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Copyright @2021 por Ariane Fonseca.

Capa e diagramação: Ariane Fonseca


Foto: Shutterstock
Revisão: Barbara Pinheiro
Análise crítica: Danielle Barreto

Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera
coincidência.

Todos os direitos reservados.

É proibido o armazenamento e/ou reprodução de qualquer parte desta obra através de quaisquer
meios sem o consentimento da autora.

A violação autoral é crime, previsto na lei nº 9.610/98, com aplicação legal pelo artigo 184 do
Código Penal.
NOTA DA AUTORA

Daniel é um personagem dentro do Espectro Autista e vai descobrir o diagnóstico no decorrer


da história. Como sempre gosto de fazer nas minhas obras, pesquisei muito para trazer uma narrativa
mais próxima possível da real.

O número de pacientes que descobrem o autismo na vida adulta tem crescido cada vez mais,
principalmente, quando a pessoa se enquadra no grau 1 e consegue camuflar melhor os sintomas no
decorrer da vida.

Usei da licença literária para caracterizar o personagem, mas gostaria de salientar para o seu
conhecimento que cada autista é único. Eles possuem muitas singularidades e reagem de formas
diferentes.

Um dos grandes objetivos desta obra é proporcionar conscientização e reflexão para o leitor.
Não seja a pessoa que aponta o dedo e diz “nossa, fulano não parece autista”; “ciclano é só fresco,
não é doente nada”, entre tantos outros preconceitos.

Todo ser humano merece respeito e ser aceito da forma que é. Boa leitura!
Dedico esta obra a todas as pessoas que se sentem perdidas e desmotivadas. Acredite, sempre há um
caminho!
SUMÁRIO
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
CAPÍTULO 43
CAPÍTULO 44
CAPÍTULO 45
CAPÍTULO 46
CAPÍTULO 47
CAPÍTULO 48
CAPÍTULO 49
CAPÍTULO 50
CAPÍTULO 51
CAPÍTULO 52
CAPÍTULO 53
CAPÍTULO 54
EPÍLOGO
BÔNUS 1
BÔNUS 2
AGRADECIMENTOS
SOBRE A AUTORA
When I look into your eyes
Quando olho em seus olhos

It's like watching the night sky


É como observar o céu à noite

Or a beautiful sunrise
Ou um belo nascer do sol

Well, there's so much they hold


Há tanta coisa que eles carregam

And just like them old stars


E assim como as antigas estrelas

I see that you've come so far


Eu vejo que você chegou tão longe

To be right where you are


Para estar bem onde você está

I Won't Give Up (Jason Mraz)


PRÓLOGO

10 anos

Arrumo a armação dos óculos no nariz e foco a atenção no movimento ritmado dos meus pés
no ladrilho da calçada.

É só uma escola nova. Sinto uma gota de suor escorrer na lateral da testa.

Vai ficar tudo bem. Meu coração acelera no peito.

Eu sou grande e agora a mamãe não precisa me acompanhar mais. Engulo em seco,
tentando manter a calma.

Bato os dedos na lateral do corpo e começo a contar: 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23...

Pensar em números primos normalmente me deixa um pouco relaxado, mas hoje estou tão
nervoso que não funciona direito. Eu tinha me acostumado a acordar pontualmente às 6h da manhã
para escovar os dentes, tomar banho, comer pão com manteiga, escovar os dentes de novo e ter a
companhia da minha mãe até a escola no caminho do seu trabalho. Chegava sempre trinta minutos
mais cedo e conseguia ficar lendo na biblioteca antes de as aulas começarem.

Não terei mais nada disso.

Com a mudança para o Ensino Fundamental II, tenho que ir para outro local, com aulas à tarde
e acompanhado do meu primo Pablo. Por mais que eu tenha tentado me planejar para isso, mudanças
na rotina me deixam muito agitado. Não gosto de não saber o que pode acontecer.

— Você lembra o que conversamos ontem? — Pablo cutuca meu braço, me fazendo levantar a
cabeça.

Repassei o que me disse 23 vezes antes de dormir, cheguei até a fazer uma planilha no meu
caderno.

— Sim, lem...

— Vamos de novo, pra você não esquecer — ele me interrompe, antes que eu comece a listar.
— Olhe para as pessoas por mais tempo, brinque com os garotos, converse com as meninas, não
responda tudo que a professora perguntar e jamais fique falando sem parar sobre as estrelas e a
galáxia. Ninguém se interessa por isso. Futebol é melhor!

— Ok — respondo, embora, não consiga entender como 22 pessoas atrás de uma bola possa
ser mais interessante do que o mistério de aproximadamente 400 bilhões de estrelas da Via Láctea.

— É só tentar ser normal, Dan. — Meu primo me abraça pelo pescoço e eu me retraio,
tentando sair disfarçadamente do contato. Também não gosto que me toquem sem que eu dê abertura.
— Você não vai querer ser o estranho de novo, como na antiga escola. Não é?

Balanço a cabeça, concordando, e continuamos a andar em silêncio pela calçada de ladrilhos.


“Ser normal” é algo que eu tenho buscado constantemente sem sucesso. Parece que meu jeito de ser
não combina com o da maioria das pessoas e, por mais que eu me esforce, acabo não atendendo às
expectativas delas.

Já fui a vários médicos do postinho de saúde perto de casa e, aparentemente, não há nada de
errado comigo. Minha mãe diz que está tudo bem ser diferente, mas no dia a dia é um pouco difícil
acreditar que é verdade.

Acho que ela está mentindo para me agradar. Não é nada legal ser o estranho.

O garoto ao meu lado diz alguma coisa, que imagino que deva ser engraçada porque está
sorrindo, e eu me obrigo a sorrir também, fixando meu olhar no seu por dez segundos, mesmo que não
tenha escutado.

Isso seria algo que uma pessoa normal faria, certo?

Assim que termino a contagem mental, volto a observar a professora de matemática que está
relembrando as regras do MMC (mínimo múltiplo comum) e do MDC (máximo divisor comum).

A entrada e as duas primeiras aulas foram um tormento para mim. O falatório e os rostos
desconhecidos quase me fizeram ter uma crise de ansiedade. Ficar pensando no que Pablo disse
deixa as coisas ainda piores. Parece que estou em um campo minado, tentando não falhar. O tempo
todo relembro sua lista.

Só agora eu realmente dei uma acalmada. Embora tenha facilidade de guardar informações de
todas as matérias, as minhas preferidas são matemática e ciências. Os números me tranquilizam.
— Alguém saberia me dizer qual é o menor múltiplo comum aos algarismos 12, 18 e 24?

Levanto a mão para responder, animado, mas antes de conseguir levá-la ao alto da cabeça,
sinto um pedaço de borracha atingir minha nuca. Olho para trás, sem entender, e avisto no fundo meu
primo me encarando de cara feia.

— Nada de ficar respondendo a professora! — sussurra, bravo.

Abaixo a mão rapidamente e balanço a cabeça, confirmando que entendi. A mulher loira na
frente da sala se vira do quadro e encara os alunos repetindo a pergunta. Minha boca comicha para
responder que é 72, uma questão tão simples, mas eu prefiro obedecer.

Nada de ser esquisito aqui também!

Segundo Pablo, as pessoas não gostam dos “sabichões”. Apesar da minha inteligência ser
uma das poucas coisas que a vó Marideide elogia, ainda mais quando ele repetiu de ano e começou a
estudar na mesma sala que eu, é melhor evitar motivos para me rotularem ainda mais.

O resto da aula transcorre comigo em total silêncio. Quando dá o horário do intervalo, meu
instinto natural implora para ficar sozinho em um canto lendo o livro que trouxe na mochila, porém,
Pablo não me deixa optar pelo caminho fácil.

— Nós vamos fazer um racha na quadra, melhor ainda não jogar, porque você é muito ruim.
— “Racha” deve ser um sinônimo para futebol, ao que parece. De qualquer forma, não iria gostar
mesmo. — Pega seu lanche e vai puxar assunto com as meninas, elas vão nos assistir.

Olho na direção que está apontando e engulo em seco, secando a mão suada no uniforme. O
que eu poderia falar? Se as estrelas são um assunto proibido, será que gostariam de saber sobre
música clássica? Eu adoro ouvir Beethoven, o som suave afasta da minha mente os ruídos
inconstantes do ambiente ao redor.

A passos lentos e incertos, afasto-me do Pablo e começo a andar na direção delas. Pelo que
percebi na sala, são de um grupinho que já se conhecia. Ficaram o tempo todo juntas.

— Po... po... posso me sentar aqui? — pergunto, ajeitando os óculos no nariz.

A menina mais alta me olha de cima a baixo e torce um pouco o rosto para a esquerda.

— Desculpa, está ocupado!

Olho mais uma vez para o local e constato que há claramente um lugar vago ao seu lado.

— Mas não tem ninguém sentado.

— Claro que tem, você não está vendo! — Uma de cabelos encaracolados ri, colocando uma
mecha atrás da orelha. — É o lugar do Theobaldo, amigo invisível da Alicia. Melhor você se sentar
com a sua turma.

— Esse é um assunto que ainda gera muita discussão, não há comprovações científicas
suficientes de que existam fantasmas — afirmo e arrumo novamente os óculos. — Amanhã eu tento
mais uma vez, então. Espero que sejamos amigos.

— O quê? — A loira me encara, com uma feição que não consigo compreender. — Espera
sentado pra ser nosso amigo.

Ela não queria que eu me sentasse, agora quer que eu me sente para ser seu amigo? Arqueio a
sobrancelha, confuso, e resolvo me sentar. Novas amizades são tudo que eu preciso.

— Você é louco, menino?!

Abro a boca para dizer que não, mas ela começa a gargalhar. De repente, tudo fica em câmera
lenta e só consigo ver os rostos apontando para mim e rindo. Palavras que eu já cansei de escutar
reverberam ainda mais fortes do que nunca.

“Esquisito.”

“Estranho.”

“Anormal.”

“Bizarro.”

Solto o lanche no chão e tapo o ouvido, tentando em vão interromper o barulho. Não para.
Não para de jeito nenhum! Tum, tum, tum, tum. As batidas do meu coração brigam para alcançar o
som do lado externo.

— Deixem ele em paz! — Escuto ao fundo a voz grave do meu primo. Passos rápidos, um
toque no meu ombro. Retraio. — Você está bem, Daniel? Daniel! Olha para mim, Dan!

Desta vez não o obedeço.

Inclino a cabeça na direção das minhas pernas e fecho os olhos, apertando mais firme as
mãos nos meus ouvidos.

Um dia eu vou ser normal. Um dia eu vou ser normal!


CAPÍTULO 1

24 anos

Gosto de pensar que eu sou igual a matéria e a energia escuras: cerca de 95% do universo
que os astrônomos sabem que existem, mas ainda não sabem exatamente o que são. As pessoas
enxergam a superfície e não fazem ideia da grandiosidade que está escondida.

Só conseguimos identificar objetos cósmicos cuja luz teve tempo suficiente para viajar e
atingir nossos telescópios. Considerando a expansão desde o Big Bang, o diâmetro do universo
observável gira em torno de 93 bilhões de anos-luz. Se cada ano-luz é equivalente a 9,5 trilhões de
quilômetros, e esse dado corresponde a apenas 5% do que sabemos, imagine o tamanho real de tudo
que nos rodeia.

É magnífico!

O professor João costuma dizer que é como se todas as galáxias que conhecemos hoje fossem
apenas um granulado em cima de um grande bolo. Não gosto muito de bolo, mas a comparação é
válida. O que pensam de mim é apenas esse único granulado. Assim como o universo, até agora
ninguém conseguiu desvendar além disso.

— Você tem noção que, neste mês, estaremos mais próximos de abrir caminho para missões
tripuladas a Marte? — Saulo entra na sala eufórico, tirando-me dos devaneios. Arrumo a armação
dos óculos e olho na sua direção, sorrindo, mesmo que seja uma pergunta retórica. Ele sabe que eu
sei. — Acabou de sair um comunicado da NASA com a contagem regressiva para a espaçonave
rover Perseverance pousar.
— Tomara que o mais sofisticado robô já criado consiga encontrar indícios de que seres
vivos microscópicos habitaram Marte. Se os astronautas não pisarem lá na década de 2030, como
previsto, acho que você entra em colapso.
— Não duvido que seja possível. — Ele coloca a mão no coração, enruga a testa e se senta
na mesa ao meu lado. — Mas estou convicto de que o rover caracterizará a geologia do planeta e o
clima, armazenando informações valiosas. Será fundamental para a etapa da exploração humana. Se
tudo der certo nas nossas pesquisas, estaremos prestando serviço na agência espacial americana
quando isso acontecer e iremos acompanhar de perto essa revolução.
— Vamos conseguir! — afirmo, convicto, e volto a prestar atenção na tela do computador.
Meu amigo também fica em silêncio concentrado no seu trabalho. Acredito que, se alguém
chegou perto de me entender um pouco, esse alguém é ele. Muito mais até que minha própria família.
Nós nos damos muito bem pelo interesse em comum na astronomia e porque ambos gostamos
de imergir no que amamos sem as cobranças sociais impostas fora daqui.
Podemos falar sem parar do espaço, Saulo não necessita de contato visual constante, nunca
me toca, não grita e não liga se eu souber mais respostas do que ele. Passamos cerca de dez horas
juntos de segunda a sexta-feira, entre trabalho e aulas.
Somos doutorandos bolsistas de Astrofísica na USP, uma das únicas universidades com
graduação em Astronomia no país e que possui reconhecimento internacional pelo trabalho de
qualidade na área, e ainda assistentes do melhor docente do departamento: o aclamado cientista João
Estácio. Desta pequena sala de 20 metros quadrados, sem janela e de paredes amareladas, estão
saindo pesquisas que podem contribuir para descobertas significativas e ainda nos render, daqui
alguns anos, uma experiência única na NASA.
Mesmo não tendo cidadania americana, há uma chance de brasileiros serem contratados
através de projetos específicos na agência espacial. Já existem dezenas espalhados por várias áreas
lá. O professor João tem um contato que provavelmente irá nos abrir muitas portas.
É o meu grande sonho.
A linha de pesquisa do Saulo está embasada em Marte e a minha, nos temidos buracos negros,
que são uma enorme quantidade de massa concentrada, com um campo gravitacional tão forte que é
capaz de atrair para si tudo o que se aproxima deles, inclusive a luz.
Constantemente essa manifestação é representada em filmes e séries de ficção científica,
gerando uma curiosidade enorme até em pessoas que não se interessam tanto pelo assunto.
Desde criança, eu tive uma fascinação fora do comum pelas estrelas e foi um caminho natural
me identificar também no que acontece quando elas morrem. A maioria dos buracos negros é formado
após a Supernova — um evento astronômico que ocorre no estágio final da evolução de algumas
estrelas. Trata-se de uma explosão muito brilhante, de duração curta na escala espacial. O efeito
luminoso causa seu apagamento definitivo e a energia resultante, muitas vezes, cria o buraco negro.
Para que isso aconteça, no entanto, é preciso que a estrela em questão seja três vezes maior do que o
sol.
Do momento que entrei na faculdade de Astronomia, com 17 anos, até hoje tenho me dedicado
a entender esse fenômeno. Meu mestrado no Inpe, outro aclamado instituto de pesquisas espaciais, se
aprofundou na questão por dois anos e agora quero ir além.

Embora pareçam relativamente simples, os buracos negros levantam algumas das questões
mais complexas sobre a natureza do espaço e do tempo e, consequentemente, sobre nossa existência.

Assim como a minha tentativa de ser normal, desvendar uma parte deste segredo — mesmo
que me leve a vida toda e se torne desgastante — é algo que jamais vou desistir.
Olho na direção do relógio redondo bem no centro da parede e vejo que se aproxima da hora
de ir embora. Salvo o arquivo de anotações três vezes para garantir e saio do programa digital que
mostra uma imagem real do primeiro buraco negro registrado na história, no centro da galáxia M87, a
53,5 milhões de anos-luz da Terra.

A descoberta recente, feita em 2019, graças ao trabalho de mais de 200 cientistas de várias
partes do mundo, está sendo fundamental para a minha pesquisa. Tiro os óculos de grau, que só uso
para ficar no computador, e apanho o fone de ouvido enquanto o guardo na mochila.

— Amanhã eu não venho, porque preciso fazer aquela endoscopia que te falei por causa do
meu refluxo — Saulo avisa, desligando o seu computador também. — Sábado eu passo aqui de
manhã. Você vem receber o professor João e saber as novidades da sua viagem ao Chile?

O céu limpo e livre de nuvens 90% do ano no país, atraiu para o Chile telescópios ópticos e
infravermelhos de grande porte de todo mundo. No grau de excitação, o local é como um parque de
diversões para as crianças: enorme e cheio de possibilidades incríveis.

— Com toda certeza! — respondo, categórico. Estou ansioso para isso.

Despedimo-nos com um aceno distante e eu plugo o fone no meu celular ao andar pelos
corredores silenciosos do departamento. É impressionante a mudança que parece mover dentro de
mim quando passo pela entrada arborizada e alcanço a realidade caótica.

O barulho alto das buzinas, os cheiros misturados, o falatório sem sentido e os esbarrões pela
calçada são algo que me deixam muito agoniado. Nunca sei o que me espera do lado de cá. É
instantâneo meu coração acelerar e as mãos ficarem suadas.

2, 3, 5, 7, 11, 13...
Bato os dedos na lateral do corpo e faço o ritual diário de contar números primos ouvindo
Beethoven até o ponto de ônibus.

Não preciso esperar muito desta vez, ele chega no horário e eu respiro, aliviado, quando
percebo um banco vago no fundo, ao lado de uma menina loira que não deve ter nem 15 anos e de um
homem careca de meia-idade.

Apesar de não gostar de ficar espremido em um espaço pequeno, é melhor do que chacoalhar
de um lado para o outro em pé. Daqui a pouco isso aqui lota e se torna quase claustrofóbico.

— Boa noite! — cumprimento os dois, educado, ao me sentar. Tiro a mochila e a deposito no


meu colo.

A menina responde com um sorriso simpático e o homem finge que não ouviu. Não é incomum
isso acontecer, com frequência as pessoas me ignoram.

Tento focar na música, mas é impossível não reparar na revista que a garota está lendo, mais
precisamente em uma página de horóscopo. Nunca consegui entender muito bem o fascínio por algo
sem nenhuma evidência empírica.

Sorrio ao imaginar alguém querer ser mais esperto do que Einstein, Newton e Maxwell, que
já provaram matematicamente, que a atração gravitacional entre os astros e os humanos são muito —
muito mesmo — pequenos.

— Quer que eu leia seu horóscopo de hoje? — ela pergunta, curiosa, de certo entendendo
meu sorriso como uma abertura positiva ao assunto. — Qual é o seu signo?

— Ah, não, obrigado. Eu não acredito na astrologia. — Tiro o fone do ouvido para tentar uma
conversa. — Não faz sentido imaginar que o movimento dos astros no dia do seu nascimento
influencia sua personalidade e pode prever o futuro.

— Como é?

Com o tempo, consegui compreender que essa careta que ela está fazendo não é um bom sinal,
mas o silêncio e seus olhos me observando indicam que talvez, realmente, quer saber meu ponto de
vista.

Fito-a por cerca de dez segundos, abrindo um sorriso tímido, e desvio a atenção para a
revista, decidindo explicar:

— Na astronomia, usamos o método científico para investigar e explicar fenômenos do


universo, já a astrologia se baseia em misticismos para correlacionar eventos cósmicos com os
humanos. — Volto a observá-la e percebo que o seu rosto continua contorcido. Será que está
concentrada ou brava? — Estudos conduzidos por vários ramos da ciência concluíram que não há
relação de causa e efeito comprovada, até o momento, entre os movimentos dos astros e o
comportamento de uma pessoa. Lamento dizer que acredito que continuará sem comprovação.

Ela se levanta de repente e enfia a revista debaixo do braço. Está brava. Não me dirige a
palavra nenhuma vez, no entanto, posso escutar seu esbravejo sussurrado enquanto prefere ficar em
pé do que sentada perto de mim.

— Puta merda, é cada surtado que me aparece. O que tem de bonito, tem de maluco.

Passo o olhar para o homem que está sentado na esquerda e ele também me fita com
estranheza. Encolho-me no banco e recoloco o fone, aumentando o volume o máximo que meus
ouvidos suportam.
Não gosto de barulho alto, mas agora é a melhor coisa para me distrair e dispersar a minha
mente.

Ao que parece, vai ser mais fácil fazer uma descoberta única sobre buracos negros do que
conseguir me conectar com as pessoas. Já são 24 anos tentando, com avanços tão pequenos que
chegam a desmotivar.
CAPÍTULO 2

A maioria das pessoas passa a vida toda querendo ser vista, ansiando interação e
reconhecimento. Querem ser o queridinho da família, o amigo mais descolado, o empregado mais
competente. Querem conhecer cada vez mais gente, se relacionar, se apaixonar...

Muitas delas, passam a assumir um papel que não as representa só para se encaixar — o
maior erro que alguém pode cometer na vida. Há três anos, eu fui uma dessas pessoas. Fiz de tudo
para aparecer, achando que isso me traria felicidade, e paguei do jeito mais doloroso possível o
preço de tanta exposição. Puxo o ar bem fundo, evitando um novo colapso. Mesmo que eu lute por
isso a cada milésimo de segundo do dia, acho que nunca serei capaz de esquecer meu passado.

É impossível afogar tanta dor e mágoa.

A única coisa que me cabe é tentar ser invisível agora. Queria ter o poder de vagar pelas ruas
sem ser notada jamais, sobrevivendo no silêncio das sombras. Não há nada mais reconfortante para
mim do que manter o máximo de distância de todos à minha volta. Quieta, no meu canto. Infelizmente
não é plausível me esconder completamente, mas acredite, eu me esforço com todas as forças que me
restaram para conseguir.

Se não fosse causar ainda mais sofrimento aos meus pais e minha irmãzinha, com certeza eu
teria me rendido aos sussurros desesperados da minha mente quando me mudei para São Paulo. Seria
muito, muito mais fácil, se Aurora Mendes não existisse mais. Para mim mesmo e para muita gente
por aí.

Eu quase tive coragem uma vez, cheguei a pegar o estilete e apontar para meu pulso. Tremia
tanto, tanto, que pensei que meu peito fosse se rasgar ao meio aquele dia. Engulo em seco e fecho os
olhos ao relembrar a cena com tanta intensidade.

Esquece isso, garota!

Balanço a cabeça e passo a faixa de elástico pelo ombro, ajeitando-a na altura dos meus
seios. Faço rápido, com força, afoita para afastar as memórias. A sensação do pano me comprimindo
ajuda a aliviar meu coração acelerado. É masoquista dizer isso, mas às vezes a dor física é a melhor
forma de me acalmar.

Apanho uma camiseta preta de algodão, dois números maiores que o meu, e visto junto com
uma calça de moletom da mesma cor. Termino de me arrumar calçando um tênis surrado, que já não
aguenta mais tantas andanças, e prendendo meu cabelo em um coque dentro do boné escuro.

Todo dia eu me arrumo exatamente desta forma e saio de casa bem cedo para trabalhar.
“Casa”, na verdade, não é bem uma palavra adequada para este lugar. Eu durmo em um espaço
pequeno junto com as mercadorias da Pilar. Meus únicos bens no momento são uma mala com poucas
roupas e um colchonete que enrolo e escondo para não ficar à vista dos clientes quando a lojinha
dela abre.

Escovo os dentes em uma pia pequena que tem no fundo e guardo as minhas coisas no lugar
de sempre. Quando abro a porta e os raios de sol da manhã batem no meu rosto, logo avisto Pilar
descendo as escadas com meu café em um copo descartável e um pedaço de bolo. Aposto que é de
cenoura, ela sabe que eu gosto e sempre faz esse para me agradar.

— Fico me sentindo uma péssima pessoa por trazer café pra você aqui embaixo — ela volta
ao assunto pela enésima vez, entregando-me o desjejum. É de cenoura mesmo. Sinto minha boca
salivar, estou com fome. — Você tinha que parar com isso e ficar lá em cima com a gente.

— Não quero incomodar — respondo o de sempre, sucinta.

Ela nem precisa me alimentar, faz muito mais do que eu esperava quando aceitei sua ajuda. A
senhora de 40 e poucos anos foi uma das únicas pessoas que me estenderam a mão quando tudo
desmoronou. Se não tivesse conseguido um teto para morar e algo para ganhar uma renda — mínima
que seja — não sei o que seria de mim agora.

Pilar mora no andar de cima com seu marido e três filhas. No andar de baixo fica um brechó
com roupas de segunda mão que vende no bairro — inclusive, as minhas peças antigas. Troquei todas
que trouxe por modelos masculinos que ela tinha.

Logo que cheguei aqui, a mulher insistiu para que eu dormisse no seu sofá, mas me senti muito
mal por invadir tanto a privacidade da família. Era uma completa desconhecida para eles, e a casa
mal consegue abrigar tantos corpos.

Comprei um colchonete com minhas economias e perguntei se podia ficar na loja uma semana
depois que me mudei. De início, ela não gostou da ideia, no entanto, diante do meu desespero por não
ser um estorvo, acabou concordando.

A única hora do dia que eu subo é para tomar banho e lavar minhas roupas, assim que volto
do trabalho à noite. Faço questão de pagar um valor mensal para ela por isso, mesmo que aceite
quase forçada. É pouco, só que faço questão. Sei que Pilar faz tudo de coração, é uma boa pessoa,
mas realmente odeio me sentir um peso para alguém.

Já basta tudo que fui até agora para meus pais.

— Vou indo — digo, diante do seu silêncio. Não gosto quando fica me olhando com pesar. —
Eu como no caminho para não me atrasar.
— Vai com Deus, minha filha. — Sua voz soa um pouco embargada. Sempre tenho a sensação
de que quer dizer um monte de coisas, mas se segura. Se ela sabe o que aconteceu comigo, ainda
bem, nunca tocou no assunto. — Bom trabalho, se cuida.
— Obrigada, pode deixar.
Viro-me e saio caminhando o mais rápido que minha perna manca consegue. Seus olhos
tristes me lembram os da minha mãe e isso é um fardo pesado demais para carregar logo às 6h30 da
manhã.
Pela calçada vazia do bairro afastado do Centro, caminho comendo meu bolo preferido por
cerca de 25 minutos até chegar à cooperativa de reciclagem. Uma amiga da Pilar conseguiu para mim
um emprego de catadora integral aqui. Preferi mil vezes andar no sol o dia todo, porém, sozinha, a ter
que encarar o entra e sai de pessoas no seu brechó. Além do mais, eu sei que o negócio mal dá para
sustentá-la, não tem condições nenhuma de arcar uma funcionária.
O salário de catadora não chega a R$600,00 por mês, mas tem me ajudado com o básico do
básico, por enquanto. Para mim mesmo, quase não sobra nada, porque também faço questão de enviar
uma parte aos meus pais.
Passo pelo portão de ferro de cabeça baixa, evitando contato com os outros catadores que já
se aglomeram no pátio da cooperativa em um falatório animado. Sigo direto para a lateral do galpão
a fim de pegar o meu carrinho e sair logo para o trabalho.
É difícil eu pegar para conversar com alguém.
— Bom dia, Aurora! — uma das responsáveis por organizar o pessoal me cumprimenta. —
Você continua no setor leste por enquanto, junto com Josias, Mônica e Ana.
— Bom dia, tudo bem.
Adoro ficar no setor leste. É calmo e as pessoas estão mais propícias a ajudar o projeto. Os
moradores deixam os materiais recicláveis separados adequadamente na porta de suas casas e quase
não tenho que abrir a boca o dia todo. Nem com os outros catadores, visto que nos dividimos por
ruas.
A melhor parte, entretanto, nem é essa. Lá tem uma unidade do Bom Prato por perto e eu
consigo ter um almoço decente por apenas R$1,00. Qualquer economia faz toda diferença para quem
conta moedas.
Pego o carro de mão personalizado que ela me oferece e sigo o meu trajeto do dia. Todos são
amarelos, com um suporte de grade central, o logo do projeto na lateral direita e duas rodas
dianteiras. Alguns modelos têm bicicleta acoplada, cansa menos do que empurrar, mas por causa da
minha perna machucada, não consigo. Dói mais do que apenas caminhar.
A primeira viagem passa voando comigo entretida entre empurrar o carrinho e apanhar os
objetos. Geralmente faço quatro por dia, duas de manhã e duas à tarde, enchendo o compartimento até
a boca.
Seria mais rápido se eu pudesse distrair minha cabeça com música — ela sempre foi um
combustível de concentração e escape —, mas por segurança prefiro deixar o celular bem guardado
na loja da Pilar. É o único meio que eu tenho para falar com minha família e manter a farsa que
inventei. Se for roubada, estou fodida para conseguir outro.

Assim que estou voltando à área leste para a segunda remessa, sinto um arrepio na espinha ao
perceber que tem um carro andando devagar atrás de mim. Sem que consiga controlar, minhas mãos
começam a suar e o meu coração aumenta as batidas desenfreadamente. Posso senti-las socando meu
peito, comprimindo o ar dos meus pulmões.

Não é nada. É impossível ele te encontrar aqui. Não tem como achá-la, muito menos
vestida desse jeito.

Repito o mantra ao meu cérebro e viro a cabeça disfarçadamente para ver o que pode ser.
Enxergar um volvo vermelho quase me causa um infarto no meio da rua. A respiração fica
entrecortada e as lágrimas embaçam minha visão. O choque é tão grande, que é impossível refrear as
reações do meu corpo. Aperto os dedos na alça do carrinho e forço a perna manca andar sem chamar
atenção.

A perna que ele machucou.

Um, dois, três... Dou três passos que me cansam mais do que se fosse participar de um
triathlon. Parece que estou carregando um peso de cem quilos em cada pé. Meu Deus do céu, vou...

Escuto uma risada de mulher e meus olhos não resistem a seguir o som. O carro passa por
mim e percebo o motorista entregando um celular para sua carona. Pisco duas vezes acompanhando o
carro acelerar e seguir o seu destino.

Não é ele. Não faço ideia de quem seja esse casal, que nem está percebendo minha existência
neste momento. Muito provavelmente estavam devagar porque o motorista atendia a uma ligação.

Uma simples ligação de um estranho me causou uma fobia desesperadora.

Viro a esquina e paro em uma via menos movimentada, percebendo minhas mãos trêmulas. As
lágrimas que eu tentava reprimir escorrem pelo meu rosto trazendo alívio e ao mesmo tempo uma
constatação que causa um vazio enorme no meu peito: mesmo depois de tudo que eu fiz, três anos se
passaram e o medo continua tão vivo como quando o inferno começou.
CAPÍTULO 3

Tranco a porta e confiro três vezes se realmente está fechada. Não gosto de ninguém
invadindo meu espaço, só a minha mãe tem permissão para entrar aqui quando não estou. Sigo pelo
corredor lateral, que dá acesso à casa da frente, e mal chego à metade, já começo a ouvir o falatório.

Às vezes eu penso muito em me mudar. Não que eu não goste da minha família, pelo
contrário, mas eles são barulhentos demais.

Moro em um terreno grande que foi do meu falecido bisavô, em uma época que a sua
academia de artes marciais tinha bastante prestígio na região. Além do galpão para as aulas, tem uma
casa maior que abriga minha vó, meus tios e meus primos; e uma pequena, nos fundos, onde minha
mãe e eu ficávamos antes de ela ir para Brasília.

Viviane resolveu lutar pelo seu sonho quando eu consegui bolsa para a faculdade e ingressou
no curso de formação para comissária de voo. Faz cinco anos que ela trabalha para a LATAM
Airlines e, depois de muito se esforçar, conquistou uma vaga para participar de rotas internacionais
na Europa, saindo da capital do país.

Há uns oito meses eu tenho ficado sozinho e, confesso, é uma experiência maravilhosa o
silêncio.

Limpo o pé no tapete de pano e paro no batente da cozinha, observando o ambiente cheio logo
cedo. O cheiro de café invade meus sentidos e eu tapo o nariz disfarçadamente. Odeio esse aroma
forte, me incomoda demais.

— Daniel, vem comer, menino. Você está ficando muito magro desde que sua mãe foi embora!
— Vó Marideide mal me espera entrar e me pega pelo braço.

Quando é ela quem me toca, eu nem tento mais me distanciar. Minha vó fica muito triste com
essa atitude e chega até a chorar, dizendo que eu sou o único neto que não gosta dela. Isso não é
verdade, mas não sei mais como provar. Ela não acredita nas coisas que eu falo.

— Eu já comi meu pão com manteiga, vó. Passei aqui só para encontrar com o tio Noberto.
Ele disse ontem que tem uma reunião perto da universidade e vai me dar uma carona.

— Ele acordou atrasado, Dan. Foi tomar um banho rápido — tia Ana Júlia avisa da pia,
enquanto termina de lavar um copo.

Não gosto de me atrasar. Se eu soubesse que ele não cumpriria o horário, teria ido de ônibus
mesmo, como faço todo dia. Seria bem mais fácil se eu tivesse um carro, mas não consegui me
adaptar a dirigir.

As únicas vezes que entrei naquele espaço pequeno e apertado, com um monte de outros
veículos buzinando, fiquei com uma crise de ansiedade horrível. Eu também economizaria tempo se
gostasse de metrô, porém, tenho pavor daquele barulho dos trilhos. Além disso, tem muito mais gente
aglomerada do que em ônibus.

— Aproveita e senta um pouco antes de ir, aposto que não comeu nada! — vó Marideide
declara, como sempre, não acreditando em mim.

Sem me deixar retrucar, ela força meu corpo na direção da cadeira e coloca uma xícara de
café na minha frente com um pedaço de bolo de fubá. Afasto-me para a ponta, evitando ficar tão
grudado nos meus primos, e esfrego a mão na calça jeans.

Tenho que criar coragem para engolir isso, mesmo sem querer. É melhor fazer o que ela pediu
do que começar uma confusão, embora não seja minha intenção.

— O Dan não gosta de café nem de bolo, vó! — Mel me salva a tempo, pegando os alimentos
e deixando uma maçã no lugar.

De maçã, eu gosto! E da Mel também. Minha prima mais nova é engraçada e extrovertida,
nunca me critica nem tenta me forçar a nada. Olho na sua direção e sorrio, agradecido.

Semana que vem é o aniversário de 11 anos dela e preciso me lembrar de comprar alguma
coisa bem legal relacionada a unicórnios. A pequena adora e provavelmente ficará feliz.

— Ele é mimado demais, isso sim! — Camile, a filha do meio do tio Noberto, reclama,
mastigando uma rosquinha. — Se toda vez tiver alguém pra defendê-lo e fazer suas vontades, como a
tia Viviane fez a vida toda, nunca vai melhorar.

— É verdade, precisa aprender a comer de tudo. Nós não somos ricos, não! — minha vó
endossa, fitando-me de cara fechada.

Realmente, a família anda bem desprovida de dinheiro, mas eu não consumo nada caro. Só
não gosto de determinados alimentos por causa da textura ou do odor. Vou conversar com a minha
mãe se estou trazendo despesas desnecessárias.

O valor que eu ganho da bolsa de estudos estou guardando em uma poupança para poder ficar
um tempo nos Estados Unidos, assim que o doutorado terminar. Mesmo que não dê certo na NASA,
Saulo e eu queremos ter a experiência de trabalhar em algum projeto de astrofísica por lá.
O salário da Viviane aumentou bastante agora que está em voos internacionais, porém, está
sendo gasto quase na totalidade para pagar uma dívida que o tio Noberto tem da academia.

Este, aliás, é o motivo para que ele vá em uma reunião daqui a pouco. Está desesperado por
um patrocinador para angariar novos alunos, sejam homens ou mulheres, a fim de participar de um
torneio que vai acontecer daqui a três meses, com um ótimo prêmio em dinheiro.

Os alunos bons já foram embora faz tempo e só o Pablo tem representado a academia em
competições com chance de vitória. É essencial novos pupilos. O problema é que a sua categoria é a
que mais têm adversários à altura e sozinho não tem conseguido os prêmios maiores.

Marideide puxa assunto sobre o almoço com a minha tia e eu me encolho na cadeira, dando
uma mordida na maçã em silêncio. Será que vou me atrasar muito? A essa hora o professor deve
estar chegando no departamento e Saulo vai saber de tudo primeiro.

João é muito inteligente e nos trata bem, porém, não é dado a conversas longas. Ele não vai
ter paciência para contar duas vezes, perderei os detalhes.

— Hoje à noite eu vou colar em uma resenha boa com meus amigos — Pablo diz baixo, para
que a vó não dê sermão nele. Sempre quando sabe que vai sair, ela fica acordada até tarde esperando
o rapaz voltar. — Faz um milhão de anos, literalmente, que não saio de casa pra me divertir por
causa dos treinos. Preciso de uma folga. Topa?

— Colar em uma resenha? — pergunto, sem entender. A única resenha que eu conheço é o
texto acadêmico que fazemos na universidade. Tendo em vista o contexto e o fato do meu primo nunca
ter frequentado uma, não acho que seja isso. — E, como assim, “literalmente um milhão de anos”? É
impossível isso, tanto na gramática como na biologia.

— Porra, Daniel, deixa de ser chato pra caralho! — Pablo censura, revirando os olhos. — A
gente quer te ajudar, mas é foda às vezes, viu?! O que eu perguntei é se vossa senhoria se interessa
em dispensar o seu tempo para sair comigo hoje à noite.

A risada escandalosa que Camile solta me alerta de que provavelmente seu irmão está sendo
irônico. Eu tenho uma dificuldade enorme de entender quando as pessoas não são claras comigo.

Respiro fundo e me ajeito na cadeira, colocando o resto da maçã na mesa.

— Não, obrigado — agradeço, educado. — Hoje à noite vou participar de um seminário ao


vivo sobre o lançamento do supertelescópio James Webb.

— Que programão, hein! — minha prima comenta, levantando-se.

— É sim, estou muito animado, porque será uma missão épica, nos possibilitando ter imagens
de altíssima qualidade da Via Láctea e até mesmo do buraco negro supermassivo presente no centro
da nossa galáxia... — Ela nem espera eu terminar de falar e sai andando em direção ao seu quarto,
que fica perto da cozinha.

Acompanho seus passos sem entender por que se retirou dessa forma. Será que eu disse algo
errado?

— Não liga pra Camile, está sendo sarcástica de novo, pra variar — Mel me explica,
percebendo que fiquei confuso.

— Tudo bem. — Desvio o olhar para minha blusa e passo a mão no tecido.

Fico me sentindo muito mal por não entender as pessoas, não saber exatamente o que estão
querendo comunicar. Parece um dom tão fácil para a maioria, por que para mim é difícil?

— Tem certeza de que não quer ir comigo? — Pablo insiste, antes de sair da mesa também,
interrompendo meus pensamentos. — Vai ser bem melhor do que ver seminário, pode acreditar.
Monique vai estar lá.

— Agora que não quero ir mesmo. — Fico em pé assim que vejo Noberto despontar na
cozinha. — Obrigado pelo convite.

Ainda bem que ele chegou! A última coisa que eu quero é falar dessa tal de Monique e das
amigas que o Pablo tenta me fazer relacionar. Meu coração acelera e sinto um frio no estômago só de
lembrar as confusões que já criei por culpa disso.

— Vamos, Dan! Estou muito atrasado — meu tio afirma, apanhando um pedaço de pão da
mesa.

— Estou esperando há cerca de onze minutos. — Observo o relógio no formato de abacaxi


que tem na parede e seu cabelo molhado pelo banho. — Embora hoje seja sábado e o trânsito esteja
mais tranquilo, estimo que estarei na universidade às 9h43.

— Vai dar tempo! — Sorri para mim e deixa um beijo na bochecha da esposa, depois da sua
mãe. — Me desejem sorte.

— Deus te abençoe, meu filho! Você vai conseguir.

— Rezarei por você, meu amor.

— Arrasa com eles, pai!

Escuto os desejos empolgados dos meus familiares e fecho a boca antes de afirmar que sorte
não existe. Para alcançar seu objetivo, ele deveria ter se preparado melhor ao invés de dormir muito
e chegar atrasado.

Não sou perito em seres humanos, mas aprendi com observação que às vezes as pessoas
precisam ouvir que ficará tudo bem, mesmo que as estatísticas mostrem o contrário.

De vez em quando, é importante contar com a sorte, ainda que seja algo imaginário.
CAPÍTULO 4

Arrumo o boné para tentar evitar os raios do sol no meu rosto e passo as costas da mão no
pescoço a fim de tirar o excesso de suor que se acumula ali. Meu Deus, hoje está muito quente.
Minha boca está seca, desesperada por água, e meu estômago ronca de fome. Quando a temperatura
aumenta demais, se torna um martírio caminhar por essas ruas.

O calor é o único responsável por me fazer reclamar do trabalho que tenho. Apesar de não
ser nem de longe o que sonhei para mim um dia, sou grata por ter alguma forma de sobreviver e de
ajudar a minha família.

Se eles estão falidos atualmente, a culpa não é deles. O mínimo que posso fazer é tentar
retribuir mesmo com pouco. Se continuasse morando em Pirapora, com certeza não conseguiria
trabalho em lugar nenhum — nem de prostituta — e a situação seria ainda pior.

Independente de quanto faço no mês, sempre envio R$350 para o tratamento da minha
irmãzinha Sara e pago R$150 para a Pilar. Nos meses que tenho sorte, fico com R$80 para arcar com
gastos básicos de alimentação e higiene.

Hoje está sendo um dia perdido, infelizmente, e que vai pesar no ganho semanal. Já está na
hora do almoço e não consegui encher o carrinho nem para fazer uma viagem. Dois recicladores
estão doentes e fui remanejada para outra área que tem bem mais movimento, também muita
concorrência de catadores individuais.

Isso não é nada bom.

Avisto um boteco simples à frente e sigo até lá para conseguir ler a placa improvisada com o
prato do dia. Vou ter que parar um pouco, senão, é capaz de desmaiar no meio da rua.

Marmitex por R$13


Mistura, guarnição, salada de alface, arroz e feijão

Caramba, está caro. Mas o pior é que não vou achar nada mais em conta por aqui. Terá que
ser isso mesmo.

— Senhora, por favor! — chamo uma mulher franzina, que termina de anotar o pedido de uma
cliente que está sentada nas mesas externas.
Ela se aproxima com simpatia, não fazendo cara de nojo como muitas vezes eu tenho que
enfrentar por trabalhar com reciclagem.

— Nossa, que olhos lindos! — comenta, encarando-me com atenção assim que para na minha
frente.

Tenho heterocromia, um é azul-esverdeado e o outro castanho-claro. Isso costuma chamar


bastante atenção por onde passo, por isso, não deixo de usar boné mais. Evita destaque para o meu
rosto.

— Obrigada. — Sorrio, sem graça. Antigamente eu adorava quando era elogiada, agora só
queria ser imperceptível para outras pessoas. — Quero um marmitex, você pode trazer aqui, por
favor?

Não desgrudo do carrinho de jeito nenhum. Se Deus me livre eu for roubada, não sei como
arcar com o custo.

— Claro, eu trago, sim. O que você gostaria? — Ela pega o bloquinho e se prepara para
anotar.

— Se eu tirar a mistura, a marmitex fica mais barata? — sondo, observando a placa com o
preço mais uma vez.

No começo, eu tinha vergonha de fazer esse tipo de pergunta. Depois de três anos, você
aprende a se adaptar para sobreviver.

— Consigo fazer por R$9. Quer o que de guarnição?

— Tem batata?

— Tem sauté.

— Ótimo, vou querer. — Vai me manter satisfeita até à noite, já ajuda bastante.

Pego a garrafinha de água que está presa na alça do carrinho e tiro de um bolso, que fiz com
papelão e fita adesiva, os R$15 que eu trouxe comigo. Colar assim na superfície de plástico foi uma
forma que encontrei para não ser roubada, chama menos atenção.

— Quer que eu encha pra você? — pergunta, ao perceber que estou balançando o recipiente
vazio.

— Adoraria. — Sorrio amplamente desta vez. Estava agoniada de ter que esperar chegar à
cooperativa para reabastecê-la. — Obrigada.
Entrego o dinheiro e a garrafinha para a mulher simpática e fico esperando do lado de fora do
boteco de cabeça baixa. Menos de cinco minutos depois, ela volta com a comida em uma sacola, meu
troco e água geladinha.

Minha boca até saliva.

— Muito obrigada, mais uma vez.

— Imagina, bom trabalho, querida. Fica com Deus!

Coloco a garrafa junto com a marmita e enrolo a sacola no pulso, empurrando o carrinho até
uma ponte que tem do outro lado da rua. Estou com tanta pressa para matar a sede e a fome, que nem
me importo com os carros que buzinam e xingam. É comum catadores serem hostilizados no trânsito.

Assim que encosto na sombra, pego a água de volta e viro com tudo garganta abaixo.
Q.u.e.d.e.l.í.c.i.a!

Satisfeita, olho em volta para encontrar um cantinho vazio para almoçar e dou de cara com o
grafite de uma mulher com a boca tapada. Seus olhos expressivos estão agoniados pela força que a
mão faz para calar sua voz. Sinto meu peito esmagando tudo por dentro.

É como se a imagem pudesse ler a minha alma.

Aperto a garrafinha entre os dedos, com a tristeza inundando minha corrente sanguínea. É
impossível refrear as memórias que vêm como um trem desgovernado.

Abro a porta e a tranco correndo, com lágrimas cegando meus olhos e o coração batendo
alucinado no peito. O barulho é tão forte que reverbera por cada parte do meu corpo. Passo a
mão na perna engessada e tento controlar a respiração, mas não consigo inspirar e expirar
pausadamente.

Estou morrendo de medo. Ele não pode ter me visto. Por favor, não permita que ele tenha
me...

— Você pensou mesmo que podia fugir? — Dou um pulo com o soco na porta e a sua risada
maléfica se dirigindo a mim.

— Socorro! — grito, desesperada, e vou andando para trás o mais rápido que consigo. —
Socorro!
Sua postura ereta e o olhar cheio de ódio me deixam mais apavorada. Será que ele seria
capaz de fazer algo ainda pior do que já fez?

Meu Deus!

— Ninguém vai te salvar aqui não, sua vagabunda — vocifera, fechando os punhos ao lado
do corpo. — Quem você acha que me disse onde estava?

Não! Isso também não! O choro aumenta e eu desabo, sem forças para continuar em pé.
Como eu fui burra, idiota, influenciável. Todos estão contra mim, até quem eu podia jurar que era
minha melhor amiga.

— Escuta bem o que eu vou te falar, sua piranha desgraçada. Será um único alerta! — Ele
caminha até onde estou e se inclina para frente, apertando meu queixo e me obrigando a encará-
lo. Engulo em seco, remexendo no chão. — Você vai calar essa sua boca e esquecer essa merda.
Acho bom não querer medir forças comigo, Aurora. Não há chance nenhuma de vencer essa
guerra. A culpa disso tudo é sua, só sua!

Só percebo seu cuspe na minha cara quando o líquido pegajoso escorre pela lateral da
bochecha. Nojento, filho da puta, como eu pude um dia amar esse imbecil! Quero gritar com ele,
socar a sua cara, fazê-lo engolir cada palavra, porém, nada sai.

Não me mexo, não abro a boca.

Por mais que por dentro eu queime, por fora só consigo reagir com lágrimas.

Chacoalho a cabeça de um lado para o outro, afoita, puxando com força os fios de cabelo que
despontam do boné. Desgraçado que não sai da minha mente! Quando não é medo, me traz vazio ou
raiva.

Ele acabou com a minha vida, destruiu meus sonhos, afundou minha família. Nunca vou
perdoá-lo por isso. Nunca.

Passo as mãos trêmulas no rosto e sinto as lágrimas por todo lado. Não consigo parar de
chorar, e eu odeio chorar por sua causa. A respiração entrecortada vai ficando pior e sei que estou a
ponto de explodir.

Às vezes sinto como se eu fosse um vulcão em erupção. O misto de sentimentos no meu peito
se torna tão grande, que eu não consigo controlar.

Levanto a camiseta para secar o rosto, sem me dar conta de que estou deixando parte do
corpo exposto com o gesto. Só percebo a merda quando uma voz maliciosa chega aos meus ouvidos.

— Olha aí, Jão, temos companhia.

— E que companhia!

Abaixo a camiseta no mesmo instante e encaro os dois homens à minha frente. Muito mais
velhos, com roupas surradas e jeito de quem bebeu demais em pleno sábado à tarde.

O que não tem um dos dentes da frente tenta se aproximar e eu estendo o braço para barrá-lo.

— Não quero confusão, só quero comer em paz. — Aponto para a sacola de marmita e a
desenrolo do meu pulso.

— Nós também não queremos treta. Só queremos conversar, gracinha. — O outro sorri,
causando-me arrepios.

Ele cai na besteira de colocar a sua mão suja em mim e eu noto o resto do autocontrole se
esvair. Vou perder a batalha contra o vulcão com certeza.

— Tira a sua mão daí! — ordeno, fechando o punho e já me preparando para o embate.

— Calma, não vamos te fazer mal. — O banguela tenta me encurralar perto da pilastra que
tem o grafite e, também, me toca.

“Eu nunca vou te fazer mal.”

As vozes na minha mente se fundem e é o estopim para a escuridão inundar minha visão. Não
enxergo mais nada além de dois alvos que precisam ser destruídos.
CAPÍTULO 5

Meu coração ainda está acelerado com a animação do professor João. Embora eu tenha
perdido grande parte dos detalhes, porque cheguei muito atrasado para recepcioná-lo, no fim valeu a
pena. Conheço-o desde a graduação e nunca vi tamanha alegria em narrar uma viagem.

Ele teve o privilégio de acompanhar, em primeira mão, a captura de uma vista deslumbrante
da nossa galáxia vizinha, Messier 83, feita no telescópio chileno Víctor M. Blanco esta semana.

Consigo lembrar perfeitamente a imagem que ele mostrou no seu computador, com o fundo
escuro e um espiral em tons de vermelho e roxo, repleto de estrelas. Tinha visto pela internet, mas
não faz jus as cópias que o professor tem. Foram necessárias mais de 11 horas de observação para
tamanha perfeição. Se um alienígena tirasse uma foto da Via Láctea de longe, veria algo parecido.
Também somos no formato espiral.

O motivo da sua ida ao Chile foi justamente para observar o Grupo Local, que são as galáxias
próximas a nós, contudo, jamais imaginamos que seria possível algo em tão alta definição. Existem
cerca de 50 galáxias confirmadas e possivelmente 30 não confirmadas nas redondezas; e algo entre
100 bilhões em todo universo.

Sorrio sozinho, com o peito ainda agitado. O melhor de tudo é que o professor João também
fez contatos importantes com cientistas da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, que estavam
coordenando a captura. Se a NASA não der certo, cada vez mais Saulo e eu temos galgado outras
opções para explorar assim que o doutorado terminar.

— Você não ouviu nada que eu disse, né, Daniel? — Tio Noberto dá um tapa no meu ombro e
eu sobressalto no banco. — Falo de falência e você está sorrindo?

Olho-o de relance e percebo o semblante fechado me observando de volta. Acabou que


nossos compromissos não demoraram muito e deu certo a minha carona na volta. Normalmente ele é
muito sorridente, acho que está bravo comigo. Passo a mão no cinto de segurança e desvio do seu
olhar.

— Desculpe-me, sorri porque estava me lembrando da oportunidade que terei no futuro. O


senhor não tem noção do que o profes...

— Puta que pariu! Estou falando com você há quase dez minutos sobre algo importante pra
mim e você nem aí. Agora quer que eu preste atenção em ti? — Ele bufa e volta a fitar o trânsito à
nossa frente. Com certeza, está estressado. — Você precisa melhorar isso, parece que não se importa
com ninguém. Só os seus assuntos são relevantes. Não é a primeira vez que faz isso.

Abaixo a cabeça e fico em silêncio, não queria magoá-lo. Eu até escutei um pouco do que ele
falou no começo, mas quando o assunto não é tão interessante para mim, não consigo focar. Por mais
que quisesse ouvir o tio Noberto, pensar na conversa com o professor João foi muito mais forte na
minha mente.

— Desculpe-me mais uma vez — peço, me lembrando do que minha mãe me disse para fazer
quando alguém ficar magoado comigo. — Vou prestar atenção agora. A reunião não foi boa?

Por longos segundos, meu tio não diz nada e eu fico parado aguardando, o corpo levemente
inclinado na direção do motorista. Noto seu rosto ainda sem sorrisos, acho que o encontro com o
patrocinador não foi nada bom.

Eu sabia que sorte não resolveria nossos problemas.

— Não consegui nada — diz, enfim.

— Por que citou falência? — Tento puxar assunto para fazê-lo não ficar mais decepcionado
comigo. — O dinheiro que a minha mãe envia não é para pagar as dívidas?

— Se não arrumar bons alunos, de nada vai adiantar pagar as dívidas, Daniel. — Não sou
bom em compreender emoções, no entanto, seu tom mais baixo parece de tristeza. — Novas contas
vão surgir, vai virar uma bola de neve aquela merda.

— E se mudasse o objetivo da academia? Ficasse só em ensinar para defesa pessoal e lazer?

— Lazer? A Naja foi criada para alto rendimento, promover campeões. — Ele ri, mas não
noto humor no tom. — O seu bisavô deve ter se revirado no caixão agora.

— É impossível ele se revirar no caixão depois de décadas! Em geral, um corpo sepultado


leva de um a dois anos para se decompor totalmente. A essa hora, só tem os dentes e os ossos lá.

Tio Noberto para no semáforo e me encara meio boquiaberto. Não sei dizer se aprendeu algo
novo que não sabia ou se está com vontade de gritar comigo. Às vezes eu noto que meus familiares se
seguram para não dizerem algo rude, menos a Camile, que normalmente fala mesmo.

Começo a contagem a fim de corresponder o seu olhar, tempo suficiente para não parecer
estranho ou desinteresse, mas um barulho do lado de fora o faz se virar antes de mim.

Ainda bem!

Sigo o foco da sua atenção e vejo três homens brigando debaixo de uma ponte bem ao nosso
lado. Na verdade, um batendo e dois apanhando. O mais baixo e de boné parece ter um problema na
perna, no entanto, é ligeiro nos golpes.

Cheguei a treinar por um tempo na academia, por insistência do meu primo Pablo, e posso
garantir que não perde para o pessoal que ficava lá na época, não. A pessoa é boa de briga.

De repente, um deles puxa o boné do que está vencendo e faz longos fios castanhos tomarem a
minha visão em um rabo de cavalo bagunçado. Pisco, inclinando o corpo para frente para enxergar
melhor.

— É uma garota! — chego à conclusão em voz alta, junto com meu tio.

— Porra, ele está se abaixando para pegar uma pedra! O filho da puta não ganha no braço e
quer partir para o jogo sujo — Noberto vocifera, mais irritado do que estava comigo, e joga o carro
para a esquerda quando o sinal abre.

Só percebo que vai descer para ajudá-la ao parar debaixo da ponte e escancarar a porta,
saindo correndo. Sem saber direito o que fazer, desço também e fico parado observando-o puxar
pelo pescoço o engraçadinho que já tinha uma pedra nas mãos pronta para usar.

Não acredito que teria coragem de machucar uma mulher dessa forma!

Odeio brigas e jamais agrediria o sexo oposto. Por isso não durei nem uma semana nos
treinos da academia. Prefiro manter o corpo saudável colocando meu fone e correndo no bairro todos
os dias de manhã, antes de ir ao trabalho.

— Gosta de bater em mulher, seu filho da puta?! — Tio Noberto joga o homem no chão e o
imobiliza, apoiando o joelho nas suas costas e mantendo as duas mãos para trás. — Vamos ver a
coragem quando eu chamar a polícia.

— Não! Não precisa chamar a polícia — a moça apressa-se em dizer, também imobilizando
o outro rapaz. — Eu tenho certeza de que não vão ousar chegar perto de mim outra vez.

Reparo na moça ofegante pelo esforço e no tio Noberto a observando com atenção. Por que
será que ela não quer chamar a polícia? Se acontece algo de ruim comigo, a primeira coisa que eu
vou querer é me sentir protegido.

— Tudo bem — ele concorda, relutante, e solta o homem.

A garota faz o mesmo e os dois saem praticamente correndo sem dizer nada. É nítido que
estão com medo.

— Obrigada pela ajuda. — Viro em direção da voz suave e fico olhando a menina se
levantar, esfregando a perna.
Quando as mechas de cabelo castanho são presas em um coque, seu rosto fica em evidência e
ela acaba me vendo ali parado. Uau, a moça tem os olhos mais bonitos que já vi.

— Nunca tinha visto alguém com heterocromia de perto — comento e continuo fitando com
interesse. A menina se retrai um pouco, porém, corresponde meu olhar. —Tendo em vista que é uma
característica física singular, que ocorre em menos de 1% da população mundial, chega ser
compreensível.

— Agora não, Daniel! — Noberto chama minha atenção com rispidez e se levanta também.
— Me desculpe, esse garoto não tem filtro. Fala o que tem na cabeça. Quanto a me agradecer, nem
precisa. Você estava se saindo muito bem, eu só vim aqui porque percebi que o imbecil ia pegar uma
pedra no chão pra te atingir.

Só depois que meu tio avisa da pedra, ela realmente desvia o olhar do meu. Pisco e percebo
que também fiquei olhando esse tempo todo. Nossa, com certeza passou dos meus dez segundos
costumeiros e eu nem percebi.

A garota acena e não fala mais nada. Termina de arrumar o cabelo, coloca o boné e fita o
chão soltando uma lufada de ar. Sigo sua cabeça e percebo que tem uma marmita de comida revirada
e um cachorro aproveitando a oportunidade para matar a sua fome. Ela se abaixa para pegar uma
garrafa de água e segue em silêncio até um carro de reciclagem parado bem ao meu lado.

Não consigo parar de fitá-la. Ainda estou fascinado nos olhos tão distintos. Queria ver de
perto se o azul é bonito quanto parece daqui.

— Como é seu nome? O meu é Noberto. — Meu tio tenta se aproximar e ela se assusta, dando
um passo para trás. — Calma! Eu não vou tocar em você.

A moça demora uns cinco segundos para responder. Será que não sabe seu próprio nome ou
não quer dizer? Troco o peso de uma perna para outra e observo a interação dos dois.

— Ana — afirma e abaixa o olhar, preparando-se para ir embora. — Preciso voltar ao


trabalho.

— Ana, só um minuto! — Noberto coloca as duas mãos para a frente e fixa os pés no chão,
impedindo-a de sair. — Você já treinou alguma arte marcial antes? Você é muito boa! Eu vi do
semáforo seus golpes. Mesmo com a perna machucada, tem movimentos rápidos e certeiros. Tem
força e agilidade, qualidades essenciais para um bom lutador. Eu tenho uma academia e seria um
prazer rece...

— Não tenho interesse, obrigada — ela o interrompe, empurrando o carrinho de recicláveis


para frente.

A perna está mancando muito. Deve estar doendo. Será que se machucou recentemente? Será
que faz tempo que está assim?
— Não tenho dinheiro pra pagar um bom valor neste momento, mas diante da sua situação,
acho que consigo oferecer uma opção melhor. — Meu tio observa o carrinho e volta a fitá-la. —
Garanto um teto pra ficar, se morar muito longe da academia; comida inclusa e uma ajuda de custo.
Poderia fazer um teste, três meses de preparação para uma competição importante que teremos em
breve. O prêmio é uma quantia boa, pensa. Poderia dar uma guinada pra você!

— Não, obrigada. — Ana olha para o meu tio com o mesmo olhar que ele olhou para mim
mais cedo, quando me acusou de não prestar atenção no que dizia.

Acho que ela está brava com sua insistência.

— Tem certeza? Pensa com carinho. — Desesperado, meu tio pega a carteira do bolso e
apanha um cartão de visitas da Naja. Ana reluta em pegar o pedaço de papel da mão esticada dele.
— Por favor, só fica com isso. Se mudar de ideia, se quiser saber mais a respeito da academia e da
competição, me liga. Eu juro que você estará em segurança lá conosco. Somos de família, pessoas
boas. Não é mesmo, Daniel?

Na verdade, a minha família é bem barulhenta. Provavelmente a vó Marideide também vai


deixá-la louca, obrigando-a a comer o que não gosta. Camile pode implicar com ela, e Pablo pode
levá-la para lugares que não queria ir. Penso em tudo isso, mas prefiro apenas balançar a cabeça em
concordância.

Essas verdades possivelmente interfeririam na decisão da Ana e a garota pode ser a salvação
da academia que meu tio tanto ama.

Por breves segundos, nossos olhares voltam a se cruzar e sinto meu coração dar um impulso
forte, como se eu estivesse ouvindo o discurso animado do professor João. Que estranho, por que
será que isso aconteceu? Geralmente, só reajo assim quando estou falando do universo ou quando
tenho medo de alguma coisa. Não é a mesma sensação. Está diferente.

Cortando o contato, ela arruma o boné na cabeça, suspira e pega o cartão, colocando-o no
bolso da calça sem ler.

— Agora eu preciso ir, mesmo, estou atrasada.

— Tudo bem, vai com Deus. Vou aguardar com fé sua ligação.

Fico em silêncio, observando-a carregar o carrinho muito maior do que seu corpo esguio até
sair da ponte. Estranhando o barulho incessante no meu peito, coloco os dedos indicador e médio no
meu pulso para conferir os batimentos cardíacos.

— Acho que precisaremos ir ao médico — aviso, alarmado.

— No médico? Por quê? — Meu tio para de olhar na direção da Ana e se vira para mim.
— Minha frequência cardíaca está 110 batimentos por minuto. Em adultos, o pulso normal em
repouso fica entre 60 a 80.

— Confia em mim, você está bem, garoto! — Não entendo seu sorriso aberto enquanto volta
para o carro. — Vem, vamos pra casa.

— Tem certeza?

— Absoluta. — Ele volta a sorrir, mas não estou achando graça.

Isso não é normal. Tenho certeza que não é.

Se não estamos falando do Universo e nem estou com medo, esse coração acelerado só pode
ser sinal de algum problema de saúde. Não é?
CAPÍTULO 6

Coloco uma faixa nova nos seios e pego a calça de moletom e o blusão que separei, vestindo-
os rapidamente. Essa rotina se tornou um hábito tão forte que não consigo relaxar ainda que esteja
segura na casa da Pilar. Mesmo com o cabelo molhado, faço também um rabo de cavalo. Passei a
odiar os fios soltos, embora, não tenha tido coragem de cortá-los de uma vez.

Minha mãe os penteava todo dia antes de dormir, sabia que era meu xodó número um. Achei
que iria desconfiar se eu aparecesse com as madeixas curtas de repente. Não posso dar bandeira, não
quero que desconfie de nada.

Jogo a roupa suja na sacola plástica que eu trouxe e saio do banheiro. O cheiro do jantar está
tão bom, que é impossível controlar o ronco do meu estômago assim que reconhece o aroma de
strogonoff. Meu Deus, estou morrendo de fome. Não sei como consegui trabalhar o dia inteiro sem
comer nada. Depois que perdi minha marmita durante a briga com aqueles dois infelizes, não pude
gastar mais comprando outra coisa. É tudo contadinho para render o mês.

Passo pelo corredor estreito e chego à cozinha, onde Pilar está no fogão, rindo de algum
comentário que Egídio faz.

— Você vai jantar com a gente e não aceito um não como resposta! — ela sentencia, quando
percebe minha presença próximo ao batente.

— Pilar, não...

— Não tem desculpa que vai incomodar, já que só uma filha está em casa hoje e tem dois
lugares sobrando na mesa!

Eu ia acabar comprando pão francês, no supermercado da esquina, para comer com


mortadela. Diante da minha fome, a opção dela é bem mais atrativa. Reparo no rosto negro redondo e
no sorriso que me oferece e não tenho coragem de dizer não a isso.

— Fica pra jantar, sim, Aurora, você precisa se alimentar direito, menina! — o marido dela
complementa, sorrindo também.

Balanço a cabeça em concordância, sentindo uma ardência na garganta. Depois de tudo que
aconteceu, é reconfortante saber que ainda posso contar com pessoas que não são da minha família.
Nem todos são ruins. É um exercício diário me lembrar disso.

Nem todos!

— Amor, você não quer ir lá comprar uma Coca pra gente, enquanto termino a comida? —
Pilar faz um carinho na careca de Egídio e tira uma nota de dez reais do bolso da calça jeans. — Está
quente pra caramba hoje, a janta especial merece um refrigerante geladinho.

— Claro, querida, vou sim. — Ele deixa um beijo na sua bochecha e acata o pedido, sem
reclamar.

A relação deles é bonita, lembra bastante a dos meus pais. Algumas pessoas têm sorte no
amor. Não é, definitivamente, o meu caso.

Pilar acena e eu a sigo até a área externa que improvisou para caber uma máquina de lavar,
um tanque e meia dúzia de varais. Já sabe que se não tomar a iniciativa, nunca faço nada, ainda
morro de vergonha por estar invadindo seu espaço.

— Coloca na máquina, vou lavar umas peças mais tarde — pede, ao me ver virando a sacola
dentro do tanque.

— Não! Bobeira gastar suas coisas à toa. Lavo rapidinho na água e sabão, mesmo.

— Você é impossível, menina! — brada, mas não insiste.

Por mais que saiba que eu nego a maioria das vezes, a mulher bondosa nunca cansa de ser
gentil comigo. É igualzinha à sua irmã Telma, que me salvou do inferno que vivia em Pirapora e
ainda ajudou a corroborar minha mentira.

Nunca serei capaz de agradecer o suficiente tudo que a família Silva tem feito pela minha.

— Como foi seu dia? — Pilar encosta na máquina e puxa assunto, sabendo que se depender
de mim, fico em silêncio.

Mesmo que evite contar detalhes, ela sabe mais do que qualquer outra pessoa sobre a versão
atual de mim. Não tenho amigos e não falo com ninguém na cooperativa além de trabalho. Fora as
ligações para os meus pais e a Telma, isso aqui é o máximo de interação que eu tenho na maioria dos
dias.

— Não foi muito bom. Troquei de região.

Lembro-me dos acontecimentos deste sábado e um peso invisível parece se apossar das
minhas costas. Estou cansada do trabalho no sol, faminta e ainda tive o desprazer de esbarrar com
idiotas.
Tudo é difícil, mas há momentos que o destino parece gargalhar da minha desgraça.

— Não rendeu muitos recicláveis hoje? — sonda, forçando-me a interagir.

— Consegui fechar duas viagens só, e o carrinho nem lotou. — Esfrego a calça que estava
usando com sabão e sinto algo guardado no bolso.

Tiro e vejo o cartão de visitas do homem que me ajudou. O papel derreteu um pouco com a
água, mas ainda dá para ler.

Academia Naja de Artes Marciais


Sensei Noberto Lima

— O que é isso?

— Fui atacada por dois mendigos, esse cara me ajudou. — Olho de relance para Pilar e volto
a focar no cartão. — Ele disse que eu sabia lutar muito bem e queria me convencer a treinar na
academia dele, participar de uma competição, algo assim.

— Não acredito! — Ao invés de repúdio, a voz da Pilar é de orgulho. Ela sempre ostenta que
eu tenho um ótimo gancho de direita. — Você acabou com eles?

— Estava acabando, até que um dos engraçadinhos resolveu pegar uma pedra pra me atingir.

— Filho da puta, covarde! Te machucou?

— Não, o Noberto apareceu bem na hora.

Quando cheguei a São Paulo, era uma menina quebrada e tímida do interior de Minas Gerais.
Pensava que sabia de tudo, mas a cada dia que se passou desde que tudo desmoronou, só comprovei
como era ingênua.

As filhas da Pilar são da mesma faixa etária que eu, e estavam praticando defesa pessoal com
o pai naquela época. Egídio já foi preso anos atrás e aprendeu a lutar na prisão. Ele fez questão de
ensinar as filhas a se defenderem do mundo injusto que vivemos e acabei vendo uma oportunidade
para sobreviver.

Eu precisava saber me defender, senão teria mudado de cidade com o risco da história se
repetir mais uma vez. Eu não podia... minha alma não aguentaria um novo ciclo de tanta dor.

Foi por causa dele que consegui me livrar de muitos idiotas nesses três anos, mesmo
parecendo indefesa com a perna manca. Unindo os golpes que aprendi com o vulcão que às vezes
eclode dentro de mim, nunca mais permiti que ninguém me machucasse.
— Quem sabe, essa não seja uma oportunidade, querida. — Pilar se aproxima, mas não me
toca. — Esses prêmios de competições costumam ser bons, daria pra você realmente começar uma
faculdade. Egídio mesmo elogiou você muitas vezes, aprendeu super-rápido. Se o tal Noberto deixou
o cartão, é que viu potencial verdadeiro.

— Esses sonhos não são mais pra mim, Pilar — respondo, cabisbaixa, jogando o papel no
cesto de lixo que tem do lado do tanque.

No passado, eu quis muito estudar Veterinária e abrir uma clínica comunitária para ajudar os
animais abandonados. Parece que foi em outra vida que meus olhos brilhavam tanto com essa
possibilidade.

Eu poderia ter conseguido... a essa altura eu deveria fazer exatamente isso. Mas eu estraguei
tudo quando quis ser popular, quando vendi minha alma ao diabo para ser notada.

— Os nossos sonhos sempre serão pra nós, independente do que aconteça e de quanto tempo
passe. — Volto a focar na calça e esfrego com ainda mais força, despejando minhas lamentações no
tecido. Não olho para ela. — Eu sei que um dia você vai encontrar seu propósito de novo e será
muito feliz.

Não digo nada, pois não há o que dizer.

Não acredito mais em sonhos, muito menos na esperança de que o futuro me reserva algo
melhor. Não há futuro para fracassados.
CAPÍTULO 7

Eu me acostumei a acordar às 6h da manhã desde a infância e não consigo mais mudar esse
hábito, nem que seja aos domingos. Pontualmente, meu corpo reage aos raios do sol sem precisar de
despertador. Já fiz minha corrida diária e, também, os exercícios de musculação que o tio Noberto
ensinou.

De banho tomado, sigo até o guarda-roupa e escolho peças de algodão confortáveis para
vestir. Tenho um sério problema com roupas. A primeira coisa que eu faço sempre que adquiro uma
nova é retirar todas as etiquetas. Aquilo me incomoda demais, assim como golas, estampas com
relevo e muito coloridas, fios soltos, determinados tecidos e excesso de bolsos e zíperes. Jamais
compro nada que seja apertado em demasia.

Vó Marideide até hoje não me perdoa pela desfeita que fiz com o suéter de lã que ela fez para
os netos no Natal, eu tinha 7 anos. A fim de agradá-la, tentei colocá-lo, mas tive uma crise de
irritação tão grande, que estreguei a comemoração para a família inteira chegando a parar no
hospital.

Todo Natal, desde então, ela faz questão de relembrar o acontecido, me fazendo sentir
péssimo. Não queria magoar as pessoas, mas é o que acontece com frequência.

Visto-me rapidamente e sigo até o espaço que criei para Yeda na sala de estar. Ganhei o
porquinho da índia da minha mãe, no aniversário de 18 anos, depois que nosso cachorro morreu
atropelado. Pensei que nunca mais fosse me conectar com um animal, contudo, foi amor à primeira
vista.

Ela é linda, com 21 centímetros, 700 gramas e o pelo branco manchado de marrom-claro no
rosto e no rabo. Seu nome é uma homenagem à Yeda Veiga Pereira, que foi a primeira astrônoma
brasileira.

— Acho que você é a única que nunca decepcionei até hoje, Yê — chamo-a com o apelido
carinhoso e logo se vira na minha direção.

Agacho, abro a porta e passo os dedos no pelo macio. É impossível evitar que um sorriso
apareça no meu rosto. Eu amo esse bichinho, é muito dócil e se tornou minha melhor companheira,
desde que minha mãe voltou a estudar e a se dedicar na carreira de comissária de voo.
Gostei tanto, que resolvi fazer um lugar confortável para ficar, a gaiola antiga me dava
agonia. Se eu fosse a Yê, surtaria de viver em um espaço tão apertado. Como eu não assisto à
televisão mesmo, dei a nossa para a Mel colocar no quarto dela e transformei a antiga estante em uma
casinha.

O ambiente é cercado de vidro para não a deixar cair do lado de fora e tem três
compartimentos separados por rampas. Embaixo é mais reservado para comer e descansar na
sombra, no meio há os brinquedos para estimulá-la e em cima uma área para tomar sol e o vento
gostoso que vem da janela.

Perco longos minutos às vezes observando-a dar voltas em sua roda de exercícios. O
movimento circular me deixa relaxado.

— Quer seu café da manhã, né, espertinha? — Amplio o sorriso ao notá-la lamber meu dedo.

Yê se acostumou à minha rotina e eu adoro isso, porque geralmente os seres humanos acham
chato o meu jeito metódico. Arrumo suas coisas e dou sua alimentação pontualmente às 7h20 da
manhã e às 20h20 da noite.

Faço mais um carinho no seu pelo e me levanto para pegar o que preciso. Separo uma porção
da sua ração e outras de couve, morango e capim feno, além de um copo de água fresca. Distraído,
ajeitando tudo no seu espaço, só percebo que tem uma pessoa chegando perto de casa quando já está
batendo na porta.

— Sou eu, filho! Abre pra mim, esqueci a chave.

Assusto-me com sua voz. Ela nem avisou que viria. Será que aconteceu alguma coisa?
Termino de colocar a água no pote da Yê e apresso-me para recebê-la.

— Está tudo bem? — pergunto, preocupado, logo que seu rosto aparece no meu campo de
visão.

— Bom dia, meu amor! — Como sabe que não gosto de ser tocado, minha mãe espera até que
eu tome a iniciativa de lhe dar um abraço rápido. — Está tudo bem, sim. Estava com saudade, quis
vir saber como estão as coisas por aqui.

— Está com a semana de folga?

— Não, infelizmente, não. — Viviane entra e deixa sua pequena mala ao lado do sofá. —
Peguei o voo das 5h e amanhã volto no mesmo horário.

— Nossa, assim é muito cansativo. Não compensa pra senhora todo esforço.

— Compensa sim, posso ver meu filho por algumas horas.


— Eu não faria isso, não, ainda mais com o sono desregulado pelos voos internacionais. Iria
descansar. — Fecho a porta da sala e arrumo sua mala que estava torta. — Era só me ligar e
perguntar ao telefone, como faz todo dia.

— Quando você tiver filhos, vai saber como é. — Ela sorri amplamente e tira os saltos altos.
— Fazemos algumas loucuras por amor, por saudade.

— Se você está dizendo... — Dou de ombros, sem entender direito seu comentário, e coloco
os sapatos ao lado da mala.

Não acho que ter um filho vai me deixar menos racional. Se eu fosse comissário, com certeza,
eu iria preferir descansar do que viajar na minha folga.

— Você já comeu seu pão com manteiga? — questiona, se dirigindo até a cozinha.

— Ainda não, estava colocando comida pra Yê primeiro.

— Vou preparar pra gente, então. Estou morrendo de fome. Os voos domésticos curtos não
oferecem nada pra beliscar.

Como a cozinha é pequena e conjugada, deixo-a lá mexendo na geladeira e me sento no sofá.


De onde estou, consigo ver praticamente a casa inteira. A edícula foi construída durante minha
infância.

Viviane disse na época que queria um pouco de independência da família, porém, acho que se
mudou mesmo por causa das constantes brigas com a vó Marideide e a Camile, por minha causa.

— Como foi sua semana? Alguma novidade?

— Foi aquilo que te contei ao telefone. — Observo-a fazendo dois lanches. Minha mãe ficou
ainda mais bonita quando começou a trabalhar no que gosta. Parece até outra pessoa. — Ficamos sem
o professor João no departamento, ele estava no Chile.

Nós não somos parecidos. Ela é morena da pele lisa, e eu ruivo com sardas. Viviane costuma
dizer que eu sou bastante semelhante ao meu pai. Os dois se envolveram durante o Carnaval, quando
ele veio da Irlanda visitar o Brasil. Sou fruto de uma noite tórrida de sexo sem compromisso e sem
prevenção.

As únicas coisas que sabe dele é o primeiro nome e o país de origem. O homem não faz ideia
de que eu existo.

— E ontem? Como foi seu sábado? Saiu de novo com o Pablo?

— Não! — respondo, de prontidão. Odeio os passeios que o meu primo arruma, embora
minha mãe sempre incentive que eu vá me divertir com ele. Diversão para mim é observar o céu pelo
telescópio. — Eu fiquei em casa, participando de um seminário. De tarde eu pensei que tinha
passado mal, mas o tio Noberto garantiu que estava tudo bem.

— Como assim, passado mal? O que você sentiu? — pergunta, largando tudo na pia e
correndo na minha direção.

— Minha frequência cardíaca aumentou para 110, sem eu estar com medo ou animado falando
do Universo. Não sei o que houve.

— O que você estava fazendo na hora?

Lembro-me da garota com heterocromia, do seu corpo ágil se defendendo daqueles dois
marmanjos e o cabelo castanho caindo no seu rosto. Ela parecia bonita de longe. Muito mais bonita
que a Monique e as amigas cheia de maquiagem que o Pablo quer me apresentar.

Tum, tum, tum... o coração começa acelerar de novo, do nada. Coloco a mão no peito,
tentando entender o que está acontecendo. Isso é muito esquisito.

— Eu estava...

— Viviane, você está aí, minha filha!? — Uma batida forte na porta interrompe nossa
conversa. — Chega em casa e nem vai dar um beijo em mim?!

Sabendo que as batidas não vão parar até ela atender, minha mãe se levanta revirando os
olhos e vai até a porta. Logo vó Marideide entra falando um monte de coisas sem pausa: está muito
magra... não deve estar comendo... olheiras fundas... devia ficar em casa igual a nora...

— A Ana Júlia viu você passando pelo corredor, logo que levantei. Pensei que ia só deixar a
mala aqui e ia lá ver sua mãe. Depois que morre, não adianta chorar, não, viu, Viviane?!

— Calma, mãe! — Ela se inclina e deixa um beijo na bochecha rechonchuda da senhora de


cabelos brancos. — Eu estava conversando com o Dan, já ia lá te dar um abraço sim.

— Ia nada, se eu não viesse aqui, nem iria lá me ver.

Troco um olhar com minha mãe e sorrio. Como diria a Mel, a vó Marideide é muito
dramática. Por um lado, eu fico feliz de saber que não sou o único alvo das suas implicâncias.

— Vem, vamos tomar café lá em casa!

— Eu acabei de fazer um pão com manteiga pra mim e o Dan. Mais tarde eu passo lá.

— De jeito nenhum! Eu fiz bolo fresquinho ontem, antes de dormir. Está muito mais gostoso
que pão de forma, larga isso aí. — Ela pega a mão da minha mãe e começa a andar até a saída. —
Vamos também, Daniel. Você precisa comer mais e parar com essa frescura de tudo, 24 anos nas
costas e parece que ainda é criança.

Foi a vó que fez minha mãe parar de me levar ao médico, a fim de tentar descobrir qual era o
meu “problema”. Ela achava que era bobeira insistir em algo que estava claro que era “frescura”.
Não estou nenhum pouco a fim de começar meu domingo com barulheira, no entanto, quando a
Marideide decide algo, é difícil lutar contra.

— Não é frescura dele, mãe. Já falei pra parar de encher o menino com isso.

— Camile está certa! Você estragou o Daniel, garoto mimado. Tem que ser dura, Viviane! —
Para não brigar mais, minha mãe fica em silêncio. Ela sempre prefere ficar quieta a entrar em um
embate. — Vamos logo, porque o seu irmão está desesperado, nem dormiu direito. Foi providência
divina você ter aparecido. A academia está de mal a pior e acho que vai precisar de mais dinheiro
seu emprestado, o patrocinador não deu certo ontem. Noberto precisa de atletas bons, urgente.

Saímos nós dois em silêncio junto com uma senhora falante pelo corredor. Entreolho minha
mãe e ela me lança um sorriso que não mostra os dentes.

— Me desculpa — sussurra, sem chamar a atenção da vó. — Queria ficar com você, mas
pelo jeito vai ser difícil escapar dali tão cedo.

— Tudo bem. — Aceno com a cabeça e continuo andando.

Eu deveria estar triste por ter que ficar horas naquele barulho insuportável ou por perder a
companhia exclusiva da minha mãe, porém, minha cabeça só pensa nos “atletas bons” que a academia
precisa.

Sinto as mãos suando e esfrego na bermuda, ansioso com a possibilidade de rever Ana. Não
sei explicar o motivo nem por que, mas eu gostaria muito de saber como são seus olhos coloridos de
perto.

Tomara que ela aceite a oferta do tio Noberto.


CAPÍTULO 8

Penteio o cabelo e deixo os fios soltos como costumava fazer antes. De frente para o espelho
minúsculo em cima da pia, respiro fundo e passo um pouco de blush nas bochechas pálidas. Ele e um
batom clarinho foram as únicas maquiagens que eu guardei com o intuito de manter a aparência para
os meus pais.

Os domingos têm sido os piores dias da semana para mim. Trabalho de manhã e à tarde tenho
que fazer uma chamada em vídeo, fingindo que está tudo bem. Isso acaba comigo, mas é preciso. Não
posso levar ainda mais preocupação para a minha família, é crucial que acreditem que eu superei.

Olho no relógio do celular e vejo que faltam apenas dois minutos para às 16h. Tenho mantido
essa rotina porque minha irmãzinha fica ansiosa se eu me atraso ou não apareço. Nas primeiras
semanas, foi difícil levar adiante a mentira, engolir o choro e colocar um sorriso no rosto. Porém
percebi que se não conseguisse fazer isso direito, seria obrigada a voltar para uma realidade mais
dura que a atual.

Nunca mais quero pisar em Pirapora, não enquanto eu respirar.

Fito mais uma vez o espelho e ajeito a camiseta na altura dos seios. Acostumei-me tanto, que
acho esquisito não usar a faixa para diminuir seu tamanho avantajado. Caminho até a parte da frente
do brechó e escolho uma parede neutra perto dos cabides para não dar bandeira.

São só trinta minutos, você consegue!

— Oi, meu amor! — Começar com a minha irmã é sempre mais leve, ficamos só falando
sobre ela. — Como você está?

Sara tem dez anos. Fora os olhos, nós somos bem parecidas. Temos o mesmo cabelo castanho
liso e ondulado. Desde a adolescência, já não ostento mais os cachinhos perfeitos nas pontas, mas
ainda dá para perceber o movimento.

— Oi, Auri. Não tô bem — responde, séria, desviando o olhar da tela. Adoro o apelido que
só ela me chama. — A mamãe e a tia Vilma pediram para eu pensar com carinho sobre ir no
aniversário da Joice semana que vem, pra não fazer disfeita, mas eu não quero ir. Já é uma chatice
ter que aguentar as aulas, pra que tenho que ver meus colegas no sábado também?
“Me desculpe, esse garoto não tem filtro.”

Sorrio do seu comentário e da lembrança do moço que estava junto com Noberto ontem. Se
não me falha a memória, seu nome é Daniel. Minha irmã também fala o que vêm à cabeça.

— Talvez seja legal você tentar, meu amor. — Puxo o banquinho que Pilar usa para os
clientes experimentarem sapatos e me sento para conversar melhor. — Lembra que você não gostava
de música por causa do barulho e depois amou aprender a tocar violão junto comigo? Pode ser
divertido.

— Uai, não acho que vai ser divertido qui nem tocar com você — afirma, emburrada, e sopra
a franja.

Uma das coisas que mais sinto falta de Minas, além da minha família, é claro, é o nosso
“jeitim” especial de se comunicar e a culinária maravilhosa. Eu já tinha parado de puxar o sotaque
por causa das regras da escola que estudei, que obrigava os alunos a falarem o português formal.
Isso, aliado a três anos morando em São Paulo, fizeram o “mineirês” sumir por completo. Talvez por
querer tanto não chamar atenção me adaptei rápido à nova cidade. Pilar também quase não tem mais.

— Se você não tentar pelo menos uma vez, não saberá! Que tal tentar pela Auri? — Nossos
olhares se encontram e eu sorrio em expectativa pela sua resposta. — Caso não goste, com certeza, a
mamãe vai trazer você de volta na mesma hora.

— Ela traz mesmo? Você jura?

— É só conversar sobre suas condições, meu amor. Lembra que a tia Vilma disse que você
precisa falar o que está sentindo? A mamãe vai entender.

— Tá bom, eu vou pensar com carinho por você, pela mamãe e pela tia Vilma.

— Muito obrigada por isso! — agradeço, realmente feliz pelo seu avanço.

Sem querer falar mais disso, minha irmã logo muda para o seu assunto preferido: o cavalo
Eliseu.

Sara tem autismo moderado diagnosticado desde os cinco anos. Se comparar sua evolução do
começo até hoje, vemos uma mudança extraordinária. Ela não falou uma palavra sequer até os quatro
e tinha severas crises de irritação e agressividade.

Seu tratamento é tão importante para uma qualidade de vida melhor que faço questão de
enviar o dinheiro para pagar a neuropsicóloga Vilma e a equoterapia. Eliseu tem feito milagres na
sua interação social. Infelizmente, meus pais não conseguiram vaga pelo serviço público e não há a
mínima chance de permitir que ela regrida.

— O papai chegou aqui no quarto! — Engulo em seco ao ver o rosto dele do outro lado da
tela. A saudade e a mentira que vou precisar contar a partir de agora sempre pesam. — Um beijo,
Auri. Até semana que vem.

— Até, meu amor. Um beijão pra você também.

— Oi, filha. Como cê tá? — Ele pega o aparelho e se senta na cama da Sara. — O retorno às
aulas da faculdade foi tranquilo?

— Estou ótima — minto, abrindo o maior sorriso que consigo. — Foi tranquilo sim, mas o
semestre promete ser puxado.

— Tenho certeza de que você dá conta dos trem tudo! — afirma, orgulhoso, e meu peito dói
como se tivesse recebido uma facada bem no fundo.

Meus pais acham que eu vim para São Paulo estudar. Para eles, eu finjo que consegui uma
bolsa de estudos pelo ProUni e curso Veterinária de graça há cinco semestres. Eu sei que é algo
horrível de se fazer, mas acredite, foi a melhor forma que encontrei para deixá-los um pouco em paz.

Quando as coisas começaram a dar errado como jamais imaginei que fosse possível, decidi
que precisava sumir de Pirapora o quanto antes. Já estávamos sem dinheiro, com meu pai
desempregado e minha mãe se desdobrando para fazer faxinas e conseguir manter o mínimo dentro de
casa.

Telma é nossa vizinha e sabia de tudo que aconteceu. Como minha única amiga que restou, e
tendo vivido algo semelhante ao que passei, ela entendeu meu ponto de vista e me ajudou a inventar
essa grande mentira. De família do interior de Minas, sua irmã Pilar veio para a capital paulista
tentar uma vida melhor. Era o discurso que eu precisava também.

Vladimir e Maria das Graças pensam que eu fiquei seis meses na casa dela me preparando
para o vestibular e que depois consegui a bolsa e uma vaga no alojamento estudantil da universidade.
Também acham que eu trabalho como estagiária em uma clínica particular para manter os custos.

Sem me fazer questionamentos, Pilar falou com meus pais durante o período que eles
pensaram que eu estava com ela e os fez acreditar que estava tudo bem. As duas irmãs foram muito
atenciosas ao manter as aparências sem me pressionarem.

Como nunca menti para eles antes, acreditaram sem pestanejar na minha farsa. Não
duvidaram de nada.

— Tô morrendo de saudade, se Deus quiser, em breve, vamos conseguir nos ver


pessoalmente. Tô pelejano aqui pra isso.

— Vamos, sim. — Engulo em seco mais uma vez, passando a mão suada na calça de moletom
que estou vestindo e ele não consegue ver.
Ambos sabemos que essa realidade vai demorar muito a se concretizar, mas em toda conversa
fingimos que pode ser possível em um curto espaço de tempo. Meus pais estão falidos e não
conseguem ir nem à cidade vizinha.

Embora não imaginem que minha situação financeira é pior do que eu demonstro, também
sabem que não tenho grana para viajar. Muito menos, para Pirapora. Lá está fora de questão e todos
concordamos que é melhor não reviver o passado.

Não foi à toa que amei a ideia de vir para São Paulo. Estou a um dia e duas horas de
distância de casa viajando de ônibus. Não é viável financeiramente nem logisticamente para uma
estudante tão cheia de afazeres.

Por enquanto — e sem previsão de novos planos — teremos que nos contentar em matar a
saudade pela tela do celular.

Ele pergunta mais sobre a faculdade e o trabalho e eu vou respondendo. É incrível como, com
o tempo, as mentiras começam a sair tão fácil da minha boca.

— Cadê a mamãe? — pergunto, ao perceber que está demorando para aparecer no bate-papo.

Geralmente dona Maria das Graças quer pegar o telefone da mão da Sara para conversar logo
comigo. Nunca arruma outro compromisso no horário que vou ligar.

— Ela já está vindo, não está se sentindo muito bem hoje.

— O que ela tem? — Ajeito a postura no banco e fico ereta, prestando atenção nele.

— Tá com aquela bagaça de cólica forte que aparece de vez em quando.

Arqueio a sobrancelha, acendendo um alerta dentro de mim. Minha mãe e eu temos o ciclo
menstrual idêntico. Não é época de ter cólica.

— Chama ela aí, quero vê-la.

Meu pai se levanta da cama e caminha pelo corredor com o celular virado para a sua blusa
xadrez. Está cochichando algo que não consigo escutar. Tem alguma coisa errada. Eles estão me
escondendo alguma coisa!

— Oi, filha querida. Cê tá boa? — Assusto-me com os olhos vermelhos que me fitam de
volta. — Desculpa não ficar falando com você hoje. Tô com muita cólica, tá custoso até ficar de pé.

Mentira!

Dona Maria é péssima em mentir. Mal consegue me observar enquanto discursa. No quesito
esconder as emoções, eu puxei meu pai. Ele ficou esse tempo todo conversando e não tinha
desconfiado de nada até agora.

— O que aconteceu, mãe? — pergunto, tentando captar alguma informação. — A senhora está
esquisita.

— Uai, esquisita? — Ela passa a mão no cabelo e olha para o chão. — Não, minha filha. Tô
só com dor mesmo. Já que passa esse trem. Me conta as novidades da semana!

Como tenho certeza de que estão me enganando, passo cinco minutos inventando amenidades
completamente aflita. Provavelmente o assunto tem relação comigo, por isso, estão tentando não me
deixar preocupada.

Que merda!

Assim que encerro a chamada, começo a procurar o número da Telma na lista de contatos. O
coração está apertado no peito, com medo de mais desgraças acontecerem.

Eu estava estranhando o silêncio dos últimos meses.

— Oi, Aurora! Cê tá boa? — A ligação está ruim, logo percebo que é porque está perto do
bosque da cidade.

Eu amava passar horas lá deitada na grama olhando para o céu. Uma das principais vantagens
de morar no interior é aproveitar a natureza. Sinto falta disso, aqui em São Paulo mal dá para
respirar com tanta poluição.

— Desculpa te atrapalhar, só liguei porque estou aflita aqui. — Levanto e começo a andar de
um lado para o outro entre os cabides. — Minha mãe está estranha demais. Você sabe se aconteceu
algo?

— Não tô sabendo de nada, não, uai, sua mãe nunca me conta. Ela sabe que eu falo pra você.

Isso é verdade. Ano passado, meu pai sofreu um acidente no bico que anda fazendo de
pedreiro e ela que é vizinha não ficou sabendo. Dona Maria das Graças faz de tudo para que as
notícias não cheguem a mim pela Telma.

A mulher é a única pessoa de Pirapora, além da minha família, que sabe onde estou. Não
podemos correr o risco de quem me quer mal descobrir o meu paradeiro e voltar a me infernizar.

— Por favor, tenta descobrir pra mim! Minha mãe estava com os olhos vermelhos, deve ser
bem ruim. Tenho medo que... que...

— Eu sei, amiga. — Telma me oferece um sorriso de conforto. — Pode deixar que eu vou
fuçar sim e vou descobrir o que tá estorvano eles. Assim que souber algo, eu te aviso.
— Muito obrigada, eu nunca vou cansar de ser grata a você e a sua irmã.

— Nem precisa agradecer. Conte sempre com a gente, Aurora. Sempre!

Desligo o aparelho e deixo meu corpo escorregar até o chão, encostando-me em uma arara de
roupas. O toque do chão frio contrasta com a quentura que formiga minha pele. Fecho os dedos em
punho e abraço minhas pernas em busca de uma calma que não vem. Ele não pode... não pode fazer
mais nada contra nós.

Pode?
CAPÍTULO 9

Eu amo fazer parte da equipe do professor João. Não só porque ele é o melhor e o mais
prestigiado cientista do departamento, mas porque me sinto útil e fundamental como raramente
acontece fora daqui. Aos olhos dele, eu sou importante e isso me traz um impulso enorme de
trabalhar cada vez mais.

Minha mãe também diz que eu sou importante para ela, porém, é bem diferente. Creio que
seja uma coisa que toda mãe fala, não é como se eu realmente fizesse a diferença no mundo. Aqui no
departamento sou capaz de promover descobertas cruciais para a sociedade.

Até agora não estou acreditando que minha pesquisa de mestrado sobre buracos negros —
que está sendo aprofundada no doutorado — foi selecionada pela Fundação Marcos Pontes, do
primeiro astronauta brasileiro a ir ao espaço, para o prêmio de reconhecimento científico de jovens
talentos da astronomia no país. O resultado saiu hoje de manhã e eu não tinha pretensão nenhuma de
ficar em segundo lugar.

Sério, jamais imaginei que seria possível vencer diante de tantos candidatos.

Ainda estou perplexo e com um sorriso que não sai do meu rosto. Foi o professor que insistiu
para Saulo e eu nos inscrevermos, também foi ele quem conferiu o resultado. Havia até me
esquecido, tamanha falta de esperança em uma vitória.

Esta é a primeira edição do prêmio, que contou com apoio da iniciativa privada em prol da
ciência, e vai dar a oportunidade dos três primeiros colocados passarem uma semana com tudo pago
na Rússia, a fim de visitar a agência espacial Roscosmos.

Desde a década de 1960, os Estados Unidos e a antiga União Soviética protagonizam uma
disputa épica pela liderança na corrida espacial. Esta experiência será incrível para o meu currículo,
pois eu já me imaginei várias vezes na NASA, e nunca passou pela minha cabeça que teria a
oportunidade de conhecer a infraestrutura do outro lado do continente também.

— Estou indo, meninos, até amanhã! Não se esqueçam que tem orientação com o pessoal da
pós-graduação, às 9 horas.

— Está anotado na agenda, pode deixar, professor — Saulo confirma, desligando o seu
computador. Faço o mesmo. — Nós também já vamos.
Apesar de não ter sido contemplado, meu amigo está radiante porque foram liberados os
primeiros registros em áudio e vídeo feitos pelo rover Perseverance, que conseguiu pousar em
Marte, como o previsto.

— Parabéns, mais uma vez, Daniel — João endossa a congratulação. — Estou orgulhoso de
você.

— Obrigado — agradeço, com a garganta embargada pela emoção que volta a despontar. —
Vou sonhar com a viagem todos os dias agora.

— Tenho certeza que sim!

Ainda não há previsão para a data. Tendo em vista todos os trâmites burocráticos, creio que
só aconteça no segundo semestre. Vai ser um martírio esperar.

— Hoje é dia de partida de RPG. Não quer ir? — Saulo convida, assim que o professor sai
da sala. — Pode ser divertido desta vez.

De tanto me chamar, eu tentei jogar com ele e seus amigos quando estava no mestrado. Achei
muito chato, porque não conhecia nenhum personagem que tentavam imitar. Imaginar e criar histórias
não é para mim. A minha nerdice é só com relação ao Universo mesmo.

— É melhor não, da última vez eu... — Paro o movimento de pegar a mochila no chão e o
observo com atenção. — Hoje é dia de RPG?! É quinta, então?!

Eles jogam religiosamente toda última quinta-feira do mês, faça chuva ou faça sol.

— Sim, por quê?

— Nossa, me esqueci completamente do aniversário da minha prima Mel. — Passo a mão no


cabelo e guardo os óculos na mochila. Minha cabeça ficou muito avoada esta semana, esqueci duas
coisas importantes. — Vou precisar passar no shopping antes de ir pra casa. Não dá tempo de você ir
comigo?

Uma das coisas que eu menos gosto na vida é ir ao shopping. Muita gente caminhando de um
lado para o outro e o falatório desnecessário me deixam agitado. Só que, de última hora, é o único
local aqui perto que é possível encontrar um unicórnio de pelúcia.

Eu poderia até falar para ela que compro outro dia, mas a coitada vai ficar sem nada hoje. A
tia Ana Júlia deixou para fazer o bolo de parabéns no fim de semana.

— Quando eu voltei da reunião com a Bia, agora há pouco, vi que estava armando um
chuvão. Tenho medo dela vir e o trânsito ficar ruim, o pessoal me mata se eu me atrasar.
— Tudo bem, vou passar lá rapidinho. A Mel merece um presente.

Estou tão feliz, que nem a chuva ou o trânsito caótico podem estragar meu bom humor.
Pretendo terminar a noite presenteando uma das pessoas da família que mais me entende e contando a
novidade para a minha mãe, que estará em terra firme mais tarde.

O sacrifício de ir ao shopping não vai ser tão ruim assim.

Foi uma péssima ideia ir ao shopping. Péssima. Péssima! Bato os dedos na lateral do corpo e
continuo contando: 937, 941, 947, 953, 967, 971, 977, 983, 991, 997...

A única loja que vendia unicórnios estava cheia por causa de uma promoção de eletrônicos e
fiquei quase uma hora na fila. Foi pior do que de costume, porque com a aglomeração é inevitável as
pessoas esbarrarem umas nas outras. O toque junto com as vozes alteradas é como brasa na minha
cabeça. Por pouco, muito pouco, eu não desisti e vim embora logo.

Como se não bastasse esse tormento, a chuva que Saulo alertou caiu tão forte que, não só
gerou trânsito, como também alagamentos por várias partes da cidade. Eu pensei que nada poderia
estragar meu bom humor, mas para ser sincero, estou muito irritado neste momento. Meu corpo ficou
encharcado, minha barriga ronca de fome e os pelos do meu braço estão arrepiados de frio. Saí da
universidade pontualmente às 19h e agora já são quase 22h. Capaz até da Mel ter ido dormir, por
causa da escola amanhã.

Que droga!

1009, 1013, 1019, 1021, 1031, 1033...

Inspiro fundo e guardo o fone de ouvido na mochila molhada. A música não está ajudando em
nada, nem contar números primos durante todo trajeto. Só quero descer deste ônibus e colocar uma
roupa seca, o quanto antes. O tecido grudado na minha pele está me deixando apavorado. É incômodo
demais, por mais que eu tente me distrair, não consigo.

Quando avisto o ponto de descida à frente, que, por sorte, é perto de casa, logo me levanto do
banco e aperto o botão de parada, várias vezes. Eu sei que ainda faltam alguns metros, no entanto,
estou no meu limite. Balanço a perna direita para cima e para baixo, meu peito se aperta.

Vou tirar esta roupa... preciso tirar agora.

Assim que o ônibus para, desço praticamente correndo. A chuva forte deu uma trégua, mas a
garoa ainda cai insistente em mim. Nunca mais eu saio de casa sem guarda-chuva e uma capa.

— Daniel, onde você estava? Demorou pra chegar! — Sinto uma mão no meu braço e olho
assustado para a vó Marideide. Por que ela está aqui fora de sombrinha? Afasto meu corpo,
desviando do seu toque, e dou um passo à frente. — Aonde você vai?

— Preciso tirar essa roupa molhada — aviso, balançando a blusa colada na minha pele. —
Não aguento mais.

— Deixa isso pra lá, menino. — Ela bate na minha mão e me empurra para o lado do portão
que dá para a academia. — Eles precisam da sua ajuda lá dentro. Desgraça pouca é bobagem. Caiu
metade do telhado com a chuva.

— Eu não posso ir agora, tenho que trocar essa roupa molhada.

— Tenha dó, Daniel! Vai molhar tudo de novo, ajuda os seus tios primeiro. Eles estão
desesperados!

— Não pos...

— Vó, a mãe pediu pra senhora pegar saco de lixo lá em casa, por favor. Os que trouxemos
já enchemos tudo de entulho. — Mel vem correndo e para na nossa frente, encarando-me. — Estava
preocupada com sua demora, Dan. Você nunca chega tarde. Está tudo bem?

— Não. Eu fui no shopping e me molhei inteiro, preciso...

— Eu vou lá pegar o saco — vó Marideide me interrompe, brava. — E você vai entrar pra
ajudar seus tios. Chega de papo furado.

Papo furado? Não entendo o que ela diz, mas também não tenho interesse em descobrir no
momento. Eu só quero ficar seco.

Só isso.

— Eu vou trocar de roupa antes e colocar uma capa. — Pego a mochila das costas e retiro o
unicórnio da Mel em um saco. — Feliz aniversário! Cheguei tarde porque fui comprar um presente
pra você.

Aflito com a garoa, viro de costas e sigo pelo lado do portão que leva até a minha casa sem
falar mais nada. Não espero nem a reação da minha prima. A vó Marideide tenta vir atrás de mim,
gritando, mas eu não paro de andar.

— Deixa o Dan, vó. A senhora precisa respeitar o jeito de ser dele. — Ouço Mel retrucar.

— Ele é egoísta, quer tudo do seu jeito!


— Dan odeia ir no shopping e foi lá comprar um presente pra mim. Nunca chega tarde em
casa, e hoje chegou por isso. Acha que esse gesto é de alguém egoísta?

Abro o portão e sigo pelo corredor sem escutar a resposta desta vez. Eu vou ficar seco, isso
que importa. Vou ficar seco e estava certo sobre a Mel. Apesar de tudo, ela mereceu um presente de
aniversário.
CAPÍTULO 10

Estou olhando para Pilar, ouvindo-a falar, mas, na verdade, minha mente está em outro lugar.
Há mais de 900 km de distância. Cinco dias já se passaram e Telma ainda não conseguiu nenhuma
informação sobre o motivo da minha mãe estar tão triste. Isso está acabando comigo.

— Não fica sofrendo por antecedência, Aurora, às vezes ela estava mesmo com cólica. — A
mulher percebe que estou distraída e coloca a mão no meu ombro.

Tenho absoluta certeza de que não era cólica. Alguma coisa aconteceu. Alguma coisa que faz
meu coração bater devagar, tirando toda minha pouca energia para sobreviver. Foi uma semana
difícil de levar, preocupada com eles.

— Tem um motivo — respondo, sucinta, sem vontade de conversar.

Estou tão agoniada que acabei contando para Pilar o teor do vídeo com meus pais no fim de
semana, coisa que não costumo compartilhar.

Dou uma mordida no pão na chapa que acabou de me trazer e faço um esforço para engolir o
café junto. Nem fome eu ando tendo, porém, sei que se não me alimentar o mínimo possível, posso
desmaiar no meio da rua pelo esforço do dia.

Abro a boca para dizer que estou indo para a cooperativa, mas o som do meu telefone me faz
dar um pulo de susto. O café quente mancha minha blusa preta e deixo o copo de plástico de qualquer
jeito na mão da Pilar para atender. Só tem uma pessoa que me ligaria nesse horário, durante a
semana.

Não gosto de levar o celular no trabalho, no entanto, com medo de receber alguma ligação,
fui todos os dias com o aparelho escondido dentro da minha meia.

— Alô! — digo, afoita. — Alô!

— Aurora, acabei de descobrir o que tá estorvano seus pais — Telma afirma, com a voz
agitada, deve ter ficado agoniada, como eu, enquanto investigava.

— O que foi? O que aconteceu? — Deixo o pão com Pilar também, que me encara em
expectativa, e passo a mão no rosto.
— Eu vim no posto tirar sangue, cheguei na fila às 6h e fiquei bem atrás da sua prima
Cleidiane. Lembra que trabalhamos juntas, né, na loja de roupas?

— Sim, eu lembro — confirmo e troco o peso do corpo para a perna boa. — Ela te contou?

— Uai, se eu falasse que a informação era pra você, nunca me diria. Fiquei sondando, joguei
verde. Comentei que a Maria tava muito triste esta semana, que o pesadelo nunca terminava. Ela
acreditou e disse que os Baldez são vingativos, não desistem nunca. — Congelo ao ouvir o
sobrenome dele. Eu sabia, sabia que tinha algo errado. — O intojo do senhor Otávio arrumou uma
nova namorada, que é filha do dono da empreiteira que seu pai tava fazendo os bicos fixos de
pedreiro. Dispensaram ele sem explicações no sábado, justo no dia que sua mãe passou a tarde
inteira no hospital com fortes dores na coluna.

— Hospital? Meu Deus!

Sem conseguir me controlar, as lágrimas começam a escorrer no meu rosto. Não sei dizer se
mais de medo, de tristeza ou de raiva. Filho da puta, desgraçado! Eles nunca vão deixar minha
família em paz.

Nunca.

— Aurora! — Preocupada com o que vê, Pilar deixa o pão e o copo de café na beirada da
janela do seu brechó e me puxa para um abraço. — Calma, não vai ter um troço, respira.

Eu não gosto que ninguém toque em mim, mas neste momento o conforto dos seus braços é
tudo que preciso. Não acredito que isso vai voltar a acontecer.

Inspiro, expiro. Telma também me diz palavras de conforto pelo telefone, no entanto, nada
ajuda a aplacar minha agonia.

— As dores na coluna pioraram por trabalhar muito com faxina, né? — Termino de cravar
uma faca no meu peito ao constatar que a culpa de tudo de ruim que acontece para aqueles que mais
amo é minha.

— A Maria tem esse trem de coluna há anos. A culpa de nada disso é sua, Aurora.

— É claro que é minha, Telma!

— Uai, pare de pensar assim, já! Você é a maior vítima de todos nessa história. Precisa
acreditar!

Não sou vítima totalmente porque eu me deixei influenciar pelas pessoas erradas. Eu mudei
minha essência para me encaixar em um mundo que não era meu. Se eu ficasse no meu canto, se
seguisse meus objetivos iniciais, nada disso teria acontecido.
— Provavelmente, minha mãe não está conseguindo pegar muitas diárias mais e agora, com
meu pai dispensado, vai apertar o orçamento. A minha prima falou algo de dívidas? — mudo de
assunto, focada em tentar resolver o problema, e me afasto do abraço de Pilar.

Silêncio por longos segundos. Telma parece ponderar se me fala ou não.

— Eu te imploro, não me esconda nada... por favor!

— A Cleidiane disse que o que tá atazanando sua mãe é o empréstimo da casa — conta,
enfim. — Eles não tinham conseguido pagar mês passado, está acumulando dois. Também tem água e
luz atrasados. A família tá fazendo uma vaquinha.

Merda! Merda! Merda!

Meu pai foi demitido três dias depois do pior momento da minha vida e não conseguiu um
novo emprego, nem bicos por semanas. As poucas economias não estavam dando conta de tanto
gasto, mesmo com a ajuda dos parentes de Pirapora. Sara ainda estava na fase difícil do autismo
naquela época e minha mãe também não podia largar seus cuidados para tentar algo fora.

A saída encontrada para todos os problemas que proliferaram foi o empréstimo com garantia
de imóvel, o único bem de valor que tínhamos graças ao terreno doado pela Prefeitura e o esforço do
meu pai. Transferimos a propriedade para a instituição financeira, até terminar de pagar as parcelas.

Se eu soubesse, se soubesse que iria ficar pior... talvez a gente pudesse ter dado outro jeito.
Respiro fundo e passo a mão no peito, tentando amenizar a ardência. Pouco mais de um ano depois
de conseguir o dinheiro, estávamos zerados de novo.

Minha mãe precisou deixar a Sara um pouco de lado para fazer as faxinas e meu pai aceitava
todos os bicos que apareciam. Minha irmã ficava trancada o dia inteiro comigo, visto que eu não
tinha coragem de colocar a cara na janela.

Antes de decidir vir para São Paulo, pensei em dizer aos meus pais para alugar a casa e
recomeçarmos juntos em outro lugar. Mas como iria exigir isso deles? Sem ninguém da família por
perto para resguardar, sem emprego, sem um teto?

Apesar de tudo, seu Vladimir e dona Maria das Graças amam aquela terra. Eles nunca iriam
se acostumar com a cidade grande. Além disso, minha irmã tem um sério problema com mudanças.
Quando enfim tinha descoberto seu diagnóstico e estava em tratamento, não poderia atrapalhar.

Eu é quem tinha que me mudar, a causadora do inferno.

— Preciso conseguir dinheiro extra, de alguma forma, tenho que ajudá-los!

— Podemos fazer uma rifa, o que acha? Posso ver com amigas de confiança pra doar
prendas... — Telma sugere.

— Se souberem que é pra minha família, o povo não vai comprar. Minha mãe vai ficar mais
triste ainda — pondero, pensativa. — Tinha que ser algo maior, pra quitar essa dívida com o banco.

O empréstimo foi feito em 120 meses, mais de quatro anos atrás, ainda faltam muitas
parcelas. Da forma que levo a vida atualmente, seria impossível.

“Poderia fazer um teste, três meses de preparação para uma competição importante que
teremos em breve. O prêmio é uma quantia boa, pensa. Poderia dar uma guinada pra você!”

Noberto... ele pode ser uma saída.

— Pilar, você lembra o nome da academia daquele moço que te falei? Do dia em que eu
briguei com os dois moradores de rua?

— Não só lembro o nome, eu peguei do lixo o cartão e guardei, caso mudasse de ideia.
Estava pensando em um futuro melhor pra você, não em algo tão triste para a sua família, mas o
importante é ajudar. — Novas lágrimas caem, desta vez, de alívio. Não sei como isso poderia dar
certo, se eu realmente consigo ganhar, mas preciso tentar. Pelos meus pais, eu devo dar o meu melhor
para conquistar o prêmio. — Se eles precisarem de dinheiro imediato, também tenho guardado na
poupança todo o dinheiro que você me deu desde que começou a trabalhar na cooperativa.

— O... o.... quê? — Minha voz mal sai, tamanha surpresa.

Ao fundo, escuto Telma soltar um suspiro emocionado no telefone. Essas irmãs... não há
palavras para descrevê-las.

— Estava juntando pra quando precisasse e acho que chegou a hora. Tem cerca de R$5.000
mil lá. Não gastei nenhum centavo.

— Eu... eu não posso... tudo... tudo que você já fez por mim. — O choro não dá trégua, sai
desmedido.

— Claro que pode! É seu, Aurora. O que eu faço por você é por empatia e carinho, não
somos ricos em casa, mas graças a Deus nunca faltou nada. Como percebi que não ia sossegar
enquanto não me pagasse, aceitei o dinheiro como uma poupança pra ti.

— Não sei... não sei nem o que falar. — Engulo em seco, soltando a bola presa na minha
garganta.

— Não precisa dizer nada. Pega esse dinheiro e envia pra sua família da forma que achar
melhor. — Pilar seca uma lágrima do seu rosto e volta a passar a mão no meu ombro. — Eu quero te
ver crescendo, sorrindo... Não menosprezo quem trabalha com recicláveis de forma alguma, no
entanto, aquilo ali não é pra você. Eu senti algo... algo no meu coração me disse que você tem que ir
a essa academia. Foi por isso que guardei o cartão.

— Pilar é muito sensitiva, amiga, acredita nela, uai! — Telma comenta e posso notar seu
sorriso e seu pranto mesmo pelo aparelho.

— Essa oportunidade vai mudar sua vida! — a mulher na minha frente confidencia, com os
olhos brilhantes.

Desligo o telefone e subo o mais rápido que eu consigo as escadas da casa da Pilar. Preciso
desse cartão o quanto antes! Vou ligar para Noberto e marcar um horário hoje, depois do expediente.
Não posso deixar o pessoal da cooperativa na mão.

Vai ser um grande desafio confiar em pessoas diferentes, aceitar outro destino que não seja
caminhar pelas ruas no sol quente sem falar com ninguém. Mas, por eles, eu faço tudo.

Não consigo vislumbrar felicidade no meu futuro de nenhuma forma, não acho que vai mudar
nada para mim. Porém, se puder mudar para os meus pais e a minha irmã, é o que basta.
CAPÍTULO 11

Passo pelo corredor estranhando o silêncio dentro da casa da vó Marideide. Não é nenhum
pouco normal para esse horário que, geralmente, a família está agitada preparando o jantar. Ajeito o
guarda-chuva na mão e continuo caminhando até os fundos.

É provável que estejam na academia. Coitado do tio Noberto, ficou devastado ontem à noite.
Nunca o tinha visto tão triste. Trabalhamos até às duas horas da manhã retirando os destroços do
telhado que caiu. Agora a nova remessa de dinheiro, que minha mãe havia emprestado para investir
nos atletas, terá que ser usado para consertá-lo.

O pior de tudo é que não vai ficar barato e, juntando com os problemas financeiros da Naja,
não é nada promissor.

Pela primeira vez, desde que o conheço, tio Noberto levantou a hipótese de fechar a
academia e procurar outra atividade para exercer. Sinceramente, não consigo imaginá-lo fazendo
outra coisa. Nem ele nem o Pablo.

Se eu tivesse que abandonar a astronomia em algum momento da vida, não sei o que seria de
mim.

Fecho o guarda-chuva e o deixo na porta de casa. Vou alimentar a Yê, colocar a minha capa
que está na mochila e ir lá ver se estão na academia precisando de ajuda. Está caindo uma garoa bem
fina, nada comparado a tempestade de ontem, mas fiquei traumatizado.

Nunca mais quero ficar tão molhado, foi incômodo além do suportável.

Faço tudo rapidinho e, menos de vinte minutos depois, estou de volta na calçada me dirigindo
para o legado do meu bisavô. Tinha um seminário para assistir, no entanto, acredito que neste
momento meu tio precisa mais de mim do que eu de mais conhecimento.

Distraído olhando para o chão, só percebo que tem alguém parado na frente da academia
quando esbarro sem querer com o corpo.

— Desculpa... — Afasto-me imediatamente ao mesmo tempo que a pessoa se vira assustada


e, também, dá um passo para trás.
Olhos. Coloridos.

A cena parece até em câmera lenta quando a reconheço. Tum, tum, tum. Meu coração acelera
e fico ansioso de repente, sem entender direito o motivo. Esfrego a mão na capa e endireito o corpo,
sem conseguir desviar a atenção dela.

Ana parece se acalmar ao perceber que sou eu e observa, curiosa, minha vestimenta. Deve
estar pensando por que estou com isso, se apenas garoa no momento.

— É por causa...

— Eu vim...

Falamos juntos e nos calamos, observando um ao outro de forma tímida. Eu geralmente não
gosto de ficar olhando para as pessoas, mas tem algo nela, que me faz querer fitar seus olhos por
mais tempo do que o normal.

— Po... po... — Limpo a garganta, estranhando que ficou seca do nada. — Pode falar.

— Eu vim conversar com o Noberto, acabei de chegar. Combinamos hoje de manhã que eu
viria depois do expediente. É sobre a proposta que me fez aquele dia na ponte.

Ela vai aceitar? Vai treinar na academia? Eu poderia vê-la mais vezes!

Tum, tum, tum, tum, tum, tum, tum.

As batidas disparam, mais fortes do que antes. É ela quem causa isso em mim. Todas as vezes
que fiquei agitado nos últimos dias foi perto dela, ou pensando nela.

Por quê? Não consigo entender qual a ligação de Ana com o medo ou com assuntos do
Universo — as duas causas anteriores que me deixavam dessa forma. Não há nenhum padrão, isso
não faz sentido.

— Daniel?! — chama, ao perceber que fiquei em silêncio.

Ela se lembra do meu nome, tio Noberto só disse uma única vez e ainda chamando a minha
atenção. Tenho vontade de sorrir por este simples detalhe. Desvio o olhar e passo a mão na capa de
novo. Tenho que me controlar, não quero que Ana pense que sou esquisito.

Por algum motivo que ainda não entendi, eu... eu gostaria que ela não fosse como os outros.
Queria que fosse como a Mel.

— Desculpe-me. Ele está lá dentro, vamos. — Passo na sua frente e abro o portão para que
possa entrar.
Com medo de dizer alguma bobeira, prefiro ficar quieto no curto trajeto até a parte interna da
academia. Dentro de mim, contudo, há uma vontade enorme de puxar assunto e saber mais dela. Ana
comentou que combinou hoje de manhã de conversar com meu tio. Por que será que mudou de ideia?
Aquele dia na ponte pareceu bem certa da sua decisão.

— Ela chegou, ela chegou! — Mal entro e meu tio já nos vê, aproximando-se, animado. Seu
rosto fica radiante com a figura da menina ao meu lado. — Seja bem-vinda! Você foi um sinal de
Deus hoje, Ana. Antes da sua ligação, eu estava pensando seriamente se não era a hora de abandonar
este lugar.

Paro ao seu lado e observo quando sua garganta se move da mesma forma que eu faço quando
estou nervoso e engulo em seco. Com certeza, há um motivo que a fez mudar de ideia.

— Sinto muito pelo que houve — ela diz, observando cautelosa o ambiente.

É um galpão grande, com área para exercícios de musculação, para cardio, para os tatames e,
claro, para os ringues de luta. Havia dois bem grandes no centro, um deles foi afetado pela chuva,
assim como alguns equipamentos.

Todos meus familiares estão aqui, até Camile que deveria estar no curso de maquiadora que
faz no período noturno. Vó Marideide me encara de cima a baixo com a cara brava. Desde ontem,
está irritada com a minha capa.

— Obrigado, agora estou esperançoso de novo que vamos nos recuperar. Falei hoje com o
pessoal que vai restaurar o telhado e eles disseram que vamos conseguir treinar enquanto arrumam.
— Noberto olha para trás e pega a mão da tia Ana Júlia. — Deixa eu apresentar pra você minha
família. Fiz questão que todos estivessem aqui hoje para você se sentir segura e confortável com a
gente. O que entrou contigo é meu sobrinho Daniel, acho que se lembra dele do dia que nos
conhecemos. — Entreolhamo-nos rapidamente e ela balança a cabeça em concordância. — Essa
aqui é minha esposa, Ana Júlia, estes sãos meus filhos Pablo, Camile e Melissa e esta é a minha mãe,
Marideide.

Meu tio aponta um por um, eles acenam de longe, recebendo um aceno tímido de Ana também.
Vó Marideide é a única que se aproxima para abraçá-la.

— Seja bem-vinda, querida! Meu nome é Marideide com “d” mesmo, viu?! Foi um erro do
moço do cartório. — Assim como eu faço, percebo a garota se retrair com o abraço, sem saber como
reagir ao gesto e ao falatório. — Você e o meu neto vão ganhar o prêmio e salvar a academia, tenho
certeza disso. Ele disse que você é muito boa. Vamos cuidar bem de você, menina...

— Mãe, não precisa grudar na Ana, não! Ela gosta de espaço, vamos respeitar. — Tio
Noberto a puxa para o lado, percebendo o desconforto.

— Nossa, mais uma que não gosta de afeto? — retruca, afastando-se a contragosto. Deve
estar se referindo a mim. Eu gosto de afeto, só não gosto do toque na minha pele. — Só estou sendo
simpática.

— Desculpe-me por isso — ele tenta apaziguar, sorrindo. — Minha mãe é expansiva, gosta
de toque o tempo todo. Daniel sofre com isso.

Nós nos entreolhamos mais uma vez e as batidas retomam o batuque. É impressionante como
meu coração reage a ela.

— Tudo bem — afirma sem jeito e desvio o olhar, percebendo que Mel também está me
fitando.

Observo minha prima que sorri e pisca para mim. Dou de ombros, não entendendo o motivo
da piscada. Será que eu fiz algo errado? Mas se fosse algo errado, ela não estaria sorrindo.

Quando estão bravos comigo, a última coisa que eu recebo é um sorriso.

— Vamos nos sentar pra conversar melhor — tia Ana Júlia sugere e os outros a seguem para
a área lateral da academia, que tem bancos de concreto grudados à parede.

Fico parado no meu lugar. Vim para ajudar com o telhado, não sei se me querem nessa
conversa. Por mais que tenha vontade de ficar, uma vez o Pablo disse que não posso interferir no
assunto dos outros.

— Vem também, Daniel. Você é da família, oras — tio Noberto chama. — Não te chamei
quando viemos pra cá, porque você estava na universidade ainda.

Com passos mais ansiosos do que deveria, eu praticamente corro para me sentar e fico do
lado da Camile.

— Tira essa capa, tá ridículo — minha prima cochicha próximo ao meu rosto. — A menina
vai pensar que você é louco.

Preocupado com o que Ana possa estar achando de mim, começo a soltar os botões, mas a
Mel coloca a mão em cima da minha e me interrompe.

— Deixe ele em paz, Camile. Não tem nada de ridículo não gostar de ficar molhado.

— Você está vendo chuva aqui dentro, pirralha? — brada com a irmã caçula.

— Parem com isso, vocês três! — Minha tia faz sinal de silêncio com o dedo e nos encara.

Acho que está brava. Camile revira os olhos e vai se sentar do outro lado do banco, próximo
da vó Marideide. Tio Noberto está conversando com Ana, mas não consigo focar na sua voz. Meus
olhos e minha mente estão centrados no botão que eu preciso soltar.
— Pode ficar com a capa, Dan, não tem nada de mais. Você está bonitinho, até! — Mel sorri
e tira meu dedo de cima do botão.

— Mas..., mas e se ela me achar louco? — falo tão baixo, que quase não escuto minha voz.

— Se ela achar, é uma babaca igual a Camile, então, não merece você.

— Não vou pedir de novo pra ficarem quietos! — a mãe da minha prima volta a nos pedir,
com o semblante ainda mais fechado. — Seu tio está conversando um assunto sério.

Fico quieto absorvendo o “não merece você” que Mel disse. O que isso significa? Embora
não saiba, meu peito fica apertado com o desconhecido. Isso tudo é tão... tão novo.

Novo, assustador e, ao mesmo tempo, parece um ímã. Cada vez fico mais atraído em
entender.

— De quanto é o prêmio? Quanto fica pra mim e quanto pra você? — Ana pergunta e seu tom
diferente, mais urgente, me faz observá-la.

— Se você conseguir ganhar na final e o extra de desempenho, o prêmio pode chegar a R$15
mil. Nessa primeira, fica 70% pra você e 30% pra academia.

— Sem contar que se vencermos, temos chance de participar de eventos maiores com
amplitude nacional — Pablo completa. — Esses eventos pagam ainda mais!

— Isso mesmo! Acho que seria melhor você ficar por aqui, teremos mais liberdade pra
trabalhar. A competição é daqui a três meses, se a gente pegar firme nos treinos temos uma real
chance de ganhar com você e com o Pablo — tio Noberto explica, animado. — Dois vencedores
aumentam a reputação para a academia voltar a ter prestígio e atrair mais gente, esse é o meu plano.
Mais do que dinheiro, eu particularmente, prezo por notoriedade no momento.

— Tem espaço em casa, no antigo quarto que era da Viviane e do Daniel, ela pode ficar lá,
por enquanto — vó Marideide sugere.

— Boa ideia! — Noberto concorda. — Garanto sua alimentação e uma ajuda de custo pra te
ter exclusivamente focada nisso. Não tem como dividir o tempo com outro trabalho.

— Primeiramente, eu não quero ficar na casa com vocês. Não é desfeita, não, me desculpa,
mas eu não gosto de atrapalhar. Vou ficar sem jeito lá, não vai dar certo. — Ana passa a mão no
cabelo preso e mexe na beirada do blusão que está vestindo. Ela se veste como menino. — Eu só
preciso garantir R$350 por mês, que envio para a minha família. De resto, me viro com o que dá,
fico em qualquer cantinho.

— Esse valor eu dou um jeito de conseguir! Quanto ao local, também podemos dar um jeito.
— Tem aquele cômodo que guardamos tranqueiras nos fundos, pai — Pablo lembra e a
possibilidade de tê-la tão perto me faz sentir um reboliço no estômago. É bem ao lado da minha casa.
— A gente pode colocar as coisas de lá aqui na academia, por enquanto.

— Credo, vão colocar a menina naquele cubículo horroroso? — Camile retruca.

— É verdade, nem janela tem lá. Passou esses anos todos com entulho — vó Marideide
concorda com a neta.

— Eu moro atualmente em um colchão dentro de um brechó e estou acostumada a passar o dia


inteiro mexendo em lixo. Por mim, isso é perfeito.

Silêncio.

Não sou bom em entender sentimentos, mas agora acho que todos ficaram comovidos com a
resposta da Ana. Por que mora em um brechó? Onde está sua família? Por que envia dinheiro para
eles? Ela gosta de trabalhar com recicláveis? Tenho tantas perguntas que gostaria de saber as
respostas.

— Vamos tirar tudo de lá, fazer uma limpeza e pintar — tio Noberto afirma, com a voz
embargada. — Pegamos os móveis que estão no antigo quarto da Viviane e deixamos confortável na
medida do possível pra você, Ana.

— Pra mim está ótimo. Eu preciso do dinheiro, então, vou aceitar de qualquer forma. — Suas
mãos se mexem de um lado para o outro próximo ao quadril. — E agora que temos uma parceria,
quero dizer que meu nome na verdade é Aurora. Eu menti antes porque não gosto de falar para
estranhos.

— Aurora, como a aurora boreal. — Não consigo evitar as palavras saírem da minha boca.
— Ela acontece quando ondas de plasma resultantes de tempestades solares viajam pelo espaço e
interagem com o campo magnético e com a atmosfera da Terra. Muitas auroras boreais são azuis e
verdes, como a cor dos seus olhos.

— Não assusta a menina, Dan, pelo amor de Deus! — meu primo suplica, batendo a mão na
testa. — Não liga pra ele, não, Aurora.

Escuto mais algumas reprimendas da Camile e da minha vó, mas logo tio Noberto volta a
falar dos treinos para tirar o foco de mim.

Minha mente parece se desligar da academia e ir diretamente para o norte do Canadá, onde o
show de luzes no céu aparece com frequência. Já vi tantas vezes pela internet, que é como se
realmente tivesse tido o privilégio de acompanhar pessoalmente.

A.u.r.o.r.a. É um nome perfeito para ela!


CAPÍTULO 12

Há muito tempo eu não tinha um fim de semana tão agitado quanto este. Minha cabeça está
fervilhando desde sexta-feira, quando decidi aceitar o desafio proposto por Noberto e promover uma
mudança significativa na minha rotina.

Eu me sinto segura perto da Pilar, e agora terei que morar do outro lado da cidade.

Eu gosto do trabalho solitário de recicladora, e serei obrigada a reaprender a socializar.


Mesmo que seja o mínimo possível.

Isso tudo está me deixando apavorada por dentro, embora me esforce o dobro para não
transparecer a ninguém. Virei craque em camuflar meus sentimentos. Termino de vestir meu blusão e
seco a mão suada no tecido largo. Já juntei as poucas coisas que tenho e está tudo arrumado para
partir.

Daqui a pouco, este não será mais meu lar.

Se eu pudesse continuar morando aqui, seria muito melhor, mas realmente é fora de mão e vai
gastar um valor que não posso desperdiçar com transporte. Sem contar que também terei que me
desdobrar nos treinos para ter alguma chance, será necessária dedicação exclusiva e integral.

O meu maior medo é não me adaptar ao jeito expansivo da família do Noberto. Pelo pouco
que pude conhecer deles, já fiquei preocupada. Hoje eu prezo por ser reservada e pelo silêncio do
meu canto, não pretendo mudar isso.

A senhora Marideide, por exemplo, não me parece que aceitaria bem o fato de que prefiro
comer sozinha no quarto sem janela do que me juntar à sua família para jantar. Ela me incomodou um
pouco, assim como alguns comentários da Camile e do Pablo.

Para ser sincera, a única pessoa que me deixou confortável, além do dono da academia, é o
Daniel. Baixei a guarda com o rapaz talvez porque reparei algumas semelhanças suas com a minha
irmã Sara, e ela é a pessoa mais pura e inofensiva que conheço.

Espero não estar enganada quanto a isso, nem ter problemas com eles nem ninguém que
frequenta a academia. É claro que não entrei em detalhes, mas deixei claro que se alguém me
desrespeitar ou tentar alguma gracinha, por mais que eu precise do dinheiro, venho embora na mesma
hora.

Pilar garantiu que tenho meu cantinho quando precisar e a coordenação da cooperativa de
reciclagem também deixou as portas abertas, caso queira retornar.

— Oi, Aurora! — Dois toques na porta me fazem sair do meu devaneio e ir atender.

O espaço é dela, mas a mulher nunca entra sem bater quando sabe que estou aqui dentro.

— Terminou de arrumar as suas coisas? — Pilar pergunta, assim que me avista e entrega o
café da manhã nas minhas mãos. — O Egídio vai levar você de carro.

— Não, até parece! — Dou uma mordida no pão e abro espaço para que possa passar. — Eu
me viro, o Egídio tem que trabalhar.

Noberto combinou comigo que ia arrumar o espaço que vou ficar no fim de semana e que na
segunda-feira de manhã iria me esperar para a mudança e para começar os treinos.

— Ele avisou que vai se atrasar um pouco, eu também vou junto. Não vamos deixar você
andar com essa mala e o colchonete nas mãos até o outro lado da cidade.

— Pilar, eu...

— Não tem “Pilar, eu” — afirma, incisiva. — Nós vamos te levar lá, aproveito e conheço
esse tal de Noberto. Quero deixar algumas coisas bem claras pra ele.

Sorrio com seu ar de mãe preocupada, era exatamente o que a minha faria se me visse
aceitando novos desafios. O sorriso, contudo, não se estende muito ao lembrar a situação que meus
pais se encontram.

Nossa última conversa foi mais difícil do que de costume. Eles tentaram mostrar que estava
tudo bem, mas eu logo disse que sabia o que tinha acontecido e que não queria que escondessem as
coisas de mim.

O sujo exigindo verdade do mal lavado. Eu sei, não tenho nenhum direito.

Inventei uma história que tinha desconfiado no domingo passado que havia algo errado e que
logo descobri o que era. Não citei nomes, mas é claro que desconfiaram da Telma. Contei que
organizei uma rifa durante a semana e que meus amigos da capital ajudaram a reunir a quantia que
encaminhei para a conta deles.

Enviei cada centavo do dinheiro que Pilar tinha guardado. Até agora fico emocionada com o
gesto dela, significou muito para mim.

Seu Vladimir custou a acreditar, mas eu consigo ser convincente. Aprendi a ser na marra para
não ferir ainda mais aqueles que amo. Em Pirapora, o pessoal adora fazer rifas para tudo, então,
acabaram aceitando que não seria uma ideia tão absurda, apesar do valor alto para os padrões de lá.

“Aqui na capital o pessoal gosta de ajudar, pai, todos foram muito solícitos comigo”, menti
descaradamente para convencê-lo.

O dinheiro vai pagar as contas essenciais que estão atrasadas e manter comida na mesa, por
enquanto. Telma está tentando ainda conseguir um bico na fazenda de um conhecido dela para cobrir
as férias de um funcionário no mês que vem. Recebe pouco e trabalha muito, no entanto, por ora pode
ser nossa salvação. Preciso ganhar tempo por três meses e rezar para levar o prêmio da competição.

Não vai resolver toda dívida, mas irá ajudar. Noberto e Pablo explicaram que esse evento é
porta de entrada para lutas maiores, então, se eu realmente for boa e ganhar, vou continuar nisso até
juntar a grana necessária para livrar meus pais do contrato.

É culpa minha, não posso dar-lhes esse fardo extra.

Fiz questão de conversar com Noberto também sobre a visibilidade do evento e ele disse que
é famoso, porém, entre os praticantes da modalidade MMA e de lutas marciais. Menti que não queria
que meus pais soubessem, mas a verdade é que meu maior medo é o Otávio descobrir onde estou.

Jamais quero ter o desprazer de encontrá-lo de novo.

Pilar e Egídio acabaram de ir embora, depois de uma longa conversa com Noberto e sua
esposa, Ana Júlia. Apresentei-os como meus amigos e desembestaram a falar. Não fiquei escutando o
teor, preferi vasculhar a academia de novo, mas aposto que ela gostou das respostas que ouviu, pois
estava com um sorriso radiante no rosto, apesar dos olhos lacrimejantes.

Eu aprendi a admirá-la durante esses anos, foi difícil me despedir e saber que não a verei
todos os dias.

A mulher que me estendeu a mão em São Paulo garantiu que tudo vai ficar bem, com uma
certeza tão forte que, até eu, que ando cética para a vida, fiquei balançada. Será que realmente isso
aqui pode ser um divisor de águas para mim?

— Aurora, tem lençóis e toalhas limpinhos na cômoda. — Ana Júlia mostra as gavetas e me
encara, animada. — Depois dos treinos, você toma banho e come lá em casa.

Noberto foi atender o pedreiro, que vai arrumar o telhado da academia, e me pediu para vir
com a esposa deixar minhas coisas no quarto que arranjaram para mim.

— Eu peço desculpas de antemão, mas gostaria de saber se tem como eu tomar banho lá na
academia e jantar por aqui mesmo? — Passo a mão no rabo de cavalo, sem graça. Não gosto de
parecer ingrata ou metida, só valorizo meu espaço. — Eu percebi que tem vestiários lá, ficaria mais
à vontade.

— Tudo bem, se é o que você quer — ela afirma, observando-me com mais atenção. —
Vamos respeitar todas as suas vontades, mas saiba que aqui somos pessoas boas. Não faremos mal a
você, como garanti para a sua amiga Pilar.

— Acredito nisso, porém, prefiro ficar na minha, mesmo.

— Vou preparar suas refeições e trago pessoalmente, então. Se precisar de qualquer coisa,
pode falar comigo. Aliás, Camile tem umas roupas que não usa mais, se quiser também posso deixar
aqui pra você. Acho que são do mesmo tamanho — conta, fitando minha blusa grande demais.

— Não, obrigada, estou bem assim — respondo, sucinta.

Deixar de trabalhar nas ruas não vai mudar o meu estilo atual. É melhor continuar escondendo
meu corpo, não quero chamar a atenção de ninguém. Quanto mais passar despercebida, melhor.

— Ok, entendo. Eu...

— Ana Júlia! Ana Júlia! — A voz de dona Marideide interrompe nossa conversa. Olho pela
porta e avisto-a parada no meio do corredor, com a mão na cintura. — Não estou alcançando o feijão
na despensa. Vem pegar, por favor, esquecemos de botar de molho ontem.

— Já vou, só um minuto — a mulher responde, olhando para a mesma direção que eu, e
desvia a atenção para mim de novo. — Deixa eu ir lá, senão ela fica gritando a manhã inteira. Mais
tarde conversamos melhor.

— Pode ir à vontade, eu me viro por aqui.

Observo o corpo esguio da mulher sair e me viro para a cama, abrindo a mala. Guardo as
poucas peças na gaveta e coloco meu colchonete velhinho embaixo do colchão macio que me
arrumaram.

O quarto ficou melhor do que eu imaginava. Não é tão pequeno como disseram, coube uma
cama, uma cômoda e ainda sobra um espaço para eu me locomover. Está limpo e com cheiro de tinta
recente. O que me surpreendeu foi que colocaram uma janela improvisada para ventilar.

Ana Júlia se desculpou dizendo que eles compraram de segunda mão por causa dos gastos
recentes, mas para mim está ótimo. Ela é simples, no entanto, funcional para o objetivo de ventilar.
Não estava nem contando com isso, já que avisaram na sexta que não tinha.
Caminho até a janela aberta e espio o lado de fora. Há um quintal bem-cuidado, que reparo
ser da casa ao lado. Noberto já tinha explicado que Daniel morava ali com a mãe e agora está
sozinho, porque ela trabalha como aeromoça.

Um varal com roupas estendidas por cor e uma árvore grande que divide espaço com o muro
da academia chamam a minha atenção. Observo que há uma escada para subir e um compartimento de
madeira na parte superior.

Uau, uma casa na árvore! Sempre quis ter uma, mas não havia espaço no nosso quintal para
isso.

— Vamos, Aurora?! Estou animado pra começar. — Viro-me na direção da voz e encontro
Noberto encostado no batente. O sorriso no seu rosto é o mesmo animado que Ana Júlia deu agora há
pouco. — Pablo está nos esperando, e outros três alunos antigos que vão disputar também. Eles não
têm muitas chances, mas iremos tentar tudo que for possível. Infelizmente, não temos mais mulheres
na equipe. Já conversei com a rapaziada e mandei não se meterem com você de forma alguma.

— Obrigada — agradeço e caminho em sua direção. Percebo que seu foco vai todo para a
minha perna manca.

Instintivamente, passo a mão no local, incomodada. Essa perna machucada é um lembrete


diário do meu passado.

— O que aconteceu na perna? É um machucado recente? Corte? Precisamos focar na


recuperação dela, pra você estar 100%.

— Não é recente, faz anos já. Não vai parar de ficar manca.

— Não... não melhora? — É nítido como seu rosto muda de eufórico para preocupado. —
Você sente dores?

— Eu já me acostumei com as dores, não se preocupe, nem sinto mais. Ando quilômetros por
dia, a perna não vai ser um problema.

Não vai ser isso que vai me atrapalhar, eu garanto. Sinto tanto ódio de como esse machucado
aconteceu, que usarei a raiva como combustível para ser ainda mais forte.

— Bom, aquele dia que te vi, percebi a perna manca e realmente não te atrapalhou. —
Noberto esfrega o rosto, como se buscasse esperança nas suas próprias palavras. — Tivemos Nick
Newell, sem a metade de um braço, invicto no MMA; podemos ter Aurora Mendes, uma estrela
manca e campeã.

Aceno a cabeça em concordância e inspiro fundo, internalizando a palavra “campeã” para a


minha mente e cada célula do meu corpo.
Pela minha família. Isso vai dar certo!
CAPÍTULO 13

Eu nunca quis tanto chegar em casa como hoje. Geralmente, eu amo ficar na universidade,
mas esta segunda-feira foi angustiante esperar os ponteiros do relógio passarem por causa da Aurora.
Até Saulo e o professor João perceberam a ansiedade diferente. Quero muito vê-la de novo, desde
que foi embora na sexta. É engraçado, pois tinha acabado de estar na sua presença e já senti falta.

Passo a mão no cabelo e tiro os fones de ouvido, guardando-os no bolso lateral da mochila.
Abro o portão da academia e sigo as vozes altas do lado de dentro. Geralmente, quando estão se
preparando para um campeonato, os alunos treinam de manhã, à tarde e à noite, duas horas cada
turno, seis dias por semana — é uma rotina pesada que tio Noberto não abre mão. Às vezes dá para
escutar lá de casa o barulho. Ele é bem-organizado e exigente quanto a isso.

— Mantenha a guarda! Isso! Jab de esquerda, perna direita. Jab de direita, isso Aurora! — A
sua voz eufórica e o riso no seu rosto mostram que a menina está se dando bem.

Sigo a direção do seu olhar e a vejo no meio do ringue com as mãos posicionadas em
proteção, na frente do rosto, e as pernas em constante movimento para frente e para trás. É bonito vê-
la lutando, parece que a adrenalina do momento a transforma em outra pessoa, completamente
diferente da mulher retraída que aparenta fora dali.

Tum, tum, tum, tum. É imediato o batuque, assim que meus olhos pousam nela. Eu gosto de
como meu coração acelera por causa da Aurora. É quase tão prazeroso quanto aprender ou falar
sobre o Universo.

Há duas duplas lutando sob a observação do meu tio e do Pablo, que é mais experiente e
sempre ajuda. Os outros dois garotos trocando cotoveladas não chamam tanto a atenção como a olhos
coloridos.

— Porra, Double Leg! — Ele bate palmas, ainda mais animado. — Você aprende muito
rápido, Aurora. Parabéns!

Eu me lembro deste movimento da época que o tio Noberto tentou me ensinar a lutar. É um
tipo de queda onde o lutador abraça as duas pernas do adversário, erguendo-o do chão e o colocando
com as costas na lona. Rende boas pontuações, ela fez certinho. Quem a vê de longe, magra e com a
perna manca, não imagina que tem tanta força.
Vou até os bancos próximos da parede e me sento ali, observando-a em ação. Ninguém parece
notar minha presença, estão tão focados que sequer desviam a cabeça para o lado.

Perco a noção do tempo acompanhando o treino, vidrado nos movimentos da Aurora. Ela não
está vestindo a roupa habitual que os alunos usam para treinar, continua com aquele blusão e uma
calça de pano que também é maior que o seu tamanho. Nunca me sentei para assistir a uma luta. Nem
quando tem os eventos, eu tenho paciência de ir. Vó Marideide sempre briga comigo porque não
prestigio meu primo.

O que será que ela ia achar de me ver aqui agora?

— Por hoje chega, pessoal. Trabalhamos bem! — Ouço meu tio encerrar o treino e ajeito
minha postura para vê-la saindo do ringue. — Aurora, mais tarde eu levo pra você uma bolsa de
água quente e um relaxante muscular pra amenizar a dor, tá?!

— Obrigada — responde, sem encará-lo e coloca a mão do lado da perna machucada.

Com a adrenalina abaixando, o músculo deve doer. Na quinta série, tinha um menino gago na
minha sala que conseguia falar perfeitamente quando cantava, mas na conversa diária as palavras não
saíam de forma alguma.

Talvez seja assim para Aurora. Na luta, ela consegue se mover sem sentir muito.

Nossos olhares se encontram quando estou reparando demais no local e ela se vira
bruscamente para a direção dos vestiários com uma sacola de roupas na mão. Coço a têmpora,
acompanhando sua caminhada sem entender se fiz algo errado.

Tio Noberto percebe para onde está minha atenção e se aproxima com o semblante fechado.
Isso não é bom. Não é nada bom.

— Por que você está aqui, Daniel?

— Quis ver a Aurora.

— Nunca conheci pessoa mais sincera na vida! — Pablo também se aproxima, sorrindo, e se
senta ao meu lado, batendo sua mão suada no meu ombro.

Afasto-me do toque e passo o dedo no nariz para dispersar o cheiro forte do seu desodorante.
Odeio esse aroma cítrico, me causa dor de cabeça instantânea.

— Daniel, você não pode vir aqui ver os treinos, nem importunar a Aurora. — Tio Noberto
permanece sério. — Eu já deixei isso bem claro para o seu primo e os outros meninos também. Onde
se ganha o pão, não se come a carne!

— O quê? — Arqueio a sobrancelha sem entender nada. Qual a relação do carboidrato com
a proteína?

— Ele quis dizer que é importante separar o trabalho da vida pessoal, Dan! — Pablo explica.

— Se a Aurora e o seu primo ganharem o torneio, pode ser o empurrão que a Naja precisa
para voltar a ser referência. Nós não podemos arriscar isso por nada, entendeu? — Meu tio dá um
passo para frente e busca meu olhar. Não chego a contar até dez, incomodado com a intensidade que
me fita. — Eu percebi que você gostou dela desde o episódio da ponte, mas não é a garota certa,
filho. Pelo pouco que conheci da menina, notei que ela tem feridas profundas. Se sentir incômodo em
ficar conosco, Aurora vai embora sem pestanejar.

— Tem muita mulher por aí, Dan, você só precisa se abrir. Aurora nem é tão bonita assim.
Monique é muito mais gostosa e você faz cu doce.

— Claro que não! — defendo-a de prontidão, sem fazer ideia do que significa um “cu doce”.
Nunca experimentei para saber se o gosto varia.

Não tem nem comparação uma com a outra. A olhos coloridos é infinitamente mais bonita.

Conheci a amiga do meu primo quando fiz 18 anos. Assim que alcancei a maioridade, ele
cismou que eu tinha que começar a sair e a ficar com garotas. Foi algo bem desconfortável, tenho que
assumir.

Com a Monique, eu tive a minha primeira vez e não foi nada como Pablo havia descrito ou
me passado para assistir em vídeos da internet. Odiei o toque excessivo no meu corpo e a saliva em
demasia me lambuzando todo.

Nossa, foi horrível!

Pelo jeito, mesmo com a falta de experiência, ela acabou gostando de mim, porque vive
pedindo para o Pablo me levar quando saem juntos. Depois deste episódio, cedi em tentar apenas
mais uma vez, quando tinha 20, durante uma visita ao clube “O pecado de Eva”. Não sei dizer qual
experiência foi pior. Neste local o barulho era muito alto e as luzes ofuscavam a minha vista. Foi um
pouco nojento ter a garota sentada em cima de mim em um sofá sujo no meio do salão. O único lado
bom é que esta sabia dosar a saliva.

Desde esse dia, eu prefiro ficar com os vídeos que Pablo me mostrou. Eles são muito
melhores e eu consigo me satisfazer sozinho toda noite.

— Pablo está certo, Dan. Tem muita mulher no país pra você curtir! — Estima-se que o
Brasil tenha 209,5 milhões de habitantes, sendo 51% mulheres. Nenhuma até hoje fez meu coração
acelerar como Aurora fez e eu ainda nem consegui descobrir o motivo. — O futuro da nossa família e
da Naja dependem desta competição, nós já estamos sobrevivendo por aparelhos há meses. Por
favor, não venha mais aqui e a deixe em paz. Não puxe assunto, não force uma aproximação. Eu te
imploro, deixa ela no canto dela. Tá bom? É um pedido geral que venho fazendo pra todos. Não é só
pra você.

Engulo em seco, notando meu peito se comprimir com o pedido. Nunca dizer um “sim” foi tão
difícil como neste momento. Minha boca mal consegue se abrir.

Eu só queria conversar, me aproximar de alguma forma. Descobrir por que meu corpo reage
diferente na sua presença.

— Tá... — Passo a mão no coração, incomodado com a fisgada. — Tá bom.

Vou ter que deixar as suposições para a minha imaginação pouco fértil e sem habilidades de
compreensão do ser humano. O bem do tio Noberto e da academia são maiores do que a minha
curiosidade.

Vou me afastar e deixá-la em paz.


CAPÍTULO 14

Mal dá para acreditar que já se passou um mês que eu me mudei.

Tenho me adaptado melhor do que imaginei à nova rotina e nem cheguei a sentir falta da
solidão do trabalho de recicladora. Aqui tenho contato com bastante gente, mas eles têm respeitado
meu espaço. Nenhum aluno fez graça comigo e a família do Noberto se mantém até que bastante
distante.

As únicas pessoas que tenho mais contato, além do sensei, é a sua esposa e a filha caçula. Até
mesmo Pablo, que treina todos os dias comigo, quase não dirige à palavra a mim. Para ser sincera,
estou adorando que seja assim. Eu tinha muito medo da mudança.

O quarto improvisado é bastante confortável e tenho privacidade para fazer tudo que preciso
sem ser incomodada. Todos os dias, antes de dormir, a Pilar me liga para saber como andam as
coisas e continuo com o ritual de falar com os meus pais aos domingos.

Eles nem desconfiaram de nada e, graças a Deus, seu Vladimir conseguiu o emprego
temporário para cobrir as férias do conhecido da Telma. O dinheiro que enviei mês passado foi
suficiente para pagar as dívidas mais urgentes e agora eles estão levando com as poucas faxinas que
minha mãe tem conseguido fazer. Noberto me pagou a ajuda de custo como prometeu e mandei
também toda quantia para pagar o tratamento da Sara.

As coisas estão dando certo, na medida do possível.

Com relação aos treinos, eles são tão puxados, que os dias voam e a gente nem se dá conta.
Sinto-me mais forte do que nunca, não pensei que ia gostar tanto da luta. Quando estou no ringue,
deixo toda raiva que tem dentro de mim extravasar e isso tem sido libertador.

Sempre imagino que meu adversário tem o mesmo rosto que Otávio, dou o meu máximo para
vencer.

Deitada no banco, levanto mais uma vez a barra com a palma das mãos e faço a última
sequência de dez. Noberto está fortalecendo meu peito, ombros e tríceps para ganhar vantagem com a
parte de cima do corpo, visto que meu problema na perna machucada logo será percebido pelos
adversários e eles irão aproveitar meu ponto fraco.
Assim que termino o supino, pego minha garrafinha de água e fico me observando no espelho
amplo acoplado na parede. Também ganhei alguns quilinhos e voltei para o peso que tinha antes de
vir para São Paulo. Fazia muito tempo que eu não comia tanto e tão bem como agora. A Ana Júlia
leva a sério as orientações da nutricionista, que tem parceria com a academia, e me trata com o
mesmo cuidado que dá ao seu filho Pablo. No evento, irei competir no Peso Pena, de 61,2Kg a
65,7Kg.

Noberto disse que no passado a Naja tinha uma equipe multidisciplinar muito maior de apoio
aos atletas, mas que infelizmente precisou se desfazer deles por causa dos altos custos e da sua má
administração. Segundo me contou, seu avô e seu pai tinham o tino para a luta e para os negócios, já
ele não herdou a segunda qualidade, por isso, vive pedindo dinheiro emprestado para a sua irmã
Viviane. Pelo que entendi, ela não gosta muito deste universo, mas tem um carinho pelo legado da
família e não quer que tudo acabe.

Eu tenho dificuldade em confiar em homens depois do que aconteceu, no entanto, ele tem me
provado que é uma pessoa boa. Assim como Egídio, marido da Pilar, também provou. Vejo nele a
mesma garra e simplicidade do meu pai, gosto de quando me conta as histórias da academia e abre
seu coração com as preocupações que tem sobre o futuro.

— Terminou todo treino de hoje? — Observo-o pelo espelho e me viro na sua direção.

Os meninos saíram para uma corrida com Pablo e eu fiquei focada na musculação enquanto
ele atendia os pedreiros que estão arrumando o telhado. A obra está na fase final.

— Sim, fiz tudo certinho. — Tomo mais um gole da água e guardo o recipiente na minha
sacola que tem de tudo um pouco.

Trago-a em todos os três treinos diários para poder tomar banho aqui antes de voltar para o
meu cantinho. Nesses trinta dias, só entrei na casa do Noberto duas vezes e isso porque fui obrigada
pela senhora Marideide.

— Ótimo, à noite vamos treinar muay thai, pra você aperfeiçoar socos e cotoveladas.

— Tudo bem.

O MMA são artes marciais mistas, ou seja, um esporte que permite ampla variedade de
habilidades de luta, misturando técnicas de boxe, jiu-jitsu, judô, caratê, kickboxing, kung fu, luta
olímpica, taekwondo, entre outras.

Por causa do tempo curto, Noberto só tem me ensinado o principal de cada uma, de acordo
com o que tenho mais facilidade de colocar em prática.

— Tem mais uma coisa, Aurora. Sei que você tem ficado reticente quanto a isso, porém,
agora precisa começar a treinar com as roupas exigidas no torneio. — Ele deixa umas peças no meu
braço e é inevitável fazer uma careta.
— Eu não vou ficar exibindo meu corpo com aqueles tops e shorts minúsculos, Noberto. Não
vou! — Volto a defender o ponto de vista que dei quando me falou que não é permitido lutar com
camisetas largas.

Durante este mês, vendo que fiquei transtornada com essa possibilidade, ele permitiu que eu
continuasse com a roupa que me deixa confortável.

— Eu sei que você não gosta de top nem de short, trouxe camisetas mais justas e calça
legging corsário.

Bufo e inspeciono as roupas para ver se não mostram demais. Há quatro pares de cada com o
logo da Naja. Eu odiei essa parte das regras, queria ficar do mesmo jeito que estou desde que
cheguei à capital. Essas peças ficarão justas demais no corpo, mesmo tapando tudo.

— Por que não deixam lutar com o que a pessoa quiser? — Passo a mão no rosto e me sento
no banco do supino, inconformada. — Os atletas de judô lutam de kimono.

— No MMA elas têm que ser coladas ao corpo, é uma regra pra não atrapalhar a luta. —
Com paciência, Noberto se aproxima e se senta ao meu lado. — Você precisa se acostumar. Por
favor, Aurora, vamos tentar.

“Você veste essa minissaia, mostrando tudo, e espera o que, Aurora? É culpa sua!”

Sinto calafrio com a lembrança indesejada e volto a me levantar, andando de um lado para o
outro. Não quero me sentir afetada com isso de novo, mas meu coração acelerado parece não
responder ao desejo do meu cérebro.

— Tudo bem, Aurora? — o sensei pergunta, preocupado, e vem atrás de mim.

— Eu não... não queria usar isso — confesso, notando as lágrimas se acumularem nos meus
olhos.

Não o encaro, fico de costas.

— Eu entendo que você tem suas questões, mas te juro que essas roupas não vão mudar o
jeito que todos estão te tratando aqui — ele garante, se aproximando sem me tocar. — Ninguém vai te
olhar torto! Nem no evento, ficarei com você o tempo todo. Não vou permitir que ninguém faça mal a
você.

A última pessoa, fora da minha família, que prometeu isso me trouxe o pior pesadelo da
minha vida.

É preciso uma força sobre-humana para convencer minha mente a aceitar. Noberto não é
Otávio. Ele não é o garoto de sorriso bonito que amei e me destruiu.
Tiro as luvas e o protetor bucal e saio do ringue sem olhar para os outros alunos, seguindo na
direção dos vestiários. A única parada que faço é para pegar a minha sacola e deixar um sorriso
fraco para Mel, que me encara em expectativa do outro lado.

Ela acena, eu faço o mesmo.

Noberto garantiu que nada ia mudar quando eu vestisse essas roupas coladas, mas não foi o
que aconteceu. Os quatro garotos presentes no recinto mal conseguiram treinar. Não me olharam, é
verdade, porém, também mal levantaram a cabeça.

Venci facilmente todos eles, até mesmo Pablo, que é experimente. O clima ficou diferente, é
palpável. Aposto que Noberto deu um sermão ainda mais contundente neles e a reação foi uma
espécie de medo do sensei com medo de vacilar no olhar em mim.

Foi uma merda e deixou Noberto puto da vida.

Tomo um banho rápido e volto a vestir as peças confortáveis que se tornaram uma válvula de
segurança para mim. Mesmo com o cabelo molhado, os prendo em um coque alto e saio do vestiário
para me trancar logo no meu quarto e torcer para que amanhã seja um treino normal.

— Está tudo bem? — Assusto-me com Mel parada na porta me esperando. — Você parece
que está triste e meu pai não parou de xingar os meninos lá no ringue.

— Está sim — minto, ajeitando a sacola com a roupa suja no braço e caminhando com ela até
a saída.

— Meu pai mandou eles te verem como uma irmã, tava bravo porque não levantaram a
cabeça no treino. “Se a mulher veste roupa larga é parça, mas se coloca roupa justa vocês viram
homens das cavernas e não conseguem segurar os hormônios? Porra, amanhã vão tratar Aurora
normal e isso é uma ordem” — ela imita Noberto e eu acabo soltando um sorriso, divertida com sua
voz grossa.

Espero que realmente isso aconteça porque estou com uma angústia no peito. Qualquer coisa
fora do comum me traz toda bagagem de volta. É uma merda.

Passamos pela porta da academia e continuamos conversando amenidades. Não me aprofundo


neste assunto. Eu gosto da Mel, ela vem todos os dias acompanhar os treinos noturnos, depois da sua
aula, e me espera para ir embora. Noberto diz que a filha deve ter se inspirado em mim, pois nunca
tinha se interessado por lutas.

Acabamos nos aproximando porque Mel tem quase a mesma idade da minha irmã e eu sempre
me dei muito bem com ela. Sinto falta da vivacidade infantil e do coração puro.

Está caindo uma garoa fina, por isso, apressamos o passo até o meu quartinho improvisado.
Quando estamos chegando, avisto Daniel tirando sua capa de chuva na cobertura da porta.

Às vezes nos encontramos nesse horário e ele me dá um aceno rápido, entrando apressado na
sua casa. Não sei explicar por que com Daniel eu sinto que é diferente, não consigo me ver em perigo
na sua presença em nenhum momento.

— O seu pai falou com ele também pra se manter afastado, né? — pergunto, curiosa.

No começo, Daniel era falante perto de mim, mas faz tempo que nem escuto sua voz. Noberto
soltou em uma conversa despretensiosa esses dias que o sobrinho foi o que seguiu o caminho mais
diferente na família e faz doutorado em Astrofísica.

Uau, fiquei surpresa e encantada com a sua profissão.

— Sim, ele está morrendo de medo de conversar e você ir embora. Meu pai foi bem sério
com todos pra te deixar em paz.

Embora Daniel seja jovem e homem, com ele eu gostaria que essa regra não valesse. Eu sei
que talvez esteja cometendo um erro sério em julgá-lo como uma pessoa boa, mas não consigo pensar
de outra forma.

Esses dias eu o vi estendendo roupa no varal pela janela do meu quarto. O garoto separou
tudo por cor, enquanto silabava a música clássica que ouvia pelo fone. Também já o peguei subindo
na árvore com um instrumento na mão. Depois que Noberto contou que ele é astrofísico, comecei a
pensar que era um telescópio. Talvez ele use o local até hoje para enxergar melhor o céu.

Alguns dos seus comportamentos me lembram muito da Sara, como a falta de filtro para falar,
o desvio do olhar, não gostar de ficar molhado e o toque. Reparei que ele desvia o corpo quando se
aproximam dele.

— O seu primo tem alguma condição de saúde? — Assim que o questionamento sai, o rosto
de Mel muda completamente. Ela fecha a cara e endireita o corpo.

— Não! O Dan tem o jeitinho dele, mas é normal.

— Sim, claro que ele é normal! — Apresso-me em corrigir o jeito que eu falei, talvez tenha
soado mal. — Desculpe-me, não tive de forma alguma a intenção de rotulá-lo de algo. É que eu tenho
uma irmã autista e eu reparei que alguns comportamentos dele são bem parecidos com o dela.
— O que é autismo? — Seu semblante volta a ficar sereno e ela me fita com atenção.

— O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento


caracterizado, basicamente, por dificuldades na interação social e na comunicação. Uma pessoa com
autismo pode achar complicado se conectar com outras pessoas, tem dificuldade em situações sociais
e pode repetir certos padrões de comportamento — explico, abrindo a porta do meu quarto e a
convidando para entrar. Nós duas nos sentamos na cama. — A forma como o TEA afeta um indivíduo
pode variar muito de pessoa para pessoa. Depende de quantos sintomas ela experimenta e quão grave
cada sintoma é, por isso, é denominado de “espectro”. Atualmente, o espectro é dividido em três
níveis: leve, moderado e severo. A minha irmã, Sara, por exemplo, está no nível 2. O que diferencia
os níveis são a dependência e a necessidade de suporte. Sara precisa de um tratamento mais
complexo, demorou anos para começar a falar, no entanto, há outros totalmente independentes e que
nem sabem que são autistas, pois jamais tiveram diagnóstico.

— Você acha que o Dan pode ser autista?

— Não sei, Mel, não o conheço direito pra opinar e isso é algo que só um médico pode dizer
com certeza. Contudo, pelo pouco que vi, enxerguei algumas similaridades. Vocês da família nunca
repararam?

— A minha mãe contou que a tia Viviane levou ele no médico várias vezes quando criança,
mas não acharam nada e minha vó a convenceu que era frescura do Dan — Mel conta com raiva e eu
sinto um aperto no peito pelo fato.

— Nossa, que pena.

Infelizmente, muitos autistas são incompreendidos e rotulados de estranhos e esnobes. Foi


uma benção ter um diagnóstico para a Sara ainda na infância. Nas mulheres, o autismo é ainda mais
difícil de notar porque elas camuflam melhor as emoções e tentam se adaptar ao seu redor.

A nossa sorte foi que a médica que nos atendeu, ao levá-la para questionar o atraso na fala,
conhecia o autismo a fundo, por causa da sua tese da universidade, e nos encaminhou para um
neurologista. Logo identificamos outros sintomas, como irritação e agressividade em determinadas
situações, e ela teve uma resposta rápida para começar o tratamento.

Fui pesquisar o autismo para poder ajudar minha irmã em casa e vi que é muito comum o
diagnóstico tardio, principalmente nos casos leves. Até pouco tempo atrás, mal se ouvia falar em
autismo e os pacientes eram rotulados como loucos e doentes mentais.

— Aurora, se não for pedir muito, será que você poderia se aproximar do Dan pra tentar ver
se ele tem mais características deste transtorno? Por favor! — Ela se vira na cama e pega na minha
mão, quase suplicando com o olhar. — Se eu chegar e falar isso lá em casa agora, o pessoal não vai
acreditar, eu conheço minha família. A vó Marideide e a Camile vivem importunando o menino. Se
tiver a chance de o Dan ser autista, eu quero ajudá-lo, vou esperar a tia Viviane vir e contarei direto
pra ela.
Lembro-me de como a minha irmã melhorou depois do diagnóstico e não consigo dizer não
para Mel. Saber o que ele tem pode ser libertador, pois se estou certa na suposição, o garoto pode
estar sofrendo sozinho para tentar se encaixar sem entender que ele é especial do jeito que é.
CAPÍTULO 15

Toda vez que vejo Aurora meu corpo tem a mesma reação, é impressionante como não se
cansa dela. Na faculdade, cheguei a ficar fissurado com a atriz Felicity Jones, por causa da sua
atuação em “A Teoria de tudo”, que conta a história do físico Stephen Hawking, mas não durou tanto
tempo assim. Já se passou um mês e o coração ainda se agita, parecendo sacudir meu corpo.

Guardo minha mochila no lugar de sempre e lavo as mãos, aproveitando para jogar um pouco
de água no rosto também. Eu tinha que esquecer essa história, mas a verdade é que adoro quando
conseguimos nos encontrar na minha chegada do trabalho. De manhã, os horários não batem e, tem
dias que, durante a noite, ela fica até mais tarde na academia.

Saulo está errado. Contei ao meu amigo o que sentia e ele disse que seria como no caso da
Felicity, garantiu que logo ia passar porque garotas não são tão interessantes. Pelo menos, no caso da
Aurora, não procede! Estou convencido de que minha curiosidade sobre ela se aproxima da
fascinação que tenho pelo Universo. E isso tem que significar alguma coisa, porque eu amo o espaço
desde os três anos.

Minha mãe conta que nessa idade a gente estava no shopping e eu não parava de chorar,
provavelmente pelos mesmos motivos que não gosto até hoje. Observei um foguete de pelúcia na
vitrine de uma loja e parei no mesmo instante de me debater no seu colo.

Ela comprou o brinquedo para mim e eu dormi todos os dias com ele até a adolescência.
Quando fiz cinco anos e aprendi a ler, ganhei também um kit de atividades de astronomia e depois
não parei mais de me interessar pelo assunto.

Será que eu vou pensar na Aurora, sem poder me aproximar dela, pelos próximos anos? É
capaz que eu fique louco se isto acontecer.

— Dan, posso entrar? — Uma batida na porta afasta meus pensamentos preocupantes.

Reconheço a voz da Mel e vou logo abrir. Minha prima tem vindo aqui quase todas as noites
fofocar comigo sobre a vizinha do lado, que tem se infiltrado até nos meus sonhos.

Não ajuda na missão de me afastar completamente, como meu tio pediu, mas para ser sincero,
eu gosto de saber como ela está. Foi ideia da baixinha começar a assistir aos treinos noturnos para
conhecer melhor Aurora e tentar desvendar comigo por que a garota não sai da minha cabeça.
Noberto nem desconfiou do plano e ainda ficou superfeliz pelo interesse repentino da caçula.

— Como ela foi hoje? Foi bem?

Estou impressionado em como Aurora aprendeu rápido. A olhos coloridos é melhor que o
Pablo, que treina desde quando comecei a observar estrelas no céu, com uma luneta de tubo de
papelão que fiz para a feira de ciências da pré-escola.

Caminho até a cozinha e pego o pote de ração da Yê. Está na hora do jantar e não gosto de me
atrasar.

— Sim, claro! — responde, orgulhosa, me acompanhando. Mel queria garantir que Aurora
não era “uma babaca” e acabou fascinada como eu. Nunca achei que a olhos coloridos fosse tola ou
superficial, mas minha prima disse que precisava confirmar se ela iria me tratar com grosseria, como
a Camile. — Eles treinaram golpes de muay thai e ela arrasou usando os punhos, braços e cotovelos.
Até os golpes de joelhos e pés ela conseguiu com perfeição, mesmo com a perna machucada. O
problema não foi o treino em si, mas o jeito que os meninos ficaram na sua presença.

— Como assim? Alguém a machucou? — Deixo o pote na bancada e me viro para a minha
prima, antes de pegar a couve e o morango na geladeira.

Meu peito fica apertado só de pensar na possibilidade de alguém feri-la de propósito.

— Não, ninguém a machucou, fica tranquilo. Não entendi direito, mas parece que foi algo
com a roupa. Ela teve que usar aquele traje de luta e não gostou. — Mel apanha um copo e enche com
água fresca do filtro para me ajudar. — Acho que meu pai falou para os meninos a tratarem normal
com a roupa e eles nem olharam pra Aurora.

— Ué, não entendi o que tem de errado.

— Meu pai disse “homens das cavernas” e “não conseguem segurar hormônios” na mesma
frase. Significa algo pra você? Falei pra Aurora, mas ela mudou de assunto.

— O termo “homem das cavernas” é usado coloquialmente para se referir ao homo sapiens
do período Paleolítico. — Coço o queixo, confuso. — Não faço ideia da relação disso com “segurar
hormônios”. Não tem como pegar com a mão, são substâncias produzidas por glândulas endócrinas
liberadas na corrente sanguínea.

— Acho que pode ser alguma expressão, não no sentido real da frase. Talvez ela não goste
que as pessoas fiquem reparando no seu corpo, e se incomodou porque os meninos obedeceram a
meu pai, mas a trataram diferente, nem conseguindo olhá-la nos olhos. — Com o jantar da Yê nas
mãos, nós dois voltamos para a sala juntos. Eu abro a gaiola e faço um carinho no seu pelo, enquanto
minha prima abastece a água. — Aurora disse que estava bem no final do treino, mas a percebi muito
abatida; tomou banho e voltou a vestir as roupas largas.
Apesar da escolha esquisita de palavras do meu tio Noberto, pode ser isso mesmo. Mel é
esperta para entender figuras de linguagem, muito mais que eu, apesar de só ter onze anos.

Quando eu cheguei à adolescência, minha mãe teve uma conversa muito séria comigo sobre
sempre respeitar as mulheres acima de qualquer coisa. Todas, sem exceção. Eu me lembro muito bem
desse momento, porque fiquei pensando naquilo por dias. Viviane contou que há homens que agridem
as mulheres e chegou a me mostrar fotos que me deixaram enjoado. Ela também explicou que podem
ser complexas de entender às vezes e que eu deveria me esforçar para compreender, caso encontrasse
uma que fosse importante para mim.

Há muitas coisas sobre Aurora que me intrigam e não faço ideia da resposta, mas eu desejo
muito saber um dia.

Se ela não gosta que reparem no seu corpo e preza pelo contato visual, é isso que farei todas
as vezes que a gente se esbarrar. Mesmo que eu tenha dificuldade para manter por muito tempo o foco
só nela, vou me esforçar.

Aurora já consegue mais do que a maioria mesmo.

— Tem outra coisa — Mel volta a falar, percebendo que fiquei em silêncio, pensativo.

Coloco os alimentos da Yeda nos potinhos e me viro na sua direção, fechando a gaiola. Desta
vez, é minha prima que se cala por um instante, observando-me com atenção.

— O que foi? — instigo, curioso.

— A Aurora disse... — Ela limpa a garganta e fita o copo que está na sua mão. — Disse
agora pouco, quando te viu chegando e tirando a capa de chuva, que você não a incomoda, que queria
ser sua amiga.

— O quê? — questiono novamente, incrédulo, para ter certeza de que entendi direito. É raro
alguém dizer essa palavra para mim. — Ela disse isso mesmo? Com todas as letras? Quer conversar
comigo? Passar tempo junto? Pois é isso que amigos fazem, certo? E o seu pai? E se ela não gostar
de ser minha amiga?

É impossível controlar meu frenesi. É claro que estou com medo dessa novidade, no entanto,
a empolgação é maior que o primeiro sentimento. Se Aurora realmente passar tempo comigo, assim
como Saulo passa, eu posso, enfim, descobrir o motivo desse deslumbramento.

— Meu pai não precisa saber de tudo, vocês moram um do lado do outro, tem um quintal
enorme pra você explorar e que é superdiscreto. Seja criativo e, assim, ninguém enche seu saco.

— Mas se o tio Noberto me perguntar, eu não vou saber mentir. Sou péssimo nisso...

— Já se passou um mês e você fez do jeitinho que ele mandou. Meu pai tá focado agora na
competição, não vai perguntar nada — ela garante. — E se ele não perguntar, é só você não dizer.
Entendeu?

— Tem certeza de que Aurora disse isso mesmo, Mel? — volto a questionar, porque o
semblante dela está diferente. Não consigo identificar o motivo, mas é nítido que está. — Você não
está normal. Não mentiria pra mim, né?

— Não. — Noto o movimento da sua garganta e os olhos mais uma vez se desviando dos
meus. — Eu estou esperançosa por você, quero te ajudar. Vai dar tudo certo!

— O que eu faço agora, então?

— Quando Aurora puxar assunto, responda e interaja com ela. Seja você mesmo, sempre.
Promete que não vai mudar com medo de não a agradar? — Minha prima estica a mão e me faz
apertá-la, em sinal de um acordo entre nós. — Ela, com certeza, não é babaca.

Não estou totalmente convencido de que Mel está falando a verdade, nem que é uma boa ideia
desobedecer ao tio Noberto, no entanto, é impossível refrear a vontade intempestiva que nasce dentro
de mim.

Não vai ser em um sonho, desta vez. Eu realmente poderei me aproximar dela.
CAPÍTULO 16

Cruzo as pernas na cama e encosto na parede para ficar mais confortável. Faz uns vinte
minutos que estou conversando com a minha mãe na nossa rotina dominical. A dor nas costas ainda
não deu uma trégua, no entanto, graças a Deus, ela conseguiu vaga na fisioterapia do postinho de
saúde do nosso bairro.

É muito grande a fila, foi sorte ter dado um encaixe. Com o remédio e os exercícios certos,
dona Maria das Graças pode ficar melhor.

— Ê, lasquera. Eles chegaram! — comemora, aliviada, e olha para trás para acompanhar
meu pai e a Sara entrando pela porta.

Embora estivesse animada conversando comigo, sei que toda sua preocupação estava com a
garotinha. Aline, que estuda com ela e mora na nossa rua, passou em casa mais cedo a convidando
para ir capturar tanajura com a família. Eu sempre amei caçar e comer essa iguaria saborosa de
formiga, que aparece quando chove e faz sol em seguida, mas Sara nunca mostrou interesse nenhum
— nem de pegar muito menos de experimentar.

Seu paladar é bem seletivo para determinados alimentos com textura diferente.

Foi muito atípico dela, por isso, dona Maria das Graças ficou tão apreensiva. Minha irmã
insistiu para ir sozinha com a amiga, no entanto, eles acharam melhor não arriscar uma crise com
quem não saberia como ajudá-la.

— E aí, gente, como foi a caçada? — pergunto, sorrindo, ao observar uma garrafa PET cheia
de formiga. — Pegaram muito içá?

Os dois se sentam ao lado da minha mãe no sofá. Seu Vladimir acena, com um sorriso que
não chega aos olhos, e a minha irmã apenas desvia o olhar para o tapete.

— O papai pegou os trem tudo, Auri. Eu não consegui colocar a mão nisso, não. Eu tentei,
juro que tentei... — Arqueio a sobrancelha e me aproximo mais da tela do celular ao notar seu rosto
tão triste.

— Ei, não tem problema nenhum, Sa. Você fez algo que queria, já foi um grande passo. —
Um alerta se acende em mim quando não interage e fica em silêncio. — Você queria ir, não é?
— Não — confessa, ainda sem me encarar. É muito difícil um autista mentir, eles são bem
diretos. — Eu não gosto de ficar muito tempo andando, nem do mato, muito menos do calor.

— Você não devia ter ido então, querida — minha mãe comenta, controlando-se para não a
tocar. Noto seus dedos se entrelaçando no seu colo. Foi difícil a gente se acostumar a não ficar
colocando a mão nela o tempo todo. — Lembra o que a tia Vilma disse sobre seus limites?

Sara acena com a cabeça em concordância e começa a balançar a perna. Ela pegou essa
mania quando algo sai do seu controle. É como uma válvula de escape para se acalmar.

— É legal você se abrir a coisas novas, mas só se estiver confortável pra isso — meu pai
complementa. — Nunca deve ficar encasquetada, não tem que ser forçado! A gente podia ter vindo
embora assim que chegou, uai. Ficamos mais de uma hora, meu amor. Eu perguntei se você queria vir
embora, várias vezes.

— Mas eu não queria vir, eu queria tentar mais — admite e a sua voz baixa aperta meu peito.

— Por que você queria se esforçar mais? Alguém te disse algo? — minha mãe questiona.

Sara fica quieta de novo, aumentando o ritmo do balançar da sua perna direita.

— Conta pra Auri, Sa. O que houve?

— Lembra do aniversário que teve, umas semanas atrás, da Joice? Que você, a mamãe e a tia
Vilma queriam que eu pensasse com carinho?

— Sim, eu me lembro.

— Eu pensei com carinho, mas eu não estava com vontade de ir e preferi ficar em casa. Na
segunda-feira de aula, a Joice veio agradecer que eu não fui e não estraguei a festa dela com as
minhas esquisitices. — Respiro fundo para não voltar agora mesmo para Pirapora e ter uma conversa
muito séria com essa menina. — A Joice disse também que as outras pessoas da sala me convidam
pra tudo por educação, porque os pais obrigam. Eles acham que eu sou jacu. A única que faz por
vontade mesmo é a Aline, só que eu não devia ficar muito feliz, porque ela logo ia perceber que não
sou normal e iria se afastar também.

— Meu Deus, meu amor. Você devia ter nos contado esse trem — meu pai comenta e posso
perceber a dor no seu rosto.

Sara só aceitou ir capturar tanajura com a amiga com medo dela se afastar. Na sua cabecinha,
se não fizer o que Aline gosta, a garota vai embora.

— A Joice disse que eu pareço um bebê chorão, que vivo contando tudo a vocês e isso só faz
o pessoal da sala ficar mais intojado comigo ainda. — Sara levanta a cabeça e noto lágrimas
escorrendo no seu rosto. Automaticamente os meus olhos também lacrimejam. — Eu não entendi
como eu seria um bebê chorão, se já tenho dez anos, mas não queria ninguém bravo comigo, nem que
a Aline achasse que não sou normal.

— Você não é idiota nem chata; é linda e especial do jeitinho que é, Sa. Já te disse isso várias
vezes e repetirei quantas forem necessárias — elogio, com a voz embargada. — Nunca acredite em
quem diga o contrário.

— É isso mesmo, querida! E a Aline também não acha esse trem de você, ela gosta de
verdade e não ia se afastar se dissesse não — minha mãe explica, não contendo o choro. — O
diálogo é o melhor caminho pra tudo.

— Promete para o papai, a mamãe e a Auri que não vai se esquecer de nos contar tudo que
sente daqui em diante? Tudinho mesmo, sem medo?

— Prometo, Auri.

Engulo em seco e mudo de assunto, perguntando do cavalo Eliseu. Não quero mais ver seu
semblante triste. Funciona no instante que o nome sai da minha boca. Ela sorri e para de balançar a
perna, contando como foi a equoterapia esta semana.

Nunca vou conseguir compreender a fundo como é difícil para ela se relacionar com o meio à
nossa volta. Sara faz um esforço enorme para tentar se encaixar porque o mundo não aceita o
diferente.

Não deveria ser assim. Não deveria! Julgar o próximo por não ser o padrão que a sociedade
espera é muito mesquinho. E isso não só com autistas, com todas as pessoas que não se encaixam no
molde. Quando o coração parar de bater, vamos todos para o mesmo lugar.

Respeito é o mínimo que cada um merece, independente do que tem, do que faz ou como age.

Já encerrei a conversa com meus pais e a Sara há mais de meia hora e ainda não consegui
tirar o aperto do meu peito. Minha família é a única coisa importante que me restou na vida, odeio
saber que precisam de mim e estou tão longe.

Tentando me distrair, começo a apanhar as roupas que estavam secando na cadeira e em cima
da cômoda e dobro para guardar. O cheiro não anda ficando dos melhores por secar em um local
fechado, mas é o que temos para o momento. Ana Júlia já se ofereceu várias vezes para lavar na sua
máquina e estender no quintal da casa dela, mas eu quero manter essa distância sadia que
conseguimos estabelecer. Não tenho intimidade como tinha como Pilar e, além do mais, nem há tantas
peças assim.

Caminho até a janela e pego as do treino de amanhã que tinha deixado esticadas para secar
mais rápido no vento. Assim que me aproximo, avisto Daniel sair da casa dele com um balde nas
mãos e um fone no ouvido. O dia já está escurecendo, há poucos raios de sol no céu. Ele parece não
me notar espiando, enquanto deposita o objeto no chão e vai tirando as peças do balde.

Daniel gosta de estender por cor e nunca muda esse padrão, pelo que percebi durante o tempo
que estou aqui. Autistas possuem ritual para fazer as atividades e são bem rígidos com as rotinas,
pois os ajudam a se organizarem melhor. Minha irmã come todos os dias com o mesmo prato, o
mesmo garfo, a mesma faca, o mesmo copo... se mudar alguma coisa, gera um estresse enorme nela.

Prometi para Mel que iria me aproximar dele na sexta-feira para tentar captar traços que
podem o ajudar a procurar um profissional, no entanto, ontem não tive oportunidade de vê-lo. A
prima comentou depois do treino que ele tinha ido participar de um seminário na universidade sobre
o tema da sua tese de doutorado.

Se por acaso Daniel for realmente autista, pode estar no nível 1 por causa da sua
independência e até mesmo ter a síndrome de Savant, que está associada a mais ou menos 10% dos
indivíduos com TEA. Pessoas com savantismo são caracterizadas por seu talento notável em um ou
mais domínios, em geral, com memória, arte e ciências exatas.

Mel disse que ele tem 24 anos, fazendo doutorado de uma área tão complexa não é tão
comum.

Essa condição com inteligência acima da média não é regra, a maioria dos autistas tem um QI
deficitário. Sara mesmo possui grande dificuldade de aprendizado.

— Oi! — cumprimento, ao ser pega no flagra olhando na sua direção.

Daniel para com a roupa no ar e fica me observando, assustado, como se eu fosse uma
miragem. Parece não acreditar no que vê e ouve.

— Tudo bem? — Tento de novo, mostrando as peças na minha mão. Ele tira o fone do ouvido
e não responde. — Também tô aqui no cuidado com as roupas.

— Você não tem um varal — diz, enfim, desviando o olhar para a grama do quintal.

Sorrio com seu comentário sincero, é algo que Sara com certeza falaria.

— Não tenho — confirmo, terminando de dobrar a última peça. — Mas a janela me serve
bem.

Ele olha para o pedaço de madeira e parece não acreditar muito que é verdade, no entanto,
não faz nenhum comentário. Ficamos quietos novamente. Ele se mexe próximo ao balde e começa a
bater os dedos na lateral do corpo.

Sua boca está mexendo, será que está cantando ou falando algo para se acalmar? Pode ser
uma válvula, como a minha irmã usa a perna. Daniel pode estar nervoso com essa interação, não
estava esperando.

— Como foi o seminário ontem dos buracos negros? — pergunto, na esperança deste ser o
seu hiperfoco, assim como o cavalo Eliseu é para Sara. — A Mel me contou que ficou o dia todo
estudando.

— Eu adoro estudar o Universo, principalmente, os buracos negros. — Ele para de bater os


dedos e relaxa o corpo.

Também relaxo os meus ombros, nem tinha notado que havia ficado tensa aguardando sua
resposta.

— Já vi você subindo lá com um negócio na mão. — Seguro as roupas dobradas na altura do


peito e fito a árvore no fundo do quintal. Seu olhar acompanha o meu. — É um telescópio? Você vai
observar pra alguma pesquisa?

— É um telescópio, sim, mas não uso para pesquisa. Esse é meu pessoal só para hobby, olhar
as estrelas me deixa feliz. O céu de São Paulo não é bom para observação astronômica por causa da
poluição luminosa e atmosférica, muitas luzes artificiais e gases poluentes atrapalham. — Noto seus
olhos indo de mim para o chão várias vezes, porém, seu tom de voz parece empolgado com o
assunto. — O departamento da universidade conta com uma estação remota para utilização do
telescópio SOAR, muito mais potente. Ele está em funcionamento desde 2005 e foi construído em
consórcio formado pelo Brasil e por universidades norte-americanas. Acessamos os dados por meio
da internet para projetos científicos. Você... você gosta... desses assuntos? Se for algo chato, é só me
falar.

Seu semblante, de repente, apavorado me remete instantaneamente para a Sara tentando


agradar Aline com medo de ser rejeitada. Troco o peso de uma perna para a outra e me apoio na
janela. Minha boca fica seca, preocupada dele ser autista mesmo e enfrentar todo dia esse receio de
conversar sem ser julgado.

— Que legal esse trabalho da universidade! — elogio, sendo sincera. — Eu gostava de


estudar essa matéria na escola, sempre achei interessante, mas nunca tive a oportunidade de me
aprofundar muito. Será que você deixa eu ver qualquer dia o céu com seu telescópio?

Quando a pergunta sai, quase não acredito que fui eu mesma quem disse. É engraçado como
às vezes a gente quebra nossas próprias regras sem esperar. Estava acostumada a ficar sem
conversar, eu gosto do silêncio e da minha privacidade, contudo, estou aqui puxando assunto com um
desconhecido.
Se eu não sentisse uma calma tão grande na presença dele, jamais iria concordar com o
pedido da Mel.

— S... sim! Podemos ver. — Seu rosto volta a suavizar e ele mexe na peça de roupa que está
nas suas mãos. — Hoje a previsão do tempo não está boa para observação, mas segundo o Inpe,
amanhã estará com céu limpo.

— Combinado, então. Se amanhã estiver com céu limpo você me chama depois do treino.

Ele acena com a cabeça e eu me despeço da nossa breve conversa, voltando para dentro do
quarto. Talvez me aproximar do Daniel pode ser bom para mim também. Há muitos anos eu não tenho
contato com alguém da minha faixa etária. Se ele continuar me transmitindo tranquilidade, pode não
ser tão ruim assim baixar a guarda.
CAPÍTULO 17

Eu não estava preparado para conversar com Aurora hoje. Pensei que meu coração ia
colapsar, assim que a vi me encarando. Mel avisou que eu poderia interagir quando ela falasse
comigo, mas demorou um pouco para o meu cérebro assimilar isso e realmente responder algo.

No começo estava muito ansioso e com medo — tanto dela quanto do tio Noberto. Não queria
decepcioná-lo desobedecendo ao seu pedido. Recorri até a contagem dos números primos para
desacelerar a respiração. Por mais que não me ajudasse, me lembrei de várias interações que tentei
ser legal e acabaram em fracasso. Não queria que com Aurora fosse desta forma, cansei de ser
rotulado como estranho. Eu preciso me aproximar para entender por que me sinto assim na sua
presença e, se ela me achar esquisito, não vai permitir.

Ainda bem que a olhos coloridos puxou assunto sobre o seminário de ontem. O tema me
deixou mais relaxado e consegui manter o diálogo. Fiquei aliviado por gostar de ouvir sobre o
universo, geralmente, ninguém tem paciência fora o pessoal da universidade e a Mel. Quase não pude
acreditar quando se ofereceu para ver o céu com meu telescópio na árvore. Olho para o relógio da
parede e constato que faltam cerca de 23 horas e 12 minutos para o fim do seu treino amanhã. Podiam
ter inventado o acelerador de tempo, seria bem útil agora.

Abro a porta do quarto que minha mãe fica quando me visita e começo a procurar o varal de
chão que ela usava na época que morávamos na casa da vó Marideide. É bem capaz que esteja
guardado aqui em algum canto do armário, Viviane tem dificuldade de se desfazer de objetos.

Não sei se é uma boa ideia o que pretendo fazer, mas não consigo parar de pensar que Aurora
não tem um varal para estender suas roupas. Será que é estranho deixá-lo na beira da sua janela com
um bilhete?

“Seja você mesmo, sempre. Promete que não vai mudar com medo de não a agradar?”

Lembro-me do conselho da minha prima e decido continuar procurando. Vasculho toda parte
do quarto e não encontro nada. Vou para o restante da casa, no entanto, uma hora se passa sem
nenhuma pista de onde possa estar. Também ligo para minha mãe, mas dá caixa postal.
Provavelmente está em um voo neste momento.

Meu peito começa a apertar de angústia, Aurora precisa de um varal.


Recordo-me que podia estar no quartinho da bagunça que ela está morando e não penso duas
vezes antes de sair de casa e bater na porta da cozinha da vó Marideide. Pablo disse que iriam
colocar as coisas na academia provisoriamente.

Deve estar lá!

— Aconteceu alguma coisa? — tia Ana Júlia pergunta da pia, ensaboando uma pilha de
pratos.

— Estou à procura do tio Noberto.

— Ele saiu depois do jantar com a dona Marideide, foram na farmácia comprar os remédios
de pressão dela. Por quê? Precisa de ajuda?

— Sim, queria a chave da academia. Você podia me emprestar, por favor?

— O que você vai fazer na academia a esta hora, Daniel? — Camile entra na cozinha e segue
até a geladeira, pegando um pote de iogurte.

— Quero ver se o varal de chão da minha mãe está lá, junto com as coisas que retiraram do
antigo quartinho de entulho.

— Pra que você precisa de um varal? — minha prima pergunta, rindo, enquanto apanha uma
colher na gaveta.

— Para estender roupa. — Dou de ombros, não entendendo sua dúvida para a função óbvia
do objeto.

— Isso eu sei, né, seu idiota. Quis dizer, pra que outro. Na sua casa tá cheio de varal
pendurado no quintal.

— Olha o jeito que fala com o seu primo, Camile! — tia Ana Júlia recrimina a filha, que
resmunga, brava, antes que eu possa falar que era para as roupas da Aurora.

Ia soltar sem nem perceber, a Mel disse para eu não contar a ninguém quando nos
aproximarmos. É difícil, para mim, controlar a mente com a boca.

— O que está acontecendo? — Minha prima caçula aparece bem na hora.

— Quero a chave da academia pra procurar um varal. — Tento resumir, evitando não falar
demais.

— Eu vou lá procurar com ele, mãe! — A pequena caminha até o armário e pega um molho de
chaves de dentro de um jarro de vidro azul. — Já volto.
— É uma puxa-saco mesmo... — Camile revira os olhos e sai da cozinha comendo seu
iogurte.

— Vai cuidar da sua vida! — a menor rebate.

Eu já aprendi na infância o que significa essa expressão. Os colegas de classe diziam que eu
bajulava os professores de propósito, visando me beneficiar de alguma forma desta relação. Não faz
muito sentido para mim essa escolha de palavras, nem afirmar que Mel é uma puxa-saco.

Tia Ana Júlia chama a atenção das duas, mas nós dois nos afastamos antes que a mãe dela
fale algo a mais.

— Por que você quer um varal? — questiona, assim que chegamos à calçada e paramos em
frente ao portão da academia.

— A Aurora não tem varal. As roupas dela estão secando na janela. Ela precisa de um!

— Você está indo essa hora procurar um varal pra Aurora? — minha prima indaga, sorrindo.

Não entendo o sorriso, nem seu semblante que parece divertido me encarando.

— Eu já estou procurando há mais de uma hora, não achei em casa e me lembrei do depósito
que foi trazido pra cá.

— Você é muito fofo, Dan! — ela fala, destrancando a academia.

— Por que fofo? Que eu saiba, fofo é um objeto macio e gostoso de apalpar.

— Essa expressão também é usada quando uma pessoa faz uma ação gentil, legal. — Passo a
mão no cabelo, anotando mentalmente o aprendizado. — Aliás, você não contou pra minha mãe e pra
Camile pra que era o varal, né? Nossa Senhora, a chata vai correndo fofocar para o meu pai.

— Eu quase falei sem querer, mas você chegou antes.

— Ufa, que bom! — Mel liga a luz da academia e a sigo na direção dos fundos, onde devem
estar as tranqueiras da Viviane. — Pra você estar tão preocupado assim, ela já falou contigo, né? O
que aconteceu? Me conta tudo!

Vou narrando os fatos enquanto vasculhamos os materiais que logo identifico serem da minha
mãe. Minha prima parece ainda mais animada que eu para que chegue logo amanhã. Já a levei para
avistar o céu comigo na árvore e a pequena amou a experiência.

— Acho que não está aqui, Dan. Será que a tia Viviane não deu pra alguém ou jogou fora?

— Ela não joga nada fora, adora entulhar objetos antigos. — Continuo procurando, sem
desistir.

Depois de mais meia hora de busca, enfim, encontro o objeto escondido em um canto. Está
velho e cheio de poeira, contudo, após uma limpeza será útil para estender roupas de novo.

— Uhullll! — Mel comemora, batendo palmas. — Você estava certo, agora Aurora terá um
varal!

— Você acha que ela vai gostar? — questiono, de repente inseguro com o gesto depois de
tanto tempo de procura.

— Nunca se esqueça do que eu te falei, Dan: sempre seja você mesmo, não hesite com medo,
por favor.

— Tá... tá bom. — Engulo em seco e reforço para o meu cérebro a mensagem.

De volta para casa, depois de me despedir da Mel, espero dar meia-noite para poder
depositar o objeto na beirada da sua janela com um saquinho de prendedores que não uso mais.

Deixei também um bilhete, torcendo para não parecer estranho.

Tomara que Aurora realmente goste. Queria ser fofo para ela.
CAPÍTULO 18

Passo a faixa nos seios e, a contragosto, visto as roupas novas que Noberto me deu. Para
evitar olhares no curto caminho até a academia, coloco ainda um dos meus blusões por cima. Estou
odiando tanto, mas tanto, ter que colocar essas peças apertadas, que chega até me dar vontade de
desistir.

Eu sei que não posso pela minha família e, surpreendentemente também estou gostando muito
das lutas, contudo, isso me pega no ponto fraco. Eu fico de verdade abalada por estar exposta após
tantos anos me escondendo.

No treino de sábado, depois de um novo sabão do Noberto, os meninos até que se


comportaram relativamente normal na minha presença. Mesmo assim, fico incomodada. Não sei nem
explicar o tamanho do trauma que desenvolvi de me mostrar de verdade para o mundo.

Assim que termino de me calçar, abro a janela para deixar o quarto ventilando, enquanto
estou na academia, e levo um susto ao observar um varal de chão, um saco de prendedores e um
bilhete à minha frente. Curiosa, apanho o pedaço de papel e leio o conteúdo da letra bonita que salta
aos meus olhos.

Oi, Aurora!

Espero não a incomodar com este empréstimo. Você precisava urgente de um varal.

Vários estudos apontam que a secagem de roupa dentro de casa apresenta riscos
significativos para a saúde. O principal problema é referente à umidade, que pode causar a
proliferação de fungos, mofo e ácaros.

Como resultado, essa atmosfera é propícia para desenvolver rinite, alergias, asma e outras
doenças respiratórias. Não gostaria de vê-la doente.

Cordialmente,
Daniel Lima.

É impossível não sorrir ao terminar de ler o bilhete. Nunca recebi um “presente emprestado”
tão simples e singelo ao mesmo tempo. Que gentil, meu Deus! Ainda com um sorriso nos lábios,
coloco as roupas que estavam jogadas na cadeira, no meu novo varal, e procuro um pedaço de papel
dentro da gaveta.

A essa hora Daniel já deve ter saído para o trabalho, nunca o encontrei pela manhã em dia
útil, durante esse tempo que estou aqui. Vou deixar um bilhete de agradecimento para ele também,
embora provavelmente a gente se veja mais tarde para observar o céu na árvore do quintal.

Foi tão fofo que, sei lá, parece falta de educação da minha parte não me esforçar um pouco
também. Não encontro uma folha limpa, então, decido escrever no verso de um panfleto que Noberto
tinha me dado sobre a academia.

Obrigada pelo empréstimo. Deus me livre de ter fungos, mofo e ácaros nas minhas roupas.
Já assisti à série Doutor House demais para saber como um simples bichinho pode causar um
estrago dos grandes.

Aurora.

Saio do meu quarto e coloco o agradecimento debaixo da sua porta. Faço o treino da manhã e
da tarde normalmente, no entanto, sinto uma ansiedade diferente quando começa a escurecer e fica
próximo do meu encontro com o vizinho simpático.

Estou animada para a nossa aventura astronômica mais do que deveria. Nem me reconheço
mais: primeiro me empolgo com o MMA e agora em conhecer melhor Daniel para ajudar a Mel. O
motivo do segundo só pode ser porque os dois me lembram a Sara e a saudade anda apertando, não é
possível.

— Você está ouvindo, Aurora? — o sensei chama a minha atenção, ao perceber que fiquei em
silêncio.

Terminamos a sessão de jiu-jitsu faz uns cinco minutos e Noberto está falando sobre a nossa
inscrição no torneio. Foi efetivada hoje, ele bancou a minha e a do Pablo, e os demais alunos vão
arcar com as suas.

— Sim, estou ouvindo. Você disse que após esse evento podemos conseguir bons
patrocinadores.

— É meu principal plano para retomada do prestígio da Naja! — continua contando,


animado. — Os patrocinadores valorizam atletas vitoriosos para associar sua marca, e em
consequência estes atraem novos alunos porque ficamos na mídia.

— Preciso tanto do prêmio, não posso falhar de jeito nenhum — admito, saindo do ringue.

Os meninos foram dar uma corrida na esteira, no entanto, eu não vou me estender no treino
hoje.

— Você está indo muito bem — o sensei garante. — Para alguns, pode ser visto como loucura
gastar tanto pra te inscrever em um evento grande de cara, mas situações desesperadas pedem
medidas desesperadas. Meu instinto mandou eu apostar em você quando te viu naquela ponte. Estou
confiante!

— Já aconteceu de alguém ter outra profissão e chegar, do nada, vencendo no MMA?

— Claro que sim, temos muitos exemplos! — Pego minha sacola e tiro uma toalha para
limpar o suor do rosto. — Alex Cowboy trabalhou na roça, foi montador de rodeios e pedreiro.
Descobriram ele em uma briga de Carnaval e se tornou lutador do UFC. Bethe Pitbull era contadora,
não conhecia nada de arte marcial, até entrar em uma academia para perder peso e se tornar,
pouquíssimo tempo depois, lutadora do UFC.

O Ultimate Fighting Championship é uma marca global de organização de lutas de MMA, o


sonho de todo atleta que quer viver profissionalmente do esporte. Os salários são altíssimos,
podendo alcançar a casa dos milhões de reais por luta. Apesar de ter novos donos agora e ser
sediado nos Estados Unidos, a criação teve a participação do brasileiro Rorion Grace.

Desde que cheguei aqui, Noberto me fala sobre esse assunto todos os dias. É impossível não
decorar cada detalhe. Seu sonho é ter um atleta que começou na Naja brilhando nos combates
organizados pela empresa.

— Que legal! As probabilidades estão a meu favor também, junto com a força de vontade.

Conversamos mais um pouco, porém, logo dou um jeito de me despedir e tomar banho antes
que o tempo resolva mudar e eu perca a chance de experimentar um telescópio pela primeira vez.

Não demoro nem quinze minutos para estar com meu blusão e a calça de moletom que adoro,
além de toda roupa do treino lavada. Mel teve um trabalho em grupo da escola para fazer, por isso,
volto para casa sem sua companhia. Assim que entro no quarto e acendo a luz, assusto-me com a
sombra do Daniel parado ao lado da janela.

— Meu Deus do céu, homem! — Coloco a mão no peito e me encosto na cômoda. — É a


segunda vez no dia que você me espanta.

— Você é tão durona e corajosa no ringue, não sabia que podia se assustar assim. Me
desculpa, não combinamos como iríamos nos encontrar, daí achei melhor ficar esperando aqui.

— Tudo bem. — Sorrio, caminhando até a janela com a sacola de roupas limpas que acabei
de lavar. — Cada um sabe onde lhe aperta o sapato. Tem muitas coisas que me deixam assustadas.

— Como assim? — questiona, confuso. — Como um calçado apertado pode interferir no


susto de alguém?

Seu semblante transparece que realmente não faz ideia do que eu falei. Pessoas no espectro
costumam pensar de forma mais concreta, dificultando a compreensão de contexto e intenção com que
algumas coisas são ditas. Pode ser um sinal para Daniel.

— É uma expressão que significa que somente quem está passando por determinada situação
sabe o quanto ela é complicada, dolorosa ou desgastante. — Coloco as peças no meu novo varal e
ele intercala entre olhar para mim, o que estou fazendo e o chão. — No caso, usei de brincadeira,
com sarcasmo. Apesar de parecer durona, eu tenho, sim, medo de muitas coisas.

— Ah, tá, entendi. Não conhecia essa. Vou fazer uma anotação mental. Obrigado por explicar.

— Imagina, por nada. — Noto que não está com nada nas mãos e uma leve frustação começa
a nascer. — Cadê o telescópio? Não me diga que está aqui pra dizer que não vai dar pra observar
nada hoje.

— Vai dar, sim! Já deixei montado lá em cima, vamos usar outro tipo que trará imagens mais
nítidas.

— Outro? Quantos você tem?

— Entre binóculos, lunetas e telescópios, tenho ao todo dez instrumentos adquiridos ao longo
dos anos.

— Caramba, isso é que é ser fã!

Sorrio mais uma vez e termino a tarefa, pulando a janela para passar para o quintal. Daniel
fica parado, transparecendo não saber muito bem o que fazer a partir daqui.

Pela primeira vez, realmente presto atenção na sua fisionomia. Já tinha reparado no cabelo
ruivo, mas não tinha notado que a barba rala também é bem avermelhada e que há sardinhas no seu
rosto. Ele está vestindo uma calça jeans e uma camiseta preta com estampa do sistema solar.

O pensamento de que o rapaz é bonito me causa um desconforto esquisito no peito. Desde que
saí de Pirapora, nunca mais perdi tempo notando esses detalhes. Muito menos de um homem.

— Obrigada pelo varal, vai ser muito útil. — Olho para o objeto a fim de espantar meus
devaneios.

— Que bom que gostou. Fiquei com medo de ser estranho, no entanto, a Mel disse que eu
tinha que ser eu mesmo com você e não tentar fingir algo. Não que eu seja bom em mentir. Sou
péssimo! — O jeito rápido com que vai soltando as palavras e a sinceridade com que as diz me
deixa confortável de novo. Ele ser péssimo em mentiras é maravilhoso para mim e mais um alerta
que pode estar no espectro. Devido à mente literal e lógica, muitos autistas realmente apresentam
essa característica. — Aliás, falando em varal, me lembra que também vou te arrumar umas folhas de
sulfite emprestado para quando precisar escrever. Notei que usou o panfleto da academia, aquele tipo
de papel deixa a tinta da caneta muito borrada. E sobre o Doutor House, a série é bem fantasiosa no
quesito médico, mas realmente bactérias podem causar graves problemas de saúde.
— Atenção com séries fantasiosas e folhas novas para não escrever borrado, parece ótimo
pra mim — comento, divertida, e seu semblante se suaviza, como se não esperasse que eu levasse
numa boa seus apontamentos.

Mesmo que eu não queira, um novo sorriso surge nos meus lábios. Poderia soar grosseiro o
modo que Daniel fala para outras pessoas, contudo, não assimilo dessa forma. Pela segunda vez no
dia, acho um gesto dele fofo, um traço único da sua personalidade.

— Va... — Noto sua garganta se mover e ele desviar o olhar para a árvore. — Vamos
observar as estrelas?

— Vamos!

Seguindo-o pela grama curta do quintal com tanta expectativa, mal reconheço a Aurora
quebrada que jurou nunca mais se deixar levar por palavras e um rosto bonito.

Bastou 24 horas para Daniel quebrar as minhas regras. Espero não me arrepender de abrir
essa exceção para ajudar Mel.
CAPÍTULO 19

Não é nada surpreendente, visto o comportamento das outras vezes, mas meu peito continua
com aquela batida acentuada. Faz cerca de quinze minutos seguidos que está desta forma, deve ser
meu novo recorde.

Primeiro fiquei com o coração acelerado de expectativa aguardando-a próximo à sua janela,
depois vivi o receio do rumo da nossa conversa sobre bactérias e folha sulfite e, por fim, o rebuliço
teve um motivo feliz ao perceber que Aurora foi receptiva à nossa conversa.

Vou deixar para entregar o papel somente amanhã, assim, tenho uma desculpa para vê-la
novamente após o treino.

Ontem, antes de dormir, me recorreu uma comparação sobre ela que agora, contemplando seu
caminhar empolgado de um lado para o outro, realmente parece fazer sentido. A olhos coloridos é
como um horizonte de eventos, a fronteira ao redor de um buraco negro a partir da qual a força da
gravidade é tão forte que, nada, nem mesmo a luz, pode escapar.

Sinto-me sugado por tudo que diz respeito a essa garota. Qualquer coisa, até meros detalhes
como o jeito que o seu nariz enruga quando ri.

Observo com atenção sua reação fitando o ambiente, como se esse fosse o lugar mais incrível
que já visitou. Aurora disse, quando estava subindo as escadas, que sempre quis ter uma casa na
árvore. Não sei se “casa” é a palavra adequada. Está mais para uma tábua pendurada no alto, com
uma cerca de madeira ao redor para evitar que, quem sobe, não acabe caindo sem querer.

Foi meu avô quem construiu para a minha mãe e o tio Noberto quando eles eram crianças. Eu
era o único que a frequentava na infância, Camile e Pablo sempre acharam chato. Mesmo não sendo
uma casa de verdade, eu gosto. Passei bons momentos aqui em cima olhando para as estrelas. Queria
que Aurora tivesse tido algo parecido também.

— As condições estão favoráveis pra nós? — ela pergunta, parada no parapeito com a
cabeça inclinada para o céu.

— Na medida do possível, para uma metrópole. Seria melhor se fosse inverno. — Aproximo-
me dela, porém, mantendo uma distância segura entre nós. — O tempo está limpo, sem muitas nuvens.
Ajuda bastante também estarmos em um bairro afastado do grande Centro, com iluminação ruim e
cheia de comércio ao redor. Nesse horário as lojas da rua já fecharam, logo, estão com as lâmpadas
desligadas.

— Eu vim de uma cidade do interior de Minas, não tão pequena, mas ainda preserva muito a
natureza. — Nos encaramos por um breve instante antes que volte a se inclinar para o alto. — O céu
à noite é bem estrelado, pena que nunca parei muito pra prestar atenção nisso.

Estou me policiando para fitá-la nos olhos mais vezes, jamais reparo no seu corpo. Prefiro
acreditar na teoria da Mel, sobre a figura de linguagem que não entendi, do que arriscar ofendê-la.

— Quanto menos poluição luminosa e mais alto, melhor! No mar também é incrível.

— Imagino que sim. — Seu olhar fica um pouco perdido e um silêncio se instaura entre nós.

O semblante dela está diferente, talvez triste? Será que eu disse algo errado? Nessas horas eu
queria muito saber interpretar direito os sentimentos das pessoas.

— Vamos começar? — pergunto, na intenção de fazê-la voltar a ficar animada.

— Sim, vamos! — Aurora vira na minha direção e passa a mão no rosto.

Não gosto do vinco que se formou na sua testa. Ela ainda não está como antes.

— Farei como eu fiz com a Mel quando a trouxe aqui pela primeira vez, experiência
completa. — Vou até o telescópio e aponto para o objeto. Saí um pouco mais cedo da universidade
para montá-lo a tempo do horário que costuma terminar o treino. Também já verifiquei com
antecedência quais astros vamos conseguir enxergar hoje. — O primeiro passo é localizar as
direções cardeais para entender melhor a posição dos corpos celestes.

— E como faremos isso? Tem tipo uma bússola?

— Não precisamos de uma! — Sorrio e abro meus braços. — Abra os seus também e aponte
o esquerdo na direção em que o sol se põe. Este é o Oeste. O braço direito é o Leste. Assim, você se
colocará de frente para o Norte e de costas para o Sul.

Aurora mexe as mãos, como se quisesse conferir qual é o esquerdo e o direito, e começa a se
mover como orientei.

— Assim? — confirma, querendo ter certeza se acertou.

Aceno em concordância e ajusto o foco da lente, que já tinha deixado apontado para a lua.
Puxo um banquinho de madeira, que fica sempre aqui em cima para facilitar a contemplação, e me
afasto para que possa se sentar.

— Pode ir, descubra nossa primeira parada.


Com aquele sorriso que enruga seu nariz — e intensifica o aperto no meu peito —, ela
finalmente volta a ficar empolgada e se senta. Não demora três segundos para Aurora soltar um
gritinho de susto, exatamente como minha prima fez quando a trouxe aqui pela primeira vez.

— Meu Deus do céu, é a lua! Dá pra ver as crateras. Muitas crateras, vejo perfeitamente! —
narra, deslumbrada.

Sorrio de novo por causa do seu entusiasmo, desta vez notando um calor diferente que parece
inundar minha pele. Mais uma reação para desvendar.

— Sim! É incrível, né?

— Muito!

Enquanto aprecia a vista, a olhos coloridos faz várias perguntas sobre o astro que eu tenho o
maior prazer em responder. Passamos quase meia hora parado no mesmo ponto. Mais do que amar o
Universo, eu amo conversar sobre ele.

Falar com Aurora torna ainda mais especial.

— O que mais dá pra ver hoje? — Ela me fita em expectativa, levantando-se para me deixar
procurar. — Será que consigo avistar um planeta?

— Os planetas não ficam visíveis todos os dias, há épocas certas, também horários
específicos. — Posiciono o telescópio para o Sul e foco a lente no local desejado. — Vênus e
Mercúrio, por exemplo, pelo fato de estarem muito próximos ao sol, só aparecem ao amanhecer ou
entardecer. Hoje não vai ser possível.

— Ah, que pena! E as Três Marias? Dá pra ver? São as mais famosas que conheço!

— Sinto muito. As Três Marias são estrelas pertencentes à constelação de Órion, que fica
completa no nosso céu, durante toda a noite, somente no verão.

— Que azar, credo! — Ela faz um bico que deixa seu rosto ainda mais agradável de olhar. —
O que dá pra observar então, além da fantástica lua?

— Aqui, senta de novo! Vou te mostrar a estrela Magalhães. — Acho que a minha nova
obsessão é essa enrugadinha do nariz da Aurora. Como ela fica bonita fazendo isso. — Essa estrela
está na constelação Cruzeiro do Sul. Uma constelação é um conjunto de estrelas que nos auxiliam a
dividir o céu em pedaços menores. Esses arranjos costumam formar figuras. No caso do Cruzeiro, a
figura formada é a de uma cruz, por isso, também a chamamos de Crux.

— Uau, como ela é brilhante! — comenta, admirada, com os olhos fixos na ocular do
telescópio.
— É a mais brilhante desta constelação, que possui cinco estrelas com os nomes populares de
Rubídea, Pálida, Mimosa, Intrometida e Magalhães.

— Intrometida, sério? — Aurora questiona, rindo. — O que a coitada fez pra ganhar esse
nome?

— Essa estrela tem esse nome porque parece que ela se intrometeu onde não devia,
"estragando" o formato perfeito da cruz. Sua posição não é em linha reta, está torta.

Ao som do seu riso que se amplifica, fico trocando a posição da lente para que ela possa
observar cada uma das estrelas da constelação. Sua admiração com os detalhes que descobre vai me
deixando mais eufórico que a própria.

— A Constelação Cruzeiro do Sul está presente na esfera azul da nossa bandeira — conto
mais uma curiosidade, ávido por estender o assunto o máximo que puder. — Na verdade, as estrelas
e as constelações representadas na nossa bandeira correspondem ao aspecto do céu na cidade do Rio
de Janeiro, na data e hora da Proclamação da República.

— Caramba, eu não sabia disso. Que legal! — Aurora me fita rapidamente e volta
desesperada para a ocular. — Você se importa de ficar mais um pouquinho? Não quero ir embora
ainda.

— Eu também não quero — afirmo, sincero. — Podemos ficar quanto tempo você quiser.

Mostro mais alguns astros que estão visíveis esta noite e continuo explicando tudo que me
pergunta, como a diferença da posição dos corpos celestes de acordo com as estações do ano e como
se formam as constelações.

Quando descemos de volta para o quintal, já é quase uma hora da manhã, e um sorriso
radiante estampa meu rosto. Vou dormir fora do meu horário habitual, não vai dar tempo de ler antes
de me deitar, tive que deixar meu telescópio lá em cima para desmontar de manhãzinha, contudo, nem
estou me importando com a rotina. Isso é muito novo para mim.

A fissura na Aurora está sendo maior do que as outras.

— O que você mais gosta no Universo? — ela pergunta, enquanto caminhamos na direção do
seu quarto.

O sensor de luz do quintal acendeu e posso vê-la melhor depois de tanto tempo no escuro.

— Os buracos negros são minha grande paixão; seguido das nebulosas, que são grandes
nuvens encontradas no espaço interestelar formadas, majoritariamente, de poeira cósmica e gases.
Depois, vem a aurora boreal. — É inevitável encará-la e fitar o seu olho que tem uma mistura
incrível de azul e verde. — É um dos fenômenos naturais mais lindos que existe. Toda vez que olho
pra você agora, me lembro dele.

Aurora mantém o olhar no meu por alguns breves segundos com tanta intensidade, que as
batidas do meu coração retomam em potência total. Isso nunca vai parar? Não que eu esteja
reclamando, gosto de como me sinto na sua presença.

— Queria conhecer tudo, é magnífico! — diz, desviando a atenção para a grama.

Suas bochechas ficaram levemente avermelhadas e os seus pés deram um, ou dois, passos
para a direita ampliando nossa distância.

Ah, caramba. Será que fiz algo errado?

— Enquanto você estiver por aqui, quando quiser e o tempo estiver bom, podemos observar
da árvore — proponho, engolindo em seco. — No próximo mês, já teremos Superlua e chuva de
meteoros.

— Meu Deus, assim eu fico curiosa. Não vou atrapalhar?

Tenho vontade de responder que, o que eu mais quero, é passar tempo com ela para
desvendar as reações intensas que meu corpo tem na sua presença, mas, embora Mel tenha dito para
ser eu mesmo, algo não me deixa ser tão sincero assim.

Pode assustá-la e a última coisa que desejo é que Aurora se afaste. Instantes atrás, já pareceu
que fiz algo que não a agradou.

— Falar sobre o Universo nunca me atrapalha — digo a verdade.

— Ok, vamos então. Como amigos, tá bom? — Ela aumenta o tom na palavra “amigos”, como
se quisesse frisá-la.

— Sim, claro.

Embora minha boca e minha mente estejam em acordo, que era isso que eu queria, o meu
coração não parece concordar. Por alguma nova razão, que não faço ideia, é como se ao invés da
aceleração se apossasse um vazio aqui dentro.
CAPÍTULO 20

Giro com os braços abertos, absorvendo cada detalhe para garantir que não estou em um
sonho. Não ligo se as pessoas estão me olhando com estranheza, nem para os cochichos. Mal
consigo acreditar que eu consegui. É real, estou dentro da Marlúcia Peixoto Baldez, a melhor
escola particular de Pirapora.

Caminho pelo gramado verdinho, estampando um sorriso nos lábios, e admirada com
tamanha diferença para a minha antiga escola. Há bancos por todo lado, nenhuma pichação,
alunos uniformizados e nada fora do lugar. É linda!

Até o ano passado, eu estudei na rede pública em um local que mal tinha giz para os
professores. Graças a um concurso de bolsa de estudos, e muito esforço da minha parte, passei em
primeiro lugar para finalizar o ensino médio aqui. Foi muita sorte essa oportunidade,
normalmente, eles só oferecem vagas no primeiro ano. Por causa da desistência de um bolsista, foi
possível a minha entrada. Agora tenho mais chance de conseguir o ProUni para cursar
Veterinária. Mesmo que eu esteja no último ano, a experiência vai me ajudar demais a expandir o
conhecimento.

O sinal toca e eu me apresso a checar o número da sala que devo ir, no folheto de boas-
vindas que me deram mais cedo. Fiquei tão empolgada conhecendo a escola, não quero chegar
atrasada. Quando encontro o meu destino, percebo uma aglomeração de jovens animados
conversando na porta. Todos — sem exceção — param de falar para me observarem passando no
meio do burburinho.

Ai, meu Deus, que vergonha!

— Bom dia! — cumprimento, sentindo minhas bochechas ficarem vermelhas. — Com


licença.

— Carne nova no pedaço! — Um loiro alto assobia, fitando-me de cima a baixo. Pego na
alça da mochila, desesperada para segurar algo e entrar de uma vez.

— Deixa de ser grosseiro, Maurício! — um outro rapaz retruca e meus olhos


instintivamente se viram para ele. Um sorriso enorme desponta no seu rosto milimetricamente
esculpido. — Não dê atenção pra esse idiota.
— Tu... tudo bem — digo com dificuldade.

A voz quase não sai de tão chocada que eu fico com a sua beleza. Ele tem olhos verdes
expressivos, sobrancelhas grossas e uma boca carnuda muito rosada. No seu braço, noto umas
tatuagens saindo pela beirada da camiseta do uniforme.

Acho que é o menino mais lindo que já vi em todos os meus 16 anos.

— Vamos entrar, pessoal! Está na hora. — Percebo a presença de um homem mais velho e
suponho que seja o professor.

Desvio o olhar e sigo o fluxo dos alunos, de repente me sentindo muito tímida. Fico
enrolando no fundo para esperar todos se sentarem e, assim que noto duas cadeiras vagas no
centro, perto da janela, sigo até a primeira delas.

Eu preferia me sentar na fileira de frente para o professor, mas não tem muito o que fazer.
O ruim de entrar em uma sala onde todos já se conhecem faz tempo é a sensação de intrusa no
ninho. Não quero parecer intrometida.

— Um novo ano letivo vai começar hoje, pessoal! O que irá mudar a vida de vocês pra
sempre. Espero contar com o comprometimento e dedicação de todos — o homem mais velho volta
a falar e liga a lousa digital. Meu Deus, aqui é muito chique. — Temos uma nova aluna na classe.
Seja bem-vinda, Aurora Mendes. Meu nome é Aquiles, sou o professor de Português. Lembre-se de
evitar ao máximo o uso de sotaque aqui na escola, vamos em todas as aulas desenvolver o
português formal.

Venho treinando há semanas, desde que a coordenadora contou na reunião da minha


adesão. Não entendi muito bem por que precisamos evitar nossas raízes, deve ser coisa de gente
rica.

Mais uma vez sinto minhas bochechas ardendo com a atenção excessiva. Como de costume,
muitos estão fitando meu rosto, com certeza, curiosos com as cores tão distintas dos meus olhos.

— Ok... — Limpo a garganta e aceno uma das mãos. — Obrigada, professor.

Enquanto ele pede para pegar a apostila, noto uma movimentação de cadeira na mesa que
estava vazia. Olho para trás e dou de cara com o menino bonito me observando com atenção.

Ele vai mudar de carteira? Vai se sentar perto de mim?

— Eu sou Otávio Baldez, muito prazer, Aurora! — Engulo em seco com sua mão estendida
e aquele sorriso de novo.

Com a mão livre, ele está pegando a apostila e o estojo da sua mochila. Realmente, vai
ficar atrás de mim. Como se concentrar desse jeito, meu Pai?
— Prazer! — Aperto sua mão e um arrepio gostoso percorre minha pele. Acho que ele
percebe, pois estende por mais tempo do que o necessário o toque.

— Desculpa de novo pelo Maurício, ele parece babaca às vezes, mas é gente boa. O
inconveniente, o Elton e a Lorena são meus melhores amigos. — Aponta para os três do outro
lado. — Acho que vai gostar da gente. Nossa turma é legal.

Aceno em concordância, mas congelo por dentro ao reparar no sobrenome que ele disse
agora há pouco.

— Você é Baldez, como a dona da escola e o proprietário das fábricas têxteis? — pergunto,
espantada.

— Sim! São a minha vó e o meu pai — ele afirma, orgulhoso.

— O meu pai trabalha na linha de produção de uma das fábricas do seu.

Pelo que seu Vladimir conta, não consigo ver semelhanças entre os dois. O menino me
encarando parece muito simpático, ao contrário do seu progenitor.

— Que legal! — Percebo seu sorriso continuar no rosto. Ele não muda ao saber que sou de
classe mais pobre que a dele. — É o destino, hein! Seu caminho está cruzado com um Baldez.

Algo no seu olhar me faz queimar novamente. Desta vez, além do rosto, sinto um borbulhar
no meu estômago e o coração acelerado.

Se ele ficar atrás de mim o ano todo, isso não vai dar certo.

— Vamos matar aula hoje pra ir ao bosque, Maurício conseguiu maconha. Bora? —
Lorena me para na entrada, toda animada.

Faz quatro semanas que cheguei à escola nova e está sendo muito diferente do que
imaginei. Otávio sentado atrás de mim me desconcentra o tempo todo e a sua turma é bastante
agitada. Pensei que viveria na biblioteca e só consegui ir lá uma única vez.

Já matei aula semana passada com eles e descobri no terceiro dia aqui que são adeptos à
droga. Não experimentei ainda, no entanto, estão insistindo e tentando me convencer que não tem
problema nenhum e que ajuda a relaxar.
O lado bom é que fiz uma amiga. Lorena é maluquinha, mas é muito legal e inteligente.
Tem me ajudado a pegar o ritmo das matérias. Ela e o Otávio são os mais ricos da sala. Maurício
leva uma vida de playboy, no entanto, parece que seu pai é funcionário do senhor Baldez.

O Elton, a família dele está indo de mal a pior nos negócios, a Lorena comentou que
podem ter que decretar falência do empreendimento em breve. Por isso, acho que ele é tão calado
e na dele.

— De novo, Lore? Acho melhor não, tem aula de Biologia. Uma das minhas preferidas.

— O Otávio insistiu pra eu convencer você, amiga! — Ela usa o golpe baixo que sabe que
me desestabiliza. — Nunca vi ele tão caidinho antes. Pode ter todas as garotas da escola quando
quiser, mas tá aí, rendido, indo devagar.

Segundo minha amiga, Otávio disse que está fissurado no jeito que minha bochecha fica
avermelhada perto dele e na cor dos meus olhos. Ai, meu Deus! Mesmo com esse lance de usar
maconha e matar aulas, fica difícil não gostar assim.

O garoto confessou a ela que está afim de mim desde o primeiro dia, porém, não quer
forçar nada e irá respeitar meu tempo. A fofoqueira contou a confidência que fiz sobre a
experiência ruim que tive com meu antigo namorado.

Não gosto nem de lembrar o tanto que fui traída por aquele embuste. O relacionamento me
deixou traumatizada para conhecer outras pessoas. Não sou dessas que fica por ficar. Quando
estou com alguém, estou de verdade.

— Só hoje, viu?! Sou bolsista, não posso ficar faltando.

Além de não poder, sempre tenho peso na consciência de fazer algo errado sabendo que
meus pais estão se desdobrando para bancar as passagens de ônibus, as apostilas e a minha
alimentação aqui.

Já há tanto gasto com a Sara, não gosto de pensar que estou traindo a confiança deles.

Dando pulinhos na minha frente, a morena de cabelo liso até os ombros, engancha seu
braço no meu e dá a volta pelo lado de fora da escola. Nos fundos, tem um carro nos esperando
com Otávio, Maurício e Elton — o trio inseparável. Desde que cheguei, nunca os vi longe um do
outro.

— Aê! Agora sim o dia vai ficar bom. — O seu sorriso aberto me quebra totalmente todas
as vezes. É impressionante. — Oi, Aurora.

— Oi, Otávio. — Passo tão perto dele que chego a sentir sua respiração quente no meu
pescoço.
A última coisa que eu quero é me envolver de novo — ainda mais quando meu objetivo
deveria ser só estudar. Mas não sei quanto tempo irei resistir a esse cara.

O som alto reverbera pelas paredes e faz eco nos meus ouvidos. Abaixo um pouco a
minissaia e coloco o braço na frente do corpo para disfarçar o decote extravagante. Queria ter
vestido uma calça jeans e uma blusinha simples, no entanto, Lore não permitiu de jeito nenhum e
insistiu para pegar um dos seus looks.

Acredite, este é um dos mais comportados.

Se eu tivesse saído de casa assim, seu Vladimir não me deixaria passar do portão. Disse
que iria dormir na minha amiga e nem desconfiou que vim para uma festa na casa do Otávio, em
comemoração às férias de julho.

Os pais dele estão viajando, então, a mansão ficou livre para fazer o que quiser. É a
primeira vez que entro aqui. Nunca vi um lugar tão grande e sofisticado antes. Observo-o de longe
próximo ao DJ e um suspiro involuntário escapa da minha boca. Otávio é tão lindo. Tentei resistir
o máximo que deu, mas depois de um mês na escola já estava caidinha por ele. Começamos com
beijos inocentes e só três dias atrás, eu realmente cedi em fazer sexo.

Não estou gostando da forma como ele agiu depois da nossa primeira vez. Pode ser
paranoia da minha cabeça, no entanto, parece que era exatamente o que queria e agora perdeu a
graça toda sua conquista. Cheguei faz mais de vinte minutos e sequer veio me dar um beijo ou
conversar comigo.

— Que cara de bunda é essa, Aurora? — Maurício para ao meu lado e me fita de cima a
baixo. — Cadê a Lore?

Não gosto do jeito que ele me olha de vez em quando. Abaixo mais a saia e uso
discretamente o cabelo para disfarçar meu corpo exposto.

— Tô cansada das provas finais do semestre — minto, desviando a atenção para o lance de
escadas que a minha amiga subiu há pouco. — A Lore foi retocar a maquiagem e já volta.

Ela e os meninos estão acostumados a vir aqui toda semana. Não nego que fiquei
incomodada por não ter sido convidada antes. Otávio me leva a vários lugares, chegou a passear
comigo no chalé da sua família no meu aniversário, menos aqui. Onde é visível para os outros, ele
evita. A escola, apesar de levar o nome da sua avó, não conta com a presença da senhora já
aposentada.

— Você precisa beber pra esquecer essas provas malditas! — Faço que não com a cabeça,
mas quando quer, esse garoto sabe ser insistente. — Não aceito não como resposta, você veio aqui
pra se divertir.

Abro a boca para reforçar que realmente não quero, ao vê-lo se dirigir ao bar do nosso
lado esquerdo, no entanto, sou surpreendida com um Otávio sorridente vindo na minha direção.

Nossa, nunca me canso de observar como é ele é bonito e sedutor.

— Oi, linda! — Sua mão se infiltra na minha nuca e na minha cintura. — Tava com
saudade já.

Quero dizer que eu também, e que estou preocupada com a gente, mas não tenho tempo ao
sentir sua boca invadindo a minha, sem pudor na frente de todos. Sua saliva tem gosto de uísque.
Provavelmente, já está alterado, por isso me tratou normal, depois de três dias se esquivando.

— Aqui sua bebida, Aurora! — Maurício chega bem na hora que nos afastamos.

Não quero tomar nada, contudo, acabo cedendo quando o próprio Otávio pega o copo e
deixa na minha mão.

— Bebe, linda. Estamos de férias, hoje é só diversão!

— Não bebe, não bebe! — grito, desesperada, me debatendo de um lado para o outro.

— Aurora, abre esta janela! Aurora! Você está bem?

Assustada com a voz diferente me chamando, arregalo os olhos e percebo que estou no meu
quarto. Não é a mansão do Otávio, nem a escola. Eu estava sonhando. O cômodo ainda está escuro,
salvo por uma fina fresta de luz vinda da janela. A cama está totalmente bagunçada, demonstrando
que foi uma noite tensa de lembranças.

Se não estou enganada, sonhei com flashes do dia que nos conhecemos, de quando comecei a
deixar de ser eu e da noite que tudo mudou de vez.

— Já vou, espera aí! — aviso, colocando a mão no peito para desacelerar o coração.
Pego a coberta que havia caído no chão em algum momento e enrolo no meu corpo para tapar
a pele exposta. Assim que abro a janela e avisto o rosto de Daniel, percebo que ele está aflito do
outro lado, batendo os dedos na lateral do corpo e falando algo baixinho mais uma vez. Realmente,
essa mania deve ser uma forma que o ajuda a se acalmar.

— Você está bem? — Ele se aproxima até a base do concreto. — Eu fui desmontar o
telescópio e quando estava voltando pra casa, a fim de guardá-lo e sair pra correr, percebi uma voz
alta vindo do seu quarto. Parecia que tinha alguém com você. Fiquei preocupado.

Reparo no objeto grande em um case ao seu lado, e no céu que tem pouca claridade. Não
deve ser nem seis horas da manhã ainda. Observo Daniel de novo e noto que está realmente com
roupa de ginástica.

Ele foi dormir tarde e madrugou para desmontar o telescópio e sair para fazer atividade
física. Mel tinha me contado que o primo não gosta da academia, mas sai para correr todos os dias
antes do trabalho. Mais uma questão de rotina que pode ser um sintoma de autismo.

— Eu tive um pesadelo, me desculpe assustá-lo. — Dou um passo para trás e aperto a


coberta na altura do meu peito.

Tomara que não tenha dito nada comprometedor alto demais, não quero ter que me explicar de
forma alguma.
— Tem certeza? — Sua voz mais alta parece uma súplica, como se ansiasse ver o que tem na
minha mente, enxergar além do que demonstro. — Tem algo que eu possa fazer pra ajudar?

— Você já ajudou muito, eu acordei e agora vai ficar tudo bem.

Sei que Daniel não tem nada a ver com Otávio, mas é inevitável o instinto de proteção. Faz
muito tempo que não tinha lembranças tão longas e seguidas. Quando estou acordada e consciente,
jamais permito que se estendam tanto. Acho que me recordei hoje porque fiquei saudosa com
Pirapora, ao falar do céu estrelado, e por causa da troca de olhares intensa com o ruivo antes de nos
despedirmos da aventura noturna.

“Toda vez que olho pra você agora, me lembro dele.”

Não creio que tenha sido a intenção, porém, ser comparada com a beleza do fenômeno de uma
aurora boreal mexeu comigo mais do que gostaria de admitir. Foi estranho sentir as batidas do
coração se agitarem.

Começou assim da última vez, emoções e palavras bonitas que culminaram na minha
desgraça. Não posso — e não quero — confundir as coisas. Devo estar sensível às mudanças
recentes, é tudo muito novo e diferente do que tinha me acostumado.

— Se precisar de mim, qualquer hora do dia, é só bater ali na porta de casa. Eu tenho sono
leve e acordo no mesmo instante. — Percebendo meu silêncio, ele pega o case do telescópio e o
segura nas mãos.

Acredito que se ficar perto do Daniel por mais alguns dias, já consigo identificar traços da
sua personalidade para conversar com a Mel. Quando eu realmente souber, essa necessidade de
ajudar vai passar e tudo voltará ao normal.

Por entender a importância do diagnóstico, devido à experiência da minha irmã, tem algo
dentro de mim que não me deixa desistir desta aproximação com ele.

— Tá... — Engulo em seco, incomodada por estar sendo seca.

Daniel acena e some no gramado como ontem. Volto a fechar a janela e me sento na cama
soltando um suspiro demorado. Coitado, ele realmente pode só estar querendo ser simpático, sem
segundas intenções, e eu aqui viajando por causa dos meus traumas.

Tudo pode ser apenas paranoia da minha cabeça.

Esfrego o rosto com força e observo meu reflexo no espelho pequeno que tem em cima da
cômoda. Cansei de viver na sombra do Otávio, com receio de tudo e de todos.

Meu peito enche, as pupilas dilatam, meu semblante endurece.

Talvez seja um sentimento momentâneo motivado pela raiva que senti ao acordar do sonho, ou
talvez a força da nova Aurora que tem nascido no ringue. Quero acreditar que é real e me agarrar
nele.

Daria tudo para só esquecer e não sentir mais medo.


CAPÍTULO 21

O sinal toca anunciando o intervalo e eu me encolho na cadeira com o barulho alto e agudo.
Que som mais desconfortável, parece que entra na mente e reverbera por cada parte do corpo. Nunca
gostei de sinos.

— Deixem a folha na mesa, por favor — peço, observando os alunos sem fixar a atenção em
ninguém.

Alguns vêm animados, outros não parecem muito contentes. O primeiro ano da graduação em
Astronomia é bem intenso, principalmente, na disciplina do professor João. Quando ele tem algum
imprevisto, eu ou o Saulo assumimos a aplicação de trabalhos e plantão de dúvidas.

Confesso que não é a minha função preferida como assistente, porém, infelizmente, não há
como escapar. Gosto de ficar na nossa sala pequena fazendo pesquisas ou corrigindo avaliações das
turmas de mestrado. Pelo menos, estes últimos estimulam mais meu cérebro do que os calouros.

— Ainda dá tempo de se inscrever para a atividade extra em São Francisco Xavier? — um


jovem, que parece o Leonard de “The Big Bang Theory”, questiona.

Os alunos vão passar o dia na cidade dando palestras nas escolas municipais e à noite haverá
observação aberta ao público. É satisfatório para o currículo dos novatos participar destes projetos.

— Dá tempo até a meia-noite de amanhã.

Um dos motivos pelos quais eu não quero ter a mesma carreira que o professor João é a falta
de paciência. Tem avisos no mural, no portal on-line da universidade, no e-mail cadastrado e, mesmo
assim, os alunos deixam tudo para última hora, porque simplesmente não leem.

— E você também vai com a gente, Daniel? — uma aluna, loira dos cabelos encaracolados,
pergunta, quase se inclinando na mesa enquanto deixa sua folha.

Geralmente sou muito bom de memória, mas não tenho a mesma habilidade com os nomes dos
alunos. Talvez por não considerar uma informação útil. Eu me recordo dela pela fisionomia porque
tirou nota dois na primeira avaliação do bimestre, também porque disse na apresentação da classe
que não gostava de exatas. Muitos estudantes entram no curso achando que a carreira é apenas
observar o céu e nada mais. Gostar de física e química são requisitos básicos para não se
decepcionar com a profissão.

— Ainda bem que vai estar na vez do Saulo — respondo, sincero, e ela arqueia a
sobrancelha, me observando com o semblante diferente.

Será que fui grosseiro? O professor João pede constantemente para eu tentar ponderar as
palavras com os alunos. Segundo ele, ser muito direto às vezes assusta as pessoas.

— Que pena! Queria que você fosse.

Dou de ombros, sem ter o que fazer, recolho os trabalhos e me levanto para voltar para minha
área do departamento. Os poucos alunos que ainda estão na sala saem junto comigo.

Pela experiência de observar uma chuva de meteoros, em uma das melhores cidades próximas
de São Paulo neste quesito, eu até gostaria de ir. Ainda mais por ser um projeto de extensão em
parceria com o Inpe para a comunidade local. São Francisco Xavier é um distrito de São José dos
Campos, onde fica a sede do instituto de pesquisas espaciais. No entanto, há dois problemas
cruciais: as crianças ficam barulhentas em excesso nestas atividades e eu já prometi para a Aurora
que iríamos ver o espetáculo da árvore do meu quintal.

Agora conseguimos entrar em uma sintonia que não gostaria de estragar por nada. Depois que
a acordei do sonho, há duas semanas, ela passou uns dias muito esquisita. Foi péssimo não saber se
eu tinha feito algo que a desagradou, ou se era uma questão pessoal.

Mel garantiu que era algo dela, então, tive que tentar conviver com isso até que se sentisse
pronta para conversar de novo. Por sorte, foi a tempo de ver a Superlua que despontou no céu no
início do mês. As condições climáticas não foram das melhores, porém, ainda deu para desfrutar um
pouco.

Temos nos encontrado ora na árvore, ora estendendo roupa no varal quando o tempo não está
bom. Aurora está tão à vontade, que anteontem até entrou em casa junto com a minha prima para
conhecer a Yê — claro, sem o tio Noberto ou o resto da família perceber.

Estou adorando a aproximação, embora haja um desgaste enorme da minha parte para não a
deixar afetada novamente. É horrível não saber do que se trata, não saber direito o que fazer. Sinto-
me em uma corda bamba a metros de distância do chão. Fico lembrando que a Mel disse para ser eu
mesmo, mas existe a dualidade de ser eu e assustá-la.

Meu coração continua acelerado e eu não tenho ideia do motivo — tampouco reúno coragem
de perguntar para a olhos coloridos. É tão bom o sentimento que prefiro não saber e ter certeza de
que terei sua presença perto de mim do jeito que está.
Desligo o computador e pego minha mochila animado para ir para casa. Antes eu ficava muito
mais feliz aqui, agora há uma mistura gostosa de expectativa tanto na universidade como lá.

Estou empolgado para contar à Aurora que enviei a documentação necessária para a minha
viagem à Rússia nesta tarde. Disse a ela recentemente sobre o prêmio e pareceu muito orgulhosa da
minha conquista. Ao que tudo indica, irá acontecer no final do recesso de julho.

A olhos coloridos me faz gostar ainda mais dela por me ouvir e, principalmente, se interessar
pelo que ouve. Por muito tempo senti falta de pessoas assim na minha vida, fora do perímetro da
universidade.

Saio da sala conversando com Saulo, até que me deparo com o professor João e a professora
Mércia aos beijos dentro de um carro no estacionamento. Os dois devem ter chegado para se
prepararem para as aulas noturnas.

— Você está vendo o que eu estou vendo? — meu amigo pergunta, parando a caminhada para
enxergar melhor.

— Eles não eram amigos desde a época da graduação dele, nos anos 1970? — Paro também,
não conseguindo desviar a atenção dos seus corpos tão próximos.

— Que eu saiba, sim, a professora Mércia era casada. Ela se separou no fim do ano passado.
Será que estão namorando? Logo o professor João, que não acredita mais no amor?

Ele também era casado, sua esposa faleceu de câncer de mama antes de eu ingressar na
graduação. Apesar de não comentar muito sobre sua vida pessoal, sempre se mostrou fechado para
relacionamentos.

— Amigos podem ser namorados? — É impossível refrear as batidas que ficam empolgadas
com a possibilidade de um dia ter isso com Aurora.

Nunca tive uma namorada, não sei direito como funciona, mas parece que há muitas
vantagens. Seria hipócrita se não assumisse que já pensei em como deve ser seu beijo. Aurora tem a
boca tão carnuda. Eu tenho certeza de que é muito melhor do que a Monique e a outra garota do clube
“O pecado de Eva”.

Tento não focar em outras possibilidades e me concentrar em como sua presença me faz bem
como amiga, porque é o que ela quer.
— Eu não sou a pessoa mais entendida do assunto, né. — Saulo dá de ombros, olhando mais
uma vez para o casal que ainda não se desgrudou. — Porém parece que sim. Os dois sempre foram
muito companheiros de trabalho, viajaram juntos dezenas de vezes e nunca os tinha visto desta forma.

— Como será que faz para mudar de amigo para algo a mais?

— Acho que a pessoa percebe, Dan — Saulo explica. — Uma hora ela para de enxergar o
outro apenas com amizade e passa a ter desejo. Deve ser isso.

Será que Aurora é capaz de enxergar isso em mim? O caminho do trabalho para a casa é feito
com a minha mente agitada. Embora tente não pensar, não consigo refrear a imagem mental de nós
dois juntos além das conversas. Se aconteceu com o professor João, pode acontecer comigo também.

Para com isso, Daniel! Não é uma boa ideia.

Quando desço no ponto de ônibus e me dirijo para casa, não sei dizer se estou mais ansioso
por retomar nossa rotina ou com medo de não conseguir tirar da cabeça essa esperança perigosa.

No começo, eu só queria me aproximar, depois fiquei incomodado com a possibilidade de ser


apenas amigo e, até uma hora atrás, a amizade dela era tudo que eu queria manter sem correr riscos.

Que confusão, não consigo entender nada.

A única coisa clara é que, após tudo que vivemos nas últimas duas semanas, e sabendo que
ela pode se fechar de novo e nunca mais voltar ao normal, não é inteligente mudar os planos.
CAPÍTULO 22

Escuto ao longe o portão da frente ser aberto e ajeito minha postura desencostando do
batente. As batidas do meu coração dão um tranco e noto o suor se acumular na palma da minha mão,
mesmo sem ter certeza de quem é. Mel e eu estamos enrolando aqui na entrada do meu quarto
improvisado, esperando Daniel chegar do trabalho.

O treino terminou um pouco mais cedo, devido a um compromisso do sensei, e não sei dizer
se fiquei aliviada ou mais apreensiva porque não tive como extravasar a adrenalina até ele chegar.
Hoje não rendi muito no ringue, de tão ansiosa.

Estou com medo do Daniel não entender o que fiz a pedido da prima e ficar chateado
conosco. Ela o ama demais. E eu demorei tanto para realmente ceder à nossa amizade, que agora que
me acostumei à sua presença, não quero perder isso que construímos.

Fiquei muito abalada depois daquela sequência de memórias do meu passado, não posso
negar. Por mais que eu queira assumir o papel da Aurora lutadora na vida também, ainda não consigo
ser essa versão. O que aconteceu mexe demais comigo e não me deixa esquecer.

Passei alguns dias presa na minha bolha, sem conseguir voltar a interagir com Daniel, até que
Mel percebeu que havia algo errado e veio conversar. É impressionante como essa garotinha de onze
anos é esperta e inteligente, sabe cutucar o lugar certo para nos fazer mudar de ideia.

Ela me contou a dificuldade do primo em fazer amizades desde a infância e de como vê-lo
triste por meu distanciamento a estava machucando. Eu fui uma das poucas pessoas que se aproximou
sem julgá-lo. Não adianta, sempre relaciono o Dan com a Sara. Se fosse com minha irmã, eu gostaria
que a amiguinha Aline, por exemplo, se afastasse do nada, sem dar explicações?

A resposta, com certeza, é não.

Voltei a me encontrar com ele na árvore ou no quintal e não me arrependo. A sua companhia
agradável quebrou o resto das barreiras que eu havia construído e fui ficando cada vez mais
confortável na sua presença. Ajuda muito o fato de não forçar nada.

Daniel não perguntou os motivos do meu pesadelo, nem questionou sobre por que eu me
afastei. Jamais indagou sobre as roupas que uso ou encarou meu corpo uma vez sequer. Creio que
mesmo que tenha curiosidade, Dan respeita o meu espaço. Isso faz muita diferença para mim.
Foram dias interessantes, com direito a imagens incríveis do céu, muita conversa sobre o
Universo e até visita na sua casa. Quem diria que Aurora Mendes entraria na casa de um rapaz
solteiro e jovem, de novo, por vontade própria.

Essa aproximação me permitiu conhecê-lo melhor e aumentou minhas suspeitas de que


realmente pode estar no espectro do autismo. Mel disse que a mãe dele vem para a cidade no final de
semana e nós decidimos contar para Daniel antes de falar para ela amanhã.

— É ele quem chegou. Ai, meu Deus! — Mel avisa, observando o corredor. A garotinha está
tão apreensiva quanto eu.

Avisto seu corpo esguio entrar no meu campo de visão e o coração volta a bater mais rápido.
É um tipo de medo diferente, que não estava mais acostumada a sentir. Daniel já é adulto, não faço
ideia de qual será sua reação.

Será que vai ficar bravo com a suposição? Será que vai achar que foi usado? Será que vai
imaginar que fingi nossa interação esse tempo todo só para sondá-lo?

No começo, confesso, a minha única intenção era essa: ajudar Mel e pronto. Não me sinto
mais desta forma, a atitude dele diante do que vou dizer pode me deixar bem abalada.

— Precisamos falar com você, vai lá no quintal — a prima sussurra, sem chamar atenção dos
familiares da casa da frente.

Aprendi com o tempo a não apreciar nada que seja feito às escondidas, porém, neste caso —
assim como o da minha família — é melhor permanecer do jeito que está. Pelo menos, por enquanto.
Eu gosto que a família do Noberto respeite meu espaço mantendo-se distante e que os garotos da
academia sejam meramente profissionais comigo. Tenho medo de que isso mude quando souberem
que Dan e eu viramos amigos. Temo também que ele sofra represálias do tio e da avó pela nossa
aproximação.

— Vou abrir a porta da cozinha, entrem por lá. Tá quase na hora da comida da Yê.

A lembrança do porquinho da índia me faz soltar um sorriso e acalma um pouco minha tensão.
É um dos bichinhos mais fofos que já vi na vida.

Daniel entra na sua casa e Mel e eu seguimos para o quarto, pulando a janela para acessar o
quintal. Pouco tempo depois, estamos nós duas sentadas no sofá da sala observando o rapaz separar
os alimentos do seu animal de estimação na cozinha.

Posso estar enganada, mas pelo pouco que o conheço também parece nervoso, desviando o
olhar mais do que o normal. Geralmente comigo ele consegue fixar a atenção por mais tempo. Pode
ter sido um dia ruim no trabalho, ou ele está desconfiando de algo.
Percebendo que estou quieta demais, apenas observando seu primo, Mel dá um cutucão no
meu braço, lembrando o motivo pelo qual estamos aqui.

— Eu... é... — Limpo a garganta e passo a mão no meu blusão. A aflição volta forte. —
Queria conversar uma coisa importante com você.

Daniel olha para o relógio na parede e caminha lentamente para a sala, deixando o que havia
separado na mesinha de centro. São 20h05. Ontem ele comentou que a alimentação dela é às 7h20 da
manhã e às 20h20 da noite. Pelo jeito, o horário é cumprido ao pé da letra. Mais uma situação que
reforça minhas suspeitas: Daniel apresenta muitos traços de rotina rígida.

— Tem algum problema? Eu fiz algo errado? — Engulo em seco com a preocupação na sua
voz.

Dan sempre acha que o problema é ele, deve ser horrível se sentir desta forma o tempo todo.

— Não, claro que não — apresso-me em dizer. — É só uma coisa que eu percebi e contei a
Mel há algumas semanas. Algo que pode ser um traço da sua personalidade, que a minha irmã Sara
também tem.

— O que sua irmã tem? — questiona, sentando-se, curioso.

Respiro fundo e entreolho a Mel antes de começar a falar. Meu peito parece uma bateria de
escola de samba quando abro a boca e deixo as palavras saírem. Como ele perguntou da minha irmã,
fico mais confortável de contar a sua história e narro desde o início dos sintomas que fizeram meus
pais levá-la ao médico e descobrir o diagnóstico.

Falo por catorze minutos, observando um Daniel silencioso que absorve cada frase com um
semblante indecifrável. Sua falta de reação faz Mel me interromper em vários momentos para
acrescentar que só fiquei o observando para ajudá-la a entender se ele também era portador da
síndrome. A garotinha parece apavorada que o primo não compreenda nossa intenção.

Quando o relógio marca 20h20, Dan se levanta do sofá como se estivéssemos batendo um
papo sobre como está o tempo hoje, e vai até a gaiola da Yê colocar a sua comida. Volto a encarar
Mel, aflita, nunca o vi tão calado desde que o conheci.

Sem saber o que fazer, nós duas ficamos quietas enquanto ele alimenta o porquinho da índia.
Minhas mãos parecem ganhar vida própria no meu colo do tanto que se mexem.

— Por que pararam de explicar? — Ele se vira e fita nós duas nos olhos. — Quero saber
tudo.

— Você entendeu o que a Aurora disse até aqui? — a prima pergunta, caminhando ao seu
encontro. — Ficou muito calado o tempo todo, estamos preocupadas.
Tentei explicar de forma didática como contei à Mel quando me perguntou. Fui bem
específica em todos os sintomas que reparei que ele faz com frequência e são determinantes no
autismo.

— O professor João sempre diz que, quando alguém está ensinando, devemos nos calar e
apenas absorver a informação. Eu entendi, fiquei quieto porque estava me lembrando das minhas
reações sobre tudo que a Aurora falou.

— Você está bravo? Está triste? Está com medo? — sondo, tentando segurar as mãos
agitadas.

— Bravo? Triste? Medo? — O seu semblante confuso quase me faz rir. — Não, de forma
alguma. Eu estou aliviado! Se isso for realmente verdade, você não faz ideia do bem que me fez.
Passei 24 anos achando que era estranho, não entendendo por que não conseguia me encaixar no
mundo, agora fará sentido.

Solto o ar com força, nem percebendo que havia segurado em algum momento entre a
pergunta e a sua resposta. Aliviada estou eu, por Daniel ter reagido tão bem.

— Ai, que bom, primo! — Mel pula nos seus braços esquecendo que ele não é muito chegado
em toque. — Opa, desculpa. Eu me empolguei aqui, estava com tanto medo de você ficar bravo com
a gente. Pedi pra Aurora te observar com a melhor das intenções, só queria ajudar.

— Tudo bem! — Ele se levanta do chão e fecha a gaiola da Yeda, sorrindo para a prima. —
Eu sei que você não faria nada para me magoar.

— Eu também não! — Quando dou por mim, a frase escapa dos meus lábios.

Não sei direito por que disse, só senti uma vontade imensa de deixar isso claro. Daniel olha
para mim e por alguns segundos nos perdemos um no outro. Às vezes isso acontece, mas logo os dois
dão conta do deslize e voltam ao normal.

— É importante ressaltar que tudo que eu falei são apenas suposições minhas, diante do que
aprendi convivendo com a minha irmãzinha. — Volto ao assunto, dispersando meu foco para a mesa
de centro. — Quisemos contar pra você primeiro, antes de dizer à sua mãe amanhã. Com os dois
cientes, eu recomendo que procurem um profissional especializado para avaliá-lo.

— Eu já tinha ouvido falar em autismo, mas nunca me aprofundei no assunto. Qual médico
devo ir?

— Um dos traços fortes do autismo é o hiperfoco. Você demonstra muita habilidade em


diversas áreas que gosta, mas percebi que assuntos que você não curte, não tem interesse em se
aprofundar. É comum! — Daniel volta a se sentar no sofá e fica de frente para mim, parecendo
interessado em saber cada vez mais. — Os médicos indicados são o neurologista ou o psiquiatra.
— Se for verdade, é preciso tomar algum remédio? Fazer algum tratamento?

— Depende muito do grau que estiver, cada autista é único e tem suas especificidades. A
Sara precisa tomar remédio para ansiedade e faz equoterapia. Quando mais nova, também teve que
frequentar por anos a fono, pela dificuldade na fala.

— Se eu for diagnosticado com autismo, ficarei feliz que, finalmente, as pessoas vão poder
me compreender melhor. — Daniel suspira fundo e passa a mão no peito. — Eu irei me entender
mais, não vou precisar me cobrar tanto.

O seu desabafo me deixa com um nó na garganta e um quentinho no coração. Quando decidi


ajudar a Mel, me lembro de ter pensado que ele merecia saber para entender que é especial do jeito
que é.

Não fazia ideia de que se tornaria tão especial para mim também.
CAPÍTULO 23

Quando pisei no portão de casa, ontem à noite, estava agoniado com meus pensamentos, que
não conseguiam esquecer o beijo do professor João e a professora Mércia. Mesmo sabendo que não
deveria, a primeira coisa que passou pela minha mente, assim que avistei Aurora na porta do seu
quartinho com a minha prima, foram meus lábios tocando os seus. A imagem é tão viva que eu quase
posso sentir o gosto da sua boca se fechar os olhos.

Minha cabeça ainda está conflitante com relação a isso, mas agora tem um outro sentimento
que desponta forte ao pensar ou encarar a olhos coloridos: gratidão.

Nunca me senti tão aliviado como nas últimas horas, desde que me contou que posso estar no
espectro autista. Parece que um peso invisível que tinha nas minhas costas foi retirado tornando-me
uma pessoa muito mais leve.

Passei um tempão pesquisando sobre o assunto na internet e encontrei depoimentos incríveis


no Youtube que me deixaram ainda mais esperançoso. Só a possibilidade de ser melhor
compreendido me traz uma felicidade genuína. Conexão foi tudo que eu sempre quis desde a infância
e será possível se eu souber o que tenho e trabalhar para melhorar.

— Os principais sinais que percebi no Daniel foram o contato visual restrito; hiperfoco em
determinados assuntos; apego extremo a rotinas e padrões; movimentos repetitivos, como bater os
dedos na lateral do corpo e contar números primos; dificuldade para entender sarcasmos e figuras de
linguagem; e dificuldade para identificar e expressar sentimentos — Aurora conta para minha mãe,
que está estática no sofá.

O semblante das duas não parece de tranquilidade como o meu. A olhos coloridos aparenta
estar nervosa e a minha mãe, apavorada. Elas foram apresentadas há cerca de vinte minutos e, desde
então, Aurora tem explicado o que é autismo e como reparou que eu também posso ser portador,
mediante sua experiência com a Sara.

Viviane chegou cedo em casa para passar o final de semana de folga, no entanto, só contamos
agora que Aurora terminou seu treino da manhã. Fiz questão que estivesse presente para repetir tudo
que me disse ontem.

Minha prima avisou que tínhamos que conversar e pediu para a minha mãe passar um tempo
com a vó Marideide, a fim de não sermos interrompidos neste momento. Se ela chega e não vai lá
logo, a senhora vem aqui e não dá mais paz. Ainda não queremos contar para o restante da família
sobre as suspeitas, somente se realmente for confirmado.

— Você está chorando, tia Viviane? — Mel questiona, preocupada, ao perceber que ela
inclinou a cabeça e está fungando.

— Não fica triste, mãe, eu estou superfeliz de saber que posso não ser esquisito e esnobe de
propósito, como sempre me rotularam— confidencio, tentando animá-la.

— Não foi minha intenção deixá-la triste, dona Viviane — Aurora se desculpa, aumentando o
vinco na sua testa. Será que está preocupada? Triste também? — Me perdoe por isso. Eu comentei
com a Mel primeiro e ela pediu que eu tentasse ver se havia outros sinais. Quando descobrimos o
diagnóstico da minha irmã, foi ótimo para toda a família. Autismo não é uma doença, é apenas uma
condição neurológica que melhora muito com o tratamento adequado.

— Eu jamais ficaria triste com você, estou decepcionada comigo mesma. Sou uma péssima
mãe, como não percebi isso antes? — ela responde, chorando ainda mais, e Aurora passa a mão nas
suas costas com delicadeza. — Você o conhece há poucos meses e enxergou mais meu filho que eu,
durante 24 anos.

— Não se sinta dessa forma, dona Viviane. Se eu não tivesse vivido com a minha irmã essa
realidade, muito provavelmente também não teria percebido. — Ver as duas se entreolharem com
intensidade faz meu coração novamente sentir aquele calor gostoso que veio quando Aurora ficou
animada de observar a lua pelo telescópio. — O autismo leve é mais difícil de detectar porque os
sintomas são discretos. Até poucos anos atrás, quase não se falava sobre isso e as crianças eram
tachadas de tímidas e introvertidas. De uns tempos para cá que os médicos e professores estão mais
atentos para ajudarem a perceber os sinais na infância. Minha irmã, por exemplo, só descobriu
porque não conseguia falar de jeito nenhum, uma característica de graus mais elevados. Unindo isso
ao seu temperamento explosivo e ao fato de brincar de forma isolada e diferente com seus
brinquedos, chamou a atenção da médica.

— Dan também sempre brincou diferente — minha mãe relembra e eu ajusto a postura para
prestar atenção. — Ele podia ter vários brinquedos novos, mas cismava com os velhos. Gostava de
empilhar, enfileirar, separar por cor...

— Isso é bem comum de acontecer. A Sara também tinha a questão de a gente chamá-la e não
responder. Desde a amamentação não fitava os olhos da minha mãe. Não quis mamar por muito
tempo, minha mãe ficou muito triste na época, se cobrando que não conseguia amamentar a caçula
como fez comigo.

— Isso de chamar e não responder o Dan fazia direto, até uns cinco anos.

Aurora vai contando outros sinais que podem aparecer na infância, como dificuldade para se
adaptar a determinadas texturas de alimentos e roupas, e eu fico com cada vez mais certeza de que
estou no espectro. É como a luz das estrelas clareando a imensidão do Universo, tudo começa a fazer
sentido.

Solto um suspiro, aliviado, ao constatar que realmente não desfiz do presente da vó


Marideide naquele Natal, nem em todas as vezes que me ofereceram um alimento e eu tentei dizer
que não queria. Não sou mal-agradecido nem fresco.

— Se a gente tivesse descoberto mais cedo... tanta coisa poderia ter sido diferente.

— Eu vi no Google que aquela cantora que viralizou na internet cantando no Britain’s Got
Talent descobriu que tinha autismo só depois da apresentação do programa, tia — Mel endossa e
começa a passar a mão nas costas da minha mãe. Será que isso é um protocolo padrão quando alguém
chora? Farei uma anotação mental. — Susan Boyle tinha mais de 50 anos já.

— É muito comum autistas do grau 1 serem diagnosticados na fase adulta. O premiado ator
hollywoodiano, Anthony Hopkins, precisou de 70 anos para descobrir.

— Setenta? Caramba, Aurora! — Minha mãe enxuga as lágrimas e me encara de forma


demorada. — Estou me sentindo um pouco menos culpada agora, porém, ainda acho que poderia ter
me esforçado mais. Eu cheguei a levar o Dan a alguns médicos na infância dele, porém, desisti
quando não descobriram nada, por influência da família.

— Mãe, isso já é passado. O importante é que agora nós temos a chance de saber e melhorar
com o tratamento adequado, caso o diagnóstico se confirme — declaro e recebo um sorriso de Mel e
de Aurora com a minha resposta.

Viviane deixa escorrer mais uma lágrima e, também, sorri para mim. O que será que eu fiz
para merecer tantos sorrisos? Desvio o olhar para o tapete e passo a mão no cabelo, sem graça.

— Tá vendo porque não deve se culpar? — Aurora fala e, mesmo que não esteja encarando-
a, posso sentir o sorriso ainda presente na sua voz. — Na cabeça dele, é tudo muito direto. Não há
por que remoer essa questão, dona Viviane. Seu filho está animado, fique junte com ele e o ajude
nessa descoberta.

— Você é uma mãe maravilhosa, tia. O Dan pode não falar sempre ou demonstrar como os
outros, mas eu tenho certeza de que ele também acha isso.

— Claro que acho que você é uma boa mãe! — digo, com convicção, e ela se ajoelha no
tapete, abrindo os braços com um convite para me abraçar.

Seus olhos estão de novo cheios de lágrimas. Apesar de não ser fã de toque, não é como se eu
nunca aceitasse que outra pessoa se aproxime de mim. Eu só não suporto que me pegue de surpresa
ou que seja muito suave. Eu prefiro que abraços sejam firmes.

Mesmo não sabendo do autismo, minha mãe sempre respeitou meus limites e nunca me julgou.
Inclino-me e ela me acolhe com força como sabe que eu prefiro. O coração dela está batendo tão
forte que consigo sentir reverberar no meu peito.

— Me desculpa, meu amor, eu queria muito ter percebido antes.

— Não quero mais ver você chorando por isso, mãe. Por favor! Vamos seguir em frente —
digo, próximo ao seu ouvido. — A Aurora me explicou ontem que os médicos ideais para avaliar
essa questão são neurologistas ou psiquiatras. Vamos focar em encontrar um o quanto antes.

— Vou procurar hoje mesmo, Dan, e já tentar deixar marcado para esta semana. — Ela faz um
carinho no meu cabelo e se afasta, se sentando ao meu lado no sofá. — Como é feito a avaliação?
Tem exames específicos, Aurora?

— O autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento. Isso significa que diferente de outros


transtornos, não tem um marcador biológico claro. — A olhos coloridos passa o dedo nos lábios
carnudos para tirar um fio de cabelo e, de novo, aquela vontade desesperada de beijá-la aparece.
Balanço a cabeça discretamente para afastar os pensamentos. — Então não existe um raio-X, uma
tomografia, um eletroencefalograma ou mesmo um exame de sangue que traga a confirmação. Serão
feitos testes neuropsicológicos.

— Quanto tempo dura esses testes? Será que eu consigo férias para acompanhar o Dan nas
consultas?

— Os testes vão durar mais de um mês, dona Viviane. É um processo cauteloso e bem
abrangente.

— Ai, meu Deus! E eu estou tão longe agora, as viagens de Brasília a São Paulo nas folgas da
semana passam voando. — Minha mãe começa a esfregar o rosto de forma desesperada. — Qualquer
coisa, eu peço demissão. É, é isso! Eu peço demissão e acompanho tudo com você.

— Que demissão o que, mãe! — digo, afoito. — A senhora demorou anos para conseguir
fazer o que ama. Não vai abandonar o trabalho.

— Não pode fazer isso, tia Viviane. A senhora ama voar — Mel reforça, aflita.

— Calma, dona Viviane. Acredite, a senhora vai precisar de trabalho, caso seja confirmado.
Os testes não são cobertos pelos planos de saúde e são caros. Psicólogo depois é possível conseguir
para o tratamento. O SUS não dá suporte quase nenhum para autistas, é péssimo e demorado o
atendimento. — Aurora me observa por alguns segundos e algo no seu olhar acelera meus batimentos
de repente. — Eu tenho um tempo considerável entre os treinos, se você achar um médico aqui na
região, consigo acompanhar o Dan nas consultas.

— Sério, Aurora? Você faria isso, querida? Nossa, nem sei o que dizer.

— É só uma vez por semana, dona Viviane, não é nada de mais. Se eu posso ajudar, não me
custa.
— Obrigada, Aurora! — Minha prima a agarra pela cintura e a olhos coloridos dá um pulo
assustada no sofá, antes de constatar que é a Mel.

Com um sorriso nos lábios, ela corresponde o abraço e faz um carinho na cabeça da pequena.

— Obrigado. — A palavra curta quase não sai da minha boca de tão rápido que meu coração
está galopando no peito.

— De nada, Dan. Você merece saber.

Seis segundos. É o tempo que nós dois ficamos presos naquela troca de olhares que me
desestabiliza por inteiro.

— Nunca vou esquecer o que fez pelo meu filho, Aurora. Terei uma dívida eterna com você
— minha mãe declara, chorando de novo.

Desta vez, parece de alegria, pelo sorriso que estampa seus lábios.

Eu também nunca vou esquecer a olhos coloridos. Não só porque ela pode me trazer a
liberdade de ser eu mesmo, mas também porque é capaz de dar vida ao meu coração como nenhuma
outra pessoa tinha conseguido antes.
CAPÍTULO 24

Despeço-me de Daniel, Mel e Viviane e volto para o quintal a fim de descansar um pouco
antes do próximo treino. Em breve, a Ana Júlia vai levar o meu almoço e não quero correr o risco de
não ser encontrada por ela no quarto. Balanço os braços e respiro fundo, aproveitando a brisa do
vento que acaricia minha pele. Deu tudo certo! Apesar do nervosismo inicial de contar para uma
pessoa desconhecida algo sério sobre o seu filho, no fim, a conversa foi melhor do que eu imaginava.

A alegria do Dan está contagiante. Um sorriso nasce no seu rosto sempre que reconhece
algum sinal do autismo em si. E ele tem um sorriso tão bonito, enche o peito de paz presenciar a
cena. A minha irmã era muito novinha quando foi diagnosticada, não imaginei que seria intenso desta
forma para um adulto a descoberta. Isso me faz pensar em tudo que viveu nesses anos e como o rótulo
das pessoas o incomodava.

Eu sei muito bem como a opinião dos outros sobre nós é capaz de destruir aos poucos quem
realmente somos. Mesmo que seja mentira, mesmo que a gente saiba que estamos certos, é
impossível fazer nossa mente dissociar a realidade da suposição. No fim, a opinião alheia se
sobressai e acabamos acreditando. Bem diz aquela frase: “uma mentira dita cem vezes torna-se
verdade”.

Em um certo momento, eu realmente cheguei acreditar que era uma vagabunda oferecida, que
pedi por aquilo com meus atos impensados. Coloco a mão na cabeça e fecho os olhos com a memória
que vem com tudo.

— Você é uma mentirosa, está fazendo showzinho por interesse!

— Eu... eu... — Tento rebater suas palavras duras, mas não consigo nem finalizar a frase
por causa da bolota de desespero que se formou na minha garganta.

— Mulher que nem você é o que mais vejo todos os dias. — Ele não se solidariza com meu
estado deprimente, perdida em lágrimas, e continua apontando o dedo na minha cara. — Você é
interesseira! Não se dá ao respeito, fica em cima igual urubu na carniça, pronta pra dar o bote.
Aposto que se jogou em cima do meu filho. Seus pais não te ensinaram a ser uma mulher de
verdade?

— Não... fala dos meus pais, senhor Baldez. — Fecho os dedos em punho e o encaro com
raiva.

Ele, seu filho e companhia podem me humilhar, podem acabar comigo, mas não vou deixar
jamais que falem mal dos meus pais. Se tem alguém sem culpa nenhuma nisso tudo são as duas
pessoas que mais me amam neste mundo.

— Senhor Baldez, não converse mais com ela, pode piorar a situação.

— Não vai piorar nada, ninguém nesta cidade vai acreditar nesse absurdo — vocifera
novamente na minha direção, não escutando o homem de terno e semblante fechado atrás dele. —
Ela está apenas querendo se dar bem à custa da minha família. Isso não irei permitir, jamais!

— Aurora, Aurora! Por favor, um minuto. — Balanço a cabeça com força ao reconhecer a voz
de Viviane.

Pisco três vezes e passo a mão no peito disfarçadamente para tentar acalmar as batidas
tempestuosas. Merda, eu odeio com todas as forças quando essas lembranças vêm do nada.

— Oi! — Paro de caminhar e me viro para trás com um sorriso nos lábios, como se não
estivesse despedaçada por dentro por causa de um pequeno flash do passado.

— Desculpa, não quero te atrapalhar, só senti que deveria vir atrás de você e agradecê-la
novamente.

Fico olhando para ela por alguns segundos sem dizer uma palavra. Mesmo tendo minha fé
abalada por causa de tudo, eu confesso que sinto a presença de Deus com frequência na minha vida.

Às vezes é sútil, como agora, e totalmente necessário para manter minha sanidade. Viviane já
agradeceu por várias vezes enquanto conversávamos na sala, não tinha necessidade de vir atrás de
mim. No entanto, se não viesse, neste exato momento, eu estaria remoendo a minha desgraça, mais
uma vez.

Quando cheguei aqui em São Paulo, estava a muito pouco de cometer uma loucura e acabar
com minha dor para sempre. Só que aí Pilar apareceu na minha vida e seu marido Egídio me ensinou
a me defender.

Um sorriso como o da dona Viviane para mim agora é um pequeno detalhe, que faz toda a
diferença.

Eu tinha melhorado tanto depois daquele pesadelo maldito, se as lembranças vierem com
mais força, é bem provável que volte para a escuridão, deixando-me em uma bolha de proteção do
mundo.

— Tá tudo bem? — ela pergunta, franzindo o cenho, preocupada com a minha demora para
reagir ao seu comentário.

— Tá... sim. — Ajeito a blusa no corpo, mesmo sem precisar, e desvio o olhar para a grama.
— Eu estou muito feliz de poder ajudar a sua família. Sou muito grata à amizade da Mel e do Daniel,
também pela chance que o seu irmão está me dando como lutadora.

Esses dias estava refletindo como eu mudei desde que cheguei aqui. Estou mais falante, mais
aberta ao novo. É quase surreal acreditar que me permiti tanto, em tão pouco tempo.

— Nunca vi meu filho tão animado em toda a sua vida, isso não tem preço pra mim, sabe?!
— comenta, com a voz embargada. — E eu sei que isso é tanto por ele se entender melhor com a
questão do autismo, como por sua amizade. Infelizmente, meu menino não teve muitos amigos na
vida.

Descobrir esse lado do Dan, verdadeiro e autêntico, ajudou ainda mais a minha decisão de
não me afastar dele, como era o plano inicial assim que revelasse sobre as suspeitas de autismo. A
sua presença não me causa desconforto, pelo contrário, eu gosto da companhia e do aprendizado que
tenho adquirido desde que nos conhecemos.

Foi por isso que ofereci minha ajuda, sem pensar duas vezes, quando a dona Viviane ficou
desesperada por estar longe. Ela não merece levar esse fardo, e o Dan precisa saber a verdade para
começar o tratamento e se sentir, cada vez mais, bem consigo mesmo.

— As pessoas que estão perdendo — digo, sincera, e recebo um sorriso amplo dela. — O
Dan é um homem incrível.

— Ele é! — Seu semblante muda de repente e a observo com atenção. — Mas nem aqui
dentro de casa é compreendido. Por isso, está tão radiante. O meu filho já deve ter engolido muito
sapo, sofrido muito com o julgamento dos outros. Devia ter insistido pra descobrir ainda na infância,
teria evitado tanta dor.

— Calma, não fica assim! — Aproximo-me dela e faço um carinho nas suas costas ao
perceber que está chorando de novo. — Foi o que eu disse lá dentro, não se culpe. O Dan jamais vai
achar que você é a responsável por algo.
— O pai do Dan é um cara da Irlanda, que eu conheci em um Carnaval, aqui na cidade,
quando tinha apenas 21 anos. Eu só sei o primeiro nome dele, é James, acredita?! — Ela sorri, mas
não noto muito humor. Parece presa em memórias, sei identificar muito bem isso. — Estava tão
bêbada que não me lembro de quase nada. Ele também tinha bebido muito. Fui para o hotel que
estava hospedado e fizemos sexo uma tarde inteira, sem nenhuma proteção.

“Tão bêbada.” “Não lembro de quase nada.”

As palavras ecoam no meu cérebro tão alto que eu preciso respirar fundo para não permitir
que outra lembrança venha de forma inesperada.

— Ainda não há uma resposta definitiva, mas se acredita que o autismo é de base genética,
quer seja hereditária, em que os pais passaram para o filho, quer seja uma mutação nova, que aparece
somente na criança. Se realmente for comprovado no Dan, pode ser que o pai dele ou algum familiar,
ou ainda alguém na sua família, também esteja no espectro — comento, puxando assunto para voltar o
foco para ela.

— Nossa! — exclama, surpresa. — Agora que você falou isso, eu lembrei que o James no
começo estava muito tímido. Ele estava na dele, os amigos que ficaram colocando pilha pra beber e
chegar em mim. Não fiquei muito tempo pra perceber outro sinal, mas será?

— Pode ser, os autistas muitas vezes são considerados tímidos pelo jeito reservado. E tentar
se encaixar também é uma atitude normal. Minha irmãzinha, esses dias, foi catar tanajura com a
amiga dela, mesmo odiando o inseto.

— Ai, coitados, eles devem se sentir tão mal por tentar se encaixar o tempo todo. Dan sempre
tentou agradar a avó.

— Como a dona Marideide reagiu quando descobriu da gravidez? — questiono, curiosa.

— Minha mãe ficou furiosa, nossa, por pouco ela não bateu em mim, mesmo sendo uma adulta
já. Estava cursando Administração, porque o Noberto queria muito que eu o ajudasse na academia.
Nunca gostei de lutas, mas não sabia como dizer naquela época. Tive que abandonar o curso por
causa do Dan, fiquei morando aqui, tendo que aceitar todo tipo de comentário — admite, deixando
uma nova lágrima escorrer no seu rosto. — Eu sempre tive problemas para impor minhas vontades,
não queria magoar as pessoas. Fiquei me sentindo tão culpada por ter engravido jovem, que permiti
que a minha mãe interferisse na criação do Dan. Foi um inferno, teve uma hora que eu não aguentei e
vim morar aqui nos fundos. A Mel é a única que entende meu filho de verdade, Pablo e Camile
sempre têm ressalvas. O Noberto também não consegue se conectar direito, porque o Daniel nunca
gostou de lutas. Agora isso pesa muito no meu coração, Aurora. Eu permiti que as pessoas
oprimissem meu filho por tantos anos. Devia ter sido mais firme, mais forte.

— Acredite, eu entendo muito bem esse impulso de fazer o que a gente não quer apenas para
agradar o outro. É uma luta aceitar os meus erros do passado — confidencio, cutucando a unha curta
do meu polegar. — Aceite suas falhas, aprenda com elas e siga em frente. Se não, você será sugada
de forma tão intensa pela vida, que nunca mais vai conseguir ficar em paz.

Viviane seca seu rosto com as costas da mão e me dá um sorriso verdadeiro desta vez.

— Você é um anjo que apareceu na nossa vida, menina! — Pedindo permissão com o olhar,
ela estica a mão e faz um carinho no meu ombro. — E não só para mim e o Dan, meu irmão disse a
manhã inteira hoje que você, com certeza, ganha o campeonato. Sua presença só traz felicidade por
onde passa.

Quero dizer que não, que estou longe de ser o que ela pensa, mas por algum motivo que não
compreendo decido balançar a cabeça e soltar um sorriso tímido. Talvez ela precise acreditar que
sim, como eu precisava agora há pouco que alguém viesse me resgatar das memórias.

Eu queria muito ter preservado a inocência da Aurora que fui um dia.


CAPÍTULO 25

Esfrego a mão na calça jeans e olho pela décima vez para o relógio que tem na parede. Minha
consulta está atrasada 35 minutos. Por que marcam horário, se não vão cumprir a agenda
pontualmente?

Sem contar que estamos pagando caro pelo atendimento. O plano de saúde não tinha nenhum
médico disponível por perto, com horário para esta semana. Minha mãe marcou psiquiatra particular,
mesmo sabendo que também vai desembolsar o valor dos testes para autismo depois. Estamos nós
dois muito ansiosos para o resultado, preciso saber se realmente estou no espectro.

— Calma, já, já chamam você — Aurora avisa, com a voz serena ao meu lado, percebendo
minha agitação na cadeira.

Fito seus olhos coloridos por um instante e meu peito se acalma um pouco. Eu estou tão feliz
que ela veio comigo. É claro que seria bom se Viviane também pudesse vir, mas não posso mentir em
dizer que adorei esta troca.

Gosto de passar meu tempo com ela.

— Tenho medo de atrapalhar seu treino da noite. E se não der pra chegar? — confesso uma
das preocupações com o atraso.

Para me acompanhar sem chamar atenção de ninguém lá de casa, ela disse ao tio Noberto que
iria passar umas horas com Pilar. Sou muito grato que queira me ajudar, no entanto, também não
quero ser o responsável por tirar o seu foco dos treinos.

Eu não gosto de assistir às lutas, mas faço questão de ir ao campeonato desta vez. A olhos
coloridos merece ganhar e quero aplaudi-la da primeira fileira.

— Não se preocupe comigo, Dan, hoje é dia de focar só em você. Tá bom?

— Tá... — Sorrio, notando meus dedos comicharem na ânsia de colocar a mecha solta do seu
cabelo atrás da orelha.

A vontade de beijar e tocar Aurora tem crescido todas as vezes que nos vemos. Ainda não faz
sentido para mim, normalmente, eu passaria bem longe da possibilidade de me aproximar desta
forma de alguém.

— Senhor Daniel Lima — a secretária chama, fazendo-me desviar a atenção para a sua
direção.

— Eu! —Levanto-me e estico o braço.

— Já pode entrar, a doutora está esperando o senhor.

Percebo que ela está olhando com um semblante esquisito para a Aurora, mas estou tão
nervoso, que nem consigo pensar muito no assunto. Mais cedo, tinha reparado que outros pacientes
também a observavam de uma forma diferente.

Talvez seja pela roupa, é bem discrepante do estilo de quem frequenta aqui. Não devem estar
acostumados com blusão e calça de moletom. Para mim, Aurora é linda exatamente assim.

— Boa sorte na consulta, Dan. — Ela se levanta também e busca meu olhar, que está um
pouco perdido no momento. Meu estômago está embrulhando de tanta ansiedade. — Qualquer coisa,
eu estarei aqui do lado de fora, esperando.

Aceno em concordância e caminho apressado até a porta aberta que a recepcionista aponta.
Entro esfregando novamente a mão na calça jeans e observando a sala espaçosa, com móveis e
parede em tons claros.

— Boa tarde, Daniel. Por favor, pode se sentar ali no sofá — a psiquiatra pede, sem me
encarar, enquanto mexe no seu computador.

Sigo até o local e obedeço, respirando fundo para controlar a ansiedade. Não quero estragar
este momento com nervosismo em excesso. Depois do que parecem longos minutos, a mulher se
levanta e vem se sentar na poltrona à minha frente. Cutuco o nariz e tento disfarçar que estou
incomodado com o cheiro forte do seu perfume.

— Seja bem-vindo! Eu sou a doutora Alice. — Ela estica a mão e eu a cumprimento de forma
rápida, para não estender o toque. — O que te levou a me procurar, Daniel?

— Eu descobri recentemente, por meio da minha amiga Aurora, que posso ser autista. Eu vim
porque quero fazer os testes pra saber se estou mesmo no espectro.

— Quantos anos você tem, Daniel? — O olhar dela é tão penetrante que faz meu estômago
embrulhar mais forte.

— Tenho 24 — respondo, desviando a atenção para o tapete felpudo do chão.

— O que você faz?


— Sou doutorando em Astrofísica, trabalho no departamento da USP como auxiliar do
professor João Estácio.

— Doutorando com 24? — Sua voz se altera, parece surpresa. — Caramba, é um feito e tanto
para a sua idade. Você gosta do que faz?

— Amo! — Solto meu peso no sofá e relaxo pela primeira vez desde que entrei na sala. —
Não me vejo em outra profissão. Quero muito me formar e ter a chance de trabalhar na Nasa um dia,
com meu amigo Saulo.

— Parabéns, será uma conquista memorável. Você tem dificuldades no seu trabalho?

— Não.

— Para estudar, tem alguma dificuldade?

— Não.

— Consegue dormir bem? — A sua voz vai ficando mais firme e rápida a cada indagação. —
Tem problemas pra se concentrar?

— Não, eu durmo muito bem e, em geral, sou bastante concentrado nos meus afazeres.
Principalmente, lá do departamento.

— Tem problemas com a sua família? — O seu jeito incisivo e o cheiro do seu perfume estão
começando a me sufocar.

Sinto-me intimidado, como se participasse de uma sabatina. O professor João sempre


pressionava a gente nas aulas, mas era de um jeito acolhedor, aqui não percebo isso.

— É... eu... eu me sinto deslocado às vezes.

— É normal se sentir descolado. — Posso sentir as gotículas de suor se formarem na minha


mão. — Todo mundo sente que não se encaixa uma hora ou outra na vida.

A mulher loira, que deve ter uns 50 anos, continua fazendo várias perguntas curtas e diretas
que vão me deixando aflito em um nível desesperador. O cheiro do perfume invadiu de tal forma meu
sistema olfativo que mal consigo me concentrar nas respostas.

Não estou me sentindo confortável. Seu olhar parece queimar minha pele, as suas perguntas
denotam ser de propósito para desqualificar o que eu disse, a sua voz me irrita...

Discretamente, coloco os dedos na lateral da perna e conto números primos na cabeça.

— Vou ser bem sincera, Daniel, hoje em dia as pessoas veem as coisas na internet e começam
a achar várias doenças. — Ela cruza as pernas na poltrona e se inclina para frente para me olhar
melhor. Quero ir embora. — Virou moda, como se fosse bonito ter autismo, ter TDAH, TOC... Você
viveu 24 anos superbem, está fazendo doutorado. Não vejo como um rótulo de autista vai te ajudar.
Não precisa de remédio para dormir, nem para concentração. O que você espera com um possível
diagnóstico?

Um rótulo de autista? Como assim? Rótulo foi o que eu vivi até agora, sendo tachado de
adjetivos que não me representam. Eu quero me entender melhor para que os outros também possam
me compreender. Quero ser respeitado, quero me sentir em paz para dizer que não quero comer um
pedaço de bolo, ou vestir uma blusa de lã.

É isso que eu quero! Minha mente grita a resposta, mas a minha boca não diz uma palavra.

23, 29, 31, 37, 41, 43, 47.

Quero ir embora.

Quero ir embora!

— Você ouviu minha pergunta? — Mais inclinação do seu corpo, mais cheiro ruim. — Queria
saber o que você espera com um possível diagnóstico.

Esfrego o nariz com força, para arrancar o aroma adocicado que se impregnou ali, e inspiro
fundo para não deixar a bolota se formar na minha garganta. Quando tenho crise de ansiedade e chego
a esse ponto, é difícil parar.

— Daniel, está tudo bem? — Ela se levanta e vem até o sofá, esticando seu braço na direção
do meu ombro.

— Eu quero ir embora. Quero sair. — Levanto-me também e afasto-me o máximo que consigo
das suas mãos.

— Calma! Inspira, expira. — A médica levanta as mãos e tenta se aproximar, no entanto, vou
ainda mais longe dela. — Senta aqui de novo, vamos conversar.

— Eu quero ir embora — repito e foco na porta bem ao meu lado esquerdo. — Agora!

Sem dar margem para me convencer a ficar, apresso-me até a porta e a destranco. Saio
correndo sem enxergar ninguém à minha frente.

— Daniel! — Ouço-a falar mais alto e não paro de andar rápido. — Daniel!

— Daniel! — Este é um tom diferente, um tom suave. Chego ao elevador e pressiono com
força o botão, aliviado quando abre de imediato. — Dan! Espera, Dan.
A voz me parece familiar, contudo, estou tão transtornado que só quero sair daqui. Quero sair.
Quero sair. Passo a mão no cabelo e encosto minha testa no alumínio gelado do elevador.

53, 59, 61, 67, 71, 73, 79, 83, 89 e 97.

O elevador chega ao térreo e eu corro para a porta giratória da entrada do prédio. Não
consigo me acalmar, meu coração está muito acelerado. Eu tinha me acostumado a aceleração gostosa
que a Aurora traz, esse tipo não é bom. É angustiante.

Aurora.

Paro na calçada, recordando que vim com ela e a deixei sozinha lá em cima. Merda! Giro o
corpo para retornar e esbarro com tudo em uma pessoa mais baixa do que eu. Cabelo castanho e
preso em um rabo de cavalo.

É a olhos coloridos! Fixo meu foco nela quando levanta a cabeça e me encara, arfante.

— Me desculpa, agora que me toquei que saí sem você. Desculpa! — peço, antes que fale
algo.

Estamos tão próximos, que posso ouvir com precisão sua respiração pesada, acho que veio
correndo atrás de mim.

— Não tem nada pra desculpar, Dan. Fiquei muito preocupada. O que houve?

— Foi... foi... — Esfrego a mão suada na calçada jeans tantas vezes seguidas, que seria até
capaz de rasgá-la.

— Não precisa me falar agora, gaste sua energia pra recuperar o fôlego, tá? — Sinto sua mão
encostar na minha e congelo completamente no lugar.

Aurora está... a olhos coloridos tocou... Ela tocou na minha pele!

Não me incomoda, nenhum pouco. É bom, é quente. Uma descarga de adrenalina parece se
reunir na mão que ela segura, para impedir que eu continue esfregando com força, e em seguida se
espalha na velocidade da luz por cada terminação nervosa do meu corpo.

As batidas ansiosas dão lugar às batidas da Aurora, aquelas que só ela é capaz de gerar em
mim.

Tum, tum, tum, tum, tum. Se a olhos coloridos parar de falar “respira, Dan” é capaz de ouvir o
som alto e desgovernado que provoca.

Sem conseguir conter o impulso, abaixo o olhar e encaro sua mão pequena em cima da minha.
No mesmo instante que faço isso, Aurora dá um passo para trás e afasta seu calor acolhedor da minha
pele.

— Nossa, perdão, Dan — desculpa-se, dando mais um passo para trás. — Agora foi eu que
nem me liguei, eu não pensei, não tinha...

— Está tudo bem — afirmo, sincero. — Eu me acalmei agora.

Você me acalmou! Seu toque, sua energia.

As palavras se formam na minha boca, mas não consigo dizê-las em voz alta. Assim como
fiquei com a médica, eu ainda tenho medo da olhos coloridos.

Tenho pavor de fazer algo que a afaste de mim. Tenho certeza de que, se isso acontecer, será
pior do que qualquer outra situação que eu vivi até aqui.
CAPÍTULO 26

Encerro a conversa com a dona Viviane no WhatsApp e já procuro o número da minha mãe
para falar com ela antes de me trocar para o treino da tarde. Tenho mantido contato diário,
atualizando as notícias, para que possa ficar um pouco mais calma em Brasília. Nós duas estamos
muito preocupadas com a primeira experiência do Daniel no médico. Coitado, ontem ele saiu tão
transtornado do consultório, que só conseguiu me contar o que houve no final da noite.

Que raiva daquela mulher!

Jamais passou pela minha cabeça que isso poderia acontecer, agora estou com medo do
receio dele o bloquear para novas tentativas. A sua empolgação inicial para os testes diminuiu
drasticamente.

Fiquei tão apreensiva com seu estado de ansiedade, que até cheguei a tomar a iniciativa de
tocá-lo. Foi instintivo, quando dei por mim a minha mão estava em cima da dele. Faz tanto tempo que
não me aproximo desta forma de um garoto, que isso deve explicar o formigamento na pele no
instante que o cérebro raciocinou a ação.

Sigo até uma parede neutra do meu quarto improvisado — afinal, eu preciso manter a pose de
estudante e estagiária — e faço a ligação. Dona Maria das Graças não gosta que ligue de áudio, toda
vez tem que ser de vídeo. Não toca nem três vezes.

— Aurora, minha filha, aconteceu alguma coisa? — pergunta, preocupada, assim que atende.

— Tá tudo certo, mãe. Desculpa ligar assim do nada, queria te perguntar uma coisa.

— Deu um cadin de susto aqui! — Ela sorri e coloca a mão no peito. — Você pode ligar
quando quiser. Eu amo te ver! É que não estou acostumada, geralmente, nos falamos só aos domingos.

Morro de saudade dos três, queria poder falar todos os dias. Porém minha consciência não
aguenta enganá-los tanto assim. Os domingos já são uma tortura para manter a história que eu criei.
Por isso, evito ao máximo estender a dor que a farsa causa em mim.

Resolvi ligar hoje porque lembrei que minha mãe participa de um grupo nacional no
Facebook com autistas e seus familiares. Quero ver se podem nos ajudar com referências de médicos
focados em autismo aqui em São Paulo. Não podemos correr o risco de ter uma nova experiência
ruim.

— A senhora tá bem? Melhor das costas? E o pai e a Sara?

— Estamos bem, sim, minha filha. As minhas costas só na base de remédio ultimamente. Sua
irmã está na aula e seu pai lá na fazenda. O dono tá elogiando bastante, acho que pode continuar
pegando ele para cobrir férias de outros funcionários também.

— Que bom, mãe! — Sorrio, mas meu cérebro faz questão de lembrar que só está nessa
situação por minha causa. Agora não, Aurora! Não vai por esse caminho de novo. — Eu liguei
porque tenho um amigo que, acredito, esteja no espectro. Depois que contei minhas suspeitas, ele
decidiu ir no médico, só que a experiência foi péssima. A mulher pressionou o garoto com perguntas
e acionou uma crise de ansiedade nele.

— Nossa, deve ter sido custoso para o rapaz! — Minha mãe deixa o pano de prato que está
segurando em cima da pia e se senta na mesa da cozinha para conversar. — Lá naquele grupo que eu
participo, já li muitos relatos sobre isso, principalmente, quando são adultos funcionais. Alguns
médicos acham que é modismo, que a pessoa vê testes na internet e fica neurótica que tem. Daí
pressiona nas perguntas.

— Não sabia disso, se eu soubesse tinha pedido referência pra senhora, antes dele ir. Ontem
Daniel ficou transtornado, deu até um aperto no peito.

— O melhor mesmo é procurar médicos qualificados nesta área, a doutora Vilma estava me
contando esses dias que demorou seis anos pra realmente se especializar. Há centenas de bons
profissionais, ele só precisa saber procurar um que atenda às suas necessidades.

— Sim, claro! — concordo, encostando na parede para relaxar a perna manca que está
doendo desde o treino da manhã. — Eu não iria generalizar jamais, talvez a própria médica de ontem
seja muito boa em outra questão. Só não teve o mínimo tato com uma pessoa que disse de cara que
poderia ser autista.

Eu fiquei com tanta raiva do jeito que ela tratou o Dan, que a minha vontade era pegar o
ônibus hoje cedinho e ir lá falar umas verdades na sua cara.

— Se você quiser, posso perguntar lá no grupo referência de profissionais especializados em


adultos aí.

— Era isso que eu ia pedir, vai ajudar muito! Se possível, tenta ver se sabem próximo do
bairro dele. Vou deixar o nome no chat certinho quando desligar.

— Esse Daniel aí é amigo mesmo ou você tá enrabichada? — dona Maria das Graças
questiona, dando aquele sorrisinho de mãe cúpida.

— Não, não estou envolvida desse jeito com ele, não, mãe! — respondo, de prontidão. — É
só amizade mesmo.

Se ela soubesse como foi difícil aceitar o nível de amigo... Tento parecer forte e decidida,
luto para mostrar aos meus pais em cada conversa dominical que o passado não interfere em nada o
seguimento da minha vida. Para minha mãe, eu sou de novo uma garota normal.

Como eu queria que fosse a realidade!

— Em três anos, nunca vi você tão... é... nem sei achar a palavra. Esse Daniel é o primeiro
garoto que você menciona desde que se mudou. — Ela sorri mais uma vez e me encara com os olhos
brilhantes. — Você parece mais feliz agora do que uns dois meses atrás. Tinha até comentado com o
seu pai, seu rosto anda mais leve.

Eu já tinha me dado conta, mas se está transparecendo para outras pessoas, deve realmente
estar me fazendo bem ter um propósito com o Noberto e a competição. Ter contato com Mel e Dan.
Apesar de tudo, também sinto que o fardo anda mais suportável.

— Eu... eu preciso ir agora. Te liguei rapidinho no intervalo aqui — mudo de assunto para
não estender a conversa sobre os meus sentimentos.

— Nem todos os homens são iguais, Aurora — ela crava, antes que eu consiga desligar o
telefone. Abaixo a cabeça e evito encará-la. Um nó automático se forma na minha garganta. — Não
feche seu coração pra sempre, você merece ser amada de verdade. Talvez esse Daniel tenha entrado
na sua vida pra te mostrar isso.

— Realmente preciso ir, mãe. Te amo! — Desligo o aparelho quando ela responde “também
te amo” e me sento na cama ao notar a perna dolorida ficar bamba.

Sem conseguir controlar o pensamento, as batidas do meu coração aceleram ao me lembrar


do toque na sua mão ontem, do seu entusiasmo na casa da árvore falando sobre o Universo, do seu
sorriso gentil...

Assim que percebo o que estou fazendo, balanço a cabeça em negativa várias vezes. Não...
não pode ser. Não quero estragar a amizade que demorei tanto a aceitar.

Não confunda minha cabeça, mãe!

Deito-me na cama e coloco o saco de gelo que o Noberto me deu no local que está doendo,
com o auxílio de uma toalha. Esta semana comecei a focar em como poderei me defender de golpes
na perna — algo que com certeza vão explorar devido à minha situação.

O Pablo me deu uma chave de perna agora no treino da noite, que quase me fez ver estrelas e
piorou o incômodo que já estava sentindo.

— Aurora, Aurora! Posso ir na janela? — Uma batida na madeira e a voz agitada do Daniel
me fazem olhar para a direção do quintal.

Puxo a colcha da cama para tapar minha perna desnuda e ajeito o saco de gelo para continuar
relaxando meu músculo. Eu acho muito fofo que ele sempre bate na madeira quando vem aqui. É
respeitoso da parte dele.

— Pode, agora pode — aviso e seu rosto logo desponta na moldura da janela. — O que foi?
Está com crise de ansiedade de novo?

— Encontrei com a Mel aqui no corredor, ela disse que você se machucou feio hoje no treino,
está com a perna doendo. — Seu semblante não parece nada calmo, a respiração está agitada. —
Você está bem? Foi culpa minha, porque estou te distraindo, como o tio Noberto pediu pra não fazer?

— Ei, calma, respira! Eu estou bem. Foi só uma distensão maior no músculo da perna que já
é machucada. — A Mel deve ter exagerado quando contou. A pequena estava assistindo ao treino
quando cai e chegou a entrar no ringue, de tão nervosa que ficou. — E claro que não é culpa sua, foi
algo normal do treino.

— Tem... tem certeza? Está... está bem, mesmo?

Se algo desestabiliza minha irmã Sara, a ponto de gerar uma crise de ansiedade grave,
qualquer pequena coisa que acontece em seguida a deixa fragilizada de novo. Parece que os
problemas se amplificam de tamanho na cabecinha dela, como se tivesse algo fora do eixo.

Seguro firme a colcha em volta do meu corpo e tento me levantar para ir até a janela acalmá-
lo melhor, mas o movimento traz uma nova fisgada no nervo.

— Entra aqui, Dan — chamo, assim que volto a me encostar na cabeceira.

— Aí? Aí dentro? — Ele nunca tinha entrado antes, no máximo, fica na janela.

A frase que minha mãe disse mais cedo volta a rondar minha cabeça, mas não dou espaço
para que ganhe força. Não tem nada a ver. Eu o aceitei como amigo, confio que não me fará nada de
mal, por isso, é normal entrar no meu quarto.

— Sim, vem aqui pra gente conversar.

Sem novos questionamentos, Daniel logo pula e para na minha frente, estático. Aponto para se
sentar na cama e ele fica tão na ponta, que tenho a sensação de que pode cair a qualquer momento.
— Seu tio Noberto está me ensinando técnicas de defesa ao atacarem meu ponto fraco. Tenho
que aprender a me desviar desses golpes, entende? — Olho na direção do saco de gelo e ele faz o
mesmo. — Já estou cuidando disso com gelo, mais tarde farei aplicação de bolsa de água quente para
relaxar. Você encontrou com a Mel no corredor, porque ela foi lá buscar meu jantar. Sua tia está
fazendo uma sopa antioxidante com proteína que vai ajudar ainda mais.

— Entendi — responde, mas seu rosto continua cabisbaixo. — Você vai ficar treinando isso
muitas vezes, até o evento?

— Vamos intercalar, mas será preciso me especializar na defesa.

— Falta muito para a competição, me dói no peito saber que ficará machucada.

Ajeito minha postura na cama e desvio o olhar para o lençol a fim de disfarçar a reação que
sua declaração despretensiosa causou no meu coração.

— É... nós... o seu tio disse que vai contratar uma massagista profissional pra acompanhar
essa reta final, a fim de evitar dores fortes.

— Nossa, que bom, fico mais tranquilo de saber isso.

— Ah, eu tenho uma boa notícia! — anuncio, para tirar o foco da conversa de mim. — Falei
com minha mãe de tarde e ela conseguiu recomendações de médicos especializados aqui em São
Paulo, em um grupo do Facebook que participa. Teve umas dez indicações de profissionais aqui
perto, já mandei mensagem pra Viviane ver quando estiver em casa e entrar em contato.

— Será... será que vai ser bom desta vez? Não quero... não quero sentir...

— Vai ser melhor desta vez, prometo. — Noto a tempo o movimento involuntário da minha
mão esquerda indo procurar a sua. Abaixo-a novamente e aliso a coberta que está me cobrindo. —
Esses médicos são especializados em autismo, sabem conduzir melhor a consulta.

— Eu estou com medo.

— Ter medo é normal, Dan. Só não desista, tá bom? Da próxima vez, se quiser, eu posso até
entrar na consulta com você.

— Você entra mesmo? Entra comigo? — confirma, oferecendo-me seu sorriso bonito pela
primeira vez desde que chegou.

— Se você se sentir melhor, eu posso entrar, sim. Você que decide.

— Já está decidido, eu quero muito. Se estiver por perto, ficarei mais confiante, olhos
coloridos.
Olhos coloridos.

O apelido sai de forma tão doce da sua boca, que me faz fitá-lo por um instante. O mesmo
instante que ele decide fazer o mesmo. As batidas ecoam. É imediato, forte e ritmado o som que
reverbera pelo meu corpo.

Meu Deus, o que está acontecendo?

Acho que definitivamente minha mãe colocou ideias inapropriadas na minha mente sobre
Dan. Amigos não deveriam reagir assim.
CAPÍTULO 27

Apanho a minha bandeja e entro na fila sozinho para pegar o almoço. Saulo e eu sempre
deixamos para vir depois do horário de pico, a fim de evitar aglomeração e barulho em excesso. O
restaurante universitário está longe de ter a melhor comida que já experimentei, mas pelo menos os
preços são acessíveis e eu evito gastar à toa.

Assim que chega a minha vez, vou no de sempre: uma concha de feijão, duas colheres de
arroz, um filé de frango grelhado, salada de tomate e um copo de suco de laranja. Não gosto da
textura das folhas verdes, é esquisito mastigá-las. Muito menos arrisco-me nessas opções diferentes
com aparência duvidosa. Peso meu prato, pago e sigo até o cantinho iluminado do refeitório que
oferece uma visão bonita do jardim.

Como todos os tomates primeiro, bem devagar, e olho para os lados procurando meu amigo.
Ele precisou atender a um telefonema antes de a gente entrar e disse que já vinha. Quando pego o
copo de suco para enrolar mais, avisto-o caminhando esbaforido na minha direção.

— Daniel, eu sei que você odeia mudanças de planos, mas eu vou precisar que você me
socorra — diz, puxando uma cadeira de qualquer jeito para se sentar ao meu lado.

— Eu odeio muito, Saulo. Você não tem noção do quanto— adianto, deixando o copo na
mesa.

Nem ouvi ainda o assunto e já perdi a fome.

— Eu sei que sim, não pediria se não fosse importante. Eu vou precisar que você me cubra
amanhã na atividade em São Francisco Xavier, porque...

— Não, nem pensar! — Levanto-me de repente, passando a mão no cabelo. Alguns poucos
alunos que também estão almoçando neste horário nos olham de esguelha, curiosos com a
movimentação. — Eu não posso, Saulo. Eu prometi para a Aurora que ia ver a chuva de meteoros na
árvore do meu quintal. Não posso. Não posso.

— A minha tia Soraia, que mora no Rio, acabou de sofrer um acidente de carro e está
internada na UTI. — Ele também se levanta e procura meu olhar perdido. — Apesar de eu não ter
uma ligação muito grande com ela, minha mãe está desesperada. Quer pegar o carro e ir sozinha até
lá. Não tenho como deixá-la fazer isso, aquela mulher é tudo para mim.
Esfrego o peito, sentindo uma ardência incômoda se espalhar. É só ele e sua mãe, não há
ninguém que possa ajudar nesta tarefa. Como também não há nenhum outro auxiliar do professor João
para supervisionar a viagem.

Aurora.

Eu tinha prometido, ela estava tão animada para ver a chuva de meteoros.

Tum, tum, tum, tum... as batidas aumentam, mas não do jeito bom. Inspiro fundo e fito o jardim
atrás de mim para tentar ficar calmo. A angústia vai tomando meu peito, porque eu sei que não posso
falar não ao meu amigo.

Não por um motivo como esse. Eu também faria qualquer coisa pela minha mãe.

— Tudo bem. — A frase curta sai com dificuldade pela garganta fechada.

— Obrigado, Daniel, e me desculpa por avisar de última hora. Foi um imprevisto, mesmo. —
Ele dá um tapa rápido nos meus ombros para corroborar seu agradecimento. — Não vou nem
almoçar, irei procurar o professor João e pedir pra me liberar agora à tarde e amanhã. Daí aproveito
o fim de semana e fico lá.

— Tá — respondo, sentando-me antes que o sufocamento deixe minhas pernas bambas.

Eu tenho vontade de gritar, de correr para soltar a adrenalina presa em mim, porém, não
posso fazer nada disso na frente do meu amigo. O seu motivo é justo, eu queria tanto que não fosse.

Aurora e a chuva de meteoros...

Observo-o saindo apressado e passo meu horário de almoço inteiro sentado sozinho, com o
corpo virado para o lado a fim de enxergar o jardim. Não toco mais no almoço, perdi totalmente a
fome.

Tum, tum, tum. Inspiro, expiro. Seco a mão suada na calça jeans.

Eu queria... tanto... ver a chuva de meteoros com ela...

Olho para o relógio na parede e desisto de tentar me concentrar na imagem brilhante do


buraco negro na tela do computador. Faz duas horas que voltei do almoço e não consegui fazer
praticamente nada de útil. Nada! É impossível focar nas partículas que traçam as linhas do seu
campo magnético quando a minha mente está um caos.

Meu coração ainda está agitado, e eu me sinto ao mesmo tempo triste por causa do momento
que não terei com Aurora e culpado por, no fundo, querer que Saulo não tivesse me dito nada hoje.
Eu sei que não devia... não devia ter essas sensações diante de algo sério que aconteceu com alguém
da sua família. Mas não consigo evitar.

Levanto-me da cadeira e começo a andar em círculos na sala vazia.

2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, 29, 31, 37...

Os dedos na lateral do corpo e os números primos não estão conseguindo me deixar calmo.

Desde o episódio com a psiquiatra, eu tenho sentido que meu corpo anda mais agitado do que
o normal. Eu demoro para conseguir me centrar de novo.

— Daniel, os trabalhos da turma do quarto ano estão ok? — Paro de caminhar ao som da voz
do professor João.

— Sim, eu deixei no seu armário, ontem mesmo — respondo, observando-o ir até o local
mencionado.

— Ótimo! Conseguiu marcar um novo médico?

— Só pra segunda-feira, mas vai ser à noite, fora do horário de expediente. Essa é
especialista em autismo.

— Que bom, espero que dê certo agora. Não se preocupe com os horários, quando tiver que
ir, vá tranquilo.

— Obrigado.

Contei para ele e ao meu amigo e ambos reagiram muito bem a notícia. Assim que mencionei,
o professor disse que não conhece muito o assunto, mas pelo pouco que já leu, realmente parece que
estou no espectro pelos sintomas.

— Saulo te passou certinho as questões da viagem de amanhã? — Ele fecha o armário e


segura a pasta com os trabalhos corrigidos.

— Sim, ele me mandou um e-mail.

— Está tudo bem? — pergunta, fitando o movimento dos meus dedos. Só então reparo que
comecei a contar inconscientemente mais uma vez. — Você fica assim quando está ansioso.
— É que eu já tinha planos para amanhã, com a minha amiga Aurora. — Tiro a mão da lateral
do corpo e passo no cabelo. — Uma amiga que eu queria que fosse como a professora Mércia para
você, mas infelizmente ainda não nos beijamos. Acho que isso nunca vai acontecer. Enfim... estou me
sentindo culpado por estar chateado com a situação do Saulo me atrapalhar a assistir à chuva de
meteoros com ela. Eu não sou uma pessoa ruim por pensar isso, mesmo que seja involuntário, né?

— Claro que não. É normal a gente ficar chateado quando situações adversas mudam os
nossos planos. Alguns sentem mais fortes do que outros, mas é normal. — Ele ri e se aproxima de
mim. —Será que temos mais um apaixonado nesta sala?

— Apaixonado? Como você sabe?

Eu já li sobre paixão, mas, para ser sincero, nunca entendi muito bem o que é esse sentimento.

— Suas pupilas ficaram dilatadas quando mencionou essa Aurora, sua voz também ficou
muito mais animada e rápida. Cientificamente falando, que é o ramo que entendemos melhor, a paixão
mexe com vários hormônios do nosso organismo. A dopamina, por exemplo, é descarregada em
excesso, trazendo uma sensação de felicidade intensa e anestesiante. — Lembro-me de como me senti
desde a primeira vez que conheci a olhos coloridos. Meu coração ficou tão agitado, que pensei até
estar com algum problema cardíaco. — A adrenalina e o cortisol, que preparam o organismo para
situações de risco, aumentam também, e a serotonina, que tem efeito calmante, diminui em 40%. Por
isso, quando estamos apaixonados, ficamos agitados, com dificuldade em nos concentrar, e
alimentamos certa compulsão em relação ao outro.

— Nossa, então, com certeza eu estou apaixonado. — Tudo que ele disse eu vivo, quando
estou perto ou apenas pela mera lembrança dela. — Já perguntei para o Saulo o dia que vimos você e
a professora Mércia no estacionamento, mas ele não soube responder direito. Como eu faço para
mudar de amigo para outra coisa? Se eu falar que estou apaixonado, não pode assustá-la?

— As duas perguntas só têm uma resposta: você precisa conversar, abrir seu coração. Claro
que vai existir o risco, mas o diálogo é a única forma de descobrir se há chance de mudar o status do
relacionamento. — Esfrego o peito, notando o aperto vir junto com o medo. — Eu e a Mércia
tivemos a oportunidade de ficarmos juntos em 1970, mas tivemos medo do que sentíamos e deixamos
o tempo passar.

E se a olhos coloridos disser que eu confundi tudo? E se ela não quiser mais me ver? E se
não entrar comigo no consultório? Depois que a gente diz que está apaixonado por alguém, dá para
voltar a ser amigo?

São muitas dúvidas... não faço ideia de como agir. Isso é tão difícil!

— Chama a Aurora pra ir com você amanhã em São Francisco Xavier — ele sugere, diante
do meu silêncio. — A van está com vaga, o evento é para a comunidade mesmo. Deixarei
autorizado. Com certeza, o céu de lá é infinitamente mais bonito que no seu quintal.
Sem sombra de dúvidas, a olhos coloridos iria amar a experiência de observação em um
local adequado. Mas tem a questão dos treinos, vamos no início da tarde. Ela teria que faltar dois
turnos.

— Não sei se ela poderia ir, vamos sair à tarde e chegar de madrugada...

— Convide, oras! O não você já tem, precisa tentar. Nada como uma ajudinha das estrelas,
vai que vocês se entendam.

— Vou tentar, obrigado, professor.

Quase não o espero responder “de nada”. Apanho meu celular dentro da mochila e saio até a
área verde do departamento. Por sorte, esta semana a Aurora me passou seu contato por causa das
crises de ansiedade. Ela disse que, se eu passasse mal durante à noite, poderia ligar.

— Aurora, é o Dan. Você pode falar agora? — pergunto, afoito, assim que atende.

Mesmo sabendo que isso é impossível, sinto como se meu coração estivesse na garganta, de
tão rápido que está batendo.

— Posso falar, sim. Aconteceu alguma coisa? Você está bem?

— Eu vou ficar bem se você disser que pode ir amanhã comigo pra São Francisco Xavier.
Lembra que te falei da viagem dos alunos? O Saulo teve um problema com a família e o professor
João autorizou sua presença. A chuva de meteoros de lá será incrível, muito mais linda que da nossa
árvore. Por favor, diga que pode. Eu estou me sentindo péssimo por cancelar nosso compromisso em
cima da hora, não foi culpa minha. Também não foi culpa do Saulo, mas...

— Respira, Dan. — Não posso ver, mas posso sentir seu sorriso na linha. Inspiro fundo,
tentando focar na conversa. — Você está falando igual a Six.

— Quem? — Ajeito o telefone no ouvido e me encosto em uma árvore próxima.

— É uma personagem do seriado Blossom, que passava no SBT, nos anos 90. Minha mãe
gostava de assistir e tem episódios gravados em casa. A amiga da protagonista fala muito rápido.

— Desculpa, eu nem percebi.

— Não precisa se desculpar de nada, foi só um comentário pra você desacelerar. Que horas
vai ser a viagem?

— Temos que sair daqui uma hora da tarde, porque os alunos darão uma palestra na escola
local. Eu sei que vai ser difícil por causa dos treinos. São dois em jogo, e a competição está
chegando. Mas eu queria tanto que você pudesse ir, o professor João disse que deveria tentar, pois o
“não” eu já tinha...
— Olha a Six de novo! — O seu sorriso mais alto faz meu coração tocar a batida de Aurora,
ao invés da aceleração típica de quando a ansiedade vem. Eu gosto desse, gosto muito desse. — Vou
falar com o seu tio, eu digo que precisarei visitar a Pilar de novo. Ele nunca pergunta muito, sabe que
levo a sério os treinos.

— Você vai, então? Vai com a gente? Posso confirmar seu nome na lista?

— Vou, não posso perder essa chuva de meteoros, por nada!

— Obrigado, você vai amar, olhos coloridos. Eu prometo!

Desligo o telefone e volto para a sala com vontade de pular, cantar, contar para todo mundo
que passa por mim no corredor que Aurora vai na viagem com a gente. É realmente uma sensação de
felicidade intensa e anestesiante.

Não sei se vai caber apenas no meu peito por muito tempo.

Talvez... talvez eu realmente tenha que criar coragem e falar. Não quero esperar anos, como
aconteceu com o professor João, para beijar Aurora e descobrir se podemos ser mais que amigos.
CAPÍTULO 28

Mexo as mãos na frente do corpo e observo com certo pesar a entrada e saída de alunos do
campus. Com a mochila que carrego nas costas, poderia facilmente me passar por uma estudante.
Uma sem muito estilo, é verdade — por causa da camiseta larga, calça de moletom, tênis e uma blusa
amarrada na cintura —, mas passaria.

Às vezes, fico pensando como seria a minha vida se realmente estivesse na universidade, se
não houvesse desfocado do meu objetivo. Eu ia gostar deste ambiente, tenho certeza.

— Aurora, Aurora! — Dou graças a Deus ao ouvir a voz de Daniel.

Assim como não gosto de pensar no passado, evito ao máximo imaginar como poderia ter
sido o futuro. É deprimente demais refletir o preço caro que paguei por minhas escolhas.

Viro-me na sua direção e caminho ao seu encontro pelo jardim. Ele está com um sorriso tão
amplo no rosto, que é impossível ignorar e não corresponder. Quando me ligou ontem à tarde,
parecia tão agitado, que não consegui dizer não ao convite, mesmo sabendo que deveria.

A competição está bem próxima e eu já tinha me comprometido a faltar para acompanhá-lo


nas consultas. A sorte é que Noberto nunca faz perguntas demais e me libera sem reclamar.

— Oi, Dan! — Aceno e mantenho uma pequena distância.

Nós nunca nos cumprimentamos com abraços ou toques. Tanto porque eu sei que autistas
evitam o contato físico, quanto por também prezar pelo distanciamento.

— Estou tão feliz que você veio mesmo, olhos coloridos, não vai se arrepender! A vista de lá
é linda. — Eu adoro quando ele me chama desse jeito. Tenho ansiado cada vez mais por usar o
apelido carinhoso e não o meu nome. — Nosso itinerário é sair daqui uma hora em ponto, os alunos
têm palestra na escola às quatro, e depois seguimos para o Mirante da Pedra de São Francisco. Como
é um projeto de extensão, em parceria com o Inpe para a comunidade, os telescópios já estarão todos
montados e os moradores sem carro serão levados de vans. O tour com eles se encerra às dez da
noite, mas a gente sempre fica um pouquinho a mais para que possamos curtir sozinhos sem a
agitação. A previsão é chegar aqui de volta às duas da manhã e ficamos na pousada da esquina que te
falei. Já reservei dois quartos.
Não gostei dessa parte de dormir fora, mas Daniel está certo ao se preocupar com a nossa
segurança. Sem contar, que poderíamos ser pegos chegando juntos em casa de madrugada. Trouxe um
par de roupas na mochila e as peças do treino, vou de lá direto para a academia.

Passamos pela portaria e seguimos conversando sobre a viagem e nossas expectativas de


observação do céu. Tento focar apenas nele, não na imensidão de verde e gente ao meu redor, para
novamente não ficar nostálgica com o futuro que poderia ter tido. Assim que alcançamos o seu
departamento, Daniel caminha na direção de uma van branca e uma pequena aglomeração de
estudantes.

— Ahhh, não acredito! — Uma jovem bonita de cabelos cacheados mal espera a gente parar e
vem toda animada para perto do Daniel. Percebo de imediato que é a única menina entre tantos
garotos. — Pensei que tinha dito que era a vez do Saulo. Você que vai com a gente?

— O Saulo teve um problema familiar — responde alto, para que todos possam ouvir. — Irei
acompanhá-los hoje. Essa aqui é a Aurora, ela vai com a gente.

— Oi! — Aceno, tímida, para o grupo.

— Você trabalha na universidade também, Aurora? — a loira pergunta, curiosa, sem me


devolver o aceno. — É aluna? Faz qual curso?

— Eu... é... — Fico sem graça com o jeito que me avalia de cima a baixo.

Com toda certeza, Daniel tem uma fã por aqui. A sua cara de poucos amigos denuncia que
minha presença não é tão bem-vinda. Será que já ficaram? O pensamento dos dois juntos não é nem
um pouco agradável.

— Aurora é uma amiga, está indo como convidada minha e do professor João — Dan
responde, sem sequer olhar para a garota, e pega uma prancheta da sua mochila.

— Ah, tá. — Dá de ombros, me observando atentamente mais uma vez.

Depois de conferir se todos estão presentes, a turma entra na van e sou convidada para ficar
na frente, para desgosto da menina que já estava do lado da porta, esperando a oportunidade.

Daniel, mais uma vez, nem notou.

Não parece a reação de um babaca que fica com alguém e depois finge que não conhece.
Tenho certeza de que ele não é desses caras. Parece mais de uma pessoa que nem percebeu o flerte
ou não tem interesse.

Essas duas opções são bem melhores. Sei lá, não fui com a cara dela.

Dan é incrível, merece alguém especial.


U.a.u!

Boquiaberta, afasto-me do grupo que vem andando devagar pelo pequeno trecho, do
estacionamento ao mirante, e apresso meu passo até o centro do local para enxergar melhor. Eu
nunca... nunca vi algo tão fascinante em toda minha vida. O céu de Pirapora é bonito, mas não chega
nem perto disso aqui.

Isso é... isso é... não há palavras para descrever a perfeição à minha frente.

Involuntariamente, estico o braço e movo meus dedos no alto. O céu está tão estrelado, e com
tanta riqueza de luzes e cores, que dá a impressão que podemos tocar, que é possível alcançar as
estrelas.

— Eu disse que era lindo! — Daniel para ao meu lado e me oferece um sorriso amplo,
percebendo minha admiração pelo lugar.

— Lindo? Lindo não faz jus, Dan. É magnífico! Poderia usar agora todos os adjetivos
positivos do dicionário.

— Todos os adjetivos você perderia a chuva de meteoros, a lista é extensa demais. — Sorrio
também com seu comentário. Acho muito fofo ele levar tudo para o lado literal. — Fico feliz que
gostou, vai ser mais bonito ainda daqui a pouco. Preciso coordenar os alunos e organizar as filas,
mas venho assistir com você os primeiros que caírem, tá bom? Trouxe meu binóculo também, quando
o pessoal for embora, podemos caçar algumas constelações.

— Oba, esperarei ansiosa por isso! — Desamarro a blusa da cintura e visto o agasalho. O
tempo aqui em cima é bem mais frio. — Pode ir fazer seu trabalho, tranquilo, eu me viro numa boa.
Tem muito o que admirar aqui.

Passar o dia com Dan só me fez gostar mais dele. Apesar de ficar claro para mim algumas
dificuldades que enfrenta, como o barulho das crianças e o focar no olhar de cada um, amei
presenciar de pertinho como é apaixonado pelo que faz e como é inteligente.

Não é à toa que aquela estudante loira não saiu do lado dele um minuto sequer durante a
tarde. Se eu... se um dia eu estivesse pronta de novo para um relacionamento, queria que fosse com
alguém como o Daniel.

Observo-o se afastar em direção aos alunos e sigo até a um aglomerado de pedras que fica no
topo da colina. Há duas maiores, com escadas de madeira para os visitantes subirem, e outras
menores que se espalham ao redor.

Olho para baixo e sorrio sozinha ao avistar a imensidão de montanhas a se perder de vista. A
paisagem de dia deve ser tão linda quanto a noturna, mesclando o verde e o azul do céu. Que bom
que eu resolvi vir, ficaria muito arrependida se Daniel me mostrasse fotos do local depois e eu
percebesse o que eu perdi.

Sento-me em uma das pedras pequenas, que está mais distante da muvuca, e encaro os
pontinhos brilhantes na imensidão escura. Abraçando meu corpo para ajudar a esquentar, sinto como
se estivesse recarregando as minhas energias.

Eu poderia ficar com a sensação de ser ainda mais insignificante para o mundo diante de algo
tão grande, mas ao contrário, me vem uma certeza reconfortante de que há muita beleza ao meu redor.

Mesmo com tudo de ruim que há por aí, ainda existe. É só abrir os olhos e se permitir ver.

— Acabou de cair um meteoro do lado direito, Aurora. Vai começar! — Dan avisa, vindo me
buscar.

— Já? — Levanto-me, limpando a calça. — Nossa, perdi a noção do tempo aqui.

— Eu vi mesmo, estava te observando de longe, ficou cerca de uns 40 minutos olhando para o
céu.

— Quarenta? Caramba, realmente me desliguei.

Daniel sorri e aponta na direção que devo segui-lo. Tento não me concentrar no “estava te
observando de longe” e o jeito que seus lábios se ampliam para mim, no entanto, meu cérebro decide
não me obedecer.

Que merda, hein, dona Maria das Graças! Desde que enfiou coisas na minha cabeça, vez ou
outra tenho esses lapsos que não deveriam existir.

— Ô, tio! — um garotinho de cerca de dez anos chama da fila de um dos telescópios. — Não
era chuva de meteoro? Cadê? Tava imaginando um monte de riscos cortando o céu.

— Ah, sinto muito, não vai ser desta forma que está imaginando. — Dan se esforça para olhar
nos olhos do menino por alguns segundos seguidos. Percebi que sempre faz isso com os outros, como
se contasse na cabeça. — O radiante dessa chuva fica na Lira, que é uma Constelação da região
Norte do céu, por isso, ela é melhor observada nos países do Hemisfério Norte. Aqui onde estamos,
estimo ver de sete a quinze por hora.

— Sete por hora? — A cara dele de decepção me faz rir. — Nossa, é muito pouco.
— Pouco nada, Zezinho. É tão lindo, queria ver todo dia. — Uma menina, que deve ter a
mesma idade, dá um esbarrão no ombro dele. — Por que não aparece sempre?

— Em certas épocas do ano, a Terra atravessa uma área do céu que possui uma quantidade
maior de detritos deixados por cometas ou asteroides. Quando isso ocorre, vários desses fragmentos
atingem a atmosfera ao mesmo tempo, formando as chuvas de meteoros. — Estou adorando aprender
junto com as crianças. Já foi uma aula e tanto com a palestra que deram sobre o espaço de tarde. —
A Líridas é a mais antiga chuva de meteoros conhecida, sendo relatada há mais de 2700 anos pelos
chineses. Ela ocorre quando a Terra atravessa a nuvem de detritos deixada pelo Cometa Thatcher, o
que ocorre anualmente por volta do mês de abril.

— Apesar de você dizer que são meteoros, eu gosto de pensar que são estrelas cadentes,
como a minha vovó ensinou — a garotinha acrescenta, nos observando como se contasse um segredo.
— Dá pra gente fazer um pedido!

— Isso é uma crença popular, não é possível — Dan explica, sem perceber o rostinho triste
que a menina fica. — Dá a impressão de ser uma estrela por causa do rastro luminoso, mas isso
acontece por causa da alta velocidade que os fragmentos alcançam a atmosfera terrestre. Em atrito
com os gases, a rocha atinge altas temperaturas e incendeia. Por falar nele, olha lá!

Todos olhamos para onde o dedo do Daniel aponta. Dois meteoros iluminam o céu ao mesmo
tempo, fazendo meu coração saltar no peito.

— Que lindo, meu Deus! Vamos fazer um pedido mesmo assim? Ele é o cientista aqui, mas eu
não sou. — Inclino-me, tocando no ombro da menina e oferecendo um sorriso cúmplice. — Eu
acredito que funciona, mesmo que seja um meteoro e não uma estrela!

— Vamos, vamos, moça dos olhos bonitos! — A garotinha pula na grama aparada, juntando as
mãos na frente do corpo magro.

— Não vai...

— Daniel, você pode me ajudar aqui, por favor — a loira intrometida interrompe a sua fala e
o nosso momento.

Aposto que nem precisa de ajuda nada, ela não aguenta é nos ver perto um do outro por muito
tempo.

— Affff, essa menina gruda igual chiclete.

— Você quer chiclete? — Arregalo os olhos ao perceber que posso ter dito meu pensamento
em voz alta. Graças a Deus ninguém me ouviu direito. — Eu não tenho, porque não gosto, mas acho
que vende naquela galeria da entrada do mirante.

— Tá, eu vou lá ver depois. Pode ir fazer as suas coisas.


Quando Dan se afasta, eu disfarço e entro na fila do telescópio. Entre observar a olho nu e
com a ajuda do aparelho este céu incrível, mais duas horas se passam sem nem me dar conta. As
pessoas estão se dispersando e entrando nas vans para voltar para as suas casas.

— Temos alguns minutinhos antes da nossa van sair, espero poder fazer minha observação em
paz com você, sem ser interrompido.

— Naquela pedra que eu estava antes, a vista é incrível e mais afastada. — Olho para os
alunos subindo na pedra maior a fim de tirar fotos e aponto na direção oposta.

— Vamos lá então, o pessoal do Inpe comprou lanches para nós, mas eu prefiro comer no
carro para aproveitar. E você?

— Eu também, com certeza. Nem estou com fome.

Comi tanto no almoço que estou satisfeita até agora. Este mês, o Noberto me pagou uma
quantia a mais, porque comentei sem querer que enviava todo o dinheiro aos meus pais. Confesso que
foi bem-vindo, é ruim depender 100% dos outros para tudo. Ficaria muito sem graça de aceitar
dinheiro do Daniel.

Caminhamos lado a lado até o local que indiquei e nos sentamos de frente para o cume da
colina. Mesmo que ainda dê para ouvir o burburinho ao fundo dos alunos e do restante dos
moradores indo embora, é bem baixo.

— Obrigada por me convidar — puxo assunto, fitando seus olhos por um breve instante, antes
de focar nas estrelas. — Sem sombras de dúvidas, foi a melhor experiência que já vivi.

— Eu que tenho que agradecer por você ter vindo. Todo ano tem, mas eu nunca fico animado
por causa do barulho excessivo da criançada. Desta vez isso nem me importou, de tão feliz que eu
estava com sua presença.

Engulo em seco e noto minha respiração falhar. Dan está me desarmando demais, e o pior de
tudo é que nem se dá conta disso.

Ele pega o binóculo da mochila e passa cerca de quinze minutos me mostrando algumas
constelações que estão em evidência. Não queria ir embora, se eu pudesse morava aqui até desbravar
cada cantinho deste céu.

— Não dá nem para comparar com nosso quintal, né? — Dan sorri como se “nosso quintal”
não fosse uma distração suficiente para acionar meu peito agitado.

Eu não estou entendendo... por que agora cada gesto dele se amplifica dentro de mim tão
forte? Passo a mão na testa e volto a segurar o binóculo bem a tempo de conseguir ver um rastro
luminoso.
— Está com a cauda longa, deu pra ver tudinho. Ahhhhhhh, que fabuloso! — comento,
empolgada.

— Você acredita mesmo que dá pra fazer pedidos para as pseudo estrelas cadentes?

— Quando eu era criança, eu acreditava. É bom aquela menininha manter a esperança,


estrelas cadentes são como o Papai Noel.

— Você disse, então, só pra não a deixar triste com um fato científico? — Dan pergunta e eu
aceno a cabeça em concordância, ainda focada no seu binóculo.

— Às vezes, tudo que precisamos é acreditar.

Ficamos em silêncio por um tempo, eu ávida por conseguir acompanhar outro rastro luminoso
em detalhes. Ao notar pelo reflexo lateral as mãos do Dan mexendo sem parar no colo, largo o
binóculo na pedra e me viro na sua direção. Nossos joelhos quase tocando um no outro.

— O que foi? — questiono, preocupada, com vontade de parar os seus movimentos com a
minha própria mão. Fecho os dedos e esfrego a calça de moletom. — Você está bem?

— Não, eu não estou bem. Não consigo mais guardar aqui, sabe. — Ele aponta para o peito e
me fita por longos segundos. Muito mais do que faz geralmente com as outras pessoas. — Sufoca,
parece um tanque cheio de água que pode transbordar a qualquer momento.

— O que você não consegue mais guardar? — pergunto, tão baixo, que quase não escuto a
minha voz.

Se for... se for o que estou pensando...

— Você acabou de dizer que às vezes, tudo que precisamos é acreditar, olhos coloridos. —
Ah, esse apelido! Meu coração dá uma batida forte e começa a aceleração contínua sem nem ouvir
tudo que tem a dizer. — Eu vou acreditar neste instante que o que vou dizer, independentemente de
como irá receber, não vai estragar a nossa amizade.

— Dan, eu... — Abro a boca, mas não sai nada. Na verdade, eu não faço ideia do que falar.

Ao mesmo tempo que anseio escutar o que tem a dizer, tenho vontade de sair correndo e
implorar para nunca mencionar seja lá o que for que pode mudar o que construímos.

— Você enche meu organismo de dopamina, desde o primeiro dia em que te vi brigando na
ponte. Meus hormônios ficam tão agitados na sua presença, que eu cheguei a pensar que precisava ir
ao médico — Daniel fecha os olhos e solta de uma vez. Posso perceber sua respiração acelerada
pelo movimento de subir e descer do seu peito. Não estou muito diferente disso, quase não me movo
do lugar. — Eu pensei em beijar você tantas vezes, nesses últimos dias, que quase posso sentir o
gosto da sua boca na minha, Aurora.

Ele abre os olhos e perco o fôlego com a intensidade que me fita de volta. “Nem todos os
homens são iguais”, a frase da minha mãe grita na minha mente. No fundo, eu sei, tenho certeza de
que Daniel jamais será igual.

Só recebi respeito e cuidado dele desde o começo, o garoto sequer desvia o olhar para o meu
corpo.

— Neste exato segundo, eu quero tanto, tanto... tanto beijar você, que mal consigo respirar.

Arfo quando percebo que nos aproximamos em algum momento da conversa e estamos muito
perto um do outro. Consigo sentir a sua respiração quente abraçar a minha pele e os seus olhos de um
tom de mel vivo me fitarem com adoração.

Não consigo sentir mentira no seu discurso. Cada letra reverbera no meu corpo, reforçando
sua verdade.

Se eu for sincera comigo mesmo, também quero. Posso não ter tido as mesmas reações desde
o começo, mas posso claramente perceber quando deixei de vê-lo apenas como o sobrinho do
Noberto.

Nosso contato foi devagar, galgando passo por passo, até construir uma amizade que só me
faz bem. Será... será que eu consigo ir além disso?

— Você não... você não merece jamais alguém pela metade, Dan. — Inspiro fundo e desvio o
nosso contato, fitando a grama no chão. — Quero dizer, alguém que não se entrega totalmente na
relação. Tenho muito medo de acabar te machucando no meio do caminho.

— Mas você quer? — Noto que suas mãos estão se mexendo no ar, como se ansiassem estar
na minha pele. — É só o medo que te impede?

— Eu... eu quero, mas não sei se consigo ser inteira de novo.

— Posso? — Levanto a cabeça e ganho uma nova batida forte no coração ao vê-lo com a mão
parada na frente do meu rosto.

Ele. Está. Pedindo. Permissão.

Um sorriso nasce nos meus lábios sem que eu me dê conta.

— Pode — sussurro, mesmo com medo do que isso possa desencadear em mim.

Devagar, Daniel se aproxima e toca sutilmente minha pele. Os dedos gelados me causam um
arrepio e ao mesmo tempo aquecem o local. Fecho os olhos quando contorna meu queixo, meu nariz e
minha bochecha.

Nenhuma lembrança, não sinto nada de ruim do passado.

— O seu querer me basta, olhos coloridos. Eu vou acreditar que será suficiente para afastar o
medo do seu coração com o tempo.

Volto a fitar sua íris cor de mel, que não desvia de mim um segundo sequer. Com um impulso
incontrolável borbulhando no meu sangue, corto ainda mais nossa distância e mordo os lábios.

Tudo... tudo dentro de mim pede para ir. Só... ir.

— Eu quero muito que você me beije. Agora, Dan.

Ele respira fundo e sussurra meu nome antes de tirar o milímetro de distância do nosso
caminho tocando minha boca. Seus lábios chegam com delicadeza aos meus, mas nenhum de nós dois
consegue manter a calma por muito tempo.

Eu me sinto queimar, como um cometa que se choca com a atmosfera e explode. Faz muito,
muito tempo que uma sensação tão boa e avassaladora não me invade desta forma.

Pelos sons que saem da sua boca, a respiração acelerada e os movimentos desesperados, Dan
está se sentindo da mesma forma.

Com medo do toque da minha mão assustá-lo, permaneço com elas paradas na pedra, apenas
garantindo que eu vou manter o equilíbrio. Não posso cogitar estragar este momento, só quero... ele.

Abro a boca e permito que cada pensamento que diz ter tido sobre este momento não chegue
aos pés do que realmente é.

Dan desliza seus dedos gelados até a minha nuca e inclina o corpo para frente, chegando
ainda mais perto. Sou preenchida por sua língua, seu cheiro, sua respiração arfante...

Mordisco seu lábio inferior e ele faz o mesmo, como se tivesse aprendido esse truque agora e
fosse o seu novo vício preferido.

Não importa o fôlego, não importa as pessoas logo atrás de nós, não importa quem fomos até
aqui.

Sob a luz das estrelas, há somente ele e eu; nenhum fantasma.

Pensei que isso jamais seria possível de acontecer, imaginei que não houvesse esperanças
para o meu futuro, mas, pode ser que haja. Talvez eu possa ser mais do que uma sequência de dias,
talvez eu seja capaz de me reconstruir.
CAPÍTULO 29

Tum, tum, tum, tum, tum, tum, tum, tum.

Meu coração nunca acelerou tão rápido e forte como agora. Nem pelo espaço, nem pelos
buracos negros. Nada se compara a olhos coloridos. Não sei se me concentro nas batidas que
reverberam pelo corpo inteiro, na sua boca carnuda ou no som acelerado da sua respiração. Os três
são viciantes e me fazem querer mais, mais, mais, mais...

Apanho uma mecha do seu cabelo e me inclino de novo para frente, sedento por estender o
momento o máximo que nosso fôlego aguentar. Contraditoriamente ao que costumo gostar, a minha
vontade é chegar cada vez mais perto da sua pele, do seu calor.

Quando percebo que ela precisa respirar, diminuo a intensidade e mordisco seu lábio
inferior. Eu amei isso, amei muito sentir a textura suave entre os meus dentes. O gesto causa um
arrepio gostoso no meu braço.

— Nenhuma imaginação foi digna do que realmente é o seu beijo — confidencio baixinho,
ainda com nossos rostos próximos um do outro. Tiro a mão da sua nuca e contorno os lábios, bem
devagar. — Eu jamais poderia criar tamanha perfeição.

Acompanho a sua boca se ampliar em um lindo sorriso e seus olhos brilharem me fitando de
volta. Há uma energia tão potente fervendo meu sangue, que é como se eu tivesse um sol dentro de
mim capaz de iluminar tudo à minha volta só por observá-la.

Se isso é estar apaixonado, então, é a melhor sensação do mundo.

— Você, definitivamente, não é como os outros, Daniel Lima. — Trocamos o ar quente da


nossa respiração. — Ninguém nunca me disse palavras tão lindas antes.

— É o mínimo que você merece ouvir, Aurora. Eu...

— Daniel, você está aí? — Bufo ao ser interrompido mais uma vez por aquela aluna irritante.

Caramba, ela não deu espaço o dia todo, sempre atrás de mim. Aurora se afasta e sinto na
mesma hora a sua falta. Seu semblante mudou tanto, que fico preocupado de ter feito algo.
— O que foi? Aconteceu alguma coisa?

— Não é com você, é com essa garota sem noção. — Sua bufada se parece muito com a
minha.

O que será que significa? Queria entender melhor as pessoas. Abro a boca para perguntar, no
entanto, a menina não desiste e continua gritando até me fazer levantar e ser encontrado no meio das
pedras.

— Ah, você está aí! — O sorriso morre no seu rosto ao perceber a olhos coloridos se
levantando também. — O pessoal está cansado, querendo ir embora. O motorista disse que só
depende de você.

Já? Nos outros anos, a turma fica quase uma hora aproveitando a vista. Só porque hoje eu
queria passar a noite inteira aqui do lado da minha Aurora, tudo tem que se encerrar mais cedo.

Merda!

— Podemos ir? — insiste, percebendo meu silêncio.

— Se não há escolha, fazer o quê. — Solto o ar, passando a mão no cabelo. — Podem entrar
na van, que já vamos.

Ela observa com atenção nós dois e, relutante, nos deixa a sós. Viro-me para Aurora e
escaneio na minha mente cada detalhe de onde estamos para nunca esquecer o que vivi hoje: o
tamanho da pedra, a roupa que ela está usando, qual constelação está na nossa direção neste instante
e presenciou nosso primeiro beijo.

— Você vai dizer mais vezes que quer que eu te beije, né? — questiono, quando o
pensamento preocupante me vem à mente.

Tivemos o primeiro, mas eu quero muito mais. Não posso nem cogitar a hipótese de que seu
medo de não ser inteira, mesmo que não tenha entendido direito o que significa, a faça desistir de ser
mais que uma amiga.

Agora que experimentei seu gosto, não sou capaz de voltar atrás.

— Acho que sim... — Ela sorri e desvia o olhar para a grama. Mesmo no escuro, noto suas
bochechas ficarem rosadas. — Eu... eu gostaria.

— Ai, que bom! Porque eu temo que seja minha nova obsessão preferida tocar os seus lábios.
Eles são muito macios. — Estico a mão e peço permissão com o olhar para acariciá-los com o
polegar de novo. Aurora assente e acelera a respiração quando me aproximo. Acho que ela gosta, eu
pelo menos sempre estou amando quando a respiração fica falha na sua presença. — Você beija
gostoso, não tem saliva em demasia me lambuzando todo. Eu não gosto de muita saliva.
Monique e a moça do clube “O pecado de Eva” não chegaram nem perto de me causarem algo
parecido.

— Eu ainda não sei muito bem como lidar com esta nova realidade, faz... faz muito tempo que
não me envolvo desta forma com alguém. — Aurora procura meu olhar e levanta a mão, também
avisando sem palavras o que pretende fazer. Vou de encontro aos seus dedos e os entrelaço no ar,
adorando a sensação de choque que o contato físico proporciona. — Se fosse há uns meses, confesso,
que teria fugido no momento em que disse que precisava me contar algo. Só que agora... agora eu
estou diferente, de um jeito que não sei explicar. Eu me sinto bem com você, Dan, e não quero
estragar o que temos construído por medo. Vou deixar... vamos deixar rolar para ver o que acontece.
A única coisa que peço é para irmos devagar, sempre conversando um com o outro sobre nossos
limites e o que gostamos. Eu não quero que você faça nada que não goste para me agradar, assim
como também não farei algo que não estou pronta.

— Sempre foi difícil, pra mim, ser eu mesmo, tenho medo de não ser o bastante, de assustar
as pessoas — confesso, apertando mais firme sua mão na minha.

— Nós dois temos nossos medos, que são completamente diferentes, mas muito marcantes na
nossa história. Precisamos tentar ser o mais transparente possível. Você não faz noção de como
significou para mim o seu pedido para me tocar. Eu sei que também não gosta de ser surpreendido
pelo contato, então, podemos combinar de sempre dizer, seja com um olhar ou com palavras, o que
pretendemos fazer. Tá bom?

— Combinado, olhos coloridos! — Dou um passo à frente para poder sentir seu hálito quente
no meu rosto. — Eu preciso muito te beijar de novo, antes de entrar naquela van. Tudo bem pra
você?

— Pensei que não iria pedir. — Ela sorri e faz meu peito inflar mais do que imaginei que
seria possível. — Tudo ótimo para mim.

Sorrio também e me inclino para morder seu lábio inferior, antes de explorar sua boca quente
com a minha língua.

Acho que poderia fazer isso mil vezes sem me cansar.

Não gosto de dormir fora de casa, atrapalha toda minha rotina. No entanto, aprendi quando
entrei na faculdade que algumas vezes teria que abrir exceções para eventos ou atividades
acadêmicas. Hoje é uma delas. Seria perigoso chegar de madrugada no meu bairro, e ainda mais
cansativo.

Fico de lado na porta da pousada e deixo Aurora entrar primeiro. A viagem de volta pareceu
mais longa do que na ida, só não digo que foi ruim porque a olhos coloridos pegou no sono encostada
no meu ombro, da metade do trajeto até aqui.

É tudo tão diferente com ela, cada detalhe simples se torna intenso e importante.

— Boa noite! — cumprimento o recepcionista que nos recebe com um sorriso. — Eu fiz duas
reservas de quarto ontem de manhã, no nome de Daniel Lima.

— Duas? — Ele nos fita com um semblante alarmado e olha para a tela do computador à sua
frente. — Só temos um quarto disponível, aqui estava anotado apenas um. Infelizmente, lotamos esta
noite.
— Não, eu fui bem claro. — Passo a mão no cabelo, notando a respiração ficar mais curta.
— Foi uma mulher que atendeu ao meu telefonema, eu disse que precisava de dois quartos e que
chegaria de madrugada, por causa de uma viagem da universidade.

— Deve ter sido a minha mãe, eu peço desculpas, ela não sabe muito bem mexer no
computador. Provavelmente anotou errado. Minha irmã teve um compromisso de manhã e não pôde
ficar aqui com ela. — Já são quase 2h30 da madrugada, onde encontrarei outro local próximo agora?
Assim como é perigoso voltar ao meu bairro, é perigoso ficar andando na rua sem rumo. — O quarto
agendado tem uma cama de casal, creio que dê para vocês dois dormirem. Se preferir, também
consigo arrumar um colchão extra.

Escuto um som agitado atrás de mim e me viro para dar de cara com Aurora andando em
círculos e esfregando as mãos na camiseta larga.

— O que foi, olhos coloridos? — Estico as mãos e peço permissão para tocar seus ombros.
— Você está se sentindo mal?

— É... eu... — Ela inspira fundo, parece que está fazendo um grande esforço para não chorar.

— Me conta o que foi, por favor? Estou ficando agoniado aqui de vê-la assim. — Engulo em
seco, ficando tenso por não compreender nem saber como posso ajudá-la.

— Os... limites, Dan. Isso... eu...

— O quarto? Você não consegue ficar no mesmo quarto, é isso? — Ela abaixa a cabeça e
acena em concordância.

— Desculpa, não é você. Eu... é que... ainda não consigo. Quarto fechado, à noite, sem ar...

— Não tem problema nenhum, olhos coloridos. Não precisa pedir desculpas. Eu não vou
ficar lá, tá bom? — digo e ela levanta a cabeça para me fitar. Algumas lágrimas estão escorrendo
pelo seu rosto bonito. — Não chora, por favor. Gosto de ver seu sorriso, não suas lágrimas.

— Mas se não vai ficar lá, vai ficar onde?

Olho ao redor e percebo uma salinha do lado esquerdo, provavelmente para espera dos
hóspedes, com três poltronas e uma televisão. Deve ser desconfortável dormir sentado ali, mas é o
mínimo que posso fazer para acalmá-la. Aurora já fez tanto por mim, preciso ajudá-la quando
necessita — mesmo não compreendendo ainda seus motivos.

— Como não foi um erro nosso, e sim da pousada, você permite que eu passe a noite ali
hoje? Só até amanhecer — pergunto ao recepcionista, apontando para a sala.

— Sim, tudo bem, você pode ficar. — Ele observa meu semblante e o rosto triste da Aurora.
— Desculpem-me mais uma vez pelo transtorno.

— Aquela poltrona deve ser horrível, você não vai dormir direito, Dan.

— Não se preocupe comigo, eu vou ficar bem. Amanhã passo o dia sentado em uma cadeira e
você lutando. Descanse para o seu treino.

— Daniel... — Ela abre a boca, mas a interrompo antes de reclamar da ideia.

— Por favor! Eu vou ficar bem, se você ficar bem. Pode ir, tente descansar.

Ela parece querer me dizer algo, no entanto, observa meus dedos batendo na lateral da perna
— mais uma vez de forma inconsciente — e decide aceitar o novo plano.

— Tá bom, obrigada.

— Não por isso, eu quem devo agradecer por ter aceitado vir na viagem, por ter me
proporcionado uma experiência única.

Aurora levanta os dedos e me olha, avisando que irá tocar meu rosto. Meu corpo reseta,
ansioso pelo que irei sentir. É a primeira vez que faz isso. Assim que a palma fria para na minha
bochecha, o coração volta a bombear no ritmo que só ela é capaz de provocar.

O seu toque é firme, não me causa desconforto.

— Boa noite, Dan. — Levanta os pés e observo de olhos abertos encostar seus lábios nos
meus.

Rápido, sútil, gostoso.

— Boa noite, olhos coloridos.


Aqui, parado, acompanhando-a pegar a chave do quarto e sumir pelo corredor, reflito como
quero conhecê-la de verdade. Aurora sabe meus problemas, meus medos, e pouco fala dos seus.

Ela parece forte, mas no fundo pode estar perdida como por muito tempo fiquei.
CAPÍTULO 30

— Vocês já podem entrar — a recepcionista nos avisa, simpática. — É o consultório dois.

— Ok. — Aceno e me levanto, sorrindo para Dan, a fim de acalmá-lo.

Recebo um sorriso de volta, mas noto os seus dedos batendo discretamente na lateral do
corpo. Já reparei que às vezes faz isso e nem percebe que está fazendo.

Apesar de toda conversa que tivemos no final de semana, reforçando o fato de a nova médica
ser especialista em autismo de adultos e a importância de dar uma nova chance para a descoberta do
diagnóstico, é perceptível que ainda está com medo de se frustrar. Sua respiração está baixa, mal se
moveu na cadeira desde que chegamos e só fala quando eu puxo assunto.

Com gestos incertos, Dan se levanta também e me segue devagar até o local indicado. Estou
adorando que a minha relação com ele é galgada na busca pela confiança, mesmo que seja difícil dar
esse passo. Ambos temos nossas lutas para cravar e caminhamos tentando auxiliar o outro.

Não consigo parar de pensar no gesto lindo que fez depois do meu desespero na pousada. Eu
não estava preparada para dormir no mesmo local que ele, embora ciente de quem estava ao meu
lado. A última vez que fiquei trancada com um homem em um quarto, foi a minha ruína.

Era demais para aguentar em pouco tempo de mudanças.

Daniel não apenas conseguiu cessar uma nova crise de ansiedade que estava surgindo em si,
devido ao estresse do problema, como percebeu a minha agitação e focou em uma forma de resolvê-
la. Dormir em uma poltrona na recepção cortou meu coração, porém, senti que era importante que eu
aceitasse a sua ideia. Foi um grande passo ter conseguido controlar suas emoções.

Desde esse episódio, estamos ainda mais próximos. Se não estou no treino e ele não está
trabalhando, estamos juntos no quintal ou na nossa árvore.

— Sejam bem-vindos, eu sou a doutora Elza Magalhães! — a médica cumprimenta, de pé,


próxima da porta. — Fiquem à vontade, o espaço é nosso.

— Obrigado.
— Obrigada — nós dois agradecemos, ao mesmo tempo.
Sorrio de novo para o Dan, incentivando-o a me acompanhar até o sofá que ela aponta. Desta
vez, Viviane explicou ao telefone, ao agendar a consulta, as suspeitas do filho e relatou a primeira
experiência ruim a fim de evitar que se repita.

— Eu acho mais assustador a ideia de que estamos sozinhos. — A doutora quebra o gelo,
fitando a frase estampada na camiseta do Daniel, assim que nos sentamos. Observo junto com ela as
palavras:

“O que é mais assustador: a ideia de extraterrestres em mundos estranhos ou a ideia de


que, em todo este imenso Universo, nós estamos sozinhos?”

Não tinha chegado a reparar no texto, visto que hoje nos encontramos aqui para a consulta.
Dan veio da universidade e eu segui direto do treino da tarde, que se estendeu por três horas devido
à minha saída noturna.

— Como diria o próprio autor desta pergunta, Carl Sagan: “Se não existe vida fora da Terra,
então o Universo é um grande desperdício de espaço”. — Fico aliviada ao notar que ele relaxou no
estofado. Santa Elza, ótimo início de conversa! — Existem cerca de seis bilhões de planetas
similares ao nosso apenas na Via Láctea. Creio ser impossível os terráqueos serem os únicos a
habitarem o mundo.

— Estou com você nessa, Daniel — ela responde, animada. — Pelo jeito, somos dois
amantes do espaço.

— Eu amo desde a infância, faço doutorado em Astrofísica.

— Que incrível, parabéns! Eu comecei a gostar quando me casei, participo com meu marido
do Clube de Astronomia Amadora do nosso bairro. Tenho até um Newtoniano Amplitude 1500 em
casa para observação.

O alívio no rosto do Dan não tem preço. Que ideia maravilhosa o abordar desta forma.

Eu vou beijar essa médica, juro. Sorrio em pensamento da animação do meu cérebro
acompanhando a interação dos dois. É muito engraçada a minha mudança. A convivência com esse
garoto me deixa leve de novo, como a antiga Aurora era.

É bom constatar que resquícios dela sobreviveram.

— É um excelente telescópio de alcance, vale muito a pena o investimento.

Os dois engatam em uma conversa espacial descontraída por quase quarenta minutos sem
parar. Fico tão feliz de vê-lo bem que não consigo tirar o sorriso do rosto. Embora não tenha
participado da primeira consulta, noto que esta médica tem um método bem diferente. Ao invés de
encher de perguntas aleatórias, ela insere o que precisa saber no contexto que deixa o paciente mais
confortável. Dan já respondeu várias questões pertinentes ao autismo sem nem se dar conta.

— Eu poderia passar o dia inteiro falando deste assunto, o mistério do Universo me encanta.
Que tal a gente marcar outros bate-papos aqui? Aproveitamos para fazer as suas avaliações
neuropsicológicas.

— Você acha que posso estar no espectro? — Ele ajeita a postura no sofá, ficando tenso por
um segundo de novo.

— Ainda é cedo para confirmar, precisamos investigar melhor. O que posso dizer de
imediato é que notei alguns traços marcantes em você.

— Quanto tempo vai demorar pra ter certeza? Estou ansioso para saber se tenho ou não.

— Imagino que sim, o ser humano sabe lidar muito melhor com as situações do dia a dia se
tem plena consciência de quem é. Das suas habilidades e limitações. — Dan acena em concordância
e se inclina no sofá, atento na conversa. — Em média, as avaliações duram oito sessões, sendo uma
por semana, e depois tem um prazo de quinze dias para análise e elaboração do relatório final. Tudo
será feito aqui mesmo na clínica, porém, quem aplica os testes é a neuropsicóloga Glaucia.

— Então vai ser cerca de dois meses e meio? — confirma e ela acena. Assusto-me quando
vira o corpo inteiro para o lado, buscando o meu olhar. — Isso é muito tempo pra você, né? Irei te
atrapalhar demais nos treinos.

— Você não me atrapalha, eu disse que viria porque eu quero estar aqui ao seu lado. Pode
ficar tranquilo quanto a isso. — Meu coração acelera ao constatar que Dan sempre se preocupa
comigo.

É tão bom esse sentimento. Não me lembro de já ter vivido algo desta forma. Os garotos que
fiquei antes do Otávio não eram assim — muito menos ele.

— Tem certeza? O tio Noberto vai ficar muito irritado quando souber o motivo das suas
faltas.

— É só uma vez por semana, Dan, não vai atrapalhar — reitero e só então ele volta a relaxar
o corpo.

Observo a médica, que nos fita com divertimento no rosto. Tento não pensar que dois meses e
meio é muito tempo e não faço ideia de como será meu futuro. Se eu perder a competição, o que vai
acontecer?

Noberto pode querer continuar, como disse que tem vontade, ou simplesmente desistir de vez,
dependendo dos resultados. Estranhamente, já não consigo mais me imaginar na rotina de
recicladora. E, apesar de adorar a companhia da Pilar, não me vejo sem o contato diário com a Mel e
o Dan.
— Nessas oito sessões serão avaliadas a sua atenção, memória, inteligência, humor, dentre
outras questões, com o objetivo de entender o funcionamento cerebral e suas emoções. O foco é
descobrir como tudo está influenciando a sua forma de se sentir e se comportar — a doutora Elza
volta a explicar e eu afasto minhas preocupações. O foco agora é o Dan. — Também será
fundamental conversar com o seu cuidador na infância, para saber como foi esse período e, se
possível, ter acesso ao histórico médico de quando era criança. Isso tudo ajuda na formatação de um
relatório completo.

— Eu tenho uma irmãzinha com autismo, ela fez os testes da M-chat. Para adultos também é
essa escala? — questiono, curiosa.

— Não, estes testes são indicados apenas para crianças. Nos adultos, em geral, é usado a
ADOS-2 para observação e a ADIR na entrevista. Elas são complexas, contêm muitas divisões e
itens bem específicos para seu uso. — Eu me lembro de como foi o da Sara, realmente bem
detalhado. Nos adultos, embora de escalas diferentes, deve ser a mesma essência. — Se comprovado
o autismo, o resultado desta ampla investigação vai ajudar a definir quais são as áreas com maior
dificuldade para nortear a terapia de habilidade social, posteriormente.

— Vamos marcar então, quero começar o mais rápido possível, doutora!

— Esse horário da noite é melhor pra você?

— Qual horário atrapalha menos os seus treinos, Aurora? — Mais uma vez, seu foco volta
para mim. — É à noite?

Daniel não cansa de ser fofo. Nem parece que é real.

— Sim, daí eu consigo compensar sem perder a qualidade. Estico uma hora de manhã e uma
hora a tarde. E pra você também é melhor na universidade, certo?

— O professor João disse pra não me preocupar, mas eu prefiro não faltar. Tem muito
trabalho pra fazer. Se pra Aurora está melhor à noite, para mim também, doutora Elza.

— Ótimo! Quando saírem, é só pedir para a recepcionista deixar agendado com a


neuropsicóloga.

Os dois conversam mais um pouco e mandamos uma mensagem de áudio para Viviane, assim
que saímos do consultório. Nos falamos tanto nos últimos dias, que me sinto até íntima, como se
fosse da família. Quero só ver quando ela e a Mel souberem que eu e Dan nos beijamos.

Escapamos da prima esperta apenas porque foi viajar em uma excursão da escola, no fim de
semana, e ficou na casa de uma amiga, mas aposto que amanhã a pequena irá perceber essa energia
diferente que nos rodeia. Pelo jeito que a doutora Elza se despediu sorrindo para nós, até ela notou
que há algo aqui. É palpável, não conseguimos mais disfarçar por causa do olhar.
Embora não tenha comentado nada comigo, e acredito que nem com o filho, porque senão ele
me falaria sem querer durante suas conversas sinceras, eu senti que Viviane torce muito para que a
gente fique cada vez mais próximo.

Percebi sua alegria em saber que Daniel pode contar com alguém fora da família —
inclusive, até mais do que algumas pessoas da família.

— Viu, deu tudo certo! — comemoro, quando ele guarda o telefone no bolso e nos dirigimos
até o semáforo da esquina.

O consultório fica a menos de vinte minutos de casa, minha mãe conseguiu uma indicação boa
e bem pertinho. É só atravessar a avenida para esperar o ônibus e logo estaremos no bairro.

— Foi ótimo, eu gostei bem mais dessa médica. A doutora Elza me ganhou quando comentou
a frase do Carl.

— Ah, eu sabia! — Sorrio e paro próximo da faixa de pedestre. Não é tarde, mas também já
passou o horário de pico. As ruas estão mais calmas. — Pensei na mesma hora isso, que foi um ótimo
início de conversa. Fico muito feliz que tenha gostado e que agora irá começar sua avaliação.

— Tudo por sua causa. Se não fosse por você, eu talvez nunca descobrisse que posso estar no
espectro, nem iria saber que é possível meu coração acelerar tanto por algo que não seja o Universo.

Fito sua íris cor de mel não resistindo a ampliar o meu sorriso.

— Desse jeito, é difícil não gostar de você, Daniel Lima.

— Que bom! — responde baixinho, dando um passo na minha direção. — Eu quero que você
goste muito de mim, Aurora Mendes. Porque eu já gosto demais de você.

Sorrindo para mim, como se soubesse o alvoroço que causou nas batidas do meu coração,
Daniel pisca e deixa um selinho molhado nos meus lábios.

É impressionante como ele me desarma de forma tão fácil e simples. Quando estamos tão
perto assim, eu acredito que posso ser uma garota comum de novo.
CAPÍTULO 31

Ajeito as sacolas na mão e viro a esquina em passos apressados. Está quase na hora de dar a
comida da Yeda, e Aurora já deve estar no quarto dela. Quero chegar logo, se tem uma coisa que eu
não suporto, tanto quanto o shopping, é ter que ir ao supermercado. Nesta parte, eu sinto muito a falta
da minha mãe em casa. Antes eu não tinha que me preocupar, agora se não vou, fico sem o básico
para sobreviver.

Assim que me aproximo do portão, avisto Aurora e Mel saindo da academia em uma
conversa animada sobre golpes de muay thai. Pelo jeito, o treino ficou até um pouco mais tarde e não
vou me atrasar com ela. A irritação pelas compras logo some quando seus olhos coloridos me fitam
de volta.

Tum, tum, tum, tum. Eu amo a aceleração das minhas batidas por sua casa. O efeito Aurora é
energizante no meu organismo.

— Oi, Dan! — cumprimenta, sorrindo.

— Oi, Aurora. Oi, Mel. — Sorrio de volta e olho ao redor para verificar se só tem nós três
por perto. Inclino-me um pouco para frente e falo mais baixo, como se estivesse cochichando: —
Tive que ir no supermercado, vi um bolo de cenoura na padaria e comprei pra você. Eu não gosto,
mas eu lembrei que você falou que adorava.

— Ah, que gentil! Eu adoro mesmo, fazia tempo que não comia — ela agradece, empolgada, e
seguimos andando para os fundos da casa.

— Você comprou bolo pra Aurora, e pra mim, comprou alguma coisa? — Mel questiona,
fitando nós dois com a sobrancelha arqueada.

— Eu... é...

— Só assim pra gente se esbarrar, né, Daniel? — vó Marideide interrompe nossa conversa
ao sair da cozinha varrendo o chão e nos ver no corredor. — Esqueceu que tem vó?

Aurora acena para ela e segue caminhando com Mel para evitar chamar atenção. Nós
combinamos que iríamos evitar ser pegos próximos de qualquer familiar, fora a minha prima.
— Eu não me esqueci não, vó. — Paro de andar e dou um beijo no seu rosto, como gosta de
ser cumprimentada. A senhora me puxa para um abraço e respiro fundo, enquanto espero parar de me
apertar. — Só tenho estado bastante ocupado.

Com Aurora e o trabalho. As palavras quase saem da minha boca. É difícil me policiar e
lembrar que não é bom contar a verdade ainda.

— Você quer cantar de galo nesse trabalho complicado que arrumou pra cabeça, mas não
pode esquecer que tem família. Quando eu morrer, não adianta chorar no caixão não, viu?

Ham? Coço a têmpora, sem entender o que a vó Marideide disse. Frequentemente tenho esse
problema com ela. Como eu vou cantar como um galo, se eu sou um ser humano? Como assim,
arrumei trabalho para a cabeça? O meu ofício é com o Universo.

Nunca presenciei a morte de nenhum parente, contudo, creio que é comum o choro. Pelo
menos, é o que já li a respeito e vi em filmes. Por que não adiantaria chorar?

Nada faz sentido para mim.

— A senhora está usando alguma figura de linguagem ou está sendo sarcástica? — indago, ao
lembrar sobre a dificuldade dos autistas com essas questões.

— Figura... sarc... sarc... o quê, menino? — ela devolve a pergunta, encarando-me com o
rosto retorcido.

— Eu não entendi o que a senhora disse sobre galo, cabeça e caixão.

— Meu Deus do céu! Eu tento, mas é difícil demais, Daniel. — Vó Marideide balança a mão
desocupada várias vezes para o alto de forma enfática. — Parece que você faz de propósito pra me
irritar. Não é possível!

— Não, eu não quero te irritar, não, vó. Realmente não entendi.

— Não tem cabimento você estudar tantos anos, fazer esse negócio de doutorado, e não
entender o básico da vida — reclama, deixando a vassoura encostada perto da porta.

— Desculpa — afirmo, sem saber o que mais posso dizer.

— Vai lá fazer as suas coisas, eu vou terminar a janta, porque sua tia foi tomar banho.
Esquece o que eu disse.

Sem esperar uma resposta minha, a senhora entra e me deixa parado a observando. Ajeito o
peso das sacolas novamente e sigo pelo corredor em silêncio. Não vejo a hora de saber se realmente
sou autista. Espero que o diagnóstico confirmado ajude a melhorar o meu relacionamento com as
pessoas, especialmente, as pessoas da minha família.
Eu acho que a vó Marideide gosta mais do Pablo, da Camile e da Mel do que de mim. Eles
pelo menos conseguem entendê-la.

Chego em casa e deixo as compras no balcão a fim de alimentar a Yê primeiro. Mal termino
de separar sua comida, escuto Mel e Aurora entrando pela porta que dá para o quintal.

— Conte-me tudo, não me esconda nada, primo. — A menina me assusta ao pular na minha
frente, eufórica. — A Aurora não quis abrir o jogo, mas eu acho que aconteceu alguma coisa nessa
viagem para São Francisco Xavier. Esses olhares aí, o sorrisinho, você comprou bolo pra ela! Nunca
comprou comida pra mim e sou sua prima há onze anos. A minha mãe diz que conquista meu pai pelo
estômago.

— Conquistar pelo estômago é uma expressão usada para dizer que cozinhar ou comprar
comida para alguém é um gesto carinhoso, que pode ajudar a aumentar o sentimento entre duas
pessoas — Aurora explica, antes mesmo que eu avise que não compreendi.

— Ah, perdão, Dan, eu tinha me esquecido sobre isso.

— Não tem problema, Mel. — Sigo até a gaiola e coloco a comida do porquinho da índia. —
Agora eu entendi. Faz sentido.

— Mas e então? — Minha prima me segue e para ao meu lado. — Não mudem de foco!
Aconteceu alguma coisa?

Retiro o capim feno velho da gaiola, olho para Aurora e sorrio ao vê-la sorrindo também.

— Olha aí, vocês estão sorrindo de novo, feito bobos. Vocês se beijaram, né? Eu sei o que é
beijo, viu?! Eu assisto televisão!

Fito mais uma vez a olhos coloridos, para confirmar se podemos contar para a Mel, e ela
acena a cabeça sutilmente, divertindo-se com a situação.

— Sim, curiosa! Nós nos beijamos.

— Oh, glória. Até que enfim! — Acompanho sua dança esquisita, pulando de um lado para o
outro no meio da sala. — Quando eu pedi para a Aurora ver se você tinha traços de autismo, foi pra
te ajudar, é claro, só que eu também queria muito que isso acontecesse. Que vocês dois
acontecessem!

— Sua danadinha! — Aurora vai atrás dela e faz cócegas na sua barriga. — Quis dar uma de
cupido, foi?

— Vocês dois precisavam de um empurrãozinho, eu só fui lá dar — responde, em meio a


gargalhadas. — São muito especiais pra mim, eu queria que fossem felizes.
— Pra mim deu certo, Mel, eu me sinto muito feliz perto da olhos coloridos — confesso,
fechando a gaiola e indo jogar o capim seco no lixo da cozinha.

Aurora para as cócegas e me observa com os olhos brilhando. Eu amo quando eles brilham
para mim. Ela fica ainda mais linda desta forma.

— E eu também, com o seu primo.

— Ownnnn! Vocês são tão fofinhos juntos. — Mel vem até a bancada e começa a mexer nas
sacolas. — Prometo que só quero comer uma fatia desse tal bolo de cenoura e deixo vocês a sós para
treinar mais beijos.

Acompanho minha garota se aproximando do balcão para ajudar a pequena, mas não sem
antes trocarmos novamente aquela intensidade que está se tornando comum.

Aurora morde o lábio inferior e minha boca saliva de vontade de fazer isso por ela. Com
certeza, iremos treinar mais beijos em breve.

Depois de meia hora falando sem parar e devorando todo o bolo junto com Aurora, Mel vai
embora e nos deixa a sós. Saímos para o quintal e nos sentamos no pequeno relevo que separa o piso
da lavanderia com a grama. Hoje o tempo não está bom para observação das estrelas, infelizmente.

Não sei ainda por que, mas a olhos coloridos fica mais confortável quando estamos ao ar
livre. Na pousada, ela teve o ápice do seu desespero, no entanto, havia notado em outras situações
que prefere não ficar trancada em um espaço comigo por muito tempo sem a presença de outra
pessoa.

— Posso perguntar uma coisa? — sondo, desviando a atenção para o céu.

Não parece que tenho dificuldades de comunicação com ela como tenho com a vó Marideide,
por exemplo, mesmo assim, não consigo evitar a sensação de que talvez ela faça isso por causa de
um problema comigo.

— Claro, Dan.

— Você evita ficar sozinha comigo em lugar fechado por causa de algo que eu fiz?

— Não, claro que não — responde, de imediato, procurando meu olhar. — Por que você está
pensando isso?

— Não sei, me veio essa lembrança agora de que sempre saímos de casa e do episódio da
pousada. — Passo a mão no cabelo e, em seguida, a esfrego na calça jeans. — Quando eu converso
com a vó Marideide, sempre fico me sentindo meio culpado depois. Não sei explicar. Parece que
tudo é culpa minha.

— Ela te disse alguma coisa?

— Nada novo. — Dou de ombros e apanho uma grama para cutucar. — Eu não consigo
compreendê-la, e ela fica irritada comigo. O que significa: “Você quer cantar de galo nesse
trabalho complicado que arrumou pra cabeça, mas não pode esquecer que tem família. Quando eu
morrer, não adianta chorar no caixão não”?

— Ela te falou isso? — Aurora pergunta e eu aceno com a cabeça. Penso escutar uma bufada
dela, mas logo se vira atenciosa buscando meu olhar. — Cantar de galo é o mesmo que agir de forma
prepotente e arrogante. A expressão “arrumou pra cabeça” é usada quando queremos dizer que
alguém está arrumando um problema. E a última frase foi um sarcasmo. Sua vó quis dizer que precisa
aproveitar a presença dela enquanto está viva, porque depois que morrer, não vai adiantar chorar
pela sua falta.

— Eu não acho que sou arrogante, nem que quero arrumar problema com meu trabalho. Eu
adoro o que faço!

— Você não é, Dan. Não é! — ela reforça, olhando firme para mim. — Sua vó já é de idade,
tem sérias questões que não dizem respeito a você, e sim a ela. O problema não é você, acredite.

Ficamos em silêncio por um tempo. Reflito sobre suas palavras, mas noto o balançar da perna
da olhos coloridos de um lado para o outro. Ela mexe o corpo quando fica agitada.

— Está tudo bem?

— Tem um motivo pelo qual eu prefiro ficar ao ar livre, eu me sinto mais segura. Parece que
se eu gritar, serei ouvida, sabe? — Balanço a cabeça em sinal de positivo e continuo a observando.
— Eu quero muito te contar toda minha história, mas ainda não me sinto preparada. Estava pensando
hoje à tarde sobre isso, até cheguei a comentar com seu tio. Eu acho que iria me ajudar fazer terapia.
Talvez lá na mesma clínica que você vai fazer os seus testes, eles têm uma gama enorme de
terapeutas para vários casos. Usei a justificativa com o Noberto da questão de controlar a ansiedade
para a competição, só que seria bem mais do que isso. Ele disse que oferecia aos atletas essa
assistência antigamente e ajudava muito. Se eu realmente quiser, ele vai bancar até a competição as
sessões.

— Então, faça sim! — comento, sem saber exatamente quais palavras usar.

Às vezes eu quero dizer muitas coisas, mas simplesmente não sei como.
— É difícil, para mim, dar esse passo de remexer meu passado. Venho me escondendo há
tanto tempo que é estranho sentir a necessidade de me abrir novamente.

Noto lágrimas escorrendo do seu rosto e estico a mão, mostrando que pretendo colocá-la nas
suas costas. Foi assim, pelo menos, que ela e Mel fizeram quando minha mãe chorou por se sentir
culpada de não ter percebido sinais de autismo antes. Com seu consentimento, apenas toco a pele,
sem me mexer.

— Não te incomoda me tocar? — pergunta, enquanto seca as lágrimas.

— Pelo menos, até agora, não — afirmo, sincero. — É muito diferente do que acontece com
as outras pessoas. Eu não faço por obrigação e fico contando os segundos para me afastar. Não
queima, traz um formigamento diferente. Um bom, que ainda não compreendi.

— Comigo também, eu gosto do seu toque mesmo tendo aprendido a odiar de uns anos pra cá.
Gosto que você me peça permissão, eu me sinto segura com você.

Sorrio com suas palavras, notando meu coração acelerar por saber que a olhos coloridos se
sente segura comigo, que gosta do meu toque.

— Eu entrei naquele grupo que a sua mãe indicou. Estava vendo umas postagens antigas, tem
bastante gente que começa a terapia muito antes do diagnóstico definitivo. — Tenho lido muitos
artigos sobre autismo e gosto ainda mais quando encontro depoimentos reais de quem passa pelo
mesmo que eu. — Talvez seja bom pra mim também, eu ainda tenho muito o que entender sobre mim
e o mundo ao meu redor.

— Na segunda-feira, quando você for fazer a primeira sessão do teste, nós perguntaremos
para a doutora Elza o que ela acha, que tal? — Aurora se aproxima e estica os dedos perguntando
com o olhar se pode me tocar.

Sorrio de antecipação com seus dedos frios no meu rosto e seu corpo se inclinando para me
beijar. A minha mão continua no mesmo lugar, longos segundos depois. Ela é realmente diferente.

Se Aurora fizer a terapia e eu também, nós podemos aprender a controlar nossos receios. Eu
quero sempre avançar com a minha garota, nunca retroceder.
CAPÍTULO 32

64,4 kg.

Saio da balança e seco o suor do rosto com a minha toalha. Durante essa última semana, que
antecede a competição, Noberto tem estado neurótico com o nosso peso. Comigo está tudo tranquilo
para a categoria Peso Pena, mas o Pablo precisou de uma dieta rígida para perder 2Kg.

Ele fica no pé dos atletas com alimentação e treinos porque não é adepto da desidratação,
muito comum no MMA. Geralmente, equipes usam saunas e banheiras para tirar grandes quantidades
de quilos até um dia antes da luta. Após a pesagem, ocorre o inverso, onde se faz a reidratação e
compensação alimentar, para que o lutador recupere o que perdeu. Coisa mais sem sentido para mim!
Tem o peso adequado, mas podem burlar de um dia para o outro? Fiquei chocada ao saber que muitos
chegam a morrer nessa manobra arriscada.

— Graças a Deus todos estão dentro do peso agora — Noberto comemora, estendendo as
mãos para o alto. — Este foi nosso último treino. À tarde vamos lá fazer a pesagem oficial e, nessas
24 horas que antecedem a luta, quero todos em concentração para amanhã!

Amanhã.

Esfrego a mão na calça legging tendo ciência de que o molhado que toca o tecido não é suor
do esforço feito, é nervosismo. Estou muito ansiosa desde ontem, preocupada com minha estreia
como representante da Naja. Tenho a sensação de que o tempo passou rápido demais.

Embora reconheça a minha dedicação e esforço dos últimos meses, é inevitável questionar se
realmente estou preparada. A maioria das minhas adversárias no ringue está nesse universo há anos.
Se não fosse um soco em um mendigo, debaixo de uma ponte, eu nem estaria aqui.

— Respire fundo, vai ficar tudo bem, Aurora! — o sensei comenta, aproximando-se de mim.
Noberto aprendeu me ler bem. — É normal esse nervosismo na estreia, mas eu tenho certeza de que
você está preparada. Tome seu banho agora, depois vá pra casa e almoce a refeição leve que a Ana
Júlia está preparando. Quando voltarmos da pesagem, é só se deitar e relaxar. Este final de semana
será seu para brilhar!

Inspiro fundo e aceno em concordância, tentando internalizar essa mensagem positiva, como a
psicóloga tem me incentivado a fazer. Foi uma ótima ideia começar as sessões, semanas atrás, com o
Dan. Acho que sem o respaldo dela, eu estaria ainda mais desesperada neste instante —
provavelmente a ponto de desistir.

— Eu acredito nos meus sonhos — digo baixinho, enquanto pego minha sacola e me dirijo até
o vestiário. — Dou o meu melhor todos os dias. Eu sou responsável pela minha própria felicidade.
Sou grata por cada dia da minha vida. O melhor ainda está por vir!

Este evento, em específico, que vamos participar é nos moldes antigos das competições de
MMA, em fase eliminatória. Cada luta terá três rounds de cinco minutos de duração, com um minuto
de intervalo para descanso entre eles. Haverá confrontos de classificação no sábado e as finais no
domingo. Acredito que será cansativo, espero ganhar relevância logo para competir no formato mais
usado hoje em dia, com lutas espaçadas e pontuação no ranking para disputa de cinturões.

Esse é o meu melhor que está por vir, quero continuar nesse meio! Fazia muito tempo que não
ficava tão realizada com algo.

Quero continuar aqui, lutando e pertinho do meu Dan.

Remexo no lençol, preguiçosa, e entreabro meus olhos fitando a janela do quarto. Levanto
assustada quando percebo que já escureceu. Meu Deus do céu! Quanto tempo eu dormi? Apanho o
celular na cômoda e constato que são quase 20h44 da noite. Caramba, era para ter sido só um
cochilo, não posso correr o risco de perder o sono à noite. Ele será crucial para o meu desempenho
amanhã.

Já basta a tarde desesperadora que tive. Depois que voltamos da pesagem, eu não tinha nada
para fazer. Sem televisão, sem livros, Mel na escola, Daniel trabalhando... Ana Júlia me chamou para
assistir a um filme na casa dela, mas eu preferi ficar por aqui mesmo. Evito contato com a dona
Marideide, aquela senhora é muito inconveniente.

Percebendo meu nervosismo, a mulher do sensei preparou uma jarra de suco de maracujá
para mim. Tomei com tanto gosto que desabei por volta das 18h e estou acordando agora.

Daniel deve ter chegado da faculdade, capaz que até veio me chamar e me viu dormindo.
Ontem a Mel contou que o pai a proibiu de ficar me “atazanando” na véspera da competição, então,
seremos só nós dois esta noite.

Não posso perder a noção do tempo com ele hoje, como tem acontecido muitas vezes, no
entanto, quero muito passar algumas horas na sua presença. Dan sempre me deixa calma, em paz.
Ajeito a roupa no corpo, prendo os fios soltos no rabo de cavalo e calço meu tênis o mais
rápido que consigo. Pulo a janela e sigo pelo quintal até a entrada da lavanderia.

— Dan, você está aí? — Bato na porta antes de entrar.

Depois que comecei a terapia, tenho me esforçado a ficar mais tempo dentro da casa dele,
sem a necessidade do ar livre o tempo todo. Eu tenho plena consciência de que Daniel não tem nada
a ver com meu passado. Não posso deixar minha mente confundi-los. Dan não merece isso.

A doutora Elza achou ótima a ideia de ele também começar a terapia antes do diagnóstico e
estou percebendo uma grande melhoria. Daniel tem ficado menos ansioso no dia a dia, e está se
abrindo mais comigo sobre o que pensa.

Religiosamente, toda segunda, vamos para os testes neuropsicológicos e para as nossas


sessões.

— Eu tô, pode entrar.

Do lado de dentro, sigo até a sala e me encosto perto do sofá procurando por ele.

— Tô no quarto, me vestindo — avisa e involuntariamente viro minha cabeça na direção da


voz. Droga! — Aproveitei pra tomar um banho, já que estava dormindo. Fui lá te chamar e vi, pensei
que iria descansar. Você está bem? A Mel comentou quando cheguei que a tia Ana Júlia falou que
você tava muito ansiosa.

Quero mexer minha cabeça para a frente de novo, mas não consigo me mover ao observar
pela fresta da porta Daniel andando pelo quarto sem camisa e com uma toalha enrolada na cintura.

A fresta é pequena, no entanto, suficiente para meus olhos curiosos espionarem.

Nossa, eu não imaginei que ele seria tão definido por baixo das roupas. É aquele tipo falso
magro, que a gente imagina de um jeito e nos surpreende. Surpreende de um modo bom!

Dan é um homem muito bonito, tem sido difícil ignorar esse fato. Por mais que eu ame a gente
ir devagar, e ele me respeitar nisso, estaria mentindo se dissesse que não me afeto com nossos beijos.

Eu tenho vontade de avançar, mas ao mesmo tempo, receio ter um surto. Tenho medo de que
ele não me fale a verdade e fique incomodado com meu toque. É uma preocupação mútua.

Vê-lo exposto desta forma me faz lembrar que Dan também nunca me viu com a roupa de luta,
que mostra bem mais do que meu traje habitual. Eu sempre tomo banho na academia antes de voltar
para o quarto.

Será que ele vai me achar bonita? Outros homens me observando assim me causariam
repulsa, no entanto, Daniel não. Eu tenho curiosidade de saber o que vai achar.
— Aurora, você me ouviu?

— Ah, sim, desculpa. — Balanço a cabeça e forço meu corpo ir até a gaiola da Yê. O que
você está pensando, Aurora? — Eu fiquei muito nervosa de manhã e à tarde, tomei uma jarra de suco
de maracujá e apaguei. Agora estou com medo de não dormir bem daqui a pouco, não posso ficar
acordada até tarde.

— Eu tenho máscara de dormir muito boa aqui em casa. — Ele aparece na sala com o cabelo
ruivo molhado e um conjunto de moletom cinza que faz meu coração dar um salto. Tão lindo. — Eu
empresto uma para você, comprei duas pra ficar de reserva. Quando dormimos com uma máscara, é
alcançada uma escuridão completa e, portanto, favorecemos que a melatonina, que é secretada
enquanto dormimos, esteja ativa. Esse hormônio ajuda a controlar os ritmos circadianos, ou seja,
estar acordado de dia e adormecido à noite.

— Eu aceito, obrigada — digo, vidrada no seu olhar carinhoso e no seu sorriso instantâneo
que sempre aparece quando me vê.

Ah, caramba! Eu estou gostando demais desse garoto. Muito, muito, muito.

— É bom também dormir virado para o lado direito, onde a maior parte do coração está.
Assim não força ele trabalhar mais do que o necessário.

Dan chega bem pertinho e se inclina pedindo permissão para me beijar. Queria dizer que
estou prestando atenção na sua conversa sobre melatonina e lado direito, porém, estaria mentindo
novamente.

Meu foco é apenas nos seus olhos. Assinto ao seu pedido e estico as minhas mãos, avisando
que as colocarei no seu cabelo. Descobrimos recentemente que ele adora meus dedos se infiltrando
nos seus fios. Acho que não é mentira, parece realmente que adorou.

O toque molhado do cabelo e dos lábios me faz relaxar e abrir mais a boca. A sua pele é tão
macia e quente que torna a vontade de ir mais fundo incontrolável. Beijo-o demorada e lentamente
primeiro, para em seguida mordiscá-lo e gastar o resto do fôlego que nos resta em um emaranhado de
línguas ávidas.

— Nossa! — Ele suspira quando se afasta e busca meu olhar.

Só então percebo que estou praticamente em cima dele e que seu cabelo é uma bagunça sexy,
obra dos meus dedos.

— Que beijo gostoso — elogio em voz alta, antes que me dê conta.

— Todos os seus são. Eu gosto cada vez mais, e mais. — Dan pede para pegar a minha mão e
a coloca de forma firme no alto do seu peito. — Você deixa meu coração barulhento, olhos coloridos.
E eu amo o tum, tum, tum reverberando pelo meu corpo.

Mordo os lábios e sorrio, percebendo o meu ficar tão agitado quanto. Eu não sei mais até
quando conseguiremos ir devagar e segurar essa explosão que causamos um no outro.
CAPÍTULO 33

Caminho pelo corredor batendo os dedos na lateral do corpo e contando números primos.
Nossa, que mistura esquisita de sentimentos: estou orgulhoso, ansioso e aflito, tudo ao mesmo tempo
e na mesma intensidade. Eu sei que Aurora é muito capaz de vencer, no entanto, não consigo reprimir
o medo de que se machuque durante a competição.

— Daniel, tem certeza disso? — Camile pergunta, pela quarta vez, a mesma coisa, assim que
me aproximo do carro estacionado na frente da academia. Ninguém gostou muito quando Mel
anunciou que eu iria junto. — Da primeira vez, você deu piti por causa do barulho e da lotação do
lugar. Não nos faça passar vergonha, pelo amor de Deus! O dia é do meu pai, não podemos nos
preocupar com outra coisa.

— Para de implicar com ele, Camile! — Mel me defende e se aproxima de mim. — Eu já


disse que está indo comigo e que vai ficar bem.

— Eu vou ficar bem — garanto, repetindo as palavras positivas que a psicóloga me instruiu a
dizer em momentos de apreensão.

Preciso ficar bem pela Aurora. A olhos coloridos necessita do meu apoio e vou conseguir
superar o barulho e a aglomeração de pessoas para torcer por ela.

Ao avistar a tia Ana Júlia e a vó Marideide vindo ao nosso encontro, Camile desiste de tentar
me convencer e entra no carro, dando de ombros. O tio Noberto, o Pablo e a Aurora foram bem mais
cedo, junto com os alunos da Naja.

Por todo trajeto, sou relembrado várias vezes sobre a importância do evento para a academia
da família e de como devo me comportar. Fico em silêncio, apenas acenando em concordância, e
com o pensamento longe.

Nela.

Assim que pisamos no ginásio, vamos direto para a área feminina, no setor Peso Pena, onde a
primeira luta da equipe Naja vai acontecer. O local é enorme e tem vários espaços separados para as
diferentes categorias. Os atletas disputam uma vaga na competição em duelos simultâneos, há ringues
por todo lado. Por sorte, não vou precisar esperar muito para ver a olhos coloridos em ação. Ela será
uma das primeiras a competir.
— O barulho está te incomodando muito? — Mel pergunta, enquanto nos sentamos na
arquibancada mais próxima de onde será a luta da Aurora.

— Não, estou tão ansioso pra vê-la, que esse povo e a falação se tornaram secundários.

— Você gosta muito dela, né?! — Não entendo bem se é um questionamento ou uma
afirmação diante do sorriso enorme que minha prima oferece.

— Demais. Aurora é uma das melhores coisas que já me aconteceu — confesso, passando o
olho pelo ambiente para tentar enxergá-la antes de subir para a luta.

— Eu quero ir no banheiro, tô muito apertada. — Vó Marideide puxa Mel pelo braço,


interrompendo nossa conversa. O seu rosto animado se fecha na hora. — Vamos comigo, minha filha?
A Camile vai demorar até achar uma vaga pra estacionar neste lugar.

Devido à lotação, a tia Ana Júlia resolveu que era melhor a gente descer na portaria e vir
andando para não correr o risco de perder a estreia. Ainda bem que decidiu isso, estava quase
surtando de pavor de perder qualquer detalhe. Pelo pouco que deu para ver do estacionamento, de
onde paramos, há carros em todas as fileiras.

— Agora, vó?! Vamos perder a luta da Aurora.

— É rapidinho, a gente já volta.

— Vai com a sua vó, Mel! — a mãe sentencia.

As duas saem apressadas e eu fico com a tia Ana Júlia, em silêncio, observando tudo à nossa
volta. Não sou muito bom de entender as pessoas, mas eu acho que ela está tão nervosa quanto eu.
Pelo menos, suas mãos não param de esfregar a calça jeans.

Atento ao ambiente, quase engasgo com minha saliva quando finalmente a olhos coloridos
aparece no meu campo de visão. Uau, ela está linda usando uma roupa preta com tarja lateral laranja
colada ao corpo. São as cores do logo da Naja. Passo a mão no cabelo e continuo fitando-a, sem
desviar a atenção. É muito diferente dos trajes largos que usa normalmente. Nunca a tinha visto
assim.

Pego-me pensando como seria tocar cada curva do seu corpo e meu coração dá uma batida
mais forte, bombeando adrenalina pelo sangue. Não só tenho aceitado o toque dela bem, como muitas
vezes sinto vontade de tomar a iniciativa.

Na terapia, a psicóloga disse que todas essas minhas reações são normais quando se está com
alguém que gosta e que eu não posso ter medo de conversar. Aurora me incentiva muito a falar, eu
gosto disso, ela jamais me julga, mesmo que seja algo bobo.
Como se pudesse me sentir na multidão, seus olhos encontram os meus e ambos sorrimos
imediatamente. Lembro-me do dia que Mel me contou sobre o tio Noberto chamar os meninos da
academia de homens das cavernas e não desvio mais o foco do seu rosto.

Não quero que fique desconfortável ou brava comigo. Depois irei perguntar o motivo de se
perturbar com essa questão. Se também houver incômodo em mim, não volto a repetir até que se sinta
à vontade.

— Eu sabia que a mudança na Aurora, desde que chegou lá em casa, não era só por causa dos
treinos e da Mel. — Tia Ana Júlia me assusta com o comentário logo que o seu marido chama a olhos
coloridos para a lateral do ringue e nosso contato se desfaz. — Agora está explicado por que quis
tanto vir na competição.

Esqueci completamente que estava acompanhado. Fico quieto, tentando entender o seu
semblante: está brava ou não?

— Você está brava? — sondo, curvando o corpo na arquibancada pelo receio do que vai
dizer.

— Brava? Não, Dan, até parece! — Respiro, aliviado, quando seus lábios se expandem. —
Eu fico muito feliz por vocês dois. Ela é uma boa garota, assim como você é um bom menino.

— Ainda não contamos por que...

— Já começou? Eu perdi algo? — Camile aparece esbaforida e se senta do lado da mãe.

Logo à frente, Mel e a vó Marideide retornam em meio a corpos agitados andando de um


ringue para o outro.

— Vai começar agora! — a mãe avisa e aponta para que a filha que foi ao banheiro ande mais
rápido. Enquanto elas se ajeitam, a tia Ana Júlia se inclina para cochichar próximo ao meu rosto: —
Fica tranquilo, seu segredo está guardado comigo.

É bom saber que duas pessoas da minha família apoiam nós dois.

Pisco para ela, contente, e volto a prestar atenção no ringue onde a primeira luta feminina da
categoria Peso Pena é anunciada. O nervosismo que tinha dado uma trégua volta a permear meus
sentidos.

— Esta primeira seletiva vai ser de pontuação, os 16 melhores atletas de cada categoria
passam — Mel comenta, enquanto vemos Aurora colocar o protetor bucal e receber orientações do
tio Noberto. — Depois as lutas seguem até sobrarem quatro para duelarem na semi e na final,
amanhã.

— São três lutas hoje e duas amanhã, certo?


— Isso, temos que torcer pra Aurora nocautear e evitar se cansar muito.

Lembro-me dos ensinamentos do tio Noberto. O nocaute acontece quando um lutador fica
impossibilitado por dez segundos de se levantar do chão após um golpe. Isso encerra o combate na
hora. Não é tão simples conseguir.

O juiz une as duas competidoras no centro do ringue e eu me inclino para frente, para não
perder nenhum detalhe. Meu coração está acelerado, como se a estivesse beijando neste instante.

— Boa sorte, olhos coloridos. Você consegue! — sussurro ao vento.

O primeiro golpe é dela. Ao contrário do seu receio de ontem à noite, Aurora agora parece
confiante e dona de si no ringue. Linda! A perna manca é a última coisa que chama a atenção diante
dos golpes ágeis e da sua defesa certeira.

Preciso fazer um esforço enorme para não me levantar e gritar de orgulho. Nunca gostei de
assistir a uma luta, mas como é ela minha adrenalina está borbulhando em cada célula do corpo.

— Isso, Aurora! Finaliza, finaliza! — Mel grita por mim e a tia Ana Júlia bate palmas.

Mordo o dedo indicador e seguro a outra mão com força no assento gelado da arquibancada.
A adversária não está tendo chance nem de pensar, a olhos coloridos está implacável. Quase não
recebe contragolpes.

— Uau, que soco! — solto, admirado, quando a garota loira que disputa com ela cai com tudo
no chão.

Um, dois, três... começo a contar mentalmente com o juiz. Não se levante, não se levante.

— Dez! — celebro baixinho, com um sorriso enorme no rosto. — Eu sabia que você podia.
Eu sabia!

— Ahhhhhhhhhhhhhhhhh, ela conseguiu! Nocauteou, nocauteou no primeiro round. — Mel


pula tão eufórica que quase derruba a vó Marideide do degrau da arquibancada. — Ela passou, vai
se classificar.

— Caramba, meu pai não tava exagerando quando disse que essa menina seria a salvação da
Naja. — Até Camile se rende nos elogios.

A expectativa por seus resultados se torna tão emocionante, que nem vejo o tempo passar.
Voltas pelo ginásio, falatório, aglomeração... nada tira meu foco dela. Quando a última luta do dia
termina, o seu nome passa a ser o mais falado em toda arena.

De uma desconhecida, Aurora se torna a primeira classificada, dona de três nocautes.


Três, um por luta. Quase inacreditável!

Enquanto meus familiares comemoram se abraçando e a torcida ao redor vibra pelo feito, eu
busco minha Aurora com o olhar e sinto meu peito se estufar ao receber um sorriso dela já do lado de
fora do ringue.

Essa é a minha garota!


CAPÍTULO 34

Inspiro fundo e tento não me deixar afetar pelas dezenas de pessoas que se aglomeraram ao
redor para assistir à minha luta, nos olheiros que estão me observando e na responsabilidade que
tenho com a Naja. Apenas Pablo e eu chegamos tão longe, porém, o filho do Noberto não conseguiu
vencer o último confronto.

Agora tudo depende de mim: a novata que está na boca do povo por aplicar três nocautes no
primeiro round durante as classificatórias e um mata-leão aplaudido de pé na semi, no segundo
round, subindo nas costas da adversária e a imobilizando pelo pescoço.

— Não espere seu oponente te colocar no jogo dele, sempre esteja um passo na frente — o
sensei relembra, olhando no fundo dos meus olhos. — Lembre-se que os primeiros minutos são
cruciais para definir como será o andamento da luta. Eu acredito em você, Aurora!

Eu acredito também. Eu acredito!

Aceno com a cabeça, coloco o protetor bucal e entro no octógono cercado por grades para a
final. Ele é maior e mais majestoso do que aquele que Noberto tem na academia e os das disputas
anteriores. Nem parece real tudo isso. A ficha está caindo aos poucos de que estou mesmo me
tornando uma lutadora profissional de MMA.

Movimento meus braços em socos no ar, intercalando com pulinhos para manter o corpo
aquecido. A minha perna machucada está doendo um pouco, mas estou bloqueando a dor com
pensamentos positivos. Vai dar certo. Eu consigo!

Enquanto o locutor apresenta a minha adversária, olho na direção em que sei que Dan e Mel
estão e dou um sorriso para os dois. Daniel não só está controlando sua ansiedade em um ambiente
agitado, como também está gostando de assistir aos meus combates. Ontem, quando chegamos em
casa, ele passou quase uma hora narrando em detalhes tudo que fiz e achou incrível. Adorei saber
que não foi um sacrifício me acompanhar porque me faz muito bem a sua torcida na arquibancada.

Assim que o juiz autoriza o início, desligo-me de tudo à minha volta e mantenho a atenção na
lutadora à minha frente. Ela já foi campeã deste torneio por duas vezes e começou a treinar judô com
cinco anos de idade. Isso não é nada bom para mim, sinal de que vai explorar os golpes na perna que
são meu ponto fraco. Desta vez, acredito que o embate não será tão fácil.
Mesmo sabendo do seu potencial, não demonstro medo. Começo atacando e dou dois
cruzados seguidos no seu rosto. De contra-ataque, recebo um chute baixo na perna machucada e um
jab.

Permanecemos o primeiro round inteiro focadas na trocação, que é o combate em pé dando e


levando soco, sem agarramento. Coloco em prática todos os ensinamentos que Noberto me passou e
não deixo que os chutes me façam cair. A luta no chão é perigosa e pode acabar muito rápida.

— Como está a perna, Aurora? — o sensei pergunta, assim que saio para o pequeno intervalo
entre os rounds.

Tiro o protetor bucal e tomo a garrafinha inteira de água em uma golada. Com certeza, este
duelo vai ser bem mais difícil que os outros. Já me cansei e só se passaram cinco minutos.

— Dolorida três vezes mais do que no começo da luta. Os chutes estão sendo com a base da
canela, ao invés do pé.

— O low kick tá perfeito mesmo, ela bate na curva da coxa pra ser mais potente. Você
precisa forçar a mão, que é o seu ponto forte. O próximo round não vai ser fácil, pode acreditar. A
garota vai fazer de tudo pra te jogar no chão. Mantenha a guarda.

O juiz anuncia que venci por 10 a 9 o primeiro round, mas a guerra está longe de acabar.
Começamos o segundo exatamente como Noberto avisou. Na primeira oportunidade, ela me dá uma
joelhada no estômago e tenta me jogar para baixo. Por pouco eu quase caio, porém, consigo me
recuperar a tempo.

Enquanto minha energia vai se esgotando e suor pinga na minha pele sem parar, a minha
adversária parece implacável. Preciso fazer um esforço enorme para manter os golpes e me defender
ao mesmo tempo. Não caio, no entanto, também não venço invertendo o 9 x 10 no placar.

Estamos empatadas.

No início do terceiro round, minha respiração está ofegante e a perna tão dolorida que mal
consigo me sustentar. A competidora aproveita um segundo de deslize e consegue o que tanto queria:
sou jogada de costas no chão, na pior posição possível.

Ela não perde tempo e pula por cima de mim, imobilizando meu corpo com suas pernas ao
meu redor. Abaixo a cabeça e uso os braços para me defender, mas não paro de receber socos e mais
socos no rosto.

Ah, meu Deus... não acredito que...

— Auroraaaaaaaaa! — o grito estridente é impossível não reconhecer.

Movo a cabeça para o lado, na direção da voz, e enxergo Daniel desesperado na lateral do
ringue, no limite da faixa que separa a plateia da equipe de cada lutador. Meus olhos estão
embaçados por tanto golpe seguido, no entanto, consigo identificar as mãos agitadas tentando me
alcançar.

— Levanta, olhos coloridos, você consegue. Levanta!

Uma parte do público vibra pela minha adversária, a outra clama para que eu reaja. A única
voz que fica na minha mente, porém, é a do Dan.

“Levanta, olhos coloridos.”

Um flash de memórias me invade de repente, do dia que entrei na escola nova até hoje, como
um filme no modo máximo de aceleração. Eu passei por tantas coisas para chegar até aqui. Tive que
enfrentar meus medos para aceitar o desafio de lutar e para permitir que um homem entrasse na minha
vida de novo.

Não sou fraca.

Aurora Mendes é muito corajosa! Se não deixei o meu passado traumático me vencer, essa
mulher não tem chance de conseguir.

Movida por uma energia que não sei explicar de onde vem, impulsiono o quadril e o tronco
com tudo para frente e consigo o espaço necessário para escapar do chão e dos seus socos. Em
segundos preciosos, giro o corpo para o lado e a faço desequilibrar.

É o que preciso para enganchar as pernas na altura do seu peito e apanhar o braço que fica
desprevenido. Ela tenta me fazer voltar ao chão, no entanto, é tarde demais. Forço a perna no seu
peito e aplico uma chave de braço, esticando-o o máximo que consigo.

Um, dois, três, quatro... antes de atingir cinco segundos, a adversária não resiste e dá três
tapinhas no chão para desistir da luta. É isso ou seu braço quebrado.

— Ahhhhhhhhhhhhhh — esbravejo, batendo no peito, e me levanto eufórica.

Eu. Venci. Eu. Venci. Eu. Venci!

Cada célula do meu organismo parece doer e festejar simultaneamente. O desgaste é


proporcional à alegria que me invade.

Uma lembrança da minha mãe vem à tona enchendo meus olhos de lágrimas. Ela disse, logo
antes de me mudar para São Paulo, que eu seria como a fênix, uma ave lendária da mitologia, que
renasce das cinzas.

Na época, achei que isso seria impossível acontecer, não parecia haver esperança para mim,
mas agora... agora eu realmente tenho um propósito. Talvez seja possível ficar inteira, após ser
destruída.

Procuro Daniel novamente com o olhar e constato que está exatamente no mesmo lugar,
fitando-me com os olhos brilhantes e um sorriso exuberante no rosto.

Um sorriso só para mim.

O barulho da torcida, a euforia do juiz anunciando minha vitória e o Noberto correndo na


minha direção viram segundo plano. A única coisa que minha mente consegue raciocinar é o desejo
de pular a grade do octógono e abraçá-lo.

Não penso demais, sigo meu instinto. Quando nossos corpos se chocam e ele me acolhe no
seu peito, meu coração acelera e as lágrimas que vinha segurando escorrem pelo meu rosto.

— Eu consegui. Eu consegui — sussurro próximo do seu ouvido.

— Apesar de quase me causar um infarto, e agora no sentido real, tinha certeza de que
conseguiria, olhos coloridos.

Sorrio e aperto meus braços em volta da sua cintura, segurando firme como aprendi que é a
forma que não lhe causa incômodo. Eu amo a sua sinceridade, o seu jeitinho especial de ser. Sei que
deve ter sido um estresse enorme me ver naquela situação, apanhando, mesmo assim, encontrou
forças para me incentivar.

Daniel é a minha cura, assim como sou a sua. Nós dois juntos conseguimos fazer florescer a
nossa melhor versão.

Como eu sabia que minha demonstração pública de afeto iria gerar comentários da família do
Dan, o levei comigo para a premiação e o mantive perto todo tempo. Não quero ninguém falando
merda para ele, sem saber o que aconteceu. Noberto ainda não fez nenhum comentário, porque
praticamente não ficamos um minuto sozinhos até agora, mas eu sei que deve estar morrendo de
curiosidade pela forma que nos encara com um sorriso no rosto.

Talvez seja pela vitória, o sensei parece meio aéreo, porém, fico com a sensação de que
realmente não vai criar caso sobre isso.

Aceno para os dois representantes interessados em me patrocinar, que acabaram de marcar


uma reunião na Naja esta semana, e seguimos para o lado de fora da arena. Demoramos quase uma
hora e meia para conseguirmos sair da aglomeração de torcedores e repórteres esportivos querendo
me entrevistar.

— Nossa, até que enfim, pensei que não iriam sair nunca mais. — A vó Marideide é a
primeira a nos recepcionar, claro, com uma reclamação. — O que deu em você pra levantar e ficar
gritando na beira do ringue, Daniel? Não gosta de barulho, não gosta de abraço, mas fez justamente
isso.

— Tava comendo pelas beiradas esse tempo todo, né, seu espertinho? — Camile ri, batendo
seu ombro no dele.

— O pai disse que não era pra mexer com ela, Dan — Pablo complementa o falatório que
imaginei que geraria. — Foi arriscado isso aí, a gente podia ter se fodido.

— O que seria “comendo pelas beiradas”? — ele questiona, confuso, ainda perdido no
comentário da prima.

— É uma expressão que significa fazer algo sem ninguém perceber; devagar, aos pouquinhos
— explico, olhando nos seus olhos e depois me dirijo para os outros três que estão encostados perto
do carro. — Primeiramente, se Dan não tivesse ido lá gritar na beira do octógono, eu provavelmente
teria perdido a luta. Foi ele quem me despertou pra reagir. Sobre a aproximação, a culpa não é dele.
Foi eu quem puxou assunto primeiro, nos tornamos amigos nesses meses e agora somos... somos algo
a mais. Não comentamos nada por receio do Noberto ficar bravo ou achar que iria atrapalhar os
treinos.

— Por mim? — Ele coloca a mão no peito e nos observa, atento. — Eu só pedi para ele se
afastar, porque achei que não queria contato com os garotos. Jamais ficaria chateado, a sua vida
pessoal só diz respeito a você. Fico feliz que tenha sido com o Daniel seu envolvimento, meu
sobrinho é um cara bacana, respeitador.

— Ele é. — Volto a encará-lo e trocamos um sorriso. — Inicialmente, eu queria mesmo


distância de todos, mas o Dan é diferente.

Minha mão comicha para segurar a sua. Quem diria que eu estaria ansiando por algo assim,
depois de tudo.

— A Aurora me deixa feliz, ela é especial. Me faz ter vontade de tocar, impulsiona meu
corpo a fazer algo quando vê que está em perigo. Quero protegê-la. — Ohhh, que fofo. Ele torna
impossível não se derreter. — A olhos coloridos é bem melhor que a sua amiga Monique ou aquela
garota extravagante do clube “O pecado de Eva”, Pablo.

Noberto, Ana Júlia, Mel e eu não conseguimos segurar o riso diante da sua declaração. De
meigo a supersincero em uma frase. Ele já tinha me falado sobre essas meninas, parece que Pablo fez
questão de inseri-lo no universo masculino da conquista.

— Se você tá dizendo... — O garoto dá de ombros e não faz mais comentários.


— Bom, vocês dois são meio esquisitos, então é capaz que dê certo. — A matriarca da
família não cansa de ser inconveniente.

Meu Deus, eu costumava gostar de idosos, mas essa dificulta minha tarefa.

— O importante é que estão bem. — Ana Júlia vem na nossa direção, em uma clara intenção
de encerrar o assunto. — O resto só diz respeito a vocês.

— Isso, deixa que eles se entendem. Vamos comemorar porque, caso tenham esquecido
querendo futricar a vida do meu primo e da minha amiga, nós temos uma campeã entre nós. — Mel
corre até o meu lado e enlaça seu braço na minha cintura. — Parabéns, Aurora. Você simplesmente
arrasou, aquele golpe final foi de tirar o fôlego.

— Obrigada, minha linda. Seu pai fez milagre de me ensinar tudo que aprendi em tão pouco
tempo.

— Bora pra casa comemorar, hoje tem pizza por minha conta — Noberto anuncia, animado.
— De hoje em diante, tenho certeza de que a Naja nem a Aurora serão mais as mesmas.

Não tenho dúvida. Não me sinto mais a mesma há um bom tempo. Meu coração machucado
está cheio de esperança e expectativa.

No futuro. No Dan. Em nós.


CAPÍTULO 35

Durante minhas pesquisas no Google sobre paixão, descobri que as mulheres costumam
gostar de ganhar flores. Quando desci no ponto de ônibus e vi um vendedor de rua oferecendo
ramalhetes de rosas azuis, não consegui evitar o desejo de presentear Aurora.

Abro o portão de casa e sigo direto para o quarto dela. Confesso que não precisar mais
esconder sobre nós dois é bem melhor. Nada de pular janela, de ficar só no quintal, de fingir que não
nos conhecemos... Eu gosto que as pessoas saibam como a olhos coloridos é importante para mim.
Desde domingo, estou mais feliz do que já estava. Chego do trabalho e vou direto para lá, antes
mesmo de dar a comida da Yê. Uma mudança na rotina bem-vinda!

Bato na porta e sou logo convidado a entrar. Um sorriso cresce nos meus lábios ao perceber
seu rosto fitar as flores azuis com tanto entusiasmo. Acho que acertei na escolha.

— São pra você. — Estico o ramalhete e deixo um selinho nos seus lábios. — Na hora que vi
a cor exótica, me lembrei dos seus olhos. São lindas como eles.

— Obrigada, Dan — agradece e passa o dedo nas pétalas delicadas. — Eu amei!

— A ideia foi do Google. A matéria dizia que faria a garota que estou saindo feliz, mas a
verdade é que também fiquei muito feliz comprando pra você.

— Às vezes você me deixa sem palavras — confessa, sentando-se na cama.

— E você me deixa obcecado, sabia? Não de um jeito psicopata, de um jeito bom. — Sento-
me ao seu lado e observo-a cheirar as flores com um sorriso nos lábios. — Estava lendo sobre
hiperfoco no autismo e acho que você é um dos meus. Até Saulo já notou que não consigo parar de
falar de ti. Hoje brigou comigo no almoço por contar de novo sobre sua luta. Não tenho culpa se
penso em você a maior parte do dia e quero falar disso.

— Ahhh, tá vendo? Você é muito fofo. Onde estava esse tempo todo, Daniel Lima?

— Estava aqui. — Não entendo a gargalhada que ela solta, mas gosto do som reverberando
pelo quarto. O movimento brusco a faz passar a mão nas feridas do rosto. — Ainda está doendo
muito?
Odiei vê-la sendo jogada no chão pela adversária e o sangue se espalhando por todo lado
com os golpes duros. Para ser sincero, ainda não sei de onde saiu a força necessária para que eu
levantasse e fosse gritar na beira do octógono. A minha reação inicial seria com certeza me
desesperar.

Por algum motivo que ainda não identifiquei, percebi que ela precisava de mim naquele
momento.

— Um pouco, mas tá bem melhor que antes. A perna melhorou também.

Faz três dias que Aurora vem fazendo tratamento com a massagista contratada pelo tio
Noberto, a fim de aliviar as dores causadas na competição. Os treinos pesados deram uma folga esta
semana, há apenas exercícios leves durante o dia para manter o corpo em movimento.

Ontem os patrocinadores que se interessaram pela sua performance vieram aqui e fecharam
contrato por um ano. Meu tio está eufórico pela conquista e por ter conseguido vinte alunos novos na
Naja, em tão pouco tempo.

“É o efeito Aurora: poderoso e intenso.” Concordo com as palavras dele. Também sinto esse
efeito em mim.

— Tenho que dar a comida da Yeda, te espero daqui a pouco, pra gente ir na casa da árvore.
O tempo está propício pra observação.

— Tá bom, vou só jantar e já vou. A sua tia está em cima de mim com a dieta de recuperação
pós-evento.

— Tem que se alimentar direitinho mesmo, pra continuar detonando suas adversárias. —
Peço permissão com o olhar e inclino-me para passar a mão no seu rosto. Deixo mais um selinho nos
seus lábios macios. — Até daqui a pouco, olhos coloridos.

O Google também me mostrou pesquisas que comprovam que a paixão dura em média dois
anos, depois pode desaparecer completamente ou amadurecer para algo mais forte e duradouro.

Não tenho muitas certezas na minha vida, mas uma que sem dúvida nunca vai mudar é o meu
desejo de continuar perto desta garota.

Conseguimos contemplar várias estrelas hoje e a lua em fase crescente. Só não ficamos mais
lá em cima porque esfriou demais. Na falta de televisão para assistir algo, estourei pipoca e estamos
sentados no meu tapete ouvindo música. Aurora quis conhecer as minhas canções preferidas — na
sua maioria clássicas — e agora estamos ouvindo as dela.

A cada dia que passa arrumamos mais desculpas para evitar a despedida e ela voltar ao seu
quarto.

— Ahh, essa também é linda. — Aurora fuça no meu celular e dá o play em uma melodia
calma. — Eu amo o Tiago Iorc. Você conhece?
— Nunca ouvir falar, mas já gostei do som instrumental no início.

Ah, quase ninguém vê


Quanto mais o tempo passa
Mais aumenta a graça em ti viver

Ah, e sai sem eu dizer


Tem mais do que te mostro
Não escondo o quanto gosto de você

A letra é bonita e fica ainda mais com ela cantando em voz alta e me encarando.

O coração dispara
Tropeça, quase para
Me encaixo no teu cheiro
E ali me deixo inteiro

Eu amei te ver
Eu amei te ver
Eu amei te ver

Tum, tum, tum. O coração dispara no ritmo da canção. Essa intensidade é tão única e dela,
impossível me cansar dessas sensações.

— O que foi? — questiono, assim que abaixa a cabeça e corta nosso contato.

— É... é que... eu... pensei agora sobre você não conseguir me ver de verdade ainda.

— Como assim, te ver de verdade? — Desencosto do sofá e viro meu corpo na sua direção.
— Eu estou vendo você.

Aurora pausa a música e me fita brevemente.

— Você vê os fragmentos que permiti. Por muitos anos, tenho criado uma barreira invisível
que me mantém longe das pessoas, eu me escondo no cabelo preso, nas roupas largas, na distância.
— Ela passa a mão no rabo de cavalo e volta a abaixar a cabeça. — Eu queria muito ser invisível, só
que agora não me sinto assim. Desde que cheguei aqui, esse muro vem sendo destruído pouco a
pouco.

— E isso é bom, não é?

— No começo fiquei um pouco assustada com as mudanças dentro de mim, tinha me


acostumado a não sentir nada. Por isso, surtei na pousada, aquela vez. — Nossos olhares se
encontram e ela sorri para mim. — Significou demais a gente ir devagar, você me respeitar tanto.

— É o mínimo que posso fazer, minha mãe me ensinou sobre isso desde novo.

— É verdade, mas infelizmente muitos não cumprem esse ensinamento básico. Algumas
pessoas machucam demais as outras por falta de respeito. — Aurora balança a cabeça e mexe na sua
calça de moletom. — Eu sei que você não é assim, por isso, a cada dia tem aumentado em mim o
desejo de te mostrar a verdadeira Aurora que vem renascendo. A terapia intensifica esse desejo, me
faz ter coragem para me permitir ser eu de novo. Quero ser eu tanto nas nossas interações como...
como fisicamente.

Não sei se estou entendendo direito a conversa. Ainda tenho uma dificuldade enorme de
compreender sentimentos e de me expressar diante deles.

— Desculpa, não compreendi bem aonde quer chegar.

— Eu não quero mais me esconder de você, quero que me veja sem as máscaras. Quero soltar
meu cabelo, tirar essa blusa, tirar minha faixa... quero ser eu, pra você.

Tum, tum, tum, tum. As batidas avançam, afoitas.

Eu... é... não estava preparado para isso. Boquiaberto, apenas aceno com a cabeça, sem
conseguir dizer nada. Mal tenho certeza se assimilei todas as palavras que disse.

— No clipe dessa música do Tiago Iorc, ele e a atriz Bruna Marquezine se sentam um de
frente para o outro e se abraçam tocando pele com pele. Acho que pode ser um bom segundo passo
para nós. O que acha?

— Pele com pele... tipo eu sem camisa e você sem camisa? — confirmo, para saber se
entendi direito.

— Isso. Eu quero tentar, você quer? — questiona, com a voz agitada. — Está confortável com
essa ideia? Se não tiver, não tem...

— Eu quero... quero muito! — respondo, de prontidão, interrompendo-a. — Não posso


mentir que já não tinha desejado antes que a gente se conhecesse mais nesse quesito também. Com
você é tão diferente, eu anseio tanto me aproximar. Te tocar!

— Não prometo que a gente passe dessa fase hoje, mas podemos continuar indo devagar
como estamos fazendo.

— Se for para ir ao seu lado, eu caminho em qualquer velocidade.

— Ahh, Dan! — Seu sorriso se amplia tanto que meu peito infla. — Obrigada, obrigada,
obrigada por ser assim.

— Eu é quem tenho que agradecer, olhos coloridos. Você não faz ideia de por quanto tempo
desejei alguém que me compreendesse da forma que me compreende.

— “É o coração que fala, o laço é certeiro, metades por inteiro” — canta o que acredito
ser uma parte da música por estar na mesma melodia. — Vou deixar meu coração me dar coragem
agora pra derrubar o muro de vez pra você.

Sem dizer mais nada, Aurora volta a dar o play na canção e coloca o celular no tapete. Seus
olhos não desviam dos meus enquanto começa a soltar o seu cabelo bem devagar.

— Tão linda! — elogio, ao apreciar os fios castanhos caírem sobre os seus ombros.

Ela morde o lábio inferior e continua me fitando intensamente. As mãos um pouco trêmulas
alcançam a beirada da camiseta e hesitam apenas por dois segundos antes de começarem a puxar o
tecido para cima.

Seguro a respiração, atento em cada movimento que faz. A pele branca e a barriga lisa são um
convite para as minhas mãos, que chegam a se mexerem no meu colo, ansiosas por cortar esse
espaço.

Quando pega a faixa branca que cobre seus seios, meu coração chega ao ápice daquela
bagunça gostosa, descontrolado por sua causa.

Uma... duas... três voltas em torno do seu peito. Engulo em seco e inspiro fundo quando a
peça cai.

Seios grandes e redondos saltam aos meus olhos em um sutiã de renda preto, fazendo-me
mexer o corpo e salivar. Caramba, por que Aurora esconde isso das pessoas?

— Nos... Aur... Desculpa se estou olhando demais, a Mel disse que você não gosta, mas é
que... uau!

Já tinha tido um vislumbre das suas curvas por causa da roupa da competição, mas nem de
longe imaginei desta forma. Aurora é... ela é... deslumbrante.

— Eu não gosto que ninguém fique olhando para mim, mas você não é todo mundo. — Sua
respiração está tão falha quanto a minha, o peito sobe e desce por causa do esforço de não perder o
fôlego. — É a sua vez, Dan.
Estou tão agitado que arranco a camiseta de qualquer jeito, o mais rápido que consigo. A
olhos coloridos me fita com atenção e meu coração parece que vai sair do peito. Se isso fosse
biologicamente possível, acho que poderia mesmo pela força que bate.

— E agora?

— Agora flexione as pernas e deixe um espaço no centro para eu me sentar.

Faço o que ela pede e sinto o seu cheiro natural invadir meu nariz pela proximidade. “Me
encaixo no teu cheiro e ali me deixo inteiro.” Faz todo sentido essa estrofe neste momento.

— Eu vou colocar as mãos nas suas costas e me encostar no seu peito. Você faz o mesmo, tá?

— Tá... — Limpo a garganta, ansioso. — Tá bom.

As suas pernas ficam por cima das minhas coxas e os meus braços por cima dos dela. Nossos
rostos estão lado a lado. Tão... tão perto e não me incomodo nem por um segundo com isso. Pelo
contrário, estou amando essa experiência nova.

Quero mais, quero tudo da olhos coloridos.

Quando nossas peles realmente se encostam sem nada para impedi-las ambos arfamos e
seguramos firme um no outro. Um choque imediato bombeia adrenalina pelo meu sangue. Parece que
estou fervendo por dentro.

Por longos minutos não precisamos de palavras, nem precisamos nos mexer. Ficamos só ali,
trocando uma respiração acelerada e batidas inconstantes.

Aurora também fica com o coração barulhento perto de mim. Um sorriso nasce nos meus
lábios ao constatar que estamos em sintonia nas reações que causamos.

— Eu amei te ver! — sussurro o trecho da canção que reverbera pela sala no seu ouvido,
fazendo alusão ao que estamos fazendo. — O seu toque é uma brasa em mim, mas não a que queima e
machuca. É aquela que aquece e acalma.

— E o seu, Daniel, me liberta... — Noto sua voz embargar e uma lágrima pingar nas minhas
costas. — Você está conseguindo me salvar. Quero tanto te contar tudo... você merece saber... eu...

— Shhhh! Você não precisa me dizer nada agora, olhos coloridos. — Aperto-a mais firme e
roço minha barba na lateral do seu rosto. — Um passo de cada vez, lembra? Eu não tenho pressa.

Seja o que for que tem para me contar, com certeza, não vai me fazer mudar de ideia sobre o
que sinto e o que quero.
E eu só quero Aurora na minha vida.
CAPÍTULO 36

O prêmio da competição foi liberado na sexta-feira e a minha parte está depositada na conta
que o Noberto me ajudou a criar. É até estranho ver tanto dinheiro junto, estou acostumada a contar
moedas.

O montante é crucial, claro, porém, não é só por isso que quero continuar lutando. O que
começou por necessidade, está se mostrando uma vocação, algo que me torna forte de novo. Não
quero parar e o sensei está ansioso para novos desafios.

O único problema é justificar essa quantia para os meus pais. Encosto na cama e passo a mão
na lateral do rosto, tocando a máscara facial que coloquei para disfarçar as manchas da luta, antes de
pegar o celular e fazer a chamada para eles. Semana passada tive que inventar uma desculpa para não
ligar, se cancelasse de novo eles iam estranhar. Estou pensando em quais mentiras terei que contar
desde cedo e uma angústia tomou conta de mim. Não aguento mais enganá-los, é sufocante ter que
encarar seus olhos ansiosos de saudade todo domingo e fingir.

Se eu pudesse falar a verdade, acho que iriam gostar de me ver feliz, mesmo com um esporte
tão agressivo. Pilar e Telma, que me conhecem há mais tempo, estão eufóricas. Foi uma pena que a
paulistana não pode ir à luta no último final de semana, por causa de um evento beneficente que
estava organizando no bairro. É bom poder ser sincera com as irmãs.

Eu tinha me acostumado às mentiras, confesso, contudo, agora que sinto a chama da antiga
Aurora se ampliando dentro do meu peito, é doloroso abafá-la. Ainda mais para quem só tem amor a
me oferecer e sempre esteve ao meu lado. Dona Maria das Graças e seu Vladimir não merecem isso.
Só não faço ideia de como começar a contar a verdade, quebrar esse ciclo. Tenho certeza de que irão
ficar muito decepcionados comigo pelo teatro de mais de três anos.

Conversei sobre isso com a psicóloga e ela comentou que só irei me sentir livre de verdade,
mais uma vez, quando conseguir olhar para trás e enfrentar meu passado. Eu só enfiei um monte de
problemas debaixo do tapete e fingi que estava tudo bem.

Eu terei que criar coragem de contar a verdade. Só que não hoje.

Pego o aparelho que deixei perto do travesseiro e procuro o nome da minha mãe nos contatos.
Não toca nem três vezes, a Sara atende toda sorridente para me contar sobre a corrida que participou
com o cavalo Eliseu, ontem, na aula de equoterapia.
Com ela, é fácil manter as aparências, então ficamos conversando por cerca de vinte minutos
sozinhas, antes de os dois surgirem na câmera.

— Oi, minha filha, desculpa a demora. — Dona Maria se senta ao lado da caçula, acenando
animada para mim. — Seu pai tá me ajudando com um trem aqui em casa.

Ninguém estranha a máscara no meu rosto porque já tive que usar esse artifício duas outras
vezes por ter caído com o carrinho de reciclagem na rua. Eles pensam que realmente é por uma
questão estética.

— Um trem trabaioso demais da conta! — ele reclama e se senta também. — Você acredita
que sua mãe quis trocar os móveis do quarto e da cozinha de lugar, de novo?

— Não faz nem dois meses que tinha mudado, mãe. — Sorrio, aliviada por começar o assunto
com algo mais leve.

— Não ficou bom, uai. Todo dia eu tava tropeçando nas coisas, minha coxa tá roxa, do tanto
que bateu na quina da mesa essas semanas.

— Aí quem paga o pato sou eu, tô quebrado.

— O que o pato tem a ver com arrumar a cozinha e o quarto? — Sara questiona, coçando o
queixo, e nos faz rir da sua carinha confusa.

Daniel seria muito acolhido pela minha família, a chance de ser aprovado por eles é mais do
que alta. Até minha irmã, que não costuma se abrir com as pessoas, iria se render, tenho certeza.

— É uma expressão que significa arcar com as consequências de algo provocado por outra
pessoa — explico e ela bate a mão na testa, incrédula.

— Nossa, não faz sentido nenhum essa comparação. É cada coisa esquisita que as pessoas
inventam.

Pior que tenho que concordar. Não consigo nem imaginar a confusão na cabeça dos autistas
tentando fazer sentido com as mais diversas expressões e gírias usadas no Brasil. Em Minas Gerais,
então, é um mundo à parte. Sara ralou na infância para entender algumas colocações usuais no
dialeto.

Continuamos conversando trivialidades por algum tempo, mas com o decorrer dos minutos, o
meu peito alerta que terei de mentir mais uma vez.

— Eu tenho uma novidade pra contar. — Tento soar animada, no entanto, minhas mãos
apertam firme o lençol para me dar coragem. — Fiz hora extra nas últimas semanas, peguei trabalhos
dos colegas da faculdade a fim de ganhar uma graninha e organizei outra rifa com meus amigos. Ao
todo, juntou R$10.500. Amanhã mesmo estará na conta de vocês para abater no valor da dívida.

— O quê? Dez mil, Aurora? — meu pai confirma, alarmado. — Isso é dinheiro demais,
menina, pelo amor de Deus!

— Aqui em São Paulo é tudo diferente daí, pai. — Mais uma mentira sai fácil da minha boca,
contudo, com um gosto amargo. Isso está me incomodando demais. — O pessoal tem o custo de vida
maior, está acostumado. Cada trabalho que eu peguei pra fazer foi R$350. Fiz da minha classe e das
salas da manhã. Trabalhei nos finais de semana na clínica com adicional e a rifa foi muito boa.

— Minha filha, você não precisa se preocupar com isso. Só precisa focar nos seus estudos aí.
Quero te ver formada, trabalhando no que ama. — Dona Maria das Graças me quebra pelas palavras
e pelo rosto preocupado.

Decepção será pouco quando souberem a verdade. Capaz que nem consigam me perdoar.
Pisco três vezes para afastar as lágrimas que se juntam nos meus olhos. Agora não posso chorar.
Agora não, Aurora!

— Arrumar dinheiro para nós não é tarefa sua, Aurora. Eu é quem preciso dar um jeito nas
coisas.

— É minha, sim, se não fosse por minha causa, não estaríamos nessa situação.

Os dois começam a falar ao mesmo tempo, desesperados para demonstrar que não tenho
culpa de nada, mas isso é uma coisa que nem a terapia irá conseguir me fazer mudar de ideia.

Tudo começou com meus erros. Um foi puxando o outro até criar uma bola de neve
insustentável.

A culpa é minha, sim.

— Eu só vou ficar em paz quando essa dívida estiver quitada — digo, sincera, encarando os
dois pela câmara. — Quero que a gente se livre de uma vez por todas disso, que possa tentar
vislumbrar um futuro sem interferências do passado.

— Minha filha...

— Por favor, mãe, tenta entender — interrompo-a, suplicando com o olhar. — Eu quero
continuar ajudando. Quanto antes a gente se livrar, melhor para todos nós.

— Aurora, você quer jogar War? A Mel achou no armário dela o tabuleiro. — A voz suave
do Dan na janela chega antes do meu pai abrir a boca e retrucar meu argumento. — Nossa, me
desculpa. Eu não percebi que estava ao telefone. Desculpa mesmo, volto depois... eu...

— Tudo bem, Dan, estou falando com os meus pais.


Não sei se fico feliz ou apavorada com a interferência. E se eles quiserem...

— Dan de Daniel? O seu amigo? — Ah, pronto, é claro que ela iria lembrar. — Apresenta
ele pra nós, Aurora. Que falta de educação! Queremos conhecer seu amigo.

Se não estivesse tão nervosa com o que Dan pode falar, eu até riria da sua ênfase aguda na
palavra amigo. E se ele contar que ganhei a competição de MMA? Se negar que me conheceu na
faculdade? Se perguntar por que estou usando essa máscara no rosto?

Meu Deus! Conheço dona Maria das Graças. Enquanto não mostrar o menino, ela não vai
sossegar.

— Peraí, mãe.

Coloco o telefone na cama e me levanto o mais rápido que consigo para alcançar Dan na
janela. Pela sua cara, não está entendendo nada do que está acontecendo.

— Meus pais querem te conhecer, entra aqui. — Faço sinal para que pule a janela e cochicho
baixinho perto do seu ouvido. — Se eles perguntarem, confirme que me conhece da faculdade, tá? E
não conta do MMA e do seu tio Noberto, por favor. É uma longa história, aquela história... que
precisamos conversar...

Um dia... também não hoje.

Por mais que tenha vontade, nunca parece a hora certa para contar a ele o que houve, nem
para relevar a verdade aos meus pais. Eu fico com muito medo de dar esse passo.

— Tá bom, eu entendo.

Ele pula a janela e nos sentamos na cama para pegar o celular de novo. Mal levanto a câmera,
a minha cupida particular ataca com seus comentários.

— Nossa, como é bonito seu amigo Daniel. — Mais uma vez, ênfase no “amigo”. — Muito
prazer, eu sou Maria das Graças, esse é meu marido Vladimir e essa é a Sara, irmãzinha da Aurora.

— É um prazer conhecê-los. — Tímido, ele levanta a mão e acena para os três.

— Eu ouvi minha mãe conversando com a Auri que você pode ser como eu. Você acha que a
expressão “pagar o pato” tem alguma coisa a ver com arcar com as consequências de algo provocado
por outra pessoa?

Estamos conversando há um tempão e a Sara ainda está pensando nisso. É muito interessante
acompanhar os hiperfocos dos autistas. Podem mudar o tempo todo, em pequenos detalhes que
reverberam em suas mentes.
“Estava lendo sobre hiperfoco no autismo e acho que você é um dos meus.”

Impossível não sorrir com a lembrança do Dan e a tentativa de interação da minha irmã. Não
é com todo mundo que dá abertura de cara. Meus pais também sorriem.

— Quase nunca essas expressões têm, né? Uma mais doida que a outra.

— Ahhh, tá vendo?! Que bom que não sou só eu que acho muito sem sentido.

Minha mãe puxa assunto sobre como estão os testes da neuropsicóloga e meu pai fica apenas
de olho, aposto que avaliando o Daniel em silêncio. Pelo seu semblante sereno, acredito que não tem
ressalvas quanto a ele.

Por sorte, ninguém faz perguntas que obriguem Dan mentir por mim. Eu sei que autistas têm
uma grande dificuldade nesta questão. Uma qualidade louvável, inclusive.

— Bom, temos que ir agora. — Encerro a conversa antes que entrem em assuntos que quero
evitar. — Domingo que vem eu ligo de novo, no mesmo horário.

— Ainda vamos continuar a conversa de hoje, viu, mocinha?! — seu Vladimir alerta sobre o
dinheiro.

— Tá bom, pai, podemos conversar melhor depois. Mas amanhã, o dinheiro estará na conta e
quero muito que usem para a dívida. Por favor, eu imploro!

Eles acenam com a cabeça em concordância, mas seus olhos são muito transparentes e fica
claro que estão preocupados comigo. Não acho que desconfiem que eu estou mentindo, eles confiam
em mim — o que torna tudo pior —, a questão é que não querem me ver presa no passado, desviando
dos estudos para arrumar dinheiro.

— Foi um prazer conhecê-lo, Daniel — minha mãe afirma, observando-o com atenção.

— O prazer foi meu! Vocês são muito simpáticos e compreensivos, como a filha de vocês.

Compreensivo deve ser no sentido de conversar com paciência, sem julgá-lo pelo seu jeito
único. Fico tão triste quando penso o que deve ter passado esses anos todos.

Dan é incrível, quem deixou de conhecê-lo direito saiu perdendo.

— Ohhh, que belezinha. Faço muito gosto dessa amizade, viu?!

Minha mãe me olha sorrindo e acabo sorrindo também. Meu Deus, ela não desiste. Assim que
desligo a chamada, dou um abraço rápido no Dan e o agradeço pelo que fez.
— Fiquei nervoso no começo, mas até que eles são bem legais. Gostei da sua família.

— Eles são uns amores. — Passo a mão no cabelo e desvio o olhar para o chão. — Sei que
não entendeu direito algumas coisas que falei, desculpa te colocar nessa situação de forma
inesperada sem ter te contado meu passado.

— No seu tempo, olhos coloridos. — Dan estica a mão e percebo que irá levantar meu
queixo. — Não se sinta pressionada a me contar nada, enquanto não estiver pronta.

Suspiro e sorrio para ele, agradecida por ter conhecido alguém tão especial. Daniel é
exatamente tudo que eu precisava. Se tem alguém capaz de me fazer colocar uma pedra no passado,
com certeza, é esse garoto.

A Viviane me disse uma vez que eu era um anjo que apareceu na vida deles. Ela está muito
enganada. É o seu filho quem foi enviado por Deus para me trazer paz e felicidade de novo.

Todos os dias ele me prova que nem todos os homens são iguais e que há esperança para
mim.
CAPÍTULO 37

A noite foi muito divertida, ficamos viciados em conquistar territórios no War e jogamos até
onze horas. Só paramos quando a tia Ana Júlia veio buscar Mel. Não queria que a Aurora fosse
embora também, mas ela disse que dormimos tarde todos os dias e que não posso ficar cansado para
o trabalho. Principalmente esta semana, que será intensa na faculdade, porque vai acontecer um
simpósio de astrofísica organizada pelo departamento.

Eu fico feliz que ela se preocupe comigo, no entanto, mesmo assim preferia a sua presença.
Dá uma sensação de vazio no meu peito quando estamos longe um do outro. O professor João falou
que o nome disso é saudade.

Sinto muita saudade da olhos coloridos. O tempo todo.

Nas minhas pesquisas no Google, li que quando conhecemos os pais da pessoa que estamos
ficando, a relação cruza outro patamar. Apesar do receio no início, adorei conhecê-los. São
simpáticos e o contato significa que Aurora e eu avançamos no que temos.

O próximo passo é convidá-la para ser minha namorada. Eu, na verdade, queria que fosse um
pedido de casamento, visto que as buscas mostraram que é este o vínculo que nos comprometemos
definitivamente com alguém, porém, o professor João contou que seria arriscado. Algumas mulheres
se assustam com homens imediatistas demais.

Segundo ele, as pessoas precisam namorar, noivar e só depois se casar. É um ritual para
conhecer melhor quem vai dividir a vida. Na minha cabeça não faz sentido passar por tantos
processos para algo que tenho certeza, mas não depende só de mim. A olhos coloridos também
precisa ter essa convicção.

Serei paciente e vou esperar, assim como tenho aguardado o momento que se sentirá à
vontade para me contar o que lhe aflige. Não consegui entender bem do que se trata, no entanto, pelas
suas atitudes dá para perceber que é algo sério.

Quando quiser falar, estarei ao seu lado para ouvir e tentar ajudá-la como sempre me ajuda.

Fecho as portas da sala e da cozinha, desligo as luzes e sigo direto para o banheiro. Cerca de
dez minutos depois, estou de banho tomado e me sento nu na cama. Pego o meu notebook na mesa de
cabeceira e o pacote de lenço umedecido na primeira gaveta. Desde que Pablo me ensinou como
achar vídeos de sexo na internet, não consigo mais deixar de assistir. É relaxante e me ajuda a dormir
melhor.

Pelo menos, de acordo com as duas experiências que tive, a masturbação é muito mais
prazerosa. Não dependo de ninguém, não preciso ficar com medo de fazer algo errado e, o mais
importante, controlo o meu toque.

Tenho a impressão de que com Aurora não vai ser assim quando a gente chegar nesse ponto,
só de abraçá-la de sutiã aquele dia eu mal consegui respirar direito. Meu corpo ansiava por ela.

Os seus beijos também sempre ouriçam os pelos da minha nuca. Ela é diferente em tudo,
também deve ser nisso. Em pensamento, pelo menos, já é maravilhoso. No começo eu demorava um
pouco para realmente gozar, mas agora é fácil porque eu sempre penso que somos ela e eu.

Encosto na cama e abro um lenço umedecido no vão da minha perna para não fazer bagunça.
Com o computador apoiado na coxa, pesquiso no site pornô o tipo de vídeo que mais gosto de
assistir e logo aparecem várias opções.

Já tive a minha época de hiperfoco em sexo, depois das experiências ruins e a descoberta da
masturbação, e pesquisei o máximo que consegui sobre o assunto. Sei muito bem o que funciona e o
que não funciona para mim.

Filtro pela data de publicação, porque os antigos já vi a maioria, e clico no primeiro mais
caseiro que aparece. Não gosto daquelas produções montadas, com saltos altos, acessórios e lingerie
exagerada onde a garota me lembra a que fiquei no clube “O pecado de Eva”.

O vídeo começa com uma morena bonita de cabelo preso entrando no quarto de calcinha e
camiseta. Simples, atraente só por ser ela. O cara está saindo do banheiro e enlaça sua cintura
quando a vê.

Pelo diálogo entre eles, ele está atrasado para o trabalho, mas fica excitado ao notar sua
camiseta nela. Os dois se beijam com ânsia, como Aurora e eu fazemos às vezes, e a menina o
empurra para a cama, sorrindo.

“Vai ser rapidinho, me come gostoso, amor.”

Tenho que confessar que gosto desse linguajar típico do ato sexual quando estou assistindo
aos vídeos. Ajuda a me deixar mais pronto.

Ao retirar sua camiseta com avidez, lindos seios redondos saltam na tela do computador. Ela
não está de sutiã. Imagino que são os seios volumosos da olhos coloridos e seguro firme meu pau
com uma mão, fazendo movimentos lentos para cima e para baixo.

A fricção é gostosa e vai aumentando a intensidade gradativamente enquanto o homem


abocanha cada um dos seios com vontade e crava a palma da sua mão na bunda dela. Se tem uma
coisa que aprendi a gostar é o gemido verdadeiro de uma mulher durante o sexo. Tem uns muito
fingidos por aqui, no entanto, os que denotam ser sinceros sempre me trazem mais tesão.

É muito estimulante ouvir os murmúrios e a respiração acelerada, bem como ver as reações
instintivas do corpo a cada ação. Por exemplo, a cabeça inclinada para trás da garota no vídeo neste
instante, seus lábios entreabertos e a mão bagunçando o seu próprio cabelo. Ela parece perdida, de
um jeito muito bom.

Eu quero fazer Aurora se sentir assim, perdida em mim. Quero que arda de desejo, que me
queira tanto que não consiga parar. Quero que não se afaste, que me puxe para ela. Todo toque que
evitei até agora, não quero evitar com a minha garota.

Estou ansioso para que a brasa que causa em mim me aqueça por inteiro.

Arfo, apertando mais forte o pau e espalhando o líquido pré-ejaculatório pela glande com o
polegar. Subo rápido da ponta à base em um vaivém que me deixa extasiado. Faço de novo, de novo,
de novo...

A garota abre o zíper do seu companheiro e afasta a calcinha para o lado. Monta nele sem
terminar de se despir. Ahh, que delícia. Eu fico com ainda mais desejo quando a mulher fica por cima
e comanda.

Ela sobe e desce. Lento, rápido. Rebola, se esfrega. O cara está com tanto desejo que dá um
tapa forte na sua bunda e esmaga os seus seios com a outra mão.

Fecho os olhos por um segundo e imagino que estou deitado na cama e Aurora sobe em mim,
deslizando lentamente pelo meu comprimento duro e ereto. Deliciosa! Afasto o pensamento da
máscara esquisita que estava usando na pele, como minha mãe usava antigamente. Assim é o único
jeito que ele não fica muito bonita. Meu coração acelera quando vislumbro seu rosto limpo, os olhos
coloridos brilhando. Aumento a fricção dos movimentos e remexo na cama, notando aquela sensação
única despontar.

Ah... eu.... eu... vou...

— Dan, eu acho que esqueci meu celular na sala. — Uma batida na janela do quarto me faz
dar um pulo de susto e perder o clímax que estava muito, muito perto de chegar. — Só percebi agora
que voltei da academia, fui lá tomar banho. Tenho que ligar para a Pilar.

Pauso o vídeo, apressado, e me levanto, pegando outro lenço para passar na mão. Péssima
hora, olhos coloridos.

Será que vai perceber alguma coisa? Vai ficar brava?

— Dan, você tá aí? Desculpa se te acordei, é que vi a luz acesa.


— Eu tô. — Pigarreio para limpar a garganta e a voz sair. — Tô acordado. Já... já tô indo.
Espera aí.

Pego a cueca que tinha deixado separada em cima da cômoda e visto o mais rápido que
consigo com a bermuda de dormir. Apanho uma camiseta qualquer na gaveta e corro esbaforido até a
janela.

Meu pau está latejando pelo orgasmo reprimido. Caramba, foi por muito pouco que não gozei.

— Oi, foi... é o celular que esqueceu? — questiono, arfante, quando abro a janela e a observo
parada no jardim com o rosto confuso.

Minha respiração ainda está agitada e por mais que me esforce, a voz não está normal.

— Tava fazendo exercício? — Ela sorri, mas seu sorriso logo some quando abaixa o olhar.

Acompanho o movimento dos seus olhos e só então percebo que mesmo de cueca e bermuda,
é impossível esconder a excitação que continua dura e grande.

Tento disfarçar colocando a mão na frente, porém, é tarde demais. Ela desvia a atenção de
mim apenas para fitar a cama e comprovar de vez o que deve estar pensando: tem um computador
ligado e um saco de lenço umedecido na colcha como prova.

— Você... é... o que... estava fazendo? — pergunta, longos segundos depois de um silêncio
que me deixa aflito.

Tenho medo de falar a verdade e ela não gostar, e ainda mais de tentar mentir e ser pior. A
olhos coloridos disse que podíamos conversar de tudo.

— Eu estava assistindo pornô — respondo, direto.

— Você gosta... gosta de pornô? — questiona de novo, trocando o peso de uma perna para
outra, sem desviar o olhar de mim.

— Sim... — Não sei muito bem se devo estender o assunto ou não.

Aurora parece assustada. Mas seus olhos estão brilhando e o corpo continua agitado, se
mexendo toda hora.

Não consigo entender suas reações.

— Você está brava comigo por isso? Me desculpa, eu...

— Não, eu não estou brava — ela me interrompe, antes de terminar a frase. — Fiquei... eu só
fiquei surpresa. Não estava esperando isso.
— Surpresa ruim ou boa? Você ficou assustada? Parece assustada, não queria te causar
incômodo com isso. Desculpa, olhos coloridos...

Passo a mão no cabelo e começo a andar próximo da janela. A gente estava se dando tão bem,
e se ela mudar comigo a partir de hoje por causa disso? Talvez fosse melhor não ter respondido sua
pergunta, ter ido procurar o telefone na sala.

Não quero que nada mude. Não pode mudar.

— Calma, Dan! — Aurora pula a janela e vem na minha direção, preocupada. — Respira,
você está ficando ansioso. Eu te juro, não estou brava nem assustada. Acredite, não senti nada ruim
em te ver assim. Você pode estar acostumado a pedir desculpa pra todo mundo por ser sincero, mas
nunca faça isso comigo. Eu adoro sua sinceridade, adoro saber que posso confiar em você.

— Eu tenho tanto medo de te perder — confesso, fitando seu rosto. — Tenho medo de dizer
ou fazer algo que não gosta e acabar te afastando.

— Eu já falei isso e vou repetir: quero que seja você mesmo comigo, jamais faça algo que
não gosta pra me agradar. Não se esconda. — Aurora estica a mão e avisa com o olhar que vai tocar
meu cabelo. Eu adoro os seus dedos no meu cabelo! — Quando me mostrei de verdade pra você esta
semana, foi porque eu quero que a gente vá além na nossa relação. Somos diferentes da maioria dos
casais, as coisas vão mais devagar, no nosso tempo. E eu amo isso! Mas não ache que não sinto
desejo por você. Eu sinto. E foi exatamente o que senti agora. Não medo, não raiva. Só desejo, Dan.

— Desejo? Então você gostou? — confirmo, para ter certeza de que entendi.

— Sim. — Ela morde os lábios e volta a olhar para a minha bermuda. Deu uma diminuída,
mas ainda está evidente.

— Se eu contar... se eu disser que há cinco minutos era o seu rosto que vinha na minha mente,
você vai ficar chateada?

— N... — Ela engole em seco e troca o peso da perna mais uma vez. — Não.

— Eu penso que somos nós dois faz um bom tempo. — Dou um passo para frente e ficamos
tão perto que é possível sentir o ar pesado da sua respiração no meu rosto. — Nunca fiquei tão
excitado antes.

— Dan! — Aurora arfa e dá uma leve puxada no meu cabelo.

Entreolhamo-nos de forma tão intensa que as batidas vêm desesperadas tomar conta do meu
peito.

— Cel... você quer... procurar seu celular? — pergunto, ao lembrar do motivo que a trouxe
aqui.

— Não. — Quase não escuto seu sussurro.

— O que você quer fazer?

— Quero... eu quero que você me beije, Daniel.


CAPÍTULO 38

— Sempre! — Dan sorri e se inclina para fazer o que eu pedi.

Seu sorriso é tão amplo, como se estivesse feliz por comprovar que não estou brava, que faz
os ecos do meu coração reverberarem pelo corpo. Estou sentindo um misto de várias coisas neste
momento, e nenhuma passa nem perto disso.

Depois de tantos anos, eu quero de novo. Quero me render a este garoto de corpo e alma.

Os seus lábios encostam nos meus de forma suave, mas minha pele está tão ávida por sentir a
sua, que o puxo para mais perto e afundo meus dedos no seu cabelo ruivo molhado. A proximidade
faz um arrepio subir pela minha coluna e a minha língua se tornar inquieta na sua boca.

Ele não demora a corresponder a minha tempestuosidade. Desço a mão para o seu peito e
permaneço com a palma aberta na altura do seu coração. As suas batidas também estão fortes,
possibilitando que consiga experimentar o pulsar nos meus dedos.

Quando ele pega na minha nuca para intensificar o que já está quente, não resisto a soltar um
gemido baixo, que o faz agir da mesma forma. Instintivamente, seu corpo se esfrega no meu e consigo
notar a sua ereção voltar a ficar evidente na bermuda.

Eu realmente quero fazer isso.

Ciente de que preciso lhe contar a verdade primeiro, mordo seu lábio inferior e diminuo a
velocidade até que estejamos com as testas encostadas uma na outra, tentando retomar o fôlego.

Nossos olhares se encontram e Dan volta a sorrir para mim, daquele jeito único que é capaz
de me preencher de esperança.

— Vamos nos sentar pra conversar um pouquinho? — convido e recebo um aceno em


concordância.

— O que foi? Aconteceu algo? — questiona, ao me observar sentar e passar a mão na calça
de moletom.

— Aquele dia que nos abraçamos ouvindo música, eu te confessei que já vinha sentindo essa
vontade de me aproximar de você fisicamente. O que estava me barrando era o meu passado. —
Daniel se senta ao meu lado e busca meu olhar para prestar atenção. — Ele ainda tem muita
influência em mim, mesmo quando eu sei que você não é igual, quando eu sei que não preciso ter
medo de você. Eu fiquei surpresa, sim, quando cheguei aqui e constatei o que estava acontecendo,
porém, foi comigo mesma por realmente te querer, porque senti um desejo tão grande que nem me
lembrava mais como era.

A primeira reação que tive ao ver sua ereção e o computador na cama foi de espanto. Não um
espanto ruim. Foi diferente ver o Daniel proporcionando seu prazer com masturbação. Acostumei-me
tanto com o seu lado fofo e inocente, que não estava esperando por aquilo.

Mas essa reação inicial foi logo substituída por um choque de desejo pela minha pele.

Dan é homem, independentemente de ser autista ou não. Ter dificuldade com interação social
ou de entender figuras de linguagem não significa que tem problemas com sua sexualidade. Ele tem
seus gostos, suas necessidades e com certeza sente tesão como qualquer pessoa. Saber que pensou
em mim várias vezes enquanto chegava ao clímax, e jamais tentou avançar nada durante todo esse
tempo, só fez amplificar a minha vontade de ser dele.

Daniel me respeita. Ele me vê além de um rosto bonito e um corpo cheio de curvas.

— Hoje você me fez decidir por algo que a terapeuta tem reforçado em todas as sessões que
fui. Devo lutar contra a minha cabeça e deixar o que passou pra trás. O meu passado não deve ditar o
meu presente. — Estico a mão e o convido a entrelaçar os dedos nos meus. Daniel vem de prontidão,
me causando uma batida mais forte no peito. — E eu tenho certeza, Dan. Tanto que você é bom, como
que quero ser sua.

— Aurora... — Ele arfa e aperta firme nossas mãos unidas.

— Antes de acontecer qualquer coisa entre nós, você precisa saber a verdade. Não porque eu
acho que você vai fugir ou mudar comigo depois, mas porque você merece saber.

— Você não precisa, eu não...

— Eu quero contar, Dan. Quero de coração, preciso disso. Acho que te falar em voz alta vai
me ajudar também.

— Se for te ajudar, então, estou aqui, olhos coloridos. Posso não saber bem como reagir, ou o
que fazer, mas saiba que vou ficar do seu lado.

— Eu sei que vai. — Não penso muito para começar a falar. Engulo em seco e espanto as
lágrimas que se acumulam nos meus olhos. — Quando fui para o terceiro ano, entrei em uma escola
nova na minha cidade natal, em Minas Gerais. Fui admitida como bolsista e estava cheia de planos
para me formar em veterinária. Só que eu me desviei desses objetivos por causa de um garoto rico
que estudava lá também. Comecei a mudar meu jeito de ser para agradá-lo, para ser aceita na sua
turma. Faltava às aulas, vestia roupas extravagantes que não combinavam comigo, cheguei até a usar
drogas, Dan. Me arrependo tanto disso... — Inspiro fundo e fito nossas mãos entrelaçadas em cima
da cama. Daniel me observa completamente focado nas minhas palavras. — Começamos a ficar e
depois de meses juntos, decidi fazer sexo com ele. Não era virgem na época, mas já tinha me
decepcionado com o meu primeiro e não queria sofrer de novo por alguém que não valesse a pena.
Por isso, esperei. Quando conseguiu o que queria, Otávio mudou demais comigo. Ficou distante. Para
comemorar o recesso de julho, a galera da escola se reuniu para uma festa na casa dele. Foi a
primeira vez que entrei lá, nunca tinha me levado antes. Nessa festa... nessa festa ele e o seu amigo
Maurício me embebedaram. Não tinha o costume de beber, qualquer dose já me deixava alterada. E
eu bebi muito nesse dia, tentando fazer ele voltar ao normal comigo, para agradá-lo. “Linda”, Otávio
dizia a cada vez que me trazia um copo, e eu cedia.

— Não... não estou gostando do rumo dessa história. O que ele fez com você? Ele te
machucou, olhos coloridos? — Dan questiona, aproximando-se mais de mim na cama. Seu tom de
voz é alarmado.

— Sim. — Não consigo mais conter as lágrimas que descem pelo meu rosto. — Aquele dia
que você me ouviu gritar no sonho, era porque estava relembrando essa festa. Otávio me levou para o
quarto dele com Maurício e um outro amigo que sempre andava com a gente, Elton. Eles... eles me
estupraram.

Por muito tempo, eu mal consegui pensar nessa palavra. Uma vergonha profunda me atingia
no instante que as letras se formavam na minha cabeça. Hoje eu sei que preciso, sim, pensar e falar.

Foi estupro. Essa parte da história a culpa não é minha.

— Eles? Os três? Os três te violentaram? — As pupilas do Daniel estão dilatadas e seu peito
sobe e desce em um ritmo acelerado. Vai começar uma crise de ansiedade se não o acalmar. — Por
isso você se esconde nessas roupas largas, por isso não gosta que olhem pra você, agora tudo faz
sentido...

— Inspira fundo comigo. — Faço o movimento na intenção de acalmar a si e a mim. Daria


tudo para apagar de vez essa parte da minha vida. — Já passou, Dan. Foi a muito tempo, eles não
podem me fazer mal agora.

Eu espero que não mesmo! Meu lado medroso nunca consegue ficar 100% em paz, mesmo a
quilômetros de distância. Eu não duvido que eles possam me importunar de novo.

— Os três? Os três ao mesmo tempo te estupraram? — insiste em saber, ainda agitado.

— Graças a Deus, tenho pouquíssimas memórias do ato em si por causa do meu nível de
embriaguez. Lembro-me de ser jogada na cama, dos três rindo também alterados pelo álcool. Tiraram
a calça e Maurício se aproximou forçando o pênis na minha boca. — Seguro a ânsia de vômito, até
hoje não consigo entender como Otávio teve coragem de me oferecer dessa forma para os seus
amigos. Como eles tiveram coragem de se aproveitar de uma garota totalmente bêbeda. — Apesar
das inúmeras tentativas para abafar o que fizeram, foi encontrado traços do esperma do Otávio e do
Maurício em mim. Então, embora sem a memória completa, tenho certeza de que aconteceu. O Elton
não tenho certeza absoluta, mas não ter sêmen não significa que não houve abuso.

Houve uma época que cheguei a duvidar de mim mesma. E se eu estivesse louca? Se minha
cabeça inventou? Fiquei tão abalada com tudo ruindo à minha volta que não confiava na minha
sanidade.

Mas no fundo eu sempre soube. Meu coração machucado sabia muito bem o que tinha
acontecido.

— Filhos da puta! — Dan vocifera, bravo, como nunca o vi antes. — Eu... eu sinto muito,
muito mesmo por tudo que passou, minha olhos coloridos. Me diga que eles foram presos, que estão
apodrecendo atrás das grades.

— Pior que não — confirmo baixo, sentindo uma pontada no peito.

O choro aumenta, mais doloroso. Isso é o que mais me machuca e me transformou na Aurora
que fui até três meses atrás.

O que vem depois é o que realmente me destruiu. O abuso foi apenas uma gota perto da
tempestade que sucedeu aquela maldita festa.

Eu nunca... nunca vou conseguir me perdoar por ter feito meus pais passarem pelo que
passaram.

— Não chora, por favor, Aurora. — Dan estica as mãos e avisa que vai me abraçar. Minha
cabeça repousa no seu peito e o som forte do seu coração me acalma um pouco junto com o carinho
que faz nas minhas costas em movimentos de cima para baixo. — Estou aqui por você.

Seco as lágrimas e me proíbo de deixar essa história me afundar em tristeza mais uma vez.
Não quero mais pensar nisso. Contar ao Dan tem que ser libertador, não um poço de lamentações.

Chega de passado. “Eu consigo esquecer, eu posso ser feliz!”, reforço as palavras sugeridas
pela terapeuta para o meu cérebro.

— Eu acho que você pode me ajudar a afundar essa memória de uma vez por todas. —
Levanto a cabeça e encaro seus olhos cor de mel expressivos.

— Como? Eu faço o que você quiser. O que eu puder pra te ajudar.

Eu estou pronta. Eu quero. Quero com Dan!

— Faz amor comigo. Apaga a última lembrança dolorosa que eu tenho com seu jeito especial,
seu modo carinhoso e respeitoso de me tratar.
— Amor, tipo sexo? Nós dois aqui na cama, agora? — confirma meu pedido com a pupila
novamente dilatada.

Desta vez, por um outro motivo. É perceptível pela mudança no tom da sua voz. Seu
semblante empolgado e ao mesmo tempo com dúvida me faz ter vontade de sorrir.

Só ele tem sido capaz de me despertar desta forma.

— Se você quiser, sim.

— Se eu quero? É claro que eu quero. Não sei se vou saber como apagar a sua lembrança,
como pediu, mas eu prometo que vou tentar.

— Só seja você, que com certeza irá ajudar, Dan. — Termino de secar os últimos resquícios
do choro no meu rosto e afasto-me dele para olhar bem fundo nos seus olhos. — Mas precisamos
reforçar algumas coisas importantes: não faça nada que não goste. Se eu te tocar de um jeito
desconfortável, me fale na mesma hora.

— E você também, por favor! Eu jamais quero te machucar, se sentir dor, se quiser parar...
me avise.

— Combinado. Sexo oral não vai ser uma opção para mim no momento. Eu tenho certeza de
que irá ativar os gatilhos daquela noite.

— Sem nenhum problema, eu não gostei das duas experiências que tive. Sei que as mulheres
sentem mais prazer assim, mas também não fico confortável em fazer. — Sua bochecha assume um
tom avermelhado fofo e eu fico ainda mais encantada por ele. — É muito molhado, a textura me causa
desconforto.

— Tudo bem, essa conversa é essencial. Não tenha vergonha de falar. Vamos aos poucos
descobrindo como gostamos e ajustando nossa sintomia.

Passo a mão no peito para tentar inutilmente acalmar a aceleração desenfreada do meu
coração e volto a me aproximar dele. Dan está parado, mas parece que correu uma maratona pelo
tanto que seu peito sobe e desce.

Ambos estamos agitados e sem saber ao certo como começar.

Só tenho uma certeza: eu o quero de verdade e não vou deixar meu passado estragar este
momento. Ele não é como Otávio, Maurício e Elton. Daniel me respeita.

Tomo a iniciativa para não o deixar ansioso e volto a tocar seus lábios macios. A eletricidade
invisível que nos une está tão forte que não conseguimos ir mais devagar. O beijo rapidamente se
torna um duelo de línguas, trazendo o desejo que senti assim que cheguei aqui à tona de novo.
Dan segura minha cintura para me levar para mais perto dele e mordisca meu lábio inferior. A
intensidade aumenta tanto que instintivamente ele começa a me puxar para cima do seu corpo.

Perdida no gosto bom da sua boca, assumo de vez o controle do meu desejo e inclino-me para
frente, sentando-me no seu colo. O barulho do meu chinelo escorregando para o chão acontece ao
mesmo tempo que seus dedos apertam minha cintura e me ajudam a encaixar bem em cima do seu
membro duro.

Nossa... ele... Um gemido me escapa ao perceber como realmente quero isso.

— Tá tudo bem, olhos coloridos? — pergunta, arfante, afastando-se míseros milímetros da


minha boca.

— Está mais do que bem. E com você?

— Nunca estive tão bem. — Dan sorri de lado e volta a me beijar, como se precisasse disso
mais do que o ar para respirar.

À medida que nossos lábios se entregam um ao outro, é impossível refrear o movimento que
meu quadril faz para frente e para trás, se esfregando nele. Pego uma mecha do seu cabelo com a mão
direita e apoio a esquerda no seu ombro para manter o equilíbrio.

Minhas batidas estão tão rápidas e meus joelhos tão fracos que parecem ser capazes de me
derrubar.

Também parecendo desesperado, ele passa a apertar a minha cintura com as duas mãos
ajudando a aumentar a fricção. Meu Deus, como isso é gostoso. Tinha me esquecido como se entregar
a alguém por vontade própria é prazeroso.

Quando ficamos sem fôlego, inclino a cabeça para trás para inspirar fundo e Daniel aproveita
para descer a sua boca no meu pescoço. O toque dos seus lábios quentes ali me faz soltar outro
gemido.

— Caramba, esse negócio de feromônios é muito sério — ele comenta, com a respiração
entrecortada, quando para de me torturar e volta a procurar meu olhar. — Seu cheiro é viciante, como
se acendesse um alerta direto ao meu cérebro. Te tocar é tão diferente, é muito gostoso, olhos
coloridos.

— Está gostoso pra mim também. — Mordo o lábio e pressiono meu centro no seu membro
duro, procurando alívio. — Muito. Gostoso.

Entre murmúrios indecifráveis de nós dois, Daniel segura a barra da minha camiseta e a puxa
para cima. A faixa branca que eu uso para cobrir os seios desponta na sua visão e ele pede permissão
com o olhar para tirá-la.
Aceno com a cabeça e fico acompanhando arfante seus dedos ágeis retirarem o pedaço de
pano que usei para me esconder. A partir de hoje, não quero mais precisar dele. Nem dessas roupas
largas, que ocultam a verdadeira Aurora.

Assim que passa pela última volta e meu sutiã preto de renda fica nítido, ajeito a postura no
seu colo e eu mesmo abro o fecho antes que pense demais sobre isso.

Daniel acompanha o movimento das alças saindo no meu braço vidrado, como se eu fosse um
espetáculo no céu que ansiou ver por muito tempo. Seus olhos transmitem tanta intensidade e carinho
por mim que meu peito volta a bombear adrenalina pela corrente sanguínea a todo vapor.

A peça cai na cama e eu finalmente o permito ver de verdade uma parte do meu corpo que
vinha odiando por muito tempo. Meus seios são bem grandes e redondos, a faixa foi uma forma que
encontrei para que não chamasse tanto a atenção dos homens.

“Você é provocativa, usa decote de propósito para seduzir.”

Balanço a cabeça com força e fixo minha atenção no olhar do Daniel, que está preso na
curvatura volumosa. De onde estou, posso observar sua boca salivar e a garganta se mexer.

Ele não toca, não se mexe por longos segundos, apenas não desvia seu foco deles. Minha
respiração fica curta, as mãos suadas não sabem onde tocar, o que fazer a partir de agora.

— Vo... eles... seus... — Dan pigarreia para que a voz consiga sair sem gaguejar. — Seus
seios parecem da Mia Khalifa. Tão grandes, tão...

— A atriz pornô? — Gargalho, sentindo a tensão do momento se dissipar.

É impressionante como o que poderia ser considerado uma inabilidade do Dan na sociedade,
encaixa totalmente com o que preciso. Seu jeitinho especial sempre me acalma, me lembra quem ele
é.

— Foi um péssimo comentário, né? — Passa a mão no rosto e suspira. — Nossa, me


desculpa, eu sou...

— Não, não foi, Dan — acalmo-o, acariciando seu cabelo. — Seu comentário me fez rir,
ajudou a relaxar. Ficar nua pra você é um grande passo pra mim.

— Jura? Sério? Eu devia ter pensado mais pra falar, mas é que são tão... apetitosos. Sempre
tive vontade de tocar os da Mia. — Ele bate a mão na testa e balança a cabeça. — Merda, olha eu
falando de novo...

— Não tem problema compartilhar comigo suas fantasias, Dan. — Sorrio e tiro a sua mão da
testa. — A gente combinou de falar tudo. Não sou a Mia, mas... você pode me tocar, se quiser.
— P... po... Posso agora?

Aceno com a cabeça e seguro a respiração enquanto o aguardo se aproximar hesitante dos
meus seios. Quando os dedos alcançam a pele sensível, eu inspiro, aliviada, ao sentir uma faísca
percorrer minha espinha e nenhuma lembrança chegar à mente.

Eu vou conseguir. É o Dan, nós vamos até o fim. Eu quero, quero muito.

Seu toque começa lento, explorando o tamanho e o peso. Ao resvalar pela aréola, mexo o
corpo involuntariamente e um murmúrio excitado invade o quarto. O som é a autorização que ele
precisava para perder o controle e apertar os dois seios com as mãos ávidas.

— Ah, Dan. — Meu quadril inicia a dança ritmada para frente e para trás no seu colo e a
minha calcinha começa a ficar molhada.

— Posso... posso colocar a boca?

Aceno com a cabeça, incapaz de dizer uma palavra tamanha expectativa, e arfo mais alto
assim que seus lábios se fecham sobre um dos mamilos, sugando com força. Arqueio para trás
quando uma mão apoia as minhas costas e a outra acaricia o seio que não está tendo a sorte no
momento de ser agraciado pela ânsia da sua boca.

Daniel parece esfomeado. Chupa, mordisca o bico, lambe. Repete várias vezes com a mesma
ânsia.

Aumento a fricção no seu membro sentindo minha calcinha ficar melada de tanta excitação.
Nossa, eu... faz tanto... caramba, eu não vou aguentar por muito tempo. Desde aquela festa, eu sequer
me toquei durante os últimos anos.

Tentei realmente apagar qualquer resquício da Aurora que queria esquecer. Nada de beleza,
nada de prazer.

— Aurora... — Sua voz sai áspera, quase um grunhido, pelo tesão que sei que está sentindo
devido ao tamanho da sua ereção abaixo de mim. — Isso é tão... tão gostoso. Nada... nunca...
parecido.

Daniel não fala muito porque sua boca volta a me atacar, agora no outro seio. A tortura
apetitosa parece não ter fim e me deixa cada vez mais mole nos seus braços. Ao ficar sem fôlego, ele
sobe a cabeça para me olhar, com uma veneração que nunca recebi antes, e sorri antes de virar meu
corpo e afundar minhas costas no seu colchão macio.

Ajeito meu corpo no centro da cama enquanto ele se levanta depressa, joga o computador de
qualquer jeito na cômoda e praticamente arranca a camiseta e a bermuda que estava vestindo. Seus
olhos não abandonam os meus, fazendo meu coração bombear desenfreado.
Ai, meu Deus. Eu estou apaixonada por esse garoto lindo. Com certeza, estou muito
apaixonada.

Em silêncio, ele se inclina na minha direção e avisa com o olhar que que vai tirar a minha
calça de moletom. O movimento também é guiado por seu foco somente no meu rosto. E eu amo que
ele esteja fazendo isso.

O ar gelado que vem da janela toca minha pele, mas logo o calor volta com tudo quando seu
corpo vem por cima do meu. Dan segura meu queixo com uma mão e com a outra solta o rabo de
cavalo esparrando meus fios castanhos pelo seu lençol.

— Você é a mulher mais linda que já vi na vida — ele sussurra, próximo ao meu rosto. —
Meu coração nunca esteve tão barulhento como agora.

Mordo os lábios, sorrindo sem saber como responder à altura, e puxo seu rosto para beijar
sua boca. O tecido fino da sua cueca e da minha calcinha torna a fricção dos nossos corpos ainda
mais poderosa.

Gemo na sua boca, sentindo-me tão molhada lá embaixo que mal consigo raciocinar direito.
Necessito de alívio, não... não posso mais.

Como se lesse meus pensamentos, Daniel desce uma das suas mãos pelo centro do meu corpo
e para na parte interior da coxa. Arfo, jogando a cabeça para trás só de imaginar o que pretende
fazer.

— Nos vídeos que eu assisto, as mulheres sentem bastante tesão quando os homens as
masturbam com o dedo. Pos... posso tentar, olhos coloridos? — pergunta, buscando meu olhar.

— S... si... sim.

Hesitante, como se não soubesse o que esperar dessa nova experiência, ele afasta a calcinha
para o lado e fica observando minha reação. Um dedo comprido escorrega para dentro de mim,
arrancando suspiros e murmúrios incompreensíveis da minha boca.

— Oh, meu Deus! — consigo formar uma frase quando Dan entra e sai mais rápido,
curvando-se dentro de mim e provocando um efeito arrebatador.

— Esse eu amei, assim como chupar seus seios — ele confessa, respirando entrecortado. —
É maravilhoso a visão aqui de cima, te vendo contorcer de desejo.

Daniel encaixa mais um dedo e a sensação de ser alargada faz minha cabeça girar. É
impossível controlar meu quadril que se remexe desesperado tentando aliviar a pressão cada vez
maior que se forma no meu ventre.
— Faz muito... não vou conseguir... aguentar.

Acho que é exatamente o que ele quer, porque no instante que digo isso, seu polegar encontra
meu clitóris enquanto os outros dois continuam lá dentro, deslizando fundo pelo buraco molhado.

O vaivém rápido, associado ao estímulo no meu ponto mais sensível, faz minha boca
entreabrir e minhas mãos agarrarem o lençol com força. Não consigo ficar calada, os sons saem
desenfreados da mesma forma que me esfrego nele, ansiando pelo orgasmo.

— Dan, continua assim. Ah, por fa... Ahhhh! — Mal reconheço minha voz desesperada.

Observando-me fascinado e sorridente, Daniel inclina a cabeça na direção do meu seio


esquerdo e começa uma nova onda de provocações. Ser estocada e chupada ao mesmo tempo é
demais para mim.

Menos de um minuto depois, desfaço-me no lençol em contorções violentas que causam


espasmos em toda parte inferior do meu corpo.

— Incrível... nossa, eu...

Pressiono as pernas quando seus dedos me abandonam. Sinto a falta imediata, foi tão gostoso
que meu corpo quer mais, anseia por mais dele.

— Foi delicioso te ver gozar — Daniel confessa, subindo sua mão até a minha cintura. —
Muito, muito mais excitante do que qualquer outra coisa que tenha vivido até agora.

— Vai ser ainda melhor quando estiver dentro de mim. — Acaricio seu cabelo e trago seu
rosto na minha direção para mordiscar seu lábio. — Eu quero você dentro de mim.

O seu gemido alto em resposta me deixa ainda mais pronta. Pergunto sobre a camisinha e Dan
se levanta para pegar no guarda-roupa. Sorrio quando explica que guarda uma caixinha dentro da
validade em casa, por precaução.

— O Pablo diz que “é melhor prevenir do que remediar”. Não estava esperando usar tão
cedo, mas agora estou muito feliz por ter guardado isso aqui. Pra ser com você.

De volta à cama, eu o convido a tirar sua cueca ao mesmo tempo em que me desfaço da
calcinha. Seu membro está tão grande, rosado e cheia de veias que é impossível desviar a atenção
dele. Seus pelos ali também são ruivos, chamando ainda mais meu olhar naquela direção.

— Esse olhar... — Dan comenta, rouco. — Esse olhar seria capaz de me fazer ter um
orgasmo.

— Você é lindo. — Sorrio e o chamo para se aproximar de mim, fazendo um movimento com
o dedo.
— Você é a minha olhos coloridos perfeita e viciante.

Vidrada, fico observando-o abrir o pacote e vestir a camisinha ao meu lado. Tendo em vista
que só teve duas experiências sexuais, péssimas, segundo ele, os vídeos pornô foram uma ótima
escola.

Dan aprendeu direitinho.

Quando está pronto, Daniel pede para que eu fique por cima dele. Obedeço prontamente,
contente por comandar o ato. Assim será ainda mais difícil alguma lembrança rasteira aparecer.

Ele me deu poder, eu vou ditar o ritmo. Ninguém vai me subjugar.

Encaixo minhas pernas ao seu redor e me inclino para beijá-lo de novo. Meu cabelo se
esparra no seu peito e ele segura minha nuca forçando meu corpo ainda mais para baixo. Nossas
peles se tocam e um arrepio incendeia minha pele.

Nem fiz nada ainda, e já estou pronta para ele.

Ao perder o fôlego, mais uma vez na noite, fico ereta novamente e seguro seu membro para
encaixá-lo em mim. Dan segura a respiração e me fita com as pupilas dilatadas.

Seu comprimento é tão grosso que a sensação de ser alargada me faz soltar um gemido alto.
Daniel geme comigo, fincando seus dedos na carne do meu quadril. Deslizo lentamente tanto para o
meu deleite quanto para o dele.

É revigorante ouvi-lo perdido em sensações.

— Que... gostosa, olhos coloridos.

Seu elogio me incentiva a descer de vez e um sorriso desponta nos meus lábios ao captar o
instante que sua boca se entreabre e ele joga a cabeça para trás, afundando-a no travesseiro.

Nosso encaixe é perfeito, tão... completo.

Apoio as mãos no seu peito e começo a me movimentar para cima e para baixo. Nada mais
passa na minha mente a não ser este momento.

Com meu Dan.

A cada vez que eu desço até o fundo, ele me aperta mais forte e solta mais sussurros. Suor
escorre pela minha testa enquanto as pernas se flexionam e esticam quicando sem parar. Ora lento,
ora rápido.
Assim como acontece quando estou fazendo exercícios, a adrenalina não deixa a minha perna
machucada doer. Nada vai atrapalhar este momento.

Tiro minhas mãos do seu peito para fazer um coque no meu cabelo e Dan aproveita para
atacar meus seios os apalpando cheio de luxúria. A pressão no bico me faz arfar e aumentar o ritmo
da cavalgada.

Sorrio para ele, que não desvia os olhos dos meus por nenhum segundo sequer.

— Linda — elogia e eu coloco as minhas mãos por cima das suas, ajudando-o a me estimular.

Minha pele fica tão quente, que é como se o fogo se espalhasse de dentro para fora, soltando
faíscas grandes e poderosas por todo lado.

— Dan... — aviso-o, quando o êxtase retorna, impiedoso, crescendo pelo meu ventre.

Não preciso dizer mais nada para ele entender que estou chegando ao limite. Levantando seu
quadril, Daniel vai de encontro a mim e intensifica ainda mais as estocadas.

O barulho dos nossos corpos se unindo de forma tão única cria uma música nos meus
ouvidos. É maravilhoso ser dele. Foi a melhor decisão que já tomei desde que fugi de Pirapora.

— Ahhhhhh, olhos colo.... Ohhhh!

Sinto um jato preencher a camisinha no mesmo instante que o êxtase atinge seu ápice dentro
de mim. Meu peito se infla de um sentimento revigorante de calmaria. É isso que Dan é: uma brisa
quente e aconchegante que me aquece inteira.

Sem forças, solto o peso do meu corpo e me deito no seu peito para retomar o fôlego.

Nenhum de nós consegue dizer uma palavra por longos segundos, apenas respirar apoiados
um no outro.

— Nunca mais vou achar graça na pornografia depois disso — ele quebra o silêncio e busca
meu olhar. — Perder o sono assim e correr o risco de ficar cansado no trabalho vale muito a pena.

— Eu também amei, foi muito especial pra mim. Você nem imagina o quanto.

Depois disso, não há como as memórias ruins daquela festa serem mais fortes dentro de mim
do que a alegria que me preencheu.

— A gente vai poder fazer todo dia? — pergunta, ansioso, e me afasta delicadamente dele
apenas para tirar a camisinha. Assim que a joga no canto da cama, me puxa de volta para os seus
braços. — Se eu já estava viciado em você, agora vai ser impossível te tirar da minha cabeça. Seu
cheiro está impregnado em mim, e olha que não gosto de cheiros. Você faz tudo ganhar outro
significado.

— Acho que sim — respondo, sorrindo. — Você gostou mesmo? Tudo que sentiu foi melhor
do que tinha vivenciado antes?

De repente, me vem uma necessidade enorme de ser para ele tudo que tem sido para mim. De
ser única a ponto de não querer mais ninguém.

— Eu não sei nem explicar o que estou sentindo, olhos coloridos. — Dan sorri e coloca uma
mecha do meu cabelo atrás da orelha. — A única comparação que consigo pensar no momento são
com os misteriosos quasares, criados a partir da luminosidade produzida por matéria que está sendo
absorvida por um grande buraco negro supermassivo no centro de algumas galáxias. A potência do
seu brilho supera em dezenas de vezes todos os outros objetos descobertos pelos astrônomos até
hoje. Você é como um quasar para mim, capaz de iluminar tudo à minha volta e encher cada
pedacinho do meu corpo de uma energia poderosa que ainda não compreendo direito, mas fico
fascinado.

— Uau! — Meu coração não tem descanso perto deste garoto. Posiciono minha cabeça na
altura do seu coração, ciente de que sou uma mulher muito sortuda por tê-lo conhecido. — E as
pessoas ainda acham que autistas não têm sentimentos e são frios. Nunca vi uma declaração mais
linda do que essa.

— É a verdade! Você aceitou quem eu sou desde o início, se tornou minha amiga, me ajudou a
descobrir um possível diagnóstico libertador, vai comigo na psicóloga, tem um beijo viciante e é a
única pessoa capaz de fazer o toque ser desejado por mim. — Ele me olha fixamente e noto sua
garganta se movimentar antes de voltar a abrir a boca. — Eu quero ter você na minha vida de forma
definitiva, mas sei que devemos ir devagar até ambos termos essa certeza. Aurora, você... você
aceita namorar comigo?

— Seria uma honra ser sua namorada — respondo, radiante, e seu rosto se ilumina com
aquele sorriso que eu amo. Amplo, verdadeiro, transparente.

“Eu quero ter você na minha vida de forma definitiva.”

A frase continua reverberando pela minha mente e causa um reboliço gostoso no meu peito.
Eu consigo imaginar uma vida com Daniel Lima.
CAPÍTULO 39

Guardo o pote de manteiga na geladeira e me sento na banqueta da cozinha para fazer um


lanche. É raro eu jantar, não sou muito bom na cozinha e prefiro comer apenas o meu pão com
achocolatado mesmo. Ainda bem que é possível conquistar a Aurora pelo estômago comprando bolo
de cenoura para ela.

Sorrio ao pensar na minha namorada. Namorada! Mal posso acreditar na noite que tivemos
ontem e que ela aceitou ser minha. Pensei que nunca iria me adaptar a relacionamentos com mulheres,
por causa da experiência com a Monique e a garota do clube, mas o problema não era comigo.

O problema é que elas não são a olhos coloridos. Aurora esteve por aí esse tempo todo,
perfeita para mim, e eu não fazia ideia. Não consigo mais imaginar um dia sequer sem a sua
presença.

Estou ansioso para ficarmos sozinhos no meu quarto mais uma vez e eu poder me perder no
seu cheiro.

Olho no relógio da parede e dou uma mordida no pão para ver se o tempo passa mais rápido.
A essa hora deveríamos estar na terapia, mas a clínica passou por um processo de dedetização hoje e
Aurora acabou indo a uma reunião com o tio Noberto e o Pablo sobre um outro evento de MMA que
vai acontecer em agosto.

Os testes da neuropsicóloga são exaustivos, mas me obrigo a ficar animado para fazer porque
quero saber logo meu diagnóstico. Já passamos da metade das sessões, em poucas semanas eu
finalmente terei uma resposta.

A melhor parte está sendo a terapia, se eu soubesse que iria ser tão bom, teria começado
antes. Ela tem me ajudado muito a controlar a ansiedade.

— Dan! Você tá aí? — Uma batida na porta me tira dos devaneios. É a Mel, pela voz infantil.

— Pode entrar, tá aberta.

Nem ela nem a minha mãe estão sabendo que eu dei um passo a mais com a olhos coloridos.
As duas têm se mostrado as principais incentivadoras desde que nos beijamos em São Francisco
Xavier.
— Quer comer comigo? — ofereço, tomando um gole do leite.

— Não, obrigada, eu já comi lá em casa. A minha mãe disse que a Aurora foi na reunião
também, né?

— Foi, eles devem demorar um pouco ainda. Preciso te contar uma novidade. — Ela se senta
na banqueta ao meu lado e me fita com atenção. — Aurora aceitou ser minha namorada ontem à noite.
Daqui a pouco fará 24 horas que estamos juntos oficialmente.

— Ahhhhhhh! E você me fala assim, de supetão? — Mel dá um pulo na cadeira, toda


sorridente. — Eu fui embora junto com ela e não vi nada. Que horas foi isso?

— Ela voltou pra pegar o celular que esqueceu na sala. — Pela idade da minha prima, acho
que não é sensato comentar sobre o resto da história. — Daí... ficamos sozinhos aqui e aconteceu.

— Que notícia maravilhosa, meu Deus! Estava torcendo muito por vocês.

— Estou tão feliz, que tenho uma vontade doida de sair na rua contando para todo mundo. —
Dou mais uma mordida no pão e me viro na sua direção. — Quando eu estava pesquisando sobre
paixão, vi que ela pode causar esses desejos esquisitos nas pessoas, mas não pensei que aconteceria
comigo também.

— Meu primo está completamente apaixonado. Ai, que fofo!

— Eu queria dar um presente para ela, mas não consigo pensar em nada especial. As dicas do
Google são muito genéricas.

Eu nunca tinha me interessado em pesquisar sobre relacionamentos antes, agora me arrependo


disso. Quero saber tudo do assunto para ser o companheiro mais incrível para a minha garota.

— Nossa, eu já sei! Já sei um perfeito! — Mel quase grita, empolgada. — Assisti ao filme
“Um amor para recordar” com a Camile, ela adora. O personagem Landon compra uma estrela e
coloca o nome da Jamie. Foi tãoooo lindo, Dan. Você precisa fazer igual! É a sua cara, devem ter
sites on-line que fazem isso.

— Mas dar nome a uma estrela não é algo que possa ser feito arbitrariamente e sites que
vendem o serviço com certeza não estão autorizados a fazê-lo — explico, coçando a cabeça. — A
União Astronômica Internacional é a única instituição autorizada a dar nome para as estrelas e outros
corpos celestes. A grande maioria dos astros, inclusive, possui designações alfanuméricas para
facilitar a catalogação.

— Ahh, Dan, mas neste caso é um gesto romântico. Não se prenda muito ao que é certo. Já
pensou uma estrela chamada Auriel? O shipper perfeito!
— Shipper? O que é isso?

— É a junção das letras do nome do casal. “Aur” de Aurora e “iel” de Daniel, até parece
nome verdadeiro de estrela. Vamos, vamos comprar? Ela vai amar, acredite!

O meu lado racional acha um desperdício de tempo e dinheiro, visto que não valerá de nada.
Contudo, o lado emocional só consegue pensar no sorriso de alegria que Aurora pode dar quando
receber.

Termino de comer o pão e tomar o leite apressado e corro no quarto para pegar meu notebook
e meus óculos. Mel se senta no sofá comigo eufórica para ajudar na busca. Surpreendo-me com o
tanto de site que aparece vendendo estrelas.

— Já que é pra ser algo fictício, vamos pelo menos tornar mais personalizado — comento,
com uma ideia surgindo na mente. — Quero escolher uma estrela na constelação de Escorpião, que
foi a que estava na nossa direção lá na Pedra de São Francisco, durante o primeiro beijo.

— Ahhhhhh, que lindo, amei! Vamos procurar sites que deixam escolher, então.

Passamos cerca de quinze minutos abrindo várias abas, até encontrar um que me possibilita
escolher a estrela em uma constelação específica. O problema é que a empresa fica na Suécia.

— E agora? Será que demora muito pra chegar? Você colocou a ideia na minha cabeça, não
consigo mais tirar. Quero dar uma estrela à Aurora.

— Olha ali, tá escrito que o tempo estimado de expedição pelo correio aéreo prioritário é de
4 a 7 dias úteis. — Mel aponta para o rodapé da página, que tem uma área de perguntas e respostas.
— O problema é que vai ficar caro isso, Dan.

— Não me importo com o valor, se fizer a olhos coloridos feliz, vale a pena.

Faço o pedido do kit mais completo, que contém um pingente gravado com a constelação da
estrela, um certificado de autenticidade e um mapa com a localização dela.

Agora é segurar a ansiedade e esperar para ver qual será a sua reação.

Foi difícil ficar ontem à noite com a Aurora sem falar nada para ela da surpresa. Por sorte,
minha olhos coloridos tem um jeito muito gostoso de fazer a minha mente esquecer qualquer coisa.
Fizemos amor de novo e, por incrível que pareça, conseguiu ser melhor do que da primeira
vez. O som dos seus gemidos não sai dos meus ouvidos, é só fechar os olhos que consigo ver
perfeitamente sua boca entreaberta e o som reverberando pelo quarto.

Talvez seja cedo para pedir isso, mas eu queria que ela dormisse aqui. Assim, a gente podia
fazer de novo ao acordar. Talvez até antes de ir para o trabalho também.

Respiro fundo, sorrindo sozinho. O que eu mais faço ultimamente é sorrir.

Sigo para a gaveta para pegar a roupa de corrida, mas paro abruptamente ao ouvir o som
estridente do meu celular. Nossa, quem está ligando às 6h12 da manhã? Assusto-me quando pego o
aparelho e vejo no visor o nome da minha mãe.

— Mãe, aconteceu alguma coisa? — pergunto, alarmado, assim que atendo.

— Estou bem, filho, desculpa ligar essa hora. É que eu sei que você acorda cedo. — Coloco
a mão no peito, mais aliviado, e me sento na cama. Ela nunca me ligou nesse horário. — Aqui em
Londres já passou das dez horas da manhã, estou me preparando para embarcar de volta ao Brasil,
mas queria muito conversar com você antes. Não aguento mais segurar essa informação.

— Que informação?

— Como eu sei que você não gosta de enrolação, eu vou ser direta, meu filho. Eu encontrei o
seu pai no aeroporto aqui de Londres.

— Pai? O meu pai do Carnaval?

— Ele mesmo. Nós nos esbarramos completamente sem querer, quando eu ia descansar de
uma escala. James me reconheceu na hora, mal pude acreditar. — Não sei nem o que pensar. Quando
eu era criança, até quis conhecê-lo, no entanto, a essa altura, nunca imaginei que fosse possível. —
Não falei nada antes, porque não queria criar expectativas. Vai que ele fosse um babaca, né... Faz
tanto tempo. Acontece que nós conversamos bastante desde domingo e eu contei agora de manhã
sobre você. Seu pai é um cara legal, Dan, gente boa. Jamais fazia ideia que eu tinha engravidado, ele
queria ter participado.

— Ele acreditou sem duvidar?

— Quando eu mostrei sua foto para ele, acreditou na mesma hora. Vocês são muito parecidos.
Você está bem com essa informação? O que está sentindo? — questiona, preocupada com minhas
poucas palavras.

— Na verdade, eu estou um pouco em choque. Não estava esperando por isso. Não estou
bravo, nem triste, nada ruim. Não sei dizer.

— Eu imagino, meu filho, foi um choque para mim também. O seu pai tem vontade de te
conhecer, ele gostaria de começar a conversar, se quiser. Se uma hora se sentir à vontade, também
podem se conhecer pessoalmente. Mas só se você quiser, Dan — minha mãe reforça que depende só
de mim.

Não tenho motivos para não querer conhecê-lo. James não sumiu por vontade própria, ele não
sabia mesmo da minha existência. Não tinha como saber, visto que só viu a Viviane uma vez na vida.

— Tá... eu topo. A gente pode conversar, sim.

— Ai, que bom, meu amor. — Sua voz fica eufórica na linha. Minha mãe sempre pareceu se
sentir culpada por não saber informações do homem que me gerou. — Acho que vai gostar do James.

— Eu tenho uma novidade também, Aurora e eu estamos namorando.

— Ahhhhhh, não acredito! Rezei tanto por isso. Que notícia maravilhosa, Dan. Deus está nos
abençoando. Você merece ter toda felicidade do mundo.

Não sei quem é o responsável, mas de fato agradeço o rumo que minha vida tem tomado.

Na mesma semana, ganhei dois presentes: uma mulher incrível para ser minha e a descoberta
de quem é meu pai.
CAPÍTULO 40

Olho no espelho do vestiário e sinto orgulho do reflexo que vejo. Tinha até me esquecido
como é usar um vestido, nossa, quanto tempo! Ana Júlia me deu umas roupas antigas da Camile e
comecei a substituir as peças largas por tecidos do meu tamanho. Pilar também veio aqui me trazer
algumas do seu brechó, está radiante por essa escolha.

É bom me sentir bonita, me sentir viva. Estou orgulhosa pela coragem de me assumir de novo.

Guardo tudo no lugar e volto para a área de treinamento, onde uma turma está se aquecendo
com o sensei. Visando a competição de agosto, a Naja está em ritmo acelerado. Voltei a fazer meus
três treinos por dia, igual antes. Estava com saudade do ringue, pegar leve durante a recuperação não
teve graça.

— Aurora, aquela entrevista que você deu ontem foi publicada agorinha, enquanto você tava
no banho. — Pablo vem na minha direção com um tablet na mão e sorrio ao ver o título “Naja
reconquista prestígio no cenário do MMA paulista”. — Meu pai até chorou quando viu. Ficou show!

A academia anda muito mais cheia, inclusive, com atletas mulheres. Noberto precisou adaptar
os horários e abrir turmas novas. Estou muito feliz de contribuir como incentivo para os alunos e,
também, pelo sensei; ele é uma pessoa boa e realmente se importa com o legado da sua família.

— Que legal, me manda o link por mensagem. Quero ler tudo.

— Tá na mão, até amanhã cedo!

— Boa noite, Pablo.

No começo, eu tinha muita ressalva com o filho do Noberto, porém, agora estou tão em paz
comigo mesma, que até nossa relação melhorou. Temos conversado mais, parei de evitá-lo a todo
custo, como se fosse um animal prestes a me atacar.

Aceno para o sensei e saio a passos largos pela porta da academia. Eu amo lutar, mas a
melhor parte do dia com certeza é ficar com Dan. O relacionamento com ele só cresce. Nos damos
tão bem, que às vezes nem parece real.

Além de carinhoso e fofo, nos divertimos como amigos e na cama. Dan está cumprindo
religiosamente seu comentário de “fazer todo dia”. Mordo o lábio inferior e ando ainda mais rápido,
ansiosa para vê-lo.

Desde que começou a trocar mensagens com o pai, dias atrás, ele anda mais alegre do que
nunca. O James também gosta do Universo e é apaixonado por números, então, a conversa tem fluído
bem entre os dois.

Anteontem, descobrimos que é muito provável que o diagnóstico do Dan para autismo
realmente dê positivo. A Viviane tinha suspeitas pela timidez do James, mas, na verdade, ele contou
que era o seu pai que tinha, o avô do Daniel. O homem estava no grau leve do espectro, só que
infelizmente faleceu ano passado, de infarto.

Assim que chego ao meu quarto, deixo a sacola em cima da cama para estender a roupa mais
tarde, e me preparo para ir à sua casa, quando um bilhete pendurado na janela chama a minha
atenção.

Vou até lá e sorrio com a letra bonita: “Te espero na nossa árvore, olhos coloridos. Tenho
uma surpresa.”

O que você está aprontando, namorado? Visto um casaco por causa do frio lá em cima e
pulo a janela, ansiosa. Vou praticamente correndo até a escada que me permite subir. De baixo já
consigo ver uma luz diferente iluminando o espaço de madeira.

Ao chegar ao último degrau, meus olhos se arregalam com a imagem que aparece no meu
campo de visão. Há velas espalhadas pelas laterais da casa na árvore e várias pétalas de rosas
jogadas no chão. O seu telescópio mais potente está montado e há uma toalha estendida com dezenas
de alimentos.

— Um piquenique nas alturas?! — comento, admirada. — Você é o melhor, Dan.

Termino de subir e fico em pé, indo na sua direção. Meu namorado quase não pisca, me
fitando de volta. Demoro a entender seu fascínio me encarando, deve ser por causa do vestido.

— Gostou? — pergunto, segurando a barra do tecido e dando uma voltinha.

— Você... você está linda. Muito linda! — Ele vem ao meu encontro e toca meu rosto com
carinho.

Adoro quando a palma da sua mão roça a minha bochecha e Daniel passa longos segundos me
observando como se eu fosse o centro do seu mundo.

— Amei a surpresa, está tudo tão incrível. Que horas você teve tempo de organizar tudo?

— Saí um pouco mais cedo da faculdade hoje, a Mel e a tia Ana Júlia também ajudaram. Fico
feliz que tenha gostado do cenário, no entanto, a surpresa mesmo é essa daqui.
Ele se inclina para trás e pega um embrulho bonito perto do tronco da árvore. A ansiedade é
tanta que não me permite ser muito delicada para abrir. A primeira coisa que aparece ao desenrolar o
papel é um colar dourado lindo, com várias estrelas gravadas no pingente. Uma está em destaque no
desenho e atrás está escrito Constelação de Escorpião.

Meu coração começa a acelerar e os meus dedos ficam suados ao avistar um certificado e um
mapa. Não... ele não...? Meu Deus!

— Você... você comprou uma estrela e a chamou de Auriel, com as letras dos nossos nomes?
— Não sei se rio ou se choro de emoção.

É o presente mais lindo que já ganhei na vida, simplesmente magnífico.

— Sim... — Ele me olha, parecendo preocupado pelo vinco na sua testa. — Você gostou? Eu
não estou entendo as lágrimas com esse sorriso.

— Eu ameiiiiiiii, Dan. — Aproximo-me dele e infiltro minha mão livre nos fios do seu
cabelo. — É... perfeito como você. Essas lágrimas são de felicidade, de gratidão por Deus ter te
colocado na minha vida.

— Se são de felicidade, então, tá bom. Te fazer feliz, como você me faz, é o meu principal
objetivo. Preciso alertar que cientificamente esse nome não é válido, e provavelmente o site deve ter
vendido a mesma estrela para outras pessoas, mas fica como uma lembrança nossa.

Sorrio mais quando me conta sobre como é escolhido os nomes das estrelas e porque ele
decidiu comprar uma, mesmo sabendo que não era real. Não existe na face da Terra pessoa mais fofa
e sincera que meu namorado, e eu amo exatamente isso nele.

— O kit chegou anteontem pelo correio internacional, mas o tempo estava ruim e tive que
esperar até a constelação de Escorpião ficar visível aqui pra nós. Escolhi de propósito uma estrela
perto de Antares para ficar fácil a visualização. Essa constelação é a que estava na nossa direção
durante o primeiro beijo.

— Você se lembra da constelação que estava na nossa direção aquele dia? — questiono,
espantada por sua memória.

— Eu me lembro de tudo, qualquer detalhe sobre você desde o primeiro dia que te vi debaixo
daquela ponte.

— Ai, Dan! — Corto o restante da nossa proximidade e o abraço, com os olhos marejados.

Esse garoto é exatamente tudo que eu precisava, nem sei se mereço alguém tão genuíno como
ele.
Quando conseguimos nos soltar, porque por mim ficaria ali no seu abraço a noite toda, ele me
mostra a estrela pelas coordenadas enviadas no mapa. Ficamos cerca de duas horas desbravando a
constelação de Escorpião e comendo os quitutes que separou para nosso piquenique.

A noite está perfeita, como todos os dias que passo ao seu lado.

— Tá com frio? — questiona, ao me ver esfregar as duas mãos na jaqueta. — Eu trouxe uma
manta, caso esfriasse muito. Se quiser, podemos descer também.

— Eu tô, mas tenho um jeito melhor de esquentar — digo, piscando, e me sento com as
pernas abertas no seu colo.

Espero que esse banquinho de madeira que usamos para a observação do céu seja forte o
suficiente para servir a outros propósitos.

— Ah, é? — Dan sorri e segura minha cintura, roçando sua barba no meu pescoço. Eu amo o
arrepio que os pelos pontiagudos causam pelo meu corpo. — Superaprovo esta forma de gerar calor.
Com você, é a melhor forma.

Infiltro meus dedos nos fios do seu cabelo e o puxo na direção da minha boca. O contraste
dos lábios frios com a língua quente é divino. Degustamo-nos lenta e profundamente até os corpos se
contorcerem e ficarmos sem fôlego.

Dan desce uma mão para a minha coxa e sobe devagar em direção ao bumbum por debaixo do
tecido do vestido. Sua palma grande aperta com volúpia a carne macia, torturando-me ao mesmo
tempo com mordidinhas na orelha e no queixo.

— Ah, que delícia! — elogio, rebolando no seu colo.

Adoro saber que sou a responsável por seu membro ficar duro tão rápido. Também já estou
molhadinha, é impressionante como respondemos instantaneamente ao toque um do outro.

— Diz que você tem uma camisinha no bolso dessa calça — murmuro, rouca de desejo. — Eu
quero eternizar a sua surpresa na minha mente, terminando a noite com você dentro de mim. Aqui.

— Te... tenho, eu tenho. Agora é melhor prevenir em qualquer lugar, você sempre me deixa
com tesão, olhos coloridos.

Volto a beijar sua boca enquanto me afasto o suficiente para conseguir abrir o zíper da sua
calça. Ele me ajuda se levantando um pouco e afasto a cueca para acariciar a ereção majestosa. Dan
geme alto, me incentivando a aumentar ainda mais a fricção, subindo e descendo de forma rápida.

Ao notar o líquido pré-ejaculatório molhar meus dedos, peço para pegar a camisinha e eu
mesmo coloco nele diante do seu olhar vidrado em cada movimento.
— Quero você dentro de mim — sussurro no seu ouvido.

Dan sorri, mordendo meu lábio inferior, e me empurra para frente. Antes de fazer o que eu
pedi, seus dedos habilidosos afastam a minha calcinha para o lado e deslizam para dentro.

Arfo e arqueio o corpo para trás, esfregando-me na sua mão. Preciso de alívio, preciso muito
de alívio.

— Tãoo... quente. Molhada, gostosa. — A sua voz rouca reverbera pela minha espinha,
ouriçando meus pelos. — Está pronta pra me receber.

Os dedos me abandonam, mas nem tenho tempo de reclamar. Logo seu membro me invade
forte, até o fundo.

— Abre esse vestido, linda — pede, apertando minha bunda com as duas mãos para ditar o
ritmo das estocadas. — Preciso mamar em você.

Apoio um braço no seu ombro para não perder o equilíbrio e abro o botão da parte de cima
do vestido. Mal coloco meus seios para fora, sua boca gulosa os ataca, intercalando chupadas nos
dois.

Dan ama meus seios. Os venera com atenção e dedicação.

Meu corpo quica, o dele estoca. O nosso encontro solta faísca, gemidos e murmúrios pelo
espaço de madeira. Sorte que estamos no alto e não tem como ninguém ouvir. Minha pele está tão
quente que nem me lembro de ter sentido frio, minutos atrás.

— Você é tão gostosa, é difícil me segurar — declara, lambendo o vão dos meus peitos. —
Fica sentada de costas, assim posso masturbar você e a gente goza junto.

Tenho que agradecer aos vídeos pornôs pelo ensinamento dado a ele. Pode não ter tido muitas
experiências, mas aprendeu divinamente a satisfazer uma mulher. Fofo e com pegada ao mesmo
tempo. Desde a nossa primeira vez, ele nunca chegou ao clímax antes de mim.

Sigo sua orientação, no entanto, antes de me sentar de costas no seu colo tiro a calcinha para
facilitar o acesso. Assim que ele volta a se encaixar no meu centro, uma de suas mãos afasta minha
coxa e a outra brinca com o bico do meu seio exposto.

Quando encontra meu clitóris, ele não mede esforços para me deixar louca. Fico com quatro
estímulos simultâneos: estocadas, dedos lá embaixo, dedos lá em cima e a sua voz áspera
sussurrando no meu ouvido que sou linda e que sou sua.

— Eu sou toda sua, Dan. Toda. Sua.

— E eu sou seu, olhos coloridos. Seu e de mais ninguém. Goza comigo, vem!
Apoio minhas costas no seu peito e jogo um braço para trás para alcançar seu cabelo. Pego
uma mecha e a aperto firme para ter um ponto de descarga enquanto me leva ao ápice.

O orgasmo vem tão forte, que instintivamente minhas pernas tentam se fechar, porém, Daniel
não deixa. Ele as mantém abertas para continuar me masturbando até a última gota no nosso prazer se
esvair.

Meu coração retumba pelo corpo e uma sensação enorme de prazer me invade. Mas, desta
vez, não um prazer sexual. Um prazer de me sentir amada de verdade pela primeira vez por um
homem.
CAPÍTULO 41

Minha perna parece ter vida própria, balança para cima e para baixo de forma cadenciada e
sem controle. Aurora segura minha mão e entrelaça nossos dedos, apoiando-os no joelho para tentar
conter minha ansiedade. Daqui a pouco, eu saberei se sou autista ou não.

Um desfecho positivo é tudo que que eu mais quero, ficarei aliviado de poder me entender
melhor. O diagnóstico vai significar uma maior consciência sobre quem sou e quais escolhas fazer a
partir daqui.

— Ela já vai chamar, não precisa ficar nervoso. Estou aqui com você. — Seu sorriso sempre
consegue me deixar mais relaxado.

Aceno com a cabeça e forço minha mente a pensar em outra coisa, como o fato de o tempo
estar passando muito rápido. A olhos coloridos tem tornado meus dias tão mais vivos e agitados, que
eu nem vejo o calendário passar.

Mal dá para acreditar que no domingo à noite vou embarcar para a Rússia, a fim de visitar a
agência espacial Roscosmos. Estou muito animado para a experiência única, embora, com certeza eu
vá ficar com muita saudade da Aurora. Sorte que ela se comprometeu a fazer chamadas de vídeo
comigo todos os sete dias que ficarei fora —mesmo com o fuso-horário de seis horas de diferença.

O tempo também me fez conhecer melhor o meu pai, que deve chegar esta noite no Brasil.
Aproveitando a sua vinda ao país para uma questão de trabalho, combinamos de nos conhecermos
pessoalmente. Será um final de semana interessante, cheio de novidades.

— Daniel e Aurora, vocês já podem entrar. — A voz da recepcionista joga outra corrente de
adrenalina no meu sangue.

É agora! Entreolho minha namorada e ela se levanta comigo, permanecendo com as nossas
mãos unidas até entrar no consultório e nos sentarmos. O atendimento foi antecipado para sexta-feira
por causa do horário das duas médicas. A doutora Elza fez questão de estar presente junto com a
neuropsicóloga.

Tento soar educado e simpático, enquanto ambas nos cumprimentam e fazem perguntas
genéricas, só que a verdade é que não estou mais aguentando de tanta ansiedade. Esfrego a mão na
calça jeans e sem nem me dar conta meus dedos começam a contar na lateral do corpo.
— Não vou torturar você mais, não, pode ficar tranquilo! — a psiquiatra afirma, sorridente,
ao focar no que estou fazendo. — A Glaucia já vai te explicar os resultados.

Inclino o corpo para frente, atento em cada palavra que ela vai dizendo sobre o objetivo de
cada etapa do processo e a minha resposta aos testes. Cada item é explicado de forma didática e
lenta.

Nossa, acho que a doutora Elza não sabe o significado de não torturar alguém. Isso aqui é o
extremo oposto, que demora para falar sim ou não! Era só dizer "sim, você tem"; ou "não, não tem".

Será que devo pedir para ser mais rápida? Esfrego o rosto, piscando para voltar a me
concentrar nas suas palavras.

— Embora não apresentadas de forma severa, as suas dificuldades nas interações sociais, os
comportamentos repetitivos e os interesses restritos não são compatíveis com a sua idade. — Prendo
a respiração, sentindo que a próxima frase é a que mais desejo ouvir. — Tendo em vista a análise de
todas essas questões, concluiu-se ao final dos testes que você está dentro do espectro, no grau leve
de autismo, Daniel.

— Eu sou autista. — Solto o ar, aliviado. Meu coração acelera e um sorriso enorme desponta
no meu rosto. — Eu sou autista!

Libertação. Essa é a melhor palavra que encontro para resumir o que a fala da doutora
Gláucia causa em mim.

— Sim, você é — confirma, sorridente diante da minha alegria em saber.

Aurora volta a segurar minha mão e me observa com os olhos marejados. Aperto firme seus
dedos, muito agradecido por tornar este momento possível. Agora eu sei quem sou.

Eu não sou louco, não sou esnobe, não sou metido, não sou fresco, não quero aparecer. Eu sou
Daniel Lima, um autista com muito orgulho e vontade de me compreender melhor.

Jamais vou ver esse diagnóstico como uma limitação. É tudo sobre autoconsciência. A partir
do momento que sei o que tenho, sou muito mais livre para fazer minhas escolhas e arcar com as
consequências delas.

— Eu li sobre savantismo depois que assisti à série The Good Doctor, a questão do
brilhantismo do médico com uma memória absurda. O Dan também é tão inteligente. Os testes
mostraram algo sobre isso? — a olhos coloridos questiona, interessada em ficar por dentro de tudo
sobre mim.

Eu amo essa sua preocupação e cuidado comigo.


— Não se aplica ao Daniel. Muitos indivíduos com TEA têm interesses restritos em
determinados assuntos, e por estudarem e focarem a atenção neles, dominam o conteúdo. Diferente
dos savants que têm uma habilidade inata e ainda sem explicação científica — a médica explica,
entregando o resultado dos testes na minha mão. Nenhum dado na folha chama mais a minha atenção
do que as linhas finais que atestam meu diagnóstico. — Mesmo vistos como gênios, os savants, na
verdade, são pessoas com baixa inteligência, com QIs que costumam ficar entre 40 e 70, e têm sérias
limitações contrastando com alguma habilidade excepcional.

— Nossa, eu não sabia disso. Pensei que se fosse muito inteligente, já se enquadrava. Tenho
muita coisa a aprender, ainda mais agora que tenho uma irmã e um namorado no espectro — ela
comenta e olha na minha direção, sorridente.

Tum, tum, tum. Toda vez que a olhos coloridos me chama de namorado meu corpo inteiro
reage. Eu adoro a sensação de ser dela, e ela ser minha.

— O autismo é um universo amplo, com muita heterogeneidade, singularidade e subjetividade


na experiência de cada um. Nós, profissionais da área, também aprendemos o tempo todo — a
doutora Elza acrescenta, nos fitando. — Por falar em aprender, Daniel, gostaria de te pedir um favor.
Se, por acaso, uma hora você dizer que é autista de grau leve e alguém associar à Síndrome de
Asperger nos ajude na conscientização sobre esse termo. Hans Asperger, o pediatra austríaco
pioneiro na pesquisa sobre autismo que deu nome à Síndrome de Asperger, cooperou ativamente com
um programa nazista que levou à morte dezenas de crianças com deficiência. A última edição do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, conhecido como DSM-5, e que é a
principal referência no mundo inteiro, já retirou a síndrome da sua lista, substituindo-a por Nível I do
TEA.

— Meu Deus, que horror! — Aurora comenta, colocando a mão na boca. — Eram apenas
crianças.

— Pode deixar que eu vou falar sim, doutora Elza. Uma pessoa que comete algo tão bárbaro
assim, jamais merece ter o seu nome relacionado ao autismo.

— Obrigada, nossa comunidade está batalhando muito nessa conscientização. Outra questão
que você pode enfrentar a partir de agora é a descrença do seu diagnóstico, Daniel. — Passo a mão
no cabelo e encosto no sofá. — Algumas pessoas, inclusive do seu ciclo familiar, podem ter
dificuldade de aceitar. Sempre falo isso aos meus pacientes e já irei reforçar para você desde já: o
diagnóstico não é para o outro, ele é pra você. Faça o seu melhor sempre, vamos trabalhar todas as
questões apontadas nos testes durante a terapia direcionada, mas se mesmo assim alguém duvidar,
não centre suas energias nisso. O que as pessoas pensam de você, é um problema delas. O importante
é você saber quem é, saber que se esforça ao máximo. Vamos combinar isso?

— Tá... tá bom, combinado.

Espero que não precise lidar com esses tipos de comentários. Uma das razões que mais me
deixaram feliz em saber que sou autista é porque minha família, enfim, vai poder me entender melhor.
Quando desço no ponto de ônibus com a Aurora, avisto minha mãe logo à frente saindo do
táxi. Assim que a conversa com as médicas terminou, liguei para ela que ficou eufórica com o
resultado tanto quanto eu. Foi por muito pouco que os horários não bateram para presenciar comigo
esse momento tão emocionante. Ela também não teve sorte de vir no mesmo voo que James. A escala
dela era na França e a do meu pai em Londres. O seu voo deve chegar por volta da meia-noite e
nosso encontro esperado ficará para amanhã, em um local mais reservado.

A vó Marideide e o restante da família sabem dele, mas a Viviane acha melhor não o trazer
aqui ainda para evitar “um interrogatório na cabeça do homem”, segundo suas palavras. Minha mãe
não quer estragar o bom relacionamento que também tem mantido com ele.

A Aurora disse que está na torcida para os dois se entenderem como casal, igual a gente. Eu
quero muito que minha mãe seja feliz, até hoje só conheci um namorado seu que não durou nem
quatro meses. Se James pode ser essa pessoa, eu apoio.

Houve tantos desencontros na vida dos dois, talvez seja o momento. Meu pai contou que veio
ao Brasil inúmeras vezes a trabalho antes, e nunca tinha tido a sorte de esbarrar com a minha mãe.

— Ai, meu filho, que alegria te ver com esse sorriso. — Ela larga a mala na calçada e vem
correndo ao meu encontro, assim que também me vê chegando.

Aceito seus braços abertos e me aproximo para abraçá-la. Seu coração está batendo forte,
consigo sentir.

— Estou muito aliviado, mãe. Não vejo a hora de contar pra todo mundo, de começar a nova
terapia e ver meus avanços.

— Você não acha melhor eu...

— O que vocês estão fazendo aí, parados na calçada? — vó Marideide nos interrompe,
abrindo o portão. — Vamos entrar, gente.

— Oi, mãe. Já estávamos entrando. — Viviane se afasta de nós e vai deixar um beijo no rosto
da senhora.

Caminhamos pelo curto trajeto do corredor com minha vó perguntando de novo por que não
vai trazer James para conhecê-la. Assim que para em frente à porta da sua cozinha, vejo que todos
estão ali.
Até mesmo tio Noberto e Pablo, que devem ter vindo fazer um lanche rápido entre os
intervalos das turmas da academia. É a oportunidade ideal para contar de uma vez sobre o
diagnóstico.

Não quero esperar mais. Já foram 24 anos, 6 meses e 14 dias ofuscando essa informação
importante sobre mim.

— Eu queria contar uma coisa pra vocês — peço a atenção deles, estendendo a mão. — Será
que podemos conversar rapidinho?

— Eu tenho que voltar para a academia em cinco minutos — tio Noberto avisa, olhando no
seu relógio de pulso.

— Vai ser rápido, eu...

— Meu filho, você não acha melhor falar em um outro momento? Talvez deixar eu conversar
antes?

— Você engravidou a Aurora? — Camile indaga, boquiaberta. — Meu Deus, Daniel. Acabou
de ficar com a menina.

— Engravidar? — devolvo a pergunta, confuso. — Não, a gente usa camisinha.

Ouço Pablo rir ao fundo e minha vó ficar com a bochecha corada.

— Ué, se não é isso, o que pode ser de tão importante? Ganhou algum prêmio de novo? —
Não sei se é uma ironia ou outro questionamento da minha prima.

Olho para Aurora e para a minha mãe e confirmo com o olhar que quero falar logo. Minha
namorada me corresponde com um sorriso de incentivo, já o rosto da minha mãe não consigo
identificar. Ela parece preocupada.

— Há meses venho fazendo testes psicológicos e hoje finalmente recebi o resultado. Esse
meu jeito de ser... diferente — uso a palavra na falta de encontrar outra forma de me expressar —, na
verdade, é um diagnóstico de autismo, eu não sou...

— Autismo? Igual aquela menina Linda da novela “Amor à vida”? — vó Marideide me corta,
colocando a mão no meu ombro. — Até parece, menino. Você é superinteligente, a Linda vivia
gritando de um lado para o outro, não sabia nem falar direito.

— Ah, eu sabia que algum problema tinha — Camile comenta, pegando uma maçã na fruteira
e seguindo até a pia para lavar.

— Eu penso como a vó, Dan. Você é tímido, meio introvertido, mas não parece autista —
Pablo endossa o comentário da matriarca da família.

Abro a boca para explicar sobre os graus diferentes dentro do espectro, mas ninguém me
deixa falar. Minha mãe fica brava e começa a discutir com os três. Tio Noberto e tia Ana Júlia
também entram no embate; pelo pouco que consigo assimilar os dois estão do meu lado.

— Estou cansada de tratarem meu filho assim, respeito é o mínimo que eu peço a vocês. —
Viviane levanta o tom de voz, apontando o dedo na direção dos meus primos e da minha vó. — O
Daniel não tirou o diagnóstico da cabeça dele, como disse, faz meses que está realizando exaustivos
testes para descobrir. Não contamos antes justamente para evitar comentários desse tipo,
desencorajando-o de seguir em frente.

Aurora pega minha mão e entrelaça nossos dedos. Sua palma está fria e um pouco trêmula. A
reação do seu corpo me faz sair do torpor e virar na sua direção. Estranho ao ver seu maxilar
cerrado, ela parece a ponto de perder a paciência.

Será que ficou brava também?

— A Viviane está certíssima, deveríamos estar neste momento refletindo sobre todas às vezes
que não compreendemos o Daniel, não julgando o seu diagnóstico — tia Ana Júlia me defende e Mel
vem até o meu lado, pegando minha outra mão.

A prima caçula está com os olhos marejados, prestes a chorar. Não era gritaria, raiva e
tristeza que eu estava esperando receber quando saí do consultório. Esse misto de estímulos deixa
minha cabeça pesada e minha respiração agitada.

“O que as pessoas pensam de você, é um problema delas. O importante é você saber quem
é.” A frase da doutora Elza vem à minha mente e preciso repetir várias vezes em pensamento para
não deixar uma crise surgir justo agora. Vai ser pior dar mais motivos para me criticarem.

— A gente não pode dar nem opinião nesta casa, que já é a errada, não vou mais abrir minha
boca pra nada — vó Marideide reclama, entrando na cozinha para seguir em direção ao seu quarto.
— Não está mais aqui quem falou.

— Não é assim que resolve as coisas, mãe, toda vez faz esse drama pra encerrar o assunto
sem conversar.

Ela não responde nada, continua andando. A olhos coloridos aperta mais firme nossas mãos
unidas, parece fazer um esforço enorme para ficar quieta.

— Bom, eu estou indo também. Preciso me arrumar, porque não é todo dia que consigo
ingressos na faixa para uma balada de gente rica. Hoje vai ser um sextou de respeito.

— Pode voltar aqui, Camile! — Tio Noberto segura o braço da filha antes que siga no mesmo
caminho da vó Marideide. — Você e o seu irmão vão pedir desculpas para o Daniel. Nós todos
devemos pedir pelo tanto que implicamos e não tivemos paciência durante esses anos.

Recebo os pedidos de desculpas, mas isso não me faz sentir melhor. Nem todos parecem
sinceros, ainda há aqueles olhares tortos e as palavras não ditas.

Não será tão simples como pensei.


CAPÍTULO 42

Esfrego o rosto com as duas mãos e tento conter a irritação que está borbulhando no meu
sangue. Dan já percebeu que eu não estou normal e não quero deixá-lo agitado por minha causa. Foi
muito bom a doutora Elza ter dito para ele não centrar suas energias nisso, caso alguém duvidasse do
diagnóstico.

Mesmo percebendo sua ansiedade à beira de emergir, meu namorado conseguiu se segurar
bem diante do show de falta de empatia da sua vó e dos seus primos mais velhos. Meu Deus, a raiva
volta com tudo só de me lembrar dos comentários ridículos que fizeram.

Como a minha irmã demonstrava fisicamente que tinha grandes limitações, nunca passamos
por esse tipo de coisa em Pirapora. Nunca ninguém duvidou, nem achou que estávamos inventando.

Por que cargas d’água Daniel iria fingir algo assim? É revoltante a dúvida que as pessoas
levantaram tentando desmerecer a sua palavra.

A única coisa que me segurou foi ver que o Dan inspirou fundo e não teve uma crise; e que
Viviane o defendeu como uma leoa. Senti que a mãe dele precisava ter o protagonismo naquela
conversa por toda culpa que já demonstrou sentir de não ter percebido antes o quadro de autismo.

Não acho que ela tenha culpa de nada, contudo, sei que foi importante dentro de si tomar
aquela atitude. Mas que não faltou vontade, isso não faltou. Eu queria gritar, jogar na cara de cada um
como Dan é incrível e perfeito da forma que é. Como ele anseia por ser compreendido e aceito por
aqueles ignorantes.

— Eu fiz alguma coisa? Você está brava comigo? — Ele se senta ao meu lado no sofá da sua
sala e procura meu olhar.

Sinto-me horrível toda vez que me pergunta isso. Está tão acostumado com a falta de
paciência das pessoas, que não perde esse mau hábito de tentar se culpar o tempo todo.

— Não, claro que não — respondo, de imediato, forçando um sorriso sair. — Eu estou muito
orgulhosa por você ter seguido a dica da doutora Elza.

— Segui... só pensei que seria mais fácil, estou triste que tenham duvidado de mim.
— Imagino que sim, Dan. — Levanto a mão e aviso com o olhar que vou acariciar seu
cabelo. — Mas vamos continuar com a dica da psiquiatra em mente, vamos focar na sua terapia
direcionada que irá começar logo que voltar da Rússia. Você vai conhecer seu pai amanhã, vai viajar
no domingo. Só tem coisas boas para acontecer.

— Concordo com a Aurora, meu filho. — Viviane volta da cozinha com um copo de água na
mão e entra na conversa. — Acho até que devemos sair pra comer uma pizza e comemorar seu
diagnóstico e a viagem. O que acha? Aqui pertinho tem uma pizzaria ótima e é bem tranquila, sem
aglomeração nem barulheira.

Ele fica em silêncio me olhando e sei que deve estar pensando que prefere muito mais ficar
comigo do que sair.

— Vamos! Não tenho mais treino hoje, será bom distrair. Assim, você aproveita pra ficar
com a sua mãe também — incentivo-o, continuando o carinho nos seus fios ruivos. — Depois
podemos ir lá na árvore.

— Podemos ir e repetir o...

— Sim, podemos — corto-o, antes que fale demais na frente da Viviane. Já basta ele dizer na
frente da família inteira que usamos camisinha.

Sorrio tímida, sentindo a bochecha ficar quente, e a outra mão vai automaticamente para o
meu pescoço mexer no pingente do colar que ele me deu. Não tirei para nada desde aquele dia, amei
demais a surpresa — e tudo que fizemos depois.

— Então, tá. Vamos comer pizza. Quero só tomar um banho antes pra tirar esta roupa que
fiquei o dia inteiro na universidade.

— Pode ir, meu filho. Vou chamar a Mel pra ir conosco — Viviane comenta, divertida.

O seu semblante querendo rir deixa claro que entendeu muito bem o que o filho quis dizer.
Oh, meu Deus, que vergonha!

Assim que Dan se levanta para ir ao banheiro, ela ocupa o seu lugar no sofá. Fico quieta,
percebendo minha pele esquentar ainda mais.

— Obrigada, minha querida, mais uma vez, por tudo que tem feito por nós. Por fazer meu
filho feliz. — Olho na sua direção diante das palavras tão cheias de emoção. — Ele iria continuar no
escuro por muito tempo, talvez a vida toda, se não fosse por você.

— Não tem nada que agradecer, Daniel me trouxe à vida de novo e isso significa tanto que
você nem faz ideia — confesso, com a voz embargada. — Sou extremamente grata a Deus por nossos
caminhos terem se cruzado.
— Vocês são lindos juntos, desejo que Deus os preserve por muitos anos. — Viviane pega a
minha mão com as suas duas e a aconchega no seu colo. — Senti uma mudança absurda no Dan desde
que te conheceu. Agora a terapia direcionada vai ajudar mais ainda, só falta a nossa família aceitá-
lo. Não vou permitir que o tratem mal, nem duvidem do meu filho.

— Foi difícil me segurar com tudo aquilo que falaram, sei que Dan fez um esforço enorme
para conter uma crise de ansiedade.

— Vou falar com a minha mãe de novo, até que me escute. Ela é a principal nessa equação.
Meu menino tem tentado agradá-la desde criança.

— A dona Marideide é muito intransigente, sempre o trata com falta de paciência, apontando
o dedo e o acusando. — Fiquei quieta hoje, mas não sei até quando ficarei se a senhora não mudar a
postura. — É bom explicar pra ela sobre os diferentes níveis de autismo e como isso afeta a vida dos
pacientes. Achar que todo mundo é igual a personagem de novela é muito mesquinho.

— Com certeza! Minha mãe teve uma criação arcaica dos meus avós. Eles eram
extremamente bitolados, viam tudo preto no branco, achavam frescura um monte de questões sérias.
Quando meu pai morreu, ela ficou mais amarga ainda. Acha que só ela sente falta, e o mundo deve
girar à sua volta. — Compreendo a questão da criação e de se sentir sozinha, mas nada justifica
continuar sem paciência com o próprio neto. — Se por acaso não mudar e continuar desrespeitando o
Daniel, vou incentivá-lo a fazer uma coisa que deveria ter feito há muito tempo. Ele pode se mudar
daqui e morar sozinho em outro lugar, longe dos comentários maldosos. Aguentar isso de qualquer
um já é ruim, da família não tem cabimento.

Se ele se mudar eu vou sentir falta da nossa interação diária e da nossa árvore, mas vai ser
melhor para avançar no seu tratamento sem a opinião alheia atrapalhando.

Se bem que, dependendo de quando isso acontecer, nada impede que eu me mude com ele.
Quem sabe... não vejo como esse relacionamento não progredir.

Dan colou completamente cada pedacinho do meu coração despedaçado.

A noite foi divertida. Passar um tempo descontraído com Mel, Viviane e Dan ajudou a
esquecer um pouco o episódio desconfortável de mais cedo. Viemos embora porque meu namorado
está ansioso para o nosso momento a sós observando as estrelas.

Sorrio e olho para ele, abraçando sua cintura para ficar mais pertinho enquanto caminhamos
pela calçada de volta para casa. Dan sorri também e deixa um beijo na minha testa.
Não quero mudar isso jamais. Estou apaixonada de forma irremediável.

— Lá vai a Camile sair de novo — Mel reclama e acompanho seu olhar do outro lado da
avenida. Entre os carros passando, dá para ver a garota caminhando toda produzida. — Pra eu sair, é
um parto.

— É porque você ainda é nova, meu amor. — Viviane tenta apaziguar. — Daqui a pouco,
também terá mais liberdade.

— Acho tão injusto! Camile pode faltar no curso de maquiadora e, ainda por cima, sair com
uma amiga e dois caras que conheceu no shopping, para uma balada que só vai acabar amanhã cedo.
Eu não posso faltar aula nem quando tô com dor de barriga. Que dirá sair à noite...

— Xiii, acho que tem alguém ouvindo conversa da irmã atrás da porta, hein.

— Não é como se ela fizesse questão de esconder, né, tia Vi. — A pequena cruza os braços e
faz um bico. — Nunca vi gostar de fofocar no telefone igual aquela menina. Trabalha o dia inteiro
com a amiga no shopping, chega e continua falando.

Abro a boca para brincar com Mel, mas a visão da Camile na esquina do outro lado da
avenida me faz paralisar. Ela para em frente a um carro recém-estacionado e o carona desce para
abrir a porta.

O rapaz parece... parece tanto com... Não, não pode ser.

Ao se virar de lado, a visão do seu rosto fica perfeita e é impossível não reconhecer.

Meu coração dispara no peito e o meu braço cede do contato com Dan. A garganta fecha tão
rápido que não consigo de jeito nenhum respirar. Coloco a mão no pescoço, forçando o bolo descer,
mas não adianta.

Não consigo... não consigo...

Tento me lembrar das palavras da psicóloga, da sua orientação para quando tivesse um
gatilho, no entanto, meu cérebro não assimila nada além da imagem à minha frente.

Tudo cai por terra quando nem a respiração eu consigo controlar. Meu Deus... meu Deus...
eu... não... pode... justo... agora.

— Aurora, o que foi, linda? O que aconteceu? Você tá bem? — Daniel questiona,
desesperado, parando na minha frente e segurando meus ombros.

— Acho que ela tá com falta de ar. Vamos sentá-la ali na beira daquela loja, ajuda a melhorar
— Viviane avisa e se vira para Mel, que para nervosa bem na frente da minha visão do carro.
Continuo tentando falar, forçando a mão no meu pescoço, e nada. — Corre lá na academia, chama o
seu pai.

Levanto a mão para barrá-la e avisar que precisa chamar Camile... que precisa tirá-la dali.
Agora.

Nada. Minha voz parece ter desaparecido, junto com toda a esperança que cultivei nas
últimas semanas.

Assim que a garotinha sai correndo na direção da faixa de pedestre para atravessar a avenida,
tenho novamente o carro prateado à minha frente. Com o braço para fora do veículo e um sorriso no
rosto, o motorista me faz perder de vez todo controle.

Não restam mais dúvidas. É o... São...

Eles... com ela. Sozinhos.

“— O que estamos fazendo aqui no seu quarto com eles? — Tropeço no meu salto, tonta, e
tento focar minha visão na imagem de Maurício e Elton perto da porta.

Não tô... não tô me sentindo bem. Minha cabeça... latejando.

— Nós vamos brincar um pouco, querida. A noite está apenas começando!”

A lembrança chega de forma tão avassaladora que embaça meus olhos e me faz ficar tonta,
como naquele dia. Mas não pelo efeito do álcool, e sim pelo desespero do que pode acontecer.

Da história se repetir. A quilômetros de distância. Meu pior pesadelo prestes a acontecer na


minha frente. E, eu, mais uma vez, sem conseguir reagir.

As lágrimas que despontam como cachoeira tornam a sensação de sufocamento ainda pior.
Fico com raiva de mim, por não conseguir falar, nem gritar, nem mexer a merda do corpo para salvá-
la.

Camile pode se machucar e eu não estou fazendo nada. Nada!

O carro dá partida e meu peito começa a apertar da mesma forma que a garganta. Faça
alguma coisa, Aurora! Reaja! Vai ser sua culpa... sua culpa se ela...

Grito na mente, já que a voz insiste em não me obedecer. Exausta de tentar, minhas pernas
ficam bambas e a escuridão vem.

O som do meu corpo caindo no chão é o último barulho que escuto antes de perder os
sentidos de vez.
CAPÍTULO 43

— Olhos coloridos, acorda! Acorda, por favor. — Balanço seu ombro e me inclino no chão,
na altura do seu rosto. Fico bem pertinho, afoito para que sua íris única me fite de novo. — Por
favor, linda. Por favor, por favor. Acorda.

Minhas mãos estão tremendo tanto que quase não conseguem levantar o seu tronco e colocar
sua cabeça no meu colo. Sinto como se alguém estivesse comprimindo meu peito até destruir os meus
pulmões.

Eu não consigo. Respirar.

Já tive medo antes, mas nunca algo tão devastador e apavorante como essa cena. A minha
Aurora estendida no chão e desacordada. A falta de fôlego antes, o seu olhar assustado. Volto a
sacudi-la e as lágrimas que nem percebi se formarem nos meus olhos começam a pingar pelo pescoço
dela.

Minha olhos coloridos precisa acordar, por favor. Por favor.

— Calma, filho, vai ficar tudo bem. — Minha mãe se inclina também e coloca o dedo no
pulso dela para conferir os batimentos. — Vamos deixá-la deitada mesmo, tem que levantar a perna
mais alto que o corpo e a cabeça. Vou fazer isso e você coloca o rosto de lado para facilitar a
respiração.

Estou ouvindo minha mãe, mas não consigo me mexer. Meu rosto não consegue se desviar dos
olhos fechados dela. Não consigo ver seus olhos coloridos lindos.

Isso dói tanto. Eu preciso da minha Aurora acordada.

Acorda, por favor. Por favor.

— Filho! — minha mãe chama a minha atenção, aumentando o tom de voz. — Foca aqui em
mim, meu amor. Tenta respirar fundo, eu preciso que você fique calmo pra poder ajudar a Aurora.
Tente se lembrar das suas conversas com a psicóloga, de como conseguiu se controlar nas últimas
semanas. Coloque a cabeça dela para o lado, por favor. Eu sei que você consegue!

Eu não posso surtar. Não posso surtar agora. Minha olhos coloridos precisa de mim, ela
precisa que eu esteja calmo.

Mesmo sentindo que meu peito continua sendo esmagado, forço o ar entrar e faço o que minha
mãe pediu.

Eu consigo. Eu consigo!

— Vocês precisam de ajuda? — Um carro para ao nosso lado e o motorista sai do veículo. —
Meu Deus, é a Aurora? Eu sou aluno da academia. O que houve com ela? Tem uma UPA 24h no outro
quarteirão. Posso levar vocês lá.

— Nossa, seria ótimo. Tinha me esquecido desse posto aqui perto. — Viviane fala,
levantando a perna que segura mais alto. — Ela teve uma crise de falta de ar e desmaiou em seguida,
não fazemos ideia do que pode ser. Vamos colocá-la no carro, a menina que está com você pode ir lá
na Naja avisar o Noberto sobre o posto? A Mel foi atrás, mas não quero mais esperar.

— Claro! — Ele se vira para a garota do carona e ela prontamente se levanta. — Você sabe
onde fica, né, amor?

— Sim, atravessando a avenida, uns 100 metros atrás.

A menina sai apressada e o rapaz vem tentar pegá-la no colo. Só quando seus dedos se
aproximam da cintura dela, é que saio do estupor e o impeço. Ninguém toca na minha garota.

— Eu faço isso! — digo, sério, e me levanto para colocar seu corpo leve nos meus braços.

O seu cheiro tão perto me faz ter vontade de chorar de novo, mas prendo a respiração e
aguento firme. Por ela. Correndo muito acima do limite de velocidade permitido, menos de três
minutos depois estamos estacionando na frente da UPA.

Assim que o carro para, a minha mãe corre em disparada para chamar uma enfermeira.
Ajeito-me para sair com ela em meus braços, no entanto, paro o movimento ao perceber suas
pálpebras se mexendo.

Meu peito volta a se expandir e meus dedos tocam seu rosto para fazê-la se virar para mim.
Preciso dos seus olhos coloridos me observando. Preciso disso para não surtar.

— Aurora! Aurora, minha linda. Você está bem? Nós estamos no médico, eles já vão te
atender. Você está me ouvindo?

Suas pupilas se dilatam e seu rosto se vira para vários lados tentando entender onde está.
Aquela falta de ar desesperadora volta a atormentá-la e a tirar meu juízo. É horrível ver a minha
olhos coloridos se debatendo, tentando falar e não conseguir.

— Calma, Aurora! A enfermeira está vindo. Se você ficar nervosa vai piorar a crise. — O
rapaz que nos deu carona tenta acalmá-la, mas não adianta.

Ela segura minha blusa com força e se aproxima de mim com os olhos cheios de lágrimas.

— Vol... vol... ela... tem... — A cada vez que força as palavras saírem, sua situação piora e eu
fico mais sem reação.

— Vamos tirar ela logo do carro! — Uma mulher mais velha, vestida toda de branco, aparece
na porta com mais uma pessoa vestida igual e se inclina para ajudar Aurora sair.

Minha namorada me aperta com mais força, querendo me dizer algo, e fico com raiva de mim
por não saber como ajudá-la, não entender o que está querendo dizer.

— Desculpa, olhos coloridos. Não consigo entender. Desculpa.

A voz sai baixa, engasgada pelo bolo que se formou na garganta.

À medida que seu corpo vai se afastando do meu e sendo colocado em uma cadeira de rodas,
a visão do seu olhar que tanto quis contemplar de novo se torna um martírio.

Tem alguma coisa muito errada neles. E eu não sei decifrar.

6073, 6079, 6089, 6091, 6101, 6113...

Não consigo parar de andar em círculos na recepção da UPA, nem de bater os dedos na
lateral do corpo contando números primos. Meu coração não se acalma, minhas pernas não se
cansam, minha mente não para de pensar por que os olhos dela estavam tão diferentes.

Parecia medo. Ou desespero. Bato a outra mão na testa. Pensa, Daniel! Pensa!

“Vol... vol... ela... tem...”

O que isso significa? O que significa?

— Filho, por favor, senta um pouco. Eu te imploro! — Minha mãe vem pela quarta vez tentar
me convencer a me sentar com ela, meu pai e o tio Noberto. — Você está há horas andando. Horas,
meu amor!

Balanço a cabeça em negativa e continuo a contagem de onde parei: 6121, 6131, 6133, 6143,
6151, 6163... Como Aurora não se acalmava de jeito nenhum, o médico achou melhor sedá-la para
não ficar pior do que estava. Isso foi às 23h, agora passam das 3h da madrugada.

Tive ciência de quando James ligou avisando que tinha chegado ao Brasil, e da minha mãe
contando o incidente, mas sinceramente não consegui focar mais de trinta segundos a atenção nele ao
passar por aquelas portas.

A primeira vez que vi meu pai vai ficar marcado pelo dia de maior desespero da minha vida.

O telefone toca de novo e imagino pelo som que seja a Ana Júlia buscando informações com
o tio Noberto. A Mel foi obrigada a voltar para casa com a mãe, mas não deve ter conseguido dormir
de preocupação.

— Daniel Lima, quem é? — um rapaz baixinho pergunta, saindo do corredor dos pacientes, e
eu imediatamente corro na sua direção.

— Sou eu. Eu! O que houve? Ela acordou? Melhorou?

— Ela está acordando do sedativo, mas ficou agitada de novo. Íamos repetir a dose, só que
implorou chorando pra chamar você primeiro. Pode nos acompanhar até o quarto?

— S... sim... Agora. — Noto uma mão nos meus ombros e sei que é a minha mãe logo atrás de
mim.

O enfermeiro autoriza que Viviane também vá e mal consigo respirar até que entro no quarto
compartilhado e a avisto sentada na maca. Seus olhos continuam daquele jeito diferente, porém, suas
mãos se estendem me chamando para perto dela.

Não ligo se estou em um hospital, nem de quem esteja por perto. Corro para os seus braços e
me jogo na cama, abraçando-a como se fizesse anos que estivéssemos longe um do outro.

— Minha olhos coloridos — sussurro, próximo ao seu ouvido, sem saber o que mais dizer.

Um monte de frases passa na minha cabeça, mas nenhuma sai. Só quero ficar perto, sentir seu
calor. Meu coração reverbera pelo corpo inteiro e parece se encontrar com as batidas dela, também
agitadas.

— Eu... eu... eu... — Aurora limpa a garganta e se afasta para procurar meu olhar. — Sinto...
muito... pode... tarde. Não devia... ser sedada... ficar... nervosa. Horas... passaram.

— Como assim, querida, o que houve? — Minha mãe se senta do outro lado da cama e pega a
sua mão de forma carinhosa.

— É... ele, Dan. — Seu pranto sai tão doloroso que parece sugar o ar de todo quarto. É
horrível vê-la assim, eu odeio isso. Odeio não saber como parar. — Eles... Estão... aqui. Camile... no
carro.

— Quem? A Camile? Não estou entendendo. Me desculpa.

Bato a mão na cabeça, sentindo que pode explodir a qualquer momento. Nunca senti algo tão
forte.

— Os que me machucaram... no passado. Estavam no carro... carona da Camile.

Ao invés de contar números primos, fecho os punhos ao lado do corpo e respiro ofegante
tentando fazer minha mente assimilar o que essa informação significa.

“Já passou, Dan. Foi há muito tempo, eles não podem me fazer mal agora.”
Ela disse que não podiam fazer mal, mas os caras que embebedaram e estupraram a minha
olhos coloridos estão aqui.

Estão aqui. E com Camile.

Hoje é, definitivamente, um dia de novos sentimentos. Porque nunca senti tanta raiva na minha
vida.
CAPÍTULO 44

É visível o quão transtornado Daniel está, e isso me corta o coração, mas infelizmente neste
momento não posso me preocupar só com ele. A vida da Camile pode mudar de forma drástica a
partir de hoje e precisamos dar um jeito de encontrá-la.

Quando eu abri os olhos e percebi que ainda estava em um quarto hospitalar, fiquei agoniada,
não era um sonho, infelizmente. A cereja do bolo foi olhar o relógio da parede e constatar que a
madrugada se estendeu.

Eles me sedaram e perdi horas cruciais. Pode ser tarde demais... Por minha culpa, pode ser
tarde. Eu não consegui controlar meus sentimentos, meu nervosismo.

Você não pode focar nisso agora, Aurora. De novo, não. Vai dar tudo certo, vai ficar tudo
bem, acalme-se!

Repito o mantra e inspiro fundo, segurando a mão do Dan para que olhe para mim. Quando eu
contei sobre o estupro ele pareceu bravo, mas nada como hoje. Sua respiração está muito acelerada,
entendeu a gravidade da situação e que não é mais algo distante. Eu não posso passar mal e correr o
risco de ficar presa neste lugar, nem posso permitir que meu namorado tenha uma crise de ansiedade
maior do que já está.

— Dan, eu sei que hoje... hoje já foi estressante além da medida pra você, mas preciso que
sejamos fortes. Você me ajuda a ser forte? Não posso deixar a história se repetir. Eu não posso. —
Seco as lágrimas com a mão livre e entrelaço nossos dedos. — Temos que tentar respirar fundo e
achar a sua prima.

— Eu... — Ele engole em seco e limpa a garganta. — Eu vou tentar, farei o que puder.

— Me expliquem, por favor, o que está acontecendo. Estou começando a ficar desesperada
também. Como assim, achar a Camile? Quem machucou você, Aurora?

Tento resumir a história para a Viviane sem me emocionar demais e causar uma nova falta de
ar. De jeito nenhum ficarei aqui deitada, sabendo que aqueles monstros estão soltos em São Paulo.

— Meu Deus do céu, Aurora! Eu sinto... — Ela funga e toca meu rosto com delicadeza. — Eu
sinto muito, minha linda. Sinto do fundo do meu coração por isso. Agora a minha sobrinha... nas mãos
deles...

Fecho os olhos por um instante forçando minha mente não pensar naquelas mãos, nos seus
rostos, na fala mansa me trancando no quarto.

Camile. Camile. Camile. Precisamos achar a Camile!

— O Noberto está aqui também? Temos que tentar ligar para a Camile, fazê-la sair daquela
festa... talvez, talvez dê tempo.

— Tá na recepção, vou lá falar com ele agora mesmo. — Ela sai correndo e me viro para o
Dan, acariciando seu rosto.

— Obrigada por me ajudar, Dan. Vai ficar tudo bem, se Deus quiser, vai. Isso não... —
Balanço a cabeça afastando os pensamentos negativos e começo a cutucar o acesso do soro que me
deram. — Agora temos que sair daqui. Vocês têm que conseguir minha alta, mesmo que seja
assinando um termo de responsabilidade. Pode ir lá encontrar sua mãe e ver isso? Não podemos
perder mais tempo.

— Tá... tá, eu vou. — Ele se levanta da cama, mas volta a me encarar antes de sair. — Eu
posso não saber como demonstrar, não prometo conseguir ficar calmo o tempo todo, mas saiba que eu
estou aqui, por você, tá? Sinto muito que esteja revivendo isso, que eles... que aqueles...

— Eu sei que você está, Dan. E é essa certeza que está me dando tanta força.

Não vou permitir que meu passado venha interferir meu presente justo quando eu encontrei
um motivo para continuar.

Dan me libertou com a sua pureza, não vou mais colocar aquelas algemas.

Trinta minutos.

Mais trinta minutos preciosos se passaram e não conseguimos falar com a Camile. Noberto
anda pela cozinha da sua casa, de um lado para o outro, com o telefone no ouvido e a outra mão
puxando o seu cabelo com força.

Está transtornado com a possibilidade do que pode acontecer. Eu imagino que meu pai ficaria
exatamente assim se soubesse daquela festa na casa do Otávio, que eu estava em risco, e não pudesse
me achar.
Passo a mão nas costas da Ana Júlia, que chora copiosamente desde que chegamos da UPA e
o seu marido explicou a situação. Por sorte, ela tinha conseguido fazer a Mel dormir minutos antes de
voltarmos. O assunto é denso demais para uma criança. Dona Marideide também foi dormir antes
mesmo de saber do meu desmaio. Ela não iria ajudar em nada neste momento.

Estamos Dan, Viviane, James, Ana Júlia, Noberto, Pablo e eu tentando achar uma forma de
contato. O pai do meu namorado trabalha atualmente como gerente de TI em uma grande
multinacional, mas foi por muitos anos programador independente. Ele se ofereceu para tentar
rastrear o telefone dela.

O problema é que o GPS do dispositivo está desligado e dando mais trabalho na busca.
Coitado do James, chegou em uma péssima hora para conhecer o filho. Não consegui trocar nem meia
dúzia de palavras com ele, imagino que o Dan também não.

A Ana Júlia está tentando falar com a amiga da filha, que trabalha com ela no shopping e saiu
junto esta noite.

— Amanda, alô, Amanda! É você, tá me ouvindo? — O silêncio é quebrado pela voz agitada
da mulher ao meu lado. — A Camile tá com você? Onde vocês estão?

Viviane pede para colocar o telefone no viva-voz e todos nós conseguimos ouvir o diálogo.
Meu coração se aperta ao notar as mãos trêmulas da Ana Júlia e sua voz embargada de agonia.

Os pais são os que mais sofrem quando os filhos estão em perigo. Sei muito bem como foi
para os meus.

— Tia Ana, desculpa a demora pra atender. Entrei no banho e deixei o cel no silencioso. Eu
já tô em casa, tive que voltar mais cedo porque a mãe teve alta na pressão de novo. A Ca ficou na
festa.

— Você deixou minha filha sozinha com dois desconhecidos, Amanda? — Seu tom endurece e
o marido vai para o seu lado sussurrar que tenha calma.

Infelizmente, não adianta ficar brava. Se adiantasse, eu poderia ter resolvido muitos
problemas, pois, raiva não me faltou. Manter a calma é a melhor opção em casos assim, por mais
difícil que seja conseguir esse feito.

— Calma, tia, eles são gente boa. São ricos, bem-educados, não tentaram nenhuma gracinha.
— No começo, é exatamente assim que Otávio faz para ganhar a confiança. — Estavam no shopping
porque a família de um deles vai abrir uma loja de roupas lá, nos conhecemos na praça de
alimentação, no nosso almoço. Os dois trabalham no administrativo da empresa, são garotos do bem,
esforçados.

— Pergunta o nome pra ela, e de onde disseram que vinham — falo baixo, inclinando-me na
altura do rosto da Ana Júlia, que repete para a garota.

— Eles disseram que são de Minas. Otávio e Maurício, os nomes. Não perguntamos o
sobrenome.

Meu coração volta a disparar e a respiração a ficar escassa. São eles mesmo... com absoluta
certeza. Não foi uma miragem da minha cabeça, nem um pesadelo horrível.

Isso está sendo muito real. Dois monstros à solta de novo, só faltou o Elton. Será que quis
parar? Será que mudou de cidade? Será que não veio só desta vez? Nunca mais quis saber nenhuma
informação do trio, desde que saí de Pirapora.

Dan, que estava o tempo todo ao meu lado, estende a mão e entrelaça nossos dedos. Aperto
firme sua palma, forçando meu peito a desacelerar.

Você vai ter que ser forte de novo, Aurora. Vai ter que lutar contra isso. Respira!

— Qual boate vocês estavam? — Ana Júlia volta a chorar de forma perturbada quando vê
minha reação. — É urgente, Amanda. Preciso ir lá buscar a minha filha.

— Por que está chorando? Está tudo bem, tia. Ela não vai estar mais lá... — Prendo a
respiração, morrendo de medo da próxima frase. Que não tenha saído com os dois, que não tenha
saído com os dois! — Mandou mensagem antes de eu entrar no banho, dizendo que a festa foi ótima,
mas que também estava voltando pra casa. Ela mandou uma foto dentro do táxi, os meninos tinham
voo de volta pra casa hoje cedo e não podiam amanhecer na festa. Daqui a um pouquinho, a Camile
tá chegando aí. O lugar é meio longe.

Por mais que uma parte minha anseie com todas as forças que ela realmente esteja segura,
voltando para casa, porque os dois se redimiram e nunca mais machucaram ninguém, a outra parte
fala mais alto e não consegue se deixar iludir.

Eles vieram buscá-la aqui perto, à noite, que era mais seguro e, no auge da madrugada, vai
deixar a menina voltar sozinha de táxi? Tem alguma coisa que não está encaixando.

Ana Júlia manda a garota encaminhar a foto, a mensagem e o nome da boate no celular dela e
desliga, sem dar mais informações. Não tem nem condições de segurar o telefone, suas mãos tremem
demais.

— Olha, aparece mesmo ela dentro do carro. — A mulher em lágrimas vira o celular e
mostra para mim. — Mostra a janela e uma parte do banco.

— Mas não mostra o rosto dela, nem dá pra ver nada do carro. Pode nem ser um táxi mesmo.
Desculpa, não quero ser pessimista, é só que...

Dói muito ter que ser sincera com os pais de uma possível garota estuprada. Os olhares de
tormento deles machucam ainda mais do que lembrar o passado. Será que outras famílias passaram
por isso nesses três anos que vim embora? Será que repetiram muitas vezes?

É impossível não pensar nisso, o que faz meu estômago revirar.

— Não temos provas de desaparecimento pra avisar a polícia, sei que também não adianta ir
lá na boate tentar falar com alguém..., mas temos que fazer alguma coisa, ficar aqui parado esperando
vai me matar. Não dá! — Ana Júlia vocifera, aos prantos, e o marido a abraça.

Um silêncio sufocante se instaura na cozinha, abafado por choros e murmúrios.

— Encontrei a base de onde o dispositivo móvel está! — James dá um pulo na cadeira e solta
um suspiro de alívio. Seu sotaque é arrastado, mas dá para entender bem o português. — Essa região
é conhecida de vocês?

— Está a uns cinco quilômetros daqui! — Pablo corre para ver a tela do computador. — Por
que o ponto está parado? Se fosse o táxi, estaria em movimento, não é?

Estar parado é um péssimo sinal. Péssimo!

Aperto os dedos do Dan de novo e ele se aproxima de mim, deixando um beijo na lateral da
minha cabeça como apoio. Ele não precisa dizer uma palavra para me acalmar, consegue só de estar
por perto.

A sua mente deve estar uma bagunça agora, ele deve estar se esforçando muito para ficar
calmo. Estou muito orgulhosa do meu namorado, apesar de tudo.

— Vamos agora mesmo lá, é melhor ir só Pablo, eu e James, no caso de... — Noberto não
termina a frase.

Dando um beijo apressado na esposa, os três saem correndo para pegar o carro e seguir o
endereço.

A nós, que ficamos, só resta rezar e torcer que não seja tarde demais.
CAPÍTULO 45

Observo a família inteira sentada na recepção do hospital, todos sem exceção com os olhos
vermelhos e mãos agitadas, e se torna quase impossível controlar a minha ansiedade. Estou com
sono, com fome e, o mais importante, com medo do que está por vir.

É informação demais ao mesmo tempo, meu corpo não está aguentando mais.

Tio Noberto, Pablo e o meu pai encontraram o local indicado pelo rastreio do celular, só que
o desfecho foi pior do que prevíamos. Camile estava abandonada em um terreno baldio,
desacordada, com a cabeça sangrando e as roupas rasgadas.

Eles ficaram tão desesperados que nem chamaram a polícia. Trouxeram a minha prima para
cá e viemos encontrá-los imediatamente. O sol nem nasceu ainda.

— Será que ela vai ficar bem, Dan? Ela vai acordar? — Mel sussurra, encostando sua cabeça
no meu ombro. — A gente briga muito, mas eu a amo. É minha irmã.

Quando tia Ana Júlia recebeu a ligação do marido, ela não aguentou se segurar e gritou tanto
de angústia, que acabou acordando a vó Marideide e a Mel. As duas insistiram para vir ao hospital
junto com a gente, mesmo sendo um assunto tão delicado para uma criança e uma senhora com
problemas de pressão.

— Eu... eu... — Não faço a mínima ideia dessa resposta, não sei o que dizer para uma
garotinha cheia de esperança.

— Os médicos farão de tudo pra que ela fique bem. Tenha certeza disso. — Aurora me salva
e eu a olho, agradecido.

Seu semblante está cansado, não consigo nem imaginar quantas coisas passam pela sua
cabeça revivendo isso. Se para mim é tão incômodo lidar com tudo, para a minha olhos coloridos
deve ser doloroso ao extremo.

— Sensei, viemos o mais rápido que pudemos. — Um jovem aparece esbaforido próximo de
onde estamos com um homem mais velho. — Esse é o meu pai, Ermes.

— Muito obrigado por terem vindo a esta hora. — Meu tio se levanta e cumprimenta os dois.
— Estamos desesperados, sem saber o que fazer, como agir.

Assim que Camile foi atendida pelo médico, Noberto se lembrou de um dos alunos novos da
academia, que é filho de um detetive da polícia civil, e ligou pedindo ajuda no caso. Devem ser
essas pessoas.

Percebendo que o assunto vai voltar a ficar sério, Pablo chama a Mel para ir com ele tomar
café na lanchonete do hospital. A pequena tenta revidar, mais diante do olhar triste e suplicante da
sua mãe, acaba indo.

Nunca vi a tia Ana Júlia tão triste, dá um aperto no coração a sua imagem.

— O que houve? Preciso que me contem com o máximo de detalhes, por favor.

Tio Noberto explica tudo que sabemos até agora, desde o desmaio da Aurora até a ligação
para a amiga, e como descobriu o paradeiro da filha no terreno baldio. O seu telefone e a sua bolsa
permaneciam com ela, indicando que não foi um roubo; e, embora os médicos ainda não tenham
vindo dar um parecer, as roupas rasgadas sugerem que foi violentada.

— Então, a senhorita Aurora os conhece de Minas Gerais, certo? — o detetive pergunta,


olhando para a minha namorada. — O modus operandi foi o mesmo?

— Eu conhecia os dois da escola, era bolsista em uma escola de gente rica. Nós fomos a uma
festa na casa do Otávio e ele e os seus amigos me embebedaram. Não me lembro de muita coisa, só
de entrar em um quarto e a porta ser fechada com três garotos. Na época, tinha o Elton também. Tenho
poucos flashes depois dessa cena. — A olhos coloridos pega a minha mão e faz um carinho nos meus
dedos. Odeio ter que ouvir isso de novo, odeio que ela tenha passado por tudo isso. — Não cheguei
a te contar tudo aquele dia, Dan, tem mais coisas, na verdade, as coisas que realmente me deixaram
abaladas após o estupro. Foi na festa que eu fiquei com a perna manca. Não lembro como foi, mas
testemunhas disseram que eu caí da escada da mansão. Bêbada, provavelmente logo após o sexo
forçado, saí sozinha e me desequilibrei.

— Meu Deus, Aurora! — o sensei lamenta, colocando a mão no seu ombro.

Eu fico olhando para ela, desacreditado, sem saber o que falar. Não faz sentido na minha
cabeça como alguém pode machucar tanto assim outra pessoa. Além de a violentarem, a deixaram
manca para sempre.

— Alguém chamou a ambulância, porque no outro dia acordei no hospital, tive fratura no
tornozelo, especificamente na fíbula com lesão no nervo — ela continua contando e eu sigo sem
reação. — Fiquei com gesso até ter vaga pelo SUS para uma cirurgia, e foi isso que me deixou
mancando até hoje. Demorou um tempo que eu não tinha. Por mais que meus pais tenham gastado uma
fortuna de fisioterapia depois, já era tarde.

— Você denunciou, tem registro disso lá na sua cidade natal? — o detetive questiona e o seu
rosto se contorce todo.

Uma piscada, e as lágrimas descem sem controle. Aurora afasta sua mão de mim e se inclina
no banco, chorando tanto que suas costas sobem e descem.

— Olhos coloridos... — Coloco as mãos no seu cabelo para tentar acalmá-la, só que eu
mesmo estou sem controle nenhum.

Minha respiração voltou a ficar entrecortada, meu peito está apertado e minha cabeça doendo
tanto que mal consigo enxergar as coisas à minha frente.

— Querida, toma este copo de água! — Minha mãe ajoelha na sua frente e segura seu ombro,
incentivando-a a se levantar e tomar o líquido que não faço ideia de onde arrumou. — Nós estamos
aqui com você, todos nós.

Com as mãos trêmulas, ela aceita e vira o copo.

— Tudo bem, não precisa responder nada agora, nós vamos investigar...

— Não, eu quero falar — interrompe o detetive, inspirando fundo e voltando a segurar minha
mão. Sentir o seu calor normalmente me deixa calmo, mas estou a um ponto que não consigo mais
controlar os nervos. — Vocês precisam saber exatamente com quem vão lidar, quão baixo os Baldez
são. Ainda no hospital... ainda no hospital eu contei para os meus pais o que me lembrava daquela
noite. Contei que tinha bebido muito, que eles me ofereceram bebida, e que uma das últimas
lembranças foi ser trancada no quarto e ter um membro enfiado na minha boca. Na mesma hora meu
pai chamou a polícia e fez um Boletim de Ocorrência, foi solicitado o corpo de delito e o exame
depois comprovou que eu tinha feito sexo. Havia marcas avermelhadas pelo corpo também, mas não
constataram ato violento. Três dias depois do ocorrido, quando ainda estava no hospital, meu pai foi
demitido da empresa que era do senhor Baldez, junto com mais uma dúzia de funcionários, alegando
corte de gastos. Para seguir com o processo, e ter chance de lutar contra uma família extremamente
rica e tradicional da cidade, minha família fez um empréstimo que está pagando até hoje. Esse é o
motivo de ter começado a lutar, não aguento mais essa dívida.

Ela olha para o tio Noberto, que está paralisado tanto quanto eu, acompanhando o relato.

— Que filhos da puta, eu... — Fecha o punho ao lado do corpo e engole em seco. — Estou
achando que o resto dessa história é um pesadelo.

— O meu pior pesadelo, até poucas semanas atrás era por isso que eu me escondia, que eu
tinha tanto medo. Se não fosse o Dan... sem ele, ainda estaria nessa escuridão. — Mesmo em meio a
lágrimas, ela consegue sorrir para mim. Um sorriso fraco, muito diferente dos outros, mas um sorriso.
Entrelaço nossos dedos e os aperto mais forte, tem um bolo na minha garganta que não me deixa fazer
nada. — Cerca de uma semana depois que eu recebi alta do hospital, com o pé engessado, eu fiquei
na casa de uma amiga da escola para os meus pais e a minha vizinha Telma irem à cidade vizinha
resolver a questão do advogado. Essa minha vizinha conhecia uma firma boa, deixaram a minha irmã
na escola e acharam que eu ficaria segura na casa dessa menina. Lorena ia ao hospital todos os dias,
ficou em cima fingindo preocupação, pensei que realmente fosse minha amiga, mas era tudo
enganação. Ela contou ao Otávio que eu estava na sua casa e ele foi atrás de mim, me ameaçando a
calar a boca e não medir esforços com a sua família. Depois disso, foi um completo inferno. Eles
realmente tinham muito mais influência, a história deles era muito mais aceita que a minha pelo
histórico da família. Antes de começar as audiências, o próprio pai dele me chamou de interesseira,
que eu não me dava ao respeito e que estava inventando tudo para chamar a atenção e pegar o
dinheiro dele. O homem passou a mão na cabeça de tudo que o filho fez.

— Ai, minha Nossa Senhora! Como vamos lutar contra essa família? — vó Marideide
comenta, colocando a mão no coração.

— Nós venderemos a academia, gastaremos cada centavo que tivermos, mas vamos até o fim.
Eu não vou deixar ser fácil, eu vou lutar pela minha filha — tia Ana Júlia garante, em meio às
lágrimas.

— A pior parte de tudo pra mim é isso. A sensação de injustiça me sufoca. Meus pais também
fizeram o que podiam, eu me sinto tão culpada por tê-los afundado em dívidas e preocupação... Se eu
tivesse ficado na escola estudando, se seguisse meus objetivos... — A voz da Aurora diminui tanto e
seu pranto sai tão doloroso que meu peito termina de se comprimir de vez. — Não me lembro muito
do estupro, mas eu me lembro de cada humilhação que passei durante o julgamento, como fui
desacreditada e desqualificada. Eu tive coragem de denunciar, e menosprezaram a minha dor. De
vítima terminei sendo rotulada de puta. Foi por isso que saí daquela cidade, não tinha mais
condições de viver em um lugar que todos apontavam o dedo pra mim.

— Foi então como o caso famoso da Mariana Ferrer, que tem repercutido na mídia — o
detetive lembra.

— Exatamente igual! — a olhos coloridos concorda, ainda chorando muito. — Por muitos
anos, eu questionei: do que adianta a mulher ir lá, denunciar e se expor pra nada? Não existe justiça
para as mulheres estupradas. Nós precisamos nos humilhar pra fazer nossa voz ser ouvida e, no final,
nos calam na base da vergonha. Os advogados de defesa acabaram comigo no julgamento e,
infelizmente, descobri que essa é uma prática comum. O exame de corpo de delito apontou que eu
tinha feito sexo com mais de uma pessoa. Otávio inventou que eu pedi um ménage e negou que havia
três. Admitiu que tínhamos bebido muito, mas foi tudo consensual. Não encontraram drogas no meu
organismo, só o álcool mesmo. Várias testemunhas disseram que me viram bebendo e grudada com
Otávio e Maurício a noite inteira, corroborando a tese deles. Os advogados conseguiram achar
vídeos de monitoramento do bosque que a gente frequentava e me mostrou fumando maconha com
uma turma de amigos. Eu sempre aparecia ao lado do Otávio e do Maurício, mas era porque os dois
não se desgrudavam. Comecei a usar aquela merda por culpa deles e isso foi usado contra mim.
Fizeram uma limpa nas minhas redes sociais e mostraram várias fotos de nós juntos, escolheram de
propósito as que eu aparecia com roupas provocantes. Roupas que a Lorena me obrigava a usar. O
advogado chegou a insinuar que eu me exibia de propósito porque eles eram ricos e eu queria me dar
bem.
— Que absurdo eles manipularem tudo desta forma, saírem ilesos depois de tudo! — minha
mãe vocifera, nervosa.

— O julgamento acabou de vez para mim quando os advogados mostraram vídeos de sexo
com meu ex-namorado no meio da audiência. Eu não fazia a mínima ideia da existência daquilo, foi
um choque absurdo reconhecer o local, as imagens — Aurora narra, esfregando a pele do braço
como se quisesse arrancá-la à força. — Era uma gravação de câmera escondida, feita pelo meu ex-
namorado traidor, um que conheci muito antes do Otávio. Ele vendeu para um site privado da Suécia
as imagens e estavam com milhares de acessos. Jamais imaginei que poderia estar filmando, nunca
iria concordar com aquilo. Nunca mais consegui falar com o garoto para confrontá-lo sobre esses
vídeos... sumiu do mapa. Fiquei com a sensação de que foi pago para sumir, que esse teatro foi
orquestrado pela defesa. Eles usaram isso para reafirmar que eu era depravada, uma puta que fazia
tudo por dinheiro. Depois disso, qualquer mínima chance de justiça foi por água abaixo.

Ah... não... Isso não... Isso não!

Minha Aurora, minha olhos coloridos não é uma puta interesseira. Ela é a melhor pessoa que
já conheci.

— Isso não é justo! Não é justo! Não devia ter acontecido! — Levanto-me da cadeira e
começo a andar batendo as duas mãos na minha cabeça. Ela está doendo muito, latejando e
reverberando um eco por toda parte.

Estupro.

Queda.

Lesão.

Julgamento.

Desqualificada.

Puta.

Interesseira.

Dinheiro.

Grito mais alto que as vozes reverberando na minha mente, quero esquecê-las. Quero
esquecer tudo isso. Bato forte na minha cabeça, desviando de todos os corpos que aparecem na
minha frente e nas mãos que querem me tocar.

— Não devia repetir. Não devia! Não é puta, não é interesseira. É minha olhos coloridos.
Eu não queria perder a calma, mas cheguei ao meu limite, não aguento mais segurar. Cada
parte do meu corpo dói, parece que tem várias agulhas entrando em mim ao mesmo tempo.

— Calma, Dan, eu tô aqui. — Aurora pula na minha frente e levanta a mão, demonstrando que
vai me tocar no rosto. — Olha pra mim, não foi justo, não é justo o que aconteceu com a sua prima,
mas não vamos deixar impune. Vamos lutar de novo, o detetive está aqui pra nos ajudar. Respira,
foca em mim.

— Ah, era só o que faltava. Minha neta desacordada, acabamos de ouvir um caso de injustiça
enorme e quem dá piti é o...

— Não termina essa frase, dona Marideide. Nem sonhe em terminar a merda dessa frase! —
Aurora brada, desviando o foco de mim apenas o suficiente para olhá-la por um minuto. — Se não
tem nada de bom pra dizer, não diga nada! Eu tentei ficar na minha, respeitar a senhora que é uma
pessoa de idade, só que haja paciência. A senhora não tem respeito com as pessoas. Entenda de uma
vez por todas que o Daniel é autista. Tudo isso foi muita informação, muito estímulo pra sua mente.
Se você tá sofrendo, nele o sofrimento é amplificado, muito mais intenso por causa da sua condição.
Ele pode não demonstrar da forma que espera, mas está sofrendo. Por favor, não fale as coisas que a
senhora não sabe. Não julgue o seu próprio neto.

Sem esperar uma resposta de ninguém, a olhos coloridos volta a me encarar e pega na minha
mão, levando-me para o lado de fora do hospital. Quando o vento fresco da manhã toca meu rosto,
ela para e aconchega sua cabeça no meu peito, enlaçando minha cintura com seus braços.

Relaxo meu corpo e abraço-a de volta, deixando o barulho do meu coração se conectar com o
tum, tum, tum dela.

Não dizemos nenhuma palavra. Só ficamos ali, parados, tentando retomar o fôlego e acalmar
a mente. Do jeito que só a minha olhos coloridos consegue.
CAPÍTULO 46

Sinto como se estivesse naqueles pesadelos que você quer correr do perigo, tenta ao máximo
sair do lugar, mas as pernas não se movem; você fica ali, paralisado, vendo tudo acontecer bem na
sua frente.

Se não bastasse ter que reviver os meus traumas e ficar apreensiva com a crise do Dan, agora
temos que lidar com o agravamento do caso da Camile. Os médicos disseram que ela teve uma lesão
na cabeça que causou hemorragia interna. Seu caso é extremamente grave e está em coma induzido.

Noberto foi com o detetive Ermes à delegacia fazer um Boletim de Ocorrência para a
abertura do inquérito de manhã e o médico legista já veio fazer o exame de corpo de delito. Também
foi solicitado um exame toxicológico para averiguar nível de álcool e presença de drogas no
organismo. O problema é que não encontraram mais Otávio e Maurício na cidade. Parece que
realmente havia uma passagem comprada previamente de volta para Minas logo cedo.

A amiga dela confirmou para a polícia que foram com eles que saíram para a festa, porém,
não existe nenhuma prova fora isso. Na verdade, a mensagem no celular da Camile só nos prejudica a
apontá-los como culpados. Eu acho que fizeram de propósito, eles escreveram aquilo para despistar
e a levaram para o terreno baldio. Talvez a garota não estivesse tão bêbada quanto imaginaram e
reagiu durante a tentativa de estupro. Um empurrão em falso pode causar um acidente sem volta.

Como a vítima não pode falar, e o meu caso não deu em nada, o delegado não viu a
necessidade de uma prisão preventiva enquanto investiga. Vai manter a fase de depoimentos com os
dois soltos por aí, tendo tempo e dinheiro para pensar em como se safar, isso é péssimo!

A sensação de não poder fazer nada é a pior que existe. Mesmo que eu tente afastar esse
pensamento da minha mente, é impossível não cogitar a hipótese que, de novo, a injustiça vai
prevalecer.

Esfrego o rosto com as duas mãos e bufo, jogando meu corpo para trás na cadeira da
recepção do hospital. É cansativo demais ficar em uma guerra com a nossa cabeça, lutando o tempo
todo para ser otimista.

Preciso confiar que desta vez vai ser diferente, que estamos em uma cidade grande e que aqui
os Baldez não têm tanta influência. O detetive Ermes está intermediando para nós o contato de um
promotor amigo dele que é ativo na luta contra a violência à mulher.
Preciso me apegar nas esperanças... nas mínimas que sejam.

— O Pablo ligou avisando que deu os remédios da mãe e ela conseguiu dormir. Agora está
lutando pra Mel ficar calma. — Viviane se senta do meu lado e me oferece um copo de água.

O irmão mais velho levou a avó e a caçula para descansar um pouco e sair deste meio
hospitalar denso.

— Estou com peso na consciência de ter perdido a paciência com ela mais cedo, só que...

— Eu já disse, não precisa pedir desculpas, Aurora. — A mãe do Dan toca meu ombro e me
observa com compreensão enquanto tomo uma golada. — Ela é difícil, passou dos limites. Meu filho
estava visivelmente sofrendo, talvez seja bom que assim acorda de vez. Por falar do Daniel, cadê ele
e o James?

— Dan comentou que precisava falar com o professor João urgente e saiu lá pra parte
externa. O James foi buscar um café na lanchonete. — Olho na direção do corredor que dá para a ala
dos pacientes e volto a beber mais um gole de água. — Noberto e Ana Júlia conseguiram entrar pra
visitar a filha?

— Sim, o médico acabou de liberar. Deus abençoe que acorde logo e possa contar pra
polícia toda verdade.

— Sobre verdade, estava aqui pensando, eu preciso dar um jeito de conversar com meus
pais antes que esse caso se espalhe em Pirapora e meu nome seja envolvido. Eles não sabem de nada
da minha vida aqui.

— Como assim, nada?

— Literalmente, nada. — Fecho os olhos e inspiro fundo, sentindo meu peito apertar. Já não
estava mais aguentando as mentiras antes, agora ficará insustentável. — Eu saí de Pirapora mentindo
que vinha estudar, que consegui uma bolsa pra fazer Veterinária. Coitados, eles acreditaram que eu
estava superando. Fiquei morando de favor e fui recicladora por mais de três anos.

— Nossa, Aurora...

— Eu sei, foi horrível o que eu fiz. Não precisava ter inventado tantas mentiras, mas é que a
parte deles me traz muita culpa. — Na minha cabeça, se eu não inventasse uma história para vir para
São Paulo, só iria deixá-los mais apreensivos por ficar longe. — Toda decepção que causei, os
problemas financeiros pesam demais em mim. Eu tenho uma irmãzinha autista, em um grau mais
elevado que o Dan, não queria dar mais preocupação a eles. Queria que vivessem uma ilusão de que
estava tudo bem.

— Jamais vou te julgar por isso, eu imagino como foi difícil pra você tomar essa decisão e
chegar aqui depois de tudo que passou.

— A terapia e o envolvimento com o Dan já estavam me pedindo pra dizer a verdade a eles,
sabe, esse é o empurrão que faltava pra criar coragem de vez. É melhor descobrirem pela minha
boca a ouvirem fofocas distorcidas depois. As informações proliferam na velocidade da luz em
Pirapora.

— Posso conseguir passagem pra eles virem aqui, ou você ir lá. O que você quiser fazer, me
fala que eu te ajudo. Nós temos um programa na empresa, de parceria de várias companhias, com
descontos ótimos pra qualquer lugar do mundo.

— Você não precisa se preoc...

— Claro que preciso, Aurora, você fez tanto por nós — ela me interrompe e coloca a mão no
meu colo. — Me fala, que consigo resolver isso hoje ainda. Acredito que você não vai querer ir lá,
talvez tenha que pedir pra virem aqui.

— Quem vir aqui? — Dan volta da área externa e se junta a nós. — Aconteceu mais alguma
coisa?

Conto a ele sobre a minha vontade de abrir o jogo com os meus pais sobre o tempo que estive
em São Paulo e meu namorado me apoia em todas as decisões. Viviane insiste até que eu aceite que
me compre as passagens.

— Aproveitando o assunto de avião, gostaria de informar que acabei de avisar o professor


João que desisti da viagem pra Rússia. Ele vai comunicar a organização do prêmio por mim, vai
explicar o que aconteceu.

— Como assim, desistir, Dan? É uma oportunidade única, podia abrir tantas portas pra você.
— Meu coração se aperta pela escolha. — Não tem como adiar e você ir em outra oportunidade?

Ao mesmo tempo que eu fico muito feliz por tê-lo aqui comigo no meio dessa turbulência, sei
como estava ansioso e cheio de expectativa para essa viagem.

— Não tem como adiar, os vencedores do prêmio embarcam amanhã à noite. Mas não se
preocupe com isso. Posso ganhar outros prêmios e conquistar outras oportunidades depois. — Ele
procura meu olhar e fixa a sua atenção em mim. — Eu jamais iria aproveitar um segundo sequer
sabendo que te deixei enfrentando seu pior pesadelo sozinha e a minha prima desacordada. O único
lugar que quero estar é aqui.

— Ai, meu filho. — Viviane está com os olhos marejados, quase chorando. — Eu tenho muito
orgulho de você.

— É isso que fazemos pelas pessoas que amamos, não é?


Um sorriso desponta no meu rosto pela primeira vez hoje, quando Daniel faz a pergunta.
Viviane também sorri e avisa que vai nos deixar a sós para conversar.

— O que foi, eu falei alguma coisa errada? — questiona, assim que a mãe se levanta.

— De errado? Jamais! Você só meio que acabou de dizer que me ama. — Continuo sorrindo
feito uma boba.

Adoro como o sentimento puro entre Daniel e eu é capaz de abafar todo resto. Ainda é um
mistério para mim como esse garoto conseguiu, pouquinho a pouquinho, me conquistar
completamente.

— Eu estava pesquisando sobre o significado dos sentimentos dias atrás e isso é o que mais
se assemelha ao que sinto. Não quero nada passageiro com você, com certeza. — Ele sorri também e
faz um carinho com as costas da mão no meu rosto. — Parece que amor é o ápice que se pode chegar.
“Eu te” tanta coisa, olhos coloridos... Eu te sinto, eu te quero, eu te toco, eu te agradeço, eu te
admiro, eu te espero... o melhor seria dizer eu te tudo..., mas concordo com o senso comum que eu te
amo soa melhor aos ouvidos.

Uma lágrima escorre pelo meu rosto e me aproximo mais dele, roçando nossos narizes. Pego
uma mecha do seu cabelo e a acaricio enquanto tento retomar o fôlego diante dessa declaração tão
linda.

— Am... amei “eu te tudo”. Nós não precisamos ser como os outros, Dan. Eu te amo
exatamente por ser diferente, único.

— Você também sente o ápice? — pergunta, com os olhos cintilando para mim.

— Muito, você não faz ideia do quanto. — Engulo em seco e me afasto um pouco, só o
suficiente para que possa me olhar e não ter dúvida nenhuma sobre as minhas próximas palavras. —
Com 14 anos, eu pensei que tinha descoberto o amor. Foi a primeira vez que meu coração acelerou e
meu estômago gelou diante de alguém. O rapaz dizia palavras bonitas, mas no dia a dia me traía e me
mantinha em um relacionamento tóxico. Mais tarde, descobri que me filmou escondida e publicou
imagens íntimas nossas em um site pornográfico de outro país. Só com 17 anos eu consegui abrir meu
coração de novo, porém, mais uma vez fui enganada por palavras. Depois do Otávio, eu achei que
nunca mais fosse sentir as batidas agitadas de novo, eu pensei que não fosse digna de amar. Afinal, eu
era uma puta, uma interesseira, uma oferecida... Esses adjetivos ficaram em mim por muito tempo,
Dan. Tempo demais. Quando você chegou na minha vida, eu imaginei tudo, menos que estaríamos
aqui. Você não me disse só palavras bonitas, não tentou apenas me conquistar... você fez muito mais
que isso. Você agiu, dia a após dia, me respeitando como mulher, fazendo a antiga Aurora sonhadora
florescer aos poucos. Mesmo que você nunca dissesse, eu saberia, porque eu sinto, no fundo da
minha alma. Fazer é muito mais importante do que dizer. Obrigada por me despertar com ações,
Daniel Lima.

Mais lágrimas escorrem pelo meu rosto ao perceber que os olhos do Dan também estão
molhados pela emoção deste momento. Como sempre faz, ele prefere não dizer mais nada, e sim,
agir.

Quando se inclina e nossos lábios se tocam, uma explosão toma conta da minha corrente
sanguínea. O que eu vivi antes nunca foi amor. Isso é amor de verdade.
CAPÍTULO 47

Não consigo desviar meus olhos dela. O sorriso não quer sair do meu rosto desde que disse,
minutos atrás, que também sente o ápice dos sentimentos comigo. Não fazia ideia que era tão bom
essa reciprocidade, amar na mesma proporção que é amado.

O costumeiro tum, tum, tum está mais barulhento do que nunca, levando um som gostoso por
todo meu corpo.

— Sua mãe disse que você não gosta de café, te trouxe um leite com achocolatado. — O
sotaque denuncia quem é antes mesmo que eu me vire. — Toma um pouco, pra não ficar de estômago
vazio.

Agradeço, pego o copo e automaticamente minha atenção volta na olhos coloridos, que está a
uns 200 metros de distância, falando com os pais ao telefone. A Viviane conseguiu passagens para
amanhã, se der tudo certo, minha garota vai contar a verdade em poucas horas.

Os pais dela me pareceram pessoas muito boas à primeira impressão. Vai ser importante para
ela desabafar, creio que vão compreender tudo que passou pela sua cabeça quando veio para cá.

— Fico muito feliz de saber que tenho um filho como você. Inteligente, esforçado e
preocupado com quem ama. — James está sorrindo e olhando na mesma direção que eu. — Aurora é
uma boa menina, vocês formam um belo casal.

— Ela é a melhor! — garanto e foco nele pela primeira vez. — Você já sentiu isso? O...
amor... o ápice?

— Acho que sim. — Ele fita o outro lado, onde minha mãe está conversando com a
recepcionista. Tomo um gole do leite, Aurora estava certa sobre os dois. — Senti algo muito forte,
mas era tímido demais na época. Se tivesse seguido meus instintos, talvez eu pudesse ter feito parte
da sua vida.

— Você pode fazer agora. A estimativa de vida do brasileiro gira em torno de 77 anos, temos
tempo.

— É verdade. — Ele sorri de novo e observa com atenção meu rosto. — Você se parece tanto
com seu avô. Adoro esse modo direto e simples de pensar, o mundo seria melhor com mais pessoas
assim.

Meu avô autista.

Tinha alguém como eu na minha árvore genealógica. Pensar nisso me traz um alívio diferente,
uma sensação de pertencimento, mesmo sem conhecê-lo.

— Ele fazia terapia para autismo? Viu melhoras com o tratamento? As pessoas o aceitavam?
— pergunto, afoito por saber mais das minhas origens.

— Também descobriu na fase adulta, mas ajudou demais a terapia. Tinha quem apontasse o
dedo, fazendo comentários desnecessários, só que ele nunca ligou para isso. Você também não deve
ligar, gaste suas energias com o que importa.

— Foi o que a doutora Elza disse. — Meus olhos escapam da conversa, buscando a Aurora
mais uma vez. — Ela me entende, a minha mãe entende, agora você também entende. Está bom pra
mim.

— Entendo muito bem, e estarei disponível sempre que precisar conversar. Agradeço por me
permitir fazer parte da sua vida a partir daqui.

— Não tenho motivo nenhum pra não permitir, James. Você não fazia ideia de que eu existia
antes.

Conversamos mais um pouco a sós e eu fico com meu coração ainda mais agitado de alegria.
Meu pai é legal, vai ser bom manter contato com ele. Quando Aurora volta e se senta com a gente,
percebo que também sente-se muito à vontade na sua presença, apesar da tensão do dia e da
ansiedade para a vinda dos seus pais, que aceitaram o convite de última hora.

Agora eu conheço a sua família, e ela conhece a minha. Já dissemos que nos amamos. Será
que dá para pular para o segundo passo e convidá-la para ser minha noiva? Não vejo a hora de
chegar à última etapa. Acordar com a olhos coloridos todos os dias ao meu lado deve ser a melhor
sensação do mundo.

Tum, tum, tum... as batidas se agitam só de imaginar.

— O detetive Ermes acabou de mandar mensagem no grupo que criamos para falar do caso.
— Minha mãe também se junta a nós, vidrada na tela do celular. — Já entraram em contato com os
meios legais de Pirapora e o advogado dos dois disse que irão se apresentar voluntariamente para
depor lá. Como são de cidades distintas, não é obrigatório que retornem a São Paulo.

Da alegria à apreensão em menos de um minuto. Queria que o dia ficasse só com as coisas
boas.

— Vão se fazer de bonzinhos de novo, indo voluntariamente como se não fizessem ideia de
nada — Aurora comenta, brava. — Pirapora é vendida para o senhor Baldez, não gostei disso. Se
viessem aqui, seria bem melhor.

— Também não gostei dessa informação, isso pode demorar muito. — Viviane passa a mão
no cabelo e bufa. — Imagina a burocracia pra dar andamento em um processo em duas cidades?!

— O meu processo foi relativamente rápido para os padrões brasileiros. Mas é porque era
tudo lá só, o senhor Baldez parecida ter plena ciência de que ia terminar da forma que queria.

— Eu pesquisei no celular o caso que o detetive mencionou, da jovem Mariana Ferrer —


comento, voltando a ficar ansioso com a possibilidade de eles não serem punidos mais uma vez. —
Vi que a denúncia dela foi em dezembro de 2018 para uma sentença final apenas em setembro de
2020. Muito tempo, muita burocracia! Não podemos esperar tudo isso.

— Há uns dez anos, eu fui contratado pela defesa de um caso de estupro lá da Irlanda para
investigar o passado turbulento do acusado. A tática dos advogados foi divulgar na mídia o que
achamos para ganhar apelo popular e o julgamento andar mais rápido. O sigilo entre fonte e
jornalista não obriga os veículos a justificarem de onde conseguiram as informações. — Todos
voltam a atenção para o meu pai, adorando a ideia. — Eu posso investigar as três pessoas envolvidas
no estupro da Aurora e descobrir o que fizeram nesses anos até culminar ao ataque à Camile. Até
mesmo do outro rapaz que não estava ontem.

— Com certeza o Noberto consegue contato na mídia pra divulgar isso, ele conhece um
monte de gente — minha mãe lembra, eufórica. — Obrigada, James, vai ajudar muito se puder fazer
isso.

— Meu compromisso de trabalho no Brasil é apenas na segunda-feira, eu posso ficar o fim de


semana inteiro vendo isso pra vocês. No que eu puder ajudar, contem comigo.

— Se você se sentir bem com isso também pode aparecer, contar como foi o seu caso e dizer
que conhece a vítima. — Viviane coloca a mão no ombro da Aurora com delicadeza. — O que
aconteceu pode não ajudar na questão legal contra eles, por causa de terem sido inocentados, mas no
âmbito da opinião popular, pode fazer a diferença.

O corpo da olhos coloridos trava na cadeira e ela fica por longos segundos sem abrir a boca.
Pelo jeito que sua garganta se move, parece que está agitada, nervosa. Com medo de que esteja
relembrando algo ruim do passado, eu me aproximo dela na cadeira e deixo um beijo na sua testa,
trazendo o seu corpo para repousar no meu peito.

— Só se você quiser, linda. Não precisa fazer nada que te deixe mal.

— Eu quero... quero muito ajudar — explica, com a voz embargada. — É só que... me


escondi por tanto tempo depois da humilhação que passei durante o processo. É... é conflitante dentro
de mim tomar essa decisão de me expor tão abertamente. No fundo, permanece o medo de ser julgada
de novo como puta, interesseira, todas aquelas coisas horríveis que demoraram tanto pra sair de
mim.

— Todo mundo vai entender, Aurora, não se preocupe. Imaginamos como foi difícil pra você.

— Só preciso de um tempinho pra pensar nisso... me acostumar com essa ideia do mundo me
ver de novo em algo que me abalou tanto. Não sei... não sei se estou forte o suficiente pra essa parte.

Abraço-a mais firme e acaricio os fios do seu cabelo solto. Ela talvez não saiba ainda, mas já
foi muito forte até aqui. Seja ficando em silêncio ou falando, uma certeza irrefutável é que não sairei
do seu lado em nenhum momento.
CAPÍTULO 48

Enxugo as mãos suadas na calça jeans e caminho com passos vacilantes pelo corredor em
direção ao meu quarto. Meus pais vêm logo ao meu lado, observando com atenção cada lugar que
passamos desde que saímos do aeroporto.

Assim como pedi ontem, os dois vieram sozinhos e deixaram a Sara com a Telma. É um
assunto complexo demais para tratar com uma criança por perto. Hoje eu preciso da atenção deles
100% em mim.

Muito além do fato de São Paulo ser a maior metrópole do país, e não estarem acostumados
com tantos prédios e agitação, acredito que a curiosidade que impera é o fato de ainda não terem
visto nenhuma faculdade por perto, nem colegas de quarto e nada parecido com um alojamento
estudantil.

Imagino o tanto de interrogações na cabeça deles agora. Apesar de surpresos com a minha
ligação, ainda não fizeram nenhuma pergunta porque estamos acompanhados do Dan e da Viviane.
Dona Maria das Graças e seu Vladimir não gostam de falar de problemas perto de ninguém, coisas
de família se resolvem dentro da família.

Só que já sentiram que tem algo errado no ar. Percebi no abraço afobado que recebi no
aeroporto. A alegria de me ver pela primeira vez em três anos estava misturada com uma angústia
silenciosa do que pode vir.

Eles não são bobos.

— Aqui é o meu quarto. — Paro em frente à porta e abro sem olhá-los, apontando na direção
da cama para que entrem.

Não tenho coragem de constatar a reação de espanto. Ainda não. Vou ter que criar uma boa
dose de determinação nos próximos segundos para começar essa conversa. Meu coração está tão
acelerado que parece bater na boca.

— Obrigada pela carona, Viviane, a partir daqui, eu assumo — agradeço e logo me viro na
direção do Dan, aproximando-me para dar um abraço rápido nele.

— Queria ficar aí com você, mas sei que é um assunto entre os três. — Assim que os corpos
se tocam, consigo notar suas batidas inconstantes. Daniel está tão nervoso quanto eu. — Vou ficar
sentado ali na entrada da minha casa. Qualquer coisa... qualquer mera coisa, é só me chamar.

— Pode ficar calmo, tá? — Acaricio seus fios ruivos e roço nossos narizes. — Meus pais me
amam acima de tudo, eu sei disso. Não vão me fazer nenhum mal.

O meu maior medo não é esse, claro. O que não estou preparada é para causar-lhes mais uma
decepção. Os dois são tão bons, não mereciam tantos transtornos.

— Tá... tá bom. Eu te tudo, boa sorte.

— Eu te tudo. — Mesmo com a tensão, consigo sorrir com seu gesto carinhoso.

Quando os dois se afastam, respiro fundo e relembro toda a trajetória que trilhei até aqui. Eu
tive coragem para aceitar Dan na minha vida, tive coragem para entrar em um ringue, tive coragem
para enfrentar meu passado e deixar de me esconder... Meus pais merecem que eu tenha coragem de
contar a verdade também.

“Alguns curativos devem ser arrancados de vez.”

Lembro-me da frase da psicóloga, em uma das sessões que falamos sobre minha família, e
entro sem pensar muito. O som da porta se fechando ecoa no silêncio do quarto pequeno. Vou até a
cama e me sento ao lado da minha mãe. Seu Vladimir está tão apreensivo, que parou próximo da
janela para tomar um ar.

— Não tem um jeito certo... menos doloroso... pra começar a falar. Então, vou apenas falar.
— Limpo a garganta e esfrego a mão suada, mais uma vez, na calça. Levanto a cabeça e busco o
olhar aflito da mulher que me gerou. — Não existe faculdade, nunca teve bolsa de estudos, nada do
que eu falei desde que cheguei aqui é verdade.

— Co... com... como? — minha mãe pergunta, inundando o espaço de um choro doloroso.

Meu peito acompanha o barulho e começa a se mover sem controle. As lágrimas vêm fácil no
meu rosto.

— Me desculpa, do fundo do meu coração, eu gostaria que soubessem que eu amo vocês
demais. Foi por não querer decepcioná-los e preocupá-los mais do que já tinha feito, é que decidi
mentir — confesso, em pratos, com a voz entrecortada.

— O que você estava fazendo aqui esse tempo todo, Aurora? — O tom áspero me faz recuar
na cama, apertando o lençol para buscar um apoio físico.

— Eu fui catadora de reciclagem a maior parte do tempo, pai. Trabalhava em uma


cooperativa perto da casa da Pilar.
— Que furdunço! A Pilar falava com a gente no começo, como... como pôde mentir assim?
Ela tem filhos... A Telma, meu Deus, nossa vizinha, nossa amiga... todos mentiram pra nós.

— A culpa não é delas, mãe. Foi eu que implorei ajuda pra Telma e a Pilar só aceitou sem
questionar. Vocês... vocês não sabem, mas a Telma também já foi estuprada. E o pior, tinha apenas 12
anos. — Respiro fundo, tentando não pensar nos relatos horríveis que minha amiga me contou. Ela
ficou cinco dias na mão do bandido antes de ser resgatada. Dou graças a Deus por não me lembrar
quase nada da violência dos três. Acho que... acho que não aguentaria isso. — Ela sabia a dor que eu
estava sentindo e a culpa por arrastar vocês comigo. A sua mãe também gastou dinheiro que não tinha
pra fazer justiça.

— Três anos de fingimento. Três anos! Como conseguia ligar todo domingo, Aurora? Olhar na
nossa cara e inventar tanta mentira? — Aquele olhar de decepção que eu tanto temia chega quebrando
meu coração em vários pedaços. Pedaços que eu não sei se vou conseguir colar. — Nós nunca, em
nenhum momento, demos motivo pra você não confiar. Ficamos do seu lado o tempo todo, nós jamais
brigamos, sabíamos que aquilo não era culpa sua. Você foi uma vítima. Gastaríamos o triplo se fosse
preciso, o dinheiro nunca foi o problema. Eu podia limpar bosta de vaca pra pagar, que não seria o
problema. Só queríamos ver você bem de novo. Eu e sua mãe não merecíamos ser enganados dessa
forma.

Eu sabia que ia ser ruim, mas não imaginei que fosse doer tanto o olhar de decepção. Eles
realmente sempre tiveram ao meu lado o tempo inteiro, cada minuto desde que me encontraram no
hospital.

— Eu sei que estão decepcionados, acredite, cada mentira foi destruindo ainda mais a Aurora
que tinha existido um dia. — Coloco a mão no peito e esfrego na altura do coração para ver se a
queimação ali para um pouco. — Eu fiz tudo isso, não porque não confiava em vocês pra estarem ao
meu lado, jamais foi por isso. Eu só me senti muito culpada por ter desviado do meu caminho. Se eu
não tivesse me iludido com Otávio, se tivesse dito não quando me convidaram pra matar aula, se
negasse as drogas que ofereceram... Tudo, tudo que aconteceu foi fruto das minhas escolhas. Só
minhas! — Bato no local que dói, notando mais lágrimas descerem. — E as minhas escolhas
deixaram meu pai, um funcionário dedicado, desempregado; minhas escolhas fizeram vocês deixarem
a casa como garantia de um empréstimo enorme; minhas escolhas fizeram vocês se desdobrarem pra
cuidarem de uma criança autista e de uma marmanja rebelde; minhas escolhas fizeram a mãe chorar
escondido toda noite na cozinha quando achava que ninguém estava olhando. Eu vi, mãe, por
semanas...

Inclino o corpo para frente e apoio minhas mãos na perna, sem conseguir mais segurar a
represa de arrependimento que estou guardando há tanto tempo dentro de mim. Meu corpo inteiro
treme com o choro entalado que tentei tantas vezes esconder, como minha mãe fazia.

— Meu amor... — Dona Maria das Graças pula para mais perto de mim e me puxa para
apoiar a cabeça no seu colo. Tudo está tão fraco, tão pungente que apenas cedo e deixo meu corpo
cair para o lado. Suas mãos automaticamente vão para o meu cabelo. — Você não precisava ter
carregado essa angústia por todos esses anos sozinha, filha. Olha quanta dor, quanto sofrimento! Meu
coração de mãe dizia, dizia que tinha algo errado. Eu devia ter ouvido ele. Ansiava tanto que seu
sorriso lindo voltasse a nascer que me iludi que aqui era o melhor, que você estava recomeçando.

— Por favor, mãe. Eu imploro! — Minha voz sai baixa, rouca pelo choro. — Não se culpe
por achar que deveria ter notado, eu não aguento mais culpa de nada. Estou esgotada desse
sentimento horrível.

— Como você conseguiu aquele dinheiro todo para o empréstimo, se não tem faculdade, não
tem trabalho? Quem são essas pessoas que foram nos buscar no aeroporto? Por que você resolveu
contar a verdade só agora?

— Vladimir, se acalma, vamos dar um tempo...

— Não, mãe, tudo bem. O pai está certo em perguntar, foi pra isso que pedi que viessem
aqui. Eu entendo a raiva dele. — Levanto o corpo e volto a me sentar, cutucando a pele do pulso ao
avistar sua imagem desconcertada perto da janela. O cabelo está bagunçado, os olhos vermelhos pelo
pranto que também derramou. Meu pai sempre foi um homem muito justo e correto. A mentira está
acabando com ele. — Quando eu cheguei, o marido da Pilar me ensinou defesa pessoal e isso me deu
firmeza pra procurar um emprego. Consegui vaga na cooperativa e fui catadora de reciclagem pra
garantir o tratamento da Sara. Morei grande parte do tempo lá com a Pilar mesmo. Há uns meses, eu
tive um problema com dois homens que me abordaram e o Noberto me viu lutando pra me defender.
Ele é tio do Dan e tem uma academia de artes marciais aqui do lado. Fui convidada pra treinar MMA
e de cara não me interessei, mas daí a mãe ficou ruim da coluna, você foi dispensado de novo e eu
resolvi que precisava de mais dinheiro logo. A primeira quantia que mandei foi porque a Pilar não
gastou o valor mensal que eu dava pra compensar as despesas básicas comigo. O segundo foi... foi
porque eu fiquei em primeiro lugar em um torneio. Consegui... consegui lutar no ringue.

— Capaz, espia só! Você... você lutadora de MMA? — Não sei dizer se o seu rosto denota
mais espanto, medo ou alegria. Talvez seja um misto dos três.

— No começo, foi por dinheiro apenas, mãe, mas eu... eu agora estou amando a adrenalina, a
luta em si. Nem a minha perna foi capaz de me atrapalhar. Tenho até patrocinador por causa do
desempenho na competição. — Volto a atenção para o meu pai, que continua sério ouvindo tudo que
eu tenho a dizer. — Eu vim morar aqui pra treinar antes da competição e foi assim que conheci toda
família Lima, inclusive, Daniel. Foi por causa dele que tudo mudou... que eu me soltei de novo. Nós
nos ajudamos mutuamente. É verdade a questão do autismo, não menti sobre isso. O motivo de ter
criado coragem para essa conversa só agora é... é porque o Otávio voltou a aparecer na minha vida.

— O Baldez? O que aquele jacu fez? Ele te machucou? — Pela primeira vez, desde que
entramos no quarto, meu pai se aproxima de mim e se senta ao meu lado.

Eu sei que está decepcionado, mas acima de tudo, ele me ama e se preocupa muito comigo.

— Ele não me machucou, não foi eu. É a Camile, prima do Dan e filha do Noberto.
Conto em detalhes tudo que aconteceu desde sexta-feira, quando os vi aqui perto, para o
choque dos dois. Eles mal acreditam na coincidência da história se repetir a quilômetros de
distância, sem fazerem ideia de que eu estava envolvida com a família Lima.

Dormi pensando sobre isso e cheguei à conclusão de que não foi uma coincidência. Para mim,
tudo é um sinal de Deus, uma segunda chance para fazer valer a justiça.

— Camile está bem? Ela acordou? — minha mãe questiona, limpando o rosto com as duas
mãos. Sua maquiagem simples toda borrada.

— Não acordou, permanece em coma induzido. Seu estado é grave. Os pais dela já fizeram o
Boletim de Ocorrência. Se eu não tivesse saído pra comer pizza, talvez nunca iriam ligar os pontos.
Otávio está mais esperto, eu temo que não tenha parado em mim.

— Filhos da puta, desgraçados! — Seu Vladimir dá um soco na cama, afundando a parte do


colchão próxima a ele.

— O pai do Dan tem noção de computadores e está nos ajudando a investigar o histórico
deles, o caso em si. Ele me contou hoje de manhã que o Elton morreu no final do ano passado. É
verdade isso mesmo?

— É verdade, morreu em um acidente de carro trágico. O carro perdeu o controle e bateu.


Dizem que tava bêbado. Não te contamos porque sabíamos que não queria notícias de nenhum deles.

Será que se estivesse vivo, viria para São Paulo? Será que ajudou Otávio e Maurício em
algum outro crime? Desgraçou a vida de outra mulher? São perguntas que talvez eu nunca tenha
respostas.

Mas para o caso da Camile, nós podemos conseguir. Ainda há esperança.

— Eu pensei que nunca mais precisaria lidar com isso de novo, só que o destino nos ligou
novamente de uma forma que não consigo enxergar como coincidência. — Levanto-me da cama e
puxo o ar, enchendo meu pulmão de fôlego. O fôlego que vou precisar para enfrentar o que vier. —
Estávamos pensando em uma forma de chamar atenção para o caso da Camile e decidi que vou expor
meu caso para a mídia, vou falar tudo.

— Você tem certeza disso, Aurora? Se estiver bem pra dar esse passo, saiba que eu e sua
mãe vamos te apoiar. — Seu Vladimir se levanta também e para ao meu lado.

— A minha cura está sendo um processo. Primeiro o Dan veio amolecendo meu coração,
agora um peso saiu das minhas costas por dizer a verdade a vocês... — Viro para o meu pai e olho no
fundo dos seus olhos castanhos. — Mesmo que estejam magoados, e que nunca consigam me perdoar
pelo que fiz, estou aliviada por parar de mentir. O próximo passo deve ser confrontar Otávio de
novo. Preciso disso.
— Eu fiquei magoado com você, sim, muito magoado, Aurora. Mas não pense nem por um
segundo que irei virar as costas e não vou te perdoar.

— Você... você me perdoa, pai? — pergunto, permitindo que a emoção me tome. — Você me
perdoa, mãe?

Dona Maria das Graças fica ao lado do marido e os dois abrem os braços para me receberem
com um sorriso. Preciso piscar três vezes seguidas para ter certeza de que não estou vendo uma
miragem.

Corro para o abraço e permito que meu coração exploda dentro do peito. Desta vez, pelo
melhor motivo de todos. Eles... eles vão me perdoar.

— Apesar de toda gastura que tive, ouvindo isso tudo, estou orgulhoso por sua força, por ter
aguentado tanta coisa aqui, longe de casa. Você se reinventou. — Meu pai acaricia meu cabelo e
deixa um beijo na lateral da minha cabeça.

— Tudo que nós mais queremos é que seja feliz — minha mãe endossa, passando a mão nas
minhas costas. — Você merece ser demais da conta!

Sim! Eu mereço ser feliz.

E terei a felicidade completa quando soltar a minha voz e mostrar ao mundo quem sou de
verdade. Muito maior que o meu medo da exposição, com toda certeza, é a vontade de ver Otávio e
Maurício pagarem por tudo que fizeram comigo, com a Camile e com qualquer outra garota que possa
ter cruzado o caminho deles nesses anos.
CAPÍTULO 49

— Otávio, você não vai acreditar no que aconteceu! — Escuto Maurício entrar na academia
particular de casa, esbaforido, mas não paro de fazer minha remada alta com barra.

Ele sempre é apavorado e quase nunca é algo importante. Elevo a barra, puxando os
cotovelos para cima, e desço de volta na posição inicial. Dez, onze, doze...

— Merda, onde você tá, Otávio? — Meu amigo aumenta o tom de voz e o avisto me
procurando na parte da frente, onde tem as esteiras e bicicletas. — É sério, caralho!

— Puta que pariu, espero que seja algo muito sério pra você me fazer parar o exercício no
meio da sequência. — Deixo o peso no chão e puxo uma toalha do banco ao lado para secar o suor
do meu rosto. — Se for de novo sobre a menina de São Paulo, já disse milhares de vezes que seria
óbvio falarem com a gente, porque fomos as últimas pessoas que estiveram com ela. A amiga ia nos
citar, nada pra se preocupar. Nada!

Combinamos com o advogado que íamos voluntariamente esclarecer qualquer dúvida na


terça-feira. Ele falou que não precisava ter pressa, esses depoimentos entre cidades têm tempo para
responder.

Maurício vem praticamente correndo na minha direção, seu semblante pálido e o cabelo todo
desgrenhado.

— Você não vai acreditar... não vai acreditar quem ela conhece.

— Ela quem? Não tenho paciência pra joguinhos, fale de uma vez. Estou ocupado aqui, se
não percebeu — aviso, bufando.

— Ela conhece a Aurora, que estudou com a gente, aquela...

— Eu sei quem é Aurora, porra! — Dou atenção para a conversa pela primeira vez e paro no
meio da sala. — Mas como assim, as duas se conhecem? Que caralho de coincidência é essa que, no
meio de milhares de mulheres naquela cidade, pegamos uma com ligação na peitudinha?

— Olha essa reportagem, a Lorena que viu e me mandou. Disse que tentou te ligar pra avisar,
mas não a atendeu. — Arranco o celular da mão dele e leio apressado a matéria jornalística que já
tem centenas de compartilhamentos. Eu notei sua ligação, mas realmente ignorei para vir treinar. Já
tínhamos nos visto no final de semana, pensei que era algo bobo. Nossa amiga agora é modelo e
passa grande parte do tempo na capital paulista. — O pai da menina do shopping tem uma academia
de artes marciais, ele é conhecido, merda. Aquela cara de pobre coitada nos enganou. A Aurora
treina na academia desse cara e nos viu de carro no dia da festa. Ela falou na matéria sobre como nos
reconheceu e tudo que houve no seu julgamento, o medo que tem de ver a história se repetir. A
Camile está internada em estado grave, com risco de morte.

Jogo o celular nas mãos do Maurício e passo a mão no cabelo. Filha da puta, no meu
caminho de novo!

Não acredito que teve coragem de aparecer na mídia para falar algo, depois de toda vergonha
e humilhação que nós a fizemos passar.

— Isso aqui não vai dar em nada, Maurício, não apavora! O caso da peitudinha foi um
fiasco, talvez possa até nos ajudar. — Tenho uma ideia e pego meu telefone no bolso do short,
virando as costas para o loiro nervoso à minha frente.

No segundo toque, o advogado da família atende. Ele é o melhor de toda região, vai
conseguir nos safar de novo. Tenho certeza.

— Agnaldo, preciso que você monte urgente um dossiê pra mim. Amanhã, no horário
marcado para o depoimento da moça de São Paulo, quero levar a repercussão de uma matéria que
acabou de sair na mídia. Vamos mostrar os reais interesses por trás dessa denúncia.

Explico o que aconteceu para o advogado, e a minha ideia para usar a tentativa de me afetar
da Aurora contra ela. Nada melhor do que a história de uma mulher vingativa para gerar dúvida
razoável e burburinho nos bastidores.

— Isso não vai colar, Otávio — Maurício pontua, esfregando a mão no rosto, assim que
desligo a chamada e guardo o aparelho. — Como Aurora iria armar pra gente conhecer Camile, se a
menina aparece toda arrebentada depois e está em risco de morte no hospital?

— Não interessa como, cara. Só precisamos plantar a dúvida, movimentar esse jogo. A
menina lá à beira da morte e ela gasta seu tempo procurando jornal para aparecer? Vai ter gente do
nosso lado pra defender na internet. Tem ideia melhor ou quer continuar sendo xingado como
suspeito? — Aponto o dedo na sua cara, cansado do seu pessimismo para tudo.

— Eu tô com medo, irmão. Porra, aqui em Minas é uma coisa, aqui a gente domina a
situação. Lá em São Paulo são outros quinhentos, outro estado. Te avisei pra gente não tentar nada
lá... E se essa matéria prolifera, se outros veículos começarem a querer cobrir também? Veículos das
cidades menores de Minas? Se... se chegar nas outras? Estamos fodidos, se as outras... se elas se
juntarem, terão um caso mais sólido...
— Ninguém tem provas contra nós, Maurício, para de ser bundão. É verdade que essa
exposição da mídia é ruim, meu pai vai me matar se começarem a surgir outras meninas denunciando,
mas não vão conseguir provar. — Eu garanti que fôssemos mais cautelosos desde a primeira vez,
com Aurora. Nunca mais deixamos prova genética na vítima.

Foi uma adrenalina surreal ter uma mulher inferior rendida ao nosso poder. A primeira vez
que tive com ela não teve graça nenhuma, mas quando compartilhei com Maurício e Elton, foi a
melhor experiência da minha vida.

Viciante.

O poder, o perigo e a submissão me deixaram fascinado. Era para Elton também estar
aproveitando, se não fosse um bocudo medroso do caralho. Ele quis dar para trás, com crise de
consciência... Não tem como voltar atrás de algo assim. Ou vai, ou morre.

Se não bastasse todo meu cuidado, tenho uma família respeitada para me dar cobertura. Meu
pai acredita em tudo que eu falo, sua cisma de todo mundo se aproximar dele por interesse caiu como
uma luva para os meus planos.

“Coma quantas putas você quiser, mas não deixe ninguém se aproveitar da sua
influência.”

Otávio Baldez acha que eu tenho um fetiche saudável de compartilhar garotas com meus
amigos. Jamais passa pela sua cabeça que as acusações da Aurora eram verdadeiras, anos atrás.

— Desta vez foi mais sério, ela se machucou de forma grave. E se chegarem no motel que a
gente foi depois da boate? Se encontrarem sangue dela lá? Se alguém nos viu naquele terreno baldio?
— Maurício continua apavorado.

— Se você ficar nervoso desse jeito amanhã, no depoimento para a polícia, nós nem vamos
sair de lá. Trate de virar homem, caralho! Eu já disse que não vai acontecer nada.

Sondo com cuidado garotas de classes mais baixas, meninas iludidas que podem facilmente
cair na nossa lábia e serem desacreditas depois, caso ousem dizer algo. Até agora, só Aurora, nossa
primeira, tinha se rebelado. As outras ficaram bêbadas suficientes para não se lembrarem de nada do
que aconteceu. Se surge uma ressaca moral no dia seguinte, não terão certeza de nada. Inicialmente,
Maurício e eu somos dois lordes, a personificação da educação. Entre pensar que foi puta e culpar
dois inocentes, a primeira opção é a que vence.

Aproveito as viagens de trabalho na empresa do meu pai para diversificar os locais e ficar
fora do foco.

Essa filha da puta dessa Camile foi uma exceção ao nosso padrão discreto, o que tem de
gostosa tem de ardilosa. Ela me enganou direitinho, a moça reservada que se mostrou no shopping
nada tinha a ver com a exibida do show. Eu, na verdade, preferia a amiga dela, mas quando foi
embora por um problema pessoal, tivemos que aproveitar o que tinha.

Se seguisse meus instintos, essa merda não teria acontecido.

A menina não ficou bêbada o bastante e quando saímos da boate para o motel de beira de
estrada, ela revidou. Tonta, querendo se afastar de nós, acabou tropeçando no salto e batendo a
cabeça na quina da cama.

Tive que tomar medidas mais urgentes e garantir que ficasse de boca fechada. Inventei a
mensagem para a sua amiga, tirei uma foto do nosso carro alugado como se fosse o táxi e a abandonei
eu um terreno baldio. Falei de táxi de propósito, sabendo que o Uber teria registro no seu celular.

Táxi ela poderia ter pegado perto da boate, qualquer um no meio da madrugada, mal-
intencionado.

Talvez eu tenha exagerado um pouco ao bater a cabeça dela com mais força em uma pedra
que tinha lá no terreno baldio, mas para ser sincero, era melhor que a menina morresse logo.

Defunto não fala e São Paulo é uma cidade perigosa. Acontecem monstruosidades o tempo
todo.

— O motel, como sempre, foi sem câmeras, sem exigência de documentos nem nada. O
sangue que caiu lá foi pouco, motel barato tá acostumado com sangue, acredite. Saímos da boate pela
lateral privativa, que não tem câmeras também pra preservar os clientes, e no carro alugado com
insulfilme. Se por um milagre acharem imagens nossas dentro daquela multidão, não vão saber
exatamente que horas fomos embora e nem com quem — continuo explicando e pego firme nos
ombros do Maurício para que preste atenção. — Não sofra por antecedência, cara. Qualquer coisa
que refutarem, nós vamos contra-atacar, como foi no processo da Aurora. Se a Camile morrer, ótimo,
é nossa palavra contra a de uma garota vingativa. Se ela viver, tudo é uma questão de narrativa, qual
história escolhemos contar. Somos moços trabalhadores, de bem. Passamos no hotel que estávamos
hospedados a trabalho assim que saímos da festa, pegamos nossas malas, fomos esperar o voo no
aeroporto. Uma passagem comprada com antecedência, planejada. Hotel e aeroporto, estes sim,
todos com câmeras para que possam nos ver lindos e plenos. Só nós dois, mais ninguém. Se
perguntarem por que fomos cedo, é porque estávamos em uma festa e não queríamos perder o horário
de volta pra casa, pra nossa família. Em quem vão acreditar? Confia, eu não durmo em serviço.
Anos me especializando nessa prática.

— Às vezes eu tenho medo de você, Otávio.

— É bom que tenha mesmo, ou vai parar debaixo da terra junto com o Elton. — Dou um
tapinha no seu rosto e sorrio, voltando para a minha barra de exercícios. — Amanhã, depois do
depoimento na polícia, nós vamos fazer uma viagenzinha pra garantir que essa história nem precise
chegar a esse nível.

— Viagem? Pra onde, cara?


— Nós vamos lá falar com a Aurora, relembrá-la de algumas coisas importantes que acho
que esqueceu.

— Você tá louco, Otávio? — Ele para na frente do peso e não me permite abaixar para pegá-
lo. — Quer coisa mais suspeita do que a gente ir atrás de uma garota que está nos denunciando como
estupradores? Acabou de falar em imagem de aeroporto, vão ver que a gente voltou pra São Paulo
mesmo depondo aqui, vão...

— Tá vendo como você é apavorado? Eu disse que vamos de avião? Nós vamos é pegar um
carro dos funcionários da empresa, bem discreto, e fazer um passeio de carro.

— São horas de viagem!

— Horas que podem evitar dor de cabeça pra nós. Meu pai vai ficar do nosso lado, como
sempre, mas se a mídia aumentar a cobertura e surgirem outras meninas dizendo que nos conhecem
com histórias estranhas, ele vai começar a desconfiar e, aí sim, teremos um problema grande para
resolver. Enquanto o Baldez estiver do nosso lado, dando dinheiro e nos apoiando, não há o que
temer. Temos que lembrar a Aurora que, em boca fechada, não entra mosca. — Não estou com medo,
mas é bom ser precavido. Jornalistas são abutres e gostam de sensacionalismo. Para expandir isso
para veículos de alcance nacional, são dois palitos. — Vamos ser bons moços amanhã e prestar todos
os esclarecimentos para o delegado daqui, amigo próximo do meu pai. Assim que acabar, a gente
parte para São Paulo e fazemos bate-volta. Eu vou dizer para o velho que depois do depoimento,
ficamos chateados por ter nosso nome envolvido com esse assunto sério de novo, e fomos dar uma
espairecida na cabana das montanhas pra caçar. A gente ama ir lá, nem vai ser suspeito.

— Otávio, não acho uma boa id...

— Você não tem que achar nada, Maurício. Só faça o que eu digo e pronto.

Medroso, ele acena a cabeça e sai da academia sem dizer mais nada. Finalmente, consigo
pegar meu peso e continuar o exercício. Elevo a barra, puxando os cotovelos para cima, e desço de
volta na posição inicial.

Treze, quatorze, quinze...


CAPÍTULO 50

Encho o copo de água e esfrego os olhos, cansado. Minha rotina virou uma bagunça completa.
Acho que só não me desesperei com isso porque a preocupação está maior. Hoje já é terça-feira e
Camile não teve nenhuma melhora. Pelo contrário, seu quadro só se agrava ainda mais. Estou
conseguindo acompanhar tudo de perto porque o professor João me deu a semana de folga na
universidade — o tempo que eu estaria na Rússia.

Não me arrependi em nenhum minuto da escolha que fiz. Estar ao lado da Aurora e da minha
família era o certo a se fazer, o que eu realmente queria. Minha mãe também conseguiu adiantar dez
dias das suas férias e ficou para auxiliar o tio Noberto e a tia Ana Júlia que estão devastados.

Viemos embora do hospital há cerca de duas horas e os três ficaram para acompanhar as
novidades da noite. Praticamente só saem para tomar banho e já voltam, cochilando nas cadeiras
duras da recepção. Vó Marideide, Pablo e a Mel jantaram com a gente e foram tentar descansar um
pouco.

Meu primo está se mostrando uma pessoa muito responsável, sempre por perto para cuidar da
matriarca e da caçula. Mesmo com o aumento de alunos e sucesso da academia, meu tio resolveu
fechar a Naja até ter uma resposta positiva do quadro da Camile. Ninguém em casa tem condições de
cuidar do espaço no momento.

— A morte daquele Elton ainda está me incomodando, fui olhar mais informações do caso e
descobri que tinha ido a trabalho onde faleceu, junto com o Otávio e o Maurício. Os três faziam parte
do administrativo da empresa dos Baldez. Só ele estava no carro no momento do acidente, um carro
alugado, aliás, por volta das nove da noite. — Volto para a sala com o copo na mão e me sento ao
lado do meu pai no sofá. Amanhã ele vai ter que voltar para Londres, mas tem nos ajudado com o que
pode, depois do seu expediente. — Em depoimento para a polícia, Otávio e Maurício disseram que o
amigo andava estranho nos últimos tempos. Fumava demais, tinha começado a usar drogas e misturar
com bebida. No dia do falecimento, eles tinham combinado de ir a uma festa para relaxar, mas
desistiram por causa do estado do Elton antes mesmo de saírem. O cara não gostou da mudança de
planos, acabaram brigando e ele fugiu pouco tempo depois do hotel, roubando a chave do carro que
haviam alugado para ficar na cidade.

— Esquisita essa história, né?

— Também achei. A amiga da Camile disse que os conheceu no shopping porque iam lançar
uma unidade aqui. No site do shopping avisa que terá a inauguração em duas semanas. Uma semana
depois da morte do Elton, aconteceu o lançamento naquele local. A função deles devia ser checar as
lojas novas, acompanhar as obras para garantir que tudo saísse de acordo. — James vira o
computador para mim e mostra uma lista de datas e cidades. — Achei aqui a previsão de
inaugurações da empresa dos Baldez nos últimos anos. Estive olhando as três últimas e há compras
no cartão de crédito do Otávio que batem com os locais.

— Não estou entendendo. Você acha que vamos conseguir achar algo no cartão que comprove
alguma coisa? — pergunto, confuso.

— Ele não seria idiota a esse ponto! Algo realmente sério, não vai aparecer nas compras do
cartão.

— Mas pra que serve essa informação, então?

— Para comprovar que eles estiveram nas cidades nessas épocas de lançamento. — Aurora
aparece na sala com o cabelo molhado e um vestido de malha. Ainda não me acostumei a vê-la com
essas roupas. Tão linda. Estou com saudade de ficar a sós com a minha olhos coloridos, sem nenhum
problema à volta. — Estava ouvindo a conversa enquanto me trocava no quarto do Dan, pode ser que
os três aproveitassem essas viagens fora de Pirapora para irem a festas e atacarem de novo. Levaram
Camile em uma festa, no depoimento da morte do Elton comenta sobre uma possível festa.

— Foi exatamente o que pensei! — meu pai endossa e eu fico observando os dois, atento. —
A gente só precisa ver um jeito de fazer essa ligação, achar alguma pista que comprove essa ideia.
Pode não dar em nada, mas pode ser que realmente seja isso.

— Eu acho que vale a pena tentar qualquer coisa. Quando a gente for a fundo e começar de
fato o processo, eles jogam baixo. Qualquer coisa que tivermos, será valiosa!

— Você conseguiria acessar os dados dos hospitais dessas cidades e verificar se, na época
das inaugurações, houve alguma mulher que deu entrada com sinais de estupro? — sugiro, enquanto
puxo Aurora para se sentar no meu colo. — Se alguém tivesse denunciado, a polícia saberia do
processo além da Aurora. Porém pode ser que a pessoa foi machucada e tem o registro hospitalar,
pelo menos.

— Boa ideia, amor! — Ela sorri e faz um carinho no meu cabelo.

— Acho que consigo, sim, mas não vai ser uma tarefa simples. Vou precisar olhar todos os
hospitais em um período extenso de dias. Não temos como saber quando exatamente chegaram na
cidade, nem quando agiram. Vai demorar, com certeza.

— Estou vendo aqui que a maioria das cidades é no estado de Minas. — Aurora se inclina e
olha para o computador. — Eu posso listar com você as menores primeiro, que tem poucas unidades
de saúde.
— Ajuda! Acabei de ter uma ideia também. — Coloco o copo de água na mesinha de centro e
puxo Aurora para mais perto enquanto meu pai fala. — Nós podemos pegar a matéria jornalística que
saiu aqui e compartilhar em redes sociais dessas cidades. Podemos até agregar um número de celular
junto, pedindo para quem souber algo sobre eles, entrar em contato.

A matéria teve uma ótima repercussão com a ajuda na divulgação de nomes importantes do
MMA. Tanto pela história do meu tio, como por Aurora estar envolvida e ser foco dos lutadores
desde a competição.

— Nossa, perfeito! Jogamos nessas duas direções e torcemos para ter algum norte.

— Aquela menina que era sua amiga, você acha que agora, tendo outro caso suspeito, ela não
ajudaria? Conhece os três há mais tempo, talvez tenha informações importantes.

— Eu duvido muito, James. — Aurora suspira, parecendo triste por se lembrar da garota.
Abraço sua cintura e apoio meu rosto no seu braço. — Lorena não pensou duas vezes em me entregar
nas mãos do Otávio. A defesa a usou como testemunha que eu bebi muito aquela noite, que usava
drogas com eles sempre, matava aula... Os pais da Lorena são os segundos mais ricos da cidade, são
amigos dos pais do Otávio.

— Elton e Maurício também são de família rica? — questiono, curioso. — Pra trabalhar com
o Otávio, penso que nem tanto.

— Eram de classe média-alta. O pai do Maurício já trabalhava para o senhor Baldez na


época que eu tava na escola, e a família do Elton estava na merda, quase falindo.

— A morte desse Elton é uma coisa que fica toda hora me intrigando. Será que ele tentou sair
e acabou morrendo? Você disse agora que a família dele estava falindo, talvez tenha ficado por um
tempo por eles, alguma chantagem.

— Será, James? — Aurora ajeita a postura, agitada no meu colo. — Minha mãe trabalhou por
muitos anos como faxineira na casa de uma tia do Elton. As duas se davam muito bem, a senhora
ficou revoltada com o sobrinho pela atitude. Posso pedir pra minha mãe sondar com ela como
estavam as finanças, se estava percebendo o menino esquisito.

A conversa da olhos coloridos com os pais foi maravilhoso para ela. Apesar de triste pela
Camile, é perceptível como está mais leve por parar de mentir. Os dois me trataram muito bem,
conseguimos conversar um pouco no domingo antes de voltarem para Pirapora.

Infelizmente, eles não puderam ficar muito por causa da Sara.

— Vamos fazer isso, então! Você fala com sua mãe, nós passamos o resto da noite
compartilhando o link da entrevista nas cidades que houve inauguração pra ver se chama a atenção
de alguém e amanhã, quando eu chegar em Londres, começo a vasculhar a questão dos hospitais. —
Seu semblante muda, parece triste. Acho que gostou de ficar aqui, como gostei da sua presença. —
Queria poder ficar, só que infelizmente não poderei, mesmo.

— Nós entendemos, James, fica tranquilo.

— É verdade, pai, em nome da família, eu agradeço por tudo que fez para ajudar achar a
Camile e provar a culpa desses malditos.

— Não foi nada, meu filho. — Ele estica a mão e aceno com a cabeça discretamente
permitindo-o me tocar nos ombros. — Apesar das circunstâncias que te conheci, estou muito feliz por
poder contribuir de alguma forma. Espero que quando eu voltar, a sua prima esteja bem e a gente
possa comemorar a prisão do Otávio e do Maurício!

— Amém! — Aurora junta as mãos e as estica para o alto.

“Quando eu voltar”... Acho que vai ser fácil me adaptar a essa novidade. É muito bom ter
um pai na minha vida.
CAPÍTULO 51

Termino de escovar os dentes e faço uma trança no cabelo para ir ao hospital. Confesso que
estou com medo de ter pesadelos com Otávio e Maurício sozinha no meu quarto, por isso, tenho
ficado aqui com Dan desde sábado. É reconfortante estar ao seu lado, nem que seja apenas para
tentar dormir.

— A Mel veio avisar que eles já estão prontos pra sair. — Dan entra no banheiro e deixa um
beijo na minha cabeça.

— Já terminei, só vou pegar as coisas e podemos ir.

Acordamos cedo, tomamos banho e fizemos um café da manhã reforçado. Mesmo que a
Camile não possa receber visitas, todo dia a família inteira fica reunida para dar forças ao Noberto e
a Ana Júlia. Até alguns alunos mais antigos da academia têm ido lá prestar apoio.

O sensei é uma pessoa muito querida no meio das artes marciais.

Prendo a trança, viro-me e dou um selinho no meu namorado antes de seguir para o quarto a
fim de pegar o que preciso. A tela piscando do celular que James deixou comigo chama a minha
atenção e eu vejo que acabaram de chegar mensagens de um número desconhecido.

— Ai, meu Deus, Dan! — grito, eufórica, e ele rapidamente aparece do meu lado. — Acho
que funcionou, alguém respondeu nossos pedidos de ontem.

Sempre que vem ao Brasil, a empresa deixa um telefone com James para poder se comunicar
no país. Nesta visita, deram um modelo novo e não pegaram de volta o antigo. Para evitar que meu
número fosse exposto, ele emprestou o aparelho para essa função de tentar chamar a atenção de
alguém.

— Sobre conhecer Otávio e Maurício? — Balanço a cabeça em concordância e tento


desbloquear o aparelho. Estou tão ansiosa que o dedo desliza toda hora. — Nossa, que bom, amor.
Tomara que seja algo sério. Confesso que não estava com muitas expectativas.

Eu também não. Muito menos, de achar alguma mulher abusada. Se não teve coragem de
denunciar na época, imaginei ser difícil que fosse querer dizer algo agora. Consigo desbloquear a
tela e me sento na cama junto com o Daniel para ler as mensagens.
Esse número é real?
Eu vi uma reportagem no Facebook sobre um caso de estupro em São Paulo.
Conheço os dois envolvidos.

Com os dedos trêmulos, digito uma resposta.

É real! Estamos colhendo informações sobre Otávio e Maurício para o caso.


Você pode conversar? Qual seu nome?

Clico em enviar e balanço a perna, aflita, esperando um retorno. A pessoa está on-line! Os
três pontinhos que demonstram que está digitando aparecem alguns segundos depois, porém, a
resposta não vem de imediato.

Três pontinhos... para. Três pontinhos... para. Três pontinhos... para.

— Está demorando, não? — meu namorado pergunta, vidrado como eu na tela.

— Acho que está digitando e apagando. Pode estar com medo de ser alguma armadilha.

— Tira uma foto sua de agora, pra mostrar que é a menina da reportagem que está falando.

— Boa, amor! Acho que vai ajudar.

Tiro uma selfie sozinha, para não a assustar com a presença de um homem, e envio logo em
seguida.

Pode confiar, sou eu aqui do outro lado, a garota da matéria.

Os três pontinhos voltam a aparecer, no entanto, desta vez o texto é enviado pelo interlocutor.

Eu os conheci há um ano, tenho pesadelos com os dois até hoje.

Sei muito bem como é. Inspiro fundo e tento não ficar nervosa com o que ela vai dizer. Até
sexta-feira, eu achava que era a única vítima deles. Poderia ter sido, se a justiça os tivesse prendido,
há três anos. É desesperador imaginar que mais meninas passaram pelo que eu passei e que poderia
ter sido evitado.

Também tenho, e no meu caso era uma menina de 17 anos quando aconteceu. Quantos anos
você tinha?

Tinha feito 18 há duas semanas.

— Amor, eu não quero correr o risco de o sinal cair no meio do trajeto. Quer ir com os seus
primos e a sua vó? Depois pego um Uber e encontro vocês lá.
— Não! — responde, de prontidão. — Sei que o assunto é complicado pra você, quero estar
aqui se precisar. Vou lá avisá-los que tivemos resposta de uma ação que fizemos com o James e,
assim que possível, também iremos.

— Tá, obrigada. Não sei se vai demorar pra ela se abrir, é melhor não arriscar.

Daniel acena e sai apressado para dar a notícia. Tiro o sapato e me sento com as pernas
dobradas na cama para continuar a conversa. Preciso de exatas 2 horas e 17 minutos para descobrir
que a pessoa do outro lado é Taísse Meireles, uma recepcionista de pousada em Montes Claros, a
cerca de 170 km de Pirapora. Outra vítima de uma festa envolvendo muito álcool e lembranças
picadas. Outra vítima de classe inferior aos estupradores.

Tive que contar toda a minha história em detalhes, durante uma chamada de vídeo, para que
ela finalmente confiasse em mim e começasse a me contar mais detalhes do que houve no seu caso.
Entendo sua preocupação, o telefone poderia ser de qualquer um, inclusive, dos próprios Otávio e
Maurício. Taísse estava com medo de cair, mais uma vez, em uma armadilha.

No início da chamada, a sua tela estava virada para a parede, no entanto, agora também
permitiu que eu veja seus lindos cabelos loiros jogados no ombro e os olhos azuis assustados.

— Na matéria que vocês compartilharam aparecem duas pessoas, mas no meu tinham três —
Taísse conta, secando uma lágrima do seu rosto. Nós duas já choramos juntas nesse tempo. — Eu
lembro bastante coisa do começo da noite, do meio para o fim que são apenas flashes. Por isso, eu
não denunciei na época. Eles tinham sido muito simpáticos, cheguei a duvidar da minha mente, se
estava inventando tudo aquilo pra justificar que fui irresponsável e fiquei bêbada demais. Era pra
terem me levado pra casa, dado uma carona, e acabei em um motel de beira de estrada.

— Você se lembra como era o terceiro? O nome dele? — pergunto, afoita para saber alguma
pista sobre Elton.

— Esse terceiro foi o mais distante, ele não ficou muito tempo comigo na festa antes da gente
sair. Ele parecia bravo, tava fumando bastante. Tinha o cabelo um pouco comprido, moreno.

— Por acaso, o nome Elton te lembra alguma coisa?

— Isso, esse mesmo! — Ela balança a cabeça repetidas vezes para confirmar. — Não tenho
certeza se ele chegou a participar do meu estupro, vagamente tenho a memória de uma discussão
entre Otávio e o garoto fumante. Algo como “cansado de fazer isso”.

Olho para Dan, que está sentado do meu lado, e arregalo os olhos diante da possibilidade da
nossa teoria estar certa. Otávio é filho da puta o suficiente para armar a morte do amigo e sair ileso.
Pode ser que não tenha feito algo diretamente, mas encher o garoto de álcool e dar a chave do carro
para ele sair é uma forma de assassinar alguém.
Com certeza, não acredito na sua versão oficial dada para a polícia.

— Taísse, eu sei que você tem medo, mas se for preciso, você estaria disposta a nos ajudar
no caso da Camile, para corroborar a tese da acusação, de que os dois já fizeram isso antes?

— Eu teria que aparecer? Dizer meu nome, minha identidade? — questiona, apavorada.

— Sim, mas estaríamos ao seu lado o tempo todo. Acredito que, como eu, você quer que eles
paguem pra seguir com a sua vida.

— Passei meses achando que tava doida, que a culpa foi minha, e ver aquela matéria foi
como conseguir acender uma chama no gelo. — Seus olhos voltam a se encherem de lágrimas. —
Mas daí, aparecer, não sei... Eu... tenho medo de me expor e acontecer como você; ser xingada,
ridicularizada, humilhada. E depois, ainda correr o risco da minha família sofrer represálias. Sou
pobre, não temos dinheiro pra isso.

— Só pensa com calma, Taísse, por favor. — Aproximo o telefone do rosto, querendo muito
poder abraçá-la para afastar o medo que eu entendo muito bem. — Se a gente não barrar os dois,
mais pessoas como nós vão continuar sendo machucadas. Preciso ir para o hospital saber notícias da
Camile, mas amanhã volto a falar com você. Tá?

— Tá... tá bom. — Reconheço nela a vontade de acabar com o ciclo misturado com o pavor
de reviver tudo.

Despeço-me e mal termino de encerrar a ligação, aparece na tela uma chamada da Viviane.
Fico em pé, sentindo um frio na espinha, antes mesmo de atender. Ai, meu Deus! Que não sejam más
notícias, por favor. Não agora que temos uma chance de fazer justiça.

— Alô! — Coloco no viva-voz para que o Dan também possa ouvir.

— Aurora... — A voz abafada e a fungada de choro que vem com o meu nome fazem meu
coração acelerar.

Não... não... não! Uma pausa dolorosa se faz na linha, nenhum de nós querendo ouvir a
sentença.

— Infelizmente... — Viviane volta a falar, aumentando o pranto. — A Camile... não resistiu.

Daniel cobre o rosto com as mãos e começa a andar em círculos no quarto. Eu fico parada,
sem conseguir me mover do lugar. Uma tristeza profunda pela morte de uma jovem se mistura com a
raiva latente de quem causou tudo isso.

Sinto meu peito se expandir e se fechar, minha respiração ficar acelerada. Agora eles foram
longe demais. Não só marcaram uma vida para sempre, eles destruíram uma vida para sempre.
Camile nunca mais terá a oportunidade de superar e seguir em frente.
CAPÍTULO 52

Camile nunca vai poder me entender. Não deu tempo de fazer a terapia direcionada para
aprender a lidar com seu jeito intempestivo. Não deu tempo de ela assimilar que sou autista. Não deu
tempo de tentarmos ser amigos, como sou da Mel.

Nunca mais vai ser possível. Nunca é uma palavra tão forte, é difícil fazer o cérebro entender
que minha prima não vai mais acordar do coma. Tão nova, com tantos sonhos pela frente.

Não consigo nem me imaginar morrendo aos 24 anos e deixando Aurora para trás, não
terminando meu doutorado, não fazendo uma descoberta importante sobre os buracos negros, não
chegando à Nasa. São tantas coisas pendentes, assim como ela também tinha as suas.

A olhos coloridos vem até mim e me puxa para um abraço. O contato com a sua pele me traz
conforto e libera a adrenalina fervilhando no meu corpo. Encosto a cabeça no seu ombro e deixo as
lágrimas caírem por tudo que não poderá mais ser feito.

— Sinto muito, Dan. — Consigo sentir seu coração bater acelerado. — Nós vamos conseguir
honrar a memória dela fazendo justiça. Eu tenho fé que vamos!

— Eu queria poder consertar as coisas, fica uma sensação ruim de que não tentamos o
suficiente para nos aproximar.

— Sempre quando alguém próximo morre, ficamos com essa sensação do “e se”. É uma pena
enorme não terem mais tempo, mas não se culpe, meu amor. — Ela acaricia meu cabelo e me aperta
mais firme. — Você foi um bom primo, tenho certeza.

— O tio Noberto, a tia Ana Júlia... devem estar devastados. Apesar das brigas e
desentendimentos, nossa família foi sempre muito unida.

— Sim... — Sua voz embargada precede um suspiro cansado. — Os pais nunca deveriam ter
que enterrar seus filhos, não posso nem imaginar o tamanho da dor deles. Precisamos chamar um
Uber e ir o mais rápido possível para o hospital. Você está bem pra isso? Acha que consegue?

— Acho que sim. — Limpo o rosto e me afasto do seu toque para buscar o seu olhar. —
Estou cansado, triste..., mas quero estar lá pela família. Mesmo que eu não saiba me expressar bem,
acredito que ficar perto é importante, né?
— Muito! Nem imagina o quanto.

Ela acaricia minha bochecha e guarda o telefone do James no bolso da calça. Segue até a
mesinha de cabeceira e apanha o seu e um casaco que tinha deixado lá mais cedo. Enquanto saímos
de casa, Aurora já vai chamando o carro para não demorar.

Assim que chegamos ao portão, avisto um veículo preto com insulfilme encostar próximo da
calçada.

— Nossa, que rápido! Já é o nosso carro?

— O quê? — Ela para de digitar e me olha, confusa, só depois desviando para o veículo. —
Não é o nosso, está a cinco...

Antes que Aurora possa terminar de falar, seu rosto fica pálido e suas mãos trêmulas. Viro na
sua direção e constato um rapaz de boné nos encarando pelo vidro aberto do carro. Há uma arma na
sua mão, abaixada de forma discreta para não chamar a atenção na rua.

Dou um passo para trás, assustado, e ele aponta o cano para mim.

— Nem sonhe em fazer graça, pra dentro do carro, agora! — A voz exigente e grossa
reverbera pelo meu ouvido.

Quem é esse cara? O que está acontecendo? É um assalto? Nós temos que ir para o hospital.

— Precisamos ir, Aurora. Ir para o hospital! — digo, sentindo meu peito se apertar daquele
jeito que já aprendi que antecede uma crise.

— Eu preciso que você fique calmo, amor, por favor. — Ela segura minha mão e posso sentir
como está fria e instável. — Vamos ter que entrar.

— Anda logo, Aurora! Entra nesta porra, não teste minha paciência.

Como o moço de boné sabe o nome dela? Mal consigo ver seu rosto. Diante do olhar
apavorado da minha namorada, começo a andar ao seu lado em direção ao veículo. O rapaz a obriga
ficar no banco do carona e eu entro na parte detrás, onde um segundo sujeito também de boné está
sentado.

Assim que as portas são fechadas, ele coloca o veículo em movimento.

— Saudade, linda? — Odeio o tom da sua voz e a forma como a chama, passando o cano da
arma no seu braço.

— Tira isso de mim! — Aurora vocifera, afastando-se como pode dele.


— Quem são eles, olhos coloridos? O que está acontecendo? — Minha respiração já está em
um ritmo preocupante.

Não consigo ficar parado no banco, aflito por estar trancado com dois desconhecidos e uma
arma.

Uma arma apontada para a olhos coloridos.

— Olhos coloridos? — O rapaz dirigindo gargalha, acelerando o carro. — Que porra de


apelido brega é esse? Não vai me dizer que esse esquisito aí é seu namorado? Traumatizei tanto você
assim?

— Respira, Dan. Respira fundo! Vai ficar tudo bem. — Ela o ignora e vira a cabeça para trás,
buscando meu olhar.

Não estou conseguindo ficar calmo. Não com a chance de nós dois termos nossos sonhos
interrompidos também, como a Camile. Não quero morrer, não posso morrer.

— Otávio, vamos terminar logo com essa merda, cara! Eu quero voltar pra casa.

O garoto do meu lado se mexe, parecendo incomodado, e só então minha mente raciocina o
tamanho do nosso problema. Nunca iria imaginar que seriam tão ousados a ponto de nos ameaçarem
dessa forma, logo após a denúncia.

Otávio e Maurício, os estupradores da minha namoradora e da minha prima.

— Seus filhos da puta! — Por instinto, assim que constato quem são, não consigo ficar
parado e avanço para frente, tentando tirar a arma da mão do motorista. — Como você pode
machucar alguém inconsciente? Forçar uma relação sexual com quem não quer? Desgraçado, doente!

O carro desliza na pista, nos jogando para o lado, e Aurora grita, pedindo que eu fique calmo.
O garoto ao meu lado me puxa pela cintura e dá um soco na lateral do meu estômago,
desestabilizando-me.

— Repita isso, e eu sento uma balada no meio da sua testa, seu idiota! — Otávio brada,
voltando para a pista e arrumando o boné. Remexo como posso, tentando sair dos braços do rapaz
que me segura.

Seu toque... seu toque parece uma faca entrando em mim.

— Tira a mão dele, Maurício, se você ficar o apertando, Daniel não vai se acalmar —
Aurora implora, tentando me tranquilizar com seu olhar.

Não consigo parar de me debater. Ele precisa tirar, precisa tirar suas mãos de mim.
— Me solta! Me solta! Me solta! — grito, irritado.

— Porra, eu não estou brincando! Vamos chamar atenção desse jeito, se der ruim, vocês dois
vão comigo pra merda — Otávio avisa, mexendo com a arma perto da marcha do carro.

— Solta ele, Maurício! Dan é autista, não gosta de toque — a olhos coloridos pede, mais uma
vez.

— Pode soltar, cara — Otávio ordena. — Mas se você não conseguir que cale a boca,
Aurora, eu vou fazer do meu jeito.

Maurício me solta e eu me afasto o máximo que posso de perto dele. Aurora se inclina no
banco e vira para trás, pegando minha mão.

— Nós vamos precisar manter a calma. Por mim, obedeça a eles, Dan. Por favor. Não posso
correr o risco de te perder, eu não...

— Chega desse mimimi do caramba. — Otávio puxa Aurora para frente de novo e a faz sentar
no banco. — Passem o celular para o Maurício. Agora!

“Por mim, obedeça a eles, Dan. Por favor.”

A olhos coloridos entrega o celular que estava na sua mão e eu dou o que está no bolso da
minha calça. Maurício desliga ambos os aparelhos e só então reparo que está de luva. Ele e o Otávio.

Espertos, não estão deixando digitais em lugar nenhum.

O carro balança e percebo ao olhar pela janela que estamos em um bairro ainda mais
afastado que o meu. Aurora fica em silêncio e eu tento controlar os gritos de desespero dentro da
minha cabeça.

Por ela.

— O que você vai fazer, Otávio? Que lugar é este? — ela quebra a quietude quando entramos
em um beco apertado e ele aciona o botão do portão de uma casa grande de muro alto.

— Um lugar especial pra gente ter uma conversinha, Aurora. Estou precisando te lembrar de
algumas coisas que acho que esqueceu. — Ele volta a passar o cano no seu braço e eu ranjo os
dentes de ódio desse cara.

— Você está louco se pensa que vai sair impune disso, intimidar alguém que está denunciando
você, só irá piorar tudo. Nos solte de uma vez!

— Acho que você realmente esqueceu com quem está lidando, querida. — Ele sorri, mas é o
sorriso mais sem expressão que já vi na vida. — Eu não deixo pontas soltas pra ser punido. Você
ficaria abismada de saber o que sou capaz de fazer pra manter as coisas na ordem que devem ser.
Depoimento dos bons moços dados ontem de manhã, duas pessoas tristes reclusas na casa da
montanha para espairecer de mais uma acusação injusta, viagem de carro por horas pra não ser pego
em câmeras, noite sem dormir vigiando aquele barraco que está morando, locação de um espaço para
eventos no lugar mais afastado que achei nesta cidade... são só algumas delas. Você sabia que aqui
neste lugar não precisa nem de contrato? Sequer perguntaram meu nome ou olharam para o meu rosto
mais de cinco segundos enquanto dava o dinheiro e pegava a chave. Digamos que o dono é pior que
eu e está pouco se lixando para o uso do espaço.

— A Camile morreu por sua causa, por sua causa! — Volto a me exasperar quando ele
estaciona na frente da casa e o Maurício me tira do carro, puxando meu braço. — Você não vai
escapar dessa.

— Morreu? — Paro de me mexer com a risada alta que sai da sua garganta. — Meu Deus,
que excelente notícia para começar nosso dia. Agora que o papo será mais útil ainda. Se o defunto
não fala, não tem nada que vai me ligar a esse caso. Ou você coopera, ou desta vez eu tiro tudo de
você, Aurora. Não se meta no meu caminho mais uma vez, você sabe muito bem que fim tem.

Meu coração acelera e a garganta começa a apertar com medo do que pode acontecer dentro
desta casa. Uma pessoa que estupra mulheres e comemora a morte de alguém não pode ter nada de
bom dentro de si.
CAPÍTULO 53

Otávio é completamente doente. Não para de rir desde que Dan disse sobre a morte da prima.
Sou empurrada para a parte interior da casa e fico ainda mais abismada que ele tenha alugado um
espaço para não chamar a atenção de ninguém na rua.

O filho da puta é esperto! Pegou um lugar afastado e com uma vizinhança que não vai ligar se
alguém gritar aqui dentro. Como deve voltar logo para Pirapora e não se importa de gastar dinheiro,
é provável que escolheu pela praticidade de devolver rápido sem vínculo com ninguém. Sem
contrato, sem provas.

Percebi que o carro que viemos não tem placa de Minas. Eles devem ter alugado outro
veículo para andar aqui em São Paulo e não dar bandeira nas câmeras de trânsito.

A raiva que estava sentindo desde que Viviane ligou fica ainda mais latente. Não vou deixar
que a morte da Camile facilite as coisas para esses idiotas, não é possível que a Justiça falhe mais
uma vez.

Recuso-me a pensar nisso agora, não posso ficar frágil e influenciável. Para variar, Otávio
deve jogar baixo para tentar conseguir o que quer.

— Que coincidência nos encontrarmos de novo, depois de tanto tempo, hein, Aurora! — Paro
no meio do salão e meu ex dá uma volta ao meu redor, passando o cano da arma na minha pele. —
Deu até saudade, tava pensando se não foi um presentinho do destino te reencontrar para acertar as
contas. Dá última vez, você me deu trabalho, doçura.

— Tira essa arma de cima dela! — Daniel brada, tentando se aproximar de mim, mas
Maurício não deixa.

Estou morrendo de medo do Dan ficar muito agitado e o Otávio acabar fazendo algo contra
ele. Não vou... eu não vou suportar se for machucado.

— Dan, vamos obedecer aos dois pra sairmos daqui o quanto antes — imploro, procurando o
seu olhar. — Fica calmo, respira!

— Que namoradinho de merda você foi arrumar, puta que pariu! — Seu riso se amplia,
fazendo eco no local vazio. — Não consegue cuidar nem dele, que dirá de você. Acho que podemos
fazer um showzinho pra ele ver, que tal? Aposto que esse aí nem sabe o que é sexo.

— Otávio, não inventa! Viemos aqui pra dar o recado e ir embora — Maurício retruca e
segura Daniel, antes que tente de novo vir na minha direção. Seu rosto está até vermelho de tanta
raiva.

Coitada da mente dele, um bombardeio de situações tensas seguidas, sem nem dar um
respiro.

— Quer jeito melhor de dar o recado? Aposto que fica pianinha rapidinho!

— Estamos perdendo tempo, porra! Para de graça e vamos logo sair daqui. — Maurício
parece muito nervoso. Eu não me lembro dele ser apavorado desta forma antes.

Pode ser medo pela ligação entre Camile e eu. Pelo visto, os dois ficaram três anos
cometendo crimes sem nenhum problema para impedi-los. Justo no primeiro empecilho, é alguém que
conhece a primeira vítima.

Quer dizer, eu acho que fui a primeira. Não tenho estômago para cogitar quantas foram
violentadas, nem quando começaram.

Otávio olha de cara feia para o amigo, mas no fim obedece e se afasta de mim. Seu corpo fica
ereto e o semblante mais duro.

— Você se lembra do Agnaldo, advogado da minha família, né? — Como poderia esquecer
aquele crápula manipulador. — Ontem, quando Maurício e eu fomos depor voluntariamente na
delegacia de Pirapora, levamos um dossiê daquela matéria que arranjou pra se aparecer e outras
informações pertinentes sobre você. Três anos desaparecida, sem redes sociais, nem uma foto sequer,
e daí justo quando ganha a sua primeira luta, surge na mídia relembrando um caso que perdeu na
justiça e acusando pessoas inocentes. A suposta conhecida lá agonizando no hospital, e você tirando
fotos com jornalistas. O delegado adorou a história que mostramos sobre a sua gana de aparecer a
todo custo.

— Você sabe muito bem que isso é mentira! — esbravejo, fechando o punho. Que ódio desse
babaca. Que ódio!

— É o que costumo dizer, tudo é uma questão de narrativa e do tanto que estamos dispostos a
dar pra sustentá-la. — Otávio volta a sorrir e eu travo a mandíbula, louca para acertar um soco no
meio desse rosto milimetricamente perfeito dele. — A minha narrativa é processar você e aquele
jornalzinho por difamação e ainda pedir uma indenização por danos morais bem gorda pela sua
audácia de ir a público de novo, depois da vergonha que passou. Dinheiro, bons advogados e
influência pra isso eu tenho.

Do jeito que a Justiça neste país é uma palhaçada, infelizmente, não duvido que no final ele
fique impune e eu tenha que pagar a conta. Troco o peso da perna, sentindo minha pele formigar na
ânsia de ir para o embate com esse verme.

Não vou deixá-lo entrar na minha cabeça. Por mim, por Camile, por Taísse...

— Se você cooperar, fica só nesse processo de difamação — ele continua falando, diante do
meu silêncio. — Agora, se insistir em aparecer na mídia querendo me foder, serei mais drástico
desta vez. Sabe a fazenda que seu pai anda fazendo bico? Olha que coincidência de novo! É de um
primo da mãe da Lorena. Estava conversando com ela ontem antes de vir pra cá e já temos um plano
perfeito pra incriminá-lo de roubo. Imagina que beleza o seu Vladimir na cadeia?

— Desgraçado, eu vou te matar, Otávio! — Ofegante de fúria, tento pular em cima dele, mas
o grito de desespero do Dan e a arma apontada para a cabeça dele me fazem parar.

— Tenta alguma graça, que eu não penso duas vezes em atirar nesse mané do seu namorado.
Aposto que acho uma história bem crível pro idiota se meter em um assalto e acabar morto. Você não
acha que essa é uma das armas que tenho registrada no meu nome, né?

Meu coração está batendo quase na boca e meus dedos estão doloridos do tanto que estão
contraídos contra a palma da minha mão. Olho para Dan e ele me fita de volta, a pupila dilatada e sua
boca entreaberta. Apesar de a arma estar na sua direção, ele parece preocupado apenas comigo. Não
desvia a atenção de mim.

— Vai ficar tudo bem, amor! — falo baixinho para ele ouvir e para o meu cérebro também
tentar assimilar.

— Com essa postura, não vai ficar nada bem, doçura — Otávio provoca, voltando a andar na
minha direção com aquele sorriso intimidante. — Estou sabendo que a sua irmãzinha Sara ama o tal
do cavalo Eliseu, que o bicho faz milagres no seu tratamento. Se eu te contar que descobri que o
haras está com sérios problemas financeiros, você acreditaria? Estou pensando em usar uma parte da
minha herança pra investir lá. Poderei fazer o que quiser, inclusive, acabar com o programinha de
equoterapia. É o único da cidade, você sabe, né?

Meu Deus! Dou um passo para trás, sentindo minhas pernas bambearem. Sara vai ficar
acabada se não puder mais visitar o cavalo Eliseu, o animal virou seu melhor amigo, seu porto
seguro.

Eu odeio Otávio Baldez com todas as minhas forças, com cada célula do meu corpo.

Ele varreu a vida da minha família em poucas horas só para me tirar a paz, acabar com
minhas esperanças e ferrar o meu juízo.

— Não acabou, não! As poucas faxinas que sua mãe tem conseguido fazer, não vai mais. Vou
pessoalmente cuidar de destruir a reputação dela pela cidade. Soube que veio para São Paulo com
ajuda da Telma. Ela vai ficar igual seu pai, desempregada e mendigando trabalho que jamais vai
conseguir. — Inspiro fundo, tentando em vão acalmar minha respiração entrecortada. — Vou acabar
tanto com a sua imagem, que nenhum patrocinador vai querer vincular a marca com você. Já era essa
brincadeirinha de luta também. A escolha está com você, Aurora. Eu não blefei em nenhuma das
ameaças, e sabe muito bem disso. Da última vez que tentei te dar um aviso, você ignorou. Vai correr
o risco mais uma vez?

Pior que eu sei que não está mesmo blefando. Otávio é totalmente capaz de cumprir cada uma
das suas ameaças com requinte de maldade.

Eu, Taísse, Camile... podem ser tantas outras, uma lista que não vai parar enquanto eles
estiverem soltos.

Não posso ceder, não posso desistir, não posso ficar com medo.

Como se a situação já não estivesse ruim o suficiente, quando o salão está em silêncio o
telefone do James apita no meu bolso. Merda! Tinha esquecido completamente que o trouxe quando
saí de casa.

— Que porra de barulho é esse, Aurora? Você está com outro celular? — Furioso, ele vem
para cima de mim e arranca com força o aparelho do meu bolso.

Congelo no lugar, apavorada que seja Taísse mandando mensagem. Meu Deus! Ele vai acabar
com a vida da menina também, se souber que achamos outra garota abusada.

— E se ela ligou para a polícia? Mandou mensagem pra alguém? Eu falei que isso ia dar
merda, vamos embora daqui. Vamos agora! — Maurício começa a andar de um lado para o outro,
agitado.

—Qual é a senha, Aurora? — Otávio ignora o amigo e me fuzila com o olhar.

Não! Não! Não! Ele não pode descobrir sobre a Taísse.

— Qual a porra da senha?

Entreolho meu namorado, que parece tão desesperado quanto eu, sabendo o que ele pode
encontrar no celular.

Não posso colocar a vida da Taísse em risco, ela estava com tanto medo. Sem pensar muito,
decido pôr em prática um plano arriscado. Volto a olhar para Dan e confio que a ideia vai dar certo e
que nada irá acontecer com ele.

Precisa dar certo, ainda mais agora que Maurício está distraído. Dan não vai se machucar.
Vai dar certo, vai dar certo!

Invento um número aleatório e, no instante que Otávio foca a atenção na tela, eu dou um chute
no vão das suas pernas, o desestabilizando com tudo para trás.
— Corre, Dan!

A sequência de fatos depois do grito parece um borrão, de tão rápido que acontece. Otávio
cai no chão e deixa escorregar o celular e a arma da sua mão. Daniel não corre para o lado de fora
do salão, mas sim duela com Maurício para ver quem alcança primeiro o revólver.

Minha atenção fica entre imobilizar Otávio no chão com as minhas pernas e garantir que Dan
está seguro. Quando o homem abaixo de mim tenta me jogar de lado, eu dou um soco com toda minha
força bem no centro do seu queixo. É o melhor local para causar uma tontura momentânea no
oponente.

Vejo que Dan consegue pegar a arma primeiro, mas está tremendo tanto que mal dá
sustentação para o objeto.

— Segura firme, amor! Só segura e aponta para o Maurício.

Do jeito que o rapaz está apavorado desde que chegamos, tenho certeza de que não vai tentar
fazer nada. Maurício dá um passo para trás e coloca as mãos para cima assim que escuta minha
ordem.

Dan ainda está tremendo muito, não consegue nem falar comigo, mas obedece a ação.

Com a certeza de que está seguro na medida do possível, eu concentro no Otávio cambaleante
que me observa com a boca entreaberta e o lábio inferior sangrando.

— Deixa eu te contar uma coisa. — É a minha vez de sorrir, sádica. — A luta não é uma
brincadeirinha pra mim. Mesmo com uma perna machucada por sua causa, eu sou muito, muito boa no
que eu faço.

Não dou tempo de ele falar alguma coisa. Otávio já falou merda demais. Reúno toda fúria
guardada dentro de mim por três anos e fecho o punho na direção do seu rosto. Desta vez não estou
no ringue fingindo que meu oponente é ele para poder me vingar de tudo que me fez.

Desta vez, é real. Eu realmente posso liberar tudo.

Um soco por ter me enganado.

Dois socos por ter me desviado do meu sonho.

Três socos por me embebedar e violentar o meu corpo com seus amigos.

Quatro socos por me humilhar no julgamento.

Cinco socos por machucar Taísse.


Seis socos por tirar a vida da Camile.

— Ahhhh, seu desgraçado! Eu não vou parar! Tá me ouvindo? — Continuo batendo, fora de
mim. — Você pode me ameaçar o quanto quiser, eu não vou ceder. Vou dar um jeito de fazer você
pagar, eu juro que vou, Otávio.

Um estrondo na porta da frente, várias vozes desconexas surgem do nada.

— Solta ele, Aurora! — Sinto mãos segurando meu ombro e me puxando para cima. — O
desgraçado tá quase desacordado já. Temos que deixar vivo pra mofar na cadeia.

Tento me afastar e continuar batendo, mas vejo no meu campo de visão Viviane correndo na
direção do Dan e tirando a arma da mão dele. O detetive Ermes está logo à frente, imobilizando
Maurício que fala um monte de coisas que não consigo entender.

Paro os movimentos e olho para o lado. Arthur, um dos novos alunos da academia e filho do
detetive, estende a mão para me ajudar a levantar.

Deu... deu... Inspiro fundo, mal acreditando na imagem.

— Vocês estão seguros agora, vai ficar tudo bem.

— Olhos coloridos! — Meu namorado vem correndo na minha direção e me abraça com
força, antes que possa assimilar o que houve.

Não dizemos nada por longos segundos, não é preciso diante das batidas aceleradas dos
nossos corações que parecem entrar em uma sintonia ritmada de desespero e alívio.

— Você foi tão corajoso, obrigada por me ajudar!

— Eu não fui, olhos coloridos... eu estava morrendo de medo... o tempo inteiro apavorado
que eles te machucassem.

— Você foi, sim! — Afasto-me do seu abraço para olhar bem fundo nos seus olhos. Ele
precisa aprender a não se diminuir, fez muito hoje diante do cenário tenso. — Você conseguiu manter
a calma apesar do medo, você não deixou Maurício escapar. Fomos um time aqui! Um time muito
bom. Agora a situação deles se complicou ainda mais, eles vão pagar por tudo que fizeram, amor.

Estou uma bagunça de sangue, tonta e exausta, mas confiante de que vai ficar tudo bem...
enfim! Passo a mão no rosto e deixo lágrimas de cansaço e alegria se misturarem.

Mais do que nunca, há esperança para a justiça.


CAPÍTULO 54

O barulho da sirene da polícia parece me tirar do estado de adrenalina em que estava e traz
uma sensação avassaladora de esgotamento. Minha mente não para de trabalhar, tentando raciocinar
os últimos dias e, especialmente, as últimas horas.

Desde o dia do meu diagnóstico de autismo, tudo tem acontecido de forma muito intensa e
cansativa. Preciso urgente de uma noite tranquila de sono, da familiaridade da minha rotina e da
Aurora segura ao meu lado.

Pelo menos, para uma coisa tudo isso serviu: desta vez acredito que Otávio e Maurício
tenham se complicado de vez. Não é possível que depois desse flagra, ainda consigam escapar
ilesos.

Caminho com Aurora, minha mãe, o detetive Ermes e o seu filho para o lado de fora da casa,
enquanto a polícia entra para averiguar o local e levar os delinquentes para a delegacia.

— Como vocês chegaram aqui? — a olhos coloridos questiona algo que estava na ponta da
minha língua para perguntar também.

Quase não acreditei quando avistei a Viviane correndo na minha direção.

— Eu comecei a achar que vocês estavam demorando muito pra chegarem ao hospital —
minha mãe explica e atravessamos o jardim para sair de vez deste lugar. — A primeira reação foi
imaginar que o Dan tinha passado mal, então tentei ligar de novo e deu caixa postal. Tentei nos dois
telefones, e nada. Aí acendeu um alerta que tinha alguma coisa errada.

— O sensei me avisou da morte, então, fui com meu pai ao hospital prestar as condolências.
Foi sorte ele estar de folga hoje e disponível agora de manhã pra ir comigo. Até ligar na delegacia e
chamá-lo, seria um tempo precioso.

— Foi muita sorte mesmo, sem Arthur e Ermes não teríamos chegado aqui tão rápido e com
respaldo policial pra ferrar com esses dois idiotas — minha mãe continua falando e olha para trás,
na direção da casa. — Na hora que eu percebi essa falha nos celulares, liguei na mesma hora para o
James. Por sorte, ainda não tinha embarcado e estava com sinal no saguão do aeroporto. Ele tentou
hackear o aparelho de vocês, mas ambos estavam desligados. Foi então que se lembrou do celular
que tinha deixado com a Aurora. Esse sim estava ligado, e com o GPS ativo agilizando que
achássemos vocês o quanto antes.

— Quando Otávio exigiu que a gente entregasse os aparelhos, eu nem me lembrei que tinha
colocado o do James no bolso. — Aurora passa a mão no cabelo e olha para o céu. — Tinha
encerrado a conversa com a Taísse antes da notícia do falecimento, disse que falaria com ela só
amanhã. Sei lá por que resolvi levar o celular para o hospital, acho que foi Deus cuidando de nós. Eu
parti pra cima do Otávio, mas pra falar a verdade, não sei bem como iríamos sair daqui sãos e
salvos.

— Eu reconheci o local na hora, sempre temos problemas por aqui — o detetive Ermes
complementa. — No caminho, já acionei mais policiais pra dar cobertura. Não fazíamos ideia do
que eles estavam armando contra vocês. Foi uma surpresa conseguir entrar e vê-los revertendo a
situação.

— Criei coragem pra revidar quando o telefone do James fez barulho de notificação. Fiquei
desesperada que Otávio descobrisse que sabemos da Taísse. O menino ia infernizar a vida da
coitada, que está morrendo de medo.

Aurora explica para a minha mãe e o detetive a ideia que tivemos ontem e a resposta da
garota esta manhã.

— Você pegou o telefone de volta?

— A primeira coisa logo depois que nos abraçamos, amor. Era a Taísse mandando mensagem.
Ela aceitou nos ajudar no caso da Camile.

— Já? Ela parecia com tanto medo.

— Pois é, mas falou que está cansada de sentir medo. Que se nos unirmos, será mais fácil
sermos ouvidas. — A voz da Aurora embarga e seus olhos ficam cheios de lágrimas. — Eu sei muito
bem como é essa sensação. Viver com medo é a pior coisa que existe.

— Graças a Deus, essa menina vai ajudar! — Viviane inspira fundo e deixa o pranto cair. —
Eles estão ficando encurralados, não vai ter pra onde sair, né, Ermes?

— O caso deles está complexo e acho que se pressionarmos um pouco, o comparsa Maurício
acaba soltando o que sabe. Ele está muito apavorado. O delegado pode pedir a prisão preventiva,
porque os dois tentaram atrapalhar as investigações. — Se tivesse pedido antes, poderíamos ter
evitado todo esse estresse. Não consigo entender as regras da justiça neste país. — O promotor vai
ter mais argumentos para corroborar que Aurora sofreu uma injustiça há três anos e que eles
continuaram cometendo o mesmo crime. Outra questão é que o julgamento não será no tribunal
comum, irá para júri.

— Júri com cidadãos comuns pra julgarem? — Aurora indaga, de repente animada.
— Isso, como foi cometido um crime doloso contra a vida, é julgado dessa forma. Apenas o
estupro não entraria nessa modalidade. — “Apenas”, como se não fosse algo tão sério. Casos como
esse deveriam sempre ser julgados com mais rigor. — Estava vendo o laudo da perícia, a cabeça da
Camile foi batida várias vezes contra um objeto duro. Pelo sangue no terreno baldio, acredita-se que
foi em uma pedra que tinha lá. Eles quiseram matá-la. Serão julgados pelos dois crimes no júri.

— Uma notícia boa no meio desse caos! — Aurora esfrega a mão no peito e fica uma mistura
de riso e lágrimas. — Você trabalha para a justiça, me perdoe, Ermes, mas eu tenho motivos pra não
confiar. Um tribunal de cidadãos vai ser difícil ele influenciar com seu poder e dinheiro.

Se o caso da Aurora fosse levado a sério há três anos, não teria Taísse nem Camile nessa
equação. É triste constatar como o sistema é falho em proteger quem mais precisa.

Espero que o júri seja realmente o ponto final para a história dos dois.

3 semanas depois

Deitamo-nos de mãos dadas um do lado do outro e puxamos a coberta para nos manter
aquecidos. Em silêncio, apenas contemplamos o céu limpo de inverno acima de nós. Trouxe um
colchonete aqui para cima e temos passado boas horas, toda noite, sozinhos na casa da árvore para
acalmar a mente.

Além do luto da família pela morte da Camile, temos lidado com questões que dávamos como
certas. Maurício não disse nada no seu depoimento que os comprometesse e os advogados dos
Baldez conseguiram um habeas corpus contra a prisão preventiva dos dois.

É inacreditável que depois de terem sido pegos em outro estado nos intimidando, ainda
respondam em liberdade. Tiveram a audácia de dizer para a polícia que estavam apenas defendendo
a honra deles, porque Aurora continuava mentindo e querendo os difamar anos depois de terem
vencido o julgamento contra ela.

Contamos todas as ameaças que foram feitas para o juiz e, se Otávio tentar prejudicar a
família da Aurora ou a Telma nesse tempo, irá comprovar a culpa dele e piorar o seu caso. Até
terminar, pelo menos, todos estão seguros, na medida do possível.

Vai ser um longo caminho até que o julgamento chegue ao fim. O tio Noberto e a tia Ana Júlia
estão furiosos com as notícias. A minha namorada, apesar de parecer muito cansada, está mais
decidida do que nunca a lutar pela justiça.
— É verdade aquela expressão que “somos poeira de estrelas”, digo, não literalmente poeira,
mas fomos criados por causa delas? — A voz suave da minha namorada me tira dos devaneios.

Quando estamos aqui, não falamos dos problemas. Podemos pensar, como tenho certeza de
que a cabeça dela também não para, mas não externamos. A casa na árvore se tornou nosso refúgio
do mundo.

— É verdade, sim! Nos primórdios do Universo, só havia no espaço os elementos químicos


hidrogênio e hélio. — Viro o rosto para observá-la com os olhos fixos no céu. Adoro que se
apaixonou pelo assunto por minha causa. — Depois de um tempo, os átomos de hidrogênio
começaram a se juntar e a formar estrelas muito grandes. No final da vida, essas estrelas têm uma
explosão enorme, que chamamos de supernova. Nessas explosões outros elementos químicos se
formaram, como carbono, nitrogênio e oxigênio, por exemplo, essenciais à vida humana.

— Eu acredito em Deus, mas gosto mais de pensar que fui criada por causa de uma estrela.
Não deixa de ser obra Dele. — Ela sorri e meu peito se aquece. Amo o seu sorriso! Senti muita falta
dele durante os últimos dias difíceis. — Você acha que é possível voltarmos lá pra cima?

— Como diria o físico brasileiro Marcelo Gleiser: “do espaço viemos e para o espaço
retornaremos” — explico, sorrindo também.

— “Um dia a gente vira estrela e o nosso amor vai iluminar o Universo” — ela cantarola o
trecho do que acredito ser uma música. Entreolhamo-nos e o tum, tum, tum desgovernado chega com
tudo. É impressionante como não para de acontecer cada vez mais. — Seja como for, espero estar de
alguma forma com você além desta vida. Me resgatou, agora vai ter que me aguentar pra sempre, no
sentido literal da palavra.

— Sempre e tudo, é o que mais quero com você, olhos coloridos — digo, sincero, e o sorriso
se expande no seu rosto.

De uma coisa eu tenho certeza: independentemente do que vier, de quais batalhas tivermos
que enfrentar, estarei sempre ao seu lado, para tudo!
EPÍLOGO

2 anos depois

Balanço a perna, esfrego o rosto, tento inspirar fundo. Meu coração não quer desacelerar,
desesperado para o juiz entrar logo e falar o resultado do julgamento. Dan pega minha mão e
entrelaça nossos dedos, deixando um beijo na lateral da minha cabeça.

— Vai dar tudo certo, amor. Calma!

Apenas aceno, sem condições de falar no momento. Eu estou confiante de que realmente dê,
mas demorou tanto para chegar até aqui, que a adrenalina é impossível de controlar. Foram exatos 24
meses de espera para, enfim, o caso ser apresentado no tribunal.

Por mais que eu tenha tentado viver minha vida, foi agoniante aguardar um tempo tão longo
sabendo que Otávio estava solto. Graças à terapia e ao ringue, eu consegui manter os pés no chão e a
esperança inabalada. O sistema judicial é muito falho nesta parte e, em pensar que o caso da Camile
está sendo rápido para os padrões atuais com júri, dá ainda mais aflição.

Noberto e eu não deixamos o processo ser esquecido pela mídia. A academia voltou a brilhar
no cenário do MMA e eu consegui um contrato com o UFC, ano passado. Essa visibilidade nos deu
voz para lutar por justiça. Fomos incansáveis, eu levanto a bandeira contra a violência da mulher em
todas as lutas que participo e a cada espaço que ganho na imprensa.

Essa pressão ajudou o apelo popular a ficar do nosso lado, tanto é que o tribunal está lotado
de pessoas neste momento e há cerca de duzentas do lado de fora, tão ansiosas quanto eu para o
veredicto.

Fico feliz pela minha voz hoje em dia ser ouvida e valorizada, mas ao mesmo tempo penso na
Aurora de cinco anos atrás e nas milhares de meninas que enfrentam a humilhação que passei naquela
época.

Uma mulher não deveria morrer para o caso ser levado mais a sério. Uma mulher não deveria
ser famosa para ter credibilidade.

Estamos há cinco dias exaustivos ouvindo testemunhas, vendo provas e o debate caloroso
entre a promotoria e a defesa. Otávio ficou muito esperto depois que me violentou. Seus ataques são
mais planejados, ele faz questão de ser visto quando quer e some quando é preciso. Como era de se
esperar, aqueles filhos da puta descredibilizaram a Camile assim como fizeram comigo.

O advogado Agnaldo mostrou fotos antigas dela em redes sociais e conseguiu até vídeos em
festas, sempre muito bêbada. Quase não acreditei quando mostraram uma publicação no Facebook,
de seis anos atrás, com a menina e uma amiga alcoolizada dentro de um táxi. As duas ficavam
provocando o motorista o tempo todo.

Nessa hora, eu temi de o júri acreditar na sugestão da defesa que Camile é irresponsável e foi
estuprada por um motorista qualquer, ainda mais que não foi encontrado nenhum sêmen nela e todas
as provas foram circunstanciais. Contudo, graças a Deus, tivemos três testemunhas chaves
corroborando com a condenação.

Taísse, Débora e eu contamos as nossas histórias e mostramos como o modus operandi da


dupla é sempre igual. A Dé foi um achado fundamental do James; o pai do Dan não pôde vir
acompanhar o julgamento, mas foi crucial para termos uma acusação sólida. Ele conseguiu rastrear
pelo registro dos hospitais, o caso de abuso atendido durante o período de inauguração de uma loja
do interior de Minas.

A Débora foi a mais consciente de nós três e se lembra de muita coisa. Chegou a contar o que
houve para a médica que a atendeu quando foi, sozinha, procurar ajuda. A profissional veio até aqui
confirmar cada palavra declarada. Não houve uma denúncia formal na época, porque o pai dela é
pastor e descobriu o estupro. Ele a proibiu de expor a família e ainda a culpou por ficar bêbada.

Balanço a cabeça, não querendo pensar nesse idiota agora. Eu, com pais maravilhosos me
apoiando o tempo todo; e algumas, além de serem violentadas, ainda têm que lidar com a
imbecilidade de quem está ao seu lado.

Maurício ficou desestabilizado durante o testemunho da Débora, demonstrando um evidente


medo dos planos deles não darem certo. Chegou a passar mal e o julgamento precisou ser
interrompido por algumas horas no terceiro dia.

O juiz entra no salão e os jurados começam a voltar para os seus lugares. Há cerca de vinte
minutos nos avisaram para retornar que já havia uma sentença decretada. Mexo na cadeira, inquieta,
e olho para Noberto e Ana Júlia do meu lado esquerdo, que já estão chorando antes mesmo de
saberem o que vai acontecer.

Meu Deus, por favor, não permita outra injustiça! Por favor. Por favor.

Estico minha mão livre e pego a do sensei, que está segurando a da esposa. Dan acolhe os
dedos trêmulos da Mel e assim criamos uma corrente de mãos dadas que vai aumentando para a vó
Marideide, Pablo, Viviane, meus pais, Pilar, Egídio, Taísse, Débora e dezenas de alunos da Naja.

Todos ansiosos, prendendo a respiração enquanto aguardam o juiz ler todo o rito de
declaração antes de anunciar o que mais desejamos ouvir.
— Fala logo, pelo amor de Deus! — Escuto Ana Júlia murmurar, com a voz embargada.

É um martírio esperá-lo falar toda aquela burocracia jurídica. Quando chega ao veredicto do
júri, um silêncio completo se faz no tribunal. Tanto a acusação como a defesa paralisam na ânsia de
ouvir o que os sete jurados decidiram.

— Pela prática do crime de estupro e pela prática do crime de homicídio qualificado de


Camile Lima, o tribunal do júri declara os réus culpados.

Culpados!

Culpados!

Culpados!

Meu corpo cede no chão e eu me ajoelho com as mãos unidas em uma prece de
agradecimento. O choro desce em cascata, trazendo um alívio que não sabia que seria tão potente
dentro de mim. É como se cada pedaço de escuridão que ainda estava aqui escondidinho sumisse
com o poder de uma palavra tão pequena.

A multidão na sala não consegue conter a euforia e começa a comemorar a decisão, olho para
os pais da Camile e os dois estão se abraçando em uma comemoração dolorosa. Ao contrário de
mim, que estou podendo celebrar a vitória, a filha deles nunca poderá fazer isso.

— Silêncio no tribunal, contenham-se para a leitura do restante da sentença — o juiz chama a


atenção dos presentes e volta a focar no papel que está segurando.

Observo Otávio e Maurício e a reação dos dois é completamente diferente. Enquanto um


chora desesperado, o meu ex-namorado devolve o meu olhar com um semblante tão fechado, que
chega a me dar um frio na espinha. “Não vai ficar assim” é o que consigo ler nos seus lábios. Eles
podem até tentar recorrer, e tenho plena certeza de que farão isso incansavelmente até esgotar todas
as opções jurídicas, principalmente porque o senhor Baldez não sabe perder, mas eu também não vou
me cansar de levantar a bandeira contra a violência à mulher nem de relembrar sempre a minha
história com ele.

Se quer medir forças, agora estou no mesmo patamar e não vou abaixar a cabeça,
escondendo-me do mundo.

— As penas bases dos réus Otávio Baldez e Maurício Servant serão fixadas em 23 anos e 7
meses, em regime inicial fechado e sem a possibilidade de recorrer em liberdade.

Depois de ouvir a pena, o restante da leitura se torna música para os meus ouvidos. Esfrego o
peito, que está queimando, e deixo mais lágrimas caírem para lavar a minha alma completamente.

— Vocês conseguiram, olhos coloridos! — Dan me ajuda a levantar e me puxa para os seus
braços assim que o juiz encerra.
Ele ficou ao meu lado o tempo todo e me deu forças para permanecer firme a cada mês que se
passava sem uma data para o julgamento.

— Graças a Deus, amor! Nenhuma outra garota será machucada por eles.

— Obrigada por tudo, Aurora. — Taísse e Débora se aproximam de nós dois, tão
emocionadas quanto eu. — Não há nada que pague a paz que estou sentindo aqui dentro.

— Eu que tenho que agradecer a coragem de vocês em denunciarem! Sem isso, eu temo que o
julgamento não teria esse desfecho. Eles são muito bons em desviar o foco do crime. — Pego a mão
de cada delas e as encaro de forma carinhosa. — Com esse resultado, podemos dar prosseguimento
aos nossos próprios processos. Eu vou reabrir o meu caso, e vocês duas podem abrir as suas
denúncias formalmente. Não iremos ao tribunal do júri porque não houve homicídio, mas é quase
certo que a gente ganhe também. Isso vai aumentar ainda mais as penas, e dificultar que consigam sair
da cadeia.

— Com toda certeza, eu vou denunciar, temos que mostrar para mais mulheres que, apesar de
toda desconfiança, vale a pena lutar pela justiça. Mesmo que demore, e que tentem nos desmotivar!
— Débora comenta, limpando o rosto com as costas da mão livre. — Estava lendo esses dias que
acontece um estupro a cada oito minutos no Brasil e que, por medo e vergonha, apenas 10% são
notificados. Imagina quantas pessoas estão sofrendo sozinhas, como eu fiquei.

— Exatamente! Talvez com a repercussão do resultado de hoje e outras condenações


assertivas de nós três, apareçam mais mulheres violentadas por Otávio e Maurício. Algo no meu
coração diz que não fomos apenas nós quatro — Taísse desabafa, cabisbaixa.

Eu também sinto isso. Queria muito descobrir todas elas, o que aconteceu com Elton. Apesar
de termos levantando suspeitas que fizeram até os seus pais lutarem por descobrir a verdade, ainda
estamos em um impasse sem respostas definitivas.

Ganhamos uma batalha, mas a guerra está longe de terminar, e quero as duas ao meu lado
nessa caminhada.

Abraço os meus pais enquanto observamos em silêncio Noberto, Ana Júlia, Pablo, Mel,
Marideide, Viviane e Dan prestarem uma homenagem no túmulo da Camile. Assim que acabou a
audiência, despedimo-nos de todos ainda no tribunal e viemos só nós direto para o cemitério.

Meus pais fizeram questão de acompanhar o desfecho do julgamento, pelo menos no último
dia, porque a minha alma lavada é a deles também. Sei muito bem como sofreram com cada
humilhação que passei e com o veredicto daquela época.

Graças a Deus, a vida tem melhorado para a nossa família. Pagamos toda a dívida e seu
Vladimir e dona Maria das Graças abriram o seu próprio negócio em Pirapora. Minha irmãzinha, que
ficou com a Telma, já não é mais tão criança e está se desenvolvendo muito bem com o tratamento
adequado do seu quadro de autismo.

O MMA tem me possibilitado ajudá-los a ter uma vida melhor e sou muito grata a isso.

— Posso falar com você um minutinho, Aurora? — A vó Marideide vem ao meu encontro,
assim que terminam de depositar rosas e fazerem uma oração no túmulo.

— Claro! — Afasto-me dos meus pais e a acompanho um pouco à frente, em direção à saída.

— Eu só queria dizer obrigada por tudo que fez por nós desde que chegou em nossas vidas.
— Ela busca meu olhar e, em seguida, desvia para a grama. — Sei que nunca disse antes, mas sou
muito ciente de que salvou a academia, lutou para honrar a memória da minha neta, mesmo sendo um
assunto difícil pra você, e ainda tem feito o Daniel muito feliz. Como matriarca da família Lima, eu
tenho que agradecer do fundo do coração.

— A senhora não precisa agradecer por nada, eu adoro a sua família. Vocês me acolheram e o
seu neto me resgatou, tornando possível eu ser a Aurora que sou hoje.

— Eu também nunca disse, mas agradeço por ter brigado comigo aquela vez. Me fez abrir os
olhos sobre a forma de tratá-lo. Não quero perder mais um neto, é uma dor indescritível. — Nesses
últimos dois anos, ela tem sido muito mais paciente com o Daniel. Realmente, valeu a pena a voz
firme. — Sem aquele chacoalhão, poderia continuar afastada dele.

— Dan é o homem mais doce que já conheci na vida, e ele está muito feliz com essa
aproximação — comento, sorrindo, ao lembrar como foi maravilhoso passar todo esse tempo ao seu
lado. Meu namorado sabe fazer os dias valerem a pena. — O que mais quis desde criança era se
conectar com os outros. Graças a Deus, a terapia está o ajudando nisso.

Conversamos mais um pouco até que o restante da família nos alcança. Aceno para a dona
Marideide e entrelaço meus dedos com os do Daniel. Ele traz meu corpo para perto do seu e deixa
um beijo no topo da minha cabeça.

Eu amo quando ele faz isso.

Agora que o julgamento terminou, acho que podemos comemorar nos casando de uma vez.
Com três meses de namoro, Dan chegou a me pedir em noivado na casa da árvore. Foi muito fofo ele
perguntar se, nos próximos três, já poderíamos fazer o laço definitivo. Pelo sentimento que tenho, não
haveria dúvida nenhuma. Só achei que não era o momento certo para esse tipo de celebração até o
julgamento da Camile acontecer.
Temos morado praticamente juntos e oficializar a nossa relação será apenas um detalhe no
papel. Talvez aconteça mais rápido do que imaginamos, com uma possível mudança para os Estados
Unidos, em breve.

Eu tenho recebido muitos convites para ficar lá por causa do UFC e meu namorado inteligente
vai finalizar o doutorado daqui a duas semanas. O professor João está confiante de que o trabalho
dele sobre buracos negros vai render uma experiência na NASA, junto com o amigo Saulo que
pesquisa sobre Marte. Já há várias tratativas sobre isso com um departamento focado em pesquisas
da agência espacial.

Estou na torcida para que Dan conquiste o Universo, ele merece esse reconhecimento e muito
mais!

— Você está bem, meu amor? — ele sussurra a pergunta no meu ouvido, enquanto
caminhamos até o estacionamento do cemitério. — Seu coração está em paz?

— Estou sim, Dan, mas a garra de lutar não passou, não. Fiquei com a sensação de ter sido
uma etapa importante de um longa estrada, sabe?! — Agora que eu tenho voz, queria pensar uma
forma de usar isso de forma mais contundente. — A Dé falou uma coisa mais cedo que estou
remoendo, desde então. Estima-se que só 10% dos casos de estupro sejam denunciados. É muito
pouco! E o pior é imaginar que esses 10% tiveram coragem de falar e podem passar por demora no
julgamento, humilhação, falta de apoio...

— Lá na universidade temos um projeto de divulgação científica, como aquela viagem que


fizemos em São Francisco Xavier. — Ele sorri com a lembrança do nosso primeiro beijo. Parece que
foi há uma eternidade. — O objetivo é levar informação sobre ciência para crianças e a comunidade
em geral. E se você tivesse um projeto assim, mas como foco em ajudar a dar visibilidade para as
denúncias?

— Nossa, Dan, amei essa ideia! — Solto a sua mão, empolgada, e começo a enumerar o que
podemos fazer. Tenho certeza de que Taísse e Débora entram nessa comigo. — Podia ser um
aplicativo para conscientizar sobre a importância da denúncia, com casos de sucesso que deram
certo para motivar. Podíamos cadastrar voluntários do país inteiro, como advogados, psicólogos,
assistentes sociais... Quando aparecesse uma denúncia em uma determinada região, acionaríamos a
rede de apoio pra prestar esclarecimentos e tentar montar um caso sólido junto à promotoria. Com a
minha visibilidade na mídia por causa das lutas, é fácil promover a divulgação. Tem vários atletas
que também ajudariam. O que acha?

— Acho que você ia ficar feliz fazendo isso. E se você está feliz, olhos coloridos, eu estou
completamente feliz. Conte comigo para ajudá-la no que eu puder.

— Ah, você é maravilhoso! — Agarro o seu pescoço e ele ri quando deixo vários beijos na
sua bochecha. — Dá vontade de te colocar em um potinho de tão fofo.
— Digamos que houvesse um pote do meu tamanho, por que alguém fofo iria merecer ficar
trancado em um lugar fechado e sem ar? — Dou risada com a sua cara de confuso.

— Essa é uma expressão que usamos quando gostamos tanto de alguém, que queremos apenas
o bem dela, protegê-la de tudo, o potinho é para pessoas verdadeiramente especiais.

— Ahhh, entendi. Gostei disso, principalmente do “verdadeiramente especiais”.

— Você é especial em um nível ainda não descoberto pela ciência! — Passo a mão na sua
barba rala e procuro seus olhos brilhantes que me fitam com entusiasmo. — Eu sou muito sortuda por
encontrar alguém que se encaixou em tudo que eu precisava.

Nós, que estávamos desconectados no mundo, acabamos encontrando a conexão perfeita um


no outro.

Não trocaria meu Dan por ninguém. Eu o amo exatamente desse jeitinho.
BÔNUS 1

1 ano depois

Estaciono o carro na garagem do condomínio e confiro a última mensagem do professor João


no grupo que criamos no WhatsApp junto com o Saulo. Nosso mentor adora acompanhar cada detalhe
da nossa aventura nos Estados Unidos.

Quase não posso acreditar que estou trabalhando junto com o núcleo de pesquisa da Nasa há
três meses. Não fico no mesmo local que o meu amigo, mas nós dois estamos fascinados com a
tecnologia que eles possuem.

O grupo que eu estou participando está focado em avaliar a influência gravitacional do


Sagittarius A, que é o buraco negro do centro da nossa galáxia. Essa também foi a tese do meu
doutorado e o motivo que estou aqui hoje. Ainda não consegui descobrir algo grandioso sobre este
tema, mas estou cada vez mais fissurado e dedicado nessa missão. Quem sabe um dia, nem que seja
na velhice, eu possa ter meu nome registrado na história da física.

— Não, professor! — respondo a última pergunta que ele deixou no grupo, rindo. — Nada de
novidades sobre buracos de minhoca. O senhor vai ter que esperar uma segunda versão do filme
Interestelar. Acho que não estaremos vivos até encontrarem algo concreto sobre isso.

Existe uma especulação na ciência de que, se fosse possível juntar dois buracos negros — um
numa parte do Universo, outro em outra — poderia se formar um túnel entre eles no qual se viajaria
com uma velocidade muito maior que a da luz. O professor João é apaixonado em viagem no tempo e
acredita nessa hipótese prevista pela teoria da relatividade geral de Einstein. Eu até acredito
também, mas não acho que vamos conseguir provar tão cedo.

Guardo o celular na minha bolsa, desço do carro e sigo para o elevador. Eu estou amando
meu novo trabalho, porém, amo mais ainda voltar para casa e encontrar minha linda esposa. Até que
enfim agora posso dizer que temos o laço definitivo.

Aurora está adorando morar aqui também, os atletas de MMA são muito valorizados e
ganham ainda mais relevância. Ela é uma das queridinhas do UFC e já tem seu primeiro cinturão.
Meu tio foi um dos principais incentivadores que ela deixasse a Naja e viesse alçar novos objetivos
em terras gringas. Acabou sendo bom para ele também, o exemplo da minha mulher atrai novos
alunos até hoje. A academia está bombando.
Assim que chego na porta do apartamento, escuto a risada ampla da olhos coloridos. O tum,
tum, tum vem de imediato, meu coração não se cansa nunca dela.

— Coitado do rapaz, deve ter ficado morrendo de medo. — Entro em casa e a vejo sentada
no tapete colocando comida para a Yeda 2.0 e falando com Mel em chamada de vídeo.

Infelizmente, meu porquinho da índia faleceu, mas Aurora me deu outro de presente e sugeriu
deixar o mesmo nome. Eu adorei a ideia, é quase como se ainda fosse a primeira.

Aposto que a conversa das duas é sobre o namorado da Mel. Minha prima já está no ápice da
adolescência, deixando o tio Noberto e o Pablo loucos de ciúme.

— Foi um show de horrores, o menino estava branco igual leite. Os dois o ameaçaram de
morte com aquela cara bem brava, sabe? Ai dele se pensar em fazer graça comigo. — Ela ri também
e acena para mim, que estou me sentando ao lado da olhos coloridos. — Oi, Dan!

— Oi, Mel. — Deixo um beijo na cabeça da minha esposa. — Oi, amor.

— Oi, meu amor! — Ela faz um carinho no meu rosto e sorri para mim. — Como foi seu dia?

— Foi ótimo, muito trabalho. E o seu?

— Muito treino, estou com as pernas latejando.

Logo que terminou o julgamento da Camile e ela começou a ter ainda mais relevância no
cenário de MMA, Aurora foi convidada por um centro médico famoso no Brasil a fazer uma cirurgia
de reparação do nervo que havia sido lesionado. É claro que o espaço queria ganhar mídia, mas foi
muito bom porque eles conseguiram resolver o problema da perna manca e não gastamos nenhum
centavo para isso.

O que antes já era bom, agora está melhor ainda. Não tem nenhuma fraqueza para as
adversárias explorarem nas lutas.

— Eu estou aqui ainda, gente! — Mel provoca, nos fazendo olhar para a tela do celular. —
Vocês não cansam dessa melação, não?

— Não! — respondemos juntos e eu abraço Aurora pelos ombros.

— Mês que vem, quando eu chegar aí pra passar umas semanas com vocês nas férias da
escola, não quero grude, não. Façam o favor de darem atenção pra mim!

— Nós vamos dar, com certeza, mas não garanto que não teremos grude. Seu primo tem algum
tipo de ímã, sempre me atrai pra perto dele.
— Ai, ai. — Ela suspira e sorri para nós dois. — Brincadeiras à parte, eu adoro ver vocês
assim. Em pensar que tudo começou por um empurrãozinho meu. Deem graças a Deus que Melissa
Lima existe.

— Eu sou grato todos os dias, prima, você não faz ideia do quanto — respondo e entreolho
Aurora, que roça seu nariz no meu antes de a gente continuar conversando com Mel.

Além de ter encontrado o amor da minha vida, a olhos coloridos trouxe o diagnóstico de
autismo e uma aceitação própria que não tem preço. A terapia foi maravilhosa para o meu dia a dia,
tanto é que mesmo morando em outro país não deixo de fazer na modalidade on-line com a psicóloga
que está comigo desde o começo da descoberta.

Por causa do tratamento, eu agora consigo dirigir, por exemplo, algo que seria impensável há
três anos. Consigo pegar metrô quando é preciso, sem ficar neurótico com o barulho dos trilhos, e até
aprendi a experimentar outros tipos de alimentos. Foram só ganhos positivos.

— Vou ter que desligar, tenho que dormir cedo. Amanhã o tio James vem me pegar de manhã
pra passar o dia na filial da empresa que trabalha aqui no Brasil.

— Está animada pra conhecer como funciona de perto um setor de TI?

— Muitoooo, Dan! Acho que é isso mesmo que vou fazer depois do ensino médio.

A Mel é muito grata ao meu pai por ter conseguido descobrir informações importantes que
ajudaram no caso da Camile. Ela quer fazer faculdade na área de tecnologia e o James adora
incentivá-la.

Ele e minha mãe estão namorando, finalmente. Depois de ela muito enrolar o coitado, com
medo de que os horários e itinerários doidos dos dois atrapalhassem a relação, acabou cedendo.
Nunca a vi tão feliz.

O amor muda mesmo a gente.

Despedimo-nos e eu me levanto com Aurora do tapete em direção à cozinha. Nós adoramos


cozinhar juntos para atualizar sobre como foi o dia de cada um. A conversa e a amizade que criamos
no início é a base do nosso relacionamento até hoje.

— A Taísse e a Débora me ligaram assim que saí do treino, conseguimos ganhar mais um
processo e agendar outros três — a olhos coloridos conta, animada, enquanto separa na geladeira
tomate, cebola e pimentão. — O aplicativo também foi noticiado em uma reportagem no jornal da
principal emissora do país.

— Que bom, amor! — comemoro, realmente feliz pelo sucesso do aplicativo. —Já sabe
quando vai sair a capa daquela revista americana, que fez as fotos semana passada? Vai ser uma boa
mídia também para o projeto. Você falou disso quase a entrevista inteira.
— Eles disseram que sai no final do mês, estou muito ansiosa! Quanto mais divulgação e
mais sério verem que o projeto é, mais denúncias vamos receber.

O aplicativo tem mais de mil voluntários cadastrados e já recebeu cerca de trezentas


denúncias em menos de um ano de funcionamento. Tantos casos em andamento, que precisam de
visibilidade, como pedidos de ajuda para iniciar o processo são atendidos. Débora e Taísse estão
tocando do Brasil e Aurora ajuda sempre daqui.

Coloco água para ferver e pego o macarrão na prateleira de alimentos, enquanto ela pica o
que separou no balcão.

— Tem novidades do caso da Mônica e das meninas?

— Ainda não, está em andamento. O importante é que estão na cadeia sem chance de sair, o
que vier de pena depois é lucro pra nós. Não sairão de lá jovens.

Mônica foi uma das mulheres que chegou pelo aplicativo. Ela também foi abusada por Otávio
e Maurício. Todas as violentadas entraram com processo, mas apenas o da Aurora já foi julgado de
novo.

A vida dos dois na prisão não está nada fácil. Assim que foram presos, cada um em um local
diferente a pedido da promotoria, parece que sofreram agressão dos presos que são contra estupro.
Até entre os bandidos, há um senso moral sobre forçar alguém a ter relação sexual contra a vontade.
Sinceramente, achei foi muito justo.

Há alguns meses, Maurício entrou para um grupo de convertidos da cadeia e resolveu fazer
um acordo que diminuiu pouco da sua pena, mas segundo o novo advogado que o representa, lhe deu
paz de espírito. Desvinculado totalmente dos Baldez, o ex-comparsa do Otávio admitiu que estuprou
todas as meninas que denunciaram até agora e também disse que tiveram participação na morte do
Elton.

Aurora e meu pai estavam certos. O rapaz quis sair do grupo e foi intimidado por Otávio, que
usava a influência da sua família para fazer ameaças contra a família dele que estava em uma
situação financeira complicada.

Otávio deu bebidas e drogas para o garoto que já estava alcoolizado e o incentivou a pegar o
carro, sabendo muito bem que o resultado disso não seria bom.

Por enquanto, a pena de ambos foi aumentada por causa da Aurora e há a possibilidade de
aumentar ainda mais quando for encerrado o processo das meninas e a reabertura da morte do Elton.

— Minha mãe também falou comigo hoje — ela continua contando, concentrada em cortar o
pimentão em rodelas. — Ela disse que os Baldez fecharam a escola que eu tinha estudado e algumas
das lojas de roupas da região. Olha a ironia do destino: quiseram falir os meus pais durante meu
processo, e agora o senhor Otávio passa pela mesma coisa. O cara acredita que o filho é inocente e
todas nós estamos nos aproveitando do nome dele.

— Como diria Albert Einstein: “Duas coisas são infinitas: o Universo e a estupidez humana”
— comento e Aurora ri, pegando uma panela para fazer o molho.

Eu nunca imaginei que ver uma mulher cozinhando me faria suspirar dessa forma. Nem que
um dia eu ia amar tão intensamente que meu mundo ganharia outro sentido, além da paixão pelo
Universo.

Encosto no balcão para contemplá-la e me lembro de outra frase do Einstein que passei a
concordar: “O nosso destino está de acordo com os nossos méritos”.

No fim, tudo ficou exatamente como deveria ficar.


BÔNUS 2

5 anos depois

Caminho, boquiaberta, pela estrada de cascalho sem conseguir pronunciar uma palavra. A
paisagem é tão surreal e linda que eu não sei para onde olhar mais: se para o céu magnificamente
estrelado ou para os chalés e as centenas de árvores ao redor que presenteiam o chão com suas
folhas alaranjadas.

Dan e eu temos planejado tirar férias juntos para caçar auroras boreais há anos, mas nunca
dava certo por causa da nossa rotina de trabalho. Ou era eu quem não conseguia me ausentar por
muito tempo dos treinos, ou ele que precisava se dedicar mais ao trabalho na Nasa.

Demorou, mas não podemos reclamar. Tudo na nossa vida tem dado mais do que certo. Ele
continua na agência espacial, mesmo após o fim do seu período inicial de contratação, e eu fiquei um
longo tempo na lista das principais lutadoras da atualidade.

Justo este ano, que se tornará tão especial para nós, a providência divina colaborou para que
o nosso sonho desse certo. Acabamos de chegar a Yellowknife, um dos principais destinos no
Canadá para quem quer apreciar esse fenômeno da natureza.

Escolhemos a estação do outono porque o Dan não é fã das temperaturas extremamente


baixas. Temos acompanhado por meses o tempo nessa área para ter certeza de que teríamos chances
de encontrar uma aurora boreal. Hoje a probabilidade está alta, o céu está limpíssimo! Não vejo a
hora de escurecer mais e as cores despontarem no céu. Se não der certo, porém, temos mais treze
dias de caçadas. Meu objetivo de vida é conseguir ver uma por dia, seria épico.

— Parecia bonito pelas fotos, mas não faz jus à beleza presencial — meu marido comenta,
também boquiaberto, intercalando seu olhar para o céu e o seu redor. — Sabia que um lugar chamado
Aurora nunca iria decepcionar.

Pesquisando no Google sobre a viagem, Dan encontrou um espaço chamado Aurora Village,
que oferece em campo aberto cabanas no estilo indígena ou chalés para que os visitantes possam
aproveitar a aurora boreal no conforto da hospedagem. Ele não pensou duas vezes antes de reservar,
tanto pelo nome ser igual ao meu, quanto pela praticidade de ter um local quentinho para ficar.

— É perfeito amor, tenho certeza de que a viagem será memorável! — Entrelaço nossos
dedos, ansiosa para dar a notícia que tenho guardado há duas semanas para essa ocasião especial.

Subimos uma escadaria com o guia nos falando sobre o local e chegamos até nosso chalé:
uma casinha de madeira pintada de vermelho muito charmosa. Um outro funcionário já nos espera na
porta com as malas. Nós preferimos vir a pé para aproveitar a vista.

Arrumamos tudo o mais rápido possível e colocamos um casaco reforçado para nos sentar na
varanda e aguardar o espetáculo começar. Enquanto não vem, Dan e eu nos deliciamos em avistar
nossas constelações preferidas pelo binóculo que trouxe na mala.

As estrelas parecem tão grandes, que a sensação de poder tocar é mil vezes maior do que a
que tive na Pedra de São Francisco aquela vez. Lindo!

— Olha lá, amor! Uma mancha verde — Dan grita e eu dou um pulo no banco antes de
conseguir avistar onde seu dedo está apontando.

Foi rápido, um vislumbre passageiro. A aurora boreal pode levar poucos segundos acesa no
céu, ou longos minutos. Temos que ter paciência agora de ficar observando até o seu pico mais
intenso.

Duas horas depois da primeira aparição, e com pequenos flashes desde então, o céu explode!
Uma chuva de luz e de cores dança sobre nossas cabeças. O verde predomina os movimentos
rítmicos de vai e vem, nos deixando pasmos.

Se antes não conseguíamos dizer nada, agora só há espaço para as emoções. Dan e eu ficamos
paralisados, em choque com a vista por longos minutos. É... é mágico. Não tenho palavra melhor
para descrever o motivo da minha pupila estar congelada olhando para cima, meu rosto molhado
pelas lágrimas, meu braço arrepiado e meu coração retumbando no peito.

Nem o melhor efeito especial dos cinemas, ou a melhor câmera existente, conseguiria
reproduzir em sua totalidade a beleza e a intensidade de ver de perto.

— Meu Deus, é como se toda essa energia entrasse na gente e remexesse nosso corpo inteiro
marcando nossa alma com tamanha beleza — consigo comentar, com a voz embargada.

— É realmente impressionante, mas eu já sabia disso, porque essa mesma energia que você
comentou e estou sentindo, é o que acontece comigo toda vez que fito seus olhos coloridos. — Dan se
vira para mim e sorri, acariciando meu rosto. — É como ter uma aurora boreal todo dia comigo.

— Ai, Dan. Oito anos juntos e você ainda consegue me deixar sem palavras. — Mordo os
lábios e coloco a mão na minha barriga, ciente de que é a hora perfeita para deixá-lo sem palavras
também. — Eu te amo tanto, meu amor. Estou muito feliz que a gente esteja aqui... que seja neste
local que eu vou te dar a melhor notícia das nossas vidas. — Pego sua mão gelada e coloco em cima
da minha, ainda mais emocionada do que minutos atrás. — Nós vamos ter um bebê, Dan. Eu estou
grávida!
— Grá... grávida? De... de filho? Cria... criança? Fecundada aí... na sua barriga? — Sua voz
sai entrecortada, ansiosa.

— Sim! — Sorrio e o ajudo a fazer um movimento de cima para baixo na barriga ainda lisa.
— Eu confirmei há duas semanas, como vínhamos pra cá, quis contar em grande estilo. Você está
bem? Feliz com a notícia?

Apesar de estar bem mais apto a lidar com surpresas, por causa da terapia, algumas coisas
ainda deixam o Dan bem agitado.

Nós tínhamos falado de filhos antes, mas não havia pressa por sermos muito novos e com as
carreiras no auge. Foi uma surpresa a confirmação, no entanto, me deixou extremamente feliz. Já
brilhei muito no MMA, posso dar uma pausa agora para a maternidade.

— Feliz? — ele devolve a pergunta, aproximando-se mais de mim. — Eu estou com o


coração mais acelerado que no dia que nos beijamos, olhos coloridos. E isso diz muita coisa! Um
filho significa família, uma família com o amor da minha vida. É uma parte nossa que está aí dentro.

— É, sim, amor. Uma parte de nós dois, não vejo a hora de saber se vai ser uma mini Aurora
ou um mini Dan.

— Tomara que puxe você, a mulher mais linda do mundo. — Ele me abraça e posso sentir seu
coração realmente acelerado. — Também a mais corajosa, a mais bondosa e a mais compreensiva.

— E eu torço pra puxar você, o homem mais lindo, íntegro e inteligente que conheço.

— Temos que ver qual constelação está nessa direção agora, vou fazer um pingente pra mim
com o dia que descobri que serei pai. — Ele se afasta apenas para observar com atenção o céu que
já não tem mais o jogo de luzes e cores. — Assim que soubermos o sexo, escolhemos o nome do
nosso bebê e da estrela.

— Amei! — Passo a mão no meu pescoço, segurando o pingente que só tiro durante as lutas.
— O bebê vai adorar saber que tem uma estrela no seu nome.

— Quero mudar do apartamento para um lugar onde possamos construir uma casa na árvore
igual a nossa antiga. — Sua mente está agitada, imagino que deve estar pensando várias coisas ao
mesmo tempo. — Também precisamos ver uma conta poupança só para a criança, já tem que pensar
como vai ser a escola, a universidade... será que vai gostar de astronomia ou de MMA?

— Calma, Dan! — Sorrio, segurando sua mão, ele é muito fofo pensativo. — Uma coisa de
cada vez. Agora só precisamos nos preocupar em curtir nossa viagem. Está cedo para pensar na
carreira do nosso filho.

— Pode fazer sexo estando grávida? Nossa, nove meses sem você, eu não vou aguentar, não
— ele pergunta, preocupado, mudando de novo de assunto, e me faz soltar uma gargalhada.

Dan tem cara de quietinho, mas é um leão na cama. Fazemos amor praticamente todo dia, não
conseguimos ficar longe da pele um do outro.

— Não há nenhuma contraindicação de sexo na gravidez. Ao contrário, faz muito bem para a
mamãe.

— Então, se a gente entrasse agora na cabana pra comemorar que serei pai e que vimos uma
aurora boreal, seria bom?

— Seria perfeito, senhor Daniel Lima. — Puxo-o pela gola da blusa e deixo um selinho nos
seus lábios.

Sem mais delongas, Dan me agarra pelas pernas e me puxa para cima, fazendo-as enlaçarem
sua cintura. A boca dele me invade em um beijo intenso, enquanto caminha comigo no seu colo até a
entrada do nosso chalé.

Assim que estamos do lado de dentro, ele me vira bruscamente contra a madeira da porta e
força seu quadril no meu centro, permitindo-me sentir toda a excitação que causo nele. Sua mão não
sossega: ora apertando com ânsia minhas coxas, ora incitando meus seios.

Daniel tem uma tara nos meus peitos, não que eu esteja reclamando. Quando ele chupa com
veneração, eu posso jurar que alcanço as estrelas.

— Minha olhos coloridos, gostosa. Minha! Só minha — ele sussurra no meu ouvido e
aproveita para mordiscar o meu pescoço.

— Só sua, Dan. — Contorço-me no seu colo, quente, como se não estivesse segundos atrás no
ar gelado da noite.

Não querendo perder tempo, ele apressa o passo até a cama e me joga sem delicadeza no
colchão macio. Nessas horas, eu agradeço o chalé não ter nenhuma divisória que possa nos atrasar.
Todos os cômodos são em um espaço único.

Daniel vem para cima de mim e encaixa sua perna entre as minhas, inclinando-se para roçar a
barba no meu rosto e atacar novamente meus lábios. As mãos atrevidas logo alcançam a beira da
blusa e ele se infiltra por ali para poder brincar com a borda do meu sutiã.

Logo o tecido é arrancado de vez e meu sutiã aberto para o seu deleite. Estico os braços para
trás e seguro firme a cabeceira da cama, enquanto meu marido gasta todo tempo necessário para me
deixar pronta para ele.

Não que já não estivesse no segundo que me pegou no colo.


Dan primeiro acaricia com as mãos, sentindo o peso de cada mama, e em seguida lambe
lentamente a aréola e o bico. Depois vem as mordidinhas e enfim sua boca gulosa atacando cada um
com voracidade.

Gemo alto, adorando esse contato, e mexo as pernas buscando alívio no seu corpo que se
esfrega no meu. Estampando um sorriso sacana nos lábios, ele abre minha calça e tira o jeans junto
com a calcinha. Menos de um minuto depois, também está completamente nu.

Ele nunca tem muita paciência para a parte de tirar a roupa.

Sua barba desce roçando minha perna até que de repente me vira com tudo de bruços e
empina minha bunda na sua direção. Dan esfrega sua ereção ali só para me fazer gemer de novo,
doida para tê-lo dentro de mim.

Meu bumbum é apalpado e minhas costas alisadas com sua mão afoita. Quando percebe que
estou ficando molinha, meu marido leva sua mão para o vão das minhas pernas e verifica se estou
molhadinha.

— Ah, deliciosa! — elogia, passando o dedo em toda extensão antes de penetrar dois deles
de uma vez. — Está mais do que pronta.

Arfo, inclinando a cabeça para trás. É a deixa que ele precisava para apanhar uma mecha
entre seus dedos. Dan empurra meu corpo para a beirada da cama e fica em pé, roçando a cabeça do
seu membro na minha entrada.

Essa tem sido a posição preferida de nós dois. Daniel diz que fica muito excitado quando me
vê dessa forma, de costas para ele, com a cintura fina o bumbum rebolando em busca de alívio. Eu,
por outro lado, tenho orgasmos intensos quando perde o controle e me estoca com força, até o talo.

Sem conseguir mais continuar em preliminares, meu marido desliza dentro de mim, me
fazendo segurar com força o lençol. Seus dedos se afundam na carne macia da minha cintura à
medida que entra e sai com murmúrios que tomam conta de todo espaço.

Ficamos à beira do orgasmo com as arremetidas e reboladas, o desassossego dos nossos


corpos, mas Dan para antes que a gente chegue lá. Abro a boca para reclamar, mas nem dá tempo
porque logo ele se deita de novo na cama e me puxa para cima dele.

— Quero gozar olhando pra você, linda. Com você comandando, como faz com meu coração.

Suspiro, completamente apaixonada por esse homem, e obedeço ao pedido. Volto a encaixar
nossos corpos e apoio minhas mãos no seu peito para ajudar no movimento de subir e descer.

O desespero que estávamos se transforma em uma calmaria que faz meu coração disparar no
peito e meus olhos se encherem de lágrimas de felicidade. Não desviamos o contato nenhum
momento, posso sentir o seu amor tomando conta de cada parte do meu ser.
Dan sempre me viu muito além de prazer. Ele me enxerga de verdade e, o mais importante,
me trata com carinho e respeito. Tudo que uma mulher deseja, e que jamais deveria aceitar o
contrário.

Todas nós merecemos ser amadas por alguém assim.

Fim
AGRADECIMENTOS

Dever cumprido. Essa é a sensação que fica no meu coração após chegar ao fim da Série
Sentidos. Em 2019, eu comecei a trilhar uma mudança ímpar na minha carreira de escritora ao lançar
Inspire, o primeiro volume. Serei eternamente grata aos leitores e ao reconhecimento que essa série
me trouxe.

Temos uma Ariane escritora antes e depois dessas obras baseadas nos cinco sentidos
humanos. Então, eu só tenho que agradecer, agradecer e agradecer a Deus pelo dom das palavras, a
você que chegou até aqui e à minha família maravilhosa que sempre me apoia: meu marido,
Ednelson; meus filhos, Arthur e Matheus; meu pai, José Batista; minha mãe, Lúcia; e minha irmã,
Pollyana.

Para esta obra, tive uma ajuda muito especial da escritora Fernanda Santana, que foi
diagnosticada recentemente dentro do Espectro Autista. Muito obrigada por todas as ideias e
informações que me passou da sua realidade. Trouxe um toque único para o meu Dan!

Danielle Barreto, minha beta maravilhosa, encerramos a Série Sentidos com chave de ouro,
amiga. Obrigada por ficar comigo do começo ao fim e por trazer sua mãe Valéria Maria Barreto para
o Universo dos romances, nos brindando com seus conhecimentos de psicologia para a história.
Barbara, minha revisora preferida, obrigada por mais um trabalho maravilhoso.

Obrigada também aos advogados Marcelo Campos e Luciana Serpa por esclarecer tantas
dúvidas sobre processos de julgamentos no Brasil.

Por fim, e não menos importante, agradeço ainda o carinho das leitoras incríveis que fazem
parte do grupo Lindezas da Ari no WhatsApp e no Facebook; e as que me acompanham pelo
Instagram e no Wattpad. Obrigada por serem as melhores leitoras que um escritor poderia ter.
SOBRE A AUTORA

Oi, tudo bem? Meu nome é Ariane Fonseca, mas pode me chamar de Ari. Moro em Taubaté
(SP), com dois filhos e o marido. Tenho 31 anos, sou formada em Jornalismo e pós-graduada em
Gestão da Comunicação em Mídias Digitais. Apaixonada por livros desde criança, decidi em 2017
criar minhas próprias histórias no Wattpad.

Quero convidá-la a conhecer outras obras minhas, todas são recheadas de emoção, amor,
sensualidade e reviravoltas de deixar o coração pequenininho.

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