado por sua cabeça essa hipótese.
— Sim, Seu Hades, uma saída para eles. Eles não merecem ficar
aqui.
— Confie em mim. Perto do Tártaro, isso aqui parece os Campos
Elísios.
— Mas alguns merecem os Campos Elísios — eu digo me
distanciando dele, indo em direção à multidão.
Vejo as almas, figuras semitransparentes que carregam tanto do que
eram que eu me surpreendo. Caminho devagar por entre elas, que me
devolvem o olhar, quase com medo. Vejo perfeitamente seus rostos e seus
olhos. E são eles que me dizem quem aqui deve ir para o "paraíso" de Hades
e quem deve ir para o Tártaro. Alguns tem o rosto em sombras, os olhos
vazios e quando me encaram, sinto meu ser estremecer de temor, claramente
merecedores do Tártaro. Outros são como simples vegetais, parecem mais
um viciado sob efeito de alguma droga do que qualquer outra coisa, acho
que esses deveriam ir para o tal de Campo de Asfódelos, ou purgatório. Mas
há uma quantidade enorme de pessoas que seus olhos brilham para mim,
sinto através desta luz tênue uma paz de quem fez a coisa certa, de quem está
tranquilo com sua consciência, que é impossível não ter certeza absoluta que
eles merecem o "céu".
Meu coração dói. Essas pessoas não podem ficar aqui. Encaro Hades,
que está me olhando com a boca literalmente aberta e pisco diante da
consciência de que ele ouviu, senão viu, tudo que pensei.
— Você precisa fazer algo — eu lhe suplico.
— Como consegue ver tão facilmente o âmago de cada um deles? —
ele ainda parece chocado.
— Você não? — não estou entendendo.
Ele apenas sacode a cabeça em negativa.
— Para mim e para qualquer outro, eles são todos iguais.
— Ora, que absurdo! — eu digo e olho para uma moça que tem os
olhos brilhantes. — Minha linda, como você faleceu? — pergunto com voz
baixa, mas mesmo assim ela parece se assustar, dá um pulo, na verdade e
olha para Hades, este afirma com a cabeça, "concedendo" uma resposta,
então só depois ela fala, sem mexer os lábios e sua voz é como um eco baixo
e sussurrante:
— Protegendo meu filho — a voz triste ecoa e as lágrimas enchem
meus olhos.
Encaro Hades com raiva.
Eu não vou a lugar nenhum se você não tomar nenhuma providência,
senhor dos mortos!
Digo-lhe mentalmente e cruzo os braços.
Nisso, um barco de madeira pequeno se aproxima, uma figura magra
e alta está o guiando e tem o rosto coberto por um capuz/capa esfarrapada,
que dá à visão um aspecto sinistro e deprimente. Me lembra a "morte".
Ainda bem que ele não está com uma foice no lugar do remo, senão eu acho
que já cairia dura aqui mesmo. Se bem que Hades estava com essa foice aí e
eu não caí dura, ao contrário...
Dou um sorriso para mim mesma, me lembrando da visão de tirar o
fôlego que me fez pirar na batatinha e quando dou por mim, a figura do
barco chega à margem e remove o capuz, expondo a face de um senhor
parecendo centenário, que me olha espantado com olhos arregalados e sem
disfarçar.
Capítulo XVI
CARONTE

— Uma mortal, Hades?! – o senhor me encara e depois olha para Hades,


que segura as minhas bagagens em um braço só (inclusive a mala pink de
Lucy) e sem eu esperar, o velhinho joga a cabeça para trás e solta uma
enorme gargalhada, mostrando os poucos dentes.
Pronto, já amo ele.
— Esse saco de ossos é Caronte, Carolina. E é por sua ambição que
nenhuma destas almas pode ir sem pagar o tributo – ele diz, me olhando com
a expressão de "viu? Ele não presta e você se enganou".
Eu me aproximo de Caronte e estendo a mão.
— É um prazer conhecê-lo, Caronte – dou um sorriso e vejo-o
engolir em seco, passar a mão nas suas vestes surradas, como que limpando-
as, e com um sorriso sincero, ele aperta a minha.
— Madame – ele diz. — O prazer é meu. E não acredite quando ele
diz que sou o culpado deles ficarem aqui. É uma regra que não posso
quebrar.
Eu encaro Hades, que já está colocando as minhas malas dentro do
pequeno barco.
— Uma regra? Imposta por quem? – eu pergunto ao velhinho.
— Na verdade, foi um acordo entre mim e o rapaz ali – Caronte
explica e eu acho uma graça ele chamar Hades de "rapaz".
— Acho que vocês devem reavaliar esse acordo. Essas pessoas e
muitas outras que virão não podem ficar aqui, até... Até daqui cem anos, ou
sei lá quanto tempo! É maldade – termino a frase com um sussurro.
— Sim, sim, vamos reavaliar, não é Caronte? Agora entre no barco,
Carolina – Hades faz um sinal mal-humorado para que eu embarque.
Eu cruzo os braços.
— Só depois que você fizer alguma coisa – eu olho para a moça que
me disse como morreu e meu coração aperta. — Não vou deixá-la aqui, ou
qualquer outro. Eles merecem suas sentenças, eles merecem alguma coisa,
Hades – lhe suplico mais uma vez.
— Carolina.... – ele começa em tom de advertência.
Eu olho em volta e vendo uma pedra um pouco mais alta, me sento
nela.
— Deixe minhas malas aqui, então, não vou a lugar nenhum – lhe
digo, pois eu sei ser teimosa.
— Sim, estou vendo! – ele responde ao meu pensamento e passa as
mãos pelos cabelos, que já queimam, demonstrando sua irritação intensa. –
Leve-os todos para serem julgados, Caronte – ele diz a contragosto e eu me
ponho de pé em um segundo, esperando a resposta do senhorzinho.
Caronte parece que teve um derrame. Está em choque absoluto.
— Como irei fazer isso? Como conseguirei o valor de que preciso?
— Eu pago por cada um que não tiver o Óbolo – Hades responde
entredentes.
— Serão muitas viagens – ele diz para si mesmo, olhando a multidão.
— O que espera? Férias? – os cabelos de Hades queimam claramente
agora.
— Depois de uma eternidade de trabalho, seria bom – ele coça o
queixo, sorrindo mansamente.
— Não me custa nada enfiar esses seus ossos velhos no Flegetonte,
sabe disso, não é? – Hades ameaça e o velho se cala, mas não antes de soltar
um "hunf".
Eu rio baixinho. Estranho, mas não consigo deixar de ver uma
enorme semelhança entre esses dois.
— O quê?! — eles dizem em uníssono.
— Eu sempre fui mais bonitão e menos ranzinza que esse rapaz! —
Caronte diz, torcendo a boca parecendo ofendido.
Eu não me seguro e solto uma gargalhada.
Mas hein? Caronte também escuta o que eu penso?
Olho para ele, que agora balança a cabeça com um quase sorriso nos
lábios.
Tapo minha boca, como se assim pudesse parar de "pensar".
— Melhor tomar cuidado com seus pensamentos aqui. Como mortal,
eles são facilmente ouvidos por qualquer um de nós — Hades diz, quando
estica o braço para mim. — Até mesmo por Caronte.
Caronte solta outro "hunf" e vira a cara para o lado.
— Eles irão também? – pergunto receosa, olhando para as almas
ainda na margem.
— Cada um deles – Hades me responde com voz séria e intensa.
Então eu pulo e o abraço, ignorando a mão estendida e o aperto,
sentindo o corpo grande de encontro ao meu, tumultuando tudo dentro de
mim e fazendo a alegria do momento crescer.
— Descobri quem você é – digo, olhando-o nos olhos. — Você é o
Meu Malvado Favorito – digo sorrindo. Meu Gru.
O tempo parece que parou. Hades me encara intensamente e eu a ele,
sinto o toque dos seus dedos em meu rosto.
— Minha aeráki — ele diz com voz grave e seus cabelos queimam
em um fogo diferente, quase lilás, lindos como nunca.
Miro seus lábios e ele os meus, estamos nos aproximando mais,
quando ouvimos um "Hãm-hãm" vindo de Caronte e que parece quebrar o
encanto do momento.
De um pulo nos afastamos e Hades parece aborrecido outra vez.
— Vou matar aquele moleque desgraçado! – ele diz entredentes e eu
não tenho nem ideia de quem ele ficou com raiva agora ou o porquê.
Subo no barco e Caronte me observa em silêncio, com olhar de quase
pesar que eu acho imensamente estranho.
Quando ele rema a embarcação e nos afastamos da margem, com
Hades olhando para qualquer outro lugar, menos para mim, eu me remexo
no assento de madeira e olho para as águas turbulentas e profundas do rio.
— Como se chama este rio? — pergunto ao vento.
É Caronte que me responde:
— Esse rio é o Estige. Ele pode torná-la imortal ou matar, as águas
escolhem. Embora elas na maioria das vezes sejam mortais. É aqui que os
deuses fazem suas promessas. Ninguém pode quebrar uma promessa feita
nestas águas, nem mesmo eles.
— Uau! Que romântico! — solto essa, imaginando quantas
promessas de amor devem ter sido feitas aqui.
— Promessas de vingança, Carolina — Hades explica, me olhando
como se eu tivesse enlouquecido. — Este também é chamado de “Rio do
Ódio”.
— Ora! Tanta coisa boa para prometer! — torço a boca, achando um
desperdício de promessa alguém querer o mal de outro deste jeito.
Podem prometer amar para sempre, proteger, ajudar, fazer o bem... E
prometem vingança e ódio?!
Achei que deuses eram mais espertos.
Vejo o senhor me olhar com olhos doces e outra vez o brilho de pena
está ali. Ele desvia o olhar e eu continuo olhando para as águas, imaginando
que alguém deve ter um sentimento muito forte dentro de si para jurar algo
que nunca poderá desistir. Deveria ser “o Rio do Amor”. Só o amor pode ser
grande assim.
Estão eu ouço a voz de Caronte, que me tira dos pensamentos:
— Não sei se você viu, Carolina, nas margens deste rio, uma
plantinha, o nome dela é Minta.
— Cale-se, Caronte! – Hades ruge e eu me encolho.
— O que tem a plantinha? – eu pergunto para os dois, que estão
emburrados, cada um olhando para um lado. — O que tem a plantinha? –
repito a pergunta, desta vez olhando exclusivamente para Hades.
— Nada! Não voltará a acontecer.
— Como pode assegurar isso? – Caronte pergunta a ele muito sério e
eu estou cada vez mais curiosa.
— Porque se Perséfone fizer aquilo outra vez, ela vai passar a
eternidade no Tártaro.
— Isso não seria o suficiente, é pouco, ainda mais se fizer algo a essa
doce brisa. Eu nunca iria perdoá-lo – Caronte parece verdadeiramente
aborrecido, mas noto que eles debatem como se eu não estivesse aqui.
— Ham.... Alguém pode me contar sobre a plantinha? — tento mais
uma vez, pois isso de plantas e brisas parece algo bonito.
Silêncio.
Então, quando acho que ninguém irá dizer mais nada, Caronte fala de
uma vez, rapidamente, provavelmente para Hades não o interromper.
— Era uma ninfa amante de Hades que Perséfone transformou em
planta.
Simples assim.
E agora eu não sei se meu coração dói por medo de me tornar mais
uma planta nas margens do rio, ou apenas mais uma "amante" de Hades.
Mas a dor está ali, grande e sufocante, por isso termino a travessia
em silêncio.
Capítulo XV
PROMESSA

Hades

Velho maldito! Fofoqueiro como uma lavadeira!


Encaro Caronte mais uma vez com raiva, ele mantém o meu olhar
por alguns segundos, para depois desviar o seu. Caronte é filho da deusa
Nix, a deusa da noite, que depois dos titãs, é a primeira geração de deuses,
assim como Cronos e Reia, meus "pais". Difícil pensar no cara que me
"engoliu" quando eu era um recém-nascido e a mulher que permitiu isso
acontecer, como sendo meu pai e mãe... Hunf!
Torço a boca e passo a mão pelos cabelos, que queimam ainda de
raiva deste saco de ossos de língua grande.
Assim sendo, Caronte, como as Fúrias, não me devem obediência,
apenas respeito. E a meu ver, até isso já está faltando! Onde já se viu falar
sobre Minta para Carolina?!
Minta era minha amante antes que eu me casasse com Perséfone, e
logo que casei ela não aceitou a situação, tampouco Perséfone! Cego e sob o
efeito do feitiço da flecha de Eros, eu a perdoei em seu ato maldoso, que foi
movido apenas por medo de perder seu posto de rainha do Submundo e nada
a ver com ciúmes ou qualquer sentimento do tipo. Porém, eu jamais a
perdoaria se tocasse em minha "doce brisa", como disse Caronte. Nem
Perséfone, nem ninguém! Preciso dar um jeito de tornar Carolina imortal,
mesmo sem seu consentimento.
O que talvez não seja uma boa ideia, afinal ela poderá ficar com ódio
de mim e de minha atitude para sempre, então tudo terá sido em vão.
Mas por que estou pensando nessa merda toda? Perséfone não irá
sequer vê-la, a não ser que Carolina fique mesmo grávida nesse meio tempo,
então ela ficará para sempre no Submundo. Perséfone irá se arrepender
amargamente se sequer pensar nela.
Sim, eu sei. Eu disse à Carolina que ela poderia ficar com a
criança... Ficar no Submundo com a criança. Qualquer coisa que ela tenha
entendido diferente disto, foi por confusão dela. Eu nada tenho a ver com
isso. Não me importo se nada fiz para desfazer o mal-entendido, não vou
abrir mão do meu herdeiro e no momento não quero abrir mão dela também.
O que é a coisa mais estranha e estúpida que eu poderia pensar, tenho plena
consciência disso.
O que me lembra que preciso conversar urgentemente com Eros. Vou
pegar aquele fresco pelos cabelos dourados que ele tanto se orgulha e enfiar
suas flechas no seu rabo, todas de uma vez! Filho de uma rameira! Fez essa
merda comigo pela segunda vez?! Cadê o diabo do respeito?! Da outra vez,
só não depenei aquelas asas porque Afrodite disse que "estavam pensando
no meu bem, pois eu era muito solitário"... Porra nenhuma! Nunca pedi nada
àqueles dois! Estava muito bem em minha solidão!
Como punição, os intrometidos tiveram que fazer vários favores para
mim. Mortes por amor acabaram virando moda e assim nasceu a tal de era
do romantismo, que os tolos humanos achavam "linda".
Hunf!
Quando o barco de Caronte finalmente para diante dos portões do
meu palácio, às margens do Estige, eu ajudo Carolina a descer. Ela não me
olha e eu não escuto nada de seus pensamentos, o que me deixa mais irritado
ainda.
Notei muitas coisas neste pouco tempo em que conheço essa mortal,
e uma delas é que quando seus pensamentos estão em silêncio, é sinal de que
algo está muito ruim.
Termino de colocar as malas dela no chão, depois me volto para
Caronte:
— Ainda não terminei com você — anuncio para ele entredentes. —
Espere um minuto, Carolina — resmungo para ela sobre o ombro, sem me
voltar em sua direção.
"Não faça nada a ele, Hades!"
Os pensamentos dela voltam a penetrar os meus e não sei se fico feliz
ou mais irado ainda.
Sinto meus cabelos queimarem com mais força, mas quando eu abro
a boca para lhe responder, Caronte o faz antes de mim:
— Não se preocupe, menina Carolina, não há nada que esse rapaz
possa fazer de mal a mim — ele tem a cara de pau de piscar um olho para
ela.
— Carolina, não perca seu tempo se preocupando com quem não
merece — eu lhe digo, outra vez sem me virar, com raiva.
Me afasto, empurrando o barco de Caronte para as águas novamente,
porém ele impede que eu conclua o movimento, segurando a posição na
beira, com o seu remo comprido.
— Já pode ir e não se aproxime dela outra vez com suas histórias
infundadas... — começo em voz baixa, para Carolina não escutar, porém ele
me interrompe:
— Sabe que não são infundadas, são verdadeiras e esta, mais
especificamente, pode acontecer outra vez...
— Não irá! — rujo para ele, deixando o tom baixo de lado.
Caronte me encara, coça o queixo e parece me avaliar.
— Aquele moleque esquisito de Afrodite andou brincando de tiro ao
alvo com você outra vez? — ele me pergunta sério.
— Por que acha essa merda?! Pareço um abobalhado flechado?! —
sinto o fogo consumindo tudo ao meu redor.
Caronte ainda me avalia:
— Não como da última vez, mas...
— "Mas" nada, velho intrometido! Não abra mais essa maldita boca!
Você me deve respeito e posso muito bem exigi-lo! — digo entredentes mais
uma vez.
Ele apenas sacode a cabeça:
— Sei que lhe devo respeito, "meu senhor" e é respeitosamente que
lhe peço para proteger essa moça. Ela não tem a astúcia de Perséfone, nem a
malícia de Minta, é uma alma pura e bela, como poucas que tive o prazer de
levar em meu barco. Ela merece algo bom, não o Submundo, nem o ódio de
Perséfone ou... — ele se cala, mas eu entendo claramente o que o olhar
negro dele me diz.
Carolina não merece a mim.
— Ela é minha destinada! — eu consigo falar, antes de pegá-lo pelo
pescoço e erguê-lo, louco para arremessá-lo no meio do Estige.
— Então prometa que não deixará nada de mal acontecer a ela! Jure
que não permitirá que ela sofra por causa de uma deusa ou deus arrogante e
fútil, como minha Léia — ele me enfrenta sem se encolher, diferente de
como sempre fez, me pegando de surpresa.
Eu o coloco outra vez no chão, dentro da embarcação.
Léia, a filha de Caronte, para a qual ele deve juntar centenas de
milhares de óbolos para dar a Hera como "resgate", por causa do ciúme
doentio e ambição sem limites da minha irmã/cunhada.
— Nada irá acontecer! — resmungo, tentando me controlar, pois se o
velho viu em Carolina sua amada filha Léia, é porque minha Brisa o
impressionou demais.
— Jure pelas águas do Estige! — o olhar dele se mantém duro e
sério, parece colocar em meus ombros a culpa de Zeus, que não impediu
Hera de aprisionar sua filha. — Jure que não se omitirá, Hades. Prove que
tem mais valor que aquele arrogante que reina lá em cima!
— Não preciso provar nada a você, Caronte! Afinal, afogou seu
próprio irmão por ganância!
— Já tive minha punição, Hades... — ele parece verdadeiramente
envergonhado agora.
Passo a mão pelos cabelos, respiro fundo e lembro do que Carolina
falou sobre o rio. "Tantas coisas boas para jurar...". Então eu juro:
—Juro pelas águas do Estige que protegerei Carolina e não deixarei
nada de ruim lhe acontecer — então o rio brilha em suas águas esverdeadas,
aceitando o meu juramento e o tornando eterno e mortal.
Seja lá o que aconteça, quanto tempo dure a vida dela, eu serei seu
protetor, mas a simples ideia de um dia ela vir parar aqui, nos Campos
Elísios (pois nos de Asfódelos eu jamais permitiria), já me deixa com a
droga do coração com uma sensação estranha, parece que dói, parece que
está sendo apertado. Carolina não pode morrer. Nunca!
Sacudo a cabeça para afastar os pensamentos estranhos.
— Pronto — digo entredentes. — Vai ir embora agora, velho pé-no-
saco?
Caronte subitamente sorri.
— Sim, meu rapaz, agora posso ir — ele empurra o barco e sem
olhar para trás, rema para longe.
— Velho louco! Hunf! Não duvido que apareça qualquer dia destes
para conferir sua integridade, Carolina. — eu vou pegando as malas dela que
estão pelo chão.
Me detenho um instante, pois está muito quieto aqui, Carolina está
quieta, o Submundo está quieto, até Cérbero está.
— Oh, merda! — ergo as vistas e vejo o porquê do silêncio.
Carolina está abrindo os grandes portões negros do meu palácio,
Cérbero tem as três cabeças inclinadas para ela, parecendo manso, mas sei
que está a ponto de atacar, a cauda de serpente já está com os dentes
arreganhados.
Ele irá matá-la, devorar minha brisa, acabar com minha chance de
felicidade.
Meu coração parece congelar, por um instante eu sinto o que nunca
senti em toda a minha existência: medo.
Um medo gelado e intenso que me faz paralisar.
Ela sorri e para diante dele, fala alguma coisa que não distingo o quê
especificamente, então ela ingenuamente estende a mão para afagar uma das
cabeças gigantes. Vejo Cérbero mover a cauda e dar um passo em direção de
Carolina.
Então eu ajo.
Derrubo as malas no chão, mentalizo o portão e em segundos estou
ao lado de Carolina, foice na mão, em minha essência, queimando em
chamas de ódio, pronto para rasgar Cérbero em dois.
Quando, diante dos meus olhos, ele se joga ao chão e mostra a
barriga enorme para Carolina.
— Mas... O quê...? — minha voz sai grossa e perplexa.
A risada cristalina dela enche os meus ouvidos, fazendo o meu
coração idiota doer outra vez e eu nem sabia que coração doía!
Em choque, eu a vejo se inclinar diante do enorme cão infernal e
esfregar sua barriga! Ela ri e Cérbero parece estar "feliz"?! Que droga está
acontecendo aqui?!
— Ai, Hades, ele é lindo! — ela diz, fazendo carinho agora nas
cabeças, que competem entre si pela atenção.
Me encosto no portão de ferro. Isso não está certo! Isto aqui é o
Submundo! Esse é meu cão assassino! Eu sou o deus dos mortos! Essa
mortal está virando tudo de cabeça para baixo!!!
Me vejo em Cérbero. Daqui a pouco serei eu que irei balançar o rabo
cada vez que ela aparecer! Não posso deixar isso acontecer!
Eu quero um herdeiro, não outra esposa! A mortal é totalmente
descartável e se sinto essa merda toda, é por causa daquele desgraçado do
Eros! Vou exigir que ele retire essa droga, aí volto a ser eu outra vez!
Eu! Hades, o "mate todos", o "que se ferrem os mortais", o "não me
importo".
Desde quando me interessa se as almas não têm o maldito óbolo?
Desde quando eu sinto "medo" de perder alguém? Desde quando eu me
importo com um simples mortal? E desde quando elas parecem com brisas?
Estou ficando louco!
Já jurei protegê-la, mas até que converse com Eros, não me
aproximarei mais. Senão ela, a "doce e ingênua mortal", irá acabar com meu
reino, meu cão e até comigo mesmo. E isso eu não permitirei!
Tártaro!
Capítulo XVI
BEM-VINDA?

Carolina

O enorme cachorro de pelo escuro e três cabeças lambe minha mão,


parecendo contente em me ver. Sempre amei cachorros e acho que sempre
tive jeito com eles. Claro que nunca vi nada parecido com esse, mas aprendi
a não julgar pelas aparências, quer dizer, não as aparências estranhas. Tenho
mesmo preconceito é com as aparências muito bonitas.
Falando nisso, olho de canto de olhos e vejo que Hades está a um
passo de distância, em sua essência, me observando fazer carinho no
cachorro, que deve ter o tamanho de um boi. Ele parece outra vez
contrariado e mais uma vez a visão impressionante dele faz meu estômago
dar uma cambalhota... Opa! Isso não é bom! Isso é o oposto de bom! Isso é o
"bagulho" no estômago! Aquilo que dizem sobre quando a gente se apaixona
completamente! Oh, meu Deus! Não! É só tesão. É, é isso...
— Eu disse para não ficar a sós com Cérbero! Você me desobedeceu!
Ele poderia tê-la devorado! Tudo pela sua estupidez sem limites! — ele
esbraveja, graças a Deus, interrompendo meus pensamentos antes que possa
ouvi-los.
Eu arregalo os olhos diante da grosseria dele.
— Ele é fofo! Ele nunca...
— Se vai ficar me desobedecendo, não irá durar um dia aqui!!! — ele
ruge em uma voz grossa e que faria qualquer um arrepiar até os cabelinhos
da nuca, mas eu senti outras coisas.
Eu apenas o encaro, flamejante, lindo, roupa de gladiador, manto das
trevas, olhos negros e pele azulada.
Respira, Carolina. Ele está brigando com você. Brigando. Não
falando coisas bonitas, nem tentando tirar suas roupas.
Ai, que pena!
Hades parece mudar de atitude. Seu semblante suaviza e ele muda de
aparência em um piscar de olhos, virando o moreno lindo de pele bronzeada
outra vez.
— Qual seu problema com a minha essência?! — ele está outra vez
de cenho franzido, mas parece não querer me matar agora.
— Não sei. Sua essência... — respiro fundo e me calo, dando atenção
outra vez ao cachorro, que parece um filhote, dando ganidos e batendo as
patas no chão.
— Excita você? — ele pergunta pausadamente, estreitando os olhos.
Eu o encaro e sem poder mentir, pois já demonstrei, digo de vez:
— De um jeito que jamais achei que fosse possível.
— Porra do caralho! — Hades parece ficar possuído outra vez. —
Tártaro!
Ele queima e caminha na minha frente, sem olhar para trás, sem me
esperar. Eu corro atrás dele e Cérbero vem atrás de mim.
Falei o que não devia, eu acho. Mas que humor terrível que ele está
desde que chegamos aqui! Credo!
Cérbero caminha ao meu lado e eu aproveito para observar tudo.
Aqui não é uma caverna grande nem nada disso. Não é escuro e tal.
Tem um "céu" meio alaranjado, que me lembra a aura de Hades, parece ter
nuvens coloridas, que dá uma aparência quase poética, como um céu ao pôr
do sol. O clima é quente e parece que há montanhas por todos os lados.
Parece um Vale. Um imenso vale ao pôr do sol. As únicas diferenças nesta
"visão" são as árvores. As árvores aqui não possuem folhas, são enormes e
torcidas. Parecem mais raízes do que árvores mesmo... E talvez até sejam.
Hummmm...
Então tá, um vale ao pôr do sol no inverno, só que quente.
Isso! Perfeito! Assim é o Submundo.
A-do-re-i!
Grandes portões de ferro negro protegem o que talvez seja a
residência de Hades. Ele caminha pelo chão de pedras e sobre um caminho
bonito que me lembra o do filme O Mágico de Oz. Amarelo... mais
especificamente tijolos amarelos. Olho para meus pés e vejo que os tais
tijolos brilham... Brilham como ouro!!! O caminho É de ouro!
Hades continua sua caminhada, sem notar que eu estou atônita aqui.
Ouro? Tudo isso é ouro? O chão? Para a gente pisar em cima?! Sério
isso, produção?!
Cérbero para e me observa, eu olho para as três cabeças e cai a minha
ficha.
Dou uma risada. Nada aqui é convencional, então por que a calçada
seria?
— Não estamos mais no Kansas, não é, Totó? — digo para Cérbero e
recomeço a caminhada, passando por várias árvores e mais alguma coisa que
parecem com vegetação, algumas com largas folhas roxas, azuis e laranjas,
todo o quadro compõe um jardim exuberante, estranho e muito bonito.
Quando a enorme construção, feita em mármore negro e dourado
aparece em minha visão, eu prendo a respiração.
Sabe aquele negócio, aquele monumento, o Parthenon? Pois é! Não
tem nada a ver.
Sim, aqui tem também enormes colunas gregas, o prédio é em
arquitetura grega, óbvio, mas a construção é negra, enorme e me lembrou
um castelo. O castelo do rei Hades.
Tem muros altíssimos e ele está construído sobre uma rocha
gigantesca, parece ser entalhado nela. As escadarias brilhantes com grandes
dragões esculpidos guardando cada lado dela.
Os finos detalhes em dourado (ouro, agora tô ligada), representam
desenhos lindos.
E o mais impressionante: eu consigo notar cada ponto, cada
minúsculo traço ou detalhe.
Eu enxergo tudo perfeitamente!
Hades não se detém ante meu quase choque com tanta chiqueza e
minha súbita perda da miopia, ele prossegue e entra pela gigantesca porta de
ouro, que se abre sem ele tocar nela.
Eu dou um passo para frente, a curiosidade de ver como é lá dentro,
maior do que minha admiração embasbacada de tudo isso.
Cérbero parece pensar um momento se me segue porta adentro, ou
não.
— Você não pode entrar, bebê? Oinnn toitadinho do Cérberozinho.
— faço outro carinho nas cabeças, que me lambem as mãos.
— Hso!!! — ouço Hades gritando lá dentro.
— Melhor eu entrar, fofinho — digo ao cão e caminho. Vejo Cérbero
rosnar em volta de mim, mas não para mim, ele rosna para o ar que passa ao
meu redor, não sei exatamente para o quê, ou para quem, então ele me olha e
vejo algo estranho. Ou melhor, sinto. Sinto que ele me jurou fidelidade.
Droga, eu tenho certeza de que agora fiquei louca. Ou devo ter tido
um piripaque quando tomei aquele iogurte, devia estar estragado e eu estou
em coma profundo na UTI.
Entro no grande hall e vejo que estou me superestimando.
Eu nunca conseguiria imaginar isso tudo. Nunca.
Hades não está sozinho no saguão negro e dourado, com móveis em
ferro e couro escuro. Relíquias de guerra e vasos enormes parecendo urnas
funerárias antigas.
Tem até um sarcófago!
Tudo limpo e brilhante. Ele está parado diante de um fantasma
enorme, com certeza um homem muito bonito e importante em sua ex-vida,
pois tem porte de realeza.
Atrás deles 3 criaturas estranhas, pairando sobre os degraus da
escadaria à lá "teatro-quase-vento-levou", parecem mulheres com asas de
morcegos e cabelos desgrenhados, mistura de gárgulas e moças.
— Hso, deixei a bagagem de minha hóspede nas margens do Estige,
quero que as recolha e as leve para o quarto que lhe mandei arrumar há dias.
Hso, não levanta os olhos, nem para Hades, nem para mim.
As moças aladas tomam consciência de minha presença e me
encaram com olhar analítico.
Eu me aproximo de Hso, primeiramente, já que Hades não tem
educação nenhuma.
— Oi, vossa alteza, eu sou Carolina — estendo a mão para ele, sem
saber se é assim que se cumprimenta a realeza, talvez eu devesse fazer
reverência.
Hso ergue a cabeça devagar, me encarando dentro dos olhos,
admirado, enquanto Hades urra:
— Reverência?! Ele é meu criado, não um rei!!! — diz entredentes.
Eu não ligo para os gritos de Hades, acho que já estou me
acostumando com o temperamento explosivo dele.
— Não é agora — eu sorrio para Hso. — E como se diz: quem é
realeza nunca perde a coroa... Ou quase isso.
Hso, para minha admiração, sorri. Um sorriso bonito em sua
semitransparência e colocando uma mão no peito, se curva levemente apenas
um pouco mais que um movimento de cabeça, como um rei faria.
— Vá logo, infeliz!!! — Hades encara a mim, porém se dirige a Hso.
Este se curva profundamente para Hades, como um servo e sai em
silêncio.
— Nunca mais... — Hades começa o sermão e eu o interrompo:
— Oi, moças! Eu sou Carolina. Tudo bem? — digo para as três, que
se olham entre si.
— Elas são as Fúrias, não fale com elas! — Hades resmunga e me
empurra escada acima, sem dar tempo para eu fazer coisa alguma, ou as
Fúrias me responderem.
— Ué? Por que não? — Hades está ganhando o título de deus mais
sem educação!
— Porque elas são as Fúrias, Tártaro!!!
— Assim você não está ajudando, Hades! — resmungo.
— São as deusas da morte violenta, semeiam dor, loucura, agonia e
tortura mental! Não tem nada de bom ali!
— Elas me pareceram sérias, só isso.
— Já disse que não quero que fique perto delas! Nem de Hso, nem de
Cérbero! Nem de mim, por enquanto! — ele continua.
— O quê?! — minha voz sai estrangulada, mas outra vez ele me
ignora.
Quando chegamos no topo da escadaria, ele me guia/arrasta por um
corredor com grandes colunas e estátuas, até que chegamos em outra "ala",
como dizia o Fera.
— Chegamos à ala Oeste? — pergunto torcendo a boca, não estou
gostando destas atitudes dele!
Ele abre uma grande porta dupla de ouro, me ignorando:
— Este é seu quarto. Fique aqui. Não quero que fique perambulando
pelo palácio e nem fazendo amizades! Mortal tola! Aqui não é sua viagem à
Grécia! Está no Submundo e ninguém gosta, ri, ou é educado nessa merda!
Não saia desta porra, Carolina, ou lhe mando lá para cima hoje mesmo!!! —
ele está pegando fogo outra vez e desta vez eu me irrito.
— Se for para me tratar como uma idiota, tola e não sei mais do que
você me chamou antes, eu prefiro que me leve mesmo! Está sendo grosseiro
comigo desde que chegamos!
Eu o encaro na minha superioridade de meus um metro e sessenta
(ok, um e cinquenta e cinco).
Ele se aproxima, ainda com os cabelos em chamas.
Abre a boca para dizer alguma coisa e depois a fecha outra vez sem
dizer nada, mordo o lábio em sinal de frustração e o olhar dele desce
observando o movimento, vejo os cabelos dele mudarem de cor quando me
encara dentro dos olhos. Eles ficam quase lilás. Dou um passo na direção
dele, já esquecendo de tudo.
Hades ainda me encara intensamente, dá um passo em minha direção
e depois recua, parecendo outra vez contrariado, os cabelos tornam a
queimar em chamas vermelhas.
— Não saia daqui! — ele diz para mim e depois parece continuar
para si: — Preciso falar com aquele filho de rameira!!! Tártaro!!!
Sai e fecha a porta, me deixando sem rumo, sem chão e sem saber o
que fazer.
Ai, acho que esta estadia no Submundo vai ser mais breve do que
imaginei... E eu não estou nenhum pouco feliz com isso.
Capítulo XVII
APARÊNCIAS

Já se passaram 10 dias que cheguei aqui. Ou talvez 15... Sei lá. Só sei que já
estou ficando quase louca! Quer dizer: mais louca.
Não, não por causa do Submundo em si. Eu gosto daqui. Passeio com
Cérbero pelos jardins, converso com as Fúrias (um pouco, não muito, afinal
elas são realmente um pouco maldosas).
Hécate é legal quando está sociável, foi no meu segundo dia aqui que
a encontrei. Não é sempre que damos de cara com uma mulher de três rostos.
E confesso que no início eu não sabia para qual olhar. Agora ela coloca os
longos cabelos por cima e eu já distingo o humor dela apenas sabendo qual
dos rostos está para frente. Três rostos de uma mesma mulher, em três etapas
da sua vida que a definem: jovem, madura e idosa, cada qual trazendo a
Hécate suas peculiaridades. A jovem é triste, melancólica, fechada em si
mesma. A mulher é mais sociável, conversa e me faz companhia. Porém a
senhora, que é sua terceira e mais sombria face, me dá arrepios. Ranzinza ao
extremo, parece querer punir tudo e todos em um julgamento maquiavélico.
Às vezes, à noite, escuto uma música realmente linda, parece falar
sobre saudade e da dor da separação, mesmo que ela não tenha letra, apenas
melodia, eu sei disso, é algo estranho, pois parece que não a escuto com os
ouvidos, mas com o coração, com a alma.
Na primeira noite que a ouvi eu tentei procurar o lugar de onde
vinha, ou quem tocava aquela música que parecia ser de um instrumento de
corda com notas fortes e profundas, e parecia que trazia um encantamento ao
lugar. Porém assim que abri minha porta dei de cara com Hades de pé de
braços cruzados, escorado no batente da porta do outro lado do corredor.
Lindo de morrer, com os cabelos bagunçados e usando apenas calça preta.
Lógico que ele saberia que eu iria sair procurar pelo músico ou caixa
de som que tocava aquela melodia belíssima.
Ele apenas colocou o dedo indicador em riste e fez um “não” com
ele.
Respondi estreitando os olhos e mostrando a língua, fechando a porta
atrás de mim depois que entrei novamente para o meu quarto.
Depois disso sempre espero pela canção que me toca a alma e por
vezes me fez chorar de saudade, ou ficar feliz com um sentimento de
nostalgia. Quem quer que toque o tal instrumento tem um dom fora do
comum, mas estou no Submundo, né? Não existe nada comum aqui.
Outra coisa que eu gosto muito são os fantasmas-empregados do
palácio, eles são uns amores.
Agora mesmo observo Hso, Caite e Una, que sentados ao redor da
enorme mesa de ferro, estão em silêncio, observando as cartas do baralho
antigo que encontrei há alguns dias em minhas rondas pelo palácio.
— Eu dobro a aposta! — diz Caite com um sorriso forçado,
adicionando mais algumas moedas, os tais Óbolos, à pilha no centro da
mesa.
— Eu desisto! De novo — Una baixa as cartas, rendida.
Hso fica em silêncio pensativo, observando as cartas parecendo
pensar sobre as possibilidades. Depois diz finalmente:
— Cubro sua aposta e dobro outra vez. — ele adiciona mais moedas
ao monte.
Caite parece contrariado, mas sorri, colocando as tais moedas.
— E você, Carolina, vai desistir? — Caite me encara, sorrindo ainda
e os outros dois me observam atentamente.
Eu rio. Olho outra vez para meu mísero flash e concordo.
— Vou nessa, rapazes — adiciono mais moedas, que Hades me "deu"
para a brincadeira.
Hades. Ele é o motivo de eu estar "quase" louca. De todos esses dias
eu raramente o vi, com exceção da noite da música e de algumas
pouquíssimas vezes que jantamos juntos. E mesmo nestas vezes ele sempre
esteve distante, irritado, tenso. Não me olhou nos olhos nunca mais. Acho
que se arrependeu de ter me trazido para cá.
— Dois pares — Caite anuncia sem animação, já que o seu blefe não
deu muito certo.
Hso ergue uma sobrancelha e larga suas cartas, um mísero par.
— O quê?! Como assim? Vocês fizeram tudo aquilo e tinham estas
cartas?! Eu iria ganhar! — Una se arrepende, quase chorando.
Eu abaixo minhas cartas, ganhando a mesa.
— Um mísero flash, mas melhor que o parzinho de vocês — sorrio
de orelha a orelha.
— Como pode ganhar sempre? — Caite não se conforma.
Eu dou risada e divido os Óbolos entre os três, para eles isso é útil,
mas para mim, não.
— É fácil. Você sempre mente. Una sempre desiste, mesmo se tiver
uma mão boa e Hso nunca recua. Conheço vocês, então sei como jogam!
Os três ficam em silêncio me olhando e depois olham entre si, aí
caem na risada.
É neste momento que a enorme porta dourada da imensa sala de
jantar onde estamos é escancarada com violência.
— Mas o que está havendo aqui?! — Hades queimando aparece,
encarando a todos, que ficam sérios prontamente e se curvam,
desaparecendo em segundos do local. Sorrio quando noto que levaram os
Óbolos.
— Boa tarde para você também, Hades — o saúdo sem animação
nenhuma e vou guardando as cartas, arrumando as cadeiras.
Hades apenas me observa em silêncio, como que me avaliando e já
não queima mais. Me observa tanto e tão intensamente que eu me detenho
em meus afazeres, estreito o olhar para ele e deixo minha frustração de todos
esses dias sair sem querer:
— O que foi? Lembrou que a Carolina aqui existe? — droga! Agora
ele vai achar me que importo se ele lembra ou não de mim!
Ele ainda me observa, dos pés à cabeça e eu já comecei a me sentir
estranha.
— Fui um idiota todos esses dias, Carolina — ele suspira, mantendo
meu olhar. — Estava com receio... — ele diz em voz mansa, caminhando em
minha direção, os olhos presos nos meus.
— Receio? — só consigo perguntar isso, pois o homem está muito
estranho e meu coração, que até então estava de costas com os braços
cruzados batendo o pé, parou e está aguardando atento.
Hades caminha lentamente até mim, tem um meio sorriso de quem
sabe das coisas, ou melhor: de quem sabe fazer as coisas.
— Sim, Carolina, receio dos meus sentimentos por você — ele diz
simplesmente e meu coração está em choque. — Desculpe por não ter dado
atenção a você, mas quero me redimir agora mesmo.
Ele para na minha frente e eu o observo atentamente, com o coração
aos saltos. Quantos dias esperei por este momento? Por Hades entrando pela
porta e "me vendo"? E agora ele faz isso e eu só consigo pensar é que ele
está estranho. É o mesmo Hades, lindo, moreno e gato, mas há algo
faltando...
— Como assim algo faltando, minha pequena? — ele está a um
passo de distância agora e me puxa para si, colando o corpo enorme e forte
ao meu. — Talvez que eu diga que estou apaixonado desde a primeira vez
que lhe vi? Ou que sua presença me faz bem? Ou talvez eu deva apenas
beijá-la e provar com meu corpo o que sinto por você e não consigo traduzir
em palavras.
Atestado de óbito do meu coração. Sim, morreu o miserável. Caiu
duro no chão, com coraçõezinhos nos olhos e perninhas estiradas para cima,
sorrisão e mão no peito.
Hades enlaça minha cintura, pousa a mão em meu quadril e aproxima
os lábios sensuais dos meus. Prendo a respiração, esperando o arrepio na
espinha, o tumulto que o toque dele me provoca, a atração gigante, que me
faz querer me fundir a ele. Porém, não sinto nada, nem o frio na espinha de
sempre, nem tumulto nenhum.
Engulo em seco.
Mesmo durante uma simples janta, com ele evitando me olhar, eu
sinto a aura dele me puxando, sinto ela se unindo à mim e agora nada?!
Estreito os olhos, me afastando do beijo e estreito as vistas, então eu
noto. A aura dele está "escapando" das vestes negras e ela não está laranja,
está branca.
O empurro com força.
— Quem é você?!! — grito enquanto me afasto, correndo para o
outro lado da mesa, colocando-a entre mim e o "sósia" ali. Ele me encara
com olhos arregalados de espanto.
— Como assim: quem sou eu?! Está doida, Carolina? — ele dá um
meio sorriso e agora eu vejo claramente que ele não é quem "parece" ser.
— Você não é o Hades! Hades não fala estas palavras! Hades
provavelmente diria: "Que merda é essa?!" E explodiria em chamas. Passaria
a mão nos cabelos tentando se acalmar e nunca, nunca diria que está
apaixonado por mim... — termino tapando a boca, me arrependendo de ter
dito a última parte.
O sósia morde o lábio e sua aura, que antes estava pequena e
disfarçada, agora se expande em um brilho lindo e o “Hades" moreno,
grande e másculo, dá lugar a um homem de aparência mais jovem, loiro,
cabelos penteados para trás com gel, traços perfeitos e olhos cinzentos. Veste
um impecável terno cinza com gravata celeste. Parece um CEO milionário,
quase um Christian Grey.
— Eu só queria dar uma "ajudinha" àquele teimoso do meu irmão!
Ninguém pode dizer que Zeus não estende a mão a um irmão necessitado!
Ele sorri e se aproxima.
— Não acho que me agarrando seria uma ajudinha! É safadeza, isso
sim! — digo com raiva do Zeus benevolente ali.
Então, subitamente, meu coração ressuscita e começa a chorar. Eu
sinto meus olhos se encherem de lágrimas.
— Desculpe se feri seus sentimentos, Carolina — Zeus puxa uma
cadeira para mim e eu me permito cair sentada nela, subitamente atordoada.
— Eu... estou bem — digo para mim mesma, mas não estou nada
bem, estou confusa. Estou triste, na verdade.
Zeus coloca uma taça em minhas mãos, parece ser vinho e eu bebo.
— Falei algo que a magoou? Foi isso? Eu não achei que você notaria
a diferença, ninguém nunca notou antes. Minha primeira derrota, mas você
não se sente vitoriosa. — ele serve a si mesmo de vinho.
Coloco a taça na mesa.
— Você não parece arrependido desta brincadeira sem graça! — digo
me levantando.
— E não estou — ele coloca uma mão no bolso do paletó. — Estou
arrependido de ter sido descoberto e ter causado esse sentimento em você —
ele sorri charmosamente.
— Que sentimento? Raiva? Vergonha? Raiva? Já disse: raiva? — eu
viro as costas e vou em direção à porta.
— Não. O sentimento de "decepção" — ele diz, parecendo sentido e
eu paro e me volto. Ele me observa em sua elegância e classe sem limites. —
Eu vi que não ficou com raiva por eu ter tentado enganá-la, mas sim
unicamente porque não foi o tolo do meu irmão quem lhe disse aquelas
coisas.
Meu coração tem outra crise de choro e eu mordo o lábio para não
fazer o mesmo.
Suspiro.
— Eu sei que ele nunca irá dizer nada parecido com aquilo... —
começo e Zeus aparece ao meu lado, me interrompendo.
— Apenas porque é um tolo teimoso, não porque não sente — ele diz
e eu o observo atentamente. — Há dias que Hades procura por Eros e em um
destes dias veio com uma conversa estranha, sobre mortais, sobre mulheres...
sobre conquista... Achei estranho e conversamos algumas coisas que nem me
lembro! — ele diz, enquanto me conduz para fora da sala de jantar e me leva
para a sala de estar. — Mas hoje Eros veio falar comigo e me contou o que
tanto Hades queria com ele. Você vai ficar feliz em saber.
— QUE MERDA ESTÁ FAZENDO AQUI, ZEUS?! — o urro que
faz o palácio tremer ligeiramente ecoa pelas colunas e Zeus e eu nos viramos
ao mesmo tempo para ver Hades em chamas vermelhas e olhos negros,
queimando de raiva e ódio, enquanto encara a mão de Zeus pousada em meu
braço.
Meu estômago dá uma cambalhota, meu coração suspira apaixonado
e minhas pernas tremem, tudo ao mesmo tempo, só porque ele está aqui.
Zeus me encara, como se não acreditasse, entre divertido e maroto.
Morde o lábio e diz:
— Isso vai ser interessante...
Capítulo XVIII
CAINDO NA REAL

Hades

Odeio esse sol todo que existe aqui no Olimpo. É muita luz, é muita
nuvem, é muito azul. Hunf!
Se não fosse estritamente necessário estar aqui nessa merda para
poder falar com o miserável do Eros, eu não teria vindo! Tenho mil coisas no
Submundo me esperando, não posso perder tempo nessa droga de Vila
Divina que Zeus montou, cheia de filhos e a merda toda.
Para que tanto filho? E eu não posso ter um?
Tártaro!
E também, como vou conseguir esse feito se nem olhar para Carolina
eu consigo mais? Não consigo porque cada vez que faço isso, meu peito dói.
Merda de peito! Quando os olhos dela buscam os meus, eu sinto o tempo
parar. Merda de sentimento! Quando estou junto dela, é como se tudo ficasse
mais bonito, mais feliz... merda de tudo!
Penso nela o dia todo e quando estou com ela, não quero abrir minha
boca para criar um simples diálogo, não quero que ela fale nada para eu não
ficar remoendo as palavras o próximo dia inteiro. Por isso resumi nossos
encontros a meros jantares silenciosos. Hso já está encantado por ela, assim
como todos que a conhecem!
Isso não é normal! Estou começando a achar que ela é um grande
presente de grego de Eros e Afrodite! Alguém enviado por eles para destruir
não apenas a mim, mas todo o meu reino.
Isso nada tem a ver com o que senti com relação a Perséfone. É mais
intenso, mais profundo e muito mais forte.
Eros deve ter me acertado uma dúzia de flechas desta vez, por isso
esse moleque vai me pagar quando aparecer.
Tentei conversar com Zeus, por cima, sobre esse negócio de
"conquista", afinal ele teve mais mortais do que deusas, eu acho, mas as
ideias dele são absurdas! Zeus veio com um papo louco sobre: educação,
cavalheirismo, babaquices, melação e coisas idiotas como caminhar ao luar!
O que isso vai me ajudar a me livrar deste sentimento que tenho em
relação a Carolina e gerar meu filho sem matá-la?
Zeus caiu no meu conceito! Hunf!
— Zeus disse que queria falar comigo, Hades — Eros aparece
sorrindo, vindo não vi de onde, pois eu estava ocupado demais pensando em
"sentimentos"!
Eu! Pensando em sentimentos?!!!
— Que droga você fez comigo, seu moleque miserável?!!! —
pergunto erguendo-o pela toga branca, tirando-o meio metro do chão.
Vejo o sangue sumir do rosto dele e ele arregala os olhos azuis para
mim.
— Eu? O que...? O que...? — sem paciência, o observo balbuciar,
batendo as asas douradas para tentar se equilibrar no ar.
— Eu juro, seu ganso de merda, que se não tirar o efeito da droga das
suas flechas de mim agora, EU VOU TE DEPENAR!!! — urro para ele, me
incendiando e queimando a toga do infeliz.
— Pelo amor de Reia, Hades, solte-o — Afrodite grita e eu me viro
para ela.
Ela está a dois passos de mim, os cabelos negros cacheados caindo
até abaixo da cintura, a pele pouco coberta pela túnica alva e as curvas
perfeitas fazendo o efeito que sempre fazem a qualquer homem, mortal ou
não. Me fazendo hesitar, me confundir e assim largar o moleque dela no
chão.
— Sabe que não me importo com Reia — digo para ela, enquanto
observo Eros se erguendo do chão.
Reia, minha mãe. Pouco se importou quando Cronos, meu pai,
engoliu um por um dos filhos, após saber de uma profecia que dizia que um
de seus filhos acabaria com a raça dele e tomaria seu lugar. Reia só se
apiedou de Zeus. O escondeu e anos após, ele próprio serviu uma poção a
Cronos que o fez vomitar a mim e meus outros irmãos.
Reia? Reia só protegeu Zeus. A minha vida devo a ele. À minha
"mãe" não devo nada.
E meu "pai" teve o castigo que merecia.
Dou um sorriso quando lembro disso e me viro para Afrodite, que
agora se aproxima.
— Ficou mais louco ainda, Hades? O que estava pensando? — o
rosto perfeito dela chega próximo do meu, ela está irada e Eros vai para trás
dela.
— Não me enfrente, Afrodite! — digo entredentes. — Seu moleque
andou disparando aquelas flechas de merda dele em mim outra vez e exijo
que retire essa droga agora!!! — a raiva me faz explodir em chamas outra
vez, libertando um pouco meu lado sombrio.
Vejo Afrodite engolir em seco e arregalar os olhos. Ela olha para
Eros, que balança a cabeça em um "não" mudo. Então, para minha surpresa,
os dois me encaram e começam a rir.
— Você se apaixonou? É isso? — Afrodite diz entre uma gargalhada
e outra.
— Hades, eu não tenho nada a ver com isso! Parabéns à felizarda! —
Eros ri e eu me seguro para não torrar os dois.
— Eros! — aviso com voz grossa, pois já estou em minha essência.
As risadas param subitamente e Eros se afasta alguns passos.
— Juro que não tenho nada a ver com isso, Hades — ele diz, com
terror na voz, se enfiando mais ainda atrás de Afrodite.
— Hades, meu filho não lhe fez nada. Deixe-me tocar-lhe, me deixe
ver o que está acontecendo com você — Afrodite pede, muito séria.
— Não vai me tocar merda nenhuma, Afrodite! — eu digo, mudando
minha forma, porque estou ficando apreensivo.
Como assim eles não têm nada com isso? Como assim Eros se
encolhe de medo e nega o que fez?
— Está mentindo! — acuso-o entredentes.
— Juro pelas águas do Estige que não joguei nenhuma flecha em
você, Hades. Se sente algo por alguém, nada tenho com isso — ele diz
solene e eu sinto minhas pernas tremeram de apreensão.
Minha hesitação faz com que Afrodite perca o medo e se aproxime,
segurando meu braço. E neste meio tempo, Eros corre para longe.
— Hades, me deixe ver o que está acontecendo com você. Eu posso
ajudar em assuntos do coração, você me conhece.
— É por te conhecer que não quero que me toque, Afrodite — lhe
digo, me livrando do toque dela — Você e seu filho já ferraram com minha
vida uma vez, não vou deixar que isso aconteça de novo, ainda mais com
uma MORTAL! — explodo irado.
Carolina pode se ferir mortalmente e tudo por causa destes
miseráveis irresponsáveis!
— Mortal??? Como...? — ela começa, mas diante de meu olhar, ela
se cala. — Já conversamos sobre aquilo! E nada temos a ver com qualquer
coisa que possa estar acontecendo! Por Reia, deixe de ser teimoso!
— Afrodite!!! — eu urro, perdendo o controle que me sobrou.
Depois que ela dá dois passos para trás, eu passo a mão pelos cabelos,
tentando controlar minhas chamas e respiro fundo. — Isso TEM que ser obra
de vocês! — digo e a encaro.
Vejo o que parece ser pena passar pelo olhar dela. Talvez eu esteja
parecendo desesperado a ponto de Afrodite se apiedar de mim.
Ela sorri tristemente e abana a cabeça em um "não".
— TÁRTARO!!! — urro mais uma vez e sumo dali.
Não quero ver ninguém, não quero pensar em nada e acima de tudo:
NÃO QUERO SENTIR NADA!
Passo por Zeus sem olhar para ele, que me chama, mas não me volto.
Tenho que sair daqui. Tenho que voltar para o Submundo, para o Tártaro,
mais especificamente. Preciso me enfiar no trabalho, ver algumas punições,
me encontrar outra vez! Daqui a pouco, ao invés de chamas, vou irradiar
corações! Aí eu mesmo me jogo no Flegetonte, acorrentado!
Tártaro!
Isso não está acontecendo comigo! Isso não está acontecendo!!!!
Eu não posso estar sentindo essa merda, ainda mais por uma mortal
que NÃO QUER A IMORTALIDADE! Possivelmente, a única no mundo
que não quer.
Passo a mão pelos cabelos mais uma vez, tentando NÃO PENSAR
em mais coisas que ela parece ser única no mundo.
Subo em meu antigo carro, puxado por meus dois garanhões alados
negros e atiço as rédeas de chamas, eles descem a porcaria do Olimpo em
questão de segundos. Sem sair do lugar, eu mudo para minha essência e abro
um portal para o Submundo.
Vou direto para o Tártaro. Alguns gritos e seção de torturas me farão
bem. Isso não está acontecendo comigo e em questão de minutos serei eu de
novo.

✽✽✽

Tártaro! Não consegui prestar atenção em nada!


Subo os degraus do meu palácio de dois em dois.
Enquanto estava vendo o suplício diário dos Titãs, eu tive uma ideia,
uma solução para meu problema: vou mandar Carolina embora, para a
viagem que ela tanto quer, afinal ela não fala nada a respeito disso, mas
escuto os pensamentos que ela tem, de como quer conhecer a Grécia. Então,
quando essa minha "idiotice" passar, eu a procuro uma noite e pronto, tenho
meu filho!
Ótima ideia! Não sei como não pensei nisso antes!
Talvez eu deva procurar alguma, ou algumas ondinhas para esquecer
aqueles beijos. Talvez aceite a atenção de Hebe, afinal a deusa da juventude
sempre teve um fascínio estranho por mim, mas eu acho que ela ri demais,
porém hoje mesmo vi no seu olhar que ainda tem interesse por mim. Ou
talvez quando Íris aparecer por aqui, trazendo algum recado de Hera, eu
aceite tomar aquele hidromel que ela tanto insiste. Não, aquelas asas não me
animam.
O que há comigo, droga?! Uma ri demais, outra tem asas??? E daí?
Tártaro! É só para esquecer uma certa mortal, não é para gostar!
Porcaria de merda!
Abro as portas do palácio com apenas um empurrão.
Dois passos para dentro e paro no lugar, não acreditando no que
estou vendo: nada menos que Zeus saindo da sala de jantar de braços dados
COM A MINHA DESTINADA!
E. ELES. ESTÃO. SORRINDO!
— QUE MERDA ESTÁ FAZENDO AQUI, ZEUS?! — eu urro tão
alto que o palácio treme ligeiramente e ecoa pelas colunas.
Zeus e Carolina se viram ao mesmo tempo e eu me seguro para não
fritar Zeus agora mesmo.
Aperto as mãos em punhos, as chamas querendo sair sem minha
permissão.
Esse maldito quer a minha destinada?!
Vejo o miserável se inclinar um pouco na direção dela, sorrir com
aquele sorriso falso que ele dá para todas e sussurrar-lhe algo.
Ele está dando em cima dela NA MINHA FRENTE?!
— Carolina, afaste-se! — eu ordeno com a voz grossa, pois já estou
em minha essência. Se Zeus quer briga, veio no dia certo.
"Meu pai eterno! Assim, não. Lindo assim é judiar do meu coração.
Ai, nossa!"
O pensamento de Carolina me atinge e olhando para ela a vejo
morder o lábio enquanto me encara intensamente e dá um passo sem notar
em minha direção.
O desejo dela me atinge e minha aura se expande para puxá-la mais
ainda em minha direção, como sempre.
Respiro fundo e por um momento não me controlo, estico o braço em
sua direção, a chamando, para tirá-la de perto de Zeus, para acalmar meu
âmago, para sei lá que outras merdas mais! O que importa é que a quero ao
meu lado.
Ela caminha rapidamente, como se temesse uma mudança de atitude
e quando chega perto de mim, para bem na minha frente.
Ela me encara dos pés à cabeça com os olhos brilhantes, me
admirando, me querendo. E nunca me senti tão orgulhoso, tão quente.
Pensando nisso, me esforço para acalmar minhas chamas, então
quando elas finalmente somem, Carolina me abraça.
A melhor sensação do mundo é esta. Plenitude. Paz.
Fecho os olhos por um minuto, me permitindo o sentimento próximo
à possível felicidade.
É aí que a gargalhada de Zeus me arranca de meus Campos Elísios,
me jogando outra vez no Tártaro.
Capítulo XIX
O MENSAGEIRO

Carolina

Quando Hades lindo em sua essência estendeu a mão para mim, me


chamando para ir para seu lado, eu não pude resistir. Foi mais forte do que
eu. Todos esses dias de silêncio, de falta de atenção da parte dele, foram por
um momento esquecidos. Me entreguei à sensação estranha e prazerosa de
que ele me queria, que me via e quando suas chamas se apagaram e seu olhar
encontrou o meu, tive a sensação de que ele precisava de mim, tanto quanto
eu precisava dele.
Por isso o abracei sem pensar.
Por isso me permiti deitar a cabeça em seu peito forte e me sentir em
"casa", completa e absolutamente segura pela primeira vez em minha vida.
Meu coração doeu, como quando se come demais e dá aquela dor no
estômago. Foi a mesma coisa, só que bem no meio do peito.
Congestão de coração, não sabia que isso existia.
A gargalhada de Zeus atrás de nós é alta e bonita, não sei se pela
cena, ou pelo que pensei, o fato é que Hades mudou totalmente de postura e
eu fiquei com vergonha por depois de todos estes dias me evitando, eu me
jogar nos braços dele ao primeiro estalar de seus dedos.
Nos afastamos ao mesmo tempo.
Eu encaro minhas sapatilhas, sem saber para onde olhar, onde
colocar as mãos... essas coisas de quem fez besteira e não sabe como reagir.
— Posso saber o que está fazendo no meu reino, “irmão"? — Hades
pergunta pausadamente, parecendo tentar se controlar e com a voz perdendo
o timbre rouco/sinistro.
Ergo as vistas e ele está outra vez com a aparência normal, bronzeado
e vestindo jeans preto e camiseta preta. A toga se foi, a pele azulada
também, mas ainda assim meu peito bate descompassado.
Socorro! Tenho que ir embora daqui.
Viro nos meus calcanhares para voar escada acima, mas me detenho
quando escuto Zeus responder:
— Vim para conhecer minha nova cunhada e tentar dar uma
mãozinha, se quiser. Afinal, quando me perguntou sobre conquista de
mortais estes dias, não levei muito a sério. Por que está balançando a cabeça
assim, irmão? — o tom de voz de Zeus é divertido e eu me viro para Hades a
tempo de ver que ele está balançando a cabeça em um "não" irritado e
contínuo, com olhos de quem está querendo matar Zeus.
Mas eu assimilei o que o loiro disse: conquista de mortais.
— Realmente pediu ajuda para o seu irmão devasso? — eu encaro
Hades, que ainda olha com ódio para o outro.
— Devasso?! Eu?! — Zeus parece se surpreender. Eu continuo
observando Hades, que agora me encara, estufando o peito, como se quisesse
recuperar a postura.
— Eu lhe disse que pediria — ele diz, ainda parecendo aborrecido.
Ai, que lindo! Que fofo! Que tuuuuuuudo!
As feições de Hades mudam subitamente e ele abre um meio sorriso,
mordendo o lábio, possivelmente para não sorrir de todo.
Droga de pensamento, fica me entregando!
Olho para Zeus em sua beleza loira e este está sorrindo tanto que
duas covinhas se formam. Outro que ouviu tudo! Que saco isso!
— Haammm... Eu vou para meu quarto. — aviso, querendo sumir
daqui.
— Eu preciso ter uma conversa com Zeus, depois vou até seu quarto
conversar com você — Hades avisa calmamente agora.
Eu concordo com a cabeça, me viro para Zeus:
— Prazer em conhecê-lo— digo com sinceridade, afinal o cara é
Zeus!
Este supera nossa distância, pega minha mão e a leva até os lábios,
beijando as costas dela suavemente, enquanto me encara com os olhos de um
cinza maravilhoso.
— O prazer em conhecer tão encantadora mulher é meu. — Ele
começa galante, para depois mudar o tom de voz. — Pare com isso, Hades,
pois se eu deixar, essa merda desse seu fogo irá queimá-la também, seu
idiota! — ele diz irritado e erguendo o olhar vejo a que ele se refere.
Hades está com a face escura, queimando em chamas vermelhas e
jogando um grande feixe de fogo na direção de Zeus, mas este criou algo
que parece uma grande parede de energia, raios ou sei lá, que o protege do
fogo.
Hades para com o que mais parece um lança-chamas (mas sem o
lança-chamas) e passa a mão pelos cabelos, mas ainda queima intensamente.
Eu paralisei.
— Sabe que nunca errei uma mira, Zeus — ele diz.
Zeus sorri agora e larga a minha mão.
— Sim, sei. Mas então, por que parou? — Hades fica em silêncio e
Zeus solta uma gargalhada. — Você está precisando urgente de ajuda, irmão.
Por isso vim — Zeus agora parece falar sério e eu vejo Hades engolir em
seco e concordar com a cabeça.
É minha deixa. Me viro e corro escada acima.
Já no quarto, caminho de um lado para outro, não consigo me
acalmar.
Hades foi mesmo pedir ajuda ao irmão para me conquistar? Sério
isso? Mas se ele quer que essa coisa dê certo, por que praticamente me
ignorou todos estes dias?
Eu não entendo esse cara! Também não estou ME entendendo,
quanto mais entender um deus imortal.
O tempo passa e Hades não aparece, já estou quase tendo um treco de
agonia, quando resolvo descer e espiar o que está acontecendo.
Só uma espiadinha, como quem não quer nada... Talvez Hades
esqueceu que tenha dito que viria me encontrar.
Desço as escadas pé ante pé e escuto as vozes, muito parecidas entre
si, dos dois irmãos, vindas do grande salão.
Me esgueirando pelas paredes, quase como uma ninja (sem querer
me gabar), eu chego mais perto do som, não muito, só o suficiente para
distinguir as palavras e quando consigo, paro no avanço. Na verdade, para
tudo: minhas pernas, meu pensamento, meu coração, pois ouço Hades dizer:
— Já me decidi, irmão, não consigo ficar perto dela. Vou mandá-la
para a Grécia e quando eu ficar livre dessa merda, eu subo uma noite, depois
que estiver satisfeito com alguma ninfa e faço meu herdeiro. Rápido e
simples, tártaro! Não quero mais.
Ele continua a falar, mas meus pés ganharam vida própria e eu corri
para fora. Nas escadas, encontro com Cérbero, mas ele está borrado, difuso e
quando dá um ganido baixinho, como se chorasse, noto que ele apenas me
imita. Limpo as lágrimas que teimam em cair e Cérbero se agacha na minha
frente, como se quisesse que eu o montasse. E eu o faço, ele caminha para
longe e eu me abraço no pescoço enorme atrás das três cabeças. Escondo o
rosto e choro a minha idiotice em ter acreditado por um minuto que fosse
que Hades gostasse um pouco de mim.
Quando Cérbero para, eu ergo a cabeça e noto que estou às portas de
um lugar cercado por cercas vivas, um grande portão de ferro dourado me
permite ver o mais lindo vale que pode existir. Árvores em flor, muito verde
e uma brisa suave e perfumada atravessa o portão e chega até mim.
Os Campos Elísios.
Desço da garupa de Cérbero e me aproximo ainda mais do portão,
coloco as mãos nas grades e tento empurrá-lo, a curiosidade me tomando e a
paz do local acalmando o meu coração despedaçado.
— O que uma mortal faz aqui?! — escuto a voz atrás de mim e me
encolho, parando o movimento.
Me volto e dou de cara com um homem jovem, de cabelos ruivos que
escapam do boné virado para trás, pele muito branca com sardas, camisa
xadrez aberta mostrando o tanquinho, jeans e cueca Calvin Klein
aparecendo, é bonito e tem cara de travesso, mas o que me faz erguer uma
sobrancelha são as pequenas asas que ele tem nos tênis Nike.
— Hermes? — eu pergunto (pois eu assisti “O Ladrão de Raios”)
fungando e limpando o nariz com as costas da mão.
Ele dá um pequeno sorriso.
— Minha fama me antecede, como sempre — ele pisca um olho. —
E você, linda mortal, quem é e o que faz aqui? E principalmente: como
Cérbero ainda não a devorou? — ele parece surpreso.
— Sou Carolina. Cérbero é meu amigo — passo a mão nas cabeças,
que fecham os olhos e balançam o rabo. — Sabe como posso sair daqui?
Hermes me observa atentamente.
— Talvez — ele coça o queixo, ainda me avaliando.
— Talvez o quê? — pergunto com receio, tentando não pensar em
nada, nem na dor do meu peito, nem na tristeza que trago na alma.
Fungo mais uma vez e mordo o lábio para não chorar, mas as
palavras de Hades ecoam na minha mente:
"Não consigo ficar perto dela. Vou mandá-la para a Grécia, ficar
livre dessa merda... Não quero mais".
As lágrimas sobem rápido e eu baixo a cabeça para Hermes não
notar.
— Talvez se me contar o porquê disso, eu faça esse favor para Hades
e a leve para a Grécia, como disse que ele quer.
A vergonha me atinge quando noto que ele ouviu o que lembrei.
Eu concordo com a cabeça.
— Sim, eu conto se me levar — digo e o deus mensageiro aperta a
minha mão, com seu sorriso travesso.
— Só se for agora, meiga Carolina.
Capítulo XX
O MEDIADOR

Onde mais eu poderia pedir que aquele ruivo simpático me trouxesse?


Isso mesmo: Creta! A ilha mais linda da face da terra. Cheia de
estórias e história!
Neste momento, estou observando o pôr do sol diante do magnífico
mar azul turquesa. Tomando um ice-cream de chocolate. Eu prefiro
morango, mas depois de 20 minutos tentando fazer o homem da sorveteria
entender o que eu queria dizer com "Mourrangow" e sem conseguir, aceitei
o que ele me deu. Melhor do que nada. Dizem que chocolate leva embora as
tristezas e que atua na gente como uma boa noite de amor, então já estou no
meu terceiro.
Noite de amor, como eu queria uma. Três, então, seria o paraíso!
Lambo mais o meu sorvete, com raiva do idiota do Hades. Sim, já
passou a tristeza, estou na fase da revolta.
Hermes conversou comigo, disse que irá me trazer minhas coisas
clandestinamente e me deu muito daqueles euros para eu gastar.
Achei ele um querido, me abri para ele, que me ouviu, contou que
nem Perséfone aguenta Hades mais de três meses e só fica por causa do
acordo que eles têm. Contou que eles estão separados, mas que
possivelmente irão voltar outra vez, pois brigas assim já aconteceram em
várias ocasiões do passado e eles sempre voltam. Fiquei com ódio e ele
também me pareceu meio aborrecido com isso deles "voltarem". Essa tal de
Perséfone deve ser muito linda, pois o doido/atrevido/gato do Hermes tem
claramente uma queda por ela.
Os empregados do castelo não gostam dela, eles nunca falaram nada,
mas eu sentia. Ai, que saudades deles, que saudade de Cérbero, de Hades.
Não!
Faz uma semana que cheguei aqui, me hospedei no hotel lindo de
frente para o mar e já conheci as montanhas e alguns sítios arqueológicos.
Dizem que foi aqui que viveu o tal de Minotauro e tinha um labirinto sei lá
onde. Não entendo muito o que os guias falam e tive que comprar outros
óculos. A melhoria surpreendente da minha miopia no Submundo parece que
só acontece lá mesmo. Claro que meu grau melhorou milhões de vezes aqui
na Grécia, com essa luz maravilhosa, mas tive que comprar outro mesmo
assim.
Liguei para a Lucy e Júlia, contei que tinha conhecido um homem
lindo (omiti a parte “deus dos mortos” e “Submundo”), rico, explosivo e que
tinha um cachorro fofo. Contei que fiquei alguns dias na casa dele que mais
parecia um castelo e que não dei pra ele. Essa última parte causou decepção
geral. Foi muito bom conversar com elas de novo, estava morrendo de
saudades. Sei que isso que estou vivendo aqui é a realização de um sonho
(das três na verdade), e elas me fizeram prometer que eu não iria ficar na bad
por causa do homem lindo que conheci, e que iria aproveitar ao máximo
tudo daqui.
E estou fazendo isso.
Uma brisa marinha chega ao meu rosto e eu fecho os olhos
aproveitando o momento. Não vou pensar em Hades! Não estou nem aí para
ele!
Meu peito dói.
Não vou pensar nele!!!
— Parece que isso não está funcionando, não é mesmo? — uma voz
bonita e em tom charmoso se faz ouvir bem na minha frente.
Abro os olhos e dou de cara com o olhar mais turquesa que já vi,
igualzinho ao tom do mar da Grécia.
O homem tem cabelos loiros escuros que vão até um pouco abaixo
dos ombros, barba, usa calça jeans azul e está sem camisa e pés descalços.
Ah, e está totalmente molhado, pingando, parece que estava dando um
mergulho... Mas de calça jeans?
Ele se senta ao meu lado, na cadeira branca ao lado da minha, que
está na frente do hotel, largada na areia sob um guarda sol, sem que eu o
convide.
Não sei se perdi a fala porque ele está falando português, ou porque é
lindo de morrer, ou se por causa da naturalidade dele sentando-se ao meu
lado assim na maior.
Qual é? O único lindão que me deu bola foi o Hades. Droga! Sai da
minha cabeça, moreno lindo e ordinário!
— Você fala português! Você é de onde? — eu dou graças a Deus por
alguém que me entenda, não importa que seja um pouco lindo demais,
provavelmente quer alguma informação. Coitado, nem sabe que estou mais
perdida que cego caído do caminhão de mudança... Ou cachorro em
tiroteio... Ou quase isso, sei lá.
Ele sorri amplamente e os dentes muito brancos contrastam com o
bronzeado dourado de surfista dele.
— Sou grego, você já conheceu uma parte de minha família.
É vero o que dizem destes gregos serem bonitões.
Torço a boca outra vez. Hades nojento!
— Sério? E para um grego você fala muito bem minha língua! Onde
aprendeu?
— Aprendi há muito tempo — ele ainda sorri e do nada o homem
fica sequinho, apenas com os cabelos úmidos, até o jeans está seco.
— Como que...? — começo, mas me calo, pois de dentro do bolso
das calças ele retira um charuto, daqueles chiques e acende com um isqueiro
de tabacaria rica, sabe? — Você não estava molhado? Como que...? E o
charuto...?
Ele enche a boca de fumaça cheirosa e solta uma baforada, depois
segura o charuto entre os dentes e estica uma mão para mim:
— Poseidon, o irmão do meio de Hades. Como vai? — ele se
apresenta.
Meu queixo cai.
Aperto a mão dele ainda com a boca aberta e depois pisco várias
vezes.
— Carolina, “mortal insuportável”, segundo Hades. Tô bem e você?
— forço um sorriso.
Por que não notei que ele era um deus? Os outros eu notei.
Ah, sim! Certo.
Retiro meus óculos e o encaro outra vez.
A aura dele é a mais bonita que já vi. Todos os deuses, sem exceção,
têm auras, pelo que pude avaliar. Até Caronte tem! A dele é bem pequena,
mas estava lá, azul escura, quase negra, uma linha tênue ao redor da figura.
A de Hermes é avermelhada como seus cabelos, não muito grande e some,
parece ser feita de ar e desaparece, para depois aparecer outra vez. Mas as
maiores são dos três irmãos: Hades, Poseidon e Zeus. A de Hades é enorme
e laranja, tremulante como chamas. A de Zeus branca e irradia para rodas as
direções, como uma energia muito grande. Mas para a de Poseidon, eu tiro
meu chapéu. É azul profunda, mas tem tons de verde, enorme, se expande e
se contrai, movimentando-se como ondas encaracoladas. É como se
estivesse carregando o mar todo com ele.
— Uau! — consigo dizer. — Que lindo!
Ele parece se espantar.
— Não imaginei que fosse verdade. Você realmente enxerga as
nossas auras! Genial! — ele ri e solta outra baforada. — Eu sempre soube
que a minha era a mais bonita. Embora eu não a veja, só sinta. Hades e Zeus
vão ter um ataque se souberem! Ah, eu vou contar para aqueles dois na
primeira oportunidade!
Imagino ele contando para os dois arrogantes e rio junto.
— Conte, mesmo! Só espero que Hades não queira jogar aquele
lança-chamas dele em você! — digo rindo.
— Se fizer, eu faço o mesmo que fazia quando éramos jovens,
inundo a coisa toda! — ele diz em tom brincalhão.
— Isso apaga as chamas? — pergunto bem séria agora. — Achei que
as chamas de Hades fossem inapagáveis. Se é que essa palavra existe...
Poseidon ri.
— Aquela merda não apaga, mas diminui muito com Hades debaixo
d'água! — ele pisca para mim. — Se é que me entende, Carolina.
Eu enrugo minha testa.
— Foi aquele velho decrépito e grosseiro do Hades quem mandou
você aqui? — eu pergunto com muita raiva, mas o coração burro está aos
saltos, olhando para todos os lados, para ver se Hades não está por aqui.
Eu não olho. Deixa esse coração idiota olhar, procurar, porque não
vai encontrar! Você não tem olho! Não enxerga! E eu não vou virar meus
olhos... Humm, tá bom, só um pouquinho para a direita, sem mexer a
cabeça... Não. Não tem ninguém... E se na esquerda tiver... Hummm...
merda! Ele também não está ali. Pronto, coração otário! Pode aquietar o
facho! Não tem Hades por aqui. Feliz agora?
Não, não está. Meu coração se emburrou no canto e não quer mais
falar comigo.
Ótimo! Também não quero mais falar com ele.
A gargalhada de Poseidon é alta e eu volto minha atenção para ele.
— Já entendi o porquê de aquele ranzinza xarope ter se apaixonado
por você! Você é o oposto perfeito dele! — ele faz sinal para um garçom e
pede sei lá eu o que em uma língua que sei lá eu qual é.
Me perdi. Meu coração se levantou de um salto e está flutuando.
— Apaixonou? — repito embasbacada.
— Ora, sério que você não notou? Hades está de quatro! Todos no
Olimpo já sabem! A notícia chegou até meu reino Atlantis. Por isso tive que
vir conhecer você.
— Você não falou com ele, então? É só um boato. — Hermes! Sabia
que aquela aura piscante dele queria dizer alguma coisa.
— Claro que foi Hermes quem contou para todo mundo. Por isso ele
é o mensageiro. E todos sabem que não se deve confiar um segredo àquele
moleque dissimulado.
— Oh, merda! Hades vai me matar, literalmente! E eu não quero ir
para o Campo de Asfódelos!
— Acalme-se, Carolina! Todo mundo já foi enganado por Hermes!
— ele ri. — Hades levou um belo par de chifres do rapaz e eu... — ele para
de rir agora. — Eu dei um medalhão para ele, para encontrar uma pessoa
para mim e ele o vendeu a uma das Fúrias!
Poseidon parece irado e diante de mim o mar fica agitado. As ondas
quebram com violência, arrastando pessoas que caminhavam à beira-mar e
derrubando surfistas.
— E por que não o pede de volta? O compra outra vez? — eu acho
que para ele ter ficado bravo assim, o tal medalhão é mesmo importante.
— Nunca — ele torce a boca.
Ih, mais um arrogante.
— Eu peço então. Eu conheço as Fúrias, posso tentar barganhar o tal
medalhão. Só não sei como fazer para falar com elas aqui em cima.
— Faria isso por mim? — ele se surpreende.
— Claro! Isso deve ser importante para você. É só me dizer como
faço para falar com elas.
Poseidon me encara sorrindo.
— Quando voltar ao Submundo você pede meu medalhão, então.
— Eu não vou voltar ao Submundo, Poseidon! Não mesmo! Nem
que a vaca tussa! — cruzo meu braço.
— Então como pegará o medalhão?
— Não sei. Mas se eu conseguir, como irá encontrar a pessoa que
procura? Hermes irá ajudá-lo?
Ele fecha a cara.
— Não quero mais a ajuda daquele filho de rameira!
— Então? — insisto e ele olha para o mar, parece perdido em
pensamentos.
— Quero guardá-lo. Era de alguém especial.
— Mulher? — pergunto sem conter um sorriso, adoro histórias de
amor.
Ele me encara e sorri de leve.
— Sim, uma mulher mortal.
— Sério?! Ahhhh, me conta!
Ele ergue uma sobrancelha e morde o lábio, olha outra vez para o
mar.
— Nunca contei isso para ninguém e seus pensamentos são um livro
aberto.
— Poxa, é mesmo. Vai que eu dou com a língua nos dentes sem
querer. Se é segredo, nem me diga mesmo. Droga! — murmuro, aborrecida
com isso de todo mundo ficar sabendo o que eu penso.
— O nome dela é Kelly Braga e ela fala a mesma língua que você —
ele diz, me pegando de surpresa.
O garçom chega com um drink colorido com aqueles guarda-
chuvinhas e outra bebida que parece uísque e Poseidon se interrompe.
— Quem bebe uísque na beira do mar? — eu digo, depois de
agradecer e provar meu drink lindo e gostoso.
— Aquele que vive dentro dele? — ele pergunta, com uma
sobrancelha erguida.
— Tuxê!
— O que?
— Tuxê! Aquilo que se diz quando alguém fala alguma coisa correta,
tipo a pessoa reconhece que a outra acertou. Acho que quer dizer: no alvo,
ou bem certinho, só que é em francês, eu acho.
Poseidon arregala os olhos lindos e solta uma enorme gargalhada.
— Touché? — ele ainda ri. — Sim, é francês. É usado na esgrima
para dizer que o oponente tocou em você ou te acertou.
— Touché? Hummm. Aprendi agora: Touché!
Ele ergue o copo de uísque e pisca o olho para mim, que tomo mais
do meu drink, observando o sol se esconder no mar.
— Ela é portuguesa ou brasileira, ou de qual nacionalidade? —
pergunto, pois, queria muito saber desta história.
— Não sei ao certo, só a conheci por uma noite.
— Uma noite? Faz tempo isso?
— No tempo de vocês, mortais, alguns anos.
— Uma noite, há alguns anos e você ainda quer encontrá-la? Uau! A
noite deve ter sido muito boa! — digo rindo.
Poseidon sorri tanto que sua aura muda de cor, fica verde-água.
— A melhor noite de minha imortalidade.
Ai, que lindo!
— Mas então por que não estão juntos?
— Há muitas coisas envolvendo a nós, deuses, Carolina. Somos
cercados de maldições, visões, premonições e essas merdas todas. Eu não
posso me envolver profundamente com ninguém, por isso quando
amanheceu eu fui embora, como sempre faço.
— Que triste isso. Ela deve ter ficado arrasada — eu deixo escapar.
Ele se surpreende.
— Você acha? Nunca pensei desta forma — coça o queixo.
— Ora, ela deve ter se entregado para você com todo corpo e alma,
afinal uma noite só e inesquecível não é assim para acontecer. E imagino que
ela deve ter se apaixonado à primeira vista. Como eram os pensamentos
dela?
— Refletiam os meus — ele diz somente, com voz profunda.
Engulo em seco e bebo mais meu drink, ele faz o mesmo com seu
uísque.
— E o medalhão?
Isso faz ele quase cuspir a bebida.
— O que tem ele?
— Ela te deu? — acho estranho alguém dar um medalhão para um
cara na primeira noite, mas já que foi inesquecível, tudo pode acontecer.
— Não... eu... roubei — ele mostra os dentes, sabendo que fez
merda.
— Abandonou a moça depois de uma noite de amor e ainda roubou
ela? Você é pior que Hades!
— Eu precisava de alguma coisa para me lembrar dela.
Ai, que lindo, se apaixonou pela mortal. Pelo menos este aí tem
coração!
— Ok. Quando Hermes me trouxer as minhas coisas, eu peço para
ele me levar escondida para o Submundo outra vez e trago seu medalhão,
mas com uma condição.
Poseidon ergue uma sobrancelha para mim:
— Qual?
— Me deixe ajudar a encontrá-la. Posso tentar marcar outro
encontro, sei lá. O que me diz? Deiiiiixa? — faço minha melhor cara de
pidona.
Ele apenas ri.
— Você não existe! Hades tem sorte de ter encontrado você.
Hades! — meu coração fareja o ar diante do nome, será que Poseidon
falou com Hades?
Fique quieto, coração! Não quero saber daquele filho da mãe idiota!
— Diga ao seu coração que eu falei com Hades, sim. Já que você não
quer saber disso.
— O que?! — me afogo com a bebida.
Poseidon me olha com um meio sorriso nos lábios.
— Ele nunca imaginou que estava escutando as merdas que ele
estava falando para Zeus e disse que você ouviu errado.
— Ouvi muito bem!
— Ele quer se desculpar — Poseidon diz tranquilamente e meu
coração está tendo um ataque cardíaco.
Bem-feito.
Capítulo XXI
UMA ESPERANÇA

Hades

Nunca em toda a minha existência quis tanto acabar com tudo. E quando
digo tudo, quero dizer tudo.
Minhas chamas não apagam mais. Estão tão vermelhas que beber a
droga de uma maldita bebida está sendo uma tarefa impossível.
Olho para a taça de ouro que começa a derreter em minhas mãos.
— Tártaro!!! — rujo sem me conter.
Raiva. Frustração. Tantas coisas.
Sinto um incômodo desgraçado no peito, algo que dói terrivelmente,
que me faz ficar agoniado e inquieto.
Caminho pelo grande salão do meu palácio. Não tenho mais paz. Que
merda é essa? Nunca tive paz, o máximo que consegui deste sentimento
idiota foi quando. Foi quando estava com aquela ingrata!!!
Passo a mão pelos cabelos, que explodem em chamas violentas.
Fugiu! Me deixou. Depois do nosso acordo, depois de tudo o que
combinamos, a maldita foge com Hermes!
Se aquele filho de uma cadela passar na minha frente, eu acabo com
a raça dele.
— Amo? — Hso me chama, colocando apenas metade da cabeça
transparente através da porta fechada do salão.
— O quê?! — urro sem querer, sendo pego de surpresa.
— Seu irmão deseja vê-lo — ele anuncia calmamente, com a nobreza
que teima em não perder.
— Tudo que eu não quero agora é ver Zeus! — eu digo entredentes,
me sentando no meu trono forjado por Hefesto, com os mais preciosos
metais do planeta.
Não quero falar com ninguém. Não quero fazer nada. Nem dos
julgamentos tenho participado estes dias. Até mesmo as punições não
chamam mais a minha atenção. Perdi o pouco do gosto que tinha por essa
merda toda.
— Não é Zeus, senhor. É seu irmão Poseidon quem pede audiência
com você. — ele começa, mas é interrompido.
Diante de mim, Poseidon escancara as portas, atravessando Hso.
— Eu não quero audiência nenhuma! Quero falar com esse xarope e
vai ser agora! — a voz dele é descontraída, porém firme.
— Está molhando todo meu saguão! Não pode deixar essa merda de
água salgada no mar, pra variar?! — torço a boca e reviro os olhos, depois
faço um gesto com a mão para Hso se retirar.
Poseidon olha para seus pés descalços, onde uma enorme poça d'água
se acumulou. A água ainda escorre dele, mas em questão de segundos tanto
o chão quanto ele próprio ficam secos.
— Ranzinza nível hard core — ele diz, erguendo uma sobrancelha.
— Se só veio aqui falar idiotices, pode ir embora — digo me
levantando, indo outra vez tentar me amortecer com tequila.
Afinal, se Poseidon teve o trabalho que vir até o Submundo, que ele
detesta tanto quanto eu detesto Atlantis, é porque tem motivos fortes.
Ele se senta no meu trono. De lado, colocando um pé sobre ele,
largado como um vadio e acende aquele charuto de merda que faz questão de
fumar. Solta uma enorme baforada, enquanto tento entornar uma dose desta
miserável bebida no copo de cristal.
— Encontrei com sua mortal — ele diz tranquilamente, com o
charuto entre os dentes.
Sinto as chamas se libertarem. O copo na minha mão explode, o
líquido da garrafa incendeia, estou em minha essência e quero matar
Poseidon.
— Você fez O QUÊ?! — me viro, queimando metade do aposento.
Poseidon dá um pulo de meu trono, se pondo em pé, metade de seu
corpo toma forma de peixe, um grande rabo verde turquesa e a sua armadura
de batalha traspassa seu peito e ombros. Sua barba ganha tons verdes como
as algas. Enquanto isso, minha sala é invadida por água salgada vinda de
lugar nenhum, entrando em enormes ondas turquesas.
— Apague essa merda, irmão! Me deixe explicar! — ele ruge,
parecendo querer se conter ainda.
— Se você tocou nela, eu juro por Cronos que vou fazer um
ensopado de você, seu lambari de merda!!! — eu atiço ainda mais minhas
chamas e mesmo estando quase submerso, o meu fogo faz a água ao redor de
mim evaporar rapidamente, aumentando a temperatura dela.
Para minha surpresa, Poseidon solta uma gargalhada e as águas
furiosas que entravam e ameaçavam me afogar se tornam tranquilas.
— Lambari? Sério isso? — ele diz entre uma risada e outra.
A água evacua lentamente e eu não estou entendendo mais nada.
Poseidon nunca recua.
Ele muda sua figura para sua versão humana outra vez, calça jeans,
descalço e camisa xadrez. Acende outro charuto e torna a sentar no meu
trono, que agora, exatamente como o resto do saguão, está totalmente seco.
— Eu fui seu mediador, irmão ingrato — ele anuncia e ainda tem
aquele sorriso de lado estampado na cara. Eu me obrigo a mudar para minha
forma humana também.
— Mediador? — pergunto, passando a mão pelos cabelos, que ainda
queimam. Eles não pararam mais de queimar desde que minha brisa me
abandonou.
— Consegui um encontro para você. Viu? Já pode me agradecer —
ele parece vitorioso e eu cruzo os braços, erguendo uma sobrancelha. Ele
solta um grande suspiro irritado. — Sim, a notícia da mortal que está
deixando Hades doido já chegou até Atlantis. Zeus e eu andamos
conversando.
— Zeus? Ele deu com a língua nos dentes, aquele...
— Não me interrompa, Hades! — ele me censura e eu o encaro com
raiva. — O que eu dizia? Ah, sim: Zeus e eu estávamos conversando sobre
isso e como esta é a única chance de você conseguir seu herdeiro, temos o
dever de ajudar, mesmo você tendo se apaixonado por ela. — ele coça o
queixo. — O que é absolutamente normal de se explicar, depois que vi a
moça. Que merda! Quer parar com isso?! Estou tentando ajudar, seu idiota!!!
Ele se irrita, fazendo um escudo de água, quando lanço um jato de
chamas sobre ele.
— Ajudar como? — me obrigo a parar e encarar Poseidon pela
primeira vez na noite como um aliado.
— Como eu disse, arrumei um encontro para você — ele sorri tanto
que eu quase acredito que nem tudo está perdido. — Você fez merda, pra
variar, mas convenci a moça que você não quis dizer aquilo que disse.
— Ora, eu disse o que disse porque estava vivendo em um
verdadeiro... — me calo.
Poseidon solta uma gargalhada.
— Inferno? — ele completa e tem outro ataque de riso.
— Muito engraçado — eu cruzo os braços, esperando-o parar com as
idiotices.
— Ah, foi hilário. Não pode negar — ele ainda ri e nunca o bom
humor de Poseidon me deu tanta raiva.
— Poseidon! — eu o chamo em tom de advertência, pois não estou
para brincadeiras.
Ele revira os olhos, mas para de rir.
— Só ouça, então... Mas tenho que dizer: você sempre foi chato, mas
agora está insuportável.
— Obrigado — resmungo.
Ele dá um grande suspiro e olhando para dentro dos meus olhos,
continua:
— Eu disse que você iria pedir desculpas pelas merdas que falou, que
estava arrependido. E ela está te esperando hoje à noite, no luau de solstício
de verão em Creta.
Arregalo os olhos diante da notícia. Meu peito dói, dispara. Um
sentimento estranho brota dele. Quase feliz, mas com um pouco de
insegurança. O que é isso?
Esperança.
A palavra aparece em minha mente.
Me seguro na parede do palácio, tentando me entender. Esqueço de
Poseidon, esqueço de tudo por um instante.
Vou vê-la outra vez. Nem tudo está perdido. Ainda tenho uma
chance.
— Olha, olha. Não tentou me assar porque menti em nome dele.
Interessante... — a voz de Poseidon me tira de meus pensamentos, me viro e
ele está coçando o queixo, porém quando vê minha expressão, parece ficar
em choque. — Você está sorrindo, irmão? Vivi para presenciar tal coisa? Um
sorriso sincero???
Meu sorriso, que nem sabia que estava ali, morre na hora e fecho
minha cara outra vez.
— Me diga o que tenho que fazer, seu infeliz. Zeus me deu um
monte de conselhos idiotas, os quais não pretendo seguir nenhum. — passo a
mão pelos cabelos e me surpreendo por eles estarem apagados agora.
Poseidon enche a boca com fumaça e solta uma grande baforada,
seguido do enorme sorriso torto dele.
— Meu irmão, vou te dizer tão certo como agir, que em uma semana
essa mortal estará esperando uma dúzia de herdeiros! — ele pula do meu
trono e chega perto, me dando tapinhas nas costas. — Você entende que a
grande chave de tudo está nas águas, não é?
Ele começa e não sei se fiz certo em pedir para meu irmão
irresponsável e doido como conquistar uma mulher, já que a antiga esposa
dele morreu o odiando e amaldiçoando, mas estou desesperado e qualquer
ajuda é bem-vinda. O que? Eu disse desesperado? Não. Eu não quis dizer
isso. Eu quis dizer...
Ah, Tártaro! É exatamente isso que quis dizer!
Virei um idiota. Desesperado. Apaixonado. Esperançoso e muito
ferrado. Ferrado com certeza.
Tártaro!!!!!!
Que Poseidon saiba alguma coisa para me ajudar, porque preciso
recuperar Carolina! Preciso dela ao meu lado, tanto quando preciso de...
Merda! Não sei de mais nada que me faça tanta falta! Tártaro! Mil
vezes Tártaro!!!!!
Ferrado.
Mil vezes ferrado.
Mas esperançoso, se é que isso vale de alguma coisa.
Capítulo XXII
TRÉGUA

Carolina

A noite está linda, quente, sem nuvens e com uma fabulosa lua cheia no
céu. Redonda, parecendo um queijo e igualmente amarela, a claridade dela
faz com que a noite fique em uma atmosfera romântica e as ondas do mar
batem calmamente, parecendo preguiçosas sob a luz do luar.
Em contraste com isso, a música animada que me cerca me obriga a
balançar o corpo, enquanto caminho até o bar provisório feito de bambu na
beira da areia, para pegar outra bebida colorida e que tem um guarda-chuva
em cima. Já tomei não sei quantas destas e estou muito bem. Bem animada,
bem feliz, bem tonta. O sorriso sai sozinho e acho que aprendi a falar em
grego. Tô pegando o jeito, tenho certeza.
— Zais trais malais — digo ao barman e aponto para minha taça.
Ele sorri e prepara mais um.
Viu? Eu não disse que agora meu grego está afiadinho?
Sorrio de volta, barman bonito que só. Ele me entrega a bebida e eu
me encosto no balcão, olhando o movimento. As pessoas dançam ao som
dos instrumentos, sob as luzes de tochas que estão espalhadas pela praia
linda. Há até uma grande fogueira no centro.
Bebo mais um pouco disso, que me lembra licor misturado com
frutas e que está me fazendo feliz. Balanço a cabeça, os quadris e faço
biquinho, em meu máximo conhecimento dançarínico, me sentindo uma
bailarina do Faustão. Estou até de vestido branco e sem óculos! Estou fatal!
Tenho certeza de que conquistaria até o diabo se eu quisesse hoje.
Não, o diabo não!
Por que eu pensei naquele miserável?
Inferno!
Não quero nunca mais ver "aquele", deixei isso bem claro para
Poseidon. Não quero nem saber dele e por isso vim aqui hoje. Também
porque Poseidon me disse que aqui é o melhor lugar para encontrar turistas,
pessoas que vão me entender e eu espero que possa dar “uns pegas” em
algum, porque não quero mais pensar naquele infame que me chamou de
tudo que foi coisa!
Vou esquecer ele! Meta da noite: esquecer o inesquecível.
Bosta! Por que eu pensei isso?! Vou esquecer e tá acabado!
Estreito os olhos, tentando distinguir alguém e sinto um toque no
meu braço. Me viro e vejo um homem jovem, bonito, de olhos verdes.
Parece um surfista e tem dentes lindos. Hummm, ele disse algo.
— Hein? Quê? — pergunto, porque não entendi patavinas.
Ele faz o gesto de dançar e eu bebo toda minha bebida de vez e
concordo.
— Claro, claro.
Ele me leva até o centro e a música é meio latina, parece um
“despacito” em sei lá que língua e eu me solto. Ele sorri lindamente e morde
o lábio, me observando com um olhar meio pervertido.
Hummm, parece interessado em realizar minha meta da noite. Ele
segura minha mão e me rodopia, me puxando de volta e colando o corpo ao
meu, mas o cara me segura perto demais, rebolando contra mim. E é como
um jato de água fria em meus anseios sexys da noite. O perfume dele não é o
certo, ele não é o cara certo, loiro demais, sem lado sombrio demais e eu me
afasto de supetão.
— Desculpa, mas não... — murmuro e ele me segura de novo, ainda
mais perto e mais firme, sussurra algo em meu ouvido, que eu não faço ideia
do que seja e eu imagino que pelo tom, ele me chamou de alguma coisa feia
e pouco decente.
Empurro o homem com força.
Onde eu estava com a cabeça em achar que iria pegar alguém?! Eu
deveria ter ficado no meu quarto, assistindo algum filme em inglês com
legendas em grego, como fiz todas essas noites, que eu estaria melhor.
— Você é muito... peguento! — acuso ele disso, em falta de palavra
melhor.
Me viro, deixando o cara com olhar surpreso em meio a vários outros
casais que estão por aqui.
Sinto a mão dele no meu braço, me puxando de novo e me volto, ele
fala alguma coisa em grego, parece, ou inglês, ou os dois misturados. Parece
que não entendeu minha atitude, mas não sei se está insistindo ou se
desculpando.
Dou um sorriso sem jeito, sem saber o que dizer.
É aqui, neste momento, que vejo ao meu redor as chamas de todo o
luau aumentarem de intensidade. Todas ao mesmo tempo. Sinto um frio
correr por minha espinha e meu coração para de bater como se o momento
congelasse.
Ele está aqui. Meu Malvado Favorito está aqui. Eu sinto isso em cada
célula do meu corpo.
Só então eu vejo a mão morena no ombro do cara-bonito-chato-de-
galochas, que olha para a mão e se vira, dando de cara com (oh, minha nossa
Senhora das Carolinas Desprezadas, me ajude a não gritar e nem desmaiar
agora) Hades.
Lindo. Alto. Moreno e com cara de assassino de chatos.
Tô derretida. Virei uma poça de Carolina, nem meu vestido branco
sobreviveu a isso.
A voz de Hades para o homem é baixa e fria, seu rosto está em
sombras e eu estou sonhando. Claro, isso é um sonho. Como não pensei
nisso antes?
O loiro parafinado dá exatamente dois grandes passos para trás e
depois gira o corpo, literalmente correndo em direção à rua.
Mas todos aqui parecem ter parado, todos olham para o moreno alto,
forte e bonito que está totalmente vestido de preto, em uma elegância que
destoa de tudo à sua volta e ele me encara. Mas não me encara com raiva, ao
contrário, ele me observa intensamente, sem parecer notar mais nada ao
redor. Os olhos negros parecem sorrir pra mim, a aura laranja se expande,
chega até mim, como uma carícia.
Eu sequer pisco.
Meu coração está catatônico igual ao Chaves quando se assusta.
Como se diz? Ah, sim: teve um piripaque.
Vejo como que em câmera lenta Hades colocar a mão no peito e fazer
uma pequena inclinação de corpo, sem tirar os olhos dos meus e dizer com
voz profunda e baixa:
— Me daria o prazer desta dança, minha Brisa?
Morri.
Certo. Ele fez uma pergunta.
Tem que ter uma resposta.
Hummm...
Meu coração está jogando pétalas de flores e saltitando.
Olho para Hades com a mão estendida e respondo:
— Seu cara de pau!!! — digo em alto e bom som, virando as costas e
caminhando em direção à praia. Fugindo, correndo desta tentação do
Submundo, que só quer brincar com meus sentimentos. Ah, e fazer um filho,
não podermos esquecer deste detalhe.
Porcaria, por que fui pensar nisso? Ai, por que não peguei aquele
loiro? Quem sabe assim poderia esquecer a visão de Hades em sua essência,
que me tira tanto o sono à noite.
Para! Não pensa! Carolina burra!!!
Ele vem atrás de mim, segura meu braço.
— Carolina, precisamos conversar... — ele começa, mas eu o
interrompo.
— Não tenho nada pra falar com você, seu descarado! O que foi? Se
satisfez com alguma ninfa, está bêbado e agora está pronto pra fazer seu
herdeiro com a mortal insuportável? — a raiva faz as palavras saírem meio
que por conta própria e mais alto do que eu gostaria.
Hades está imóvel, parece que sem reação.
— Você não sabia que eu viria aqui hoje? — ele pergunta devagar.
— Se eu soubesse, eu não teria vindo. Nosso acordo acabou, se ainda
não notou. — me viro outra vez e parece que meu coração está puxando a
minha roupa para eu voltar, em desespero por deixar Hades para trás.
A aura dele ainda me envolve e também parece me puxar, como uma
correnteza muito forte. Eu não consigo combatê-la e paro, mas continuo de
costas para ele, me sentindo muito orgulhosa de mim mesma por isso.
Sinto ele se aproximando, sinto a aura, a energia dele me capturando
e meus olhos ficam úmidos, porque a sensação é tão boa e eu senti tanta
falta.
— Também senti sua falta, minha Brisa — ele me responde o
pensamento e sinto suas mãos nos meus ombros. Ele enfia o rosto em meus
cabelos e aspira meu cheiro. — Senti falta do seu perfume, da sua presença
no palácio. Até os malditos fantasmas estão mais melancólicos do que o
normal, depois que você nos deixou.
— Pare com suas mentiras, Hades! Eu não acredito mais nelas!
Digo e corro. Corro para longe, com toda a minha autoestima, minha
raiva, minha dor.
Mentiroso! Acha que eu acredito nisso? Depois de tudo que eu ouvi?
Hades com saudades de mim? Nunca! Só quer me enganar para fazer seu
herdeiro, isso se conseguir e não me carbonizar no processo. Para ele, o
início justifica o fim. Será que é isso? Sei lá.
Caminho, agora que a raiva já passou. A praia cheia de turistas fica
pra trás e Hades não me segue. Agradeço a Deus por isso.
Será mesmo que ele estava aqui? Será que não imaginei tudo isso?
Pensando bem... Ele jamais falaria o que eu achei que ouvi, nem de mentira,
afinal, pelo pouco que conheço de Hades, ele não é alguém que vá falar
coisas bonitas, como "senti sua falta". Nem por um herdeiro.
Então, foi uma ilusão? Tudo aquilo, o que senti, a presença, a voz...
Eu imaginei? Será que a bebida me pegou tanto assim, a ponto de fantasiar
Hades?
Então eu pirei de vez. Só pode.
Caminho mais um pouco e vejo uma ilha não muito longe. Há pedras
largas que fazem uma ponte que vai até ela e lá posso ver a claridade de
tochas brilhando em meio às árvores que consigo distinguir na meia luz, com
minha miopia.
Sabe o que é instinto aventureiro? Pois eu também não sei, nunca
tive. Mas desta vez algo coçou de curiosidade dentro de mim.
Será que eu consigo passar pelas pedras? Será que tem outro luau lá
na ilha? Não me lembro de ter visto ela de dia. Será que a maré alta
escondeu as pedras? Talvez.
Sei que não sei de nada e quando dou por mim, estou sobre as rochas
rezando pra não cair no mar.
Quando chego finalmente na ilha, vejo as ondas em questão de
segundos cobrir totalmente o caminho de pedras, fazendo-o desaparecer de
vista.
Meu queixo está caído na areia e eu já comecei a arrancar os cabelos,
pensando em como vou fazer para voltar, quando escuto um limpar de
garganta atrás de mim.
Dou um grito, sendo pega de surpresa e me virando. Levo alguns
segundos para assimilar a imagem de Hades sob a luz da lua e tochas
espalhadas pelas areias, onde há um grande tapete oriental, um sofá
quadrado que parece uma cama e uma enorme mesa repleta de comida
mediterrânea. Toda a combinação é estranha e bonita ao mesmo tempo e
meus pés ainda não sabem o que fazer.
Hades passa a mão pelos cabelos, parecendo... nervoso?
Estreito os olhos. Isso está muito confuso pro meu gosto.
Ele limpa a garganta outra vez:
— Tive uma ajuda de Poseidon, aquele mentiroso... — Ele parece se
irritar por alguns segundos, solta um grande suspiro e recomeça. — Tártaro!
A verdade é que preciso de você, Carolina.
O olhar dele é tão angustiado que eu juro que por um momento
acreditei nele.
Capítulo XXIII
MAIS QUENTE QUE O INFERNO

— Precisa de mim? — repito devagar, puxando o ar com calma.


Hades parece não saber o que falar, faz um gesto para o sofá e
olhando dentro dos meus olhos, diz com voz profunda:
— Vamos conversar?
Sei não. Tá muito manso pro meu gosto. Esse aí não parece o Hades
que eu conheço.
Estreito os olhos e observo bem a aura dele: laranja, flamejante. É ele
mesmo, nada de ajudinha de Zeus desta vez.
Ele torce a boca, parecendo irritado:
— De Zeus, não, só de Poseidon. E ainda acho que não deveria ter
dado ouvidos àquele louco.
Encaro ele, que revira os olhos e depois olha pra longe.
— Está explicado, então, as pedras desaparecendo e essa ilha vinda
do nada. — eu comento, indo não para o sofá, como ele pediu, mas para a
mesa.
Se tem uma coisa que eu não dispenso é boa comida e aqui tá cheio
disso.
Ignoro Hades, ou finjo ignorar, já que isso é missão impossível e eu
não sou o Tom Cruise. Vou comendo um pouco de tudo, bem pouco, já que
sinto o olhar dele em minhas costas e me empanturrar de comida na frente
do crush da minha vida não é uma coisa que me deixa muito confortável.
— Por que está aqui, Hades? Eu não pretendo fazer um herdeiro com
você — falo de costas, com toda a minha obstinação, como se eu não tivesse
passado noites inteiras imaginando um herdeiro, ou os simples atos de
tentativas que viriam a gerar essa criança.
Sinto as mãos grandes dele apertarem meus braços e ele se aproximar
tanto que minhas pernas ficam bambas, enquanto ele sussurra em meu
ouvido com a voz gutural de sua essência:
— Tem certeza? Eu consigo ler seus pensamentos, esqueceu?
Parada cardíaca! Socorro!
Engulo o que eu tenho na boca, sem terminar de mastigar, jogo o
pedaço de sei lá eu o que era isso para longe e me viro bem devagar, sem
querer. Mordo os lábios e fecho os olhos com força, em uma última tentativa
de resistir a ele. Todo o meu ser parece gritar por ele, a saudade que senti da
presença, do toque, da simples visão dele, chega a doer agora.
— Abra os olhos, minha Brisa — ele ordena com a voz rouca e eu
sinto o toque dele no meu rosto.
Então dou de cara com o capeta que conquistou meu coração idiota e
agora olhando pra ele, assim, a um palmo de distância de mim, vejo que não
foi apenas meu coração que ele conquistou, fui eu toda, foi minha alma, foi
meu amor completo.
Hades está na sua essência e por um momento me olha parecendo
admirado, sua aura se agiganta e ele me beija, com fome, com vontade e eu
retribuo com toda minha paixão.
Sinto como se eu estivesse mergulhado por muito tempo e de repente
subo à superfície enchendo os pulmões de ar.
Nossas bocas se encaixam, a dele sugando meus lábios, enquanto sua
língua acaricia a minha, no beijo mais fantástico que alguém poderia sentir.
Minha raiva se evapora e eu o agarro, puxando-o mais pra mim, querendo
me perder nele, me perder nessa doideira que está sendo minha vida desde
que esbarrei nesse deus. Pensando bem: o simples fato disso ter acontecido
já é doido.
Os pensamentos se perdem quando da minha boca os lábios dele
descem em direção ao meu pescoço, sugando, lambendo, para depois voltar
outra vez e me beijar mais intensamente. Sinto as mãos passearem pelo meu
corpo, agarrando o cabelo da minha nuca com firmeza, enquanto a outra se
infiltra por baixo do meu vestido, puxando com força minha calcinha pra
trás, fazendo-a pressionar meu clitóris, em um gesto simples, mas muito
sexy.
Vou morrer! Estou me desmanchando de tesão, igual à bruxa do
mágico de Oz, derretendo!
Eu gemo contra os lábios delícia, beijo o pescoço forte, sentindo o
gosto e o perfume da pele, que agora está azulada e parece ter a textura mais
erótica da Terra.
Pego seus cabelos com vontade e, misericórdia! Queria que essa
roupa estranha dele sumisse, porque não faço ideia de como se tira.
Estou começando a achar que roupas são as coisas mais inúteis e sem
propósito do universo.
Ele se afasta e volta a ser o Hades "humano" e eu solto um gemido
de protesto. A simples visão dele na sua essência mexe demais comigo.
— Eu não posso arriscar você à minha essência, minha brisa. É muito
perigoso, mas agora já sei como faço para chamar a sua atenção — ele
explica e eu apenas concordo sorrindo, puxando-o para mais perto.
Poxa, eu fiquei tanto tempo naquele castelo, tão perto e não podia
nem tocar nele... E eu senti tanto a falta dele.
Ele me beija outra vez, sinto o toque dele mais intenso desta vez, ele
me pressiona em um amasso, apertando minha bunda contra seu corpo, o que
faz com que eu sinta o tamanho da sua excitação, grande excitação e tão
dura.
Aiiiiiii!
Vou ter um treco... Vou ter um treco...
Sem querer, eu gemo alto.
Quando vejo, estou no colo dele, que continua me beijando, caminha
por um tempo e quando eu sinto a água molhar minhas pernas, eu grito de
susto.
— O que pretende? — minha voz sobe dois tons, porque Hades me
trouxe para dentro do mar!
— Poseidon me deu algumas ideias, a respeito do meu... Hum... —
ele limpa a garganta — problema.
Olho dentro dos olhos flamejantes e vejo todo o fogo que ele está
tentando controlar.
— Água é a resposta? — eu pergunto com olhos arregalados,
olhando para o mar à nossa volta.
— Pretendo descobrir — ele continua me olhando, parece esperar
alguma resposta pra uma pergunta que, se não me engano, ele não fez.
— O quê? — perdi alguma coisa, eu acho.
— Hummm... — ele olha para as águas, depois pra mim. Para mim e
para as águas.
— Eu não leio pensamentos, sabia?
Ele parece se exasperar:
— Aceita ou não? — responde, com o mau humor de sempre.
— Ahhhhhhhhh, isso? Precisa mesmo perguntar?
Poxa, eu estou quase ME incendiando aqui e ele ainda pergunta se eu
quero???
— Preciso — ele diz simplesmente, voz rouca e baixa.
— Aceito. Mil vezes aceito — digo, tascando um beijo alucinado
nele.
Rainha do beijo alucinado sou eu agora nesse momento, igual o
Niko, irmão do Jorel.
Em uma confusão de mãos e boca e língua... As malditas roupas
somem aos poucos, com demora demais para o meu gosto.
Hades me leva mais para o fundo e a água chega até meus seios. Já
estou sem meu vestido e ele os acaricia, as mãos brilhando no escuro. Todo
ele começa a brilhar em chamas curtas.
Vou gozar só de vê-lo assim.
— Hades... — chamo, já pronta para implorar se for preciso.
Ele não me escuta e baixa a cabeça, sugando meus mamilos. Gemo.
Ele então os morde de leve, um após o outro. É uma dor com prazer ao
mesmo tempo e eu me pego quase gritando de tesão.
Sinto a temperatura da água ficar morna. Ele vai mais para o fundo e
a água agora chega aos meus ombros.
Ele beija minha boca e segurando minhas nádegas, me aperta mais,
depois segura meu cabelo com força na região da nuca e puxa minha cabeça
para o lado, quando meu pescoço fica totalmente à mostra para ele, ele o
suga com força.
Ele pega o controle de tudo e não vou mentir, isso é muito gostoso.
Não aguento mais e faço o que estou querendo desde que vi esse deus: pego
a delícia infinita do pinto enorme, a pica das galáxias. E agora ela está na
minha mão. E em breve dentro de mim.
Sim! Sim! Sim!
Aperto com gosto, sentindo a textura, e a coloco na entrada do meu
corpo, que está pulsando, tremendo de excitação por ele. Hades para o que
estava fazendo e me encara, totalmente entregue ao momento, parecendo
estar como eu, em outra dimensão, em uma onde só existe nós dois.
Então eu o sinto entrando em mim.
O agarro com mais força, gemendo, mordo meu lábio, sem querer,
querendo. Ele geme com a respiração acelerada.
Puxa minha bunda mais pra junto dele, colocando tudo de si, dando
uma pontadinha de dor no fundo do meu útero. É uma sensação digna de ser
narrada por Shakespeare.
Mas como não sou Shakespeare, vou dizer simplesmente:
— Oh, deus!
E o detalhe aqui é o “d” minúsculo.
A loucura fica tão grande, que não vejo mais nada, me esfrego nele,
beijo, mordo, pego, aperto.
Hades parece ter mais controle do que eu, porém se enfia com mais
força a cada movimento, metendo tudo para quase retirar completamente,
para depois repetir o movimento, mas sem pressa, o que me deixa cada vez
mais louca de desejo, enquanto suga meus lábios, aperta meus seios e eu
piro.
Sinto um calor tomar conta de tudo, estou quase enlouquecendo com
o clímax se aproximando, puxo ele para mais perto, para mais dentro de
mim, querendo muito mais dele, com mais força. Ele se arremete com
rapidez, sua mão segura meu pescoço com firmeza, não a ponto de
interromper o ar de entrar, mas parece que para me dominar e eu sinto todo
meu controle se perder e o calor aumentar.
Calor...
Muito calor! Peraí?!!!!
Nessa hora a merda acontece, porque sou eu, Carolina Mattos e não a
Julieta Capeletti que está aqui (graças a Deus, porque não vou me matar),
mas eu tenho certeza de que, pelo menos, o Romeu comeu ela de boa e
CRUA. Porque eu, EU, CAROLINA MATTOS, estou quase sendo frita,
cozida, queimada, tostada, gratinada!
Hades está com as chamas muito altas! E muito quer dizer
MUITOOOO. Meus braços que estão sobre seus ombros foram os primeiros
alvos. Eu o solto, me afasto em segundos, quase me afogando, tentando
manter a cabeça fora da água. O susto está estampado no rosto dele.
Ele ainda parece o Tocha Humana, a água chega a borbulhar ao redor
dele e evaporar. Meus braços estão ardendo muito, meu pescoço e minha
bunda onde ele estava com as mãos também. Pior que eu ainda quero chegar
perto e terminar o que estava fazendo, eu estava tão pertooooo.
Ahhhhh, mas acima de tudo, eu quero chorar.
Capítulo XXIV
EM CHAMAS

Essas coisas só acontecem comigo? Eu realmente gostaria de saber se é só


comigo ou se todo mundo quando vai ter uma transa acontecem coisas
terríveis.
Se bem que pela primeira vez eu quaseeeeee tive um orgasmo com
outra pessoa. E o simples fato disso quaseeeeee ter acontecido, é no mínimo
maravilhoso.
Estou queimada, ardida e com vergonha? Ah, sim, muito. Queria
mais? Oh, se queria. Mas minha Nossa Senhora das Carolinas fogosas, o que
foi aquilo?
Mordo meus lábios só de lembrar de Hades incandescente dentro de
mim.
— Estou tentando passar essa merda de pomada em você, pode parar
de pensar no que aconteceu?!
Estou deitada no sofá, de bunda pra cima, sem roupas, enquanto
Hades me enche de pomada pela terceira vez desde que o conheci.
Queria que me enchesse de outra coisa, mas tá difícil.
— Tártaro! — ele grunhe e se levanta. Está de cueca boxer preta e eu
não disfarço, olho tudo, tudo do corpinho que tive o prazer de me esbaldar
agora há pouco.
Torço a boca quando o vejo ir para longe, com as chamas se
libertando.
Ele parece andar de um lado para o outro, falando consigo mesmo
em uma língua que não entendo.
Tem que ter um modo da gente fazer isso. Dessa vez quase deu. Dei,
sei lá. Tem que ter mais água, será? Ou menos contato?
Bom, minha bunda também está em estado crítico e a mão dele
estava dentro da água, então menos contato com as mãos. Mãos e cabelo são
os pontos mais perigosos. Ok.
Mais água?
Na água deu pra ir além do que tínhamos ido das outras vezes. Então
amenizou legal.
Hummm...
Levanto-me do sofá, me enrolo com o tecido fino e negro que Hades
colocou por cima de mim quando a revolta recente o fez ir pra longe e
caminho até ele.
Ele silencia quando nota minha aproximação e se vira me olhando de
canto de olho. Ainda tem as pequenas chamas brilhando ao redor do corpo,
mas eu não penso e vou até ele sem me deter.
Ele recua alguns passos.
— Não se aproxime!
Eu o ignoro, chego perto o suficiente para sentir seu calor, encaro
seus olhos, seus lábios.
É muito cruel eu não poder tocá-lo.
Vejo Hades respirar fundo e as chamas se apagarem. Parece fazer um
esforço enorme para isso.
Eu não me seguro e o abraço, puxo seu rosto para mais perto e o
beijo. Ele retribui, suga minha língua, meus lábios, naquele “beijo de boca
fechada”, que é tão gostoso e perfeito. Eu continuo segurando o tecido que
me envolve, já que meus braços doem terrivelmente.
Ele interrompe o beijo.
— Vamos embora, minha Brisa — ele parece desapontado, passando
a mão pelos meus cabelos. — Desculpe, não consegui me controlar.
A voz grave é apenas um sussurro.
— Não, eu quero tentar outra vez — eu digo, pegando-o de surpresa.
— Está louca?
Eu sorrio.
— Sempre fui — digo, enquanto largo o tecido que me cobria e pego
a mão dele, a colocando sobre meu seio esquerdo. — Quero terminar o que
começamos, Hades.
Ele parece não saber o que fazer, então me ponho na ponta dos pés e
beijo seu pescoço. Sinto a surpresa dele, a mudança de atitude. A mão aperta
meu seio, passando o polegar pelo meu mamilo.
Quando eu gemo, ele me beija a boca, me devorando os lábios,
depois me pega no colo, como se eu pesasse nada e continuando me
beijando, me leva até o sofá onde eu estava há pouco, na areia da ilha de
Poseidon.
Mas ali ele apenas me larga e se afasta.
— Hein? Como assim??? — eu reclamo.
— Vamos voltar para o Submundo. Hoje eu não toco mais em você.
— O QUÊ?! Vai me deixar assim??? Sério? Pois eu não vou com
você pra lugar nenhum, se você não terminar o que começou! — revolta é
meu sobrenome nesse momento.
Vejo Hades piscar várias vezes. Acho que não esperava por essa
minha atitude.
Abrando a voz:
— Eu fiquei pensando... Talvez se não tiver tanto toque, a gente
consiga... — eu já assisti muito xvideos pra ter uma noção de posições.
Obrigada, de nada!
Então eu faço o que acho que seria uma posição sem muito toque: me
ajoelho na beira da cama e empino... Entendeu a situação?
— Entendi — a resposta é meio que catatônica, então eu olho para
ele por sobre o ombro.
Ele está em chamas, me encarando com a pica das galáxias na mão.
— Não encosta as mãos em mim — advirto sorrindo.
Se eu me queimar, vai ser bem-feito pra mim, eu sei. Minhas
bochechas estão ardendo de vergonha, mas estou sentindo outra coisa (além
do tesão de matar, lógico), estou me sentindo poderosa.
Vou me ferrar e estou me sentindo poderosa. Burrice agora é meu
sobrenome.
— Não posso lhe tocar com as mãos? — a voz dele é aquela rouca e
gutural de sua essência.
Não faz isso comigo. Só de vê-lo em sua essência, eu piro. Mordo o
lábio e espio ele lindo, lindo, lindo e agora nu. Pele azulada, cabelos
compridos.
— Hades, assim. Por favor... — peço mesmo. Quero ele assim, desse
jeito.
Ele concorda com a cabeça:
— Sabia que iria gostar disso.
Gostar? Eu amo!
Eu empino mais e me ajeito, esperando.
Mas quando, ao invés do que achei que viria, sinto a língua dele
naquela parte minha que ninguém meteu língua nenhuma antes, eu dou um
pequeno grito de susto.
— Fique quieta, senão vou segurá-la COM AS MÃOS — ele
ameaça.
Engulo em seco e não me mexo por alguns segundos. Logo que
começo a sentir a língua passando e brincando com meu clitóris, os lábios
me sugando, me estimulando, eu gemo, me retorço, grito e tenho o melhor
orgasmo da Terra.
Quando minha alma volta ao meu corpo e eu inteira paro de tremer
igual vara verde, sinto Hades se afastar. Ele está em sua essência ainda e as
chamas que saem dele são quase lilás. O pintão está ereto e eu não penso,
faço o que vi no instrutivo xvídeos: sugo a coisa toda. Coloco na boca e sugo
com a língua, e puta merda!, é o melhor gosto do mundo.
Direitos iguais. Sempre fui adepta disso.
Quando Hades respira fundo e se enfia todo (ou quase), eu o sinto na
garganta e algo quente enche minha boca, quase me fazendo engasgar. Não
reclamo, até porque gozei na boca dele também. Lambo o que sobrou e dou
um sorriso.
Mas Hades não parece feliz. Ao contrário, está visivelmente irritado.
Reviro os olhos e não pergunto. Vou até onde está aquele tecido que ele me
deu, fez ou sei lá, pego e me enrolo nele.
Ele ainda está de pé, no mesmo lugar, me olhando com cara de
bandido.
— Nem se você fosse o bandido da cruz vermelha, eu não sairia
daqui agora. Pode me encarar o quanto quiser com esse olhar maligno —
digo, me deitando outra vez no sofá com a bunda pra cima, já que não posso
me sentar. Estou muito satisfeita para me importar com a cara de poucos
amigos dele.
Bateu até uma preguiça.
— Você não pode fazer o que fez!
— Não lembro de você ter tentado me impedir quando estava com o
pinto na minha boca.
— Se eu tivesse tocado em você, a teria queimado de novo e estou
em minha essência! Você não pensa? Poderia estar morta a essa altura.
— Mas não estou! Pode parar de brigar comigo?
— Não! Você foi irresponsável e teimosa!
— Não gostou? É isso?
Silêncio.
Ah, entendi. Ele não curtiu. Não devo ter sido boa. Minha primeira
vez nisso, lógico que não iria ser como as que ele tem tido experiências.
— Tá bom. Não faço mais. Não se preocupe — digo e viro de costas
pra ele.
Tento não pensar em como isso me deixa mal, mas não consigo.
Sinto ele se aproximar e se deitar nas minhas costas.
— Ei, psiu! — ele chama, eu ignoro. Sinto as mãos dele fazerem um
carinho no meu rosto e depois me puxar delicadamente, até me virar de
corpo todo de frente pra ele. — Não quero mais que se coloque em risco pra
me satisfazer, só isso. Gostei muito, sim. Não fique assim, minha Brisa.
Ele beija meu rosto, que está molhado. É, eu estava chorando. E daí?
Qualquer uma choraria por ter sido rejeitada.
— Não rejeitei você, mas foi muito imprudente. Não faça mais isso,
pois da próxima vez não serei bonzinho — ele tem a voz perigosamente fria
quando diz isso e eu faço um carinho no rosto bonito.
Aproveito que estou de frente pra ele e me aninho na curva do seu
pescoço, passando o nariz por ali, beijando. Até adormecer sem perceber, na
sensação de que encontrei o meu lugar no mundo e estou finalmente em
casa.
Capítulo XXV
EX

Hades

A tranquilidade parece acalmar algo que não sei o que é. Sinto uma
sensação estranha, como se eu não pesasse nada. Uma brisa fresca com
suave perfume parece tocar meu rosto, me trazendo pela primeira vez à
reconfortante noção de estar completo e em paz.
Ouço ao longe um som que parece ser de aplausos, secos, solos e
ritmados aplausos. O barulho inconfundível vai aumentando e me acorda.
Demoro um segundo para perceber que ainda estou na praia, com
Carolina dormindo nos meus braços.
A brisa parece soprar sobre mim outra vez. Ouço novamente as
palmas e levo mais dois segundos para distinguir Perséfone a apenas alguns
passos de distância de nós, aplaudindo a cena.
— Coisa linda, Hades — ela diz, balançando a cabeça em aprovação
e se aproximando. Olha para Carolina adormecida e continua. — Então é
verdade, você está de caso com uma mortal.
Me levanto com calma, para não acordar minha brisa, me visto em
um piscar de olhos admirados de Perséfone.
— Que merda você faz aqui, Perséfone? — pergunto sem paciência,
olhando para a barriga dela, que agora está bem saliente. — Não deveria
estar com aquele moleque atrevido que é pai do seu filho?
Ela revira os olhos e dá um suspiro cansado.
— Você sabe que Hermes era só um passatempo. Você sempre foi o
único que eu quis.
— Eu, Zeus, Adônis e tantos outros — aperto os olhos com força,
minha cabeça já começando a doer.
— Quero falar com você — ela pede com a voz baixa.
Abro os olhos e vejo-a com olhar marejado e com o lábio inferior
esticado.
— Não temos nada para falar, Perséfone. Vá embora!
— Não! — ela ergue o queixo com altivez. — Não vou embora, não
importa o que diga ou grite. Quero conversar com você e vai ter que me
escutar.
Ergo uma sobrancelha, quase rindo, sem achar graça nenhuma.
— Desde quando acha que pode me dizer o que fazer? Acaso pensa
que cederei aos seus caprichos?
— Só uma conversa, Hades. Podemos conversar aqui e sua mortal
pode ouvir, ou podemos ir para o Submundo. Você quem escolhe.
— Não vamos conversar nem aqui, nem no Submundo! Você não
entra mais em meu reino.
— Nosso reino! — ela grita indignada.
— MEU REINO! — grito mais alto com a afronta, já me pondo em
chamas e deixando meu lado sombrio sair.
Carolina geme e muda de posição em seu sono.
Tártaro! Perséfone maldita!
Invoco minha foice e caminhando pela praia, me afasto de Carolina,
abrindo um rasgo no chão, faço um gesto para Perséfone passar por ele.
Entro logo atrás e em questão de minutos estamos na entrada do Submundo,
às margens do Estige, mas não dou mais um passo ou faço menção de
chamar Caronte. Cruzo os braços e a encaro, esperando suas palavras, com a
pouca paciência que me sobrou.
— Diga de uma vez o que quer e depois vá embora — minha voz é
rouca pela minha essência e baixa pela irritação.
Ela me olha e dá dois passos para trás. Sabe do que sou capaz e
teme. Mira o chão e fala em tom tremido:
— É sobre o meu bebê — pausa. — Quero que você me ajude.
— Ajudar você com o quê? A se livrar dele como fez com todos os
outros? Não pensei que fosse tão estúpida a ponto de me pedir uma coisa
dessas.
— Quero ficar com ele — ela diz mansa. — Quero criá-lo no
Submundo e com você.
Estreito mais ainda meu olhar para ela. Essa não é a Perséfone que eu
conheço há tanto tempo, mas volto à minha forma normal, o que a deixa
visivelmente mais à vontade, a ponto de soltar um suspiro aliviado.
— Eu não contei nada a ninguém sobre o bebê ser de Hermes, nem
mesmo para ele.
— O que está aprontando, Perséfone? O que pretende? Qual
artimanha está tramando agora?
— Não há nenhuma artimanha. Eu quero uma família com você,
Hades. Um filho nosso, que vai crescer correndo pelos Campos Elísios e
aprender a julgar do nosso lado.
— Sim, vai correr muito, já que é filho de Hermes e não meu —
resmungo.
— Você disse que aceitava, que eu poderia ficar com ele no
Submundo. O que mudou agora? Foi a mortal?
— Mudou que cansei de você, Perséfone. Das mentiras, falsidade.
Cansei disso que sinto quando a vejo, da escuridão da sua alma, da podridão
dos seus sentimentos.
— Tudo isso sempre foram espelhos dos seus, meu amor. Vê em
mim exatamente tudo que existe em você, que também é esse monstro que
descreveu agora. Podre, mau, sem nada de luz dentro de si, apenas
escuridão. Ou acha que o seu lado sombrio, esse que estava quase
demonstrando há pouco, existe por qual motivo? Ou acaso pensa ser puro e
inocente como a mortal burra que dormia em seus braços, queimada por seu
descontrole? Sim, eu vi as queimaduras e Hermes me contou sobre ela, sobre
os "sentimentos" da tolinha. E você quer falar da escuridão da minha alma?
Vai matar a menina apenas para se satisfazer, assim como fez com aquela
outra.
— Eu não sabia que aquilo iria acontecer — digo entredentes. — E
Carolina não é uma mortal qualquer. Ela é minha destinada.
Digo a última frase com orgulho, sem deixar que a infeliz note como
suas palavras me atingiram.
Tenho plena consciência de que minha Brisa é inocente e boa, que
estar perto de mim é algo perigoso tanto para sua saúde como para sua alma.
Nunca iria me perdoar se ela se machucasse ou deixasse de ser como é. Por
isso aceito que não queira a imortalidade. Poderia oferecer-lhe o fruto do
Submundo sem ela perceber e torná-la imortal, ou quem sabe até essas águas
do Estige poderiam. Mesmo sendo perigosas, sei que nada fariam a ela, pois
sua alma é boa. E o rio escolhe a quem dar a imortalidade ou a morte.
Lógico que pensei em todas as possibilidades! Ora! Ela é minha
destinada, tem que ficar comigo e meu filho! Mas a visão de uma Carolina
rancorosa, triste, ou virando alguém como eu, com sua luz se apagando e a
escuridão tomando conta aos poucos dela, perturba meu pensamento e
apenas por isso não tomo providências mais extremas.
E fico seguindo os absurdos dos conselhos de Poseidon, de Zeus e
essas merdas todas! Tártaro!
A gargalhada alta de Perséfone felizmente tira minha atenção ‘dos
meus pensamentos e SENTIMENTOS. Hunf!
— Sua destinada? Uma mortal? Por favor, Hades, não seja idiota!
Quantos mortais você já matou? Quantos já torturou? Lembra do episódio de
Pompéia e toda a alegria que sentiu quando explodiu o Vesúvio só por
diversão? — ela se aproxima e passa a mão pelos meus ombros. — Lembra
do que fizemos sobre as cinzas daquela cidade? Somos iguais. Você e eu,
Hades. A mortal não lhe trará redenção. É como dizem: “Não se muda o mal
quando se anda com ele, é o mal que muda você”. Você irá destrui-la,
queimando-a ou não. Sabe que não tem escolha, que a única que sabe como
você é e o aceita desse jeito sou eu.
E dizendo isso ela me beija, sinto os lábios sobre os meus, as mãos
me puxando para ela.
O pior de tudo é que sei que ela tem razão. Somos iguais na nossa
falta de piedade, de bondade. Na raiva e asco pelo mundo e todos que nele
habitam.
Não retribuo o beijo de Perséfone, embora ela se esforce, mas
também não a afasto. Me deixo ficar, esperando que aconteça alguma coisa
no meu peito. Aquela dor desgraçada que eu odeio, aquela dor que vem toda
vez que Carolina se aproxima.
Perséfone beija meu pescoço e espero meu membro despertar, coisa
que ele não faz.
Ela é como eu! Ela não vale nada, igual a mim. Matamos, traímos e
estamos nos lixando para os outros. Não somos altruístas como Carolina.
Não somos inocentes ou bondosos. Somos verdadeiros monstros, quase
demônios, é isso que carrego dentro de mim, é o meu lado “sombrio”, coisa
que Carolina nunca viu e nunca verá. Perséfone já. Ela, além de me temer,
aceita. Nós nos merecemos.
Mas eu não a quero.
Quero a paz que minha Brisa me traz e isso é talvez a coisa mais
egoísta que eu poderia escolher, mas como Perséfone disse, sim, eu quero a
minha redenção. Nunca desejei ter sido “bom”, até conhecer essa mortal.
A deusa da primavera desiste de tentar me causar alguma reação.
— Você não pode estar apaixonado por ela! — ela diz com raiva. —
Ela é mortal, não esqueça disso, não vai durar muito tempo — sentencia.
— O que não vai durar muito tempo? Está querendo dizer alguma
coisa? — pergunto baixo e outra vez em minha essência.
— Hades, eu jamais o desafiaria. Dei-lhe a opção de voltarmos e
termos um filho, uma família, como você sempre quis. Espero a sua resposta
quando acabar com sua mortal.
— Não existe resposta nenhuma para dar.
Essas palavras tornam o rosto de Perséfone lívido, o ódio
transformando as feições bonitas.
— Ah, existe sim. E você vai me dar. Pois se você não voltar a ser
meu marido, a mortal que você ama se transformará naquilo que mais teme e
seus dias serão entre fogo e choro. Pelo poder do rio do ódio, eu a sentencio.
Quem disse isso foi Perséfone, deusa da primavera e RAINHA DO
SUBMUNDO — seus olhos brilham intensamente, ela está próxima da
margem e se abaixa pegando a água com a mão em concha e sorvendo o
líquido, tudo muito rápido, para que eu não consiga impedir.
O rio todo brilha com sua maldição e sem pensar eu a ergo do chão
pelo pescoço.
— Retire a maldição, sua cadela — minhas mãos queimam a pele do
pescoço dela, enquanto ela se debate.
Estou em minha essência e queimando intensamente, enquanto
aperto seu pescoço e a ergo um metro do chão, liberando meu lado sombrio,
as almas podres do Estige se erguendo, as sombras se intensificando ao meu
redor.
Pela fração de um segundo eu lembro do bebê que cresce dentro dela.
Fecho os olhos com força. Dane-se o bebê! Dane-se tudo! Essa miserável
não merece viver!
"Juro pelas águas do Estige que protegerei Carolina e não deixarei
nada de ruim lhe acontecer"
O rio murmura, me cobrando em ecos de minha própria voz a
promessa que fiz a Caronte.
Se eu matar essa desgraçada, a maldição não é quebrada. E mesmo
que ela queira retirar a maldição, o rio ainda a cobrará. Só tenho uma saída.
A derrubo no chão e quando ela cai, eu digo:
— Eis sua resposta: serei seu marido se jurar pelo Estige nunca mais
ousar pensar, tocar ou falar sobre Carolina.
Perséfone se esforça para respirar no chão, lívida de medo, olhando
ao redor, para as sombras que se intensificam à minha volta, para as almas
malignas que habitam o Estige e que começam a escapar dele, vindo na
direção dela.
— Jure, desgraçada!
— EU JURO, HADES! JURO PELO ESTIGE! NUNCA MAIS
PENSO, TOCO OU FALO NA SUA MORTAL — ela diz rapidamente, com
os braços sobre o rosto, para proteger-se do que pode vir a acontecer.
Respiro fundo acalmando meu âmago, deixando as sombras se
dissiparem e as almas voltarem ao fundo do Estige. Depois me viro para
deixar Perséfone ali, mas me detenho quando ouço:
— Nunca pensei que isso fosse possível, não acreditei quando me
falaram, mas é verdade: você ama a mortal.
Viro-me e ela ainda está no chão e me olha com um misto de
assombro e tristeza.
— Cale-se, maldita! Isso é um absurdo! — nego entredentes, pela
milionésima vez.
— Eu amaldiçoei a "mortal que você ama".
Sim. Se eu tiver apenas uma paixão e não amar Carolina, nada vai
acontecer a ela. A maldição não terá efeito nenhum. Ela não se transformará
igual a Minta e não sofrerá. Não preciso voltar a ser marido de Perséfone e
nem temer a maldição do Estige.
Mas o grande problema é que na verdade não é apenas paixão. A
verdade é cruel e uma só: EU AMO A MORTAL.
Capítulo XXVI
ALIADAS

Carolina

Acordei com uma sensação estranha. Sensação de estar sozinha. Estranha


porque sempre fui sozinha, mas nunca senti essa sensação antes.
Levanto-me de lado, ainda esperando a alma voltar para o corpo,
enquanto observo em volta. Já amanheceu. O sol está fraco, a praia está mais
linda do que o papel de parede do meu celular e eu estou, sim, sozinha.
Onde está Hades?
Passo a mão pelos cabelos, tentando arrumar a bagunça. Estou
vestida com um vestido curto, leve e solto, de um pretume perfeito, feito
pelo "estilista" mais tesudo do universo.
Mas em que momento ele fez isso? Quando foi embora? E a pergunta
mais interessante da manhã: por que ele me deixou?

✽✽✽

O monumento Parthenon fica no alto de uma montanha e tem uma


vista fantástica de toda cidade de Atenas daqui de cima. Está em reforma,
parece que já foi destruído algumas vezes. Não dá para entrar nele como
achei que daria, pois tem algumas correntes impedindo. Ah, e ele é
gigantesco, do tipo que intimida e deixa a gente se sentindo insignificante no
universo.
Achei que vir aqui nesse lugar espetacular e com muitos turistas
poderia me animar, mas não. Estou numa bad terrível, do tipo que comprei
cervejas e escutei Marília Mendonça até meus ouvidos doerem.
Então resolvi sair do meu quarto de hotel e fazer alguma coisa para
esquecer aquele babaca que me abandonou há 3 dias, depois de um sexo
quase-maravilhoso e não me deu nenhuma explicação. Vou embora amanhã
e quero aproveitar o máximo que posso, nem que seja aos prantos e vendo
tudo cinza, porque na verdade está parecendo que tudo perdeu a cor.
Eu só queria ter ele por perto, mas ele sumiu. “É tipo um vício que
não tem mais cura, e agora, de quem é a culpa?”
A culpa é dele por ter aquele sorriso ou a culpa é minha por me
apaixonar por ele?
Só isso. Tum, tum. Não finja que eu não estou falando com você!
...
Ahhhhhhh, vou chorar. Pra quê isso, Marília??? Me diz! Pra quê
acabar comigo desse jeito?
— Opa! Desculpa! — digo quando esbarro em uma loira alta sem
querer, ainda cantando "ninguém entende o que eu tô passando!" em voz
alta e segurando o choro.
Ela apenas para e me observa por um segundo e sem responder coisa
alguma, continua seu caminho.
— Quanta educação — murmuro às costas dela.
Vejo ela se deter um instante e penso que poderá ser brasileira ou de
algum outro país que fale minha língua ou ainda entender português.
Encolho os ombros e dou meia volta, saindo dali.
Mas peraí... É impressão minha ou...
Viro-me outra vez para ela, que continua a caminhar e ignorando as
correntes, entra no templo em ruínas. Mas eu vi. Eu vi, hein!
Ela tem aquela coisa que só os deuses têm. Ela tem aura. Branca, que
irradia em ondulações. Eu vou atrás dela, nem penso. Bom, raramente penso,
né? Então não seria diferente dessa vez.
Pulo a corrente, a vejo andar por dentro da construção e a sigo. Ela
parece não me notar e eu consigo distinguir ainda mais sua aura, como
aquilo sonoro. Muito bonito. Agora noto que ela se veste com elegância.
Calça social, camisa impecável branca, saltos não muito altos. Pode tanto ser
uma professora universitária como uma agente secreta. Os cabelos loiros
curtos, o corpo esguio e atlético. Tudo isso aliado à aura branca faz eu
pensar nela como alguém importante, do tipo que intimida. Não tem nada a
ver com os tipos de turistas de chapéu ridículo, bermuda e meia que estavam
lotando o terreno. Ah, e tirando as meias, estou igualzinha.
Ela some por entre umas colunas.
Olho em volta e não a vejo em canto nenhum.
— A curiosidade matou o gato — ouço a voz atrás de mim.
Viro-me e vejo a loira com olhar frio, de um azul claríssimo, me
medindo.
— Hãmm, eu só queria saber qual dos deuses você é — eu explico,
sem graça.
Ela parece se surpreender com a pergunta.
— O que disse?
— O seu nome. Eu juro que não conto para ninguém, mas é que até
agora eu não conheci nenhuma outra deusa a não ser Hécate, ah, e as Fúrias,
mas essas não dão pra contar muito... — sorrio sem jeito. E me lembrando
da boa educação, eu estendo a mão para ela. — Sou Carolina.
A mulher ainda está em choque e de repente parece entender:
— Você é a moça de Hades? Aquela de quem todos estão falando —
ela quase sorri agora e com um aperto de mão gelado e firme, diz com
orgulho e altivez:— Sou Atena.
— Uau! A dona desse templo. Aqui era sua casa, então?
— Correção: é a minha casa.
Então, do nada (tipo do nada mesmo. Nem estalar dos dedos nem
nada), o templo que antes era só uma ruína fica lindo e novo, perfeito, em
mármore branco e estamos dentro dele. Tem fontes de água jorrando, flores e
folhagens em grandes vasos dourados, pintura no teto e paredes. Estátuas de
mármore por todo lado.
O lugar é sensacional. Parece uma mansão milionária de alguém com
excelente gosto para arte.
— Que bom que gostou.
Gostar? Eu estou babando!
Ouço a risada dela às minhas costas e percebo que mais uma vez
estou agindo de forma errada.
— Desculpa. Estou sendo mal-educada. É que ultimamente isso de
deuses parece estar mexendo com minha cabeça, que já não era muito boa.
Imagina! Nunca pensei que poderia encontrar você aqui! Sou Team
Annabeth.
— É o quê?
— Percy Jackson... A moça que era sua filha... O filme... O livro...
Ahhh, deixa.
Torço a boca quando noto que ela não tem ideia do que estou
falando.
Carolina, burra, lógico que alguém como ela não é fã de Percy ou
Annabeth.
— Parece ser uma ficção sobre possíveis filhos dos deuses. Gostei
disso. Me conte como é essa "minha filha".
— Ahhhhhhh, claro que conto — aceito, quase dando um pulo de
alegria.
Então eu conto.
Conto tudo.
Conto sobre Annabeth, sobre Percy, sobre auras, sobre Hades, sobre
Marília. Conto tudo e mais um pouco, depois de horas sentada em um sofá
dourado e bebendo alguma coisa que parece vinho doce.
— Hidromel — ela explica.
— Sim, delícia esse hidromel. E a melhor parte é que não acaba.
Olha só. Minha taça se encheu so-zi-nha. Amo hidromel e taças que se
enchem sozinhas.
Atena dá uma risada baixa.
— Então, como eu dizia... Não sei por que cargas d'água ele me
deixou sozinha naquela ilha, depois de tudo que passamos, fizemos, nos
queimamos... Ahhh, você entendeu.
— Bom, querida, receio que eu saiba o motivo.
Engasgo com o hidromel.
— Sabe??? Ô meu Deus, então me conta!
Atena me olha com pena.
E eu não gostei disso.
— Não acho justo ele agir assim com você. E está sofrendo por ele,
como você disse para sua amiga Marília.
— Não, Marília não é minha amiga. É a cantora das músicas.
— Mas você falou tanto em como ela lhe entendia, em como ela lhe
dava conselhos, que achei que ela... Aff. Tudo bem, entendi. Enfim, como eu
dizia, acho que você não merece o que Hades está fazendo. Você se
apaixonou por ele, se entregou para ele (ou tentou) e ele agora age dessa
maneira. Só ainda não entendi o porquê, pois ele estava acreditando muito
nisso de "destinada".
— Eu não sei se é o hidromel ou se você começou a falar grego, pois
eu não estou entendendo nada.
Ela me encara e diz sem dó:
— Hades e Perséfone voltaram.
Tudo gira. É efeito do que estou tomando? E essa visão turva,
também é?
Noto que Atena me abraça. Então ouço meus próprios soluços.
Eu não acredito que estou chorando por aquele filho de uma...
— Não me ofenda, mocinha.
Uma voz clara e forte ao mesmo tempo me faz largar Atena e limpar
os olhos. Uma mulher muito mais alta do que o normal está me observando e
apesar das palavras, não parece brava.
— Quanta honra, Reia — Atena sorri para a outra.
— Não oferece um lugar para eu me sentar?
Atena ri e uma poltrona estilo XXG aparece próximo à recém-
chegada.
— Parece que as novidades já chegaram até mesmo nas montanhas
longínquas onde você se exilou. Foi Hermes? — Atena pergunta à outra,
entregando-lhe uma taça.
— Desta vez foi Zeus. E depois Poseidon, Caronte e até mesmo
Hécate. E juro que quando Cérbero apareceu no meu portão, eu tive certeza
de que teria que me meter ou nunca mais teria paz.
— Que bom que veio, me poupou a viagem, então. Porque eu seria a
próxima a bater em seus portões de salgueiros.
Elas conversam e eu não estou entendendo nada. Só penso que Hades
me traiu. Mentiu, me abandonou e depois foi procurar Perséfone.
— Vamos ajudá-la, minha criança — Reia diz. E mesmo sabendo que
ela é uma deusa, eu não lembro qual delas. — Sou a mãe de Hades.
Meu queixo cai.
Sogra?
A risada de Atena melhora a minha cara de tacho.
Não é minha sogra, é a sogra de Perséfone! Que ódio! Que tonta eu
sou, fui. Ahhh, sei lá.
— Carolina, não fique assim. Olha, eu não sou a pessoa mais
indicada para aconselhar sobre amor, seria melhor se eu fosse a linda e tola
Afrodite, mas a verdade é que tive algumas "experiências" interessantes e ...
— Está falando do seu caso com Hefesto?
Atena lança um olhar irritado para a outra.
— Sim.
— O que tem Hefesto? Quem é ele?
— Ele é o marido de Afrodite. Atena e ele tiveram um caso, mas ela
disse para todos que foi forçada e que continuou pura, quando sabemos que
não foi isso, não é?
— Reia, às vezes você é muito inconveniente.
A risada da outra ecoa no salão.
— Ser deusa mãe da fertilidade me dá alguns privilégios, como por
exemplo, saber se o que foi concebido foi por amor, raiva, ódio etc. Muitos
segredos estão guardados comigo.
— Menos esse, não é?
— A deusa da justiça não pode ser injusta, nem mesmo por despeito
ou vingança.
— Ahãmmm, podem me dizer o que está acontecendo?
Atena revira os olhos e entorna a taça toda de hidromel e só depois
fala de um fôlego só.
— Tive uma paixonite pelo ferreiro dos deuses. Forte, bruto e com
andar desajeitado. Ele era totalmente diferente dos outros deuses ou dos
mortais que conheci. Era forte de caráter, de espírito, honesto e viril.
Afrodite foi castigada a casar com ele porque ela é fútil e só dá valor às
aparências, mas eu sei que ela é louca por ele agora. E sei também o motivo.
Enfim, tivemos um pequeno caso e disso nasceu nosso filho Erictónio.
Ela fica muda.
— Mas a deusa da justiça é pura e casta e não quis admitir que caiu
de amores pelo ferreiro. Então contou uma história bem interessante: que
Hefesto a forçou e “terminou” nas coxas dela.
Vejo Atena sorrir um sorriso bobo ante a lembrança.
— Eu era jovem — ela diz apenas.
— Hefesto, um deus incomparável, mas desprezado pelos seus —
Reia diz, olhando para dentro da taça. — A mãe dele, minha filha, o jogou
do Monte Olimpo, mas ele sobreviveu e aprendeu a arte de manejar os
metais, que faz com maestria e o poder sobre os vulcões. Todos os deuses
um dia já precisaram de Hefesto, porém todos os subestimam, por não ter a
mesma “perfeição” deles. Se não bastasse tudo isso, ainda teve um
casamento com uma que o despreza aos olhos de todos e um caso com uma
que o acusa injustamente. Tsc, tsc, tsc...
— Mas nem os deuses são perfeitos! — constato o óbvio.
— Mas eles consideram muito uma coisa: a “perfeição” do corpo.
Fecho meus olhos e aperto meus lábios, agora entendendo Hefesto e
digo:
— Eu sei que pessoas podem ser maldosas com tudo o que é
diferente delas. Eu mais do que ninguém sei disso. Principalmente no
orfanato, mas sempre ao decorrer da minha vida, recebi comentários ruins,
situações humilhantes, deboche que dói no coração e te fazem passar noites
em claro, chorando e pensando: por que eu não nasci de outro jeito? Por que
não sou o que julgam “perfeito”? Você pensa que tudo seria tão mais fácil.
Teria mais amigos, mais namorados, seria notada, teria uma vida perfeita e
feliz. Mas um dia você entende que essa pessoa, do jeito que é, é você.
VOCÊ a pessoa mais importante do universo. Que esse corpo “fora dos
padrões” é o seu, que todos os dias te protege, te acolhe. Que ele sempre
esteve com você, independentemente de qualquer coisa, desde que você
nasceu. Que ele/você merece ser amado, exatamente do jeito como é. E se as
pessoas de fora não veem o quão especial você/seu corpo são, então essas
pessoas não merecem fazer parte da sua vida. Quando eu aprendi isso, os
comentários pararam de me ofender, eu não concordava com eles, via
claramente que quem estava os fazendo eram pessoas que não enxergavam
direito. Elas tinham um problema, não eu. Eu amo meu corpo e ele me ama.
Hefesto provavelmente aprendeu isso também.
Reia tem os olhos brilhantes de admiração quando me encara e diz:
— Talvez um dia você deva confirmar isso com ele.
— Sim. Com certeza ele é um deus que eu adoraria conhecer se tiver
a oportunidade, mas é um pouco improvável, já que vou embora amanhã.
— Isso, Carolina, é um engano seu — Atena encontra outra vez a
língua, que parece que tinha engolido depois da sua pequena história. —
Pois, como eu estava dizendo, antes de Reia me interromper, é que quando
encontramos alguém que mexe com nossos sentimentos, não podemos
simplesmente renunciar a isso. Mais do que por ele, por você, que como eu,
não é uma mulher volúvel e muito menos entrega seu coração a qualquer
um. Acho que você tem que tentar uma conversa, dizer como se sente e não
simplesmente ir embora, com o coração destruído e fingindo que está tudo
bem, ou que não gosta daquele maldito ferreiro!
— Cof, cof — Reia simula uma tosse, interrompendo Atena. —
Hades, estamos falando de Hades e de Carolina, lembra?
Atena fica pálida, para depois ruborizar e eu dou um sorriso,
entendendo tudo.
— Eu só queria dizer que amor não é algo frívolo, que se deva recuar
sem lutar — ela murmura, se sentando outra vez ao meu lado.
— Exatamente. E você não vai a lugar nenhum, menina. Você tem
uma profecia para cumprir e não será aquele ranzinza do meu filho e suas
burrices que a impedirão disso.
— Tampouco a metida da Perséfone. Ranço daquelazinha — Atena
revira os olhos.
— Mas Hades me abandonou, correu para aquela lambisgoia. Depois
de tudo, não quero mais nada com ele.
Queria. Não quero mais. Não vou pegar baba de ninguém. Imagina?
Beijar a boca que ele beijou outra? Eca! Ou que ele fez coisa pior??? Eca,
eca, eca, ecaaaaaaaaa!
— Calma aí. Que eu saiba (e digo isso pelos muitos informantes do
Submundo que estiveram me procurando nesses últimos dias), eles não
voltaram de todo ainda. Parece que Perséfone vai ficar com Deméter até o
bebê nascer.
Pisco várias vezes.
— BEBÊ?!!!
Capítulo XXVII
ESTRATÉGIA?

— Isso é loucura! - eu grito mais alto que o barulho do vento forte, pois
parece que uma tempestade está se armando.
— Não é não, acredite em mim. Com isso ele virá correndo até você
— Reia diz calmamente.
Olho para baixo e o mar azul turquesa cinematográfico está brilhando
sob o sol poente. Estamos na praia de Navagio, na ilha de Zakynthos, em
possivelmente a praia mais bonita da Grécia e do mundo. Daqui de cima
consigo ver até o fundo do oceano e a carcaça de um grande navio na faixa
de areia branca. Sim, estou no alto de uma montanha, ou penhasco, sei lá.
— Mas e se eu morrer??? E eu ainda nem sei se quero aquele
ranzinza de novo! — olho para baixo outra vez. — Na verdade, agora tenho
certeza de que não quero. Muita certeza!
— Morrer é relativo, talvez sim, talvez não. O caso é que ele virá vê-
la e aí teremos certeza de que ele te ama.
— Não quero essa certeza, estou muito bem, obrigada, com minhas
dúvidas.
— Não acredita que a estratégia de Atena vá funcionar, é isso? —
Reia olha de canto de olho para a outra.
— Não, eu não disse isso.
— O que você não disse, Carolina? — Atena se aproxima da beirada
do rochedo.
— Oh, Atena, eu acredito que Carolina não esteja muito certa quanto
ao seu plano.
— Qual o problema do meu plano? — Atena me encara muito séria.
— Esse — eu aponto para a praia lá embaixo, muiiiiitooooo lá
embaixo.
— Certo, entendi. Você não acredita em nós. Está com medo de
morrer. Talvez devêssemos chamar as Fúrias. — Atena toca o queixo com a
mão e parece considerar de verdade a hipótese e eu me viro para encará-la.
— Ou talvez devêssemos apenas empurrá-la — Reia também parece
considerar essa ideia.
Dou um passo para trás.
— Vocês estão doidas?! — eu quase grito.
— Na verdade, estamos nos divertindo. Mortais e esse medo louco
da morte — Atena ri.
Reia a acompanha e depois me tranquiliza:
— Não se preocupe, Carolina, vamos encontrar outra saída para
você.
Solto um suspiro. Elas me trouxeram até aqui, disseram que tinham
falado com outros deuses para ajudar e que eu só tinha que pular. Só isso!
E agora eu não consigo por medo.
Me sinto mal.
— Não, eu pulo. — afirmo sem convicção nenhuma, me virando
outra vez para o abismo, que não tinha notado, estava muito perto.
Um passo em falso, apenas um e eu cairia.
— Ótimo! Se tem certeza, feche os olhos e se incline, nós fazemos o
resto.
Fecho os olhos, respiro fundo e me inclino.
Coisa nenhuma!!!
Hades não vale isso!!!
Abro os olhos e me endireito, dou um passo atrás e meu pé se apoia
em uma pedra solta. É o suficiente para eu perder o equilíbrio, fico mexendo
os braços, indo para a frente e para trás na borda, tentando não cair. Reia se
aproxima e quando penso que vai me puxar, ela simplesmente assopra.
O vento me empurra para trás lentamente e pronto.
Lá vou eu caindo para a morte, gritando.
Hades não merece isso! Por que fui dar ouvidos a essas deusas
imortais?! Esse povo não faz nem ideia do que é morrer!!!
Meeeeeerrrrrddaaaaaaaaaaaaaaa.
Então eu vejo alguém. Sim, em queda livre, alguém está aqui me
fazendo companhia.
Ele parece um anjo, mas é definitivamente o anjo mais diferente que
já vi. Não que eu tenha visto muitos anjos ao vivo ultimamente. Ele tem
asas, o cabelo é comprido, mas só na parte de cima, o resto é totalmente
raspado. Parece um imenso topete ruivo e crespo. Ah e ele tá peladão.
— Oi — digo, tentando sorrir, ainda caindo.
Então ele sorri também e a minha queda fica em câmera lenta.
— Oi, Carolina! Sou Kairós!
Faço uma avaliação mental se já ouvi esse nome antes. Kairós. Tem
alguma coisa a ver com o tempo, eu acho.
— Ah, que bom que você já ouviu falar de mim. E, sim, tem a ver
com o tempo, aquele tipo que realmente importa. O tempo contado em
segundos, minutos e horas é com Chronos, com ‘H’, não o titã, entenda a
diferença. Mas, agora, o tempo especial, oportuno, supremo, aquele que não
se mede pelos ponteiros do relógio, esse, sim, é comigo — ele pisca um olho
para mim.
— Por isso estamos praticamente parados no ar?
— Lógico! Nunca ouviu dizer que nos segundo que antecedem a
morte os mortais podem ver toda a vida deles passar pelos seus olhos? Pois
você acha que quem é que dá esse tempo todo para eles?! Euzinho, meu
amor — ele aponta para si, concordando com a cabeça em um gesto
orgulhoso e pretensioso.
— Uau! Isso é maravilhoso! Mas espera, então é sua culpa que
quando sentimos a falta de alguém parece que o tempo não passa?!
Ele presta atenção demais em uma gaivota que voava por ali, a
apanhando e a pegando no colo, como se fosse um gatinho, fazendo carinho
nas penas branquinhas.
— Eu gosto de dramas — diz, revirando os olhos. — E mais
especificamente dos apaixonados. Vocês me tiram do tédio. Me julgue — ele
balança a cabeça, comprimindo os lábios.
— Nós? — pisco várias vezes.
— Ah, sim, vocês, queridinha! E ainda mais agora que HADES
entrou para o time! Tem ideia de o quanto me agrada ver o boy sinistro
suspirando por “horas”? É o céu! — ele diz e enfatiza a palavra dando uma
pirueta no ar.
— Por que você está nu? Desculpa a pergunta, mas é que... Né?
Ele olha para a “nudez” dele e dá uma risada.
— Desculpe, é que normalmente eu não fico visível, gosto de ficar só
apreciando, sabe como é? Aí não me importo com padrões, fico do jeito que
gosto, assim mesmo, como você disse: “peladão”.
— Acho justo — concordo com ele balançando a cabeça. — Então,
obrigada pela honra de se mostrar para mim, só ainda não entendi o porquê.
— Ah, tenho um apreço especial por Atena.
— Você é um dos deuses que ela disse que viriam ajudar!
Ele sorri e balança a cabeça em falsa modéstia, fechando levemente
os olhos e fazendo biquinho com a boca em seguida.
— É por isso que está aqui, por causa de Hades? — pergunto, ainda
receosa com a presença dele.
— Oh, não, querida! Estou aqui por causa de você, que vai morrer —
ele diz, com sobrancelha arqueada e cara de quem pede desculpas,
confirmando minhas suspeitas.
— Ah... Posso continuar gritando, então? Sei lá, acho mais sincero...
— Fique à vontade, querida — ele fala, subitamente sério e solícito.
Certo, onde eu estava mesmo?
Ah sim:
— Meeeeeerrrrrrdaaaaaaaaaaaa.
Capítulo XXVIII
O REENCONTRO

Hades

Olho para as águas leitosas do rio Lete. Se algumas gotas me fizessem


esquecer Carolina, as tomaria sem pensar duas vezes…
Ela ainda povoa meus pensamentos, meus sonhos. E nunca, nunca
pensei que pudesse ser tão infeliz. Achava que já era, mas agora vejo que
estava em paz e não sabia. Não, aquilo não era paz, paz era o que sentia
quando ela estava em meus braços, quando eu podia olhar para seus olhos
extraordinários. Eu achava que aquilo era tormento, mas eu trocaria o meu
trono se pudesse ter aquele tormento outra vez. Inocente e inexperiente
— Tártaro! Que merda de pensamento foi esse?! Mil vezes Tártaro!
Pego uma grande pedra e a jogo no rio, depois outra e mais uma,
deixando a ira escapar. Paro quando estou ofegante e esbravejei em todas as
línguas conhecidas e até as desconhecidas.
Me deixo cair de joelhos. Tento controlar minha fúria, meu coração,
minha dor. Sim, dor. Sinto meu peito doer como nunca senti. Vejo um pingo
de água cair no piso terroso da margem do Lete e estranho. Óbvio que não
chove aqui. Então, toco meu rosto, que está molhado e o choque me faz cair
para trás, sentado na terra.
Miro meus dedos molhados de LÁGRIMAS?!
— Que merda é essa?!
Ouço alguém fungar E NÃO SOU EU! Por que seria? Olho para trás
de mim e não há ninguém…
— Se mostre ou irá se arrepender — grunho em minha essência.
Kairós aparece voando parado no lugar, está segurando o queixo com
uma mão, me encarando, enquanto a outra limpa uma lágrima com um lenço
de papel.
— Não pare por minha causa, Hades. Eu sou mero observador, você
sabe. Finja que não estou aqui, bofe. Estava tão lindo esse momento. O deus,
rei do submundo, chorando de amor e saudade de uma mortal… Eu
nuncaaaAAAAHHHHH…
Ele grita quando o pego pelo tufo de cabelo que tem no topo da
cabeça.
— O que você está fazendo aqui? — inquiro com voz gutural, a
indignação tomando lugar da surpresa e a raiva me fazendo queimar.
Sinto o tempo desacelerar, minhas chamas trepidando lentamente,
quase paradas e Kairós se libertar com facilidade e rapidez de minhas mãos,
antes que eu possa torrá-lo.
— Não faça isso, mocinho. Ou então não conto o que sua amada
anda aprontando! Que feio! Venho até aqui para ajudá-lo e você tenta me
queimar? Se Carolina não fosse uma fofa, eu nunca viria até aqui pedir para
você salvá-la da morte certa. Você está sendo um ingrato, isso sim… — ele
diz, balançando a cabeça me censurando.
Minhas chamas explodem bem lentamente e sem querer, eu paro de
respirar.
— Onde? — pergunto somente, com o coração aos saltos.
— No penhasco de Zakynthos, na praia maravilhosa de Navagio.
Não entendo como alguém pode pensar em acabar com a própria vida
naquele lugaaaaAAAAAAAAHHHHH
— Leve-me até ela. AGORA! — ordeno entredentes, pegando-o
pelos cabelos outra vez.
— Já que você pediu com tanto jeitinho… — ele revira os olhos.
No mesmo instante estamos em Zakynthos, na praia de Navagio. O
tempo está parado e alguém está caindo do penhasco. Algo ruim atravessa
minha alma, mas ainda assim escuto Kairós dizer:
— De nada, bofe ingrato.
Então o tempo volta com sua velocidade normal, escuto um trovão
retumbar e a fúria dele só não é maior do que a minha.
Carolina pulando para a morte? Por quê?
Não há tempo para respostas. Volto à minha essência a tempo de
ampará-la em meus braços.
Ela está com os olhos fechados e parece rezar baixinho:
— Que não seja a morte, que não seja a morte, que não seja a
morte…
— Quase isso — respondo, pronto para perguntar onde ela estava
com a cabeça, porque foi fazer algo idiota como isso.
Mas antes que eu possa dizer qualquer coisa, ela abre os lindos olhos
e me encara dentro do meu ser. Depois me beija.
Então eu esqueço da briga, da saudade e da dor. Esqueço de tudo.
Apenas esse momento, o agora, importa.
Capítulo XXIX
DESTINADA

Carolina

Quando olho para seus olhos, eu não penso em nada, apenas o beijo. Vê-lo
em sua essência depois de tanto tempo, depois de tanta saudade…
Sei que deveríamos conversar, sei disso, mas a praia deserta, a
situação de quase morte, tudo contribui para minha atitude.
A chuva cai de vez sobre nós, torrencial, como só no meio do
mediterrâneo pode acontecer.
Hades molhado, com os cabelos compridos, estilo guerreiro antigo, é
demais para minha sanidade e eu decido por jogá-la no lixo. Meu coração
grita e se joga para trás, rindo igual um abobado. Sim, perdi o juízo.
Não paro de beijar Hades e vou explorando o corpo dele com as
mãos, desvendando tudo e agradecendo por não estar me queimando. Beijo
seu pescoço, seu ombro, tento tirar a parte de cima da roupa estranha, mas
não consigo. Após um segundo, ela some e eu dou um pequeno grito de
alegria. Aprecio a visão e encaro Hades mais uma vez. Os olhos estão
queimando, todo ele está queimando. As chamas ao redor dele são violetas e
eu não me importo, o beijo outra vez. O calor parece não me queimar, então
eu continuo.
Sinto minhas roupas sumirem e as mãos poderosas e grandes me
tocando, me apertando as costas, braços, bunda e coxas, em uma gana
grande e urgente como a minha própria. Tudo isso, somado ao cheiro dele e
à textura da sua pele, me traz uma sensação deliciosa. Gemo alto quando
sinto a boca se fechar nos meus mamilos, estimular com a língua, para
depois morder de leve. Em seguida me toma a boca outra vez, prendendo
meu rosto, segurando meu cabelo com força pela nuca. Ele parece estar
perdendo o controle e eu também.
— Hades… — eu o chamo em tom de súplica.
Ele para e me encara no fundo dos olhos e quando fala, penso que
morri e não notei:
— Minha Brisa, senti sua falta — diz quando encosta a testa na
minha. Fecha os olhos, como se dizer isso fosse uma confissão muito difícil
e que ao mesmo tempo lhe trazia alívio.
Meu coração faleceu depois disso. Ele segura meu pescoço de leve,
me encarando agora e um segundo depois está me beijando vorazmente.
Os lábios dele são tão gostosos que tenho vontade de morder. E
mordo um pouco, para em seguida sugar outra vez. Sinto as mãos na minha
bunda e me erguendo. Eu o enlaço pelas pernas, me esfregando no membro
grande e que está muito rijo. A ereção enorme me excita ainda mais.
— Some com essas roupas de uma vez, pelo amor de Deus —
sussurro no ouvido dele em tom de urgência.
Ouço a sua risada baixa e em seguida estamos nus. Ainda estou
enroscada nele, que está de pé, debaixo da chuva, no meio de uma praia
deserta. Perfeito! Só vem, primeira vez com Hades!
Primeira de muitas, eu espero.
Então ele para, parece indeciso.
— Não estou queimando você?
— Não — respondo, acho que deve ser por causa da tempestade, sei
lá, mas também não me importo agora, pois estou sugando o pescoço dele.
— Minha Brisa? — ele pergunta, sem realmente perguntar.
— Hades, se você parar, eu te mato! — ameaço e já estou beijando-o
novamente, agarrada aos cabelos negros compridos.
Então eu o sinto entrando em mim, grande, rijo e poderoso. Eu gemo
e ouço a respiração dele mudar e ficar forte. Um beijo profundo e intenso
torna o momento ainda mais perfeito.
Ele me puxa para si, com movimentos firmes, enquanto eu ainda o
enlaço com as pernas. Entra e sai com movimentos brutos, enquanto segura
meus cabelos com força e me encara com tesão.
Sinto algo inexplicável, uma loucura, uma gana, parece que mistura
agonia e urgência. Não é somente desejo, ou é muito, mas muito desejo,
coisa que jamais senti antes.
Só sei que eu o aperto para mais junto de mim, lambo a pele do
pescoço, quero ele mais rápido, mais forte. E ele faz, morde meu ombro,
suga meus mamilos com força, enquanto me puxa para mais junto de si pela
minha bunda, em total loucura, igual a mim.
Parece que agora somos um, como duas metades que se juntam
finalmente. O encaixe perfeito. Até mesmo as sensações parecem que
estamos dividindo. Sinto emoções inexplicáveis e no movimento de nossos
corpos, o meu coração já não cabe mais em mim. Na explosão do êxtase que
me atinge, subo aos céus, em uma estrela incandescente de prazer e emoção
ao mesmo tempo que o deus que eu amo.
Quando paramos, satisfeitos, ainda abraçados, ainda enroscados, nos
beijamos com a respiração alterada, olhos abertos, em surpresa por tudo que
acabamos de sentir um com o outro.
Aqui nesta praia, debaixo de um temporal, eu me sinto a mulher mais
feliz do mundo.
— Você está bem? Não está queimada? Nada? — ele pergunta,
parecendo conter a respiração por um momento.
— Estou bem. Não estou queimada — respondo sorrindo. — Acho
que foi a chuva… — divago.
Ele olha para cima, depois para mim.
— Não acredito que tenha sido isso. Essa quantidade de água não
seria o suficiente para... Na verdade, eu não pensei muito, eu… — ele parece
perdido em pensamentos, então me olha profundamente outra vez. — Eu só
pensei na saudade que estava de você.
Eu o beijo outra vez e agarro seus cabelos. Amo vê-lo assim, em sua
essência.
Ele se afasta de repente.
— Estou em minha essência?! Tártaro!
Ele muda no mesmo instante, se tornando o moreno bronzeado que
também derrete minha calcinha, mas sinto meu coração fazer beicinho. —
Minha Brisa, eu nunca poderia ter feito isso com você em minha essência. É
muito perigoso. Meu poder é potencializado ao máximo quando estou dessa
forma, fica algo bruto…
— Ainn, para de falar assim, que senão vai ter que mudar de novo —
falo, beijando o pescoço dele, me remexendo de encontro ao seu corpo que
ainda está unido ao meu.
Hades me beija profundamente, para então sorrir com malicia. Sinto-
o crescer e enrijecer dentro de mim e os movimentos profundos e potentes
recomeçam.
Eu gemo em resposta, mas algo está estranho. Algo queima em mim
e não é de um jeito bom…
— Ahhhhhh — grito e pulo para longe dele, que arde em chamas E
ME QUEIMOU MESMO COM A CHUVA!
— O quê? — ele pergunta e eu aproveito para apreciar a visão de
Hades nu e potente queimando sob a chuva na praia paradisíaca.
Isso acabaria com a sanidade mental de muita gente, minha Nossa
Senhora das Carolinas Sortudas.
— Você me queimou — murmuro, com a pele das duas nádegas onde
ele estava com as mãos ardendo.
Ele fica atônito:
— Queimei? Agora? E antes em minha essência não?
— Não. Antes eu não senti o fogo, não esse fogo — Não continuo,
pois Hades está outra vez em sua essência e me beija com paixão.
— Vamos para o Submundo, temos muito tempo para compensar,
agora que sei que minha essência não a afeta.
A essência dele não me afeta? Talvez não do jeito que ele pense, mas
me afeta muitooooo, sim.
Ouço a risada baixa dele e sinto outro beijo. Estou com os olhos
fechados e com a cabeça apoiada em seu peito e parece que nunca fui tão
completa…
— Digo o mesmo, minha Brisa. Digo o mesmo…
Capítulo XXX
LUA DE MEL?

Carolina

O motivo para Hades não me queimar quando está em sua essência ainda
não sabemos. Se, como ele não cansa de dizer, sua essência é muito
perigosa, até mesmo para deuses, o que dirá para mortais como eu. Então
isso ainda é um mistério, do qual não estamos muito ansiosos em descobrir,
apenas em aproveitar. Estou há dez dias no Submundo. Dez dias de lua de
mel, como Hécate faz questão de dizer, revirando os olhos e parecendo que
vai vomitar arco-íris.
— Isso eu gostaria de ver — Hades diz, passando a mão pelas
minhas costas nuas.
Estamos enroscados na cama gigante dele, sobre os lençóis pretos de
seda.
Nestes dez dias conversamos muito, fizemos amor e parece que o
tempo parou.
Não gosto de pensar muito nisso, porque penso que talvez Kairós
possa estar nos vendo escondido…
Mais uma vez Hades ri.
— Ai dele se estiver fazendo isso. Vai ficar sem cabelo nenhum na
cabeça.
— Não sei se gosto de você ficar lendo meus pensamentos o tempo
todo, sabia? — me apoio no peito largo dele e ergo o corpo, olhando bem
para ele quando falo isso.
— Mas ler seus pensamentos é uma das melhores coisas dos meus
dias. A outra é… — ele pega minha mão e coloca sobre seu membro rijo.
— Ei! Calma aí, eu nem me recuperei da última. Me dê um tempo!
— Nada de tempo, minha brisa, já fiquei longe de você por tempo
demais — diz, enquanto me puxa para cima dele e me beija.
— Não começa, que eu nem tomei café da manhã ainda! — digo, me
levantando rapidamente e rindo.
Ele também se levanta, está com um sorriso malicioso nos lábios e
me alcança antes que eu possa descer completamente da cama, me
abraçando por trás.
— Eu sou o deus dos mortos, Carolina, preciso maltratar mortais e
ultimamente tenho vontade de maltratar uma só. — ele sussurra contra
minha orelha, para em seguida mordiscá-la.
— Humm... Então... Vai me maltratar? — Digo, enquanto sinto o
membro dele rijo contra minha bunda e a mão dele vai até meu pescoço.
— Vou, sim — ele morde meu ombro, enquanto me puxa de supetão
para mais perto de si.
— Não, não vai — digo, sem veemência nenhuma.
— Você gosta — ele afirma, forçando meu corpo para frente, até eu
deitar a parte de cima no colchão, enquanto minhas pernas ficam para fora.
—Não gosto nada. — minto na cara dura, enquanto ele se posiciona
atrás de mim, se abaixa e passa a língua por toda a minha parte que está
exposta, metendo-a em um dos buraquinhos, enquanto mete o dedo em outro
e vice-versa.
Eu gemo diante da tortura e quando estou quaseeee, quaseeee no
limite, ele se levanta e sem aviso me penetra com toda sua extensão, que,
sem mentira, tem facinho mais de 20 cm.
Eu grito e então sinto o tapa forte na minha bunda, enquanto ele soca
com força.
Sinto uma dor aguda no fundo do útero e mais um tapa forte na
minha bunda, que agora já está ardendo.
Me seguro no lençol escuro, gemo, mas Hades estoca com gana
demais, me segurando pelos cabelos.
— Hades, devagar! — eu peço.
Ele muda o ritmo, instantaneamente, e se antes estava colocando tudo
e mais um pouco, agora coloca só a cabecinha.
E me dá agonia! Me remexo, tento fazê-lo colocar mais um pouco,
mas ele não cede, está outra vez me torturando, entrando mal-mal e de forma
lenta.
— É assim que você gosta? De amorzinho, bem de leve? —
pergunta, segurando minha bunda para eu não mexer.
— Não, Hades, por favor.
— Então peça, minha Brisa — ele sussurra em tom firme.
Ahhhh, sacana!
Eu fico em silêncio, mas o movimento apenas na entrada do meu ser
já está me fazendo ter um treco. Então, eu peço:
— Hades, me maltrate.
Ele puxa meu corpo mais para a beirada da cama, abre minhas pernas
e vejo-o colocar uma das pernas sobre a cama e estocar com força. Eu fecho
os olhos e ofego.
Ele penetra com rapidez, entrando e saindo, puxando meus cabelos.
Eu não aguento muito tempo, sinto a necessidade de tê-lo aumentando. Eu
preciso dele, mais precisamente: preciso agarrá-lo.
— Hades, vem de frente, por favor.
Ouço a risada dele, que me vira para si, me pondo deitada. Eu o
agarro no mesmo segundo, sugando seu peito, ombro, enquanto ele se
enterra outra vez em mim, colocando o peso do corpo grande e gostoso sobre
o meu. Eu cravo minhas unhas na sua bunda, puxo-o com força mais para
dentro de mim, até explodir em um êxtase que me arrebata a alma.
Hades ri, porque eu praticamente o ataquei.
— Achei que tinha dito que não queria — ele me encara com um
sorriso dançando nos lábios tentadores e então me beija profundamente.
— Xiu — eu digo sem jeito — ainda não estou acostumada com essa
Carolina fogosa.
— Agora para o chão, que eu vou terminar de maltratar você — ele
fica sério.
Eu já sei o que ele quer, a posição preferida dele.
Desço da cama e fico de quatro no chão, joelhos e cotovelos firmes
no piso de mármore escuro.
— Empina para mim, vai — ele diz atrás de mim.
Empinar: deitar a cabeça nos braços e curvar a coluna até não
aquentar mais, para ficar com a bunda bem para cima.
Isso deveria estar na Wikipédia.
Hades, então, pega com força a minha bunda, com força mesmo, tipo
um beliscão grande e aperta. Vejo ele colocar um pé ao lado de cada joelho
meu e agachado, com as pernas flexionadas e apoiado apenas em mim, ele
me penetra. É uma penetração profunda e ele mete tudo nessa posição, que
permite isso. Segura e aperta a parte de cima da minha bunda, quase na
cintura, depois nos meus ombros, me puxando com força para junto de si.
Vejo os músculos das pernas bonitas dele enrijecerem e ele vai ficando mais
rápido, estocando com mais violência, sinto-o crescer ainda mais dentro de
mim, pois a dor fica praticamente insuportável, então eu grito e nesse exato
segundo Hades dá uma estocada profunda, soltando um gemido baixo e
gutural. Eu gemo alto, pois o instante é muito gostoso, algo que me dá muito
prazer e satisfação.
Ele suspira saciado, ainda dentro de mim, colocando seu peso sobre o
meu corpo.
Ajeito melhor a posição dos braços, para ele não me derrubar, pois
está forçando o corpo em direção ao meu ainda, parecendo querer entrar
todo dentro de mim.
— Será que posso tomar café agora? — pergunto.
— Ainda não, só mais um minuto — ele me empurra mais ainda com
o corpo, tentando enfiar tudo o que pode.
— Hades! — eu reclamo.
Ele ri e se levanta, me levanto também e ele me puxa para si.
— Você está bem? — ele pergunta, com a respiração entrecortada.
— Não. Você me maltratou — torço a boca.
— Mas foi você quem pediu — ele ri.
Sorrio também. Estou com as pernas tremendo, a bunda um pouco
ardida, os joelhos vermelhos, cabelos praticamente destruídos e
possivelmente com chupões no pescoço e seios, mas não vou mentir, foi uma
delícia, como sempre é, mas eu não digo isso em voz alta.
— Não precisa, minha Brisa, não precisa.
Hades sorri tanto, que quase não o reconheço. Lindo, lindo, lindo.
Meu coração não aguenta.

✽✽✽
Certo, começando de novo…
Estou (agora) há onze dias no Submundo.
Hoje Hades teve que comparecer a um julgamento importante. Disse
que voltaria o mais rápido possível e, incrivelmente, já estou morrendo de
saudade. Mas sei que, de alguma forma, isso é bom, pelo menos posso
pensar um pouco em como as coisas estão indo.
Tudo aconteceu tão depressa.
Tenho que agradecer a ajuda de Kairós, Atena e Reia. Eu poderia
mandar uma mensagem, mas o tal mensageiro dos deuses, Hermes, meio que
fez uma fofoca grande da última vez.
Embora tenha me ajudado também, não posso negar.
— Por que você não fala com Íris?
Ergo a cabeça e vejo que quem respondeu ao meu pensamento foi
Hécate, em seu rosto de mulher jovem. Sem desviar os olhos do livro que
segura nas mãos, continua seu caminho passando por mim, pelos corredores
do palácio de Hades.
Faço uma anotação mental: procurar a biblioteca do Submundo.
Íris? Hum, eu não conheço essa. Acho que Hso pode me ajudar
nisso. Vou procurando por ele pelos corredores, mas o lugar é muito grande
e não o encontro.
Tento invocá-lo chamando-o três vezes:
— Hso! Hso! Hso!
Nada. Ué, isso deu certo com o Beetlejuice e com todos os fantasmas
dos filmes.
Será que ele está ocupado?
— Una! Una! Una!
Puft!
Una parece na minha frente, sem saber de onde veio ou para onde
vai.
— Mas... O quê??? — ela olha em volta.
— Mil perdões, eu não sabia que iria funcionar. Desculpa te invocar
assim.
O arrependimento me bate, mas nem por isso deixou de ser legal.
— Mas se isso funcionou com você, por que não funcionou com
Hso? Ele é imune a invocação?
Ela continua me olhando sem entender nada, então eu explico:
— Eu te chamei pelo nome três vezes e você apareceu. Eu invoquei
você, igual aos filmes que eu assistia. Não achei que daria certo, mas deu. Só
que antes de te chamar, eu tentei fazer o mesmo com Hso, mas ele não
apareceu. Por que será?
Una faz uma cara estranha e seus grandes olhos expressivos se
arregalam de surpresa e depois olham para os cantos, como se estivesse se
certificando de que estamos sozinhas.
— Deve ser porque esse não é o nome dele, nem como era
conhecido. Ele só é chamado de Hso aqui — ela confidencia num sussurro.
— Sério? — pergunto, sussurrando também. — E como é o nome
real dele?
A fantasma me olha, ponderando se fala ou não, por fim parece se
decidir:
— Fofocando pelos corredores, Una? — ela abre a boca, mas a voz
que escuto é de Hso e o som vem de trás de mim.
Una arregala os grandes olhos, eu me viro ficando de frente para
Hso, que tem cara de poucos amigos. Una se curva e desaparece.
Sortuda. Queria poder desaparecer agora também.
— Er... Oi — digo, erguendo a mão e mostrando os dentes, em uma
tentativa terrível de sorrir.
Hso apenas ergue uma das sobrancelhas e um pouco o queixo,
esperando a explicação.
— Hum, não estávamos falando mal de você, só de você, entende?
Não era bem uma fofoca. Era mais uma informação, para quando eu
precisasse te invocar... Ou não, também não sei, acho que isso não é muito
legal com vocês. Tipo, vocês lá fazendo as coisas de vocês e do nada alguém
chama, e puft, vocês aparecem mesmo sem querer. É legal e tudo, mas acho
que não é certo, então não vou fazer mais. Quando eu precisar falar com
vocês, eu deixo de preguiça e procuro, prometo. Valeu falar com você, Hso!
Está lindo hoje, gostei do papo. Até mais!
Vou me afastando alguns passos para trás, enquanto falo e após isso,
eu me viro e praticamente corro pelo corredor, entrando na primeira porta
que encontro aberta.
E meu queixo vai ao chão.
Encontrei a biblioteca do Submundo.
Nunca em toda minha vida achei que poderia ter uma biblioteca mais
linda e maior que a do Fera.
Mas existe.
Estou dentro dela.
As grandes colunas de mármore negro, vão do piso, feito do mesmo
material, até o teto. Tem três andares de livros, dispostos em mezaninos com
grades de ferro e ouro. Poltronas de couro preto e detalhes em dourado,
lareiras gigantes, tudo contribui para transformar o lugar em um ambiente
acolhedor e muito elegante.
Piso nos tapetes de peles de animais exóticos e acho que esse detalhe
foi a única coisa que eu não gostei.
Vejo armaduras espalhadas pelo lugar, são de várias épocas
diferentes da humanidade, dispostas ao redor da biblioteca. E bem no centro
desta há um globo meio enterrado no piso, que deve ter mais de dois metros
de circunferência e parece ser talhado em madeira muito antiga.
Só não grito porque não consigo. Fiquei sem folego diante da beleza
e magnitude do lugar.
Olha para isso! Olha que coisa mais linda! Olha esse mundo de
livros!
Definitivamente, é o melhor lugar do palácio. Não, do universo todo!
Meu Deus, faça com que tenha pelo menos um livro em português!
— São todos escritos nas línguas antigas — Hades responde atrás de
mim, fazendo meus cabelinhos da nuca se erguerem, um frio percorrer
minha espinha e minhas pernas tremerem, ao mesmo tempo que meu
estômago se contrai, naquela “congestão de coração”.
— Ah, que pena — digo me virando, mas já estou sorrindo igual uma
idiota para ele.
Ele me observa, sorrindo também e ouço o som da porta sendo
fechada.
— Oi — digo baixinho, me aproximando ainda mais, ou sendo
puxada pela aura laranja dele, que sempre me atrai.
Coloco a mão no seu peito grande, enquanto colo meu corpo no dele,
apreciando a sensação de estar segura e em casa, não querendo estar em
nenhum outro lugar, apenas aqui, com ele.
— Oi — responde, ainda encarando meus olhos intensamente.
Vejo os cabelos dele queimando em pequenas chamas violeta, coisa
que antes era raro de ver, mas que anda bem comum de acontecer. Ele coloca
uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha e vejo seu rosto se abaixar
em direção ao meu.
Fecho os olhos e o beijo em uma mistura de paixão e carinho,
segurando seu rosto e me chegando mais a ele, quando me abraça forte.
— Você já fez amor em uma biblioteca, minha Brisa? — pergunta na
voz da sua essência, separando a boca por um momento da minha.
Eu apenas nego com a cabeça, sorrindo.
As chamas dele vão aumentando e a porta se abre em um estrondo:
— Esse palácio também é meu, lacaio imundo! Ah, aí está ele, com
sua mais recente conquista — uma mulher mais linda que a Angelina Jolie
entrou e olha para mim com nojo. — Temos uma emergência, Hades, com
um dos Titãs, então deixe sua... — ela se cala, parecendo não saber do que
me chamar.
A mulher se aproxima, está vestida com um vestido longo preto-
perfeito e no alto da cabeça tem algo, que parece ser feito de diamante, ou
um pedaço de estrela, de tanto que brilha. Mais fácil ser de diamante, já que
estamos no Submundo. Ou quem sabe ela está virando um saiyajin.
Hum, estreito os olhos e aguardo.
Hades parece se recuperar do choque e ao invés de encarar ela, ele
me encara.
— Quê? — parece confuso.
— Que, o quê?
— Hades, você é necessário, a-go-ra — a mulher se detém na última
palavra, dando destaque a cada sílaba, para realçar a urgência da coisa.
Hades olha para ela, para mim e para ela de novo.
— Carolina, eu... — ele se dirige a mim, mas se cala, parecendo
pensar muito no que falar.
— Hades... — a mulher linda chama outra vez.
— Tártaro, Perséfone! Suma daqui! — ele ruge e a mulher suspira
fundo antes de responder:
— Aguardo você no salão — e sai, com uma reverência.
Então, “BUM”, minha cabeça explode. Não literalmente, mas quase.
As palavras e imagens vêm depressa:
Mulher mais linda que Angelina Jolie:
Perséfone.
Esposa.
Ela fez uma reverência.
No alto da cabeça, o brilho era uma COROA.
Rainha.
A esposa linda de Hades, a rainha do Submundo.
Prendo a respiração.
Olho para Hades, arregalo os olhos.
Hades estava sem saber o que me dizer.
E ela me tratou como o que eu sou: uma nada.
“Sua última conquista”.
Só mais uma de muitas.
— Meu Deus — digo, puxando o ar de novo, enquanto meus olhos se
enchem de lágrimas.
— Carolina... — Hades me chama. Caminho para longe dele, sem
notar.
— Meu Deus — digo outra vez.
— Carolina, eu preciso ver os Titãs. Se é realmente uma emergência,
isso pode colocar os reinos em perigo. Volto assim que puder. — ele para,
parecendo querer dizer mais alguma coisa, porém diz somente: — Está bem?
Eu balanço a cabeça, tentando parecer bem, normal e forço um
sorriso.
— Ok — respondo num sussurro.
Ele me dá um beijo rápido nos lábios e se vai.
Eu deixo minha máscara de calma cair por terra, assim como meu
corpo, me sento no chão e choro a infelicidade de ser Carolina-sem-graça-
mais-uma-amante-de-Hades enquanto existe Perséfone-linda-e-única-rainha-
esposa-de-Hades.
Ele disse que estava separado. Reia e Atena me disseram que ele
tinha voltado, mas eu não vi Perséfone aqui, achei que então... não... Eu não
“achei”, eu esperei que ele não voltasse para ela, que não estivesse mais
casado, que eu não fosse só mais uma aventura, mais um caso, alguém que
ele está junto por esses dias, só por causa de uma profecia idiota!
Choro baixinho mais um pouco, deixando as lágrimas correrem pelo
meu rosto, levando minha burrice embora. Eu achei que ele sentisse o
mesmo que eu sinto por ele. Será que estava me enganando esse tempo todo,
vendo o que eu queria? Dificilmente me engano com as pessoas, mas eu
nunca quis tanto que alguém me amasse, como quero agora. Talvez isso
tenha me confundido.
Meu estômago se embrulha, então eu vomito no chão da biblioteca
linda.
Sinto alguém segurar meus cabelos até o vômito acabar e eu
conseguir erguer a cabeça outra vez.
— Venha, criança — Hso me segura pelos braços, me levantando de
meu estado lamentável.
Não sei se por sempre gostar de Hso, ou se foi por me chamar de
“criança”, mas eu o me deixo conduzir e despejo:
— Eu sabia que ela existia, Hso. Sabia que estava grávida de um
filho que não era dele, mas ela não parecia grávida, você viu? Onde estava o
barrigão? E também ela chegou dizendo que o palácio era dela, que eu era
nada e te chamou de lacaio imundo! E ele não fez nada!!! Ainda saiu atrás
dela! Me deixou aqui. — limpo as lágrimas. — Saber que ele tem alguém há
anos, que só está comigo para fazer um filho e depois, vida que segue... Eu...
Eu... Eu achei que ele gostava de mim, Hso. Todos esses dias eu achei que...
E eu vomitei no chão, desculpe.
Não continuo, porque estou me esforçando para não chorar muito,
agora.
Eu sempre soube de tudo isso, do acordo de 3 meses, da esposa (não
sabia que era linda assim, mas sabia que ela existia). Só que nesse meio
tempo aconteceram tantas coisas.
Eu me iludi.
Foi isso.
Me iludi achando que Hades me amava, assim como eu o amo. Que
ele sente o mesmo que eu quando estamos juntos.
Tento limpar as lágrimas teimosas, meu coração está jogado no chão,
batendo os pés como criança birrenta, sangrando e chorando. Acho que vai
morrer. A dor é gigante.
— Sim, eu sei, criança. Venha, Carolina, eu vou lhe contar uma
história — ele me conduz para uma das tantas poltronas de couro preto e pés
dourados que existe no aposento.
Eu me deixo levar, vou fungando e me afundo no assento
confortável.
— Que história?
— A minha.
Capítulo XXXI
O PRINCÍPE

Prendo a respiração e aguardo. Hso começa:


— Há muito, muito tempo, eu não era conhecido por esse nome —
ele começa, se levantando e caminhando devagar pelo lugar, respira fundo e
continua:
— Eu, assim como você notou, fui da realeza, porém não estava
muito interessado em política ou qualquer assunto pertinente ao meu reino.
Eu só tinha uma paixão desde menino, a cítara. Tocar era a minha vida.
— Então as músicas tristes que ouço às vezes, é você?
Ele acede com a cabeça.
— Velhos hábitos não morrem tão facilmente. Embora me seja
proibido tocar, por vezes não resisto e Hades faz vistas grossas, pois não me
excedo. Ele sabe que é apenas para aquietar minha alma torturada.
— Por que você é proibido de tocar? Algo tão lindo, tão puro.
Hso me encara por um momento, apenas me olha, como se eu fosse a
pessoa mais ingênua da Terra.
— Você fez besteira com a sua música, né? Usou ela pra fazer o quê?
— Sabe qual a pior coisa que se pode fazer com os deuses, Carolina?
Enganá-los. Eles se acham tão espertos, tão superiores, que quando alguém
os engana eles não perdoam nunca.
— Como aquele cara que enganou todo mundo e teve que ficar
empurrando uma pedra até o topo de uma montanha para sempre.
— Sim, como Sísifo. Se você entrar no Tártaro, poderá vê-lo ainda
empurrando a enorme rocha, mas Sísifo sempre foi muito inteligente e agora
ele a empurra aproveitando seu tempo da melhor maneira que é possível. E
isso enlouquece os deuses que ele enganou, mas como já teve sua sentença e
nada mais poderão fazer para ele, ele segue e assim seguirá por toda a
eternidade.
— Apenas porque fez os deuses de bobos. E você? Fez qual deles de
bobo?
Ele para por um momento, anda até o grande globo de madeira e
fecha os olhos, como se o pensamento ainda lhe causasse arrependimento e
então diz:
— Hades.
— Eitaaaa... mas o quê...?
— Eu amava a música, Carolina. Eu tinha um dom nato e Apolo viu
isso, me deu a cítara e me ensinou a tocá-la. Eu aprendi desde muito jovem a
encantar a todos com minhas notas. Pessoas, animais e até mesmo pedras,
tudo que tivesse energia, eu poderia “tocar” com minhas canções. Eu vivia
apenas para isso. Nada mais me importava, nem meu reino, nem os deuses.
Até que eu conheci alguém. Então parecia que a música só existia por causa
dela. Quando estávamos longe, eu só pensava nela e quando estávamos
perto, era como o céu na terra e tudo fazia sentido, as canções pareciam
brilhar em meu coração — Hso parece se iluminar, ele tem um semblante
que beira a felicidade, por um segundo, mas então se fecha e continua: — Eu
a pedi em casamento, só seria feliz se a tivesse para sempre ao meu lado,
mas em nossa festa de casamento, ela foi picada por uma cobra e veio para
cá. Imagine o meu desespero, no dia que era para iniciar a minha vida ao
lado da mulher que eu amava, eu a perdi para sempre.
— Meu Deus, Hso! Que coisa horrível! Meus sentimentos!
Levanto-me e vou até ele, pego na sua mão e ele sorri tristemente.
— Eu não poderia ficar de braços cruzados, então eu vim para cá.
— Você se matou??? — arregalo os olhos.
— Não. Eu não queria ficar aqui morto com ela, queria uma vida
com ela. E vim buscá-la. Encantei Caronte com minha cítara e até mesmo
Cérbero. Hades e Perséfone estavam em julgamento e contei minha história
para eles. De nada adiantou. Estavam ultrajados por um simples mortal ter
entrado em seu reino, então eu fiz: os enfeiticei com minha música, fiz com
todos que estavam ali, Hécate, Hermes. A melodia entrou em seus corações
e ficaram sensibilizados. Hermes foi buscar minha esposa. Ela estava com
um lenço cobrindo sua face e Hades me informou que até sairmos de seu
reino eu não poderia olhar para ela, não poderia me voltar. Hermes nos
escoltou. Eu estava ansioso, estava morrendo de saudade e com o coração
aos saltos. Não acreditava na minha sorte. Os deuses do Submundo não são
conhecidos por sua compaixão. Então, assim que eu saí para a luz do dia,
assim que senti o sol no meu rosto, eu me virei para ver meu amor. Só que
ela estava muito atrás e não tinha saído da caverna ainda. Em tempo,
consegui vê-la ser carregada de volta ao Submundo por Hermes, mas antes
de se ir, ela retirou o véu e pude, por um breve momento, ver seu semblante:
ela chorava de decepção.
Ele faz uma pausa e depois de muito tempo me encara. Eu não sei o
que dizer meus olhos estão marejados de novo e a vontade de chorar é maior
agora, que vejo todo esse amor dele pela esposa falecida. Mas algo nesta
história me soa muito familiar.
— Que triste isso, Hso. Eu sinto muito mesmo. A dor de vocês dois deve
ter sido gigante naquele momento. Não tinha como você saber que ela não
estava fora da caverna.
— Muito pensei nisso após o que aconteceu. E se Hermes nunca
saísse com ela? Se tudo aquilo não foi uma peça maligna para me torturar, a
mim e a Eurídice?
— Era esse o nome da sua esposa? — pergunto e ele confirma com a
cabeça. — E o seu? Será que um dia poderei saber?
A sombra de um pálido sorriso passa pelos lábios pálidos e
semitransparentes dele quando responde:
— Eles me chamavam de Orfeu.
Então a história toda me vem à mente.
— Orfeu! Sim! Você é famoso até nos dias de hoje! Eu não acredito
que ouvi o próprio Orfeu tocar e nem tinha ideia! Só sentia que a música
conversava com a minha alma.
Ele faz uma breve mesura.
— Então, Orfeu, como você veio parar aqui, como mordomo de
Hades e daquela megera?
— Como eu disse, minha criança, os deuses não perdoam quem os
engana. Como não tive grandes feitos e não mereço os Campos Elísios, aqui
é melhor do que o Tártaro e mesmo nos Campos de Asfódelos não
conseguiria achar minha Eurídice.
— Não é justo vocês não poderem ficarem juntos nem no pós-morte!
Ele me dá um olhar triste.
— Eu ainda me recordo em como era quando estávamos juntos, da
paz que eu sentia, misturada com tormento. Reviver nossos momentos é o
que me consola. Eu jamais amei ou amarei outra pessoa. Não sei se ela
ainda me ama, após eu ter estragado nossa oportunidade de estar juntos outra
vez. Talvez ela nem se lembre de mim e de nossa breve vida juntos, mas eu
lembro. E ninguém irá me tirar isso, nem deus ou humano e só isso importa.
— Entendi agora por que me contou sua história, Orfeu. Obrigada.
— Aqui eu sou apenas, Hso, seu criado — ele se curva.
Eu o levanto.
— Não. Você sempre será Orfeu, o príncipe talentoso e apaixonado
que foi até o inferno para recuperar sua amada.
Eu o abraço e subo as escadas que dá para o meu quarto e começo a
caminhar de um lado para o outro.
A história de Orfeu me mostrou várias coisas: Hades e Perséfone são
iguais. Isso dói muito. Também estão juntos há trocentos anos. Fico
pensando... Hades deixava centenas de almas nas beiras do Estige sem fazer
nada, deixa Orfeu aqui, como seu servo, só porque ele entrou no Submundo,
e com certeza, foi Hades junto com Hermes quem enganou o príncipe e não
o contrário. Deixam agora ele ficar aqui, longe da esposa tão amada. Tiraram
até o nome dele. E a tal rainha Angelina Jolie o chamou de lacaio imundo!
Olha o absurdo disso! E Hades não fez nada! A mulher transformou a outra
em planta! E Hades não fez nada!
Decepção. Nunca achei que iria doer tanto. Mas como eu pensei
antes: eu já sabia de muitas dessas coisas, porém estava me iludindo.
Sento-me na cama e passo a mão pelo rosto. De repente, ter um caso
com o capeta não parece mais tão legal.
“Caso”.
A palavra pisca na minha mente igual um letreiro de neon. Caso.
Nada além de um caso.
Outra coisa que a história de Orfeu me mostrou, foi que o amor
nunca se perde. Orfeu amou sua esposa e apenas pelos momentos bons que
tiveram, ele consegue se manter aqui e ainda toca para ela lindamente. Eu
amo Hades, não importa se ele não me amou de volta, o sentimento que
tenho dentro de mim é grande e jamais senti. Queria poder passar o resto dos
meus dias com ele, mas não posso. Isso dói meu coração. Mesmo assim, por
mais triste que eu esteja por não ser correspondida por ele, eu o amo. Vou
sentir saudades todos os dias, lembrando dos nossos momentos. Nunca vou
dizer a ninguém a falta que ele me faz, mas sei que meu coração vai ter um
grande espaço ocupado por ele, para sempre.
Tomo uma decisão: a decisão de ir embora daqui.
Vou arrumando minhas coisas, colocando tudo de volta nas malas,
inclusive na mala pink de Lucy.
Quando ele voltar, eu aviso que nosso acordo não é mais possível.
Ele vai ter que entender. Então vou embora.
Suspiro, tentando outra vez aguentar a dor no peito, levanto e vou
catando tudo que está espalhado, pego minhas bijuterias que estão na
mesinha de cabeceira e lembro de uma coisa que prometi fazer e esqueci
totalmente: ajudar Poseidon a recuperar o medalhão que está com uma das
Fúrias.
Vou fazer isso agora mesmo, antes de ir embora.
Após deixar as malas na entrada do palácio, saio em busca das
Fúrias. Onde posso encontrá-las? Será que Caronte sabe?
Saio para o jardim de Hades e me dirijo ao rio Estige, porém assim
que atravesso o portão, dou de cara com um ruivo de aura vermelha piscante:
Hermes!
— Carolina! Que inesperado ver você por aqui, não sabia que tinha
voltado!
Ele sorri um sorriso lindo e eu vejo a aura dele evaporar com alguns
instantes.
— Ahãm, sei — digo, sabendo agora distinguir a mentira quando ele
conta.
Ele coça o pescoço, parecendo sem jeito.
— Desculpe se eu comentei sobre você e Hades, eu não deveria
confiar em Íris, ela não sabe guardar segredo.
Ele diz e eu torço a boca, ainda vendo a aura dele escapar.
— Está tudo bem, Hermes. Tenha um bom dia, eu estava indo ver
Caronte — passo por ele, mas me detenho quando ele diz:
— Ele vai demorar, eu trouxe muitas almas, sabe como é, desastres
da natureza.
— Oh! —deixo escapar.
Não gosto de pensar que as almas que estão aqui passaram por
alguma coisa ruim que “matou” elas.
E agora? Onde posso procurar as Fúrias? Talvez...
— No Tártaro, obviamente — Hermes me responde o pensamento.
Volto-me para ele.
Essa aura inconstante me diz que não devo colocar a mão onde há
fumaça, ou quase isso. Sei lá.
— Tártaro, é? E onde fica?
Ele me dá outro sorriso lindo:
— Se quiser, posso levá-la até lá.
Aceito, mas logo em seguida sinto que vou me arrepender.
Capítulo XXXII
O LADO SOMBRIO

Inferno.
Nada diferente do que a gente acredita ser o inferno, assim é o
Tártaro. Tem um enorme rio de lava, lava por todo lado, tem terra escura e
lodo, tem montanhas infinitas e sombrias, do lado de grandes abismos
escuros.
Os gritos constantes de agonia enchem o ar, que é quente, abafado,
tem cheiro ruim de podridão e uma infinita sensação de tormento, de tortura
e eu quero chorar e sair correndo. E apenas dei dois passos para dentro do
grande portão de pedra gigante, que parece ter dois guardiões esculpidos
nele.
Encaro Hermes:
— Eu acho que posso esperar as Fúrias no palácio de Hades.
— Não precisa ter medo, Carolina. Sei que você consegue enxergar o
melhor em tudo, aqui também.
— Aqui não existe nada de bom — eu digo, sentindo algo ruim
parecer querer me invadir e dou um passo para trás. — Só dor, maldade e
sofrimento.
Ouço um grito de uma das Fúrias e Hermes sorri outra vez,
parecendo ter esperança.
— Está vendo aí? Elas estão aqui. Posso chamá-las e você não
precisará dar mais nenhum passo. Se quiser, pode esperar no portão. Ou fora
dele.
Engulo em seco.
— Não, eu vou, elas estão perto, pelo que deu para ouvir.
— Certo, vamos logo, então. Quanto antes você falar com elas, antes
você sai daqui.
Ele vai na frente e passamos por mais alguns lugares macabros e eu
não olho mais em volta, apenas para os tênis Nike com asinhas, que caminha
na minha frente. Fico mal por ter duvidado dele antes, sei que ele ouviu tudo
que eu pensei e eu não gosto de agir como agi. Então eu começo.
— Obrigada, Hermes, por estar me ajudando. Da outra vez também
me ajudou quando eu pedi. Eu sei que nunca me faria mal e sei que se
comentou alguma coisa foi porque gosta da Perséfone. E não te julgo, ela é
realmente linda — por fora. Completo mentalmente e Hermes para na sua
caminhada.
Ele me olha com expressão de culpa e arrependimento.
— Não precisa... — eu começo, pois ele não precisa se desculpar.
Não foi nada demais se ele contou o que eu contei para ele.
— Carolina, vá embora! Volte! — ele diz em tom de urgência. — Vá,
Carolina! — Agora ele grita.
Eu dou um passo para trás, quase caindo numa ribanceira que daria
em um rio de lava.
Olho para Hermes e ele ainda está me olhando apavorado e de
repente, Hermes não está mais ali, em um segundo foi lançado longe, por um
gigante que surgiu do meio do rio de lava. Ele está acorrentado por uma das
mãos, porém a outra está com a corrente visivelmente partida.
Olho para onde Hermes foi arremessado e vejo-o se mexer um
pouco. Acho que está vivo.
Então o gigante, parecido com um enorme ogro e que tem lava
escorrendo pela pele, que está visivelmente sendo queimada por ela, me
encara. Estreita os olhos e um dos cantos de sua boca se arqueia em um meio
sorriso maligno. Vejo-o erguer o braço livre e sei que vou morrer.
O tempo parece parar, sei como isso funciona.
Em câmera lenta vejo algo escuro, como um enxame de vespas feitas
de vento, voar sobre o braço erguido, ao mesmo tempo que fogo denso,
quase lava, é jogado nele. O braço enorme cai. Almas (ou melhor: demônios,
pois são deformadas e parecem se arrastar), brotam das paredes, de qualquer
sombra que exista e puxam o gigante, seguram, arrancam seus olhos, sua
carne. A sombra feita de ar também parece querer chicoteá-lo, ferindo,
fazendo-o sangrar. Ele grita, se contorce até cair morto, aos pedaços, no rio
de lava.
Meu estômago se embrulha horrivelmente.
Me viro e vejo que quem fez tudo isso está a uns 10 metros de mim:
Hades.
Ele está com o rosto inteiramente escuro, queimando em sua essência
em um fogo azul-esverdeado. Algo ruim, sinistro está ali. O poder dele
nunca me pareceu tão grande, tão intimidador e tão assustador.
O fogo denso que ele estava lançando cessa, a terrível sombra vai se
dissipando e parece voltar para os pés dele, como se estivesse voltando para
dentro dele.
Os demônios voltam para os cantos escuros, como se estivessem ali o
tempo todo antes e como se continuassem ali, escondidos, camuflados.
Hades vira a cabeça para minha direção, o rosto ainda transtornado,
ainda em sua essência e queimando naquele fogo maligno e eu procuro ver
algo nele, qualquer coisa, que possa me lembrar do deus que eu amo.
Ele ergue o queixo, como se dissesse “eu sei que você viu, é isso o
que eu sou”. E ele confirma, agora, que é isso mesmo, pois está balançando a
cabeça, ainda me encarando.
Perséfone corre para ele, vinda não sei de onde e conversa alguma
coisa, não sei bem o quê. Mas é como se isso tudo que acabou de acontecer
não a afetasse. Claro que não afeta, Carolina, burra. Ela deve ter visto isso
milhares de vezes.
Eu não aguento mais, me viro e corro para onde acho que vim. Choro
na minha volta, mal enxergo, mas corro ainda mais, querendo sair desse
inferno.
Encontro as grandes portas de pedra e saio dali. Corro para Caronte,
vou embora, vou pedir para ele me levar. Eu não quero mais ficar neste
lugar, eu nunca vou ser igual Perséfone. Marília estava certa, amante não
tem lar, amante nunca vai se casar.
Vejo Cérbero na saída dos portões de Hades e ele vem correndo me
encontrar. Eu o abraço.
— Você é meu bebezinho lindo e eu vou morrer de saudade sua —
digo, afagando uma a uma das cabeças enormes. —Não se esqueça de mim,
que eu nunca vou esquecer de você.
Beijo cada um dos focinhos, saio e fecho o portão. Ele fica lá latindo,
me chamando, eu limpo mais uma lágrima e tento não mudar de ideia.
Chego à beira do rio de Caronte e espero. Estou nervosa. Ando de
um lado para o outro. A simples lembrança da cena do gigante ogro
morrendo daquela maneira faz meu estômago virar outra vez e dessa vez eu
vomito tudo que posso, até minha barriga doer pelo esforço.
— Menina Carolina? O que faz aqui? — Caronte está no seu barco,
algumas almas estão descendo dele e eu tento me recompor e chego perto do
barqueiro.
— Caronte, eu preciso ir embora, eu não posso mais ficar aqui. —
começo, mas as lágrimas já começam a cair.
Não sei se pelo meu choro, ou meu tom de desespero, ou porque leu
meus pensamentos, Caronte me deixa entrar no seu barco, me abraça de
maneira paternal e sem dizer uma palavra me leva para o outro lado.
Quando estamos quase chegando, ele fala:
— Quando sair, procure o templo de Poseidon, ele poderá levá-la
onde quiser.
— Eu não sei como poderei ir, eu deixei minhas coisas todas no
palácio.
— Pedirei para que Hermes as leve para você, se quiser.
Hermes.
Então me lembro da expressão do ruivo, antes de o gigante o atingir e
do que aconteceu. Será que está morto?
— Se estivesse, seria bem-feito, pelo que entendi, mas como é um
deus imortal, não teremos tal sorte, aquele filho de uma... — Caronte
murmura algo que não entendo. — Vou falar com Íris, então. Não se
preocupe, menina.
Ele me olha com carinho e quando chegamos à margem, meu
estômago que estava virado, volta a se manifestar. Coloco a cabeça para fora
do barco e vomito no rio. Três vezes só hoje. O que comi que fiquei assim?
Ou será só nervosismo?
Ouço um suspiro de surpresa vindo de Caronte, ele me olha com
olhos arregalados.
— Desculpa, eu não estou bem do estômago hoje. Acho que são os
nervos.
Ele balança a cabeça e me estende a mão para eu descer do seu
barco. Eu a seguro e quando estou colocando um pé para fora, ele fala outra
vez:
— Poderei visitar você e o bebê qualquer dia desses?
Me surpreendo com a pergunta e meu pé esbarra no remo de Caronte,
que ainda o segura. Caronte solta a minha mão e eu caio nas águas turvas do
Estige.
Estávamos na beira, mas não existe beira. É uma imensidão de águas
turvas e elas são densas, são pesadas e eu não consigo me mexer. Vejo o que
tem submerso no Rio do Ódio: sombras, as mesmas que Hades comandou no
ataque contra o gigante. Demônios horríveis.
Tento sair, mas não consigo, é como se eu estivesse presa em
gelatina. Os monstros horríveis conseguem se mexer aqui e eles se
aproximam, mas de repente é como se uma luz muito grande brilhasse atrás
de mim, isso cega-os e eles se afastam, como se tivessem medo. Tento me
virar e as águas agora parecem que se tornam líquidas, consigo me mover e
vejo que não há nenhuma luz atrás de mim e em nenhum outro lugar. A luz
vem especificamente de mim. Me surpreendo e então é como se as águas me
empurrassem para cima, e tão rápido, que parece que o rio me cuspiu para
fora, bem aos pés de Caronte.
Este ri, feliz como uma criança.
Criança? Peraí! Ele falou em bebê! Mas o quê?
Olho para ele, que ainda ri. Será que estou grávida?
Capítulo XXXIII
MÃE

Submundo, data irrelevante, muito, muito tempo depois... Tempo


demais.

Hades

Cérbero puxa a corrente com força outra vez, quase me fazendo cair ao me
pegar desprevenido.
— Pare com isso, cachorro infernal! — repreendo-o quando puxo a
corrente para ele se aquietar.
Ouço o ganido dele, ergo as vistas e vejo que ele quer tomar o rumo
dos Campos Elísios.
— Não tem nada lá para nós, cão idiota — resmungo.
Ele força outra vez a corrente para ir para aquele lugar e eu cedo
desta vez.
Sei que merda que ele quer, quer sentir a porra da brisa. Ódio desse
animal, parece eu mesmo ultimamente e essa comparação me faz ter mais
raiva de mim e daquela mortal que não ouso mais sequer pensar no nome!
Chegamos aos portões dos Campos Elísios e Cérbero para em frente
a eles, se deita sobre as patas e enfia os focinhos em meio as grades brancas
e fica ali, às vezes dá um ganido, às vezes parece chorar baixinho.
Me sento ao lado dele, de costas para o portão, não quero sentir a
brisa. Não quero me lembrar dela. Estou me esforçando TODOS OS DIAS
para esquecer. Não quero!
Meu peito dói, minha cabeça dói. Eu tento não mostrar a todos como
isso está me afetando. Tento fazer tudo que fazia, exatamente igual a antes.
Mas alguma coisa mudou, eles notam. Não me olham mais nos olhos, se
esquivam de mim. Evitam minha presença, tanto quanto eu evito a deles. Até
mesmo Perséfone, nesses meses que se passaram, nunca mais sequer tentou
se aproximar. Também não sei do que eu seria capaz se ela tentasse tal coisa.
O único que ainda se mantém por perto é Cérbero. Estamos
passeando constantemente. Ele está mais agitado, mais mortal e mais triste.
Somos iguais.
— Mas eu não sou tolo o suficiente para ficar respirando essa brisa aí
e chorando, bicho burro — digo a ele, que me olha com as três cabeças, uma
arreganha os dentes e outra puxa minha roupa até me espremer contra a
grade.
A brisa me invade a alma, a sensação de paz, de lar, de “felicidade”,
tudo vem muito forte. É como se “ela” estivesse aqui, me abraçando.
Meus olhos se enchem de lágrimas e pela primeira vez na minha
imortalidade me deixo chorar, por mais patético que essa merda seja.
Limpo meu rosto e me levanto com raiva.
— Eu sou Hades! O deus dos mortos não chora! Tártaro!!!
— Todo mundo chora, meu filho — me viro em direção à voz que
me chama de “filho” e dou de cara com Reia.
— Reia? O que faz em meus domínios? Veio visitar seu ex-marido?
— fecho a cara para minha “mãe”.
— Não. Vim visitar meu filho, que está precisando de mim.
— Então se enganou de endereço, Zeus mora no Monte Olimpo —
puxo a corrente de Cérbero e me viro para sair daqui.
— Não me refiro a Zeus, me refiro a você, menino teimoso!
— Pois está duplamente enganada, não sou teimoso, muito menos
seu filho. Perdeu a viagem. Acho melhor voltar pelo caminho de onde veio.
— Você nunca me perdoou. Em todos esses séculos, você nunca
entendeu.
— Não tenho o que entender e se procura perdão, não vai achá-lo no
Submundo, todos sabem disso — desta vez me viro para ela, erguendo o
rosto para poder encará-la nos olhos.
— Cronos sempre foi muito forte, muito intimidador, eu vivi
momentos de terror ao lado dele, de medo constante, eu sabia que um dia
poderia salvar vocês, eu só tinha que esperar.
— Sim, esperar Zeus nascer. O lindo menino de olhos azuis e cabelos
loirinhos. Os outros que se ferrassem se não teriam infância, nem porra
nenhuma! Se desconhecessem o que era amor e só vivessem com ódio
dentro de si. O que você poderia fazer, não é? Era só a mãe deles!
Ela se cala por alguns momentos, e quando eu acho que não irá falar
mais nada, ela continua:
— Sempre tentei fazer com que vocês encontrassem o amor, Hades.
Quem você acha que convenceu Afrodite e Eros a fazer você se apaixonar
por Perséfone?
— Do que está falando? Foi você que...?
— Não deu muito certo, confesso, mas eu tentei. Então, quando vi
que isso o deixava mais infeliz do que feliz, tentei de novo. Desta vez com
uma mortal.
— O que você fez? Eu encontrei a mortal sozinho!
Ela ri, me fazendo queimar mais ainda de raiva.
— Acha mesmo que foi você quem a encontrou “sozinho”? Desde o
início, Hades, desde que vi que você estava infeliz no seu casamento, tão
solitário a ponto de abrir mão dele, que procuro por uma flor rara, aquela que
brota em meio às pedras, aquela que mesmo com toda diversidade, insiste
em viver e florescer. Carolina lhe contou sobre seus pais?
Estreito os olhos para ela e respondo com cautela:
— Sim, contou. É órfã — digo apenas.
Lembro da tristeza que ela tinha ao me dizer isso.
— Muitas crianças são abandonadas pelos mortais, ainda nos dias de
hoje. Busquei os antigos oráculos para saber como seria a pessoa, mortal ou
não, que faria meu filho se apaixonar. A resposta foi interessante: alguém
que enxergasse além dos olhos, que o visse com a alma, uma mortal pura de
coração e que mesmo sem receber amor, tinha tanto dele dentro de si que o
poder dela tocaria o seu. Esse é o poder de Carolina, Hades, maior talvez do
que o seu e o meu. Ela sabe criar amor, mesmo sem nunca ter recebido
nenhum.
— Me deixe terminar, Hades — ela diz, quando faço menção de
interrompê-la. — Como deusa da maternidade, pedi ajuda para Ilítia, Hebe e
até mesmo Hera, mas não disse o motivo. Estávamos esperando por essa
criança há séculos. Então Hera mandou Íris até mim com um recado, que
uma menina cega tinha nascido e sido abandonada logo em seguida, deixada
para morrer em um beco em meio a lixos. Poderia ser ela. Pedi para Íris me
trazer a criança, Íris conta que quando chegou, a menina estava chorando
baixinho, quase roxa de frio, entre a vida e a morte, porém quando a pegou
no colo, a bebê parou de chorar e procurou por seu peito, e quando ela tentou
tirar, a menina de olhos brancos segurou seu dedo e não quis mais largar.
Sabe que Íris nunca teve filhos, ela disse que naquele momento ela se
emocionou. Um ser tão pequeno, tão miserável, abandonado para morrer no
meio do lixo, querer tão desesperadamente um pouco de carinho, alguém
que o protegesse. Então, uma de suas lágrimas caiu sobre o rostinho azulado
de frio e depois mais uma. Íris a aconchegou nos braços, a esquentou e
depois a trouxe a mim. Não imagina a nossa surpresa, quando ela chegou
com um bebê de olhos vivos e coloridos!
— É por causa de Íris que os olhos daquela mortal são coloridos?
— Sim, a deusa do arco-íris, a que une os deuses e mortais. Por isso
Carolina consegue nos distinguir, mas só vê nossos âmagos, o que há dentro
de cada um por seu dom, dela e unicamente dela. Na verdade, acho que até
mesmo quando era bebê ela já fez isso com Íris.
— Era por isso que Íris vivia me pedindo para tomar hidromel? Para
me contar?
Reia ri.
— Acho que ela queria contar, ou talvez apenas conhecê-lo melhor,
já que estava de certa forma, criando Carolina.
—Quê???!
— Ela quis ficar encarregada da segurança da menina. Primeiro ficou
no orfanato, sempre por perto, mas sem interferir. Depois virou uma dona de
pensão. A única que não gostou muito foi Hera, de perder sua dama de
companhia, mas eu disse que Íris estava trabalhando para mim, então ela não
tinha muito o que discutir.
Passo a mão pelos cabelos, que queimam sem parar agora.
— Você “criou” aquela mortal para mim? É isso?
Ela se irrita:
— Não seja arrogante, mocinho! Carolina é poderosa, é especial. Ela,
assim como você e eu, existe por um propósito maior do que você ou seus
herdeiros. Vocês estarem destinados a serem um casal é algo que você deve
agradecer todos os dias daqui para frente.
— Não seremos um casal —Afirmo. — Ela me teme. Me viu como
sou de verdade e me teme.
— Está enganado. Você é um deus que merece o amor, isso tudo que
guarda dentro de si e está deixando escapar ultimamente não é você.
— Não estou deixando nada escapar.
Ela me encara, fazendo-me calar.
— Não notou suas chamas esverdeadas? Ou quem sabe a névoa de
sombras que agora caminha com você? Quem sabe os olhos totalmente
escuros? Ou o ódio sem medida que está jogando em todos que passam pelo
seu caminho? Ouvi dizer que nunca foram tantas almas para o Tártaro.
— O Submundo está infestado de fofoqueiros metidos! Hunf! —
ergo o queixo. — O Tártaro tem muito lugar ainda e estou muito bem,
obrigado.
Não demonstro que não tinha me dado conta de que era por causa do
meu lado sombrio que estava saindo o motivo para que todos praticamente
corressem quando me viam. Na verdade, desde aquele dia em que “ela”
fugiu de mim ao me ver, após eu salvar a sua vida daquele titã desgraçado,
eu nunca mais voltei ao meu “normal”.
“Normal”, na verdade, era só um disfarce.
— Este sou eu — concluo para mim mesmo e para Reia. — É bom
que todos vejam, não tenho mais motivos para esconder. Se não gostam, que
fujam. Já estou acostumado.
— Não tente mentir para mim, mocinho. Nada do que diga muda o
fato de você estar neste estado, aqui e chorando quando cheguei. Pare de
tentar me enganar e de se enganar. Já passou tempo demais. Você deve
procurá-la…
— Nunca! — respondo com veemência. — Prefiro me jogar no
Flegetonte do que ver aquela mortal fugir aterrorizada de mim outra vez.
Confesso sem querer, mas não poder falar com ninguém sobre o
assunto está me deixando louco! E ainda mais agora que sei tudo o que
aconteceu com... aquela mortal.
— Não foi de você que ela fugiu, foi de toda a situação.
— Como sabe? De que situação se refere?!
— Por Gaia! Você está tão cego pelo seu próprio ego ferido que não
notou?! Achou que fazer de sua amante a menina que o ama, enquanto ela se
encontra com sua esposa aqui no mesmo ambiente em que ela estava com
você… deixá-la ver o Tártaro, que para os mortais é o “inferno” e se
apresentando como um verdadeiro diabo, enquanto despedaça um titã na
frente dela... ela, Carolina, doce e inocente, iria fazer o quê? Me diga,
Hades? O que pensou que sua destinada iria fazer?
— Como sabe de tudo isso?! — pergunto estupefato.
Mas a verdade é que não tinha visto as coisas desta forma.
— Hermes me contou, e me contou outras coisas também, como por
exemplo, que ajudou Perséfone a libertar o titã e tudo foi parte de um plano
com intenções pouco louváveis para com sua mortal.
— O quê?! — eu urro, me pondo em chamas, deixando tudo
explodir.
— Se acalme, Hades. Hermes se arrependeu e está disposto a ajudar
no que for preciso. O que importa agora é você encontrar Carolina, já passou
muito tempo.
— Eu não vou me encontrar com ela. Eu vou queimar aqueles dois
desgraçados! Vou torrar um por um e acorrentar dentro do…
— Vai deixar de lado sua destinada e o que ela carrega para matar?
Não sei se essa é a melhor saída, mas faça o que quiser.— ela se vira para ir
embora.
Eu levo mais alguns segundos para distinguir o que ela disse.
— Não sei se entendi bem o que disse, Reia.
Ela se volta e me encara.
— Eu disse que você tem duas opções: o amor que tanto quis, ou o
ódio que está acostumado. De um lado tem Carolina, filhos, perdão, amor,
paz… De outro, tem você matando, torturando, queimando e vivendo no
inferno feito por você mesmo, e acima de tudo: sozinho. A escolha é sua,
Hades.
E dizendo isso, ela se afasta.
Eu não me mexo e deixo-a ir. Ela não deveria estar aqui, muito
menos falando comigo desse jeito. Eu faço o que quero da minha existência!
E vou acabar agora mesmo com Perséfone e Hermes, aqueles miseráveis
malditos!
Caminho a passos duros, pondo o meu lado sombrio outra vez
totalmente para fora, as almas podres chegando perto, a névoa escura se
libertando totalmente…
Cérbero puxa a corrente outra vez, eu a seguro com força, mas ele
também é forte e puxa de solavanco mais uma vez, em direção ao portão dos
Campos Elíseos.
Eu o seguro.
— Pare com isso, animal estúpido! — reclamo.
Uma das cabeças rosna para mim, outra chora baixinho e a última
apenas tenta voltar para os portões, para a brisa.
Eu caminho com ele até lá. Devagar o deixo ir, em sua ansiedade. Ele
faz a mesma coisa que fez antes: se deita com os focinhos em meio às
grades. Eu continuo de pé, olhando lá para dentro. Vejo as folhas das árvores
balançarem, os pássaros voando, borboletas brincando uma com a outra.
Dou um passo para frente e fecho os olhos. A brisa parece invadir minha
alma, me tocar, assim como as músicas de Orfeu fazem comigo.
Talvez seja por isso que as músicas dele tem sido tão insuportáveis
para mim agora. Sei exatamente a dor que ele está sentindo e o que diz com
elas em cada estrofe. A dor, a saudade, a melancolia e a nostalgia.
Lembro outra vez da minha aeráki, da paz, das nossas conversas e
risadas, da presença dela. Mais do que punir, eu a quero junto de mim. Mais
do que ferrar com tudo, eu quero ser feliz.
Sinto, depois de muito tempo, minhas chamas se apagarem de vez, e
meu lado sombrio voltar para dentro de mim.
Olho para baixo, para Cérbero, ainda deitado na mesma posição.
Cérbero fez a escolha dele.
E eu também vou fazer a minha, vou começar indo para os Campos
de Asfódelos, tem alguém lá que eu preciso buscar. Depois vou visitar minha
mãe e achar outra vez minha destinada.
Capítulo XXXIV
FINAL

Carolina

— Carolina, eu não consigo pegar ele quando está chorando assim. —


Lucy grita para mim.
Estou com Helena no colo, dando a mamadeira, mas Lucca está
gritando e chorando, com os cabelos incendiando e quase colocando fogo na
pensão.
Passo Helena para Lucy e pego Lucca, que continua em chamas.
— Calma, meu anjinho, mamãe está aqui.
Lucy me olha com os olhos arregalados e sorri. Dona Geni está
fazendo outra mamadeira e sorri também. Não está sendo fácil... Ter dois
mini-Hades está deixando todos aqui de cabelo em pé.
Não foi uma gravidez fácil, tampouco foi qualquer coisa parecida
com o “normal”. Foi muito rápida, foi difícil, e se Caronte não tivesse me
derrubado naquele rio (agora eu sei que ele fez de propósito), eu não estaria
viva para contar a história. Afinal, parir dois bebês em chamas não é coisa
para uma mortal. Eu não sabia que o rio tinha me feito imortal, até o dia em
que os bebês nasceram. Não gosto nem de me lembrar do medo que senti.
O que antes era meu maior medo, me tornar imortal, virou meu maior
alívio. Agora meu maior medo é que o pai deles apareça os reivindicando.
Se esconder de um deus não deve ser coisa fácil e eu fico ansiosa a cada
bater de porta.
Se bem que não sei se Hades bateria na porta, de qualquer maneira.
Voltar para casa foi mais fácil do que eu pensava. Tive ajuda de Íris,
a moça com asas douradas que parece que conheço desde sempre. Com aura
multicolorida, ela pareceu se surpreender em me ver. Não precisei procurar
Poseidon, pois ela me trouxe de volta para casa, e mesmo sem eu querer
aceitar, me deu muito dinheiro.
Continuei na pensão, afinal aqui está a minha família. Estou outra
vez usando óculos, não quero mais saber de deuses e auras. Quero esquecer
que existe um mundo paralelo ao nosso, mas os bebês com os cabelinhos
queimando é algo que não me deixa esquecer.
Lucca se aquieta e chupa o dedinho.
—Isso, meu amorzinho. Seu mamazinho já está pronto, mas você não
pode tomar queimando sem parar, né? — digo, enquanto pego a mamadeira
que dona Geni me entrega.
— Heleninha já dormiu, vou colocar ela no berço. — Lucy avisa.
— Obrigada — eu sussurro para ela.
Acho que deve ser difícil ver a amiga chegar grávida da Grécia e ter
um casal de gêmeos que pega fogo, literalmente. Eu sei que elas ainda se
assustam, menos dona Geni, ela apenas sorri, parecendo estar feliz e sabendo
de tudo.
Eu termino de alimentar Lucca, o coloco para arrotar e ele está
dormindo profundamente outra vez. Recém-nascidos só dormem, mamam e
fazem cocô, e mesmo assim dão um trabalhão danado! Ah e choram, não
podemos esquecer dessa parte.
Coloco Lucca aos pés da irmã, por enquanto estão dividindo o
mesmo berço. De ferro, sem adornos, já que eles incendeiam tudo.
Agora entendo o motivo de tudo naquele palácio de Hades ser de
ferro e pedra. Eu queria poder ter aqueles tecidos que ele fazia, que pareciam
resistentes ao fogo também. Se eu pudesse entrar em contato com algum
deus, eu pediria isso.
— Carolina, sente-se aqui, criança, descanse um pouco, fiz um chá
para você.
— E pra mim, fez chá também, dona Geni? — Lucy chega perto
dela.
Estou com o maior quarto da pensão e por causa dos bebês fizemos
daqui um... como chama aquilo que antigamente chamava de kitchenette?
Agora mudou de nome, algo em inglês e que parece chique... Bom, sei lá...
mas colocamos uma minicozinha, o berço, até um sofá.
Pego o chá das mãos da Dona Geni, e Lucy faz o mesmo, sento-me
na minha cama, Lucy no sofá e Dona Geni fica de pé.
— Sabe, Carolina, uma das coisas que eu mais queria na vida era
conhecer o pai dos bebês. O boy deve ser uma coisa de outro planeta.
Eu rio dela.
— Mas eu já te contei tudo. — dou risada ainda e tomo mais um
pouco do meu chá, me perdendo em pensamentos enquanto olho para dentro
da xícara.
Só Deus sabe a saudade que tive, a vontade de voltar, de contar tudo,
mas o medo de perder meus filhos me impedindo.
Por mais que eu queira vê-lo novamente, espero que isso nunca
aconteça. Pelo menos, não até os bebês crescerem.
— Contou, mas nunca me disse que ele era terrivelmente lindo, de
um jeito que assusta.
Eu estranho a fala de Lucy e ergo as vistas para ela, que está com os
olhos bem abertos encarando a porta. Olho em direção à porta e vejo o
enorme homem vestido totalmente de preto, com cara de poucos amigos e
me encarando: Hades.
Sim, terrivelmente lindo é um adjetivo que combina muito com ele.
Respiro fundo me pondo de pé em um segundo. Só penso nos bebês.
Ele não pode vê-los, senão os levará embora!
—Hades! O que faz aqui? Corro para ele, tampando sua visão do
berço, ou tentando.
Ele olha em volta, mas eu não me mexo.
— Podemos conversar? — ele diz somente e eu o puxo para fora do
quarto, para o pátio bonito da pensão.
— Lógico!
Grande erro, eu tive que tocá-lo para puxá-lo e o simples gesto me
fez reviver tudo que eu tento esquecer, tudo que eu sufoquei por meses. Eu
sei que tenho que tirar as mãos dele, que tenho que largá-lo, porém não
consigo, só consigo olhar para minhas mãos agarradas no seu braço.
Foi tão difícil... tudo. Os bebês, a gestação, tentar esquecer ele.
— Aeráki... — ele me chama, eu levanto os olhos, mas ainda não
solto o seu braço.
Ele retira meus óculos e limpa uma lágrima, que por mais esforço
que eu tenha feito, conseguiu se libertar.
Por um breve momento eu me iludo outra vez, vendo seu olhar,
parecendo apaixonado e com saudades de mim. Mas não demora muito para,
com toda força do meu ser, eu me afastar.
O mais importante aqui são os bebês, ele não pode encontrá-los. E se
a imortalidade me deu uma coisa que realmente é boa, é que sei que agora
ele não pode ler mais meus pensamentos.
Caminho em direção ao portão do pátio.
— Acho melhor você ir embora, Hades. Tenho certeza de que não o
convidei para uma visita, então já está na hora de ir.
— Eu me convidei e não vou embora antes de conversar com você!
— Não acha que demorou demais, Hades? Achou que eu ficaria
meses esperando por você?! Que chegaria aqui, depois de tudo que
aconteceu e eu simplesmente iria me jogar aos seus pés? Como se não
tivesse dado a mínima se eu saí da sua vida? Ou tudo o que vi? Ou me fazer
de sua amante debaixo do nariz da sua esposa??? O que houve? Está outra
vez sozinho? Perséfone voltou para a mãe dela? Quer tentar outra vez o
plano "barriga de aluguel"? Pois me desculpe, velhinho. Não caio mais
nesse seu papinho furado de homem apaixonado. Pode me olhar do jeito que
quiser e manda esse raio de aura parar de me puxar!
Hades não tem atitude nenhuma diante da minha explosão, apenas
me encara boquiaberto.
— Vá embora, Hades. Não é bem-vindo aqui! — cruzo os braços o
encarando, deixando a minha raiva queimar.
Ele pisca várias vezes e para minha surpresa, ele ri. Solta uma
gargalhada e então quem não entende mais nada sou eu.
— Que bom que está se divertindo… — me viro para deixá-lo
sozinho, mas ele me segura pelo braço.
— Todo esse tempo eu temi que quando você me visse, saísse
correndo assustada. Eu evitei tanto esse encontro, porque não suportaria se
fizesse isso. E você me vê e grita comigo! Está irritada, igual àqueles cães
infernais minúsculos — ele ainda ri.
— Está me comparando com um pinscher? Depois de tudo que fez,
vem até minha casa rir dos meus motivos? — estreito os olhos para ele. —
Você é um arrogante sem-noção! Me deixe em paz e vá embora daqui de
uma vez! — grito.
Ele precisa ir embora e eu estou perdendo o juízo já. Maldito, lindo,
maligno. Rindo, fazendo meu coração acelerar e minhas pernas tremerem.
Me livro do toque dele.
— Eu não estou debochando… Espera um minuto. Por que não
consigo ler seus pensamentos?
E então acontece: Lucca e Helena berram a plenos pulmões,
chorando, Acordaram provavelmente por causa do meu grito. A vontade de
socar minha cabeça é enorme. Vejo a cara de Hades, surpreso, olhando para
a porta do meu quarto, que dá para o jardim e depois para mim. Para a porta
e depois para mim.
Nesta hora Lucy coloca a cabeça para fora com cara de "desculpa,
mas é urgente".
Sim, eu sei que é. Os pequenos estão incendiando tudo.
Fecho os olhos com força, querendo sumir. Hades pega meu braço
outra vez e praticamente me arrasta para o meu quarto. Quando Lucy
escancara a porta para entrarmos e sai, podemos ver o berço pegando fogo.
Mas não é realmente o berço. São os dois bebês dentro dele.
Me solto de Hades e pego Helena, já que ela se acalma com mais
facilidade. Lucca continua aos berros. Ele é mais irritado e dá mais trabalho
para acalmar. Agora Hades já sabe. Não tem como eu inventar uma história
sobre isso. Respiro fundo.
— Pronto, pronto, mamãe está aqui…. — Canto uma canção para
Helena, que diminui o choro. Olho para Hades, que está petrificado no lugar.
— Pegue o Lucca, não fique aí parado!
Ele não se move, ainda está em choque. Quando já estou quase
perdendo minha paciência, ele dá um passo em direção ao berço, depois
para, encarando Lucca. Meu menino tem os cabelinhos escuros e os olhos
também. Helena se parece muito com o irmão, com exceção dos cabelos,
que são mais claros.
Vejo Hades se debruçar para o berço e pegar o bebê, que queima
intensamente. Hades o aninha em seus braços, ainda visivelmente abalado e
depois olha para mim.
— Bebês? Meus?
— Não. De Poseidon, não está vendo as ondas do mar? — digo
entredentes, então a minha raiva se dissipa como fumaça, pois Hades se
aproxima sorrindo, chega perto de mim e de Helena e seus olhos estão
cheios de lágrimas.
Lucca ainda está chorando e eu faço um sinal para Hades me dar ele.
— Deixa que eu pego Heleninha agora, Carolina — dona Geni, que
ainda está aqui, fala atrás de mim.
— Obrigada, dona… — me viro para entregar Helena, mas me
detenho.
Dona Geni está com uma aura enorme e multicolorida.
— Íris? — nunca tinha notado, pois nunca fico sem meus óculos. —
Você era a dona Geni o tempo todo?
"Dona Geni" sorri sem jeito.
— Eu precisava tomar conta de você…
— E faz isso desde que eu cheguei na pensão…
— Faço isso desde que a encontrei, quando era um bebezinho.
Me sento na cama, ainda com Helena nos braços. Ela se aproxima e
pega a bebê.
— Mas… — eu estou sem chão. — Eu cresci no orfanato… Não…
— coloco a mão na boca para sufocar um grito. — irmã Vera? Você…
Ela confirma com a cabeça, emocionada.
— Eu não tinha autorização para interferir na sua vida, mas não pude
deixar você sozinha à própria sorte. Então fiquei ao seu lado. — ela
murmura baixo e sem jeito. — Eu deveria ter feito diferente, deveria tê-la
pegado para mim, deveria ter confrontado os deuses... Eu... Me desculpe...
Então eu olho para ela. De verdade. Vejo o amor dela por mim. O
mesmo amor que eu tenho pelos meus filhos.
— Sempre considerei dona Geni como minha mãe, mas não sabia
que ela era minha mãe de coração — me levanto e a abraço.
Por isso, mesmo com o dinheiro que Íris me deu eu não fui embora.
Eu sabia, mesmo sem saber, que aqui é minha família.
Limpo as lágrimas e me viro para pegar Lucca, mas não tinha notado,
o menino parou de chorar.
Hades está embalando-o e fazendo as chamas dos cabelos crescer e
se apagarem. O bebê olha fascinado.
— Cadê o foguinho do papai? Cadê? Aqui! — ele diz e meu coração
se derrete.
Lucca fica quietinho e eu tenho vontade de chorar. Será que Hades
vai cumprir a promessa e me deixar ficar com os bebês? Se não deixar, o que
eu posso fazer? A quem posso recorrer?
— Ele se acalmou — diz, quando me olha cheio de orgulho.
— Sim, notei.
Ele se aproxima e cumprimenta "Dona Geni" com um balançar de
cabeça, depois se dirige à Helena:
— Olá, minha princesinha. Eu sou seu papai — ele se apresenta. —
Um príncipe e uma princesa, jamais imaginei que pudesse ter tanta sorte…
— ele completa para si mesmo.
— Sim, um príncipe, uma princesa, um rei e uma rainha. A
monarquia do Submundo está completa.
Digo e saio pela porta. Preciso respirar. Não posso chorar. Tenho que
ser forte, preciso implorar para ele deixar os bebês comigo. Preciso…
Vejo Lucy na porta do quarto dela fumando um cigarro, atenta a tudo.
Sei que está preocupada. Júlia também está por ali, aparecendo para regar
uma flor, como se não tivesse chovido pela manhã e estivesse tudo molhado
ainda.
Estão preocupadas também e sei que estão prontas para tentar se
colocar na frente de Hades se ele tentar levar os bebês.
— Está errada apenas em uma coisa, minha brisa. — Hades fala atrás
de mim. — Temos um rei, um príncipe e uma princesa, mas nenhuma rainha
no Submundo.
— Ah, sim. Como disse que não tinha quando o conheci. E depois
ela apareceu linda e de coroa.
— Eu não menti naquela ocasião, e também não minto agora. Se
voltei para aquela cobra foi porque ela lançou-lhe uma maldição mortal, com
a condição de eu voltar a ser seu marido.
— Maldição? Que maldição?
— Algo com você se tornar o que mais teme e viver em meio ao
choro e fogo.
— Ah, então ela conseguiu o que queria… Sempre temi ser imortal e
com os bebês é quase sempre fogo e choro… — torço a boca.
— Se tornou imortal?
— Caí no Estige… — não conto que foi Caronte que me derrubou,
até porque teria que contar que ele fez isso porque sabia que eu estava
grávida… e pelo visto, Hades chegou aqui sem saber dos bebês… — Mas se
você não sabia dos bebês, por que veio até aqui?
Ele se aproxima, a aura laranja me puxando para ele e então ele está
em sua essência e tenho certeza de que fez isso de propósito.
Fecho os olhos.
— Olhe para mim, minha brisa — ele ordena com voz grossa e eu
cedo porque sou uma burra.
Parabéns para mim, mereço um prêmio. Ainda não levantei a mão e
toquei nos cabelos dele. Ainda não me atirei nos seus braços. Eu tinha que
ganhar uma estátua de mulher mais forte do mundo. Mulher maravilha não é
párea para mim.
— Reia… minha mãe — ele se corrige e eu me espanto, pois o
rancor dele por Reia é algo conhecido por todos. — Me fez ver que eu fiz
tudo errado, eu sei o que viu no Tártaro, eu nunca deveria ter aparecido para
você daquele jeito, ainda mais naquele lugar, mas eu precisava salvar sua
vida. Eu saí de mim quando a vi em perigo e não pensei. Depois não a
procurei, porque achei que você estava aterrorizada comigo e que sairia
correndo quando me visse. Isso seria pior do que a morte. Por isso ri quando
me confrontou.
Ele passa a mão pelo meu rosto e sem eu notar o que vai fazer, ele se
abaixa, ficando de joelhos na minha frente.
— Perdão pela forma como me portei. Desde o início eu deveria ter
feito uma coisa e só uma coisa — ele retira do meio das vestes algo brilhante
como uma estrela e me oferece.
Noto que já vi isso antes: é a coroa que estava na cabeça de
Perséfone.
— Como eu disse antes, estava errada, não existe rainha no
Submundo, então estou de joelhos pedindo-lhe, minha brisa: quer se casar
comigo e ser minha rainha?
Ouço dois grandes "oh" vindo provavelmente de Júlia e Lucy.
— Quer que eu seja sua rainha para poder ficar perto dos bebês? —
eu precisava perguntar.
E conheço Hades, ele não vai mentir.
Ele sorri:
— Quero que seja minha rainha porque te amo e não sei mais viver
sem você. Quase mandei todo mundo para o Tártaro… eu não quero mais ser
o deus sem misericórdia do Submundo, quero ser alguém melhor, por você.
Nem matei Perséfone ou Hermes…
Ele diz a última frase como se isso fosse a coisa mais louvável do
mundo.
Ouço mais dois "oh".
Mordo o lábio, avaliando-o ajoelhado no chão. Acho que ninguém
nunca o viu assim…
— Com certeza, não, minha brisa.
Ele me respondeu o pensamento!
Como que...???
Ele apenas ri e noto que estou tomada pela aura dele.
— Quer dizer que eu, em minha essência, ainda posso ouvir seus
pensamentos? Isso é um alívio! — ele se surpreende, tanto quanto eu e
depois se levanta, continuando: — Já que é a segunda coisa que mais gosto
quando estou com você.
Diz isso e segura meu queixo, me encarando dentro dos olhos.
— Eu ainda não disse “sim” — tento me fazer de difícil.
— Esqueceu que agora posso ler seus pensamentos? — ele se
aproxima ainda mais e quando seus lábios estão prestes a tocar os meus, ele
ainda diz: — Não resista ao inevitável, minha brisa.
O beijo me tira do chão, me fazendo dar um grande suspiro depois de
meses sem respirar direito, me fazendo sentir viva e completamente feliz. O
tumulto, a congestão de coração, o fogo, a paz, tudo se misturando.
Ouço mais um par de "oh”.
E neste momento entrego de vez meu coração ao meu amor, ao meu
deus irresistível.
Epílogo

Não sou muito de usar a coroa, já que ela pesa e tenho medo dela cair, igual
dizem "levanta quem cedo madruga, senão a coroa cai". Ou quase isso… Sei
lá, mas hoje é uma ocasião especial. Hades convidou algumas pessoas para
conhecerem os gêmeos.
Os gêmeos têm um quarto enorme e lindo ao lado do nosso. Dois
berços de ouro, envoltos naquele tecido preto que não pega fogo. Tudo é
muito lindo e digno dos príncipes do Submundo, ou de qualquer mundo.
Sinto a presença de Hades, antes que ele me abrace por trás.
— Estão dormindo, nossos anjinhos? — ele pergunta ao meu ouvido.
— Sim — digo sorrindo. — Sua mãe acabou de colocar eles no
berço.
— Sim, eu encontrei com Íris e ela no corredor, com Cérbero, achei
que ele não iria mais sair de perto de você.
— Acho que ele também gosta delas — digo e vejo-o revirar os
olhos. — Deixe de ser ciumento, Cérbero também te ama.
Ele revira mais uma vez os olhos e eu o empurro de leve. Recebo um
beijo no ombro.
— Amo, seu irmão chegou — Orfeu anuncia e eu sorrio para ele, que
está visivelmente feliz.
— Olá, Poseidon — eu comprimento Poseidon, dando um beijo de
leve na face dele. — Orfeu, poderia pedir para sua esposa vir dar uma
olhadinha nos gêmeos para mim?
— Claro, ama. Eurídice já virá.
— Orfeu, não me chame de ama, pelo amor de Deus!
— Não adianta, minha brisa, ele teima nisso — Hades se adianta para
cumprimentar Poseidon.
Orfeu, não mais Hso, sorri feliz. Coloca a mão no peito, se inclina e
sai.
O tamanho da minha surpresa quando cheguei no palácio e dei de
cara com a esposa dele aqui foi gigantesca.
Hades disse que sentiu na pele o que era ficar longe de quem se
amava e quis amenizar o sofrimento dos dois.
Perséfone foi banida para sempre do Submundo e Hermes ainda
trabalha aqui, mas fazendo mil e uma atividades, até limpar o cocô de
Cérbero. E ele faz sem reclamar. Sei que ele se arrependeu no último
momento, mas não deixo ele se aproximar mais. E Hades já mandou Cérbero
engoli-lo se ele chegar perto de mim ou dos bebês. Por isso Cérbero está
mais próximo de nós.
Eu agora ajudo Hades nos julgamentos. Acho que o Submundo está
conhecendo o que é perdão e misericórdia, talvez estivesse precisando de
uma mudança. Talvez o mundo precise apenas de um pouco mais de amor.
E falando nisso… chego mais perto dos dois irmãos, que estão
debruçados nos berços.
— Como pode os dois serem tão parecidos com você e mesmo assim
tão bonitos? — Poseidon pergunta.
— Hunf! — Hades responde. — Mas não vou rebater, porque eu
mesmo me faço essa pergunta o tempo todo.
Isso faz Poseidon soltar sua gargalhada, o que acorda os bebês, que já
estão pegando fogo.
— Eles pegam fogo?! Por Raia, irmão, você fez o trabalho bem-feito
mesmo, sabia que meus conselhos iriam funcionar. Foi a água, não foi?
Tenho certeza de que foi — Poseidon ri mais um pouco.
— Além de vir molhar todo meu palácio, ainda acorda meus filhos,
lambari? — Hades reclama, mas está todo orgulhoso e se inclina pegando
Helena.
— Lambari?! Lambari?! — Poseidon repete, fingindo estar ofendido.
Vou e pego Lucca e me aproximo de Poseidon.
— Parabéns, Carolina. Além de aguentar esse ranzinza, teve filhos
lindos. Estou sabendo que os julgamentos estão mudando e o Submundo está
um lugar mais agradável… Meu irmão tem muita sorte — ele sorri
genuinamente, tirando o inseparável charuto de dentro do bolso da calça.
— Não ouse ligar essa merda aqui dentro, Poseidon! — Hades ruge.
Poseidon dá um suspiro alto, mostra o charuto apagado e com gesto
dramático guarda-o outra vez no bolso, em seguida ergue as mãos se
rendendo.
— Tenho uma coisa para você — cochicho para ele, que ergue uma
sobrancelha.
Vou até uma caixinha de música que tem aqui no quarto das crianças
e retiro de lá o meu presente para Poseidon e lhe estendo.
— Desculpa a demora, eu queria ter entregado antes.
Ele olha chocado para a joia que lhe estendo.
— O medalhão! — diz, antes de pegar com todo cuidado do mundo.
— Sim, consegui uma barganha com as Fúrias.
— Eu… Eu nem sei como agradecer… eu… — ele se chega mais e
me abraça.
— Ei! — a voz de Hades é de advertência.
— Insuportável de chato, esse seu marido, Carolina. Um verdadeiro
xarope — Poseidon diz em voz alta, enquanto se afasta, para depois
sussurrar um "muito obrigado".
Nisso Atena entra falando em bom tom:
— Caronte já está achando que é o avô desses bebês! Falou tanto
deles durante a viagem de barco e em como ele tem o privilégio de ver os
herdeiros do Submundo, “todos os dias”, que agora fiquei com inveja. Então
estou me convidando para passar umas férias aqui… Oh, como são lindos!
— ela chega perto das crianças e após dar atenção a eles, cumprimenta todos
os outros que estão no aposento.
— Poseidon os acordou com a sua gargalhada espalhafatosa —
Hades entrega o outro, sem ninguém perguntar nada.
Atena ri baixinho.
Poseidon ergue as mãos de novo, como se rendendo, mas em seguida
o vejo mirar o medalhão, com olhar perdido.
— Poseidon, tem mais uma coisa… Minha mãe, íris, me ajudou em
uma questão e se você quiser… — eu o chamo e ele ergue uma sobrancelha
e eu termino de concluir: — Se você quiser, sabemos onde ela está e
podemos te ajudar.
Vejo o olhar dele se acender, a esperança iluminando tudo
— Ajudar o que? — Atena pergunta, enquanto chega perto de Hades
e pega Helena do colo dele.
— Ajudar o meu irmão aventureiro a encontrar a amada dele —
Hades diz simplesmente, como se não fosse um segredo.
Poseidon me olha querendo me matar.
— Ah, eu posso ajudar. Sou muito boa nisso — Atena comenta sem
modéstia, olhando para Helena em seus braços e não para mim, que estou
fazendo o gesto de "não, não" desesperadamente com a cabeça.
— É mesmo, deusa da estratégia? Você entende de romance
também? — Hades fala para ela, mas olha para mim, curioso.
— Claro! Ou Carolina não lhe contou de quem foi a ideia de fazê-la
pular para a morte naquele penhasco?
Fecho os olhos com força e escuto ao mesmo tempo Hades gritando
um "O QUÊ?!" e a gargalhada "espalhafatosa" de Poseidon.
Mas que bela família eu fui arrumar…
Família.
Minha família.
Nenhum perfeito, mas totalmente especiais para mim.
Quando eu abro os olhos outra vez, pouso o olhar em cada um deles.
Poseidon ainda olhando sonhadoramente para o medalhão, mas
quando nota que está sendo observado pisca um olho e me dá um sorriso
com covinhas.
Atena, inteligente, elegante, sorrindo para Helena, parecendo estar
alheia a tudo, pegando a menina desajeitadamente, como se ela fosse feita de
vidro.
Hades, me encarando intensamente.
— Minha Brisa? — Hades estranha minha atitude, pois meus olhos
estão marejados. — Você está bem?
— Sim, meu amor. Estou muito bem — digo sorrindo e sou
recompensada pelo seu sorriso lindo. Vejo as chamas lilases que brilham nos
seus cabelos e que aquecem meu coração, assim como sei, agora, que
aquecem o dele também.
Eu, Carolina Mattos, estou muito bem.

FIM.
Próximo livro da série
INESQUECÍVEL POSEIDON
Série deuses gregos livro II
[1] Como os antigos gregos definiriam o “inferno”.
[2] Como os antigos gregos definiriam o “paraíso”.
[3] pterugues= saiote grego, romano, espartano antigo feito de tiras de couro, algodão e reforçado
com metal. Era usado como uniforme de soldados e guerreiros.
[4] perizoma= tipo de cuecas que pareciam fraldas reforçadas de algodão (igual à do Spartacus)

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