Diagramação: Bruna Eloísa Revisão: Vitor Matheus Betagem: Ana Júlia Gomes, Bruna Eloísa, Isadora Sousa e Sofia Degan
Esta é uma obra literária de ficção. Todos os personagens, estabelecimentos
e acontecimentos retratados são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com pessoas e acontecimentos reais é mera coincidência. Todos os direitos são reservados à autora. São expressamente proibidas a distribuição ou reprodução de toda ou qualquer parte desta obra por qualquer forma, meio eletrônico ou mecânico sem a prévia permissão da autora. Plágio é crime! Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico. Aos meus pais, que me ensinaram o que é amor saudável. Não importa onde a gente esteja, ou que horas sejam, o mundo está no escuro e nós somos duas luzes piscando. Na mesma sintonia. Nenhuma das duas piscando sozinha. — Daisy Jones & The Six NOTA DA AUTORA 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 EPÍLOGO AGRADECIMENTOS Olá, nova elite de Eastland Coast! Estamos aqui para mais uma curta história envolvendo o incrível elenco de Bolfok Town, somado ao seu legado. É bom ver vocês por aqui de novo! No mais, vamos a alguns avisos.
1. Esse é um conto sobre o legado de Bolfok Town. Ou seja, também
há um livro sobre os pais dos protagonistas, que se chama Queen of Bolfok. No entanto, se você estiver interessado em ler apenas esse conto, não é um problema. 2. Neste conto, há palavras de baixo calão. 3. Neste conto, NÃO há cenas de sexo implícito nem explícito. Portanto, se você é alguém que não gosta desse tipo de cena, fique tranquilo. E se você é uma pessoa que só lê livros que tenham cenas eróticas, acredito que esse conto irá te frustrar. 4. Os personagens deste livro têm problemas reais e frustrações reais. Eles vão errar e acertar o tempo inteiro. 5. A autora que vos fala é totalmente contra discursos de ódio, de fomentação de preconceito e de romantização de abuso. 6. Sugiro que não se prendam muito ao fato de que a história se passa no futuro, porque são os filhos de Mackenzie, Thomas, Dominic e Nevaeh. Essa é uma história de ficção, criada como uma realidade hipotética de como seria o romance dos filhos deles.
Espero que vocês estejam prontos para mais corridas e passeios
noturnos! E sejam muito bem-vindos à Eastland Coast! — O que você está fazendo? — pergunto, invadindo o quarto dos meus pais sem aviso prévio. Meu pai está curvado sobre a cama, passando uma blusa rosa de gola alta com atenção. Seus fios loiros já se misturam aos grisalhos, e o rosto só permanece livre de barba porque Thomas insiste em se manter com aparência e vestimenta parecida de quando tinha trinta anos. — Estou passando a roupa da sua mãe para sairmos hoje. Você e eu sabemos que ela não é muito boa nisso — sussurra, como se confessasse um segredo. Sua tentativa em falar baixo tem a ver com a mulher que está há trinta minutos no banheiro, se arrumando. No entanto, se conheço bem a audição ótima de mamãe, tenho certeza que, daqui a alguns segundos, ela sairá do banheiro com o semblante consternado. — O que foi que você disse, Eckhoff? Minha mãe apoia o corpo no batente da porta, a mão pousada na cintura e o olhar fulminante na direção de papai. Eu não disse? Já estou acostumada com a dinâmica dos dois. É sempre a mesma complicação antes de sair. Eu me arrumo, fico pronta antes de todos e ainda sou obrigada a vê-los discutindo e se provocando como se os universitários sem juízo fossem eles. — Eu disse que você passa roupa como ninguém, minha rainha. — Thomas abre um largo sorriso para ela, e recebe um dedo médio em resposta. — Beleza, cansei de vocês — anuncio, girando sobre os pés para me distanciar do quarto. — Quando estiverem prontos, avisem. É difícil ser pontual em uma casa em que todos parecem desconhecer o relógio. Desisto de apressá-los, porque sei que isso só deixará minha mãe ainda mais mau-humorada. Hoje é a primeira sexta-feira do mês de fevereiro, o que significa que meus pais e os melhores amigos sairão em um programa em família. É como uma tradição da galera que se formou na Bolfok College. Eles vão ao Kart de Eastland Coast, meu pai escolhe um carrinho e minha mãe o outro, e seus amigos apostam em um dos dois. O apostador mais sortudo leva a bolada de dinheiro e consequentemente paga o jantar da noite. Não é sempre que eles fazem os filhos irem nesses programas, mas hoje é um desses dias que meu pai esquece que faz terapia e resolve tendenciar para o lado da chantagem emocional. — Filhinha, amorzinho do papai, não custa nada curtir com sua família linda em uma sexta-feira que o pai sabe que você passará lendo livros de terror. — Lembro de suas palavras, somadas ao bico que projetou com o beiço, nesta manhã nublada. Eu poderia bater o pé e argumentar para não ir, mas esse é um daqueles dias dos quais estou exausta até para contrariar alguém. A semana na faculdade foi cheia, e, se eu pudesse, furaria o pneu de, pelo menos, uns cinco professores estúpidos. Qual é, não se pode passar trabalhos quilométricos só porque tem um pós-doutorado. Entrei no curso de Engenharia Automotiva ano passado, na Ocean College, a faculdade mais cara do Condado de Eastlake. Sempre sonhei em estudar os processos tecnológicos e mecânicos de um automóvel, o que é engraçado pelo meu nome ser o mesmo que a marca de um carro. Ainda assim, a universidade consegue ser uma tortura quando quer. — Estamos prontos! — Meu pai anuncia, descendo as escadas com a mão entrelaçada na de minha mãe. Aliso meu vestido preto de gola alta e mangas longas, ajeitando a saia soltinha sobre a meia calça preta, da mesma cor do vestido. Arrasto o solado dos coturnos no chão ao arriscar alguns passos até a porta de saída, querendo saltar para fora de casa antes que meus pais enrolem mais. — Finalmente — resmungo, sentindo o ar gélido do inverno não mais tão rigoroso chocar contra meu rosto. — Aposto que todos já estão no Kart, esperando os corredores. — Na verdade — meu pai começa, erguendo a chave de seu Tesla Model Y —, vamos passar na casa do seu tio Dominic primeiro, porque o Kayin não está pronto. Abro os braços em uma pose contrariada, marchando para o banco de trás do carro alto. — É claro que ele não está — rosno, rangendo os dentes. — E o tio Lewis com o Andrew? — Foram reservar os karts para corrermos. — Dessa vez, minha mãe é quem responde, se ajeitando no banco do carona. Me remexo no banco traseiro, indignada. Kayin sempre se atrasa. Em todas as malditas reuniões familiares. Já estou mais do que acostumada a ter que esperar sua ilustre presença para começar a comer as ceias de todas as datas comemorativas. O que me deixa puta, é que, pela minha lógica, se ele tem problemas com pontualidade, ele é quem deveria sofrer as consequências. Mas não, claro que não. Nessa família, todos esperam por Kayin Hopkins. — Aston, seus resmungos são mais altos do que você pensa. — Meu pai profere, com um ar de riso sobressaindo no tom de voz. Eles também já estão acostumados com meu jeito resmungão. Faço inúmeras reclamações em minha mente, mas dificilmente sou silenciosa o bastante. Sempre acabo xingando, uma vez ou outra, em voz alta. O carro não demora a estacionar na calçada do prédio em que Dominic, Nevaeh e Kayin vivem. Admiro o motor silencioso do Tesla, inspirando o aroma de automóvel novo. Meu pai adquiriu esse bebê há menos de três semanas, e os outros carros já estão com ciúmes de seu favoritismo. O ronco da motocicleta do tio Dominic me acorda dos devaneios, me impulsionando a ajeitar a postura no banco traseiro. Não vou sair do carro. Se Kayin demorar mais um segundo, sou capaz de tomar o volante do meu pai e dirigir para longe daqui. Dominic continua tendo uma Harley-Davidson, só que o modelo agora é um Heritage Classic. Seu capacete é estampado por uma caveira com a língua para fora, e a de tia Nev tem uma coroa sobre a cabeça. Ambos já estão com o veículo embicado para sair, só aguardando Kayin. Como eles só têm motos, é comum que o Hopkins mais novo ocupe nosso banco de trás quando saímos em família. Na maioria das vezes, é irritante, pois o cara adora uma brincadeira sem graça de cutucar meu ombro e fingir que não foi ele. Eu gostaria bastante de dizer que o odeio, só que eu estaria mentindo. Houve uma época em que realmente repugnava a convivência com ele. Contudo, as coisas mudaram naquele dia em que aceitei ver um filme de suspense com ele no cinema, logo depois de ter levado um bolo de outro cara. Eu tinha dezesseis anos, e tudo bem que já faz três anos. Não acho mesmo que um dia eu seria capaz de esquecer a maciez terrivelmente incrível de seus lábios. Maldito foi o momento o qual decidi que seria uma boa ideia beijá- lo. — Fala, feiosinha — Kayin anuncia sua presença, ao me chamar pelo apelido ridículo que me deu no Halloween do ano passado. Eu e minha melhor amiga, Fizby, fomos a uma festa de fraternidade fantasiadas de Pet e Lily, personagens de um livro de suspense que amamos. Ninguém reconheceu as fantasias das calouras daquele ano, então, Kayin teve a brilhante ideia de nos apelidar de feinha e feiosinha. Nós somos as únicas mulheres na matéria de Cálculo Avançado II, e absolutamente todas as pessoas que conhecemos nos chamam de Feinha e Feiosinha. É ridículo, e devo isso a Kayin Hopkins. — Oi, bundão — respondo em um resmungo, desviando de sua tentativa de me cutucar. — Está atrasado, como sempre. — E você está me esperando, como sempre — rebate, um sorrisinho convencido repuxando em seus lábios cheios. Tio Dominic e tia Nev acenam de longe, acelerando com a moto até a Arena de Kart, deixando para mim e para meus pais o trabalho de ter que lidar com o temperamento infantil de seu filho. Reviro os olhos ao chegar para o lado, dando espaço para seu corpo atlético se espremer entre o teto e o assento. O Tesla é um carro bem espaçoso, tanto na frente quanto atrás, mas Kayin tem uma estrutura óssea tão grande e comprida que até uma caminhonete seria um tanto apertada para ele. Assim que meu pai dá partida com o carro, ele e minha mãe fazem questão de encher Kayin de questionamentos afetuosos acerca de sua faculdade e seu esporte favorito, que, curiosamente, não é tirar Aston Martin do sério. — A próxima competição é um dia antes do dia dos namorados. Vai ser como uma espécie de seleção para os próximos trinta atletas que participarão do Open Water, em Oroland County. — Kayin diz, contagiando meus pais com sua animação. — Então, deve ser bem importante, certo? — Minha mãe pergunta, se virando um pouco no banco do carona para grudar sua íris na dele. O Hopkins balança a cabeça em uma confirmação contida, e eu poderia jurar que o semblante que toma seu rosto beira ao nervosismo. — Resumidamente, há duas fases para chegar aos Jogos Olímpicos de Verão: o Open Water e o Campeonato Mundial de Esportes Aquáticos. Daqui a uma semana e dois dias, acontecerá a competição que seleciona os três melhores para participar do Open Water. — Kayin faz uma pausa, que pode servir como uma espécie de suspense. — Então, vai ser importante pra caralho. Não estou preocupada com nenhuma dessas competições. Nunca vi ninguém dominar o oceano como Kayin Hopkins faz quando está competindo. Ele é nadador de águas abertas. Um dos bons, senão o melhor que já vi nos últimos anos. O cara fica entre os três finalistas em todas as competições desde que tinha dezesseis anos. Vê-lo nervoso é até um pouco surpreendente. — Essa vaga para o Open Water já é sua, moleque — meu pai o tranquiliza, dando batidinhas encorajadoras no volante. — Concordo, querido — minha mãe acaricia o ombro de meu pai. — Você é o melhor. Kayin suspira pesadamente, o que me diz que as palavras dos meus pais não serviram de muito consolo. Ele está mais preocupado com essa competição do que imaginei, o que é muito estranho, considerando o fato de que só o vi preocupado duas vezes na vida: quando não foi aceito pela Ocean College em seu primeiro ano tentando e quando nos beijamos. Prefiro não pensar muito nesse último. Assim, evito que as memórias dessa época atormentem minha mente e despertem antigas inseguranças. — Vai ser uma das competições mais importantes que já enfrentei. Serão dez quilômetros nadando na Praia de St. Mary — diz, pausadamente. — Então, eu realmente gostaria que todos vocês estivessem lá. Meus pais confirmam sua presença sem hesitar, mas o que me surpreende mais é o jeito como Kayin me olha ao dizer isso. Há intensidade na íris castanha-escura, como longas faíscas atingindo um ponto perigoso no lado esquerdo do meu peito. Ele continua me observando, aguardando por uma resposta tão previsível. Eu não ousaria faltar. Vou em todas as suas competições desde que ele nadava na piscina. Ia acompanhada dos meus pais ou sozinha. Vê-lo nadar é um dos meus passatempos favoritos. Kayin faz arte em cada braçada. — Eu estarei lá — sussurro, porque ele é a única pessoa que precisa ouvir isso. A Kart Arena não é tão brilhante ou luxuosa quanto as pessoas pensam. Na verdade, as arquibancadas são feitas de concreto cinzento, as grades que circundam a pista são pretas e a única lanchonete do local tem o piso tão gorduroso que as solas dos sapatos demoram a se desgrudar do chão. No entanto, isso nunca foi um problema para meu pai e seus amigos. Tio Dominic e tio Andrew dizem que o local os faz lembrar dos bons tempos – imagino que dos lugares que frequentavam quando eram universitários. Às vezes, me pego com uma breve vontade de viver esse período como eles, com um pouco mais de adrenalina e emoção. Mas tudo que eu sei fazer é estudar com má vontade, ir a algumas festas com uma carranca no rosto e reclamar de absolutamente todas as dinâmicas estudantis. Tudo é uma grande bobagem para Aston Martin, a enorme chata que nunca se impressiona com nada. Honestamente, é até cansativo ser assim. — Tá bem legal aqui, né — ouço Kayin implicar com Irina, a filha de tio Lewis e tio Andrew. A adolescente de quinze anos desgruda os olhos do celular apenas para dar a língua a Kayin. Sua birra me faz soltar uma risada baixa, mas a incrível audição do Hopkins mais novo o faz pregar os olhos castanhos em mim. Odeio isso. A maneira com a qual ele consegue prender minha atenção tão facilmente. O aro castanho-escuro que envolve sua pupila consegue ficar mais claro ao ser refletido pela luz, e eu nunca fico entediada quando o olho. Simplesmente odeio isso, como esse homem pode parecer o mais interessante do mundo para mim. Ignorar essa merda tem ficado cada vez mais difícil. — Por que você me olha tanto, feiosinha? — Pergunta, me encarando com os cantos dos lábios erguidos. — Pra ver se, em algum momento, sua cara de otário se transforma em algo melhor — digo sem hesitar, e vejo que o sorriso dele se alarga. Minha mente grita que sou mentirosa. O ponto é que são três anos mentindo para todos e para mim mesma. Agora, estou tão acostumada a fingir que ainda odeio Kayin Hopkins que quase me sinto uma mentirosa profissional. Acabei ficando boa nisso. — Você é uma boa mentirosa, Aston Martin — diz, a língua umedecendo os malditos lábios cheios. — Mas não para mim, nunca para mim. A provocação me tira o ar. Então, sou obrigada a inspirar com força e desespero, a procura da segurança e do conforto que minhas mentiras me trazem. — Eu não minto. — Cruzo os braços na frente do corpo ao falar, tentando manter uma postura imponente. — Você acabou de mentir de novo — ele ri, dando um peteleco leve no meu ombro. — Fala sério, você mente o tempo todo. Não porque você é mau caráter, e sim porque você é medrosa. Ou covarde. O que te fizer dormir melhor à noite. Sua constatação tão sincera me deixa com raiva. Posso sentir toda a região do meu colo, minhas bochechas e minhas orelhas ficando quentes e vermelhas. Nada do que ele disse é mentira, e é justamente isso que me deixa contrariada. Como ele consegue ser tão verdadeiro o tempo todo? Kayin não tem medo do que sente? Ele não tem medo dos próprios pensamentos? Sua sinceridade inabalável me irrita, porque é tudo o que não consigo ser. Eu poderia confessar que odeio minha faculdade e que gosto muito mais de ficar na oficina com meu pai. Eu poderia confessar que odeio o clube de robótica do grêmio de engenharia. Eu poderia confessar que odeio festas universitárias, pois, independentemente da hora que você chega, tudo sempre está do mesmo jeito. Eu poderia confessar que nada me impressiona porque passei anos me treinando a ser imune a qualquer coisa que me deixasse vulnerável. Eu poderia confessar que eu não odeio Kayin Hopkins. Talvez, eu pudesse confessar que, na verdade, eu o amo. Contudo, eu sempre preferi guardar tudo para mim. Mentir significa menos risco de apostar meu coração em algo que pode fracassar e me machucar. Mentir é quase sempre uma opção melhor. — Você pode dizer a si mesmo que é o cara mais sincero que existe — me recomponho para rebatê-lo —, mas eu e você sabemos que você é um grande hipócrita. Porque se eu sou covarde, pode ter certeza que você também é. Sei que minhas palavras o fazem lembrar da noite do cinema e o que veio depois. Há três anos, nós experimentamos a melhor noite de nossas vidas. E depois, ambos embarcamos em carros com viagens marcadas para destinos completamente distintos. Não era para ser. — É, Aston, talvez eu tenha aprendido com você. — Kayin bufa exageradamente, limpando as mãos na calça preta com batidinhas irritantes antes de se levantar e se sentar distante de mim. Percebo um olhar atencioso de tio Lewis e ele se levanta discretamente para vir até mim. O Johnson coloca a palma sobre a tela do celular da filha, impedindo a visão da menina, que não demora a reclamar. Ele retira, dando uma gargalhada discreta, e beija o topo da cabeça dela. Se eu pudesse fazer um comparativo bobo entre os filhos deles, diria que Irina e Simon são os mais tranquilos. Mesmo na adolescência, ambos são educados, obedientes e disciplinados. Não de um jeito ruim, e sim como um resultado de uma criação saudável e cheia de parceria. Os gêmeos foram adotados quando tinham cinco anos. Eles têm a pele negra-clara, cabelos negros como a noite e olhos tão escuros quanto os cabelos. Irina tem os cachos mais abertos, os fios meio ondulados. As feições dela são sóbrias e sérias, na maior parte do tempo. Sua postura é tão estoica que chega a ser quase assustador. O nariz é largo, os lábios são volumosos, os ombros são planos e ossudos e ela mede quase um metro e oitenta. Meu pai fica zoando a menina ao dizer que o basquete a espera, mas Irina está quase iniciando sua carreira de modelo. Nem preciso dizer que ela se dá muito bem com a minha mãe e com a minha avó. Lidia Lennon já colocou Irina Johnson na maioria das campanhas que pôde, o que não me surpreende; o talento da garota é notável. Já Simon, embora seja tão alto quanto a irmã, tem os músculos definidos demais para alguém com a idade dele. Isso se dá por ser o quarterback do time da escola. Sua pele negra-clara é igual a da irmã, assim como o cabelo ondulado sempre desgrenhado, tão preto quanto os olhos profundos. Ele é mais risonho e brincalhão que Irina. Meus pais dizem que é como se Simon fosse uma versão de tio Lewis, e Irina, uma versão de tio Andrew. — Essa relação que você e Kayin cultivam não é cansativa? — Tio Lewis pergunta assim que se acomoda ao meu lado. Suspiro, sabendo que, com ele, vai ser ainda mais difícil mentir. Tio Lewis é grudado comigo desde que me entendo por gente. Até nas minhas fotos de quando eu era um bebê, estava sempre no colo dele. Cresci compartilhando meus desejos e minhas frustrações com esse cara. E quando ouvi Kayin desdenhar de mim um dia depois que nos beijamos, tio Lewis foi o primeiro para quem liguei aos prantos. — É, mas não há nada melhor para nós — despejo, sabendo que meu tom saiu esculpido em falso contentamento. — Você tem uma facilidade enorme em mentir para si mesma e, consequentemente, mentir para os outros. — Tio Lewis atesta o que, aparentemente, todo mundo já sabe. — Aston, querida, você sabe que pode conversar com o Kayin. Tenho certeza que ele tem algo a dizer sobre aquele dia. Vejo meus pais adentrarem seus karts com sorrisos grandes estampando os rostos. Eles colocam os capacetes e se direcionam ao ponto de partida. Sei que meus tios já fizeram suas apostas. Nevaeh e Lewis sempre apostam na minha mãe, e Dominic e Andrew no meu pai. Dessa vez, Simon e Kayin também apostaram. O primeiro em Thomas e o segundo em Mack. — É claro que tem — aceno em concordância. — Kayin sempre tem algo a dizer. Mas, dessa vez, eu não quero ouvir. Não há nada de muito incomum na minha aparência. Olhos azuis, cabelos curtos e loiro-escuros que clareio com camomila e tinta, lábios finos e nariz levemente empinado na ponta. Nunca tive grandes problemas de autoestima. Contudo, naquele dia, eu era uma adolescente de dezesseis anos em busca de validação. Ouvir aquilo de Kayin, sendo dito de um jeito tão desdenhoso a seus amigos, me deixou triste e insegura como nunca havia me sentido. Nós tínhamos nos beijado no dia anterior. Ele me levou ao cinema quando um garoto furou comigo, viu um dos filmes mais esperados do mundo do suspense, implicou comigo, discutiu a trama e o final dela, comeu da minha pipoca, e bebeu do meu refrigerante de caramelo. Naquela noite, ele me colocou na garupa da sua moto e eu me senti como uma adolescente de filmes de romance vivendo plenamente. Lembro de ter aberto os braços quando ele passou em frente à Mary Beach, a brisa marítima, o cheiro da maresia e as luzes da noite agitada deixando tudo mais bonito. Eu lembro de ter me agarrado a Kayin atrás dele, de sentir seu corpo pressionado ao meu e de me esquecer completamente de qualquer desavença que a gente tinha. Kayin não me levou só ao cinema. Ele me levou a um passeio noturno secreto. Ele me levou para ver o mundo. Ele me levou para a sensação da liberdade. Ele me levou para viver. E hoje, eu o odeio por isso. Eu o odeio por ter me feito me apaixonar por ele. Quando me desprendo das memórias daquela noite e volto à realidade, reparo em Kayin me olhando com atenção. Não sei ao certo quanto tempo ficamos assim, um encarando o outro. Centenas de palavras não ditas flutuando no espaço fresco e iluminado da arquibancada da Arena. Há dias em que eu me pergunto se ele me ama também. Se aquela noite teve alguma importância para ele, mesmo que mínima. Independentemente de tê-lo ouvido desdenhar de mim para os colegas, fico me questionando se eu senti tudo sozinha. Se, por algum instante, eu idealizei platonicamente. Kayin nunca gostou de mim? Kayin não sentiu nada? Kayin realmente me odeia? Nós costumávamos ser amigos quando tínhamos doze anos. Eu gostava da companhia dele, porque ele sempre foi uma criança que amava ficar sozinha. E, ainda assim, ele escolhia ficar comigo. Kayin preferia se enfiar no meu Aston Martin de brinquedo, me deixando levá-lo para os lugares reservados do Forte de St. Mary. A gente gostava de ficar sozinhos juntos. Só que, no dia dos namorados de quando tínhamos treze anos, as coisas mudaram. Kayin tinha um novo grupo de amigos, uma nova turma e novos assuntos que não tinham nada a ver comigo. Ele só queria saber de andar de bicicleta na praia, nadar no mar e fingir que era rebelde com seus colegas. Não tinha mais espaço para Aston. Ele se tornou um pré-adolescente que fingia não ter cérebro, sendo grosseiro comigo em todas as oportunidades. E, para revidar, passei a fingir tédio para tudo. Se nada impressionasse ou afetasse Aston Martin, ninguém nunca poderia machucá-la. Só Kayin Hopkins. De um jeito ou de outro, ele sempre consegue me machucar. — Eu odeio você — sibilo para ele, de onde estou. Meu pai ganhou a corrida no kart e todos estão gargalhando e comemorando, menos eu e Kayin. Nós estamos muito ocupados com a nossa troca de farpas. — Mentirosa — sibila de volta, abrindo um sorriso largo. Eu desço um degrau da arquibancada, chegando mais perto de Kayin, aproveitando que todos estão ocupados demais em comemorar a vitória do meu pai e rir pela carranca da minha mãe. Ela sempre foi uma péssima perdedora, todos sabem disso. Agora, há dois degraus nos separando, e ele continua com o corpo virado na minha direção. A atenção dele completamente pregada em mim. — Eu queria te odiar — confesso, sendo sincera com ele pela primeira vez em tempos. Os olhos escuros dele brilham ao refletir a luz provinda dos refletores da arena. Os cabelos crespos estão cortados rente a cabeça nas laterais e com mais volume em cima. O nariz largo, os lábios cheios e as covinhas em ambos os lados do rosto me fazem perder o fôlego. Duas argolinhas pratas pendem em cada uma das orelhas, o que só o deixa ainda mais bonito. A pele negra próxima ao marrom-escuro está coberta por uma blusa preta de mangas longas e gola alta, alguns cordões de cor prata envolvem seu pescoço, uma calça cinza de alfaiataria cobre suas pernas definidas e há um par de tênis brancos em seus pés. Kayin é vaidoso e gosta de falar sobre moda ou vestimenta, o que o aproxima ainda mais da minha mãe. Os dois sempre parecem estar a caminho de algum desfile famoso. — Eu não — responde, os dentes brancos e alinhados anunciando presença quando ele sorri. — Gosto de gostar de você. É impossível evitar, então eu acabei me acostumando. Você devia tentar. — Nossa, Aston — Fizby expira com um exagero desnecessário —, você fica pilhada com cada coisa. E daí que o Kayin disse que gosta de você? Não é como se fosse novidade. As últimas palavras de Kayin na sexta-feira não saíram da minha cabeça durante o fim de semana inteiro. Passei o sábado e o domingo enfiada no quarto, com a desculpa de focar no seminário que eu teria que apresentar com Fizby em alguns dias. No entanto, eu mais pensei na vida do que estudei. É por isso que não consegui evitar e expus todos os meus pensamentos para a minha melhor amiga, o que acho que não funcionou muito bem, já que ela parece não estar surpresa com o comportamento de Kayin. Acontece que é simplesmente estranho que ele diga, com tanta naturalidade, que gosta de mim. Há três anos, em uma segunda-feira como hoje, eu o ouvi dizendo a seus amigos que não gostaria de ter nada comigo porque eu não fazia o seu tipo. Parece bobo se importar tanto com isso, mas a gente tinha acabado de ter uma das melhores noites da minha vida. Porra, ele tinha me beijado apoiado na sua moto no Forte St. Mary, onde a gente mais gostava de ir juntos. Eu não sei muito bem o motivo pelo qual fiquei tão mal, mas Kayin era um cara que, no fundo, eu admirava. Mesmo que a gente brigasse o tempo todo e gritasse ofensas tolas um para o outro, eu o achava incrível. O Hopkins sempre foi íntegro, sincero, leal, atencioso, entendia minhas piadas mórbidas e sarcásticas e cuidava de mim como se eu fosse uma obra estimada de um pintor famoso. Quando a gente interagia na infância, ele era meu porto seguro. Então, eu até acho natural que, quando adolescente, eu buscasse tanta aprovação dele inconscientemente. Eu queria que ele me achasse interessante e bonita. Ouvi-lo dizer aquilo sobre mim rasgou uma parte do meu coração que demorou a se curar. Passei um bom tempo me achando desinteressante. Foi só no último ano do colegial e com orientação da minha mãe que entendi que o problema nunca esteve em mim. Depois disso, passei a ser ainda mais impenetrável e inabalável, o que é uma grande armadura contra aqueles que querem, de algum jeito, me magoar. — É novidade, droga — rebato, aproximando as pálpebras por estar incomodada com a claridade excessiva. — Você sabe do nosso histórico. O ambiente dessa faculdade me deixa com dor no estômago. A estrutura é feita com os pilares comuns da Grécia Antiga, como uma espécie de reprodução do Olimpo. Há granitos e mármores demais em todos os cantos. Tudo é extremamente limpo, cheio de esculturas, com decoração extravagante e luxuosa. Há outra faculdade em Eastland Coast, que não está na Ivy League como a minha, mas é bem renomada. A Mary Lodge University fica localizada no alto da cidade, com uma vista bonita para o mar e tem uma decoração um pouco mais moderna, abusando de paredes de vidro e tecnologia de última geração. No entanto, a escola em que cursei o colegial fazia uma pressão enorme em todos os alunos a escolherem a Ocean, o que me trouxe até aqui. — É justamente por saber do histórico de vocês que não é novidade o fato de Kayin gostar de você. — Fizzy espalma ambas as mãos no tampo da mesa do jardim externo da faculdade. — Aquela conversa que ouviu há anos não estava completa, você é quem não quis ouvir o resto. Não consigo processar que um homem, em uma noite, diz que estar com você sempre foi como o paraíso, e no outro dia, fala que essa mesma mulher não faz o tipo dele. Rolo os olhos, nada surpresa com o jeito otimista dela. Fizby Davis acredita demais na bondade dos indivíduos. Ela sempre acha que casos como esses são grandes mal entendidos. Mas eu sei bem o que eu ouvi naquele dia. — Não processe, mas foi o que aconteceu. — Dou de ombros, erguendo o queixo em uma pose firme. Fizzy ergue a mão sobre a mesa e empurra minha cabeça de leve. — Você é uma mula teimosa — Fizby resmunga e eu ergo o dedo médio em sua direção. Rapidamente, seu semblante muda de um com desgosto para um cheio de expectativa. Ela encara algum ponto atrás de mim com atenção, e posso identificar um sorrisinho malicioso ameaçando cruzar seu rosto anguloso. Antes que eu mude de posição para me virar, ouço uma voz conhecida até demais soar atrás de mim: — Feinha e Feiosinha, que prazer cruzar com vocês. — Kayin cantarola, adentrando meu campo de visão. Ele veste uma blusa branca de algodão por baixo do moletom College, da equipe de esportes aquáticos da faculdade. O casaco é azul- escuro com mangas brancas, e há o símbolo do mascote deles bordado sobre o peito. Pelo que sei, o Megalodon foi o maior tubarão que já existiu, sendo um predador feroz dos oceanos da pré-história. Eu nem preciso ver, porque já olhei vezes até demais para saber que há o nome dele bordado na parte de trás do casaco. Uma calça cáqui dobrada na altura dos tornozelos compõe a parte de baixo e há o mesmo par de tênis extremamente limpo nos pés. Aperto os olhos com força, enviando um comando ao cérebro para parar de secá-lo. — O que você quer aqui, Hopkins? — Questiono, fingindo o mesmo desdém e tédio de sempre. Kayin não se afeta com meu semblante, porque pula o banco com uma facilidade extrema e se senta ao meu lado. Com um aceno de mão, ele chama alguém, e seu melhor amigo adentra meu campo de visão. Bufo exageradamente e abano a mão para Anthony, para que seu amigo saiba que meu problema não é com ele. — Vi as duas senhoritas sozinhas aqui e imaginei que gostariam da nossa brilhante companhia — ele sorri, como se o dia estivesse ensolarado e não cinzento e melancólico. — Achou errado, cara. — Afasto meu corpo do seu ao me arrastar pelo banco. — A gente não quer. Kayin abre a boca, prestes a soltar mais uma merda. Porém, seu amigo resolve nos salvar de mais uma opinião inconveniente, se adiantando. — Fui eu que vi vocês aqui e dei a ideia de nos sentarmos todos juntos. — Anthony diz baixinho, quase como se estivesse com medo da minha reação. — Acabamos de ver um anúncio hilário do grêmio estudantil e queríamos compartilhar. Nós não somos exatamente um grupo de amigos, até porque, se fosse assim, eu e Kayin já teríamos nos engalfinhado. No entanto, como nem eu e Fizby e nem eles dois têm um grande círculo de amizade, acabamos nos juntando em algumas atividades da faculdade ou em dias que queremos falar mal das mesmas pessoas que desgostamos. Eles não fazem questão de sentar com os atletas das águas e nós queremos distância da galera dos grupos de pesquisa que participamos. Às vezes, acabamos unindo o útil ao agradável. — Você até pode se aproximar, ao contrário do outro otário ali. — Fizby belisca o ombro de Tony de leve, e ele bufa e cora ao mesmo tempo. Não entendo muito bem a relação que ambos cultivam, já que Anthony é tímido, reservado e até um tanto ranzinza. No entanto, com a minha amiga, ele parece se esforçar para ser um pé no saco. E óbvio que Fizby não alivia. Eles vivem se alfinetando. Kayin ergue o dedo médio para ela, e os dois dão língua um ao outro como duas crianças da quinta série. Quando estamos juntos, temos esse tipo de comportamento com frequência. — Fecha a boca suja, Feinha. Esse apelido não combina em nada com Fizby Ann Davis. Minha amiga tem o queixo e mandíbula bem definidos, rosto simétrico, nariz largo, cabelos cacheados, lábios cheios e bem delineados, e sobrancelhas desenhadas. Sua pele negra-clara é sedosa e não expõe nenhum tipo de marca ou erupção. Os olhos são em um tom de castanho-escuro brilhante e ela é quase tão alta e esguia quanto Irina Johnson. Contudo, dentre todas as qualidades em sua aparência, não é nenhuma delas que chama tanta atenção. Fizby consegue ser amiga da faculdade inteira se quiser. Ela é extrovertida, quase sempre bem humorada, gosta de socializar e de estar em festas com certa frequência. É capaz de conversar sobre qualquer assunto e é absurdamente inteligente e determinada. Quando Fizby Davis quer algo, ela vai lá e pega, com toda a sua coragem. Eu tenho uma teoria de que ela enfeitiçou Anthony Ward com seu jeitinho especial. Ele é atleta de Polo Aquático e é conhecido pela faculdade como um dos únicos bolsistas, porque a Ocean College só concede bolsas integrais de esporte. — Anthony — Fizby o chama com a voz falsamente macia —, não deixe que Kayin abra a boca mais uma vez. Conte logo sobre o mais novo anúncio do grêmio. — Ah — ele pigarreia, parecendo se lembrar que tinha algo a dizer. — Então, o dia dos namorados é daqui a exatamente uma semana. E, nesse ano, eles resolveram organizar o que estão chamando de matches às cegas. Anthony e Kayin começam a gargalhar, sem nos explicar do que se trata a dinâmica. Os dentes alinhados do Hopkins parecem brilhar ao serem expostos pelos lábios volumosos, assim como suas covinhas aparecem. Pequenas ruguinhas aparecem perto dos olhos e o nariz se franze, de tanto que ele está rindo. Anthony já tem uma risada mais discreta. Os cabelos ondulados remexem quando ele tomba a cabeça um pouco para trás, e seus dentes não são tão alinhados quanto os de Kayin, mas são igualmente charmosos. Seus lábios são finos, os olhos são castanho-escuros e o nariz é um tanto pontudo. Ele não chama a mesma atenção que o Hopkins, porém, sempre vejo algumas meninas querendo sua atenção. — Esse negócio vai funcionar como um aplicativo de encontros, sem a parte da tecnologia. Pelo que eu sei, os alunos que se interessarem vão preencher uma ficha de cadastramento, com as respostas para algumas perguntas aleatórias. Então, a equipe voluntária da dinâmica vai associar os pares dos questionários cujas respostas tenham algum tipo de semelhança. — Anthony explica de seu jeito didático. — Basicamente, eles vão selecionar casais que tenham química, baseado nas respostas das perguntas e na orientação sexual dos participantes. A partir disso, serão organizados encontros às cegas, com base nesses matches. — Tá brincando, né? — Olho-o com descrença, minha habitual expressão de tédio e desdém assumindo o rosto. — Não pode ser. Ainda há vestígios de risos dos dois pairando sobre a mesa. No entanto, Fizby cruza os dedos finos sobre o tampo, com um semblante que anuncia que ela irá nos contrariar. — Na verdade, eu achei a ideia bem legal — ela solta, sorrindo largo para todos nós. — Pode ser divertido. Deveríamos nos inscrever, inclusive. Encaro-a com a perplexidade brilhando no olhar. Honestamente, eu nem deveria estar surpresa. É a cara de Fizby se interessar por uma coisa dessas. — Não pira, Feinha. — Kayin intercede por todos nós. — Ninguém daqui vai participar de um negócio sem noção desses. Fizzy arqueia ambas as sobrancelhas, olhando-o com o que reconheço ser desafio. Agora, sim, nós temos um problema. — Fale por você, babaca da natação. — Fizby empurra os ombros e o queixo para cima. — Eu vou participar. Anthony e Kayin a encaram um tanto sobressaltados, visto que os dois odiaram a ideia da dinâmica. O Hopkins parece prestes a ter uma síncope, provavelmente achando tudo isso o cúmulo do ridículo. A expressão que toma seu rosto é tão satisfatória, porque ele sempre parece saber exatamente como todos à sua volta vão reagir, como se a maioria das pessoas fosse previsível. E é exatamente pelo gostinho de vê-lo tão surpreso que tomo uma ideia impulsiva e ordinariamente tola. — Eu também vou participar — despejo sem hesitar, tombando levemente a cabeça para o lado ao encará-lo com um semblante dotado de superioridade. O queixo de Kayin despenca um pouquinho, e o prazer em ver seus olhos arregalados é inenarrável. Admiro as sobrancelhas levantadas, as pálpebras quase sumidas e os lábios entreabertos. Por essa, ele realmente não esperava. Sou uma universitária que tem aversão a tudo que tem a ver com faculdade. Ou seja, sempre evito participar de tudo aqui na Ocean College. Por isso, é surpreendente que eu esteja tão confiante em participar, pela primeira vez, de uma dinâmica criada pelos mauricinhos do grêmio estudantil. — Você? Aston Martin Eckhoff-Lennon? — Kayin diz meu nome todo só para me irritar. — Conhece alguma outra? — Questiono, o canto dos lábios um tanto erguidos em um meio sorriso de desafio. Kayin vira o corpo, conectando nossos olhares. Quase posso sentir sua respiração batendo em meu pescoço coberto apenas por um moletom canguru da Bolfok College. Peguei da minha mãe há um tempo, pois ele é extremamente confortável e a cor vinho consegue ser bonita mesmo estando um tanto desbotada. — Tão perspicaz e genial quanto você? — Pergunta, me encarando com um brilho desconhecido no olhar. — Absolutamente não. Suas palavras ditas com tanta naturalidade me fazem perder o fôlego e ninguém na mesa parece tão surpreso quanto eu. Anthony tem um sorrisinho malicioso decorando o rosto e Fizby me encara com uma das sobrancelhas arqueadas, como se me desafiasse a contrariar seu posicionamento a respeito dos sentimentos de Kayin. — Não enche, Hopkins — disfarço, tentando não parecer afetada. — Eu também te adoro, Feiosinha. Por uns instantes, penso em confrontá-lo. Quero, desesperadamente, saber por que seu comportamento mudou comigo. Kayin nunca foi de flertar tão descaradamente. Mesmo que ele exponha seus pensamentos sem medo de ser terrivelmente sincero, essas palavras de afeto não são direcionadas a mim há um bom tempo. Algo mudou. E uma sensação nova se apodera do meu corpo. É como uma intuição. Uma aposta ordinária de que as coisas vão mudar nos próximos dias. A ficha que preenchi para participar da dinâmica de Dia dos Namorados tinha um total de cinco páginas. Era uma extensão quilométrica de algumas perguntas pertinentes e outras extremamente aleatórias. Em uma delas, lembro de responder qual o timbre do meu tom de voz. Sinceramente, achei uma baboseira sem fim. No entanto, fui impulsiva ao decidir participar apenas para confrontar Kayin, e não costumo voltar atrás nas minhas decisões. Antes de irromper pela porta da frente, já escuto uma música alta ultrapassando os janelões de vidro. As cortinas da casa estão fechadas. Então, só consigo enxergar duas sombras rodopiando pela sala de estar. Sei que são meus pais; é algo que eu totalmente esperaria dos dois. Ambos parecem estar vivenciando um romance épico que nunca terá fim. — Se me pegar assim de novo, você vai se ver comigo — escuto a voz da minha mãe assim que ultrapasso a soleira da porta. Meu pai não a escuta, porque a pega pela cintura e gira seu corpo esguio umas três vezes. Minha mãe desenvolveu algo como labirintite depois da menopausa precoce, por isso, sei que está contrariada por estar sendo rodopiada tantas vezes. Ela faz tratamento, mas é mais sensível que o normal a movimentos giratórios ou conturbados. — Você é a mulher da minha vida, sabia? — Meu pai consegue desarmá-la com uma simples pergunta, me fazendo sorrir ao observar a interação dos dois. Está tocando Uptown Girl do Billy Joel, e ambos estão dançando como adolescentes no auge de sua paixão. Às vezes, eles brigam por motivos bobos e meu pai sai de casa para dar uma volta em algum dos seus carros; geralmente, esses são os dias mais difíceis. Porém, na maioria deles, meus pais estão assim: se encarando com ternura e exalando amor do mais puro e genuíno. — Uma hora dessas e vocês já estão espalhando doses altas de glicose pela casa — comento, andando pela sala, espalhando meu tom de falso desdém. Eles não se sentem afetados pela minha presença, porque não interrompem os passos e nem ao menos abaixam o volume da música. — Você me parece uma jovem amargurada. — Meu pai provoca, enquanto balança o corpo da minha mãe de um lado para o outro. — Kayin puxou seu cabelo na escola? A provocação faz minha mãe rir alto. — Engraçadinhos — resmungo, batendo os pés ao passar por eles. — Aliás, o que os dois fazem em casa às três da tarde? Meu pai costuma chegar da oficina perto das oito horas da noite e minha mãe só diminuiu a carga de trabalho nas últimas semanas, porque antes chegava em casa por volta das onze da noite. — A luz do escritório acabou e o gerador não funcionava por nada — minha mãe junta as mãos, como se agradecesse a alguma divindade pelo presente. — Liguei para o seu pai para avisá-lo e ele resolveu deixar a oficina com o chefe de operações. Meu pai mexe com carros desde que se entende por gente. Quando era mais jovem, participava de corridas em pistas clandestinas. Aos 19 anos, ele conseguiu abrir uma pequena oficina enquanto fazia faculdade de química. Depois que se formou, o negócio só cresceu. Hoje, ele coordena uma equipe enorme em várias oficinas espalhadas pela Costa Leste. — Imagino que vão fazer algo bem romântico e açucarado juntos — implico, fazendo barulhinhos irritantes de beijos. Minha mãe me olha com as duas sobrancelhas arqueadas, a espessa quantidade de fios marrons lembrando as minhas. Mackenzie cruza os braços na frente do corpo, em uma postura que provavelmente intimida quem estiver contra ela nos tribunais. Não sei ao certo em que linha atua no âmbito da advocacia, mas é nítido o quanto ama o que faz. — Na verdade, nós vamos, senhorita Aston Martin — ela junta os fios soltos do rabo de cavalo e me olha em desafio. — Até estávamos pensando em um jantar à luz de velas, aqui em casa mesmo. Sei que é uma provocação. Pode não parecer normal, mas neste lar familiar, eu sou desafiada desde a infância. Era uma brincadeira constante desvendar enigmas e jogos de mistério, assim como ela sempre fez questão de me apresentar situações com saídas difíceis para que eu me virasse ao resolvê-las. Acho que é por isso que gosto tanto de livros de suspense. — Ah, sério? — Pergunto, o lábio superior erguido em uma sutil careta de desdém. — Bom, fiquem à vontade, estou indo dormir na Fizby. Estremeço, sem querer pensar muito na imagem dos dois trocando tanto afeto. Meus pais costumam ser discretos e respeitam muito a minha presença. Não preciso sair de casa com frequência para deixar o espaço livre para os dois liberarem seus feromônios. Contudo, eu tenho 19 anos e possuo noção das coisas. Suas rotinas abarrotadas quase não os dão liberdade para se dedicarem ao casamento. É um prazer dormir na Fizzy e deixá-los confortáveis. — Você não precisa ir dormir na Fizby se não quiser, minha vida. — Meu pai diz com a voz branda, quase em uma carícia. — Eu e sua mãe podemos ir para um restaurante. Levanto o indicador, negando com o dedo. — Sem problemas — tranquilizo-o. — Eu adoro dormir lá. A casa de Fizby é três vezes maior que a minha, e a residência dos Eckhoff-Lennon já é grande. A questão é que meus pais são reservados quanto à nossa moradia; depois que puderam dispensar a babá, nunca contrataram nem uma empregada. Meu pai diz que aqui é o nosso lar, e que deveria ser prazeroso cuidar dele. Nem preciso dizer que minha mãe odiou essa ideia. Até hoje ela se recusa a lavar o banheiro. Enquanto isso, na casa de Fizby, tem uma equipe de funcionários para cuidar da mansão e um chef de cozinha que prepara o cardápio do dia. — É claro que você adora — diz meu pai, em um tom provocativo. — Eles adoram uma ostentação. Antes que eu possa rebater, minha mãe solta um grunhido irritado. — Eles não ostentam, vivem pensando na própria qualidade de vida. Eu que sou otária e casei com um cara que adora cuidar do lar — cospe, fazendo meu pai encará-la com diversão brilhando na íris azul. — Agora, eu descasco o esmalte limpando os móveis e vou ao escritório vestida com trapos. Guincho ao rir alto, sendo acompanhada pela gargalhada escandalosa de Thomas. — Trapos? — Questiono, uma das sobrancelhas levantadas. — O cara que fundou a Prada ficaria ofendido com isso. Minha mãe e Fizby são as duas mulheres mais bem vestidas e elegantes que conheço. Não só pelas roupas de alta costura, e sim pela postura que adotam ao usar alguma peça de vestuário. As duas ficariam estilosas até dentro de um saco de lixo. — Mário Prada está amaldiçoando seu pai por me fazer ir ao escritório com uma jaqueta de seda técnica mal passada — ela bufa exageradamente, nos fazendo rir. — Coloca um pano de algodão cru entre o ferro e a sua roupa de seda, assim, não afeta o brilho e nem desbota a cor — digo, com uma pose de sabedoria. — Viu? Até eu sei disso. Minha mãe entreabre a boca, parecendo surpresa com a informação. — Como você sabe? — Ela escuta o pai dela — Thomas provoca, trocando risadas comigo. Em alguns momentos, nossa cumplicidade a irrita um pouco. Em geral, é quando armamos um pequeno complô para irritá-la. — Babacas — minha mãe resmunga, nos fazendo rir ainda mais. — Ei, ele não mentiu. — Saio em defesa dele. — Meu pai passa roupa muito bem e, quando estamos perto, sempre dá dicas. Essa é uma delas. Subo mais dois degraus, ansiando poder tomar banho, trocar de roupa e arrumar uma pequena bolsa para levar para a casa de Fizzy. Nem a contatei para saber se ela está disponível. No entanto, duvido que esteja fora de casa em plena segunda-feira. — Nunca ouvi essa dica — minha mãe rebate, parecendo meio contrariada. — Isso é porque você, minha bela esposa, tem uma mania incrível de sempre achar que tudo o que está fazendo é correto, ignorando a ajuda alheia. Dessa vez, ela o dá um pescotapa. O gesto me faz gargalhar e apontar o dedo indicador em riste na direção dele, sibilando um “se ferrou”. Meu pai põe a língua para fora, em uma careta infantil. Ignoro a implicância dos dois, com um sorriso no rosto, e subo as escadas em direção ao meu quarto. De banho tomado, vestindo roupas confortáveis e com a bolsa de viagem pronta, recebo a resposta de Fizzy. Fizzy Davis: droga, amiga, vou ter que te deixar na mão. Minha tia mais próxima está na cidade e vamos passar o resto do dia juntas. Inclusive, nem estou em casa. Me deparo com uma foto de Fizzy deitada, de roupão felpudo branco, com uma tiara grossa afastando os cachos da testa e uma máscara facial cobrindo o rosto. Ao seu lado, há uma mulher negra, de pele mais escura que a da minha amiga, igualmente deitada, com a mesma vestimenta e máscara de tratamento. Fizzy Davis: estamos no spa! Solto uma risada contida, sabendo que um spa em plena segunda- feira é a cara dela. Tenho certeza de que Fizby está fingindo que nosso seminário não existe. Envio uma resposta amena, desejando um bom dia de relaxamento. Sem nem esperar outra mensagem dela, corro os dedos nas teclas, buscando refúgio em tio Lewis. Lewis Johnson: Sim, você pode vir, com toda certeza desse mundo. Te deixarei cuidando dos adolescentes por uma noite e vou aproveitar com meu marido, só para avisar. Quase não temos dias livres para isso. Sorrio com a mensagem, encantada com o fato de que todas essas pessoas – meus pais, os pais de Kayin, tio Lewis e tio Andrew – se conheceram na época da faculdade e acabaram formando uma família. Com um suspiro conformado, agarro a alça da bolsa e rumo em direção a uma noite que imploro ao universo para não ser tão agitada. — O que você tá fazendo aqui? — Pergunto, de braços cruzados no meio da sala de tio Lewis, olhando para um Kayin de cabelos úmidos. Ainda há roupas de ginástica cobrindo seu corpo, deixando os braços musculosos livres. Ele está sentado no sofá com as pernas cruzadas sobre o estofado, ao lado de Simon, jogando uma partida de videogame. Pelo que posso ver, é um jogo de Fórmula 1. — Sai da frente, Aston, você vai me fazer perder — grita Simon, se contorcendo para enxergar a televisão atrás de mim. Bufo pesadamente, saindo a passos pesados até a cozinha, onde Lewis e Andrew tomam um suco em uma tranquilidade de quem não armou isso. — Não esperneia, Aston Martin — tio Andrew avisa, sorvendo um gole de água. O canto de seu lábio volumoso está contraído em um sorriso contido, a pele preta coberta por uma blusa social branca e uma calça de alfaiataria bege. Seus cabelos crespos estão um pouco maiores e o nariz largo está franzido pelo vestígio de sorriso. Tio Lewis fecha a geladeira e posso ver os dentes alinhados expostos em uma risada baixa. Seus cabelos loiros estão com fios brancos, pequenas ruguinhas se agarram no canto dos olhos marrons e o queixo quadrado se move um pouco para o lado. A pele branca está tampada parcialmente, por calça de risca de giz e blusa social preta. Os dois estão prontos para sair. — Por que vocês o chamaram? — Questiono, indicando Kayin com um movimentar de cabeça. — Quando me mandou mensagem, já tínhamos pedido que ele olhasse Simon e Irina por uma noite. — Lewis dá de ombros. — Sei que os dois são adolescentes e podem dormir sozinhos tranquilamente, mas Simon está em uma fase naquele time de futebol que não duvido que enchesse a cobertura com seus colegas da escola. Contraio os lábios para não rir de seu semblante desgostoso. — Pensei que eles fossem disciplinados e educados — confesso, arqueando ambas as sobrancelhas. — Só quando eles querem. — Andrew responde, revirando os olhos. Penso em mim e em Kayin passando uma noite juntos e, em todas as perspectivas, nós terminamos nos engalfinhando. Em uma série de amassos ou de tapas; afinal, nunca sei o que esperar das nossas provocações. — Então, nem cogitaram em me avisar que ele estaria aqui também — concluo, suspirando exageradamente. — Você dormiria no Forte de St. Mary, mas não viria para cá. — Lewis contorna a ilha da cozinha, vindo até mim. — Te conheço, pequena. Ele beija o topo da minha cabeça e bagunça meus cabelos em uma implicância que me faz empurrá-lo com o ombro. Adentro a sala de estar, sendo acompanhada por ambos. — Nós estamos indo — anuncia Andrew, mas Kayin e Simon estão concentrados demais na corrida. — Avisem Irina por mim. Não nos esperem para dormir. Lewis beija o topo da cabeça de Kayin e de Simon, e os dois desviam em nome do jogo. Quase solto uma risada ao vê-los tão compenetrados, mas me lembro de que devo manter a guarda levantada para me proteger. — Tchau, pais! — Simon grita, os olhando de esguelha por segundos tão breves que só percebo por estar encarando. Assim que ouço a porta da frente bater em um baque surdo, sigo pelas escadas até o quarto de Irina. Dou leves toques na porta branca e ouço um comando permitindo minha entrada. Irina está com as pernas longas jogadas sobre a escrivaninha, ao passo que o rosto está enfiado em um livro grosso. — Só vim avisar que seus pais saíram, mas Kayin e eu ficaremos para dormir — digo, o rosto apoiado no batente da porta. O quarto dela é todo lilás e branco. Há um tapete felpudo no chão, cama com dossel de uma princesa em um castelo e alguns pedaços das revistas que já estampou colados pelas paredes. Avisto a porta do closet, sabendo que a menina tem uma coleção enorme de roupas, pois ganha muitas pelos trabalhos que faz como modelo. — Tudo bem — concorda, sem tirar os olhos do livro. — Amanhã tenho teste de Química Orgânica, então vou ficar estudando até tarde e depois vou dormir. Assinto, ainda admirando seu quarto. Lembro exatamente do momento em que Irina e Simon chegaram na nossa família, ambos com cinco anos, tão quietos e reservados que, naquele momento, nunca cogitei que os dois cresceriam sendo tão extrovertidos e autênticos. — Você já jantou? Irina afirma sem me dar muita atenção. É quando sei que está tão concentrada em algo que não quer ser atrapalhada. — Se precisar de algo, é só chamar. É a última coisa que digo antes de fechar a porta de seu quarto e seguir para o terraço. A cobertura de tio Lewis e tio Andrew é majestosa e tem o espaço bem dividido entre sala de estar, cozinha separada por uma bancada de granito, quatro bancos altos, cinco quartos com suítes e uma visão incrível da Praia de St. Mary. A decoração é moderna e requintada, o que é característico do gosto de tio Andrew. Ele é diretor de marketing de uma multinacional e o tio Lewis aproveita de sua carreira de quarterback aposentado. Só o vejo fazendo campanhas para marcas famosas e ensinando futebol americano no lar adotivo de onde Kayin, Simon e Irina vieram. A ideia de Lewis Johnson é captar crianças talentosas e prover a elas uma chance, apenas uma oportunidade de crescer com infraestrutura para chegar nos times grandes. Gosto do que eles fazem com o dinheiro deles. — Quando a gente tinha oito anos — escuto a voz profunda de Kayin em algum lugar atrás de mim. Não me viro, permaneço de frente para a vista da Orla da cidade —, eu lembro que o tio Thomas quase infartou quando te viu pendurada no parapeito daqui. Você estava em cima de uma espreguiçadeira, com metade do corpo para o lado de fora. Depois que ele te tirou dali e te deixou em segurança, sua mãe perguntou o que tanto te interessou lá fora. Você disse: a vista. “Você falou que nunca tinha visto nada tão bonito. E acho que, naquele momento, concordei contigo. Os prédios modernos em contraste com a natureza pura, as ondas quebrando lá embaixo, as pessoas andando de um lado para o outro na calçada, adolescentes sobre seus skates, e as palmeiras chacoalhando com o vento. Aqui, definitivamente, é o meu lugar favorito da casa. Nunca me importei de dividir com você. Na verdade, eu sempre gostei da ideia de ter algo meu e seu, nem que fosse um singelo lugar favorito na casa dos nossos tios.” Meu coração expande no peito quando ouço essas palavras. É como se Kayin tentasse reparar algum erro. Ele parece tão disposto a me fazer enxergar algo, a me deixar entrar. Porém, eu ainda me sinto receosa. Tenho medo de deixar que ele me tome, para, logo depois, decidir que não precisa mais de mim. — Kayin... — chamo em um tom de aviso, ainda sem grudar meus olhos nos seus. Ouço seus passos atrás de mim, e sei que ele está se aproximando. Consigo sentir seu aroma que traz o frescor da menta e a liberdade da maresia. Parece que o espaço entre nós começa a se comprimir, nos empurrando para perto um do outro. — Aston — seu sussurro se choca com a minha nuca descoberta por causa do cabelo curtinho. Sinto um arrepio começar do dedão do pé e terminar no topo da cabeça. É algo sobre a profundidade e rouquidão da voz que me traz sensação de paz, conforto e segurança. Quando Kayin me envolve em sua espiral de sensações inebriantes, me sinto em casa. Um vento mais forte me impulsiona a girar sobre os calcanhares e conectar nossa íris. Não sei se é uma boa ou má ideia. Agora, azul encontra castanho, tão escuros que as luzes dos prédios estão refletidas em pontinhos brilhantes em seus olhos. Admiro os cílios longos e grossos, a sobrancelha espessa, as maçãs do rosto elevadas, os lábios cheios contraídos o bastante para suas covinhas aparecerem, o nariz largo e as argolinhas nas orelhas. Céus, como ele é obscenamente lindo. — Kayin — chamo, sem saber muito o que falar. — Feiosinha — rebate, o tom brincalhão só tornando o ar mais rarefeito. — A gente tem a noite inteira pela frente, o que me deixa um tanto apreensivo, porque eu ainda me lembro que você amava escapar para a minha cama quando éramos pequenos. Algo no jeito como fala faz as memórias da nossa infância infestarem minha mente. As histórias de terror que ele me contava no escuro, os segredos compartilhados em meio à penumbra do seu quarto infantil e os cobertores quentinhos que nossos pais jogavam sobre a gente. Mas, depois, sou despertada por um balde de água fria. Suas palavras naquele dia na escola, me recordando de uma sensação que nunca mais quero provar. — Não fique apreensivo. — Cruzo os braços na frente do corpo, o queixo empinado na pose inabalável de sempre. — Estamos aqui com o único objetivo de cuidar da casa e olhar dois adolescentes. Nada além disso. Boa noite, Kayin. Enquanto ando até as portas francesas que dão acesso ao interior da casa, sinto meu estômago afundar. Contudo, prefiro ignorá-lo. Não ceder significa me preservar. A vulnerabilidade não combina mais comigo. Viro de um lado para o outro na cama do quarto de hóspede, amarrotando o lençol macio sob mim. Aperto as pálpebras com força, implorando silenciosamente para que eu consiga dormir o mais rápido possível. Encaro o relógio de cabeceira, marcando às três da madrugada. Inspiro e exalo com lentidão, perdendo a paciência em ficar na cama por horas sem conseguir pegar no sono. Em segundos, me levanto, pulando da cama em um salto. Calço pantufas quentinhas e caminho em direção a cozinha, esperando encontrar algum chá de camomila disponível. Kayin Hopkins não tira meu sono há tempos. Contudo, ter a noção de que, esta noite, ele dorme no quarto ao lado consegue me deixar mais agitada do que o normal. Seus flertes naturais e sua sinceridade comum são fatores que contribuem para incrustá-lo a todas as nuances da minha mente. Abro e fecho alguns armários, encontrando a camomila em um potinho. Ponho a água para ferver e me sento em uma das banquetas da ilha da cozinha. Apoio o queixo na mão, permitindo que meus pensamentos viagem até o momento que tivemos na cobertura mais cedo. Lembro do seu aroma, da sensação de tê-lo tão perto e do meu coração expandindo no peito ao ouvir que ele também lembra da nossa infância com carinho. — Insônia? — Escuto sua voz grave atrás de mim e salto sobre a banqueta. É como se eu o tivesse invocado ao pensar demais nele. — Sim — murmuro, colocando dois saquinhos com camomila para a infusão. — Não costuma acontecer com frequência. E você? Kayin suspira e ocupa o lugar ao meu lado. Ele veste uma camisa branca de algodão simples e calça de moletom cinza. — Não estou conseguindo conciliar os trabalhos da faculdade com os treinos. A competição está muito perto, então coloco os estudos em segundo plano. Parece bobo, mas sou tirado da equipe se tirar notas baixas com frequência. — Ele batuca os dedos na bancada, mostrando seu nervosismo. Desde que o conheço, Kayin morde o lábio inferior e batuca em alguma coisa quando está nervoso. Essas manias auxiliam a qualquer um a identificar seus períodos de maior estresse. — Quantas notas ruins temos até agora? — Três. — Kayin exala com força, a irritação vibrando entre as entranhas. — A primeira em cálculo avançado, a segunda em Filosofia e Ética e a terceira no trabalho de Economia Política. Xingo um palavrão, amaldiçoando mentalmente todas essas disciplinas. Kayin faz Escola de Negócios, mas todos sabem que seu amor é pela natação em águas abertas. No entanto, para estar em uma equipe, ele precisa estar na Universidade. Ele sempre foi incrivelmente inteligente em matérias que tivessem a ver com biologia e saúde. Sua primeira opção de curso seria algo voltado à Educação Física; contudo, era mais importante para o corpo docente da nossa antiga escola estar na Ocean College fazendo qualquer coisa do que escolher outra instituição. — O que você tá pensando em fazer? — Questiono, com sinceridade e sem julgá-lo por nada. Quem está na faculdade sabe perfeitamente a dificuldade em manter as notas altas. — Sinceramente? Vou me preocupar com essa merda só depois da competição. — Eu estou com você — concordo, sem hesitar. — Se o seu objetivo é ser um atleta das águas abertas, admito que deve focar integralmente na competição de domingo. Se a equipe da federação te notar, você não vai precisar mais se preocupar com essas médias ridículas. Se a equipe de natação em águas abertas dos Estados Unidos notar esse homem, ele entra no time da federação e sai da equipe da faculdade. Ou seja, esse curso de Negócios não vai prendê-lo. — Estou treinando a todo vapor para isso — diz, misturando um pó branco na água. — O que é isso? — Pergunto, apontando com a cabeça para a caneca de vidro com o líquido branco. Kayin sorve um gole da substância, me fazendo franzir o nariz em uma careta. — Creatina — responde, passando as costas da mão sobre o lábio ao terminar de beber. — É um suplemento que tomo duas vezes na semana, antes de dormir, para ajudar a não perder massa muscular durante o sono. Arqueio as sobrancelhas, admirada pelo foco na sua rotina. Kayin é rigorosamente acompanhado por uma equipe de médicos, profissionais de educação física, fisioterapeutas e nutricionistas. Eles montam suas dietas e seus treinos. Há dias certos para ingestão de carboidratos simples e complexos, para doces, e eu nunca o vi consumir álcool. — Você nunca tem vontade de dar uma escapada dessa rotina? — Questiono com sinceridade. — Quer dizer, sempre te vejo comendo de um jeito muito saudável e nunca te vi bebendo em festas. Kayin solta uma risada contida. — Claro que tenho vontade, sou humano — diz, dando de ombros. — A questão é que sair da rotina em temporada de competição me custa mais caro do que à maioria das pessoas. Meu trabalho está diretamente relacionado ao meu corpo. Se eu não cuido dele, vou mal nos campeonatos. — Nem uma cervejinha? Ele ri um pouco mais alto. — Álcool pode fazer alguém perder até 30% de massa muscular, mas isso nem é o que me faz recusar as cervejas em festas. Eu só não gosto do sabor mesmo. Além disso, eu prefiro curtir festas estando sóbrio. Se eu tivesse que dar a minha opinião, diria que sou contra o estilo de vida dele. Para mim, rotinas rigorosas são o contrário de diversão. No entanto, quando Kayin está no mar, vejo um homem tão plenamente feliz que chega a ser admirável. Quando uma medalha cobre seu peito, ele abre o sorriso mais largo que existe. — Eu queria ter o seu foco — admito. — É que o foco está associado a um objetivo — pontua, em uma postura dotada de sabedoria. — Se o seu objetivo é importante para você, é mais fácil manter o foco. Aceno em concordância. — Eu acho que só queria ser mais saudável mesmo. Minha alimentação é terrível. — Então, sua dieta nem seria tão restritiva. Você provavelmente só substituiria os alimentos que come agora por outros de melhor qualidade. O nutricionista é o único profissional que pode prescrever dietas. Vá em algum e veja o que acha — aconselha, me lançando um olhar de esguelha. Pela primeira vez em algum tempo, consigo me sentir totalmente confortável e em paz na sua presença. Nós não trocamos farpas ou provocações, apenas desfrutamos de um diálogo fluido e sem malícia. Esses eram os momentos que eu mais gostava de passar ao lado dele. — Obrigada pelo conselho — digo, sorvendo os últimos goles do meu chá. — Obrigado pela primeira conversa em anos sem xingamentos. Solto uma risada um pouco mais alta, assistindo-o lavar o copo que usou e caminhar até a escada. — Boa noite mais uma vez, Aston. A distância entre nós incomoda à medida que aumenta. Quero ele mais perto. Quero sentir seu aroma sob meu nariz de novo. Quero desfrutar do calor do seu corpo próximo ao meu. — Boa noite, Kayin — respondo baixinho, mesmo sabendo que ele já desapareceu escada acima. Lavo minha xícara flutuando entre o medo de me expor à vulnerabilidade e a coragem de seguir as vontades que assolam meu coração. Enquanto subo os degraus, já estou com uma decisão tomada. Paro em frente à porta do quarto de hóspedes e dou três batidinhas antes de empurrar a porta devagar. Caminho, pé ante pé, até chegar perto da cama de casal. Kayin está sob um cobertor felpudo, os grandes olhos castanhos brilhando à luz provinda da cidade. — Aston? — Pergunta, como se quisesse ter certeza de que não sou uma miragem. — Acho que você errou o quarto. Nego com a cabeça, me aproximando até esbarrar com os joelhos na cama. — Não errei. — Afundo o colchão ao me sentar, acariciando a colcha grossa sob mim. — Posso dormir aqui com você essa noite? Kayin arregala os olhos, provavelmente sem conseguir acreditar na minha dose de coragem. É só que lutar contra as minhas vontades tem me deixado exausta. Gosto da companhia dele, e quero, só hoje, aproveitar sem o peso na consciência de estar indo contra meu orgulho. — Claro que você pode, Feiosinha. — O apelido carinhoso deixa meu coração mais quente, ao passo que ele abre espaço para mim. Me aconchego no travesseiro extra, inspirando, discretamente, seu cheiro refrescante de maresia e de protetor solar. Enrolo o corpo no edredom, afundando no colchão confortável. — Desculpa — ele diz, a voz mansa e os olhos arrependidos. — Pelo quê? Meu estômago afunda, o receio pela possibilidade de entrarmos no assunto do nosso último encontro assolando o peito. — Por tudo nesses últimos três anos — sussurra, arrastando a mão sobre o colchão até esbarrar os dedos nos meus. — Você se afastou, eu te via perambulando pelas reuniões dos nossos pais e usava as provocações para mantê-la por perto. Mas, no fundo, eu sei que, há três anos, algo mudou. Simplesmente sei que algo aconteceu para que você me beijasse em um dia e ignorasse no outro. Bufo pesadamente, me lembrando das palavras desdenhosas saindo de sua boca naquele dia. Não quero conversar sobre isso hoje. Só quero dormir com o corpo enrolado no dele, sem pensar que passamos três anos ignorando nossos sentimentos. — Aconteceu — eu murmuro em resposta. — Podemos não falar sobre isso agora? Kayin semicerra as pálpebras, projetando um bico para a frente que me dá vontade de mordiscar. — Promete que falaremos sobre isso depois? — Sim — rebato, esticando o dedo mindinho. — Promessa de escoteira. Ele entrelaça o dedo mindinho no meu, usando o dedão para acariciar o dorso da minha mão. O contato natural envia choques elétricos por todo o meu corpo, meu coração acelera e as palmas das mãos suam. Sem que eu perceba, nossas mãos estão completamente entrelaçadas. As palmas estão encaixadas, os dedos juntos e o calor das mãos se misturando. É como me sentir em casa. — Senti a sua falta — Kayin sussurra, me olhando com devoção. Meu coração parece aumentar de tamanho na caixa torácica e bater nos ouvidos. É tão potente e vigoroso que me sinto entorpecida. — Eu sinto a sua falta também — rebato, fechando os olhos por segundos breves. O corpo de Kayin roça no meu quando ele se aproxima, e sinto seus braços grossos e másculos envolverem meu corpo esguio. Eu não sou tão baixa, mas ele é muito maior que eu, e seu tronco parece se encaixar no meu como duas peças de quebra-cabeça feitas para se juntarem. Seu coração bate acelerado sobre o meu, meus seios estão pressionados na altura de seu abdômen e eu permito que meus braços o envolvam também. Estamos fechados em um casulo, adornados por um abraço intenso, e a sensação me inebria. Troncos pressionados, corpos encaixados e pernas entrelaçadas. Se eu pudesse, ficaria aqui por toda a eternidade. Inspiro com força, permitindo que seu aroma preencha completamente minhas narinas. Deixo que toda a magnitude de sua presença me preencha por completo. Kayin Hopkins vai se infiltrando na minha corrente sanguínea, tomando tudo pela frente de modo pacífico e amoroso. Ele encosta os lábios na minha testa, me dando um beijo terno. — Estou aqui, Aston Martin — diz, ao me pressionar ainda mais contra ele. — Pelo tempo que você quiser que eu esteja. Existe um aroma que me lembra framboesa e champanhe, característico de uma única pessoa. É como se o perfume tivesse sido feito só para ela, porque apenas Aston Martin cheira assim. Inflo as narinas, inspirando o máximo do aroma possível, e aconchegando a ponta do nariz nos fios sedosos. Contraio os dedos das mãos e sinto a carne macia se esparramar entre os dedos. Um resmungo também invade os ouvidos, me fazendo acordar de vez. Pisco repetidas vezes para recobrar o foco da visão e me assusto com a imagem que se expande nas vistas. Aston está esparramada sobre mim, as pernas entrelaçadas nas minhas. Um dos meus braços a envolve, pressionando seu corpo esguio contra o meu, e minha mão está apertando sua cintura com uma firmeza que faz sua carne sobrar no espaço entre os dedos. — Ai — ela reclama baixinho, se mexendo sobre mim. Retiro minha mão de sua cintura e afrouxo o aperto em seu tronco. Tento me desvencilhar de seu corpo com sutileza para não a acordar enquanto repasso os momentos dessa madrugada. Lembro dela invadindo meu quarto a passos silenciosos, de seu corpo se aconchegando no meu e de mim, prometendo estar com ela pelo tempo que quiser. Esfrego as têmporas, a fim de me livrar da dor de cabeça leve que aparece em uma pontada incômoda. — Aston — chamo-a, acariciando seu ombro. Ela solta o que parece ser um xingamento, mas nem se preocupa em abrir os olhos. — Aston Martin — chamo com mais firmeza, cutucando sua costela de leve. Lanço um olhar de esguelha para o relógio sobre a mesinha de cabeceira, e tento não pular da cama quando percebo que a primeira aula dela é daqui a 40 minutos, assim como meu primeiro treino do dia. — Linda, acorda. — Tento mais uma vez, deixando um beijo terno sobre sua testa. — Você tem aula daqui quinze minutos. Talvez seja maldade usar o atraso contra ela, mas meu pai fazia muito isso comigo durante minha adolescência. E a tática acaba funcionando, já que Aston arregala os dois olhos rapidamente e sai da cama em um pulo. Eu realmente tento não rir ao vê-la cambalear pela movimentação drástica, mas é quase impossível. Há uma marca de leves remelas no canto dos olhos, os lábios estão ressecados; as bochechas, avermelhadas; e os cabelos estão embaraçados e bagunçados. — Inferno! — Aston xinga, esfregando os olhos sem a menor delicadeza. Assisto-a enquanto ela tenta reconhecer o quarto em que está, e me divirto ao vê-la se desesperar atrás de suas coisas. Aston resmunga e xinga alguns palavrões, ao passo que caminha de um lado para o outro. — Bom dia, Feiosinha. — Me pronuncio, com vestígios de riso na voz. Aston, enfim, nota minha presença. Ela perde algum tempo me encarando, olhando para o meu rosto de um jeito perdido e tentando disfarçar enquanto confere meus braços, meu peitoral e meu abdômen livres da camisa. Em sua análise, seus olhos se desviam para o relógio digital na mesa de cabeceira, e escuto-a xingar novamente quando percebe que não está tão atrasada como havia pensado. — Você é ridículo — aponta, soltando uma lufada de ar. — Eu ainda tenho trinta e cinco minutos para me arrumar e estar na faculdade. — Sim, mas, em minha defesa, você não queria acordar de modo algum. — Ergo os dois braços em rendição. — Esse foi o único jeito de te fazer levantar. Aston resmunga outra coisa inaudível e faz menção de abrir a porta do quarto. Antes que ela saia, me pronuncio novamente: — Iremos conversar sobre a noite passada, como combinamos, ou você vai fingir que nunca veio até o meu quarto e dormiu comigo como fazíamos na infância? Aston interrompe os passos imediatamente. Vejo quando seus ombros ficam rígidos, a postura fica ereta em claro sinal de tensão e ela parece parar de respirar por breves segundos. Não sei se o momento dessa madrugada foi como uma promessa vazia, porém, o modo como suas pupilas estavam dilatadas em sinceridade crua me tranquiliza. — A gente tem trinta minutos para chegar na faculdade — relembra, tentando fugir do assunto. — Eu sei que precisamos conversar. Estamos fingindo há três anos. Só que nós dois sabemos que essa não é uma conversa de minutos. Tenho certa resistência em concordar com Aston, contudo, ela está certa. Essa conversa deve durar, pelo menos, umas duas horas. E não temos esse tempo agora, talvez nem nessa semana. O campeonato é daqui a pouco e ainda tem a dinâmica do dia dos namorados. Nem acredito que estou pensando em participar, apostando na possibilidade de cair em um encontro às cegas com Aston. O pensamento já me faz sentir náuseas leves. Eu definitivamente preciso de um banho.
Eu e Aston fizemos o café da manhã dos adolescentes mal
humorados. Irina comeu uma tigela de frutas e flocos de milho com leite desnatado e sem lactose, e Simon comeu a mesma receita que eu faço de pré-treino: carboidratos de fácil absorção e vitamina com suplementação de proteína. Quando saímos de casa, tio Lewis e tio Andrew ainda não haviam voltado. Então, deixamos um bilhete grudado na geladeira avisando que tudo havia corrido bem e que Irina e Simon já haviam ido para a escola. Consegui chegar só vinte minutos atrasado, o que é bom, considerando a hora que acordei. Meu dia vai ser tranquilo, até. A manhã está reservada para um treino leve, que será de musculação na academia do Campus. E na parte da tarde eu tenho duas aulas entediantes. — Se tem uma coisa que eu odeio nessa vida, é academia — Anthony reclama, levantando duas anilhas de trinta quilos. Quando temos treino leve, sempre marcamos de ir à academia juntos. É uma boa forma de nos motivarmos, já que amamos nossos esportes, mas não gostamos da academia. A musculação, de fato, é importante para quem precisa de massa muscular para um bom desempenho no esporte. No entanto, eu não gosto do ambiente climatizado, da calmaria e da falta de dinâmica. Prefiro os treinos mais pesados na água e o clima divertido que conseguimos criar no mar. O oceano acaba sendo imprevisível, assim como o tempo. Você pode ter que lidar com águas frias, chuvas mais intensas, sol intenso ou ondas quadradas. Além da correnteza, claro. — Se continuar reclamando, vou largar esse supino e comer a coisa mais gordurosa que eu encontrar — ameaço, mesmo sabendo que eu jamais faria isso em época de campeonato. Anthony solta uma risada baixa, e prossegue erguendo suas anilhas. Quando ele pula para um exercício de flexões, pego dois halteres de dez quilos e inicio um que dê atenção aos bíceps. — Vocês estão treinando para o Mister Eastland Coast ou para o campeonato? — A voz imponente do treinador nos faz dar um sobressalto. Joe Carter é treinador de natação em águas abertas e de polo aquático. O homem está naquela idade em que acha que pode falar o que bem entender. Há dias em que ele diz algum termo que não é mais aceito nos dias atuais. No entanto, quando o consertamos, ele procura não errar novamente. Na maioria dos dias, o cara pega no nosso pé de um jeito rígido e inflexível. Esbarrar com ele na musculação é a forma mais crua de azar, porque Joe vai reclamar do peso que está levantando e dos exercícios que está fazendo. Carter sempre acha que estamos fazendo corpo mole. — Para o campeonato, senhor — respondo, como se eu estivesse de frente para um oficial do exército, o que sei que o irrita demais. — Kayin Hopkins — chama em um tom que beira à ameaça. — Se está cogitando ganhar no domingo, eu sugiro que largue esses halteres e vá fazer exercícios pegando cargas maiores. Não é porque o preparador físico chama de treino leve que você vai pegar um quilo em cada braço. Reviro os olhos discretamente e prendo o riso, indo fazer exatamente o que ele pediu. Anthony adiciona mais carga em sua barra antes que o treinador possa reclamar com ele e finge que estava fazendo o mesmo exercício o tempo todo. — Eu te vi fazendo corpo mole, Anthony Kalel Ward. — O treinador aponta, me fazendo soltar a risada que estava segurando. — Depois do almoço, vá para a piscina, tenho algo a comunicar a vocês do polo aquático. Os olhos de Anthony se arregalam e ele me lança um olhar alarmado. Finjo ignorar, porque, por mais que a natação em águas abertas seja um esporte pesado, não temos o número de competições que a galera do polo aquático tem. — Mas, treinador, eu tenho aula. — Tony avisa, parando de erguer sua barra. O treinador abana a mão para ele, como se isso não fosse nada. — Estudar não dá futuro, Kalel Ward. — Joe cospe, e tento rir mais alto para fingir que ele está brincando. — Avise ao bostinha do seu professor que você tem coisas mais importantes a fazer. Esse cara não tem um neurônio funcionando na cabeça, não é possível. — Na verdade, é professora de cálculo avançado. — Anthony o conserta, prendendo o riso também. — E a senhorita Sanders não vai gostar disso. A senhorita Sanders é professora substituta de Cálculo Avançado da faculdade. Ela acabou de ser aprovada no doutorado, e está ministrando as aulas no lugar da outra professora que está afastada por doença. — Então, você diga para a senhorita Ophelia Sanders que foi ordem minha. — Ele determina, com a mesma carranca de sempre decorando o queixo quadrado. — Diga que ela pode se resolver comigo. Anthony suspira ao mesmo tempo que eu. — Tudo bem, treinador — Tony desiste. — E você, Hopkins — Joe se volta a mim. — Te quero amanhã na praia treinando. E se prepare, não vou te dar moleza. — Sim, treinador. Te vejo lá. Joe não se despede. Apenas acena com a cabeça de leve, comprime os lábios e sai da academia. Quando ele diz sem moleza, basicamente está querendo comunicar que terá uma hora de treino físico na areia, e depois mais umas três horas no mar. Engulo o bolo de saliva que se acumula na garganta, e levanto cada peso tendo em mente que o dia seguinte será muito pior.
A parte mais irônica dessa faculdade é a mensalidade em contraste
com o fato de que não há água quente nos chuveiros do vestiário. Isso é inadmissível. Cada parte do meu corpo se encolhe à medida que as gotas escorrem pelo tronco. — Eu vou processar esse lugar. — Escuto Anthony praguejar na cabine ao lado. — Não tem água quente, cara. Isso é um crime. Levanto o polegar por cima dos azulejos que nos separam, mostrando que concordo com ele. Um gemido esganiçado sai de outra cabine, o que nos faz rir. Não sei se a falta de água quente ou morna acomete somente o vestiário da galera dos esportes de água. Acho que o futebol americano traz mais dinheiro para a instituição, então, não duvido que a temperatura seja mais amena. — Podia ter água quente pelo menos no inverno, porra. — Alguém pragueja de outro lugar. A partir desse ponto, a acústica do banheiro se preenche em uma chuva de reclamações de inúmeros marmanjos atletas. Essa é uma parte legal de ter cabines nos dividindo; na maioria dos dias, o vestiário é acometido por reclamações e fofocas do Campus. — Meu pinto encolheu, foda-se — algum otário grita da parte de trás dos boxes. Gargalhadas escandalosas preenchem o local. Termino minha ducha entre pulinhos desesperados e me seco o mais rápido que consigo. Fico em dúvida entre qual parte é pior: a água gelada ou o vento gélido que se choca em nós quando abrimos a porta da cabine. — Anthony — chamo, vestindo uma blusa de meia manga e cobrindo o corpo com a jaqueta de moletom da equipe. — Já estou terminando — avisa, e logo o vejo sair da cabine enrolado na toalha. Viro de costas e ajeito minhas roupas na bolsa de ginástica, enquanto Tony veste uma roupa. Quando me viro, ele já está com um casaco de lã e a mochila enganchada no ombro, me esperando. Deixamos os gritos de reclamações do vestiário e caminhamos juntos até o refeitório. A Ocean College é lotada de bons restaurantes, que também são caros. Então, sempre prefiro almoçar com Anthony no refeitório, já que nossas condições financeiras são distintas e ele odeia que paguem as coisas para ele. — Ei — Anthony eleva a voz para se sobressair em meio ao burburinho. — Aston e Fizby estão sentadas ali. Ele aponta com a cabeça para um canto do refeitório e sigo seu aceno, avistando a cabeleira loira de Aston se remexer à medida que ela ri de algo que a amiga diz. As duas parecem estar no meio de um papo animado e, por incrível que pareça, não tenho vontade de me meter entre elas. Meus sentidos ficam aguçados demais quando estou perto de Aston; portanto, meu corpo precisa de um descanso. — Hoje eu preciso de distância delas — suspiro, ocupando um lugar na mesa mais próxima de nós e mais afastada das meninas. Anthony me encara com estranheza, mas ocupa o lugar em frente a mim. — O que está rolando entre vocês? Está aí a pergunta que eu não quero e nem sei responder. É óbvio que há um motivo específico para Aston ter escolhido me ignorar há anos, mesmo após termos tido uma noite incrível juntos. Em partes, foi erro meu não a confrontar antes, até porque nossas provocações e intrigas são, de certa forma, confortáveis. Decido me servir para adiar a resposta o máximo que posso; porém, Anthony me acompanha com esse maldito olhar inquisitivo que me faz ter vontade de abrir a boca e despejar tudo o que estou sentindo. — Eu gosto da Aston desde que tínhamos treze anos — confesso, conferindo ao redor para me certificar de que ela não está ouvindo. — A gente fez uma amizade imediata quando cheguei na casa dos Hopkins. Fazíamos tudo juntos, eu queria protegê-la de qualquer perigo que nossas peripécias de infância envolviam e eu me sentia livre com ela. Quando descobri que o sentimento ia além da amizade, pareceu um pouco com uma paixonite de pré-adolescente. “Mas isso não me impediu de surtar. Eu não sabia e nem entendia o que estava sentindo. Achava que era apego emocional, sei lá. Então, me afastei o máximo que pude em uma rapidez que chegou a ser drástica e babaca da minha parte. Aston não entendeu nada, e eu não a culpo. Antes, o sentimento me confundia. Hoje, eu sei que era um puta medo de rejeição. Eu preferia estar apaixonado de longe do que correr o risco de ser rejeitado pela pessoa que eu mais amava na época.” Anthony me encara com compreensão, porque já ouviu parte dessa história antes. — Por isso ela diz que você se tornou um otário sem noção entre os treze e quatorze anos. Afirmo com a cabeça, e continuo a falar enquanto voltamos para a mesa. — Aston nunca foi de ouvir calada. A partir de um momento, ela passou a revidar as gracinhas e provocações. Acho que aquele foi nosso erro, porque não conseguíamos mais nos ignorar. Interagir, nem que fosse para implicar, trazia muito mais satisfação. — Pauso a fala entre uma garfada e outra. — Só que, em uma noite, quando tínhamos dezesseis anos, eu fui parar na casa dela porque a tia Mack me chamou e acabamos saindo juntos. Aquela foi, de longe, a melhor noite da minha vida. Pensei que voltaríamos a nos falar depois daquilo. Mas, na escola, Aston agiu como se nunca tivéssemos nos beijado. — E obviamente há um motivo para isso. — Anthony conclui e eu assinto. — Por muito tempo, eu só conseguia me concentrar no fato de que fui, de alguma forma, rejeitado. Então, nem fiz questão de conversar com ela. Minha adolescência era relacionada a um problema de comunicação terrível. Anthony assente, ao passo que sorve um gole do suco. — Estou vendo. — Seu olhar se desvia para a mesa de Aston rapidamente, mas logo volta a se concentrar em mim. — Agora, me diga, esse lance de chamar a mãe dela de tia. Tem certeza de que vocês não são todos da mesma família? Solto o ar pesadamente. — Eu já te contei sobre isso — resmungo. — Meu pai, o pai da Aston, e o tio Andrew eram um trio na época deles de faculdade. Moravam juntos e tudo. E o tio Lewis, que é irmão do Thomas, começou a sair com o tio Andrew. Aí a tia Mack começou a namorar o com o pai da Aston, minha mãe com o meu pai e o grupo foi se juntando. Foi a faculdade quase inteira assim, e eles escolheram levar essa amizade para o resto da vida. Tem a tia Hannah também, que é casada com um francês engraçadinho e a tia Jules, que jura a todos que não fica com o vizinho dela. É uma história bonita de amizade que os transformou em uma família. Para entender direitinho, só fazendo um livro enorme deles. — Eu leria esse livro — Anthony brinca, nos fazendo rir. — Somos dois — confirmo. — Quando eu era adolescente, pensei até em estudar em Bolfok Town também. Eu queria viver algo parecido com o que eles viveram: rachas, festas, confusões, amizades e romance. Aqui eu só sinto uma pressão enorme para aprender sobre lucros e gestão, coisa que eu odeio, somado ao perfeccionismo de ser incrível em todas as competições. Não há diversão na Ocean College. As festas são péssimas. Geralmente, é na mansão de algum aluno, tudo é arrumadinho demais, há sempre um DJ famoso convidado, a decoração é feita por um buffet e, do nada, a diversão se torna um jantar de gala tedioso. Isso sem contar com as inúmeras carreiras de cocaína e de metanfetamina correndo solta. Não que em outras faculdades isso não exista, é só que, quando se envolve muito dinheiro, tudo é mais acessível. — Nós não temos rachas, nem confusões e muito menos festas. Mas, pelo menos, temos amizade e romance. — Anthony diz enquanto acaricia meu rosto de um jeito brincalhão. — Eu te amo, cara. Ergo o dedo médio para ele, mas não consigo prender o riso. — Eu também te amo — aponto, estendendo o sorriso pelos lábios. — Mas só às vezes. Anthony se ergue na mesa apenas para alcançar meu pescoço e me lançar um pescotapa. Faço o mesmo com ele, e, quando percebo, estamos travando uma lutinha ridícula no meio do refeitório. — Ah, e sobre o seu romance — Anthony começa e não sei se vou gostar de ouvir —, você pode dar o primeiro passo se inscrevendo nessa dinâmica idiota que a Aston resolveu participar. Congelo o sorriso no rosto, sabendo que estou prestes a pisar em um terreno perigoso. — A ideia do negócio é um encontro às cegas. Você sabe que não há garantia de cairmos juntos, certo? Anthony abre um sorriso que paira entre a malícia e a maldade. Não combina tanto com sua face tranquila e bondosa, mas harmoniza até bem com o brilho travesso em seus olhos castanhos meio claros. — E se a gente trapacear? A primeira coisa que penso quando encaro meu relógio de cabeceira é que vou perder a hora para o seminário de Tecnologia Gerencial que tenho hoje. Eu tenho vinte minutos para chegar à faculdade e, mesmo que eu esteja praticamente pronta para ir, o trajeto até lá costuma durar uns vinte e cinco minutos. Corro pela casa, calçando as botas enquanto desço os degraus tentando não rolar escada abaixo. Esse seminário vai contar como a nota mais importante do período. Eu estou fodida. — Sua mãe tá na forca? — Escuto meu pai brincar, ao passo que beberica o líquido em sua caneca de “melhor pai do mundo”, que o presenteei quando tinha uns treze anos. — Eu vou perder o seminário — resmungo, tentando impedir que as lágrimas acumuladas nos cantos dos olhos caiam. — Falta uns dezoito minutos para começar, e eu nunca vou conseguir chegar até a Ocean College nesse tempo. Pego uma maçã na fruteira, jogo dentro da mochila e corro até a porta de entrada. Ouço passos ritmados atrás de mim, e sei que meu pai está me acompanhando até a garagem. — Venha, pequena Eckhoff — ele brinca, capturando a chave de um dos seus carros. — Vamos chegar na faculdade em 10 minutos. Meu pai se enfia dentro de um Dodge Charger novo, e me jogo no banco do carona. Admiro o modelo por dentro, sabendo que ele tem um motor V8 7.0 Supercharged, 800 Cv de potência, 90 kgmf de Torque e velocidade máxima de 300km/h em cerca de 2,9 segundos. Eu gosto de carros tanto quanto meu pai, mas nunca conseguirei ter a habilidade no volante que ele e minha mãe têm. Tenho certeza que, se Mackenzie não estivesse no escritório, já estaria me levando à faculdade apenas pelo prazer da adrenalina. Assim que o pneu do carro canta no asfalto e meu pescoço sofre um tranco, solto um grito esganiçado. — Você vai ser preso! — repreendo, agarrando o cinto de segurança com força. Meu pai agarra o volante com maestria, passando as marchas a cada vez que afunda mais o pé no acelerador. Ele ziguezagueia pela pista, criando aderência dos pneus com o asfalto, aumentando ainda mais a velocidade. Thomas Eckhoff acaba de ultrapassar um sinal vermelho e tenho certeza de que ouvi algum xingamento horrível contra ele. — Não tem problema — ele grita de volta, com animação. — A minha mulher é advogada. Solto uma gargalhada, um tanto tonta pela adrenalina de estar em alta velocidade no meio da cidade. Uma curva é feita assim que ele gira o volante para a esquerda, nos fazendo ultrapassar uma avenida de mão dupla de uma vez só. Ouço buzinas altas, a cacofonia do trânsito da cidade grande me deixando ainda mais nervosa. Meu pai se alimenta de adrenalina. Porém, para mim, a adrenalina é como um veneno. Meu estômago revira, a coluna cervical dói e meu corpo mal se sustenta no lugar. Admito que a direção defensiva do Eckhoff é admirável; ele consegue desviar dos carros, pisar no acelerador e ultrapassar sinais vermelhos sem causar nenhum acidente. Meu pai xinga assim que um pequeno engarrafamento é avistado na avenida principal do centro da cidade. Ele começa a piscar os faróis para o carro da frente, e passa a se remexer no banco do motorista, como se houvesse formigas em sua bunda. Sei que há impaciência pura correndo sobre suas veias. Há uma carranca pairando sobre seu rosto, e evito olhar no relógio. Se eu já estiver fora do horário, não quero nem saber. — Você confia em mim? — Meu pai pergunta, me encarando com os olhos azuis iguais aos meus. Nem preciso pensar muito na resposta. Dentro desse carro, estou com o melhor homem que existe nesse planeta. Ninguém nunca conseguiria chegar aos pés dele. Papai esteve presente na minha vida em cada fase, em cada choro, em cada riso, em cada conquista, em cada coração quebrado, em cada frustração e em cada momento feliz. Ele é o melhor pai que eu poderia ter. E eu não confio nele de olhos fechados porque sou dependente do seu amor, e sim porque ele me criou como alguém livre para escolher, por espontânea vontade, amá-lo incondicionalmente. — De olhos fechados — respondo, já me segurando na porta do carona. Eu simplesmente sei que alguma manobra um tanto perigosa vem por aí. Como eu imaginava, ele aguarda um momento oportuno, avança o sinal e faz um drift para virar à direita, pegando a rua paralela que vai nos deixar na faculdade. Meu pai acelera de um jeito que penso ser possível que minhas bochechas descolem do rosto. Ele ultrapassa cerca de oito carros até frear bruscamente em frente à Ocean College. Com a respiração ofegante, me permito encarar o relógio. Treze minutos de lá até aqui, em um percurso que costuma durar vinte e cinco minutos. — Pai... — começo, com os lábios entreabertos pela surpresa de ter chegado no horário. Ele esfrega as mãos na calça do pijama, para logo depois envolver cada lado do meu rosto. Meu pai encosta os lábios na minha testa em um gesto terno. — Você tem cinco minutos para se recordar de que é uma Eckhoff- Lennon e mostrar a todos que poderia ser dona do mundo se quisesse — murmura, me olhando com um brilho orgulhoso sobre os olhos. — Vai lá e manda ver! Abro um sorriso confiante, sussurrando um agradecimento de volta. Por uns instantes, a insegurança domina meu corpo e penso que irei muito mal no seminário. Eu sei como sou inteligente e como realmente me preparei para esse trabalho. Contudo, assim como para o meu pai, falar em público é uma questão para mim. Eu me enrolo nas palavras, esqueço das informações e me sinto contra a parede com aquele monte de gente me encarando. — Mas e se eu não for bem? — Pergunto, a incerteza do resultado e a ameaça de uma situação da qual não posso controlar aumentando o nervosismo. — Aliás, e se eu esquecer tudo lá na frente e for péssima? Meu pai dá um peteleco leve no meu ombro e ri baixinho. — Ainda assim, eu vou continuar me sentindo absurdamente orgulhoso de você — diz, a voz dotada de uma tranquilidade medicinal. — De todos os motivos pelos quais me sinto agradecido por estar vivo, você e sua mãe são os primeiros. Relaxe, pequena Eckhoff. O papai confia em você. Algumas pessoas me zoariam por chamá-lo de papai às vezes, ou por precisar do seu colo quando estou triste. Mas, no fim das contas, eu sou sortuda por tê-lo. Me jogo em seu colo em um abraço fraternal e belisco seu ombro de brincadeira. — Eu te amo — digo, me preparando para sair do carro. — Obrigada por ser meu pai. — Eu te amo mais — ele responde sorrindo largo. — Obrigado por ser minha filha. Saio do carro me sentindo um pouquinho mais confiante, me livrando da pressão sobre os ombros. Parece bobeira, mas ter a garantia de que eles sentem orgulho de mim, independentemente das minhas conquistas, faz eu me sentir ainda mais poderosa. Vai ser ótimo se eu for boa. Contudo, também vai ficar tudo bem caso eu vá mal.
Eu acho que fui mal.
Me apresentei junto com Fizby. Ela falou com a postura confiante e com a desenvoltura de sempre. Essa mulher poderia dominar o mundo se ela quisesse. Eu também sabia todo o conteúdo e consegui passá-los com clareza; no entanto, troquei as palavras e engasguei de nervoso algumas vezes. — Isso não é motivo para ele tirar nota da gente. — Fizby tenta me tranquilizar, acariciando meus ombros em apoio. — E se esse otário tirar, ele vai ver só. Eu vou bater lá naquele mausoléu que ele chama de sala e falar umas verdades naquela cara sebosa. Ela anda como se estivesse desfilando e sorri como se não estivesse soltando inúmeras ofensas ao nosso professor de Tecnologia Gerencial. O cara é realmente um carrasco quando quer, e parece ficar até feliz quando vê alguém da turma se ferrando na disciplina dele. Eu e Fizby o odiamos. Mas minha amiga consegue ter ainda mais pulso firme do que eu. — Fizby, relaxa — falo com a voz mansa, recebendo uma olhadela que beira a indignação. — Eu já estou — diz, afastando os cabelos para trás em um gesto quase soberbo. — Olha só como estou relaxada. Ela para na minha frente e me encara com um semblante que poderia estampar estresse e impaciência. Contudo, só aceno em concordância. Mesmo que tenhamos alturas parecidas, os três centímetros que temos de diferença me impedem de discordar de Fizby quando ela está irritada assim. Minha amiga mede um metro e setenta e sete centímetros de altura, enquanto eu meço um e setenta e quatro. Normalmente, a diferença é quase imperceptível. Só que, hoje, ela veste botas rosas de salto e de cano médio, bonitas e extravagantes, que ficam lindas apenas em pessoas elegantes como a Davis. — Quais suas próximas aulas do dia? — ela pergunta, encaixando a bolsa de grife na curva do cotovelo. — Tenho cálculo avançado até o horário do almoço, e depois tenho Mecânica até às três da tarde — respondo, dando uma olhada em meu cronograma no aplicativo da universidade. Fizby perscruta meu semblante murcho por alguns instantes, sabendo, só de me olhar, que estou frustrada pelo andamento do nosso seminário. Então, minha amiga suspira e parece que uma ideia acaba de passar por sua mente imprevisível. — Fiquei sabendo pelas redes sociais do time que o Kayin tem treino no mar hoje às quatro da tarde. — Fizby joga a informação, com o semblante dotado de falsa inocência. Ela sabe o quanto gosto de ver Kayin Hopkins nadar, principalmente no oceano. Essa seria uma distração incrível para que eu passe, pelo menos, umas duas horas sem pensar na nota que vamos tirar depois de tantos engasgos na apresentação do seminário. — Porra, Fizby — xingo, esfregando a ponta do nariz em um gesto de nervosismo. Minha amiga ajeita a minissaia preta de alfaiataria sobre a meia- calça branca, e ajusta a blusa de gola alta da mesma cor das botas. Há um blazer grande da Balmain cobrindo seu corpo, chegando até a altura das coxas. Fico me perguntando como ela consegue estar sempre tão bem vestida, independentemente do horário. — Não fique se segurando, Aston Martin — diz meu nome de batismo, mesmo sabendo que ser chamada por nome de marca de carro me irrita. — Se você quer vê-lo, vá até ele. Penso na proposta tentadora, e as braçadas ritmadas de Kayin na água do mar ficam rondando pela mente como um maldito alucinógeno. — Eu não quero passar por cima dos meus princípios. Fizby cai na risada. Seu corpo se curva para a frente e os cachos castanhos caem sobre seu rosto simétrico. — Não quer passar por cima do seu orgulho, você quer dizer — ela me corrige, arqueando as sobrancelhas grossas para mim. Odeio quando Fizby Ann Davis arqueia as sobrancelhas para mim, porque sempre parece que ela sabe coisas das quais ninguém sabe. Ela mantém a pose sábia, empurrando os ombros para trás e erguendo o canto dos lábios volumosos. — Eu não estou correndo atrás dele — digo, mais para mim do que para ela. — Todo mundo sabe que o Kayin vai em todas as suas apresentações no clube de mecânica daqui. Não seria nada estranho te ver nos treinos abertos dele — Fizby responde com sabedoria. — Desencana, Martin. Lanço-a um olhar feio, repreendendo-a por me chamar pelo segundo nome horroroso. Me lembra que, na época da escola, eu era chamada de Martin McFly. Realmente não sei em que momento meus pais acharam que seria uma boa ideia refletir seu amor por carros em mim, na porra do meu nome. — Tudo bem — me convenço sem muito esforço. — Eu vou ao treino dele. Fizby abana a mão, como se essa constatação não fosse nada demais. — É claro que você vai, bonitinha.
Um frio na barriga gostoso vai me infestando à medida que ando
pelos corredores da faculdade. Minha última aula acabou, o próximo trabalho e teste são no mês que vem e posso me permitir tirar o resto do dia para não fazer nada. O resquício de inverno ainda incomoda um pouco, por isso, esfrego os braços por cima do moletom azul-marinho da faculdade. Estou com um jeans claro surrado e um par de tênis all star que um dia já foram brancos. Sei que estou mal arrumada; contudo, pela rapidez que acordei e cheguei até a faculdade, considero que até me saí bem. O treino no mar de Kayin já começou há meia hora, e estou aguardando que o carro pedido pelo aplicativo chegue, já que peguei carona com meu pai de manhã. — Boa tarde — cumprimento assim que adentro o veículo, torcendo os dedos de leve pelo nervosismo em rever Kayin. O motorista é simpático, mas não falamos mais nada pelo resto do trajeto. Só me pronuncio novamente quando chegamos ao destino. O vento que vem do mar é gélido e meus ouvidos zunem um pouco. Caminho pela calçada da praia, avistando a barraca azul com a equipe de natação em águas abertas. Ando pela areia de tênis mesmo, me amaldiçoando mentalmente assim que sinto os grãos se infiltrando nos pés. Chego perto da água apenas o bastante para enxergar Kayin no mar. Avisto-o sem o menor esforço, reconhecendo seu corpo grande e másculo espantando água à medida que se movimenta. Ele faz nado livre, dando braçadas rápidas e ritmadas; os pés batem com a frequência certa e o tronco se move com a mesma maestria de sempre. É como se ele governasse o oceano. Parece que Kayin Hopkins é o deus do mar, movimentando o pescoço do jeito milimetricamente correto. Tudo o que faz no mar é metódico e executado com exímia perfeição, nada sai do previsto. Algumas pessoas, quando o veem nadar, dizem que Kayin tem certa conexão com o mar, sabendo exatamente a próxima onda e para onde vai a correnteza. Nenhum atleta parece tão confiante visto da areia como ele. Qualquer um que esteja observando o treino consegue perceber que Kayin é o melhor, mesmo que a pessoa seja leiga nos assuntos da natação. Kayin tem resistência física para nadar dez quilômetros e chegar em primeiro lugar, porque ele batalha por isso todos os dias. Em sua alimentação, em sua rotina e em seus treinos. Ele pega o que quer e é aplaudido por isso. — Ele é um absurdo, não é? — Uma voz imponente soa ao meu lado e reconheço Joe, o treinador dele. Aceno em concordância. Meus fios loiros, na altura do pescoço, voam para trás por causa do vento e o cheiro da maresia se impregna nas narinas. Inspiro fundo, gostando da sensação de paz que se apossa de mim. — É como se eu nunca me cansasse de vê-lo nadar — digo, sem tirar os olhos do mar. O tempo nublado faz com que o oceano pareça ainda mais escuro, tirando apenas as espumas brancas que se acumulam na beirada quando as ondas grandes se quebram. Kayin está atrás da arrebentação, na metade dos dez quilômetros. — Isso acontece porque o modo como ele nada é revigorante, prende a atenção e vicia. Você só quer olhar, e poderia ficar olhando eternamente — Joe reflete, os braços másculos cruzados na frente do corpo. Joe Carter tem uns trinta e quatro anos, braços malhados e rosto anguloso. Não sei muito sobre ele, apenas que ele é bonitão, que foi atleta de natação e que parou por causa de uma lesão. Seus cabelos pretos estão sempre bagunçados, a barba é rala e bem feita, e os olhos são ainda mais azuis que os meus. Às vezes, é tão azul que chega a ser gélido e assustador, ainda mais somado ao seu jeito ranzinza, inacessível e impaciente de ser. Já o vi ser rabugento com Kayin mais de três vezes. Na verdade, ele está sempre xingando os caras da natação. Ainda assim, os garotos parecem amá-lo. — Você fala dele com muita admiração — penso em voz alta, fingindo ponderar com inocência. — Embora eu sempre te veja brigando com ele. Joe solta uma risada contida. — Aprenda uma coisa, menina — O senhor Carter avisa. — Só brigo com aquele garoto porque quero que ele se veja como eu o enxergo. — E como o senhor o enxerga? — Pergunto com sinceridade. Carter nem hesita, apenas olha o cronômetro pendurado no peito sobre a camisa polo azul-marinho e volta a encarar Kayin chegando na marca dos dez quilômetros. — Como o melhor atleta de natação em águas abertas que já existiu — ele solta de uma vez só, me fazendo sofrer um sobressalto. Nunca vi Joe Carter elogiar nenhum dos seus garotos abertamente. Ele apenas costuma dar batidinhas no topo da cabeça deles. E esse gesto, para os caras, já é uma puta parabenização. Esse tipo de tratamento com Kayin me surpreende, mas nem tanto. Afinal, para mim, ele realmente é o melhor. Quando o vejo ser elevado pelas ondas, ao passo que tenta voltar à superfície, eu sorrio largo. Kayin ultrapassa algumas arrebentações, e agora a água bate na altura de seu short, me permitindo enxergar as elevações dos gominhos de seu abdômen sob o tecido da blusa térmica de manga comprida. — Vou dar algumas instruções ao meu atleta — Joe avisa, me fazendo lembrar de sua presença ao meu lado. — E, menina, tente não deixar tão na cara de que está morrendo de amores pelo Hopkins. O treinador me lança uma piscadela marota, e uma repentina vontade de pegar um punhado de areia e jogar nele se apossa de mim. Finjo que não ouvi sua sugestão mais do que verdadeira, me preocupando em ajustar as mechas bagunçadas do cabelo. Observo-o trocar umas palavras com o treinador, enquanto enxuga o rosto com a toalha que algum assistente da equipe leva para ele. Um sorriso largo exibe seus dentes brancos e alinhados, assim como suas duas covinhas. Seja lá o que Joe disse para ele, Kayin visivelmente gostou de ouvir. Ele se despede do treinador com um cumprimento amigável e nota minha presença assim que se vira. Nossos olhares se prendem no mesmo instante. Consigo mergulhar em sua íris castanha-clara como se estivesse submergindo no oceano. Kayin me olha como se eu fosse a única coisa importante no universo nesse momento, e esse olhar é como um abraço quentinho no meio do inverno. Ele ousa dar alguns passos na minha direção. Quando está perto o bastante, noto os brincos pratas em suas orelhas e os detalhes charmosos de seu rosto, como as pintinhas castanhas espalhadas pelas maçãs do rosto. — Ei, Feiosinha — ele chama, sacudindo o corpo perto de mim só para me molhar de implicância. — O que faz aqui? Me sacudo ao sentir os respingos molhados, quase rosnando para ele. — Vim te ver treinar, mas acabo de me arrepender — rebato, o tom de voz saindo mais irritado do que o previsto. — Quando eu te der o super abraço caloroso que pretendo te dar quando estiver seco, duvido que vai se sentir tão arrependida assim — ameaça, umedecendo os lábios cheios com essa maldita língua convidativa. Dou um pulinho no lugar, surpresa pelo tom sensual da ameaça. — Eu não quero abraços — resmungo, mesmo que isso seja uma enorme mentira. Eu gostaria de qualquer toque desde que viesse de Kayin Hopkins. Ele ri e se aproxima. Nossos narizes quase se tocando é o que me faz ter a percepção de que iremos nos beijar. De repente, nem o vento gélido é capaz de espantar o calor que me invade. O ar parece se esvair entre nós, nos fazendo ficar ofegantes. A tensão é tão palpável que eu poderia tocá-la com a pontinha dos dedos. Céus, ele vai me beijar. E eu vou deixar. Quando sua respiração está próxima o bastante para arrepiar a região dos meus seios, Kayin desvia o caminho da direção dos meus lábios. Ele acomoda o rosto na curva do meu pescoço, sem realmente me tocar. Assim que sua respiração se choca na pele sensível, uma onda de arrepios me invade. Quase prendo o ar dado o nível da excitação. — Você está certa — sussurra, me fazendo contorcer os dedos dos pés dentro do tênis. — Não é só abraços. Nós dois queremos muito mais do que isso desde a maldita noite em que descobri o quão deliciosos são seus lábios. — DOMINIC HOPKINS — o grito proferido por minha mãe poderia ser ouvido em qualquer canto da cidade. — Você vai me derrubar! A energia na minha casa é sempre caótica. E a culpa é toda do meu pai. Nos meus quase 20 anos de existência, nunca conheci alguém como ele. É como se seu cérebro tivesse uma composição diferente da dos outros seres humanos. Ele pensa diferente, profere uma merda atrás da outra constantemente e eu tenho absoluta certeza que, se ele tivesse uma conta no Twitter, já teria sido banido. Quando adentro o apartamento, a cena em minha frente é quase difícil de acreditar. Dois adultos de meia idade, em pé, no meio da sala, fazendo algum challenge da internet perigoso demais para a idade deles. — O que vocês estão inventando, gente? — Pergunto, largando a bolsa de ginástica e a mochila atrás do sofá. Meu pai segura minha mãe pela perna e pelo braço, na horizontal, e parece que há riscos de ela cair a qualquer instante. Os cabelos crespos dela, agora cortados rente à cabeça, estão cobertos por um laço vermelho, e o vestido esvoaçante branco que contrasta com a pele preta retinta mostra mais do que o recomendado pela posição dela. — É um desafio de Footlose que os casais estão fazendo — meu pai profere, com uma euforia desregrada. — Vi ontem no TikTok e achei genial. Não é que Dominic Hopkins seja um fracote, mas ele definitivamente não vive uma rotina de academia como o tio Thomas e o tio Lewis, o que, por consequência, deixa ele menos musculoso e mais esguio. Minha mãe disse que ele sempre foi assim; na época da universidade, ele cultivava o corpo franzino, com as tatuagens, o cigarro e a pose de garoto mau. Ele era a personificação dos maus hábitos. Hoje, ele não fuma mais. Algo sobre desenvolver um problema respiratório por causa do cigarro o fez tomar essa decisão benéfica à saúde. Já faz quase 14 anos desde que ele parou. — Pai — chamo-o, em um tom de aviso. — Você vai derrubar ela. Ele não me escuta. Cerca de cinco segundos depois, somado com uma inspiração lenta do meu pai e uma careta de pânico, minha mãe está caída no sofá. Surpreendentemente, ela não fica brava, se limitando a cair na risada. É difícil entender a dinâmica desses dois. Estou há 17 anos tentando. — Olha, eu vou tomar meu banho. Saio da sala a passos apressados, antes que eles lembrem que hoje tive um dos últimos treinos no mar e me parem para mais uma sessão motivacional. Confesso que ter visto Aston no fim do treino me deu uma boa dose de animação e aliviou um pouco o peso do nervosismo da chegada de uma competição tão importante. Seus olhos azuis brilhando, no que parecia ser admiração, conseguiram dar a impressão de que o coração estava se expandindo na caixa torácica. Enquanto a água escorre pelo meu corpo, aliviando a sensação de fadiga muscular, penso nela. Penso em como seu corpo parece se encaixar de forma perfeita ao meu, penso na vontade angustiante que tenho de beijá- la toda vez que estamos próximos e penso nas provocações que terminam com um desejo excruciante de arrancar as roupas. Adiar a conversa importante que sabemos que precisamos ter sobre três anos atrás está me fazendo querer roer as unhas de nervoso. Eu só quero resolver isso e destruir essa barreira maldita que me impede de envolver seu corpo com meus braços e tomá-la para mim. Depois do treino na praia, eu a convidei para comer alguma coisa depois. Ela desviou do convite com a desculpa de que precisava tomar um banho e tirar as roupas de um dia inteiro na faculdade. Dei o assunto como terminado, quando obviamente não foi. — Caralho! — Escuto um ganido masculino vindo do andar de baixo e solto uma risada contida. Meu pai é genial, cara. As lembranças de quando cheguei à casa deles são bem vagas. Eu sempre via meus coleguinhas do lar adotivo indo embora, ficando por um tempo, e voltando. Esse sempre foi meu maior medo. Acho que foi por isso que cresci evitando relações profundas que me fizessem correr o risco de ser rejeitado, assim como amadureci tendo alguns vislumbres de pensamentos inoportunos, que me faziam achar que tudo o que Nevaeh e Dominic faziam por mim era um grande favor. Acho que esse também é o lance de ser filho de pais que queriam a paternidade, porque Dom e Nev sempre foram amorosos, atenciosos e cuidadosos. Quando minha mãe percebeu o que estava acontecendo, eu fui para a terapia. E hoje consigo entender de maneira muito mais clara que sou filho deles, justamente porque eles quiseram ser pais. Foi uma escolha consciente. E isso, na maioria das vezes, faz a maior diferença. Em alguns momentos, temos conversas importantes sobre a adoção, como quando eles me perguntam se quero descobrir quem são meus pais biológicos e que não preciso ficar receoso em contar a eles caso exista essa vontade. Vou dizer a real sobre isso: cada um decide o que quer fazer sobre os pais biológicos. Eu, Kayin Hopkins, acredito que as coisas são como são e ponto final. Fui deixado em um lar adotivo, uma família incrível me escolheu e me dá todo o amor e suporte que preciso. Não consigo sentir vontade de buscar qualquer laço de sangue ou de entender as circunstâncias que fizeram eles escolherem me deixar lá. Para mim, as circunstâncias, nesse caso, não importam. Estou bem assim. De todas as incertezas que tenho na vida, essa é a maior certeza que tenho: Dominic e Nevaeh Hopkins são suficientes para o meu coração. Termino de me vestir com o grito do meu pai avisando que a janta está pronta. Tenho certeza de que é algo pedido em algum restaurante, porque nenhum dos dois tem muito apreço por cozinhar. Desço as escadas, sem conseguir evitar analisar todas as fotos e medalhas grudadas na parede. O apartamento parece um santuário feito em minha devoção, com fotos minhas desde que eu cheguei, as condecorações das competições, fora os troféus organizados na prateleira do quarto. Acho que, de alguma forma, eles tentam compensar a falta dos registros fotográficos de antes. — Qual é o cardápio da vez? — Pergunto, assim que me acomodo em uma das banquetas da ilha da cozinha. O apartamento em que a gente mora é até humilde comparado à cobertura do tio Lewis, mas todo o dinheiro que meus pais não gastam aqui fica reservado às motos e às viagens luxuosas deles. Eu só tive noção do que era riqueza quando viajamos de primeira classe para a Ásia Meridional, e ficamos num resort nas Maldivas. Eu lembro que nem meu pai nem minha mãe eram acostumados com tanto luxo; então, a gente aproveitou cada segundo como se nunca mais pudéssemos fazer uma viagem como aquela. — Comida indiana — meu pai responde e não fico surpreso, pois a culinária indiana sempre foi uma das favoritas dele. O início do jantar é marcado pelas nossas mastigadas sutis, cada um desfrutando do sabor maravilhoso do Curry de Peixe que eles pediram. — Como foi o dia de vocês? — Minha mãe pergunta, dando início à rotina de todo jantar. Nossas rotinas não costumam bater muito, porque eu entro na faculdade às oito, meu pai é advogado de uma gravadora e sempre chega lá cedinho, e minha mãe inicia o expediente às sete no laboratório de química da empresa de cosméticos onde trabalha. Então, nunca tomamos café-da- manhã nem almoçamos juntos, porém, tentamos fazer um esforço com frequência de jantarmos juntos e compartilharmos como foi o dia de cada um. Os dias do meu pai sempre são os mais imprevisíveis, com ele e suas histórias com contratos musicais maliciosos e músicos problemáticos. E como de costume, ele já começa o dia na delegacia por causa de um vocalista da banda agenciada pela gravadora que desacatou uma autoridade. Minha mãe não fala nada demais do laboratório, só conta que recebeu flores de alguém anônimo, e isso é o bastante para fazer a atmosfera do local mudar. — Só isso? — Meu pai solta um grunhido. — No seu dia aconteceu só isso? Você recebeu flores. Ele se estica sobre a mesa para dar uma olhada nos dedos da minha mãe e ela franze o cenho. — O que está fazendo, idiota? — ela pergunta com o tom grosseiro, mas reconheço o sorriso ameaçando despontar no canto dos lábios. — Conferindo se sua aliança é tão discreta assim para ele não ter visto. — Meu pai bufa, e prendo a risada. — Flores. É mole, Kayin? — É, pai — entro na dele. — Não é mole, não. Minha mãe me lança uma olhada feia. — Kayin James Hopkins — ela chama. — Não dê corda a ele. Foram flores de algum admirador secreto que nem deve saber que sou casada. Meu pai mastiga e engole com tanta brutalidade que chego a escutar. — Então eu vou fazer uma blusa para nós dois — decide, cruzando os dedos sobre o tampo da bancada — escrita assim: “somos casados”! Para não haver qualquer dúvida. Solto um gargarejo pela tentativa pífia de segurar a risada devido ao horror nas feições da minha mãe. Ambos sabemos que meu pai é perfeitamente capaz de mandar fazer uma blusa dessas, e ainda usar no dia- a-dia. — Pai, você tá muito ultrapassado — resolvo provocar também. — A moda hoje em dia é casamento aberto. Dominic me encara com uma expressão de ódio misturado a horror que eu jamais poderia descrever, mas é o bastante para me fazer cair na gargalhada. — Kayin, eu vou te mandar pra casa do seu tio — ele ameaça, me fazendo rir ainda mais. — Depois os homens apanham na rua e não sabem o motivo. — Tá falando de mim? — Pergunto, com o nariz franzido em uma falsa dúvida. — Alguma vez eu já te bati? — Sua impaciência me faz rir ainda mais. — Óbvio que não é sobre você. É para o Mister Florzinha aí. Minha mãe não se aguenta e acaba rindo também. Ver meu pai puto é um dos nossos passatempos favoritos. — Vamos mudar de assunto, por favor — minha mãe pede, porém, seu tom é de ordem. Ninguém ousa refutar. — Como foi seu treino hoje, filho? E como está se sentindo em relação à competição de domingo? Pelo resto do jantar, eles me escutam atentamente. Ouvem meus receios, inseguranças, frustrações e conquistas a respeito da competição. Como sempre, recebo os melhores conselhos e afagos deles. No entanto, quando o assunto chega em Aston Martin Lennon, o clima muda um pouquinho. Meus pais, assim como os pais dela, sempre foram grandes torcedores para um relacionamento entre nós dar certo. Contudo, minha mãe é bem mais cautelosa ao tratar desse assunto. — Você acha que ela corresponde aos seus sentimentos? — Minha mãe faz a pergunta do milhão e sei que, para ela, não importa se estamos falando da filha da sua melhor amiga. Para Nevaeh Williams, os meus sentimentos sempre virão primeiro. É bom se sentir valorizado assim, de verdade. — É óbvio que corresponde — meu pai responde por mim. — Fala sério, todo mundo com sobrenome Hopkins é irresistível. Ele diz isso olhando para a minha mãe. É quando acontece um daqueles momentos bonitinhos em que os dois ficam presos no olhar um do outro, em uma bolha particular deles. Aproveito para me levantar da mesa de fininho, colocando os utensílios do jantar na lavadora de louças. — Você não respondeu a minha pergunta, Kayin James — minha mãe relembra, me fazendo parar no meio do caminho da cozinha para o meu quarto. Nem preciso pensar muito na resposta. — Não tenho como dizer que é o mesmo que eu sinto, mas tenho certeza de que ela sente algo também. Aston não faz tanta questão assim de esconder. Eu sei que algo aconteceu para ela passar três anos fingindo que não nos beijamos quando éramos adolescentes, e que aquela noite foi uma das melhores das nossas vidas. Então, o que precisamos é só conversar sobre isso. Contudo, sei que ela não está pronta ainda, pois, se estivesse, não teria adiado tanto. — Você deveria ir vê-la — meu pai sugere. — Passeios noturnos sempre dão certo para conquistar as garotas. Novamente, ele diz isso olhando para a minha mãe, o que me faz sorrir de modo contido. — Acho que você tem razão — digo, subindo as escadas a passos apressados em direção ao meu quarto. Cubro o corpo com uma jaqueta de couro preta e a cabeça com o capacete em uma velocidade surpreendente. Fecho o zíper do agasalho assim que sinto a brisa gélida envolver o meu tronco. Abaixo a viseira e dou partida na moto, a caminho de St. Mary. O bairro em que a família Eckhoff-Lennon mora é praticamente grudado no nosso. A diferença é que St. Mary é mais residencial, cercado por casas enormes e a praia, e o meu bairro, Lord Falcon, é preenchido por comércios, shoppings e arranha-céus. Estaciono a moto na lateral da casa, tendo visão privilegiada da janela do quarto de Aston. As luzes estão acesas e as cortinas abertas, o que significa que ela está acordada. Agradeço mentalmente pelos muros baixos, e me preparo para passar por cima dele. Eu juro que poderia entrar pela porta da frente. Mackenzie e Thomas me receberiam com enormes sorrisos estampados no rosto. Porém, entradas pela janela são muito mais emocionantes segundo os filmes de romance. Sinto uma fisgada na coluna assim que aterrizo do lado de dentro da propriedade, dando graças pelas luzes não serem de sensores nas laterais como é na frente. Analiso, por alguns instantes, como irei subir até a janela do segundo andar. A melhor chance é me pendurar na sacada do quarto dos pais dela e alcançar a janela seguinte, que é a do quarto de Aston. Subo em um vaso de planta alto de granito, e estico os braços para calcular a distância até as grades da sacada. Salto de um jeito desengonçado, mas consigo me agarrar nas grades. Projeto força para os músculos dos tríceps e do antebraço, me impulsionando para cima. Assim que adentro a sacada do casal Eckhoff- Lennon, xingo baixinho. Depois vou me certificar em pedir desculpas aos dois por estar invadindo assim. A luz da sacada acendendo acima de mim me faz pular de susto. Ainda com a mão sobre o coração, viro de frente para as portas francesas de vidro, tendo visão privilegiada de Mackenzie Lennon lá dentro, parada, com ambas as mãos na cintura, me encarando com uma das sobrancelhas arqueadas. Puta que pariu. Abro e fecho a boca algumas vezes, tentando emitir algum som que não seja um gargarejo nervoso. — Kayin James Hopkins — ela chama baixinho assim que abre as portas da sacada. Engraçado. Essa é a segunda vez que sou chamado assim hoje. — Tia Mack, mil perdões mesmo por estar dentro da sua sacada — começo, colando as palmas uma na outra em tom de súplica. — Eu só estava querendo... — Bancar o personagem de livros de romance pra Feiosinha que dorme no quarto ao lado — ela termina por mim, sufocando uma risada ao pronunciar o apelido que dei para sua filha. Dou alguns passos para trás, sentindo o gradil se chocar contra minhas costas e assinto com a cabeça. — Foi mal — peço de novo, contorcendo as feições em desagrado. Mack só libera a risada que estava estrangulando e abana as mãos em minha direção. — Fica à vontade — ela diz, apontando para a janela próxima à sacada. — Não vou atrapalhar o seu momento, e cuidado para não cair. Juízo aos dois. — Eu vou convidá-la a um passeio noturno — confesso. — Só para avisar mesmo, saber se — pigarreio — não há problema. Mack ri um pouco mais alto e me pergunto onde o tio Thomas está. Se fosse ele me vendo aqui, eu provavelmente seria derrubado daqui de cima. — Vocês têm quase vinte anos, Kayin Hopkins — acusa, apontando para mim com seu pijama rosa de inverno. — Eu já passei da idade de decidir as coisas por ela. Boa sorte a você se conseguir convencê-la a sair agora. Solto uma risada e sibilo um agradecimento. Tia Mack fecha as portas e apaga a luz. Esse sinal é o bastante para me fazer passar a perna para o outro lado da grade, escalando a parede até a janela do quarto ao lado. Dou algumas batidinhas um tanto fortes no vidro, apenas porque meus músculos estão reclamando pela força extra de aguentar meu próprio corpo. Escuto um praguejar dentro do quarto e sorrio, sabendo que ela provavelmente pulou de susto. Pela fresta larga das cortinas, consigo observar Aston caminhando na ponta dos pés, de maneira cautelosa, até a frente da janela. Quando ela me vê pendurado, arregala os olhos e as sobrancelhas quase atingem o couro cabeludo. — Puta merda! — pragueja de novo, dando uma corridinha até a janela para abrir os vidros. — O que está fazendo aqui, por Deus? Me penduro no batente de madeira, impulsionando o corpo para cima e sentando no peitoril da janela. Lanço-a um sorrisinho de canto, batendo as mãos nas coxas por cima dos jeans para afastar as sujeirinhas. — Oi, Lindinha — troco seu apelido e a vejo revirar os olhos. — Esse foi meu jeito triunfal de convidá-la a vir comigo em mais um passeio noturno. Sabe como é, né, para relembrar os velhos tempos. Aston cruza os braços e me encara com um semblante muito parecido com o de Mackenzie há poucos segundos. — Nem fodendo — rebate, negando enfaticamente com a cabeça. Acho bonitinho o modo como suas orelhas ficam tão vermelhas quanto as bochechas e sorrio ao reparar na blusa de manga comprida e na calça larga estampada por vários carrinhos rosas. Os cabelos loiros batem na altura do pescoço, o nariz de batatinha está franzido, as maçãs do rosto estão altas e avermelhadas, e os lábios finos, contorcidos. Se eu não gostasse tanto dela, diria que Aston nem faz o meu tipo. Contudo, quando há amor envolvido, as coisas se tornam diferentes, porque, nesse momento, não há ninguém mais lindo que Aston Lennon. — Vamos, Aston — chamo, encostando a cabeça no batente da janela. — Eu sei que você está com saudade de subir na minha moto de madrugada e desbravar Eastland Coast. Ela bufa, mas não nega, o que me faz sorrir ainda mais largo. Alguns instantes se passam, até que ela parece se xingar. É quando sei que vai aceitar o convite. — OK — diz, indo buscar um casaco grosso que está pendurado em seu cabideiro. — Mas nem pense em me levar ao Forte de St. Mary. É o lugar onde nos beijamos pela primeira vez. Eu nem estava pensando em levá-la lá. Mas, quer saber, Aston Martin? Você me deu uma ótima ideia. Eu deveria ser mais eficiente na tarefa de resistir a Kayin Hopkins. O problema é que aparecer na minha janela, lindo daquele jeito, envolto em uma jaqueta de couro preto é um golpe muito baixo. Ele sabe que, no fundo, eu adoro esses acontecimentos clichês. E ele também sabe que a curiosidade em saber como seria mais uma madrugada ao seu lado ganharia de qualquer aviso do meu orgulho. Então, é por isso que estou aqui, em cima de sua Harley Davidson, com os braços rodeando seu corpo másculo, sentindo seu calor ser transpassado entre suas costas e meus seios e sendo coberta pela brisa gélida da maresia. O vento chacoalhando meus cabelos sob o capacete extra que ele trouxe para mim consegue fazer com que uma sensação de liberdade se infiltre pelo meu corpo. Agarro seu corpo com mais força, me aconchegando a ele. Essa é uma das únicas oportunidades das quais posso me aproveitar da sensação de paz de estar colada a Kayin, sem pensar que estou passando por cima de algo. Nós realmente precisamos conversar sobre aquela noite. Eu só definitivamente não estou preparada para ouvir que nada do que ele falou naquele dia era mentira. Às vezes, eu torço para ter sido um mal entendido, mesmo que as possibilidades sejam baixíssimas. — Dois dólares pelos seus pensamentos — ouço sua voz soar abafada por causa do capacete. — Como sabe que eu estou pensativa? Kayin solta uma risada, fazendo uma curva leve para a direita, com o objetivo de seguir andando na Avenida da Praia. — Você parou de se remexer e de me apertar como se eu fosse fugir — responde, me fazendo grunhir. — Não tem problema, Feiosinha — assegura, falando mais alto para se sobressair ao vento. — Eu não vou fugir e adoro quando você me aperta. Acaricio suas costas até chegar na costela esquerda e finco os dedos em um beliscão. Kayin pragueja e remexe o guidão da moto em vingança, me assustando e impulsionando que eu o agarre com mais força. — Eu estou no controle aqui, Aston Martin — grita, soltando uma risada longa. — Vai se foder — grito de volta, acompanhando-o no riso. Kayin faz eu me sentir bem como ninguém nunca fez, e isso pode ser um problema se o sentimento não for recíproco. Eu sei que ele flerta comigo o tempo todo, mas já saí com caras que faziam o mesmo e, no fim, me mostraram que eu não era o bastante. Sei que Kayin tem um caráter admirável. É só que reciprocidade não depende totalmente de uma boa índole. Eu sei que não serei amada muitas vezes durante a vida, assim como o resto das pessoas do mundo. Isso não significa que estou pronta para não ser amada por ele. — Aston, pare de pensar — Kayin pede. — A única regra dos nossos passeios noturnos é essa: não pensar em absolutamente nada, nem que seja por uma madrugada. Vamos, se liberte dessas vozinhas chatas por alguns minutos. Inspiro com força, sentindo o salgado da maresia invadir as narinas. Prendo todo aquele ar dentro de mim por segundos e solto com lentidão. — Eu quero gritar — decido. As ruas estão quase vazias, são cerca de uma da manhã e há apenas as luzinhas dos prédios e postes refletindo na água do mar. O vento frio faz as folhas das palmeiras se chocarem entre si e não há nenhum corajoso andando na calçada da praia nesse horário. — Grite — Kayin responde. — Você pode tudo. Abro a boca ao mesmo tempo que finco as pernas ao redor do veículo com mais força e estendo os braços, sentindo as cordas vocais tremerem quando solto o grito mais alto que consigo. Kayin diminui a velocidade assim que percebe que não estou mais segurando nele. Mantenho os braços abertos, sentindo o vento me empurrar para trás, aproveitando a mistura da adrenalina, da paz e do frio na barriga. Estar com Kayin é se sentir segura o bastante para soltá-lo e ser livre. Eu posso ser a Aston que eu quero sem mentir para mim mesma. Meu coração parece se expandir na caixa torácica, batendo nos ouvidos, ao passo que a sola das mãos está coberta por uma fina camada de suor. Uma sensação de felicidade plena me invade quando os pesos invisíveis abandonam meus ombros e eu grito novamente, só que, dessa vez, é de alegria. Minhas bochechas doem porque não tiro o sorriso do rosto. Mas eu não ligo. Esse é o efeito Kayin Hopkins. — Está se sentindo melhor? — Pergunta, virando a cabeça um para o lado rapidamente. — Com certeza — respondo, a euforia se derramando em meu tom de voz. O tronco dele treme e é quando sei que está rindo. — Isso é ótimo, agora volte a se segurar em mim. Quero te devolver inteira aos seus pais. — Solto uma risadinha, porém não reclamo. Eu adoro me segurar nele mesmo. Encosto meu nariz próximo de sua nuca e inspiro seu cheiro. É algo como maresia, couro sintético e perfume amadeirado. Eu moraria nesse aroma. Sinto seus ombros tensionarem e vejo a pele visível entre o capacete e a gola da jaqueta se arrepiar. Um sorrisinho é libertado no canto dos meus lábios e subo as mãos pelo seu tronco, acariciando-o com sutileza. — O que está fazendo, Aston? — Questiona, a voz saindo um tanto estrangulada. Esfrego a mão na lateral de seu jeans, a fim de esquentar a palma, e infiltro-a por baixo de sua jaqueta e de seu agasalho, sentindo a rigidez de seus músculos do abdômen e sua pele quente. Ouço um grunhido grave, bem parecido com um gemido, e me sinto satisfeita. — Estou tocando você — respondo, sem parar de acariciá-lo. Minhas unhas raspam em suas entradinhas e sua respiração fica descompassada. Uma excitação se acumula abaixo do meu umbigo, um ponto entre minhas pernas pulsa e eu pararia essa moto agora apenas para beijá-lo. — Certo — ele pigarreia. — Continue. Aproveito a permissão para desfrutar do calor do seu corpo, arrastando as palmas por suas costas largas, pela sua cintura estreita e pelos relevos dos gominhos do seu abdômen, encosto o nariz em sua nuca, para que ele sinta que estou tão ofegante quanto ele e finalizo as carícias com um aperto em sua coxa. A velocidade da moto permanece a mesma; no entanto, empenhada em acariciá-lo, nem mesmo percebi que estávamos chegando em nosso destino: o Forte de St. Mary. As lembranças que esse lugar traz me invadem, acompanhadas das mesmas sensações de três anos atrás. — Não acredito que me trouxe aqui — reclamo, embora esse seja um dos meus locais favoritos da cidade. Kayin para a moto, colocando o pé direito no chão e mantendo o esquerdo no pedal. Ele desce o cavalete e faz menção de sair do veículo. Impulsiono o corpo para cima, apoiando-me nos ombros dele, e desço do banco. — Queria te trazer aqui porque acho que podemos substituir as más lembranças por outras melhores. Kayin sai da moto e se encosta nela, me puxando contra ele. Nossos corpos se chocam e parecem se encaixar perfeitamente. Nada me impede de simplesmente desgrudar dele, mas eu não quero. Meu único desejo é ficar aqui, no calor de seus braços, pelo máximo de tempo possível. — Você conhece a história desse forte? — ele pergunta, apoiando o queixo no topo da minha cabeça. — Sei, algo sobre os Estados Unidos em guerra — digo, sem demonstrar muito interesse. Kayin ri de modo contido e sibila uma negação. — Não, essa é a história chata — rebate, me pressionando ainda mais contra ele. — A parte legal só eu conheço. Na posição em que eu estou, consigo ouvir seu coração batendo aceleradamente, no mesmo compasso que o meu. Parecemos perfeitamente conectados. — Manda, sabichão. — Um garoto de treze anos percebeu que estava gostando da melhor amiga no dia que eles fugiram da casa dela para brincar de pique-esconde nesse forte. Eles tinham uma amizade incrível na infância. Sempre gargalhavam das piadas internas um do outro, trocavam confidências e adoravam criar seu próprio forte com lençóis e cobertores quentinhos. — Kayin começa, e a familiaridade no relato faz meu estômago se retorcer. — Crescer é uma merda porque você começa a entender as coisas. O garoto começou a entender que aquilo parecia muito uma paixão na passagem dos 13 para os 14 anos. Então, ele se desesperou. Na verdade, ele sabia que havia grandes chances de seu primeiro amor não ser correspondido. “Namorinhos de infância tendem a terminar muito cedo e acabar em amizades, e o garoto sabia disso. Então, ele preferiu se afastar. O menino não podia dizer nada a amiga, sabe? Ela descobriria seus sentimentos. No auge de sua adolescência, ele não entendia que diálogo e sinceridade eram melhores escolhas do que o silêncio. A amiga, obviamente, não aceitou ser ignorada. E, a partir disso, eles entraram em anos caóticos lotados de brigas e provocações. Até o dia que foram ver A Tormenta juntos no cinema e acabaram aqui, nesse forte, se beijando no meio da madrugada.” Cada uma das palavras me atinge como inúmeros preguinhos em cada parte do meu corpo. Essa é a nossa história, a forma como saímos de uma amizade linda para um monte de brigas e para beijos no meio da noite em um forte sempre deserto. O Forte de St. Mary é uma grande construção em concreto. Há partes dele que estão em ruínas, rachando e perdendo a tintura branca. No entanto, ele fica localizado na parte mais alta da cidade; subindo algumas escadas, é possível ter uma visão incrível do oceano, enquanto desfruta do silêncio provido pela quietude do local. Eu amo esse lugar. — Ele preferiu ficar em silêncio para não estragar a amizade, mas foi exatamente o silêncio que os arruinou — determino, sem disfarçar que o assunto é sobre nós. Kayin se afasta para grudar sua íris castanha na minha. Daqui, consigo ver as luzinhas da cidade refletidas em seu olhar, e não sei se já vi algo mais bonito do que isso. — Você tem razão — suspira, umedecendo os lábios com a língua. — Ele não a odiava, sabe, Aston? Ele só pensou que o ódio poderia mascarar o amor. Engulo em seco, sendo definitivamente atingida pela veracidade em suas palavras. Se Kayin encontrou um jeito de ser sincero, acho que também consigo. — Eu ouvi você dizer que não queria nada comigo porque eu não fazia o seu tipo. Foi tipo um dia depois de termos aquela noite incrível depois do cinema — despejo, como tirar esparadrapo de machucado. — Parece bobo, mas eu ainda considerava o tempo que fomos amigos, e jamais desdenharia de você para um grupo de amigos como fez comigo. Eu estava no auge da minha adolescência e te admirava mesmo sem querer, ou seja, eu queria, de algum jeito, que você me achasse bonita e admirável também. “Não estou dizendo que era certo o modo como eu me sentia em relação a você. Hoje, sei que não preciso da aprovação e da apreciação de ninguém além de mim mesma. Porém, era como eu me sentia. E ouvir a pessoa que eu mais achava ser extraordinária dizer aquilo sobre mim me destruiu de alguma forma.” Kayin me olha com atenção, e se permite usar alguns segundos para absorver minhas palavras. Seu rosto se contorce em uma careta, mas ele solta uma risada. Belisco sua costela mais uma vez. — Você está rindo do meu relato sincero? — Questiono, totalmente boquiaberta. — Não, perdão. Estou rindo da ironia das coisas. — Ele me aperta contra si e beija minha testa com ternura. — É óbvio que você não ficou para ouvir tudo, o que é compreensível. Naquele dia, eu disse que não teria nada contigo por você não fazer meu tipo, só que isso para de importar quando você se apaixona pela pessoa. Falar daquela maneira pode ter sido um erro, me desculpe. Eu só estava contando aos garotos, do meu jeito torto, que estava apaixonado por você. A declaração me faz perder o ar, mesmo com um atraso de três anos. Faço força para engolir o bolo acumulado na garganta e pisco repetidas vezes para segurar as lágrimas que se acumulam no canto dos olhos. — Kayin... — suplico, sem nem mesmo saber pelo quê. Ele me olha com atenção, daquele jeito que parece que só há Aston Martin de importante no mundo. Me sinto querida, amada e adorada. Gosto desse olhar. Quer dizer, esse é o meu preferido de todos. — Só para você saber, não estou mais apaixonado. — Antes que um balde de água fria me atinja, ele volta a falar. — Para mim, paixão é como um ciclone. Vem tempestuoso, intenso, fica por um tempo e vai embora. Amor é o que eu sinto por você. É um sentimento frequente, constante e que me traz paz. Eu te amo mesmo que você seja uma Feiosinha. Tombo a cabeça para trás ao gargalhar, e aproveito para disfarçar o instante em que as duas lágrimas de felicidade escorrem de ambos os olhos. — Mesmo que surjam cinco de mim quando você chuta um arbusto na América do Norte, ainda assim, você me ama — determino, abrindo um sorriso travesso para ele. — Não — contraria, aproximando o rosto do meu. — Garota de 19 anos com nome de carro e sobrenome de cantor só existe uma, OK, Aston Martin Eckhoff-Lennon? Solto um grunhido e inevitavelmente xingo meus pais através de pensamentos. — Eu preciso dar um jeito nesse nome no cartório — reclamo, franzindo o nariz. Kayin beija a pontinha do meu nariz. — Eu gosto — rebate, arrastando o nariz por minha bochecha. — Te faz única. A carícia da ponta de seu nariz contra a minha mandíbula me faz prender o ar, e arquear as costas, como se oferecesse meu corpo a ele. É como se o último vestígio de paciência estivesse se esvaindo de mim e há uma necessidade crua de provar, de uma vez por todas, a maciez de seus lábios. — É melhor que você me beije antes de começar a falar merda — resmungo, fazendo-o rir. Kayin ouve o pedido, mas, como sempre, não me atende na hora. Ele acaricia minhas costas, aperta minha cintura, pressiona seu corpo ainda mais no meu, e prolonga uma trilha de beijinhos lânguidos por todo o meu rosto. Ele beija uma bochecha, depois a outra; beija o queixo, a ponta do nariz, o espaço entre as sobrancelhas, as duas pálpebras e a testa. É como se ele quisesse me amar antes de me beijar. Quando estou prestes a reclamar, sua mão se enrola nos fios da minha nuca e ele dá um puxão que faz uma onda de arrepios me invadir. Kayin pressiona os lábios nos meus sem hesitar, e a maciez deles em contraste com os meus nos faz soltar um grunhido. Sua língua invade minha boca ao deslizar sobre a minha, ao passo que um de seus braços me envolve. Sou firmemente pressionada contra seu corpo duro e quente, nossas línguas se enrolam uma na outra em um encaixe e um ritmo perfeito, e meu estômago parece se retorcer. Meus braços estão ao redor de seu pescoço, e arrasto as unhas por sua nuca. Tombamos a cabeça para o lado, a fim de aumentar o contato do beijo, e o sinto ainda mais intensamente. Kayin agarra minha cintura e me gira sobre os calcanhares, me sentando sobre a moto. Envolvo-o com minhas coxas, cruzando os pés atrás dele e sinto seu volume friccionar contra minha intimidade por cima das roupas. Aprofundamos o beijo, ao passo que uma de suas mãos solta minha cintura para agarrar um dos meus seios, me fazendo gemer alto. A sensação é como se eu fosse explodir a qualquer momento. Desencosto nossos lábios ao sugar o inferior dele, e me afasto. Agarro seu rosto com ambas as mãos, analisando-o com atenção. Beijo seus lábios brevemente e parto para as covinhas nas bochechas, para a mandíbula bem delineada, e para o lóbulo da orelha, onde deixo uma mordiscada. Sugo a pele de seu pescoço, mordendo e assoprando, e aproveito para inspirar com ainda mais força seu cheiro delicioso. — Você é absolutamente o homem mais lindo que eu já vi em toda a minha vida — confesso, em um sussurro perto de seu ouvido. Kayin solta uma risada que sei que vai se transformar em piada. — Você não mentiu. Eu sou mesmo muito lindo. Gargalho, escondendo o rosto na curva de seu pescoço. — Sabia que esse é meu lugar favorito de todos os que já fui no mundo? — Pergunto, deixando mais um beijo no ponto acima da clavícula. — O Forte de St. Mary? — Franze o cenho ao questionar. — Não. — Beijo seus lábios deliciosos. — Você — digo, sem descolar os lábios dos dele. — Bem nessa curva do seu pescoço. Eu moraria aqui. Eu e Kayin ainda não sabemos exatamente como ser um casal. Não é só sobre dar as mãos e se conformar com um compromisso depois de três anos apenas trocando farpas e xingamentos. Sabemos que precisamos nos conhecer de maneira romântica, indo a encontros, tendo tempo de qualidade juntos e dialogando. Parece bobeira, mas existem diversos aspectos da vida dele que não sei mais como antes, justamente porque passamos um bom tempo compartilhando apenas desafetos. É por isso que, quando ele venceu em primeiro lugar o campeonato ontem, eu não o beijei como tive vontade. Preferi deixar isso para outro momento, sem estar na frente da nossa família, que já cria expectativas demais por nós. A competição foi mais acirrada do que pensei que seria. Ele ganhou com pouco espaço de vantagem, o que explica, de certa forma, o nervosismo iminente dele durante toda a semana anterior. O domingo inteiro foi de Kayin. Ele recebeu dupla atenção de toda a família e dos amigos mais próximos. Até as equipes de natação e de polo aquático quiseram nos acompanhar na lanchonete que fomos para comemorar. Quase não consigo descrever a sensação indescritível que foi assistir alguém que amo receber o reconhecimento e carinho que merece. — Eu acho que se você pensar um pouquinho mais no Kayin — Fizby começa, o sorriso dissimulado atravessando a face —, vai acabar conseguindo invocar a presença dele aqui. Estamos em um dos nossos cafés favoritos da cidade. O Universe Coffee tem a decoração temática de galáxia, se aproveitando dos tons de azul-escuro e do roxo. Os bancos estofados são prateados, as mesas são em formato de planetas e há inúmeros drinques coloridos de café. Nos reunimos aqui porque Fizby precisava contar sobre suas expectativas para o encontro às cegas dela e porque eu estou em um dilema importante. Hoje é dia dos namorados, ou seja, tenho um encontro com um desconhecido às sete da noite. O problema é que, quando me inscrevi nisso, jamais imaginaria que, poucos dias depois, estaria interessada em sair com uma única pessoa e ela tem nome e sobrenome. Não consigo ver a menor graça em sair com qualquer pessoa que não seja Kayin. — Se você não quiser ir, Aston — Fizby bufa —, não vá! Achei que fosse uma decisão simples. — Eu não queria deixar a pessoa que escolheram para ir comigo na mão — admito, porque tenho pensado nisso de ontem para hoje e me sinto um tanto culpada. Fizzy ajeita as lapelas do casaquinho branco da Chanel que contrasta com sua pele negra-clara e empurra os fios cacheados para trás. — Presta atenção — ela aponta, os ombros elevados em uma postura imponente. — Das, sei lá, cem pessoas que se inscreveram nessa dinâmica do grêmio, pelo menos umas quinze vão faltar. Acontece, OK? E isso provavelmente foi previsto pelos organizadores. Acompanho sua linha de pensamento e enxergo sentido em suas palavras. Fizby consegue demonstrar ter um raciocínio inteligente, mesmo que ela mesma não saiba muito bem do que está falando. É como uma espécie de dom. — Talvez eu possa avisar com antecedência também — sugiro, cruzando os dedos sobre o tampo da mesa. — Eles vão poder dizer ao meu parceiro que desisti, e isso vai evitar o constrangimento dele. Fizby desembrulha um bombom que a presenteei pelo dia de hoje e eu mordo um pedaço do donut em formato de coração que ela me deu. O Dia dos Namorados também é para celebrar qualquer forma de amor; por isso, meu pai fez um café-da-manhã especial para nós. Também acordei com um vestido vermelho deslumbrante pendurado na minha porta, algo que definitivamente é obra da minha mãe. — Isso — ela concorda. — Se vai aliviar sua consciência, avise antes que não irá. Quando mando uma mensagem para Kayin, perguntando os planos para hoje e avisando que vou cancelar o encontro às cegas, sua resposta me faz franzir o cenho. Kayin Hopkins: não cancele! Tenho algo planejado que envolve sua presença no encontro. Confie em mim. Viro a tela do celular para Fizby e ela torce a boca em um semblante engraçado de quem não está entendendo nada. — Quando eu te falo que teu namorado não bate muito bem... — Ela provoca, me fazendo revirar os olhos. — Nós não somos namorados — rebato, sorvendo um gole do café com creme de avelã. — Ainda. — Fizby pisca um dos olhos, a boca lambuzada de chocolate nos cantos me fazendo soltar uma risada contida. Sem querer me prolongar muito no assunto, resolvo desviar o foco do meu relacionamento com Kayin. — E você, tem alguma ideia sobre com quem vai sair hoje? Fizby pensa por uns instantes, mas acaba negando. — Acho que essa é a parte mais legal, saber que é alguém da faculdade que está mais próximo do que imagino e ao mesmo tempo não ter ideia de quem será. Enquanto eu me sinto nervosa por estar em uma situação sobre a qual não tenho o menor controle, Fizzy consegue estar animada com a possibilidade de viver algo que pode vir a ser surpreendente. Fizby Davis ama ser surpreendida, e essa é mais uma das enormes diferenças entre nós duas que só nos aproxima ainda mais. Ela tem o que aprender comigo e eu tenho muito o que aprender com ela. — Você vai com que roupa? — Pergunto, sabendo que acabo de entrar em um dos seus assuntos favoritos. Fizby abre um enorme sorriso antes de começar a falar. — Então, ainda não mandaram mensagem avisando o lugar em que será o encontro. Mas, considerando que as escolhas são baseadas nos nossos gostos, estou apostando em algum restaurante de comida japonesa. — Fizby planeja algo mentalmente, usando os dedos para contabilizar algo. — Devo ir com um vestido rosa-chá de seda e alças finas que quero muito usar, e com aquela sandália de pedrinhas brilhantes que te mandei foto aquela vez. Eu definitivamente lembro dessa sandália, porque a aparição dela na vida de Fizby foi quase um evento. — Aquela que a sua madrinha conseguiu que fizesse parte de uma edição limitada daquele cara lá? — Essa! — ela responde, balançando o indicador para mim com uma careta engraçada. — O cara lá se chama Enzo Gigiorno. A edição inteira de sapatos do Gigiorno homenageou mulheres negras por todo o mundo, e ter uma sandália de grife com o nome de Fizby Ann fez com que minha amiga frequentasse inúmeros eventos importantes ao redor do mundo. A família Davis é dona de indústrias orgânicas de tecidos, que tem a proposta de trazer uma moda mais sustentável. Então, é comum que eles estejam envolvidos com frequência em eventos beneficentes e desfiles de moda. Quando Fizby ganhou essa homenagem, passamos uma semana inteira comemorando. — Eu jamais poderia esquecer dessa sandália — digo, encarando-a com toda a admiração que ela merece. — Espero que você tenha um bom dia dos namorados, Fizby. — Sim — ela sorri. — Estou com a sensação de que ele será ótimo para nós duas.
Estou com uma sensação na boca do estômago que se assemelha
muito a um nervosismo incômodo. Disse aos meus pais que sairia com um desconhecido por causa da dinâmica da faculdade. Eles nem deram tanta atenção, porque acho que estavam focados demais no dia deles. Admito que eu estaria mais animada se tivesse a certeza de que passaria essa data com Kayin. No entanto, a incerteza sobre o que acontecerá nos próximos minutos é capaz de fazer minhas palmas das mãos coçarem. Adentro o saguão do hotel Blues torcendo os dedos das mãos. Recebi uma mensagem de alguém do grêmio, indicando que meu encontro seria no restaurante desse hotel chique, que fica no terraço. Enquanto subo os degraus que me levam até o elevador de portas transparentes, amaldiçoo minha mãe por ter me convencido a usar saltos hoje. Ela disse: “se você usar esse vestido com coturnos no hotel Blues, vou infartar mais cedo, e na minha idade, será fulminante”. Como eu não quero perder minha mãe tão cedo, estou aqui sentindo meus dedinhos doerem e os saltos finos afundarem no carpete vermelho. Há um enorme lustre pendendo no teto, corrimões dourados e lustrosos e um chão brilhante de mármore. Não faço ideia do porquê estou aqui, já que não dou tanta atenção a locais refinados. Além disso, nunca tive aulas de etiqueta para saber como me portar em lugares assim. O vestido vermelho que minha mãe me deu é da Valentino; adere às minhas curvas com perfeição e há uma fenda da coxa até o pé direito. As alças finas seguram bem meus seios pequenos e a costura no início da bunda faz ela parecer maior. Eu jamais teria bom gosto para escolher algo tão refinado. Meus cabelos loiros estão tão curtos que batem na altura do pescoço, há um delineado marrom sobre meus olhos, um pouco de blush e um batom nude sobre os lábios finos. Quando me arrumo assim, consigo entender minha mãe e minha amiga, pois realmente nos sentimos ainda mais bonitas. E a sensação é ótima, devo confessar. — Devia ter trazido um casaco, Feiosinha. A voz me faz paralisar na metade do caminho até o restaurante. Me viro numa velocidade o suficiente para ficar tonta, e quase realmente caio no chão quando me deparo com Kayin Hopkins escorado no balcão do bar. Ele veste uma blusa de gola alta, blazer de camurça, calças que vão até os tornozelos e mocassins, todas as peças na cor preta. Há uma corrente prata brilhosa em volta do pescoço, e brinquinhos pratas pendendo em ambas as orelhas. Um sorriso largo se estende pelo rosto, o branco límpido dos dentes contrastando com a pele escura. — O que está fazendo aqui? — É a primeira coisa que digo, ainda boquiaberta. Ele solta uma risada contida, vindo até mim a passos demorados, como um predador espreitando sua presa. Kayin tem um jeito de se portar que é como se todos ao seu redor o amassem, elevando sua confiança a um nível que o faz exalar charme. — Estou vindo para o meu encontro às cegas — ele diz assim que se aproxima o bastante. — Você está absurdamente linda, a propósito. Escondo as mãos atrás das costas, um tanto tímida pela análise atenciosa que ele faz de mim. Engulo em seco, assistindo-o se aproximar ainda mais. Kayin inspira com o rosto encaixado no meu pescoço, me fazendo arrepiar. Depois, sua boca vem em direção a minha e seus lábios pressionam nos meus. Sinto as costumeiras cócegas descerem pela garganta e se acumularem no estômago, me dando a sensação de estar flutuando. — Você trapaceou? — Questiono, me referindo ao fato de estarmos aqui e não com desconhecidos. — Nem tanto — responde, estendendo o braço para me indicar o caminho. — Eu só tenho um contato no grêmio que quis me ajudar em um dia tão bonito como esse. E, se quer saber, nós cairíamos juntos mesmo que eu não trapaceasse. Para você ver como somos destinados um ao outro. Solto uma risada contida, me sentando em uma das mesas localizadas em frente à sacada de vidro do restaurante do hotel. O local está todo decorado com balões de corações vermelhos, carpete da mesma cor e luzinhas douradas pendendo no teto, que dão um ar mais aconchegante que o hall do hotel. Ocupo a cadeira que me deixa de frente à vista para o mar, e Kayin se senta na minha diagonal, ao lado da sacada de vidro. — Quer saber o motivo pelo qual te trouxe aqui? — Me limito a acenar em concordância para a sua pergunta. Kayin envolve meu pescoço com a mão, fazendo parecer que meu coração acaba de cair no meu baixo ventre. Ele me segura com firmeza e movimenta minha cabeça até estar no ângulo desejado por ele. — Aqui tem uma vista privilegiada para o Forte de St. Mary. Achei que gostaria de ver. Enxergo as ruínas em concreto branco, as escadas desgastadas e a penumbra que ronda aquele lugar. Gosto de como ele é deserto, me sinto livre e em paz lá. Além do mais, esse forte faz parte da nossa história. Foi onde demos nosso primeiro beijo e gostaria que fosse o palco do nosso último, daqui a muitos anos, é claro. — Isso foi muito atencioso da sua parte — observo, sentindo as lágrimas de emoção se acumulando no canto dos olhos. Um sentimento muito forte está enraizado dentro de mim, florescendo mais a cada dia, fazendo meu coração acelerar e bater nos ouvidos, girando o estômago em várias piruetas. Reconheço as sensações, porque não me lembro de nenhum instante em que elas não estiveram aqui. — Ah, e eu também trouxe algo — ele comunica, mexendo no bolso interno do blazer. Me sinto levemente apreensiva, o que me impulsiona a torcer os dedos das mãos sob o tampo da mesa. Kayin retira uma caixinha de veludo preto, que poderia guardar um anel com facilidade, e não posso perder a oportunidade de alfinetar. — Eu não vou casar antes dos trinta — digo, levantando o canto dos lábios em um sorrisinho. — Palavras do meu pai. Kayin tomba a cabeça para trás ao rir de modo gracioso, pois sabe que é algo que meu pai falaria sem hesitar. — Estou aqui prestes a te dar um presente no dia dos namorados, e seu pai nem sabe que estamos juntos — reflete, estremecendo de leve. — Ainda bem que, numa porradaria, meu pai ganharia. Solto uma risada alta. — Sem dúvidas. Kayin abre a caixinha de veludo e sofro com um arquejo quando me deparo com o presente. É uma correntinha dourada com o pingente de uma chave de boca, com pedrinhas brilhantes. Prego os lábios, sentindo as bochechas e as orelhas ficarem quentes, a sensação poderosa infestando cada mazela do corpo. Não é sobre a beleza da joia, e sim o significado dela. É uma ferramenta que uso para consertar carros e, além disso, é quase igual ao pingente que o meu pai carrega no pescoço. — Kayin... — murmuro, embasbacada com o gesto, ainda sem conseguir proferir nenhuma frase coerente. Sinto até mesmo dificuldade de engolir. Ainda é estranho reconhecer que a conexão entre nós é tão forte ao ponto de parecer que nossos pensamentos conversam de maneira inconsciente. Desde quando éramos pequenos eu me sentia assim, como se Kayin pudesse adivinhar como me sinto só de me olhar. — Por que está chorando, meu amor? — É só com sua pergunta que percebo a lágrima transbordando de um dos olhos. — Não gostou do presente? Nego com a cabeça. Não para sua pergunta e sim para a resposta. — Estou chorando de emoção. Estou chorando de felicidade. Estou chorando de amor. — Me embolo para proferir cada uma das palavras. Eu nunca havia pensado em comprar um pingente de chave de boca e grudar ao pescoço, porém, eu me recordo de passar longos segundos encarando o cordão do meu pai e me lembro de ouvir meus tios dizendo que eu vivia agarrada nesse colar do papai quando era neném. Mesmo que eu nunca tenha, de fato, almejado um presente como esse, ainda é incrível que Kayin tenha prestado atenção a tudo isso. Meu coração parece inflar dentro do peito, dando a impressão de que está batendo nos ouvidos. Essa paz sobrenatural que sinto ao estar com ele se infiltra ainda mais pela corrente sanguínea, me fazendo soltar o ar em alívio. — Esse foi o melhor presente que já recebi. Eu te amo tanto. O sorriso largo que ele abre me deixa hipnotizada. Acho que nunca vi alguém tão lindo quanto Kayin Hopkins. Ele consegue abalar cada um dos meus pilares e fazer esfarelar cada armadura construída para não o deixar entrar. — Eu também te amo, Feiosinha — responde, se inclinando para beijar brevemente os meus lábios. Encaro o lugar à minha volta, admirada, plenamente feliz por estar comemorando esse dia com alguém que eu amo. Me sinto mais como a Aston Lennon que sempre quis ser. Consigo perceber o fervor daquele gás que preciso para enfrentar tudo aquilo que me frustra e trabalhar para ter a vida que eu quero. Eu não preciso mais mentir. Nem para os outros, nem para mim. Agora eu gosto de quem sou; acima disso, sinto orgulho de quem sou. E sequer precisei mudar minha personalidade para isso. Eu só aprendi a amar a Aston cheia de falhas, inseguranças e receios. É o que nos faz humano, certo? — Eu não sabia que estaríamos juntos aqui — justifico. — Não trouxe um presente, está na minha casa. Kayin envolve minha mão, encaixando nossos dedos. — Não preciso dele — responde, apertando minha mão de leve. — Meu maior presente está bem aqui na minha frente. Obrigado, Feiosinha, por ter me deixado entrar. O pai da Aston deu uma surtada básica quando contamos que estávamos juntos. Acho que o problema não foi estarmos namorando, e sim o fato de que todos desconfiavam, menos ele. A tia Mack ainda fez uma brincadeira de mau gosto, sobre algum segredo de quando eles eram jovens, que Thomas foi o último a descobrir. Acho que ele ficou umas três horas sem falar com ela só por ter lembrado dessa fatídica época deles. Lembro que meu pai disse algo sobre eu estar traçando a filha dele em segredo, única e exclusivamente para provocá-lo. E, pela primeira vez, vi o tio Thomas chamando meu pai para a briga. Aquele dia foi caótico. Mas, com o tempo, as coisas se ajeitaram. Agora a gente assiste Fórmula 1 juntos e ele tenta me ensinar alguma coisa decente sobre carros, mesmo que eu só balance a cabeça para fingir que entendi. A tia Mack sempre foi mais tranquila comigo. Eu e Aston juntos é quase uma realização de mãe, o que nos deixa um pouco apreensivos também. Esses casais estão juntos há mais de vinte anos, então é impossível não se perguntar se nosso futuro será promissor como o deles. Alguns sacrifícios foram feitos para que o relacionamento desse certo, eles foram a balança um do outro e eu vejo o quanto tentam a cada dia sem desrespeitar os próprios limites. Eles são como um espelho para nós, de algo saudável que queremos ter. Só não queremos o peso sobre os nossos ombros de que temos o dever de ser tão ajustados assim. Tem dias em que tudo é uma absoluta merda, porque parece que nossos humores desalinham de uma forma que torna tudo mais difícil. Ainda assim, lá estamos nós, tentando. E há aqueles dias em que tudo é fácil. A gente se sente pleno, feliz e em paz. Sentimos vontade de viver pelo resto da vida naquele único momento. É tão bom viver com Aston. Se eu tivesse que olhar para trás, concordaria quando dissessem que ela não é meu tipo, aceitaria as opiniões de que somos ambas pessoas difíceis e não discordaria caso duvidassem da nossa capacidade de fazer dar certo. No entanto, hoje vejo o quão equivocado fui. Amor não é sobre a expectativa que você cria sobre a pessoa perfeita. Amor é sobre sentir mesmo quando sua mente tem dúvidas. Se eu tivesse que amar alguém que atendesse às minhas expectativas, eu não poderia amar Aston, porque não seria ela. — Cacete — ela xinga quando sente a cabeça bater no teto do carro. Solto uma gargalhada que abafo ao pressionar a boca em seu ombro. Seu Aston Martin deu um problema no motor e foi hoje para a oficina, e queríamos dar uma volta na cidade de madrugada. Como está significativamente chuvoso, Aston pegou o Cadillac rosa da mãe emprestado. Sinto como se estivesse andando em uma relíquia. Estamos estacionados na porta de sua casa, com as roupas desalinhadas pelos amassos que acabamos de dar no banco do carona. Não era para as coisas terem evoluído dessa forma num lugar onde facilmente poderíamos ser pegos no flagra. Mesmo assim, bastou uma fricção da sua intimidade no volume entre as minhas calças, para que meu corpo inteiro entrasse em alerta. Aston volta a esmagar meus lábios com os seus, arrastando as unhas pela minha nuca, me fazendo deslizar a mão que estava em sua cintura para seu seio esquerdo. Aperto e fricciono o dedo no mamilo sobre o tecido da blusa, fazendo-a rebolar com mais fervor no meu colo. Um gemido me escapa ao mesmo tempo que batidas descompassadas no vidro da janela nos fazem pular de susto. Meu coração bate desenfreado, e Aston só não cai do meu colo porque estou segurando-a firmemente pela bunda. Do lado de fora, Thomas está sob um enorme guarda-chuva preto, com os braços cruzados. A carranca em sua face poderia ser visível do outro lado do país. Puta merda. — Kayin Hopkins — ele chama lá fora. — Eu espero muito que essas duas sombras no lado do carona não sejam você com a minha filha no colo. Aston estrangula uma risada e desce o vidro, sem sair de cima de mim. — Você tá atrapalhando o final do meu passeio noturno — ela diz, o tom brincalhão escorrendo pela boca. Thomas arqueia ambas as sobrancelhas, em uma expressão de desdém muito parecida com a da filha. — Você está com o pisca alerta ligado na frente da minha janela, mocinha — rebate, um vinco enorme entre as sobrancelhas. — Eu era mais esperto na sua idade. A provocação me faz soltar o ar em alívio. Isso mostra que ele não está bravo. — Desculpa, senhor Eckhoff — digo como um verdadeiro namoradinho da filha. Essa porra é constrangedora. O ruim de ser pego no flagra é que sempre parece que você está fazendo algo errado. — Não é comigo que você tem que se preocupar, filho — responde, o rosto parcialmente virado para trás. — É com a minha esposa. Antes que possamos prosseguir o diálogo, escuto um grito esganiçado romper pela noite, vindo da entrada da casa. — Eu realmente espero que o banco do meu carro esteja tão limpo quanto ele foi entregue para você, Aston Martin Eckhoff — Mackenzie pragueja assim que se aproxima o bastante. Levanto as mãos de Aston em rendição. — Não fizemos nada — digo por ela, tentando nos safar da situação. Tia Mack junta as palmas em um agradecimento silencioso e olha feio para a filha. — Sai do meu carro, pentelha — ordena, me fazendo empurrar Aston para o lado a fim de sair mais rápido. Aston gargalha, juntando nossas coisas e entregando as chaves na mão da mãe. — Foi mal, mãe — ela diz, fazendo menção de acariciar a mãe, que se esquiva. Mackenzie revira os olhos, mas posso ver que ela quer rir. Reconheço essa expressão, porque são anos me deparando com ela. — Vão para a cama — Thomas aponta para o interior da casa. — E eu não quero ouvir nada durante meu sono. — Sim, senhor Eckhoff — respondo como um soldado frente a outro de patente maior. Thomas me lança um olhar fulminante. — E para de me chamar de senhor, garoto — manda, trombando em mim de leve. — Eu sou da época que você se cagava nas calças. Ninguém consegue se segurar; todos gargalham em uníssono. — Ele ainda caga — Aston sussurra, formando uma concha com a mão perto da boca. Empurro seu corpo de leve, só para depois puxá-la de volta para pressionar o tronco no meu. — Cala a boca, Feiosinha. Ela se aconchega a mim, observando a dinâmica dos pais com semelhante admiração. Passo o braço ao redor da cintura dela, sentindo seu corpo se encaixar ao meu como se tivéssemos sido moldados um ao outro. O cheiro de morango com champanhe se infiltra pelas narinas quando pressiono o nariz no topo de sua cabeça e inspiro com força. Me sinto em casa. Encarando o brilho de orgulho pairando sobre os olhos de Aston, presumo que ela se sente um pouco como eu, feliz por fazer parte de uma família tão incrível quanto essa. É por isso que antes de dormir, faço algo silenciosamente, que ninguém desconfia: eu agradeço. Agradeço por terem me escolhido. Agradeço por ter a oportunidade de escolher. Agradeço pela minha namorada. Agradeço pelo meu melhor amigo. Porém, principalmente, eu agradeço a mim. É um bom hábito, sabe. Todos deveriam testar. Antes de dormir, ainda que você não tenha ninguém, agradeça a você mesmo, porque somos os únicos que não vão embora. Só há uma única pessoa que nunca vai te abandonar, aquela que sabe mais do que ninguém o que é melhor para si: você mesmo. Eu já perdi as contas de quantas vezes falei que me despediria dessa galera de Bolfok. No entanto, aqui estou eu, finalizando mais uma história sobre eles. Kayin e Aston surgiram para mim como dois inconvenientes que não saíam da minha cabeça; eu simplesmente tinha que escrever sobre eles. Ainda assim, durante o processo, eu desanimei. E é por isso que, aqui, agradecerei àqueles que me motivaram a continuar. Pai e mãe, obrigada por serem meu maior exemplo de respeito, carinho e amor entre um casal e entre pais e filhos. Vocês são os que têm os melhores conselhos, confortos e abraços. Amo vocês mais do que poderia descrever em palavras, mesmo sendo escritora. Sofia, você definitivamente lutou, a cada segundo dos últimos meses, para que Kayin e Aston existissem. Mandou mensagens, leu os capítulos, surtou, derramou lágrimas por eles, mandou vídeos reagindo, áudios, deu ideias e esteve comigo a cada minuto desse processo. Eu não poderia estar mais agradecida por ter te ganhado como presente nesse mundo de publis. Você é uma das pessoas mais incríveis que já tive o prazer de conhecer e, mesmo que nossos gostos para tudo sejam muito diferentes, é bom saber que estamos alinhadas no mais importante: na nossa amizade. Te amo. Renata e Rebeca, obrigada por me apoiarem em cada passo e em cada ideia mirabolante, obrigada por serem minhas irmãs de pais diferentes, e por escutarem todas as besteiras que eu digo e ainda me aplaudirem. Eu amo vocês. Beatriz, queria começar te agradecendo por existir. Um pingo de gente com o maior coração existente. Você leu Kayin e Aston, mandou áudios reagindo, lutou por eles e me animou nos dias que eu mais pensava em largar esse conto para lá. Nunca poderia deixar de reconhecer o seu poder, o quão grande você é e o quão importante se tornou para mim em tão pouco tempo. Te amo, amiga. Maria Clara, a gente começou nossa amizade porque tínhamos egos muito parecidos, lembra? Apenas gostávamos do fato de termos o mesmo nome. É engraçado que tenhamos aprendido a se amar sozinhas. E mesmo que sejamos tão diferentes em tantos aspectos, sinto que aprendo algo diferente com você a cada dia. Obrigada por me apoiar em tudo. Te amo muito. Bruna Eloísa, eu nem preciso dizer que a gente tem assunto do momento que acordamos até a hora que vamos dormir. Você é literalmente um ponto crucial no motivo para eu ainda não ter me aposentado precocemente. Obrigada por sempre me ouvir com atenção, por ser minha irmã de alma catarinense, por se fazer presente mesmo estando tão longe e por me fazer começar a acreditar em amizades à distância. Te amo muito, cara de bunda. Adelia Pinheiro, Fatima Hamze, Raquel e Elohi, obrigada por serem as maiores autoras nacionais que poderiam existir. Vocês ainda não recebem o reconhecimento que merecem no âmbito da escrita, mas é engraçado que eu tenha sempre a sensação de que, quando conhecerem vocês, descobrirão o que é um fenômeno. Vocês são absurdamente talentosas e o motivo pelo qual decidi escrever também. Obrigada por existirem. Amo vocês! Bruna, obrigada por ser a fã número 1 do Dominic e ter me incentivado a criar um conto sobre o filho dele. As palavras de afeto, os surtos, os discursos de admiração e os gritos me dão o gás necessário para escrever mais e mais a cada dia, porque sei que estarei agradando alguém tão importante. Foi um presente ter te conhecido, é sempre um prazer trabalhar com você e me sinto muito grata por te ter na minha vidinha. Te amo! Lara, meu bem, obrigada por ser um exemplo no que diz respeito a executar seu trabalho e ser reconhecida com todos os obstáculos que só nós entendemos. Obrigada por ter trabalhado comigo, mesmo com a energia caótica disso aqui. Você é um absurdo! Ana Júlia, Aline, Isadora, Hayane, Eduarda e Rebeca, vocês são simplesmente umas das melhores pessoas que já conheci na vida, espero que saibam disso. Nada é tão satisfatório do que nossas fofocas, gritos e palavras de ódio naquele grupo. Vocês recebem a minha essência ali e me aceitam exatamente como sou. Muito obrigada por me apoiarem sempre, por serem um pilar e uma rede de apoio incrível. Amo vocês! Leonor, Clara e Duda, obrigada por dividirem comigo as melhores conversas sobre os nossos trabalhos. Obrigada por serem tão diferentes de mim e por me fazerem aprender com vocês a cada dia. Obrigada por serem autoras nacionais tão incríveis. Vocês são sensacionais! Obrigada à vocês, que representam tão bem todas as minhas leitoras: Vitória (@readsvitoria), Luiza (@readingwlu), Thayanne, Vitória Maraísa, Luiza (@allsbookish), Barb, Jessyca Veras, Paola (@somaisumnacional), AnaLua Azevedo, Ellen, @dudacomenta, Tamirez Costa, @indicandolivros_1, Isis Casemiro, Kaline, Annalu, @leiturasdacamis, @umaviciadaemleitura, Fernanda Piñero, Vitória in the sky, Dani Gonçalves, Dani Constantin, Paula Lírio, Ane Freire, Isabela Bilo, @dettakumi. Eu precisava mencionar vocês pelo nome porque o que cada uma faz por mim não é brincadeira. Absolutamente, cada uma mora no meu coração. Amo vocês demais. Por fim, quero agradecer a você que é leitor novo e a você que faz parte da Elite de Bolfok Town. Eu me sinto absolutamente honrada por saber que há tanta gente incrível me rodeando. Nada disso seria possível sem vocês. Obrigada por estarem comigo e por dedicarem um tempo de vocês à mim e à minha literatura. Amo muito vocês! O universo de Bolfok Town não tem mais nada a dizer, mas espero que possamos nos encontrar em outras aventuras. Prometo que há coisas diferentes e igualmente boas vindo por aí. Até a próxima viagem! Beijo no coração, Mary Wars. Table of Contents NOTA DA AUTORA 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 EPÍLOGO AGRADECIMENTOS