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1
O Tight End (TE) é uma posição ofensiva do futebol americano. São
jogadores mais fortes e versáteis e, às vezes, são os últimos homens na linha
ofensiva. Possuem duas funções no campo: bloquear e receber passes.
Ela estava exatamente como eu me lembrava dela. Tão parecida
com a primeira vez que a vi, que quase trouxe lágrimas aos meus
olhos.
Já fazia muito tempo. Tanto tempo que, se não fossem pelos
meus cadernos de esboços, eu teria jurado que a inventei, que
ela era um fruto da minha imaginação, construída para me
ajudar a atravessar os dias mais sombrios da minha vida.
Mas aqui estava ela, em carne e osso. Respirando e me
encarando com o mesmo ódio e raiva que ela demonstrou da
última vez que a vi. Mas antes daquele dia fatídico, quando eu
parti seu coração e o meu, ela era a garota de quem eu não
conseguia desviar meus olhos.
2
Quarterback (QB) é a posição mais famosa do futebol americano. É o
armador das jogadas, o cérebro do time e responsável pela tática de cada avanço
da equipe. Sua função é dar início às jogadas, fazendo passes e comandando a
distribuição da bola.
Olhando para mim estava um par de olhos que eu não via
há mais de dez anos. O triste olhar da minha mãe encontrou o
meu através do vidro estilhaçado no porta-retrato lascado.
Deixei cair o capacete e deslizei da bancada de trabalho para
o chão. Minhas laterais estavam gritando, doendo, queimando.
Virei o porta-retrato mutilado e resgatei a foto. A vergonha
rasgou meu peito. O latejar maçante do hematoma em minhas
costelas não se comparava ao nó em minha garganta.
Sacudindo a névoa e me levantando, como se tivesse
rompido as raízes que brotaram dos meus pés, examinei o resto
dos danos. O vidro cintilou na luz oscilante e suspensa da
garagem e tilintou no chão de concreto.
Mesmo em uma fúria cega, meu carro havia sido poupado
do peso da minha raiva. Alguns arranhões, mas nenhum dano
real que eu não pudesse consertar sozinho. Peguei a vassoura e
limpei o vidro, pedaços de madeira lascada e metal dobrado e
retorcido. Ao contrário do meu coroa, eu limpava minha
própria bagunça. O raspado e a chuva de vidro na lata de lixo
eram os únicos sons na garagem. O que eu tinha ouvido antes?
Ninguém ficou ferido. Repeti o mantra em minha cabeça.
Meu pai não se importava com a descarga de suas frustrações
por sua vida fodida – ou seja, eu. É o que acontece quando você
é a razão pela qual a esposa de alguém foi tirada dele.
Pelo menos eu só desconto minhas merdas em objetos
inanimados. Eles não se machucavam ou sangravam, não que
ele se importasse.
Eu conseguia decifrar agora. Música.
O som recomeçou, mais alto desta vez. Não era o rádio de
alguém. A melodia começou e parou, como um carro que não
tinha uma chave na ignição há muito tempo. Atraído por um
tranco no meio do meu peito, puxando-me com um cordão
que eu não sabia que tinha, caminhei até os fundos da garagem.
Abri a porta que dava para o quintal. Protegendo meus
olhos dos últimos suspiros do sol poente, procurei a origem.
Estava vindo do meu quintal. Correção – do quintal dela.
Bay Bishop sentou-se em seus degraus dos fundos com os
olhos fechados, balançando enquanto seus dedos levantavam e
dedilhavam as cordas como se nada pudesse apressá-la através
da melodia. Mas não foi seu jeito de tocar violão que me tirou
da névoa de raiva.
Com o queixo inclinado em direção ao céu, sua voz ecoou
por nossos dois quintais. Seu cabelo estava solto, diferente do
rabo de cavalo que ela sempre usava. Ondas de cabelo pintadas
espalharam-se por suas costas. Um moletom enorme engoliu
metade de seu corpo. O violão estava em seu colo coberto por
um jeans.
Seu pé esquerdo batia com o ritmo e ela balançava junto
com a melodia.
As letras estavam perdidas ao vento, mas o poder de sua voz,
doce e forte, poderosa e vulnerável, me atingiu com força.
Embora ela tivesse vindo para a cidade alguns anos atrás, sua
mudança para a casa vazia atrás da minha era nova, pouco antes
do início do nosso último ano.
Eu não havia dito mais do que algumas palavras para ela
desde que se mudou para a cidade, embora tivéssemos
compartilhado duas aulas todos os anos desde o nosso segundo
ano. Tivemos alguns projetos em grupo, mas como sempre
acontecia, alguém entrava para assumir o controle, acumulava
todas as informações e depois reclamava que ninguém mais
contribuiu. Não que alguém esperava que eu o contribuisse,
então me sentava e os deixava enlouquecer enquanto eu
repassava o livro de jogadas do meu próximo jogo na minha
cabeça.
Bay nunca me tratou como um idiota sem cérebro. Ela
nunca me tratou como nada. Nunca tinha falado diretamente
comigo.
O que diabos significava isso? Seis aulas em três anos e
nenhuma frase? A maioria das pessoas disputavam minha
atenção.
Ela acenava ou balançava a cabeça, mas eu nem sabia se ela
já havia dito uma palavra para mim.
Eu inclinei a vassoura contra a porta e limpei os nós
ensanguentados dos meus dedos em minha calça jeans. O
latejamento aumentava a cada batimento cardíaco. Eu
precisava colocá-los no gelo, mas não conseguia sair do meu
lugar.
A inclinação e a queda entre nossos quintais significavam
que a cerca era mais uma linha divisória do que uma barreira de
privacidade. Seus degraus dos fundos eram claramente visíveis,
quase elevados, como se a Mãe Natureza estivesse lhe dando
uma plataforma para se apresentar.
Ela nunca esteve aqui antes. Eu não teria ignorado sua voz.
Era quente e cheia, e envolveu-se em mim me atingindo no
meio do peito. Uma abordagem pós-bandeira.
De pé na entrada, eu precisava fechar a porta. Meus dedos
agarraram a borda da madeira lascada e castigada pelo tempo,
mas eu não conseguia tirar os olhos dela. A música estava cheia
de esperança e anseio por um tempo melhor. Um tempo mais
feliz. Embora parecesse que eu nunca tive aqueles dias
ensolarados sem preocupações, a música dela me fez acreditar
que tive. Criou memórias de um passado que eu nunca vivi, e
me deixou esperançoso de que talvez houvesse um lugar onde
eu encontraria paz.
Ela sorriu, quase rindo enquanto a letra jorrava dela.
Repetiu o refrão novamente, voltando a ele, tentando
encontrar o próximo verso. Eu poderia ouvir as palavras em
repetição pelos próximos cem anos. Ela parou, olhou para
baixo para o caderno ao lado dela e depois para cima.
Fechando os olhos, ela reiniciou com o refrão. Seus dedos
dedilhavam as cordas, começando e recomeçando.
A pausa na música enviou uma onda de desejo através de
mim. Meus dedos latejavam junto com meus braços e minha
lateral.
Eu ansiava pela próxima nota. Precisava disso como eu
precisava de minha próxima respiração.
Seus olhos se abriram e ela congelou, olhando para mim.
Eu havia sido pego. De alguma forma, isso era pior do que
se eu acidentalmente a pegasse se trocando em seu quarto.
Uma forte buzina rompeu a chamada hipnótica da melodia
enrolando profundamente em meu peito. Cortou a conexão
como alguém cortando uma linha de energia com um conjunto
de alicates.
Retirei meus dedos da moldura da porta e me afastei dos
sons que estavam agitando algo que eu não conseguia nomear.
Batendo a porta, eu afastei os sentimentos que percorriam
meu corpo. Peguei minha jaqueta do chão e corri para fora.
— Por que diabos você demorou tanto? — Knox bateu no
capô de seu carro.
— Você buzinou há menos de vinte segundos.
— São vinte segundos do horário nobre para beber. — Ele
deslizou de volta para o carro pela janela do lado do motorista
e acelerou o motor. Knox – sempre pronto para a porra de uma
festa – Kane não era conhecido por sua sutileza.
— Tenho certeza que você vai compensar isso. — Eu subi
para o banco do passageiro.
O carro se afastou do meio-fio uma fração de segundo
depois que meu pé saiu do asfalto.
— Eu tenho a merda da certeza que vou. — Ele bateu o
punho contra o teto e gritou pela janela, balançando a cabeça.
Eu agarrei o volante, nos endireitando na estrada.
— Ô bundão, você poderia não nos matar antes de
chegarmos lá?
Ele caiu de volta em seu assento.
— Uma temporada invicta. Quatro vezes campeões
estaduais. Somos deuses! — Ele gritou pela janela aberta.
— Deuses que podem se machucar e sangrar. — Eu bati
meu punho em seu ombro. O hematoma no meu lado
esquerdo irá evoluir durante a noite, e a cor escurecerá sob a
minha camisa minuto a minuto, como todas as outras. A
adrenalina ainda estava correndo pelo meu corpo,
desacelerando a dor que se aproxima da superfície, mas em uma
hora, ficar de pé será uma droga. E o treino amanhã será brutal.
— Jesus. — Ele olhou e esfregou o ombro. — Não estamos
mais em campo. A temporada acabou.
Meu estômago deu um nó, se torcendo em um laço irritado.
Tinha acabado. Minhas chances de ser convocado estavam
diminuindo e diminuindo a cada dia. Que melhor maneira de
me preparar para o meu desamparado desaparecer no
esquecimento do que com uma festa explosiva onde todos
acordarão na manhã seguinte orando pela morte?
Pelo menos com o fim da temporada, o time não teve que se
arrastar para o campo para praticar e vomitar duas vezes
durante os aquecimentos, onde o treinador nos fez correr de
costas enquanto bebíamos suco de picles. Não, seria apenas eu.
O futebol americano da primavera era para os futuros
alunos do último ano, mas eu estarei bem ao lado deles,
agarrando a última luz no fim do túnel que escurece
lentamente.
Ele inclinou a cabeça e sorriu para mim.
— Você é louco pra caralho. Apenas nos leve para a festa
inteiros.
3
Na versão original se torna um jogo de palavras com tight end, entre a
posição de futebol americano (de mesmo nome) e tightest end (que se traduziria
para alguém com uma defesa ou “final” mais apertado.
receiver4 incrível para melhorar seu jogo de arremesso. Ele
assinou as cartas, mas as ofertas de outras universidades
continuaram ficando cada vez melhores.
Knox murmurou um agradecimento para mim, com
Bethany empoleirada em seu colo. É melhor ele nunca dizer
que eu não faço nada por ele.
Como um tight end, proteger meu quarterback e abrir um
buraco na linha defensiva para que o tailback5 faça suas funções
fez a maioria das pessoas pensar que as faculdades estavam
derrubando portas para me pegar. Eles não estavam – não mais.
O fogo em meu estômago queimou. Meus ossos latejavam. Em
toda a minha carreira no futebol, perdi um jogo. Um jogo há
um ano. O único jogo que parecia importar e eu o passei
cuspindo sangue no chão do banheiro.
Eu ficarei preso nesta cidade de merda para sempre. Todo
meu papo sobre partir em alguns meses fez a ansiedade disparar.
Eu não poderia ficar em minha casa por muito mais tempo. O
impulso de ir embora me dominou. Quem se importava com
um diploma do ensino médio? Mas esses foram meus últimos
4
Wide Receiver (WR) é uma posição ofensiva do futebol americano. São os
recebedores e os jogadores chave na maioria das jogadas para pontuações. Sua
função é correr rotas (longas ou curtas) e receber o passe que o QB lança. Precisam
ser velozes, normalmente sendo os mais rápidos da equipe.
5
Tailback (TB), ou como é mais conhecido Halfback (HB) é uma das duas
posições em que o Running Back (RB) se divide. O RB é o corredor. Recebe a
bola do quarterback nas jogadas terrestres e tenta percorrer o maior número de
jardas possíveis. O TB é o mais rápido e mais ágil. Consegue ganhar mais jardas
na corrida.
dois meses para ficar frente a frente com qualquer recrutador.
Ser um jogador não-recrutado tentando entrar em times não
funcionaria, já que fui rejeitado na maioria das faculdades nas
quais me candidatei como aluno regular. Esta era a minha única
saída. Minha única chance de não acabar sendo um cara que
costumava ser alguém no ensino médio.
A prova de que eu não me tornaria apenas alguém que
acabaria bebendo até a morte prematura, se as pessoas ao seu
redor tivessem sorte, descarregando sua raiva por uma vida
fracassada em qualquer um que estivesse perto. Eu não seria
aquele filho da puta amargo para o qual ninguém dá a mínima.
Eu vou encontrar uma maneira de ir embora e provar que não
sou nada como ele e nunca serei.
Pegando um engradado com seis cervejas da geladeira, saí
para o quintal.
A onda de frio estava de volta. A primavera tentou fazer um
avanço, mas o inverno não queria saber de nada disso. Minha
respiração parou na frente do meu rosto, cortando através da
minha camisa térmica.
— A festa é lá dentro, Dare. — Bennet deu a volta pela
lateral da casa com o braço em volta de um dos destaques do fã-
clube de futebol americano. O cabelo dela estava grudado na
lateral de sua cabeça e a braguilha dele estava abaixada. Lá se vai
meu momento de silêncio.
— Eu sei, só estou pegando um pouco de ar. — Eu bati a
borda da garrafa na escada atrás de mim. A tampinha dela voou
e desapareceu entre a abertura do deck de madeira.
— Quando vamos festejar na sua casa? Você está
escondendo-se de nós nesta temporada. Logo é a sua vez.
— Tenho estado ocupado. — Eu também precisava
consertar os buracos na sala de estar, no corredor e nas paredes
do banheiro antes de deixar alguém ir lá.
Mas minha participação no festival de bebidas para menores
não foi um pedido. Era esperado que eu interpretasse o
coordenador de festas antes de nossa graduação em 3 de junho.
A data estava gravada em minha mente. A data em que perdi
tudo.
Quando o quarterback também era filho do treinador, o
treinador que era minha única chance de escapar, ele se safou
falando muito mais merda do que qualquer outra pessoa. Seu
braço era um canhão, mas sua boca também. Ele foi agarrado
no segundo ano, assim como eu. Só que sua rota de fuga não
havia sido bloqueada por um caminhoneiro alcoólatra com um
gancho de direita perverso.
O rodízio de festa passou por todos cujos pais nunca
estiveram em casa ou não davam a mínima, o que significava
que eu já havia sido anfitrião e feito minha parte este ano.
Eu voltei para dentro. Uma cabeça limpa era uma coisa
perigosa. Eu visualizava jogadas em minha cabeça, penetrando-
as até que os movimentos estivessem enraizados em meus
músculos e eu pudesse executá-los até dormindo. Em algumas
semanas, eu não teria futebol. Eu estaria acabado. Esquecido
aos dezoito anos.
Quatro horas, três cervejas e duas parceiras de dança depois,
após passado o tempo de presença determinado, procurei por
Knox. E eu o encontrei, dormindo em um dos quartos com
Bethany. Pelo menos um de nós estava tendo uma boa noite.
Na frente da casa, fechei o zíper da minha jaqueta e olhei
para a rua. A caminhada não seria tão ruim. A dor em minha
lateral e braço seria mortal no treino de amanhã.
— Dare, você precisa de uma carona? — Um dos caras do
time gritou.
Os cinco quilômetros pareciam muito mais longos quando
havia uma carona quente e rápida ao meu alcance.
— Sim, obrigado.
Dez minutos depois, subimos a colina até minha casa.
— Essa é a nova garota? — O jogador da linha defensiva
olhou pela sua janela.
Bay? Disparei o olhar para a janela.
Ela descia a rua se afastando de sua casa.
Eu verifiquei a hora. Onde diabos ela estava indo de bicicleta
à uma da manhã? Não era para a festa que eu havia acabado de
sair.
Ela nunca tinha nem passado por uma festa em que estive
desde que ela se mudou para Greenwood.
Seu casaco balançou atrás dela. As luvas rosa se destacaram
contra a noite escura como breu.
A pergunta rodopiou mesmo depois que cheguei em casa.
A quietude da casa me confortou. Sem Sports Central
berrando na televisão. Sem garrafas de licor barulhentas ou
roncos estrondosos. Até mesmo o cheiro de álcool de cereais
estava se dissipando da poltrona reclinável quebrada. Abri as
janelas para arejar o lugar. Apenas um silêncio feliz.
A melodia de mais cedo voltou para mim. Aquele que tinha
sido fácil de abafar com graves fortes e idosos bêbados fazendo
o seu melhor para recriar todos os filmes adolescentes que já
tinham visto em uma noite.
Olhei pela minha janela para a casa escura atrás da minha.
Ela havia escapado pela janela dela?
Uma garota como Bay deveria ter fechado seus livros
escolares e ido dormir sem pensar no caos induzido pelo álcool
que estava acontecendo do outro lado da cidade.
Uma garota como Bay tinha uma voz que podia explorar
emoções que eu nem sabia que era capaz de sentir e me fazia
ansiar por elas como um viciado em busca de sua próxima dose.
Uma garota como Bay não gostaria de ter nada a ver com
alguém como eu. E eu precisava manter distância de uma garota
assim.
Então, o que diabos uma garota como ela estava fazendo
andando de bicicleta para longe de casa tão tarde da noite?
Deitei na minha cama, olhando para o teto.
Ela desaparecia em segundo plano, nunca querendo que
ninguém prestasse atenção, mas havia uma voz dentro dela.
Não apenas aquela com a qual ela cantou, mas a melodia que
bateu no meu peito como o passe perfeito de 45 metros. Ela
poderia tentar se misturar, mas se alguém mais a ouvisse cantar
uma única nota, nunca a esqueceria. Em menos de três minutos
ela me fez sentir coisas assustadoras das quais eu deveria fugir.
Por que a necessidade de saber quais outros segredos ela
escondia me deixou todo confuso depois de uma única música?
Fechando a porta dos fundos atrás de mim, deixando o calor do
nosso aquecedor sobrecarregado para trás, sentei-me e repousei
a guitarra Martin do meu pai em meu colo. Não era para ser
abril?
O primeiro indício de um clima não-absolutamente-merda
e eu precisava sair. Tempestades de neve bizarras, chuvas
geladas, granizo, ventos fortes e chuvas intensas haviam se
estendido pelo inverno profundo muito além de quando eu
esperava por um raio de sol quente.
Os mendigos não podiam escolher. Pelo menos o chão não
estava encharcado.
Eu pulei com Mamma Mia tocando estridentemente no
meu celular.
— Ei mãe.
— Ei querida. Meu turno está prestes a começar, mas eu
queria que você soubesse que há um prato...
— Para mim na geladeira. Eu sei, mãe. Estamos fazendo isso
há meses. Mesmo que você não tivesse deixado jantar para mim,
eu mesma poderia fazer. A faculdade começará em menos de
seis meses. — Seis longos meses.
— Por que você está me lembrando disso? Está tentando me
matar?
— Pense na liberdade quando eu não estiver por perto para
mantê-la presa a este lugar.
— Só vai deixar a casa mais vazia. Quais são seus planos para
hoje à noite?
— Dever de casa. Talvez assistir um pouco de televisão. —
A culpa bateu em meu peito, mas mantive minha voz firme.
— Parece que você está do lado de fora.
Droga, fui pega.
— Eu tive que tirar o lixo.
— Tudo bem. — Ela prolongou as palavras como se eu fosse
quebrar se tivesse mais de três sílabas. — Fique segura e
certifique-se de que você...
— Tranque a porta antes de eu ir para a cama. Sim, mãe. Eu
sei. Estarei sozinha no próximo ano. Você não precisa se
preocupar. Tenha um bom turno e te vejo de manhã. Te amo.
— Te amo.
Havia uma pontinha de suspeita em sua voz. Ser pega
voltando para casa às 3 da manhã, seis meses atrás, pode ter tido
algo a ver com isso. A culpa foi minha; nunca mais saí antes das
onze da noite. Se havia um problema com o turno dela, sempre
acontecia antes disso. Então, esperar significava menos chance
de ser pega. Também significava que às vezes eu aparecia na
escola parecendo chapada e pouco coerente. Tive sorte de
nenhum dos meus professores ter me enviado a sala do
orientador para uma conversa.
Nós duas tivemos que nos adaptar à nova vida em que nos
encontramos, vivendo em um novo estado sem meu pai. E
ainda estamos nos adaptando. O desafio interminável de
descobrir o que diabos era essa vida não diminuiu nem um
pouco. Quatro mudanças em quatro anos. Pelo menos eu
fiquei na mesma escola pelas últimas três mudanças cruzando a
cidade. Eu ainda não tinha certeza se era uma bênção ou uma
maldição. Pelo menos a casa nova reduziu a viagem para
quarenta minutos quando eu saio escondida. Eu fiquei de
castigo duas vezes, mas isso não me impedia. Especialmente
desde que me senti à beira de um avanço. Eu estava tão perto
de finalmente superar os sons paralisados que ficavam presos
em minha garganta antes de engoli-los novamente.
— Eu também te amo, querida.
A culpa corroeu meu peito como um texugo selvagem.
Meus dedos deslizaram pelas cordas, trazendo à tona aquele
som chiado.
Eu puxei minhas mangas ainda mais para baixo, cobrindo a
maior parte das minhas mãos. Com o sol desaparecendo atrás
da minha casa, o frio da noite tornou-se ainda mais gelado.
Os porta-retratos estavam pendurados na parede perto da
porta. Nesta casa havia espaço suficiente para exibir todos eles
e o proprietário estava de boa com furos de pregos nas paredes.
Na primeira moldura de madeira de cerejeira estávamos eu e
meus pais. Eles me fizeram usar um chapéu de cone de festa
rosa, mesmo que eu estivesse fazendo treze anos. Desde então,
recriamos a foto todos os anos. O que está abaixo é só eu e
mamãe com dois bolos gigantes nos formatos dos números um
e oito. Nosso diretor de teatro zombou de mim por aparecer
com um bolo gigante do número oito. Mas todos na equipe de
palco e no clube de teatro o devoraram em minutos.
Eu encarei a última foto na fileira inferior. Foi uma das
últimas fotos de nós três juntos. Ele teria quarenta e um hoje.
Normalmente, no aniversário dele, mamãe e eu escolhíamos
um bolo juntas e encontrávamos o pior presente, geralmente
personalizado com “Melhor Pai do Mundo”. Ele o abria e o
bajularia como se fosse o melhor presente que já tivesse
recebido.
Antes de hoje, mamãe havia trabalhado em turnos
consecutivos de 12 horas. Ainda mais do que o normal. Ela
sempre ficava assim quando o clima de inverno ficava preso no
limbo da mudança sazonal e o dia se aproximava como o degelo
de uma geada.
Ela cairia em um sono imediato após o banho. Se ao menos
todos nós pudéssemos ter tanta sorte. Era mais difícil dormir
agora. Havia um zumbido constante na parte de trás da minha
cabeça, como se eu tivesse deixado o forno ligado ou a porta da
garagem aberta. Abrindo meu armário, pesquei a única coisa
para acalmar a estática em meu cérebro. A familiar sensação
ranhurada da alça desgastada do estojo acalmou o ruído, mas
não o parou completamente.
Incapaz de questionar a mim mesma, peguei o violão e o
trouxe aqui. O grão escuro da madeira contrastava com o corpo
suave e claro. As laterais de mogno tinham alguns arranhões e
saliências da época do meu pai arrastando essa coisa de show em
show e de estúdio em estúdio. Às vezes eu começava a
acompanhá-lo, sempre passando minhas mãos pelas cordas e
sorrindo para o minúsculo som antes que ele me sentasse em
seu colo e me ensinasse a tocar.
Descansei minha testa contra o lado liso do corpo. Meus
dedos instintivamente foram para suas posições nas cordas. O
metal atingiu minha pele. Os calos duramente conquistados ao
longo de anos de prática haviam suavizado nos quase 36 meses
desde que eu peguei o violão dele – meu violão agora.
Enchendo meus pulmões de ar, deixo tudo de lado. Meus
batimentos cardíacos, os grilos cantando e o dedilhado lento
das cordas, meu único foco. Eu caí no ritmo da música,
deixando as notas me trazerem de volta a um tempo anterior,
quando eu não sabia como era perder alguém. Depois de três
anos, eu finalmente consegui segurar o violão. Agora eu
precisava tocar.
Cantando na escuridão, minha voz era carregada pela brisa
suave. Eu estava enferrujada, mas a letra saiu de mim como uma
cachoeira imparável. Pega-pega no quintal. Café da manhã de
domingo com panquecas Marky Mouse – o primo
ligeiramente desfigurado do Mickey. Os Mickeys sempre saíam
um pouco instáveis, e você não sabia dizer se estava olhando
para um rato de duas cabeças compartilhando uma orelha ou
duas orelhas incrivelmente desproporcionais em uma pobre
cabeça torta de rato. As horas em que ele se sentou comigo,
nunca ficando com raiva ou desistindo, me ensinando a tocar.
Eu te amo, pai.
As palavras fluíram por mim. Através do meu olhar
semicerrado, uma figura se moveu. Eu podia sentir o calor do
olhar em mim. Normalmente, era quando minhas cordas
vocais fechavam, mas eu continuei, focando nessas palavras e
na figura sombria me observando. A última nota ecoou e eu
abri meus olhos completamente para ver quem havia se
intrometido em um momento que ninguém mais tinha visto
durante anos.
Pisquei de volta as lágrimas acumulando nas bordas das
minhas pálpebras. A represa não havia estourado, mas uma
válvula de escape havia sido aberta, deixando a tempestade
turbulenta de emoções em minha cabeça se acalmar para que
eu pudesse respirar e pensar.
Por cima da cerca, seu movimento desfez a sombra
projetada ao seu redor como se ele tivesse se tornado uma parte
da garagem, parado e focado.
Minhas costas se retesaram e eu encarei a figura me
observando no escuro.
Dare.
Sua forma realçada por sua camisa de manga curta foi
iluminada na porta escura retroiluminada por uma única
lâmpada pendurada na garagem. Bíceps suavemente
bronzeados pressionados contra o batente da porta. Ele se
encaixaria perfeitamente em qualquer time universitário que o
recrutasse. Coloque-o ao lado de um veterano da faculdade e
poucas pessoas poderão perceber a diferença. Da sombra das
cinco horas ao olhar penetrante, Dare nunca havia conhecido
um oponente que não pudesse enfrentar.
Ele foi esculpido, de uma maneira tipo “vou falar manso
com você com os nós dos meus dedos ensaguentados”. Ele era
o epítome de garoto do outro lado dos trilhos, só que em vez de
uma motocicleta, ele dirigia um carro esporte antigo.
Tínhamos vivido um ao lado do outro por mais de seis
meses e esta foi a primeira vez que ele olhou para mim. Bem,
não é a primeira vez. A primeira vez foi com um nível diferente
de intensidade, cortante e duro. Desta vez era outra coisa...
Meu estômago embrulhou. As asas batendo aqui dentro
não eram borboletas. Talvez beija-flores ou pardais – muito
maiores do que o bater suave das delicadas asas de uma
borboleta.
Seu olhar cravou no meu cruzando ambos os quintais, e
então ele se foi. A batida da porta da garagem ecoou em nosso
bairro quase silencioso.
Olá para você também, vizinho. Nada mudou desde a
primeira vez que coloquei os olhos nele.
Pegando meu violão, olhei para o céu noturno. A
combinação nublada e escura ameaçava chover a qualquer
segundo. Um final adequado para um dia já emocionante.
De volta para dentro, peguei meu jantar e fui para o meu
quarto.
Eu rabisquei mais algumas linhas em meu caderno.
Repassando novamente por alguns versos, esperei que esses
sentimentos viessem até mim.
Eu cantei para Dare. Bem, não tecnicamente para ele, mas
eu cantei enquanto ele estava lá. No fundo eu sabia que era ele,
mesmo antes de assumir toda a sua forma. Por que consegui
cantar na frente dele?
Eu sonhava com música, mas os sonhos eram tudo o que eu
podia ter quando não conseguia nem cantar na frente de mais
ninguém. Todas as vezes que tentei, não conseguia nada, até
esta noite. Eu esperava deixar meu pai orgulhoso por viver seu
sonho; em vez disso, fui relegada a viver seu caminho seguro.
Eu olhei para as fotos na minha mesa. Nossa pequena
família feliz agora enfraquecida. E, em alguns meses, eu
também terei ido embora.
6
A Garota Nova.
Apertei minhas mãos em volta do guidão. Mais três meses.
Eu só tinha que aturar essa merda por mais três meses. Por
alguma razão estúpida, pensei que poderia tentar participar do
show de talentos no meu primeiro ano aqui. Cantar uma
música para meu pai. Para mostrar a ele que ele não estava
errado a meu respeito e eu poderia fazer isso.
O plano era me jogar no palco e forçar a música a sair de
mim. Aquilo foi um fracasso, e o calor das chamas da
humilhação continua lambendo minha nuca três anos depois.
Eu fugi do palco. E eles nunca me deixaram esquecer,
cimentando meu novo não-nome quando alguém rabiscou
AGN em meu cartão de introdução. E então isso pegou.
Os grupinhos se posicionavam e se enfeitavam ao lado de
seus carros até que o último sino tocasse. Eu dormi além da
hora na esperança de pegar uma infecção estomacal, ou
possivelmente Ebola, e não precisar ir para a escola hoje.
Eu teria que passar no meu armário antes da aula, o que
significava que ficaria presa na multidão do corredor enquanto
todos se lembravam porquê estávamos realmente aqui neste
prédio de blocos de concreto dos anos 70 com aquecedor que
mal funcionava em uma manhã de segunda-feira.
Carros novos e velhos entraram em fila no estacionamento.
Parecia que eu não era a única atrasada hoje. A última fileira era
reservada para o time de futebol americano. A mais distante do
prédio e a mais próxima do campo de futebol.
Eles riam, se cumprimentavam e jogavam bolas de futebol
americano como se não tivessem tempo de bola suficiente
durante os treinos e jogos. Meu olhar passou por eles, o medo
correndo pela minha espinha de que eu travasse os olhos com
Dare. Mas por que ele iria querer ser pego olhando para a
AGN?
Estacionei, prendi minha bicicleta com um cadeado e fui em
direção a escola, deixando a equipe dos Greenwood Grizzlies
para trás. O corredor foi decorado com faixas e panfletos para
todas as atividades de fim de escola. A viagem do último ano,
musical de primavera, baile de formatura, show de talentos de
fim de ano. Mas as maiores faixas eram para o jogo de futebol
americano pós-temporada dos Bedlam Bowl, de jogadores do
terceiro ano contra os do último7, que ocupava mais espaço do
que qualquer outra atividade escolar, embora fossem jogos
amistosos entre nosso próprio time. Isso é o quanto eles
dominavam esta escola. Suas práticas obtiveram faturamento
superior a todos os outros.
Girei a trava de combinação da fechadura do meu armário.
De repente, alguém se chocou contra minhas costas, batendo
minha testa contra o metal pintado.
Empurrei meu corpo para trás, esfregando minha testa. Eu
me virei, mas quem quer que tenha sido se misturou com o
7
O Ensino Médio nos Estados Unidos tem a duração de 4 anos,
diferentemente do Ensino Médio do Brasil, que tem a duração de 3 anos.
resto da escola que se espalhava pelos corredores. Não sei o que
era pior, que alguém tenha feito isso de propósito ou que eu
nem mesmo importava o suficiente para ser registrada em seu
radar de objetos a evitar.
Eu abri meu armário. No final do corredor as pessoas se
separavam. Sem se curvar ou abanar com folhas de palmeira?
Que surpresa. As cidades pequenas amavam seus esportes e um
time esportivo vencedor? Era chocante que não houvesse uma
exigência de pétala de rosa e glitter. Mesmo depois de três anos
nesta cidade, a idolatria aos heróis nunca deixava de me
confundir completamente.
Na frente da matilha, Dare caminhava com uma confiança
que alguns dos professores nem mesmo possuíam. Ele não era
o quarterback – Bennet nunca deixava ninguém esquecer sua
posição no time –, mas isso não impedia as pessoas de
bajularem Dare.
Eu me virei, vasculhando meu armário. O dever de
matemática de hoje que terminei na semana passada e guardei
aqui não estava na minha pasta de matemática. Uma ponta do
papel ficou para fora da lacuna quase imperceptível ao longo
da lateral do meu armário. Usando os dedos de pinça, mordi
minha língua, concentrada em retirar o papel sem rasgá-lo.
Refazê-lo antes da aula não era uma opção. Não tinha tempo.
Por que estávamos sendo designados para trabalhos reais nesta
altura do campeonato? Todo mundo já não havia enviado suas
inscrições?
— Jaquetas esportivas para o desfile de hoje, hein? — Os
armários balançaram enquanto Piper deslizava para seu lugar
ao meu lado. O desfile do corredor de jogadores de futebol
americano era uma tradição não-oficial da Greenwood Senior
High. Cada jogador recebia uma jaqueta esportiva azul-
marinho e amarela no início da temporada. Uma dessas elevava
qualquer um na estratosfera social da escola em pelo menos dez
degraus. Os jogadores nem mesmo deixavam suas namoradas
usarem.
Eu cometi o erro de andar pelo show de pavão da hierarquia
social no meu primeiro dia aqui e quase fui atacada pelas capitãs
das líderes de torcida. Não foi o pior momento do meu
primeiro dia, quando eu apareci ainda com os olhos inchados,
três dias depois do funeral, e determinada a me distrair da nova
realidade que parecia estranha demais para ser absorvida.
As líderes de torcida de Greenwood ficavam orgulhosas,
ocupando as posições laterais um pouco atrás dos caras,
fazendo poses enquanto eles desfilavam pelo corredor.
Exatamente como faziam em eventos da escola, com os sorrisos
plastificados que escondiam suas forças mais sinistras de
pessoas-lagarto.
— Novas em folha. — Ela empurrou seus óculos mais para
cima, cerrando os olhos através das lentes que ampliavam eles
para parecerem gigantescos. Ela brincava dizendo que ficando
ao meu lado, o dela fazia o meu parecer chique.
— Como você sabe? — Coloquei meu dever de casa em
segurança na pasta da minha classe.
— São as jaquetas de campeonato compradas a tempo da
cerimônia de troféu em algumas semanas. Eles conseguiram um
segundo lote de novas jaquetas depois do campeonato do ano
passado também. Onde você esteve?
— Desculpe, não estou atualizada sobre todas as minhas
fofocas do Greenwood Athletics. — Peguei o resto dos meus
livros do meu armário e o fechei, girando a combinação da
fechadura. — Você deixa a equipe de palco com trinta farpas
por dia por reaproveitar madeira compensada dos anos 80 para
cenas e corro o risco de uma leve eletrocução toda vez que corro
a placa de som para as peças, mas os trinta caras do time de
futebol americano merecem jaquetas esportivas novas duas
vezes por ano.
Seus dedos apertam meu braço.
— Dare está olhando para cá.
— Não, ele não está. — Por favor, não deixe que ele esteja
olhando na minha direção. Enviei minha oração silenciosa ao
deus da sobrevivência do ensino médio.
— Puta merda, sim, ele está. — Seu aperto aumentou.
Ela estava tentando beliscar meus ossos?
— Piper, puta que pariu. — Eu gritei e arranquei meu braço
de seu alcance.
— Ele definitivamente estava olhando para cá. — Seu olhar
estava concentrado na multidão de pessoas por cima do meu
ombro.
“Para cá” sendo para mim? Por que ele olharia para mim?
Por causa da minha música? Isso já deveria ser conversa de
vestiário há muito esquecida. A Garota Nova que mora atrás de
mim toca música. Foi uma merda e foi hilário vê-la quase
chorar na varanda dos fundos. Foi tão terrível que bati a porta
tentando bloqueá-la. O que era pior? Rindo às minhas custas
ou não sabendo que eu sequer estava viva?
Eu me virei lentamente, como se um serial killer estivesse
parado ao meu lado com a faca levantada sobre a minha cabeça.
O baque baixo de sapatos contra o piso liso de linóleo sinalizava
sua chegada à minha fileira de armários.
O pescoço e o ombro dele passaram por mim sem um olhar
ou aceno de reconhecimento.
Piper ajustou as alças de sua mochila.
— Eu juro, ele olhou para você.
— Provavelmente tentando descobrir onde ele já me viu
antes.
— Você nunca falou com ele?
Depois do meu primeiro dia no corredor? Ficarei feliz em
evitá-lo a todo custo.
— Por que eu deveria? Estou surpresa que você faça isso. As
pessoas ainda me chamam de A Garota Nova.
Sua testa enrugou.
— Você é, no entanto.
— Estou aqui há mais de três anos! Como isso me torna
nova?
— Você é uma das mais recentes. — Ela deu de ombros. —
Cidades pequenas são estranhas assim.
— Não me diga. Além disso, meu nome verdadeiro são
quatro sílabas inteiras a menos do que me chamar de A Garota
Nova. É de se pensar que as pessoas gostariam de se esforçar
menos, não mais, para zombar de alguém.
Ela olhou de volta para mim por cima do ombro, acenando
seu lápis de unicórnio.
— Estranho ou não, Dare estava totalmente olhando para
você.
— E daí? Talvez ele tenha gostado da minha camisa. —
Puxei a bainha da camiseta de Hamilton que Piper havia
comprado para mim no meu aniversário e dei um giro.
— Você tem razão. Tenho certeza que ele está procurando
conselhos sobre moda.
Eu ri de sua resposta inexpressiva.
— Ele deu uma puta surra no carro de Aaron Smith no fim
de semana.
Uma imagem nebulosa de um cara indescritível com cabelos
e olhos passou pela minha cabeça.
— Ele deu?
— Sim, o cara devia dinheiro a ele ou algo assim e não quis
pagar. — Ela fechou seu armário.
— Que babaca.
Eu ri de seu olhar incrédulo enquanto ela fechava sua bolsa.
— Não é? Quem não paga a alguém o dinheiro que deve?
— Eu estava falando sobre Dare.
— Não posso dizer que ele não avisa as pessoas sobre suas
condições.
— Condições para quê?
— Acho que ele conserta carros às vezes.
Todo o seu tempo em sua garagem fazia mais sentido.
— O cara não pagou, então Dare destruiu seu carro. — Ela
deu de ombros como se fizesse todo o sentido do mundo
destruir as coisas de alguém porque eles não podiam pagar.
Conversar e arrumar um acordo parecia um plano melhor.
— Removeu os espelhos retrovisores, adicionou mais alguns
amassados e talvez furou um pneu. Não peguei todos os
detalhes.
— Essa era a versão do Cliffs Notes?
— Eu só juntei pedaços da informação. Tenho certeza de
que ouviremos mais até a hora do almoço.
Meu estômago começou a revelar o caminho da destruição
da guerra, mas eu tinha meus suprimentos preparados e
abastecidos para evitar uma troca de roupa de emergência.
O resto do dia passou como qualquer outro. Aulas. Sinos de
aula. Almoço. Educação Física convenientemente logo após os
vinte minutos quando todos nós enfiamos comida em nossos
corpos antes de sermos expulsos do refeitório. E mais aulas.
Eu compartilhei três dessas aulas com Dare, incluindo a de
Educação Física. Eu nunca fui alguém que desfalecia por causa
dos caras gostosos. Geralmente, eles eram todos idiotas classe A
e eu não achava que ele seria diferente. Mas desta vez não
consegui me impedir de olhar para ele. Ele foi a única pessoa
que já me ouviu cantar além dos meus pais e Freddy. O que ele
achou? Ele odiou? Correu gritando para a casa dele porque seus
ouvidos sangraram com o som da minha voz?
Eu queria mesmo saber o que ele pensava? Por que isso
importava para mim?
— Travis Maze 81! — Bennet gritou por cima do barulho da
banda e o estalo abafado das ombreiras batendo umas nas
outras. Estávamos embalados na linha de scrimmage8.
Restavam trinta e sete segundos na metade final e perdíamos
por um. Os jogadores que estavam indo para o último ano e
para o terceiro ano e eu éramos os únicos a jogar pela glória, em
vez de apenas jogar para não se machucar e manter os reflexos.
Foi um jogo de pós-temporada. Uma espécie de partida de
exibição, mas eu não ia parar e desistir. A maioria desses caras já
tinha seu ingresso escrito, mas o meu ainda estava balançando
com o vento.
As pontas dos meus dedos cravaram na grama molhada e
congelada. Nuvens do horizonte negro como tinta sopraram
contra meu rosto. Abaixei minha cabeça, me preparando para
a colisão.
Canalizando minha raiva e fúria, eu tinha um objetivo.
Derrubar todas as pessoas em meu caminho que não estivessem
usando uma camisa vermelha. Enfiei as travas da minha
8
A linha de scrimmage é uma linha imaginária transversal que corta o campo
e se posiciona entre a linha defensiva e a linha ofensiva, e os times não podem
ultrapassar essa linha antes do começo da jogada.
chuteira mais profundamente no solo, me preparando para
alavancar meu peso e proteger meu QB idiota da dizimação.
Colocamos nossos corpos em risco pela glória de uma
cidade pequena e pelos sonhos da faculdade. Alguns faziam isso
por dinheiro e fama. Quer dizer, eu não recusaria,
principalmente o dinheiro, mas eu com certeza gostaria de
saber que tudo na minha vida não foi um erro. Que eu tinha
uma coisa que conseguia fazer bem o suficiente para me tornar
grande.
A adrenalina correu em minhas veias. Eu mostrei meus
dentes para meus oponentes. Demolir. Desmantelar. Destruir.
O sangue latejava em meus ouvidos como um show de metal.
Uma respiração profunda e eu parti, correndo e colidindo
com os corpos à minha frente. Eu destruiria qualquer coisa em
meu caminho para ganhar quantos metros fosse necessário para
completar nossa jogada e limpar o caminho para o arremesso de
Bennet.
A bola caiu nas mãos de Knox, já na end zone9. Acima, o
relógio do placar bateu. Os segundos finais desapareceram do
cronômetro de jogo. Nós tínhamos conseguido.
Eu encarei os corpos inclinados dos idiotas que pensaram
por um segundo que poderiam passar por mim. Só por esse
9
A end zone é um termo usado no futebol americano que se refere à área onde
se marca o touchdown e outras formas de pontuação, ou seja, é o objetivo principal
de cada time, e é normalmente pintada de uma cor diferente. Existem duas end
zones, que ficam em lados opostos do campo.
motivo, eu queria arrancar suas cabeças malditas. Eu avancei
sobre eles, com o peito ofegante.
Trompetes retumbaram. Um corpo bateu no meu. Eu
arremessei meu cotovelo rachando-o na almofada grossa.
— Porra Dare. Sou eu. Seu companheiro de equipe. —
Bennet empurrou meu ombro.
Parado no centro do campo, fechei meus olhos e estabilizei
minha respiração, deixando o martelar acelerado me trazer de
volta à minha própria cabeça, onde eu não tinha todos os
instintos à beira do limite brutal do controle.
— O que eu te disse sobre me enfrentar depois de uma
jogada?
— Você é mal-humorado pra caralho. — Bennet olhou,
caminhando para as laterais.
Eu apoiei minhas mãos em meus quadris, deixando todos se
amontoarem uns aos outros nas laterais. O esmagamento de
corpos e golpes fora das jogadas pensadas enviou uma onda de
desconforto na minha espinha. Eu precisava de espaço,
especialmente depois de um jogo como o de hoje, brutal e
duramente conquistado. Levei tempo para diminuir o impulso
de destruir.
Knox correu até mim. Havia uma inquietação em sua
postura, posicionado e pronto para sair do caminho.
Eu respirei fundo. Até ele pensou que eu iria atrás dele – isso
revirou meu estômago.
— Boa pegada, cara.
Seus ombros relaxaram e ele arrancou o capacete.
— Você acha que alguém está observando tão tarde na
temporada? — Ele olhou para as arquibancadas.
— A essa altura, isso importa? — Se estivessem, eu não tinha
ouvido uma palavra deles. Os farejadores haviam ficado
obsoletos há muito tempo para mim. Foi estúpido até ter
aumentado minhas esperanças.
— Sempre pode existir uma oferta melhor. — Ele sorriu e
colocou as luvas no capacete.
Saímos do campo e nos dirigimos ao vestiário. Não era tanto
um vestiário, mas uma sala de espera para guardar nosso
equipamento e mochilas. Não havia lugar para tomar banho e
quase não havia espaço para se trocar. Os vestiários da
faculdade que visitei eram palacianos em comparação a este.
Academias próprias, saunas, equipes de apoio, refeitórios.
Liberdade.
Pena que eu não teria essa experiência.
Embarcamos no ônibus para voltar para Greenwood, ainda
suados e esgotados.
Uma mão pousou no meu ombro.
— Você vai sair depois disso? — Knox se inclinou sobre o
encosto do meu assento.
— Você realmente tem energia depois do jogo que jogamos?
Ele saltou para cima e para baixo como um cachorrinho
hiperativo.
— Bethany está indo para o pós-festa com as outras líderes
de torcida. Desde quando você não está a fim de um pouco de
gratidão oral?
— Estou cansado. Vou para casa. Não faça nada estúpido.
— Meu estômago roncou.
— Você me conhece. — Ele se jogou de volta em seu
assento.
— Exatamente. — Enfiei meus fones de ouvido de volta em
meus ouvidos e descansei minha cabeça contra a janela gelada,
deixando a cadência rítmica das luzes da rua e o balanço do
chassi do ônibus me arrastar para um sono profundo. Mais
como me deixar desmaiar após a exaustão. Manter-me sob
controle em campo foi tão punitivo quanto me jogar nos
corpos dos meus oponentes, mas eu não estava fazendo nada
que comprometesse minha última chance de assinar a carta de
recrutamento para uma bolsa de estudos universitária.
Depois de descer do ônibus, fui para o meu carro. Acendi a
luz do teto e verifiquei minha carteira. As mariposas podem
muito bem ter voado para fora. Abri o porta-luvas e o console
central. Nada.
Meu estômago roncou com raiva, irritado com meu corpo
sendo empurrado com tanta força sem injeção de combustível.
Talvez houvesse alguma comida em casa.
Mas meu estômago ficou em segundo plano quando
cheguei ao cruzamento à frente da minha casa. Em vez de virar
na minha rua, dei a volta pelo caminho mais longo. Passei pela
rua de Bay. Todas as luzes estavam apagadas em sua casa e o
carro não estava na garagem. A mãe dela não estava em casa?
Ou Bay estava festejando? Talvez A Garota Nova tivesse um
lado selvagem que ninguém tinha visto nos últimos três anos.
Talvez ela tenha pedalado por três cidades para deixar sua
excentricidade se soltar.
Eu balancei minha cabeça. O que diabos a música dela fez
comigo? E por que eu estava passando pela casa de Bay depois
da meia-noite, em primeiro lugar?
Quando cheguei em casa, ela estava silenciosa. Abrindo a
geladeira, encarei o imenso vazio. Merda. Eu deveria ter
aceitado a oferta de Knox. Os armários também estavam quase
vazios. Uma única caixa de Cap'n Crunch, que poderia muito
bem ter teias de aranha, me encarou de volta. Era um punhado
de cereais envelhecidos.
Uma batida me arrancou para fora do meu litro de água para
acalmar meu estômago.
Eu abri a porta.
Um garoto que não me parecia familiar deu um passo para
trás e olhou para mim com medo em seus olhos.
— O que? — Eu disse através do último punhado de frutas
crocantes.
Ele olhou para a minha rua.
— Alguém disse que você poderia me ajudar.
— Eu não tenho drogas. — Eu me movi para fechar a porta.
Claro que o pobre garoto comendo a porra de um cereal à meia-
noite era um traficante.
— Não, é sobre meu carro. O carro da minha mãe, na
verdade, e ela vai me matar se vir o amassado. — Ele olhou por
cima do ombro para o carro na garagem com uma garota no
banco do passageiro.
Limpei minhas mãos e estreitei meu olhar.
— Deixe-me ver.
Olhando para a lateral de seu carro, soltei um assobio baixo
e apertei minha nuca. Eu me agachei e balancei minha cabeça.
— Uau, você realmente fez um estrago nisto.
— Porra, estou morto. Ela vai me matar. — Ele esfregou as
mãos no rosto e a garota o abraçou.
— Eu posso consertar para você. Mas vai te custar.
— Quanto? Qualquer coisa.
— Cinco pizzas extragrandes do Gitano.
— Cinco! — Sua voz ecoou pela rua tranquila.
— Esse é o meu preço se você quiser que isso seja resolvido
antes que sua mãe acorde.
— Tudo bem, vou pegá-las depois que você consertar.
— Pagamento adiantado. Aí então eu conserto. — Eu cruzei
meus braços sobre meu peito e o encarei.
— Tudo bem — ele gaguejou antes de voltar para o carro.
E foi assim que eu organizei para mim uma semana de
refeições através de um trabalho de três minutos com a ventosa
na lateral de um sedã bronze.
Subi os degraus e peguei a chave do meu quarto. A minha
era a primeira porta no topo da escada, voltada para os fundos
da casa. Eu destranquei o cadeado e abri a tira de metal com
dobradiças antes de girar a maçaneta. Eu instalei isso na
primeira vez que vim para casa e encontrei meu quarto
saqueado. Mesmo quando eu tinha certeza que ele estava na
estrada, a paz de espírito para acalmar minhas preocupações de
que ele pudesse estar destruindo minha tralha sempre que eu
saísse de casa.
No chuveiro, descansei minha testa contra o azulejo,
deixando a água fluir sobre meus músculos doloridos. A sujeira
e o suor do jogo escorreram pelo ralo. Pelo menos essas dores e
sofrimentos iam embora muito mais facilmente do que os
outros hematomas que eu ganhei em casa – aqueles que não
vinham com acolchoamento e apitos estridentes de árbitros
quando as coisas saiam do controle. Para isso eu estava
preparado. Eles não vinham na calada da noite ou quando eu
não estava preparado para a ira do meu pai.
Com uma toalha enrolada na cintura, abri a janela do meu
quarto. O ar gelado entrou depressa e eu mordi um palavrão.
Por que diabos eu fiz isso? A resposta se enfiou na parte de trás
da minha cabeça, tentando se esconder até de mim.
Eu caí na minha cama, flexionando minha mão. A água
escorria do meu cabelo para a minha colcha. A cada poucos
segundos, meu olhar se voltava para a casa do outro lado do
caminho. Uma luz estava acesa agora.
Eu disparei da cama, me obrigando a não me esforçar para
ouvir algo, qualquer coisa, além de um carro passando a cada
poucos minutos.
Agarrando minha boxer, eu a coloquei e olhei para o teto
tentando descobrir se meu contato capacete-com-capacete
tinha sido muito forte. Essa era a única coisa que explicava por
que eu não estava festejando outra vitória agora. Ao invés, eu
estava...
Estava um puta frio e eu era um idiota maldito. Pulei da
cama e enfiei meus dedos no topo da minha janela para fechar
a maldita coisa.
Uma nota flutuou no ar frio como gelo. Eu congelei. Minha
frequência cardíaca disparou como se eu estivesse de volta ao
campo e uma jogada tivesse acabado de ser anunciada. O refrão
tocou novamente e parou sem a fluidez dos degraus dos
fundos, mas era ela. Ela estava cantando também? Mesmo me
inclinando até a metade da janela, me esforcei para distinguir
sua voz. Meus pés ainda molhados escorregaram no chão de
madeira e eu fui arremessado para fora da janela. A sensação de
estar no fundo de uma montanha-russa mergulhou
profundamente em meu estômago e minha visão do chão não
estava mais abaixo de mim, mas sim bem na frente dos meus
olhos.
Minhas mãos dispararam. Apoiando-me na lateral da casa,
coloquei meus pés contra o vidro. O que os jornais escreveriam
sobre isso quando alguém encontrasse meu cadáver amassado
em alguns dias, ainda de boxer? Ritual de sexo adolescente dá
errado: você sabe o que seus filhos estão fazendo? Estremeci e
coloquei minhas mãos de volta para o parapeito da janela. Eu
estive a centímetros de me matar. Me joguei de volta para
dentro de casa depois da minha tentativa de quase quebrar o
pescoço para ouvir cada nota.
O que diabos havia de errado comigo? Eu balancei minha
cabeça. Cair em direção a minha morte para ouvir a voz dela era
um novo nível de insanidade. Mas eu não conseguia parar de
desejar que ela estivesse tocando nos degraus dos fundos esta
noite.
10
Marca de bicicleta.
— Quero dizer, se houver uma gêmea sua por aí. Precisarei
chegar ao fundo disso. Isso pode ser uma grande notícia. Você
não gostaria de conhecê-la?
Um rosnado baixo e fumegante retumbou em sua garganta.
— Seja qual for o seu lance — ela acenou com as mãos na
frente dela para cima e para baixo em meu corpo —, eu não
quero fazer parte disso. Deixe eu e minha irmã gêmea em paz.
— Ela girou nos calcanhares e foi embora.
— Ela tem um nome?
— Sim. — Ela ergueu a mão acima do ombro recuado e
ergueu o dedo médio.
Eu ri e chamei por ela.
— Que agradável, Bay.
— Tchau, Dare. — Seus níveis de não dar a mínima eram
revigorantes.
Ela desapareceu pelas portas de saída no final do corredor.
— Vejo você mais tarde, Bay. — Eu poderia alcançá-la.
Levaria pelo menos alguns minutos para ela destravar a
bicicleta. Em vez disso, voltei para a academia.
Suado e sorrindo pelo que parecia ser a primeira vez, voltei
para minha casa. O silêncio interior desfez a tensão que surgia
sempre que eu enfiava a chave na porta da frente. Eu corri
escada acima e destranquei a porta do meu quarto.
Fui direto para a última gaveta da minha mesa, abri a
fechadura e puxei meu bloco mais novo. Com dedos doloridos,
terminei meu trabalho preservando as costas de Bay com um
dedo levantado sobre seu ombro. O movimento de seu rabo de
cavalo. A camiseta dos anos 80. O jeans moldado em suas
pernas.
As coisas estavam melhorando nesse último ano, eu pensei
que seria o início de outra história de um fracassado esquecido
que se apegava aos bons e velhos tempos da época do ensino
médio. Agora eu tinha a chance de uma bolsa de estudos e
talvez alguma coisa com Bay. O que era ou o que eu queria que
fosse eu nem sabia, mas sabia que era bom. Parecia certo, e eu
precisava de mais disso na minha vida.
— Existem três faixas de iluminação nesta cena. — A Sra. Tripp
entregou seu roteiro a Jon para copiar os pontos onde ele
precisaria mudar as luzes. — Os microfones de Res e Ariel
precisam estar ligados antes que eles entrem no palco, Bay.
Ela os apontou e eu escrevi nas minhas anotações.
— É sempre tão emocionante compartilhar o teatro com
todos que não puderam ver esses shows na Broadway como eu.
— Segurando o roteiro contra o peito, ela suspirou, olhando
melancolicamente para o palco.
Ajudar a equipe de palco com as produções me deu uma
explicação plausível para as madrugadas, se a minha mãe
perguntasse. Além disso, ninguém pensava na equipe de palco
como um grupo selvagem e louco. Nerds tecnológicos, como
eu, sempre foram deixados por conta própria, e eu gostava da
mixagem de som. Pegava o que eu estava aprendendo para fora
de um ambiente controlado e me jogava na selva.
— Talvez eu deva entrar no show de talentos. Isso pode
chamar a atenção dele. — Piper girou na cadeira. Ela parou
quando viu meu rosto e se encolheu. — Desculpe, eu não
queria trazer isso à tona.
— Qual seria o seu talento? E a atenção de quem? — Escrevi
notas de sugestão em uma fita adesiva e a arranquei,
prendendo-a na lateral do quadro, não querendo fazer aquela
viagem ao túnel do tempo.
Ela olhou para mim.
E eu concordei.
— Ah, entendi. Então, o que você vai usar para deslumbrar
ele?
— O show de talentos não é para deslumbrar. Eu preciso de
um encontro para o baile e ele é o meu cara.
— Por que não convida ele?
Outra olhada óbvia.
— Isso não é divertido. Preciso continuar sutilmente
deixando dicas, das quais ele está alheio, para dar um pouco de
emoção à minha vida.
Piper fez uma pausa.
— Você devia entrar no show de talentos, já que não quer ir
ao baile. Você é como uma garota legal, insatisfeita, que odeia
diversão. Você é totalmente Julia Styles em 10 Coisas Que Eu
Odeio Em Você.
Joguei uma pequena bola de fita adesiva nela. Agarrou em
sua camisa.
— Eu não tenho metade do vocabulário dela.
Ela sacudiu para tirá-la.
— Mas você tem um gostoso da escola de olho em você. —
Ela sorriu e se virou novamente.
— E esse é todo o meu trabalho por hoje. — Peguei minha
mochila e saí antes que houvesse mais perguntas sobre os ritos
de passagem do último ano e qualquer coisa a ver com Dare.
Prefiro ficar de pé nua na frente de toda a escola do que entrar
no show de talentos. A menos que mixagem de som possa ser
um talento.
Trabalhar na mesa do estúdio tinha sido assustador no
começo. Havia tantos botões, controles deslizantes, alavancas e
muito mais. Mas com o tempo e através de tentativa e erro, o
que ainda não havia causado sangramento nos tímpanos, eu
compreendi. Então, vindo aqui, eu parecia uma mágica
moderna com a facilidade que eu tinha com isso.
Durante todo o dia na escola eu me esquivei de Dare. Por
que ele estava aparecendo o tempo todo agora? Era como a
coisa que acontece depois que você compra um casaco, uma
bicicleta ou um carro novo e agora os vê em todos os lugares?
Eu não tinha prestado atenção ao quanto nossos caminhos se
cruzavam antes? Ou ele os estava cruzando agora?
Por que ele iria querer fazer isso? Por que ele se importaria?
Mas ele me viu indo para o estúdio. Ele estava tentando me
extorquir ou, de alguma forma, usar essa informação contra
mim?
À medida que minha raiva crescia, também crescia uma
melodia. Era uma que precisava de um acompanhamento de
uma batida de bateria e um pouco de guitarra de metal. Ele
pensou que eu iria desistir e deixá-lo estragar o bico paralelo que
eu estava fazendo? Nem um pouco. Eu atiraria pregos líricos
nele, se essa fosse uma batalha que ele quisesse travar.
11
A Ivy League é um grupo formado por oito das universidades mais
prestigiadas dos Estados Unidos: Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth,
Harvard, Universidade da Pensilvânia, Princeton e Yale.
não havia tido a chance de perguntar a ela, mas precisava mudar
isso. O desejo de falar com ela novamente me atingiu com força
e estava se tornando quase insuportável.
Ela não tocava violão há algum tempo e eu estava ansioso
para ouvir sua voz novamente. Pedir uma serenata não se
encaixava exatamente com a minha imagem. No entanto,
observá-la crepitar e surtar quando me entregou o copo de
limonada valeu a pena a chave inglesa escorregando e cortando
minha mão.
— Dare?
— Sra. Franklin? — Deixei minha carteira cair, e o baque
tremeu as janelas.
— Você pode, por favor, nos informar o delegado de
Massachusetts no Congresso Continental?
— Sam Adams. — Tudo graças ao Quiz de Cerveja.
Sua carranca se aprofundou. Perguntas revolucionárias de
guerra sempre eram sua escolha toda vez que pensava que
alguém não estava prestando atenção – não que eu estivesse.
Não, minha mente estava em outras coisas. Repassando o livro
de jogadas na minha cabeça. Traçando a viagem de sete estados
que meu pai faria para antecipar quando ele estaria de volta. A
melodia ancorada na base do meu tronco cerebral, se repetindo
na minha cabeça até que a última nota terminasse.
Bay olhou para trás, nem mesmo totalmente por cima do
ombro. Mais como passando por seu ombro, talvez pensando
que ela poderia disfarçar pegando algo de sua mochila no chão
ao lado dela. Exceto que ela nunca colocou sua mochila tão
longe, e foi a quarta vez que ela fez isso em vinte minutos.
Minha visão ficou mais nítida, sem a necessidade de quaisquer
pretextos.
Ela fazia a mesma coisa toda vez que olhava para trás: rolava
o lápis três vezes para cima e para baixo na mesa, pegava e
encostava nos lábios como se estivesse pensando em algo, talvez
tentando se lembrar de algo. Em seguida, a hesitação, a busca
falsa pela mochila e uma olhada em minha direção. Eu estava
pronto desta vez, sem fingir que não a tinha visto.
Nossos olhares se encontraram.
A cabeça de Bay saltou para a frente.
Revirei minha memória para descobrir o que havia sobre
mim que a deixava tão nervosa.
Ela começou na nossa escola quando se mudou para a
cidade alguns anos atrás e se manteve reservada. A garota que
ficava ao lado dela em seu armário era a única pessoa com quem
a tinha visto conversando fora das aulas.
Por que ela se mudou para o meu fim de mundo no ano
passado?
— Haverá um projeto em grupo antes da prova de vocês.
Reclamações retumbaram pela sala. Ninguém queria ficar
preso a um projeto em grupo porque a Sra. Franklin não estava
com vontade de avaliar vinte e cinco tarefas. Em todos os
grupos, sempre havia alguém que não dava a mínima e outro
alguém que tratava cada palavra como se fosse a diferença entre
a vida e a morte.
Como alunos do último ano que haviam recebido nossas
aceitações universitárias – ou pelo menos já as haviam enviado
e estavam esperando pacotes de ajuda financeira de última hora
– esse era mais um aborrecimento antes que nosso verão de
liberdade começasse. Faltavam dois meses.
O sino tocou e Bay saltou de seu assento como se ela tivesse
sido conectada a um conjunto de cabos elétricos. Eu não deixei
de ver seu rápido olhar para mim antes que ela desaparecesse
pela porta.
Juntei minhas tralhas e parei no meu armário para trocar
meus livros.
— Um mês até Bedlam. — Knox jogou todo o seu peso nas
minhas costas, colocando as mãos nos meus ombros.
Eu grunhi e o afastei.
— O que te faz pensar que qualquer um de nós precisa de
um lembrete? — Uma faixa enorme se estendia pelo corredor
com números destacáveis. Um grande número seis havia sido
meticulosamente pintado em azul marinho com um contorno
dourado. As pessoas aqui tratavam os jogos amistosos fora de
temporada como a maioria das pessoas tratava os jogos do
campeonato.
— Isso esteve aqui o tempo todo? — Knox pendurou a
mochila no ombro e coçou a cabeça.
— Só desde que a pós-temporada começou. — Puxei a pasta
e o livro da última aula da minha mochila.
— Porra, sério?
Minha risada retumbou no fundo do meu peito. Knox
tinha muitos talentos, mas suas aguçadas habilidades de
observação não estavam nessa lista.
— Qual é o lance do próximo ano?
O frágil metal do meu armário gemeu e rangeu enquanto eu
enfiava de lado alguns livros amontoados lá e pegava o que eu
precisava. Todo mundo tinha a impressão de que eu tinha
assinado contrato com alguém.
— Mais um recrutador está chegando. Tentando ver se eles
vão melhorar o acordo. — Meu intestino deu um nó.
— Porra, eles estão demorando para um caralho, não estão?
— Tenho que manter todos atentos. — Fechei meu
armário.
— Não acredito que você não virá para o Alabama comigo.
— Havia o mais próximo possível de um biquinho em sua voz.
— Você encontrará um cara novo para pegar todas as sobras
dele, não se preocupe. — Chegamos à próxima sala de aula e
fomos para a última fileira, para nossos lugares sem donos.
— Mais como um cara novo para ser meu braço direito. —
Ele estufou o peito, firmando-se na mesa, deslocando a coisa
toda um pouco para trás antes de empurrá-la para frente com
um guincho ensurdecedor.
Os corredores foram preenchidos com um punhado de
pessoas depois que o último sino tocou. Na reta final do ano
letivo, comitês do baile, do anuário e de outros clubes
planejavam seus projetos de fim de ano. Para todos os outros,
isso significava liberdade. Para mim, significava a perda de um
refúgio que eu tinha para fugir. E se eu não fosse escolhido, eu
seria mais um cara no bar, enterrado no fundo de uma garrafa,
despejando tudo sobre os dias de glória do ensino médio, onde
cheguei ao auge.
A contagem regressiva de horas gastas dentro dessas paredes
se resumiria a nada. Jogar meu capelo para o alto não iria apenas
acabar com meu tempo na Greenwood Senior High, mas
também com meu tempo em Greenwood. Ou acabaria com
minha sanidade, se eu não conseguisse ir embora.
Saí pela porta dos fundos mas não parei, mesmo que eu pudesse
sentir seus olhos em mim desde o momento em que a abri. Ele
nem estava fingindo que não estava esperando para me ouvir
tanto quanto eu estava esperando para tocar. Um show privado
era muito mais fácil quando eu não precisava olhá-lo nos olhos.
Ele desapareceu de vista assim que me aproximei da cerca
que separava nossos quintais. A cada passo eu estava, ao mesmo
tempo, querendo sair para uma corrida ou voltar atrás. Não
havia como voltar atrás ou fingir que não estava mais tocando
para ele. Ele saberia.
Eu me inclinei contra a cerca. Ela balançou e estremeceu,
estabilizada pelo peso das minhas costas contra ela. O chão
ainda estava frio e úmido, mas eu toquei. Meus dedos se
movendo impediram que a dormência se infiltrasse muito
profundamente.
Eles voaram pelas cordas. Uma nova melodia se desdobrou.
Eu estava com meu caderno ao meu lado e rabisquei palavras e
frases, apagando e reorganizando-as até que eu pudesse cantar
todo o refrão.
A cerca estremeceu e eu sabia que ele também estava lá.
Estando tudo na minha cabeça ou não, eu podia sentir suas
costas contra as minhas, o calor de seu corpo e as batidas de seu
coração. Um novo ritmo tomou conta e as palavras
derramaram por mim, fluindo sobre o caderno e pela ponta dos
meus dedos.
Parei para rabiscar um verso inteiro, prendendo o violão
contra o meu lado e a cerca e usando minha coxa como uma
mesa improvisada. Cantar as palavras de outras pessoas
estimulava meus próprios pensamentos e abria caminhos que
antes eram escuros e bloqueados.
— Não pare agora, Bay.
Pela maneira como ele disse meu nome, eu não conseguia
me mover deste lugar. Meu corpo balançou com a cerca
quando um peso foi adicionado do outro lado.
— Algum pedido? — Minha voz era um sussurro baixo.
— Toque aquela que você tocou na primeira noite em que
se sentou.
Um pedido bastante simples. Mas não consegui sufocar as
palavras.
— Eu esqueci.
— Você esqueceu? Foi assim. — Ele cantarolou a melodia
de volta para mim.
Seja porque ele se lembrava ou pela cadência suave de sua
voz, meu coração e estômago estavam em um cabo de guerra
para ver qual estava prestes a ser ejetado do meu corpo
primeiro.
Eu engoli, minha garganta apertada como um canudo de
café.
— Vou tentar me lembrar. A fogueira está acontecendo
agora. — Deixei cair minha cabeça contra a cerca. Ela
estremeceu suavemente.
— Eu sei.
Lutando contra a palma da minha mão no rosto, procurei
algo mais para dizer. Claro que ele sabia.
— Você não deveria estar festejando na floresta com todo
mundo ou algo assim?
— Mais como “ou algo assim”. Prefiro não dirigir até a
floresta onde pessoas bêbadas fodem com meu carro.
Normalmente só vou porque Knox precisa que eu o mantenha
longe de problemas.
— Ele vai raspar metade da cabeça e tingir a outra metade de
azul de novo? — Knox era difícil de não reparar. Ele era o braço
direito de Dare, nunca muito longe. Ele tinha um nariz que
parecia ter sido uma casualidade de um golpe ruim, mas ele
preferiu deixar assim em vez de consertá-lo. Seu aspecto áspero
tinha bordas lisas e polidas, ao contrário das de Dare, que eram
irregulares e cortantes.
— Você se lembra disso?
— Ele não passa exatamente despercebido.
— Com o cabelo azul, ele teria. Metade da escola fez isso.
— Você não fez.
— Azul não é a minha cor.
Eu ri. O humor seco de Dare me surpreendeu.
— Tenho certeza que você pode usar o que quiser.
A cerca se moveu como se o elogio o deixasse
desconfortável.
— Por que você não está na fogueira?
— Não é minha praia. — Passei meus dedos sobre as cordas.
O metal estava frio depois de apenas alguns minutos. Isso estava
danificando o violão do meu pai? O frio pode estar dando um
choque na madeira, talvez a deformando. Olhei para os degraus
dos fundos e mordi meu lábio.
— O mesmo vale para jogos de futebol americano. — Sua
voz me puxou de volta das minhas preocupações.
— Especialmente jogos de futebol americano. — Eu ri.
Tinha orgulho de não ter ido a nenhum.
— O que você tem contra eles? — A cerca balançou.
Eu dei de ombros, embora ele não pudesse me ver.
— Eles não são para mim.
— Por que não?
Eu espiei por cima do ombro. A flanela de sua camisa e um
pouco de seu pescoço e cabelo apareceram pela abertura.
— Por que você se importa? Não há fãs apaixonados o
suficiente gritando seu nome?
— Nem todos os gritos são criados da mesma forma. — Ele
soprou uma risada.
— Você nem notaria o meu junto com eles.
— Eu notaria. — Através da abertura, ele chamou minha
atenção. Seu olhar, intenso e direto travou no meu.
— Dare, nós estudamos juntos há anos. De repente, você
está interessado. Eu vou direto ao assunto. Parece que estou me
preparando para alguma coisa. — Eu desviei meu olhar e voltei
para o instrumento no meu colo.
— O que isso quer dizer?
— Não faz sentido por que você continua fazendo isso. Por
que agora eu sou, de repente, a pessoa viva mais interessante, a
ponto de você perder as tradições da Greenwood Senior High
para vir passar o tempo comigo?
— Talvez elas nunca tenham me interessado, para começo
de conversa.
Corri meus dedos sobre as cordas.
Uma voz rompeu o silêncio entre nós.
— Dare, que porra é essa? Eu estava prestes a deixar sua
bunda para trás.
A cerca retumbou, seu peso se deslocando para fora dela.
— Por que você não me ligou?
— Eu liguei. A fogueira não espera por ninguém. O que
diabos você estava fazendo aqui fora?
Minhas costas dispararam da cerca, sacudindo as tábuas
soltas de madeira.
Houve uma batida e prendi a respiração.
— Nada, cara. Vamos dar o fora daqui.
Por que isso doeu? O que eu esperava que ele dissesse?
Apenas aqui fora passando o tempo com minha vizinha
esquisita enquanto eu esperava você para ir a fogueira, mesmo
eu tendo dito que não iria.
Fiquei perto da cerca até que o barulho do motor de Knox
desaparecesse à distância, então carreguei meu violão para o
meu quarto e me joguei na cama, olhando para o teto. A coceira
fez cócegas em meus dedos, subindo pelos meus braços até o
peito. A pulsação ficou mais rápida e alta até que não consegui
mais bloqueá-la. Peguei meu caderno da minha mesa e abri na
primeira página em branco, imortalizando este momento –
pelo menos até que eu decida destruir a página.
Talvez amanhã.
Talvez eu aparecesse na escola e cantasse essa música na
frente de todos.
Talvez eu pudesse forçá-lo a sentir do jeito que ele me fez
sentir.
Depois que o ensaio técnico terminou, subi na minha bicicleta
para a viagem lamacenta e com uma pitada de sal para casa. A
maior parte da neve já havia derretido, mas as monstruosidades
cinza e marrom nas laterais da rua pareciam o pior cone de neve
do mundo. Eu me sentia como uma coruja que tomou café
demais para sobreviver o dia.
Na metade da colina, meus pés se moveram nos pedais, mas
a bicicleta não foi a lugar nenhum. Eu caí antes que pudesse
colocar meus pés no chão. O concreto chegou rápido. Minhas
mãos dispararam, levando o impacto da minha queda e a
maioria dos arranhões de cascalho.
A corrente soltou. Eu chutei minha bicicleta, segurando
minhas mãos contra meu peito. Merda! Uma queimadura
afiada cravou em minhas palmas. A adrenalina bombeou por
mim, transformando a dor em uma pulsação. Mas era apenas
uma questão de tempo antes que a ardência voltasse.
Os papéis da minha mochila estavam grudados na grama
molhada, após uma aterrissagem segura e suave, enquanto eu
acabei no lado sujo da rua. Isso parecia bem adequado em
relação a minha vida.
Pegando os papéis, estremeci. A dor desceu pela minha
perna. Minha calça jeans estava rasgada na altura do joelho e
um tom de vermelho manchava o jeans. Droga, eu amava essa
calça. Respirei fundo, não querendo olhar para o que estava
por baixo. A dor não tinha me atingido ainda, mas levar minha
bicicleta para casa ia ser uma merda.
A porta de um carro se abriu.
— Você está bem?
— Sim, eu estou… — Eu enfiei os papéis em minha mochila,
sugando pelos meus dentes uma respiração aguda com o pingo
de dor que irradiava de minhas palmas.
— Merda, você está machucada. — A voz dele enviou
arrepios pelos meus braços.
Eu protegi meus olhos do sol da tarde.
Dare correu pela frente de seu carro e se agachou na minha
frente.
— Eles parecem desagradáveis.
— Não estão tão ruins. Estou bem. — Eu puxei minhas
mãos de seu alcance e me levantei com a ponta dos dedos,
tomando cuidado com meus cortes.
Suas mãos envolveram minha cintura, me levantando do
chão como um saco leve de batatas.
Minhas cutucadas e cotoveladas não tão sutis em suas
laterais foram ignoradas ou despercebidas. Eu olhei para todos
os lados, menos para ele.
— Obrigada. — Saiu afiado e cortante.
Ele inclinou a cabeça para o lado e olhou para mim.
Meu corpo latejou na hora pelos cortes e arranhões na
minha pele. Mas a raiva fervilhou em meu peito.
Ele pegou minha bicicleta e jogou em seu porta-malas, que
eu nem o tinha visto abrir.
— O que você está fazendo?
— Você estava planejando levar sua bicicleta para casa?
Você está machucada. Eu vou te levar. — Ele fechou o porta-
malas pela metade e contornou o lado do passageiro.
— Você vem ou o quê?
— Não, eu não vou. Me dê minha bicicleta.
— Eu não vou te dar sua bicicleta. Está estragada. Entre no
carro.
— Vai se ferrar.
— Olha a boca, Bay. Qual é o seu problema? Achei que
tivéssemos chegado a uma trégua ontem.
— Você quer dizer logo antes de ir para a fogueira depois de
me dizer que você não estava a fim? Logo antes de você dizer a
Knox que estava lá fora sem fazer nada? — As palavras saíram
da minha boca como se estivessem cheias de moedas velhas.
Amargas e mesquinhas. O que ele me deve? Nada. O mesmo
que eu devia a ele.
Ele olhou para o céu com os lábios se movendo como se
estivesse pedindo a algum poder supremo para lhe dar forças
para lidar comigo. Bem-vindo ao clube.
Seu olhar se nivelou com o meu.
— Eu nunca disse que não iria para a fogueira, apenas que
eu não estava lá. E achei que você não gostaria que eu
transmitisse para Knox que você estava cantando para mim.
Não parece algo que muitas pessoas saibam sobre você.
O asfalto estava interessante naquele momento.
— Você achou certo.
— Eu sei. — Com um movimento do pulso, ele abriu a
porta do passageiro e a manteve aberta. — E eu preferia muito
mais ter ficado ouvindo você tocar do que ter ido com ele, mas
ele tende a se meter em problemas.
Meus pés se moveram antes que meu cérebro pudesse
raciocinar uma maneira de escapar disso. Deixá-lo se safar não
deveria ser tão rápido e fácil.
Seu braço caiu pela porta aberta como uma barreira de
ponte de pedágio. E eu tinha acabado de ficar sem moedas.
Soltei meu capacete e o segurei em minhas mãos,
cutucando-o com elas para me dar um pouco mais de espaço.
— Não se preocupe, Bay. Eu vou cuidar de você. — O
sussurro em meu ouvido iniciou aquela reação química que só
acontecia na presença dele.
Ele fechou a porta quando eu estava no banco e correu para
o lado do motorista.
Alguns minutos silenciosos depois, estávamos parados na
garagem da minha casa.
— Você pode deixar minha bicicleta na frente da garagem.
Vou consertar amanhã.
— Não. — Ele desligou a ignição.
— Tudo bem, vou tirá-la do porta-malas sozinha. — Eu
escancarei sua porta. Este jogo que estávamos jogando estava
me deixando louca.
Sua porta se abriu e ele segurou o porta-malas parcialmente
aberto.
— Que diabos, Dare? Me deixe pegar minha bicicleta. —
Minhas tentativas de levantá-lo foram frustradas por sua mão
despreocupada no topo do capô e os quarenta quilos extras de
músculos que ele tinha contra mim.
— Não.
— Estamos jogando o jogo de uma palavra?
Ele riu.
— Não.
— Você poderia dizer mais alguma coisa então?
Seu sorriso se alargou.
— Não.
Essas asas de borboleta eram perigosas. Elas ameaçaram me
levantar do chão direto para um penhasco com o jeito que ele
sorriu para mim. Como se fôssemos amigos há muito tempo e
tivéssemos nossas próprias piadas internas.
— Alguém já disse que te odiava?
Uma risadinha.
— Não.
— Duvido muito disso. Me dê minha bicicleta e então você
poderá ir pelo seu caminho feliz. Sua boa ação do dia está
concluída.
Ele contornou o porta-malas e colocou minhas mãos nas
dele, virando-as com a palma para cima.
Meu coração disparou em um frenesim.
Seu rosto ficou sério e seu olhar caiu para minhas mãos.
— Não.
Seus dedos traçaram o lado machucado da minha palma.
Eu estremeci. O corte em minha mão havia secado
parcialmente, me fornecendo uma bela mancha úmida de
cascalho e sangue.
— Vamos entrar. — Ele disse como se estivéssemos na casa
dele, não na minha, mas eu o segui mesmo assim, entregando
minha chave e deixando-o abrir a porta.
— Onde está seu kit de primeiros socorros?
Apontei para o armário ao lado da pia.
Ele abriu o armário e tirou a caixa. Vasculhando o conteúdo,
ele encontrou o que precisava.
— Filhodaputa. — Eu sibilei. A queimação do algodão de
preparação com álcool em chamas trouxe lágrimas aos meus
olhos.
— Aí está ela. — Ele passou o encharcado de ácido maldito
sobre minha pele.
— Aí está quem? — Eu cerrei meus dentes, forçando meus
dedos a se curvarem.
Ele pegou as costas das minhas mãos, segurando-as com
firmeza.
— Sua fodona interior. — Dare soprou nas palmas de
minhas mãos. Isso evaporou a ardência do antisséptico e me
distraiu com o quão perto seus lábios estavam das minhas
mãos.
Minha resposta espertinha congelou na minha garganta.
Ele olhou para mim e meu coração parou.
— Assim está melhor? — Seus olhos estavam cheios de
preocupação e diversão, como se ele não pudesse relaxar
completamente até ter minha resposta.
Seriam necessários cabos de bateria para reiniciar meu
cérebro. Eu assenti e tentei puxar minhas mãos de seu aperto
antes que ele sentisse minha frequência cardíaca disparando.
— Sim, está tudo bem agora. — Os cortes latejavam, mas a
ardência havia sumido. Eu puxei minhas mãos de seu alcance e
as coloquei no meu colo.
— Vou pegar alguns curativos para você. — Ele vasculhou
nosso kit de metal branco de primeiros socorros. — Perfeito.
— Ele acenou duas ataduras enormes, ainda embrulhadas, para
mim.
— Estes estão em lugares de merda, então eles vão sair
facilmente, mas se eu usar isso, eles vão ficar um pouco mais. —
Ele ergueu o esparadrapo que minha mãe sempre tinha nos
bolsos do uniforme quando chegava em casa do trabalho.
Noventa por cento da fita em nossa casa vinha desses rolos.
Eu abri e fechei minhas mãos. As palmas ardiam, mas pelo
menos eu não precisava me preocupar com uma boa infecção
de neve derretida.
— Você é muito bom em curativos.
Seu sorriso vacilou.
— Futebol americano não é exatamente dança de salão. —
Ele abaixou a cabeça e limpou as embalagens e produtos de
limpeza manchados de sangue.
— Você costuma usar Band-Aids do Bob Esponja para se
remendar?
Ele riu.
— Não, meu kit de primeiros socorros não é nem de longe
tão colorido. Eu poderia ter usado os das princesas da Disney,
então considere-se com sorte.
— Meu pai tinha a eterna impressão de que eu ainda tinha
oito anos e comprava Band-Aids como se ele estivesse se
preparando para o apocalipse. Você sabia que os Band-Aids
expiram? Eles expiram.
A garganta de Dare subiu e desceu.
— Quando ele morreu?
— Um pouco antes de eu começar na Greenwood Senior
High. Nós nos mudamos para a cidade duas semanas depois.
— O que aconteceu? — Seu joelho roçou no meu. —
Desculpe, você não precisa responder isso.
Ele se afastou e descarregou o desconfortável “desculpe por
trazer à tona seu pai falecido, por favor, não comece a chorar”.
Deixei cair minha mão em seu joelho.
Seus músculos se contraíram e eu a puxei de volta.
Respirando fundo, passei meus dedos sobre os curativos
bem arrumados.
— Foi um aneurisma. — Eu soltei. — Um segundo ele
estava em seu escritório no trabalho e, no outro, eles estavam
chamando uma ambulância. Os médicos disseram que foi
rápido, como apertar um interruptor de luz. Ele estava aqui e
então ele se foi. Mas foi sem dor. — Eu dei de ombros, tentando
manter as emoções fluindo sob controle. Minha garganta
estava apertada e minhas narinas dilataram. Este era meu novo
normal. Uma vida sem ele. Mesmo três anos depois, às vezes
ainda parecia brusco.
— Isso foi bom para ele, e vocês duas não tiveram que lidar
com vê-lo partir. Aparentemente, minha mãe sentiu muita dor
por alguns dias depois que ela me teve. Então ela se foi.
Minha cabeça se ergueu.
— Eu não sabia que sua mãe havia morrido. — Por que eu
não tinha juntado as peças? Eu não pensava em Dare como algo
mais do que nascido do solo totalmente crescido, mas é claro
que ele tinha uma família. Uma mãe e um pai.
— Não é grande coisa. — Ele encolheu os ombros. — Não
me lembro de nada diferente, então não é como se eu pudesse
sentir falta dela.
Meu coração doeu. O que era pior? Perder um genitor que
você amava ou nem mesmo conseguir conhecê-lo?
— Que dupla. — Fui pegar sua mão e hesitei, mas a tristeza
reverberando dele não me deixou não segurar sua mão.
Eu deslizei a minha sob a dele, nossos polegares
enganchando.
— Sinto muito que você não a tenha conhecido.
— Sinto muito que seu pai se foi. — Ele apertou minha mão
com mais força, mantendo-se longe da minha palma ralada. —
Ele te ensinou a tocar violão?
— Ele costumava tocar para eu dormir todas as noites, até
eu fazer doze anos e me achar legal demais para isso. — A
expressão nos olhos do meu pai quando balancei a cabeça
enquanto ele se sentava atrás da minha cama – na época, eu não
tinha prestado atenção, mas agora eu daria qualquer coisa por
mais uma canção de ninar para dormir. — Então ele me
ensinou a tocar.
Ele ergueu o queixo.
— Você deveria tirar a calça jeans.
Eu pulei, balbuciando.
— Bem para a frente, não?
Ele riu.
— Tirar a calça jeans do seu corte assim que o sangue secar
será uma droga. Confie em mim. — Uma tristeza cintilou em
seus olhos.
Eu olhei para minha perna. A área ao redor do rasgo estava
vermelha. Parecia pegajosa e irritada. Minhas bochechas e
pescoço estavam quentes de vergonha.
— Certo, eu já volto.
Dando os passos um de cada vez, tirei minha calça jeans
rasgada. Talvez eu possa remendá-la mais tarde. Em vez dos
meus shorts do pijama, agarrei uma calça comprida e larga, que
eu poderia enrolar pela perna. De volta ao andar de baixo, Dare
me remendou novamente.
— Então você toca violão desde os 12 anos? — Ele olhou
para mim com olhos gentis, os tons de cinza brilhantes e
profundos, fundidos em uma tapeçaria de mistério.
— Você pensa que eu seria melhor nisso.
Seus dedos roçaram as laterais do meu joelho.
Minha pulsação disparou em meu peito como um estouro.
Eu vi minha chance de escapar e a usei.
— Você quer ver?
— Claro.
Corri de volta para o meu quarto, tentando manter minha
cabeça limpa. Sempre que eu estava perto de Dare, ainda mais
o tocando, meus neurônios não disparavam corretamente e eu
não conseguia parar de me inclinar mais perto, olhar por mais
tempo, querendo mais. Peguei o estojo do armário do meu
quarto e desci correndo as escadas.
Dare guardou o kit de primeiros socorros no armário e
fechou a porta. Seu olhar caiu para o estojo em minha mão.
— Venha para a sala de estar. — A cozinha era muito
apertada, não havia espaço suficiente para eu colocar distância
entre nós.
Na sala de estar, sentei-me no sofá de dois lugares com o
estojo no assento vazio ao meu lado. Eu destravei o estojo e
puxei o corpo brilhante e liso do forro de veludo.
Em vez de se sentar no outro sofá, Dare deslizou suavemente
o estojo para fora do sofá e o depositou no chão.
Meu assento saltou debaixo de mim quando ele colocou seu
grande corpo ao meu lado.
Eu me virei, angulando meu corpo para que minhas costas
apoiassem contra o apoio de braço e meu joelho dobrado
apoiasse o corpo do violão.
— Ele adorava tocar. Ele tocou de pé sob a janela da minha
mãe quando eles estavam na faculdade para fazê-la concordar
em sair com ele.
— Parece que ele amava sua mãe também.
— Ele amava. Eles sempre foram tão felizes juntos. Rindo,
sem medo de ser bobo, especialmente quando viam o quanto
isso me envergonhava.
— Cante algo para mim. — Ele se recostou com o braço
apoiado nas costas do sofá. As pontas dos dedos dele estavam a
centímetros do meu braço.
Por que eu não tinha previsto isso? Não toque algo para
mim, mas cante algo para mim. Ninguém pega um violão só
para olhar para ele. Claro que ele quer que eu cante alguma
coisa. Meu estômago de animal de balão teve dois nós extras
adicionados à cauda do poodle.
— Não, você não quer me ouvir tocar. — Minha fuga para
o estojo no outro sofá foi frustrada por sua mão em meu
ombro. Não era restritiva ou dura, apenas uma pressão suave.
— Por favor, Bay. — Seus olhos brilharam de
encorajamento – e algo mais.
Meus dedos tremeram contra a madeira lisa em meu colo.
Eu limpei minha garganta.
— Certo.
Meu sorriso era fraco e trêmulo.
— O que você gostaria de ouvir?
— Qualquer coisa que você queira tocar para mim.
Lambi meus lábios. Neste ponto, eu estaria mais confortável
fazendo um strip-tease para ele. Meus seios seriam uma
distração bem-vinda da caverna agitada de morcegos
enlouquecendo no meu peito. Limpando minha garganta, eu
afastei meu olhar de Dare e me concentrei no metal frio
pressionando as pontas dos meus dedos.
Minha pulsação bateu forte, aquecendo as cordas.
Fechei os olhos, juntando as pontas desfiadas do cobertor da
minha mente e me envolvendo na beleza musical, bloqueando
tudo, exceto a música e Dare.
Ela cantou para mim. Eu pensei que ela iria fugir da sala de
estar, possivelmente se trancando em seu quarto ao invés de
tocar no sofá ao meu lado, mas ela fechou os olhos, respirou
fundo e tocou.
Não fiz movimentos bruscos e uma respiração mal escapou
dos meus lábios enquanto eu a observava.
Com os olhos fechados, ela balançou e sacudiu o pé,
pendurado na beirada do sofá, ao som da batida percussiva,
tecida na melodia. Ela cantou uma versão acústica de “Use
Somebody” de Kings of Leon, o que fez o original parecer o
cover. O dela era mais lento, mais triste, mais poderoso. Eu ouvi
as palavras pela primeira vez, e elas não precisavam do
acompanhamento completo tocando atrás delas. Elas
mereciam a voz da Bay e nada menos.
Seus dedos se moveram pelas cordas com notas largadas e
guincharam do metal sobre metal.
Minhas mãos coçavam procurando meu bloco de esboços.
Nunca saiu do meu quarto, sempre trancado na minha gaveta.
Mas agora, eu queria uma tela em tamanho real para capturar
este momento. Enquanto eu me deliciava com o brilho dela
segurando a última nota e lançando um pequeno vibrato na
última corda dedilhada, a necessidade de ouvir sua música
original queimou ainda mais fundo em mim.
Eu queria ouvir suas palavras. Conhecer seus sentimentos.
Conhecer o coração dela.
De repente, a coisa que eu estava procurando estava sentada
ao meu lado, a garota da porta ao lado. Isso me assustou para
caralho. Tanta coisa a perder. Tanta coisa para estragar.
Eu pulei do sofá.
O sorriso de Bay vacilou e sua expressão enfraqueceu antes
de ficar vazia.
— Eu preciso ir. Devo encontrar Knox daqui a pouco e
acabei esquecendo disso.
Ela se levantou e assentiu antes de virar o rosto e enfiar o
violão de volta no estojo.
— Certo. Bem, obrigada por me ajudar com minha
bicicleta. Você não tem que consertá-la. Eu posso consertar.
Recuei, apoiando a parte de trás da panturrilha na mesa de
centro e quase caindo.
Sua mão disparou para me firmar. O menor arranhão contra
a minha pele enviou um choque ricocheteando pelo meu
braço.
Eu saltei sobre a mesa para evitar seu toque.
— Não, eu posso consertar. Eu te devolvo até às sete da
manhã. Talvez a entregue mais tarde ou amanhã de manhã
cedo.
Ela curvou os dedos de volta e colocou as mãos sob os
braços.
Eu estava estragando tudo, mas ela era muito. Nesta casa
tranquila, ela estava me rasgando com uma música pop
maldita. Eu precisava sair para conseguir respirar. Saindo pela
porta da frente, corri no caminho até a garagem.
— Tudo bem. Vejo você mais tarde. — A pergunta em sua
voz era uma lança em minha lateral. Ela olhou pela porta de
tela.
Corri para o meu carro, me jogando para dentro como se
tivesse roubado algo. Sem olhar para cima, saí da garagem, meu
coração apertou contra minhas costelas e fiz o caminho mais
longo até minha casa.
Sentado na garagem, bati minha mão contra o volante antes
de deixar minha cabeça cair na superfície lisa e dura.
Todo esse tempo eu estava tentando fazer ela se abrir
comigo. Eu estive empurrando e cutucando, entrando em seu
espaço para ouvir a música novamente e conhecê-la. No
segundo em que ela compartilhou um pedaço de si mesma
comigo, mostrando-me o violão de seu pai e cantando,
realmente cantando para mim, saí correndo de lá, deixando-a
confusa e magoada.
Por que eu era tão fracassado? Por que Bay tornava
impossível para mim agir como qualquer outra coisa além de
um idiota?
— Porra! — Gritei a plenos pulmões, esperando que minha
voz não viajasse longe o suficiente para ela ouvir, amordaçada
pelo interior do meu carro.
12
Jogadas do futebol americano desenhadas para enganar a defesa adversária.
máximo possível da baixa temporada, relaxando antes que o
verdadeiro trabalho começasse.
— Agora não é hora de eu bancar o anfitrião da festa. —
Peguei minha toalha e sabonete e caminhei até o chuveiro. Meu
estômago estava além de roncar; estava surtando para caralho
por alguma maldita comida.
— Quem vai dar a festa final? — Bennet gritou, esfregando
uma toalha na cabeça.
Passando por ele, liguei o chuveiro e pisei embaixo da água.
O local da festa não seria a minha casa desta vez, mas eu não
tinha dúvidas de que seria forçado a dar uma festa de
comemoração ou uma festa onde todo mundo ficaria muito
bêbado para afogar nossas tristezas antes da formatura.
Knox: Mirante
Eu: Eu sei
13
Penny-Farthing é um tipo de bicicleta, popular na década de 80, que possui
a roda dianteira de grande dimensão e a traseira muito menor.
— Boa noite, Bay.
Saí da garagem, mas não fui embora até que ela estivesse em
segurança lá dentro. Fazendo um pouco de matemática mental,
eu poderia planejar um encontro com Bay. Em algum lugar
agradável – eu poderia pedir um favor ou dois. À medida que o
tempo esquentava, mais pessoas sairiam em passeios e
precisariam de seus carros consertados. Talvez eu pudesse
acelerar os negócios com alguns arremessos de bola bem
posicionados pela manhã. Eu balancei minha cabeça. Agora eu
estava tentando foder com os carros das pessoas só para levar
ela para sair? Não, eu faria isso direito e encontraria um jeito.
De volta para casa, tentei evitar olhar para a janela dela, mas
dei uma espiada. Ela puxou a camisa pela cabeça com as
cortinas bem abertas.
Meu coração disparou e espalmei meu pau, me sentindo um
babaca por observá-la, até que ela olhou e sorriu. Ela
desabotoou a calça jeans e parou na janela aberta.
Minha ereção não era mais uma dúvida. Eu apalpei a gaveta
para pegar meu bloco de esboços. Seu corpo merecia ser
imortalizado.
Ela se virou e desabotoou o sutiã antes de fechar as cortinas
e encerrar o show.
Eu sufoquei uma risada e respirei fundo para acalmar meu
pau, tentando me impedir de pular a cerca que separa nossos
quintais e fazer algo monumentalmente estúpido.
Ela era uma encrenca absoluta. Quem saberia que minha
vizinha que anda de bicicleta tarde da noite, toca violão, perita
na equipe de palco poderia ser tão perigosa para minha
sanidade mental? Mas aqui estava eu, e não mudaria nada.
Sentei na cozinha encostada no balcão em frente às persianas
ripadas, a única coisa que encobria a vista de mim. Lá fora, o
zumbido do cortador de grama se transformou em um
estrondo, fazendo coisas comigo que eu nunca pensei que o
som do cortador de grama pudesse fazer. Pode ter algo a ver
com o cara suado empurrando-o para cima e para baixo em
nosso pátio da frente, mantendo linhas meticulosamente
caprichadas.
Ele endireitou a última fileira e eu corri para a sala de estar,
segurando minha caneca de café agora frio. Eu fingi estar
bebendo mais cedo, mas desisti de todas as pretensões a essa
altura.
Sua boca se contorcia toda vez que ele cortava a grama de
frente para minha casa. Ele sabia que eu o estava observando. E
eu sabia que ele sabia que eu o estava observando, mas nós dois
fingimos que ele decidiu vir cortar a grama pela bondade de seu
coração e eu também era péssima em beber uma bebida de
forma eficiente.
Sem camisa e com uma toalha jogada por cima do ombro
direito, eu não era a única apreciando a vista da tarde de
primavera.
— Bay?
Eu dei um grito, encharcando minha camisa com café frio.
— O que está acontecendo?
Mamãe espiou pelas persianas e se virou para mim com um
olhar de compreensão.
— Eu desci para pegar um copo. — Entrei na cozinha atrás
dela e coloquei minha caneca agora vazia na pia.
— Claro. E a sua distração não tem nada a ver com o nosso
vizinho lá fora cortando a grama? — Ela pegou sua própria
xícara de café, sorrindo.
— Pode ser um pouco.
— Ele certamente parece estar aparecendo aqui muito mais.
— Ele é prestativo.
— Eu só espero que você esteja se protegendo.
— Mãe. — Um grito exasperado.
— Estou trabalhando à noite. Você acha que eu não sei o
que pode acontecer enquanto estou fora?
— Ninguém além de Piper esteve nesta casa enquanto você
estava no trabalho.
— Isso significa que você vai para a casa dele, então?
— Eu nunca estive na casa dele. Mãe, pare com isso. — Eu
coloquei minhas mãos sobre meus ouvidos.
— Seu pai e eu criamos você, mas sei que você não é mais
uma criança. A faculdade é daqui a alguns meses. Você esquece
quem eu vejo no hospital todos os dias.
— Eu não… nós não… nós não estamos… eu ainda sou... —
Eu arrastei minhas mãos pelo meu rosto. — Dare e eu somos
amigos. Isso é tudo.
— Algo me diz que ele gostaria que isso mudasse.
— O que te faz pensar isso?
— Ele olhou para cima pelo menos vinte vezes desde que
vim aqui. — Ela passou e apertou meu braço. — Se proteja.
— Você me deu A Conversa na sexta série.
— Eu quis dizer com o seu coração. — Ela pressionou a mão
contra o centro do meu peito. Tinha uma centelha de tristeza
em seus olhos antes de sair do cômodo. Seus passos soaram
acima da cabeça.
Olhando pela janela, eu não pude evitar o batimento
cardíaco gaguejante que me dominava toda vez que ele olhava
para cima e sorria para mim. Peguei ingredientes dos armários
e preparei uma massa que eu conhecia sem precisar de uma
receita. Um toque de baunilha e algumas gotas de chocolate
levaram minhas panquecas de leite coalhado de nada mal a
muito bom.
Com três panelas no fogo, distribuí a massa e as empilhei em
um prato.
O zumbido do cortador de grama parou, banhando a casa
em um silêncio absoluto.
Ele puxou o cortador atrás de si em direção à garagem.
Larguei a espátula e corri para a porta da frente. A grama
recém-cortada molhada entre meus dedos dos pés.
— Há panquecas extras, se você quiser. — Eu dei de
ombros, falhando miseravelmente em agir normalmente.
— Claro. — Ele estacionou o cortador e me seguiu para
dentro, enxugando o pescoço com a toalha. Seu corpo brilhava
ao sol da manhã. Infelizmente, ele puxou a camiseta pendurada
no bolso de trás ao invés de ficar sem camisa. Estava na ponta
da minha língua dizer a ele que eu não me importava. Meu
olhar percorreu seu corpo como um lobo faminto. Tanta
tentação em um pacote tão grande.
Eu segurei a porta aberta para ele.
Ele entrou, suas narinas dilatadas antes que o alarme
enchesse seus olhos.
Minha cabeça girou. Fumaça saía da cozinha.
— Merda. — Entrei correndo e joguei a panqueca
carbonizada e fumegante na pia, colocando na água. Ainda
mais fumaça saiu da pia de metal. Eu empurrei a janela,
abrindo-a.
Peguei uma toalha e a girei acima da cabeça para manter a
fumaça longe do detector no teto.
Dare passou correndo por mim.
— Vou cuidar das outras panquecas.
Mais fumaça saiu das panelas. Ele desligou as chamas e
despejou o resto das panquecas queimadas que sobraram na
pia. Tossindo, continuei abanando.
Ele as colocou sob a água corrente para que não se tornassem
uma bagunça carbonizada.
Meus olhos lacrimejaram, formigando com a manteiga
queimada e a massa que virou bomba de fumaça.
O ar fresco entrou no cômodo. Agora o cheiro não era
apenas fumaça carbonizada do café da manhã, mas também
grama recém-cortada. Ele abriu duas outras janelas e a porta da
frente, deixando a tela fechada.
— Obrigada.
— É o mínimo que eu poderia fazer depois que você fez isso
para mim.
— O quê? Não, eu não fiz. Eu já as tinha feito.
Ele se aproximou ainda mais. Cheirava a grama e suor. Eu
nunca pensei que isso me agradaria, mas eu queria agarrá-lo e
puxá-lo contra mim.
Nossos corpos roçaram um no outro a cada respiração.
— Quando você vai aprender que eu estou sempre te
observando, Bay? — Ele olhou nos meus olhos com um fogo
que exigia, pelo menos, os corpos de bombeiros de três cidades
para apagar.
Eu travei meus joelhos, tentando me manter em pé. Se eu
caísse no chão, não estaria mais o mais perto possível de seus
lábios. Os que estavam se aproximando em um ritmo
insuportavelmente doloroso.
Eu respirei fundo, estremecendo, e olhei em seus olhos.
— Você está?
Ele assentiu como se fosse uma admissão solene.
— Eu vi você pegar a baunilha e as gotas de chocolate. A
dancinha que você fez quando virou cada panqueca. — Seu
dedo deslizou pelo meu braço.
Arrepios acompanharam as batidas do meu coração. Eu
engoli como se nunca tivesse feito isso antes.
— Eu pensei que você pudesse estar com fome. — Minha
voz estava ofegante.
— Estou sempre com fome. — Seus lábios caíram sobre os
meus. Suas mãos envolveram meus braços, me ancorando a ele.
Tudo congelou antes de rugir a frente como um trem em
alta velocidade. Eu agarrei sua camisa úmida e suada em minhas
mãos, puxando-o mais para perto, embora estivéssemos
entrelaçados.
As partes de trás das minhas pernas bateram contra a mesa,
derrubando os copos e batendo contra a parede.
— Está tudo bem, Bay?
Nós nos separamos. Ofegantes. Meu coração pulou, dando
saltos loucos no meu peito.
Ele sorriu para mim, um tipo de sorriso de vitória em jogo
grande que me fez procurar pompons.
Os passos da minha mãe atingiram as escadas.
Ele recuou, colocando algum espaço entre nós.
— Uau, o que aconteceu aqui? Algo estava pegando fogo?
— Minha mãe entrou, balançando a mão na frente do rosto.
Abaixei minha cabeça e coloquei meu cabelo atrás da orelha.
— Bay me deixou tentar fazer uma rodada de panquecas e
eu estraguei tudo. Desculpe, Molly.
— Não se preocupe nem um pouco. Vocês dois já
comeram?
— Só uma mordidinha para mim, então estou morrendo de
fome agora. — Dare pegou o prato que minha mãe estendeu
para ele e olhou para mim.
Um dominó de ondas de desejo percorreram meu corpo. O
que teria acontecido se minha mãe não tivesse descido?
Nossos pés roçaram um no outro sob a mesa. Cada vez que
acontecia, meu olhar disparava para minha mãe.
Dare terminou pelo menos oito panquecas antes de ir para
casa.
Eu o acompanhei até o final da minha garagem. Nossas
mãos roçavam a cada passo, o que não era acidental. Eu queria
estender a mão e agarrar a dele, entrelaçando meus dedos com
os dele, mas as mantive ao meu lado, não ousando o suficiente,
mesmo depois do intenso beijo que ainda permanecia em meus
lábios.
— Aonde você vai à noite, Bay? — Ele apoiou o braço no
teto do carro.
— Você quer saber?
— Eu quero saber tudo sobre você. — Seus dedos roçaram
a frente da minha camiseta, então o tecido mal escovou minha
pele.
— Venha aqui às dez e eu vou te mostrar.
Suas narinas dilataram e seu olhar se intensificou.
Abaixei minha cabeça e coloquei meu cabelo atrás da orelha.
— Você pode me levar até lá e ver por si mesmo.
Ele assentiu, deixando sua mão cair para longe de mim. Até
mesmo a ausência dos toques mais básicos me atingia como
uma perda. Seu olhar cintilou para minha casa. Ele abaixou a
cabeça, aproximando-a da minha.
— Estarei aqui às dez.
Eu fiquei do lado de fora até que sua figura recuou ao virar
a esquina.
Minha tarde se transformou em noite. Dever de casa
finalizado, peguei o violão e dedilhei suavemente as cordas,
rabiscando as palavras que saíam de mim sempre que minha
caneta se aproximava do papel.
Mamãe parou na porta em seu uniforme.
— Correio para você. — Mamãe deslizou a carta na cama ao
meu lado.
Sob seu olhar atento – embora ela estivesse fingindo olhar
para outro lugar – rasguei o envelope com o logotipo da UCLA
no canto superior esquerdo.
Minhas mãos tremiam, dificultando o seguimento das
linhas, e meus olhos mal conseguiam rastrear cada frase. O
cifrão no intervalo entre os parágrafos fez minha cabeça girar.
Eu estendi o papel para ela.
Seus olhos percorreram o papel e um sorriso enorme
apareceu em seu rosto.
— Você conseguiu! — Ela me apertou com força, me
balançando para frente e para trás. — Você tem certeza? — Seu
olhar estava cravado no meu. Orgulho e felicidade
transbordando do canto de seus olhos.
— Sim. — Minha boca estava seca. — Claro. UCLA, aqui
vou eu.
— Você vai adorar lá. A maneira como seu pai falava sobre
o campus… gostaria que ele pudesse estar lá conosco quando
você se mudar.
Minha garganta se apertou.
— Eu também. Contabilidade assim como ele também.
Você sabe o quanto eu amo planilhas. — Eu poderia acioná-las
com facilidade, ao contrário de quando tentei espremer para
fora uma nota e minha garganta parecia um portão
enferrujado. Cantar para Dare me deu esperança, no entanto.
Talvez eu possa fazer isso. Talvez, no meu período em Los
Angeles, eu pudesse transformar minhas eletivas em outra
coisa. Estagiar em um estúdio. Talvez Freddy possa ter alguns
contatos.
Ela riu como se eu devesse levar meu show de comédia para
uma turnê e repensar a faculdade ao mesmo tempo.
— Ele sempre disse que o conquistou aos poucos. Estou
indo... — ela se levantou e congelou, vendo o violão fora do
estojo e encostado na minha mesa. — É do seu pai?
Eu concordei.
— Ele adorava tocar com você. — Sua voz estava
melancólica e triste. — Mas aquele mundo nunca foi bom para
ele. Tantos começos falsos e promessas quebradas. Cada vez
que ele voltava de uma sessão de estúdio ou apresentava sua
demo a alguém e nada acontecia, isso esmagava um pouco mais
sua alma.
— Ele amava mesmo assim.
— Talvez ele não devesse. — Ela balançou a cabeça. —
Todas aquelas noites tardias no estúdio. Se ele estivesse
descansando e dormindo, e não se esforçando tanto...
— Os médicos disseram que poderia ter acontecido a
qualquer momento. E ele amava o estúdio. Ele amava estar lá
com Freddy.
— Freddy. — Ela bufou com desdém antes de fechar os
olhos e balançar a cabeça. — Quais são seus planos para esta
noite?
— Terminar os trabalhos escolares. — Fiz um gesto para os
livros na minha mesa. — Eu também preciso revisar as notas da
equipe técnica para a cerimônia de premiação do último ano na
quarta-feira.
— Você está sempre tão ocupada. — Ela voltou para o meu
quarto e me beijou na testa. — Se comporte e tranque a porta
quando eu for embora. — Ela parou na porta e bateu a mão no
batente. Sua boca se abriu e ela a fechou novamente antes de
acenar e descer as escadas.
Depois de mais alguns minutos, a porta da frente se fechou.
Sentei na minha cama em silêncio, esperando qualquer
indício de que ela estava voltando. Ainda faltavam duas horas
até que eu precisasse encontrar Dare.
Peguei o violão e deixei aqueles sentimentos fluírem por
mim. A antecipação. A sensação de seus lábios nos meus. A
cada segundo os olhos dele estão em mim.
Faltando cinco minutos para as dez, juntei tudo o que
precisava esta noite.
Abri a porta da frente e gritei, quase caindo no braço
estendido de Dare pronto para bater na porta.
— Dare. — Eu não queria que tivesse saído tão ofegante.
— Ei, Bay. — Ele exibia aquele sorriso preguiçoso como um
par de Vans perfeitamente ajustados.
Eu saí, trancando a porta.
Dare não recuou, então minhas costas pressionaram contra
seu peito.
— Onde estamos indo?
Eu olhei para ele por cima do ombro e enfiei minhas chaves
na minha bolsa.
Ele fechou a porta do meu lado do carro e entrou. O motor
rugiu e eu abaixei a cabeça, torcendo para que ninguém na rua
estivesse prestando atenção.
Dei instruções a Dare e logo chegamos ao estúdio.
— Você deve estar brincando comigo. Você tem vindo aqui
todas as noites sozinha? Na sua bicicleta? O que diabos é tão
importante que você se arriscaria assim, Bay! — Havia uma
onda de raiva em suas palavras.
Ela me encarou de volta com descrença, uma pitada de medo
piscando em seus olhos iluminados pela luz suspensa oscilante
da rua.
Eu respirei fundo.
— Bay. Este não é um lugar onde você deveria ir tão tarde
da noite.
— Então você pode ir para casa. Tenho trabalho a fazer. —
Ela abriu a porta e a fechou, balançando o chassi do meu carro.
Eu pulei para fora e a segui. O pavimento molhado estava
escorregadio sob meus pés, e eu a alcancei e fiquei em seu
caminho.
— O que estamos fazendo aqui? — A rua estava vazia. Eu
esperava que uma bola de feno passasse rolando. Esta era uma
parte merda da cidade, e meu carro não era exatamente
discreto.
Seus lábios se contraíram e ela olhou para o céu escuro como
breu com as mãos nos quadris.
— Não é da sua conta. Se você estiver com muito medo ou
algo assim, vá para casa.
— Eu não vou deixar você aqui. Como você voltaria para
casa?
— Eu não quero você aqui agora.
— Que pena. Eu não vou embora. — Olhei por cima do
ombro dela para o meu carro parado sob a luz da rua, a pintura
imaculada é um sinalizador para alguém vir e foder com ela.
Ela me contornou.
— A postura de proteção já é velha. Volte para o carro,
então.
— No que você se meteu, Bay?
Ela parou.
Eu quase a atropelei e coloquei minhas mãos em seus
ombros para impedir que nós dois caíssemos para frente.
— Você acha que eu sou uma stripper de fim de semana ou
algo assim?
— Esse cara está te causando problemas? — Um cara
enorme que parecia metade Papai Noel, metade Hells Angel14
estava na calçada, batendo um taco na palma da mão. Ótimo,
agora eu teria que bater no Noel do clube de motoqueiros para
tirar Bay daqui.
— Está tudo bem, Freddy. Ele estava indo embora.
14
O Hells Angels Motorcycle Club é um clube de motociclistas, qualificados
como moto clube (MC), em que os membros tipicamente são homens e pilotam
motocicletas Harley-Davidson. Várias agências policiais e de inteligência
internacional, incluindo o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e a
Europol, consideram o clube um sindicato do crime organizado.
Prendi minha mão em volta do braço dela enquanto ela
tentava passar, sem tirar meus olhos do cara que tinha que ter
pelo menos um metro e noventa.
— Você o conhece?
— Não. — A voz dela estava cheia de sarcasmo. Ela se
desvencilhou do meu aperto e foi em direção ao prédio.
Saindo da minha postura atordoada, corri atrás dela.
Ela desceu correndo as escadas atrás de Freddy, o Noel do
clube de motoqueiros, sem olhar para trás.
Ele bloqueou meu caminho com os braços cruzados sobre o
peito.
Minhas narinas dilataram e eu cerrei meus punhos ao lado.
— Ela não me disse para onde estávamos indo, e eu estava
sendo duro com ela por vir aqui tarde da noite sozinha.
Sua postura relaxou e ele descruzou os braços.
— Eu venho dizendo a ela a mesma coisa há anos. — Ele
balançou a cabeça e estendeu a mão. — Fredrick Isaac, mas
todos me chamam de Freddy.
O nome tilintou algo no fundo da minha cabeça, mas agora
eu estava preocupado com Bay desaparecendo pela escada
escura que conduzia a sabe-se lá onde.
Me preparando para eu-nem-mesmo-sabia-o-quê, olhei, mal
me impedindo de esfregar os olhos quando passamos pela porta
na parte inferior da escada. As paredes eram vermelhas e
cobertas com fotos de músicos e álbuns de ouro e prata. Pisos
de madeira fluíam pela área, e havia luzes fracas em todo o
exterior, fazendo com que todo o lugar parecesse uma boate.
— Que lugar é este? — Eu segui Freddy.
Bay não estava em lugar nenhum à vista.
— Apenas o melhor estúdio de gravação de Chicago. — Ele
recitou os nomes das atrações musicais das últimas cinco
décadas que passaram por esses corredores.
Bay estava gravando um álbum secretamente? Parte de mim
estava dividido entre querer que aquelas músicas fossem algo
que apenas nós compartilhássemos, mas também algo de que
ninguém mais deveria ser privado.
Ele parou do lado de fora de uma porta no final de um
corredor cheio de outras portas.
— Quais são suas intenções com Bay?
Minha boca abriu e fechou.
— Nós somos… ela é… minhas intenções são não fazer nada
que possa machucá-la.
Seu olhar se estreitou e ele me olhou de cima a baixo.
— Ela tem uma voz incrível.
Suas sobrancelhas saltaram.
— Ela cantou para você?
— Algumas vezes.
— Então eu acho que não posso te expulsar, se você significa
tanto para ela. Eu não a ouço cantar uma nota desde que seu
pai morreu. — A tristeza nublou seus olhos, mas depois se foi
como uma tempestade de verão.
As palavras dele foram como um dardo atirado direto no
meu peito. Se você significa tanto para ela. A frase soou em
meus ouvidos enquanto ele empurrava a porta.
Bay estava sentada atrás de uma enorme placa com botões,
alavancas, controles deslizantes e um monitor de computador.
Suas pernas estavam dobradas sob ela em uma cadeira de
rodinhas. Seu olhar se voltou para a porta antes de estalar para
frente quando ela me viu por cima do ombro de Freddy.
— Vou deixar Bay fazer uma tour pelo estúdio com você. —
Ele me deu um tapinha no ombro. — Eles estão viajando a
caminho de Chicago, então só chegarão daqui a uma hora, Bay.
Vou verificar com a agente deles para ver se está tudo bem ele
ficar aqui.
— Ele está indo embora. — Ela rolou para a tela do
computador.
— Vou verificar apenas no caso de ele decidir ficar. — Seu
sorriso se alargou. — Boa sorte — ele murmurou baixinho na
saída da porta.
Respirei fundo e peguei a cadeira perto da porta, virando-a
e estacionando ao lado dela.
— Você tem escapado para trabalhar em um estúdio de
música.
— Puxa, como você solucionou esse mistério? — Ela não
olhou para mim, apenas continuou a ajustar os botões e os
níveis.
— Me assustou para caralho pensar em você andando de
bicicleta em uma rua escura e deserta para chegar aqui todas as
noites.
— Estou fazendo isso há um ano e meio. Eu não preciso da
sua proteção.
— Você age como se eu tivesse uma escolha. Não consigo
evitar de me preocupar com você.
Ela zombou.
— Três beijos e você já está bancando o namorado
superprotetor.
Eu respirei fundo. Namorado. Eu revirei a palavra na minha
cabeça.
— Eu não quis dizer que você é meu namorado… eu só quis
dizer… não é nada, deixa pra lá. — Mesmo na penumbra do
estúdio, o rubor de suas bochechas brilhava.
Agarrando os dois apoios de braço da cadeira dela, eu a girei
para ficar de frente para mim.
— Você não sai da minha cabeça, Bay. Desde aquele beijo e
aquelas panquecas, eu quero mais. E saber que você tem feito
isso na maioria das noites, se colocando em risco, me deixa um
pouco louco e me assusta.
— Mas Dare…
— Eu sei, você tem feito isso por conta própria. E eu sei que
em alguns meses você vai embora para a faculdade e estaremos
talvez a milhares de quilômetros de distância. — Meus joelhos
bateram na beirada da cadeira dela. — E eu sei que alguns meses
atrás eu nem teria notado, mas eu era um puta otário e eu noto
agora. Eu não posso evitar. É uma reação involuntária quando
você está por perto, e mesmo quando você não está. — Suas
pernas se acomodaram dentro das minhas, um pouco da tensão
desaparecendo de sua postura.
Inclinando-me mais para perto, segurei sua cadeira para
impedi-la de rolar para longe. O roçar de suas pernas contra a
costura interna da minha calça jeans e o baque da minha
pulsação no meu aperto no assento estreitou tudo no meu
mundo, até a conexão que nos prendia juntos como um fio
elétrico.
Desde a última vez que provei seus lábios, tudo o que pude
fazer foi manter minha mente focada no meu treino esta tarde
e no Bedlam Bowl chegando em duas semanas. Todo o resto
sumiu em comparação com a curva completa de seus lábios e a
maneira como ela piscava os cílios quando encontrava meu
olhar, como se o beijo a tivesse chocado tanto quanto a mim.
— Dare? — Havia uma pergunta em seu tom como se ela
também não entendesse o que estava acontecendo. A atração
magnética não era uma da qual eu queria me livrar.
Um estrondo atrás de nós nos separou. O lugar foi banhado
com uma relativa claridade do corredor escuro para o estúdio
ainda mais escuro.
— É aqui que eu gravo? — Um cara estava parado na porta,
na sombra, com um estojo de violão nas mãos.
— O outro… — Sua voz estava rouca. Ela limpou. — O
próximo conjunto de portas abaixo. — Ela balançou a cabeça.
— Eu vou te mostrar.
A rota de fuga que eu neguei a ela antes estava bem aberta.
Levantando, ela olhou para mim antes de sair correndo.
Arrastei minhas mãos pelo meu rosto. Pressioná-la não era o
que eu queria fazer.
Os segundos se passaram e eu encarei o outro lado da janela
de vidro que cobria a parede inteira. Um piano, violões e uma
bateria completa enchiam o espaço. Todos os botões e
alavancas na placa de som foram etiquetados e a tela do
computador preenchia o espaço com um brilho azul. Até meus
próprios pensamentos pareciam silenciados no espaço à prova
de som. O sangue correndo em minhas veias foi abafado e
silenciado, e uma calma tomou conta de mim. Eu entendi
porque ela gosta deste lugar.
Às vezes tudo dentro da minha cabeça parecia muito alto,
mas aqui tudo acalmou.
A porta se abriu. Bay entrou correndo com um pedaço de
papel nas mãos.
— A boa notícia é que você pode ficar. A má notícia é que
você precisa assinar isso. Lembrei-me de primeira desta vez. —
Ela balançou os braços se auto-parabenizando.
Ela empurrou um documento grosso e uma caneta na
minha mão.
— Um acordo de não-divulgação? Quem diabos está vindo?
— Quando você assinar, eu posso te dizer. — A curiosidade
tornava impossível ir embora. Assinei meu nome na parte
inferior do documento, onde as pequenas etiquetas me diziam
para assinar. A última vez que fiz isso foi na cerimônia de
assinatura do meu recrutamento. Uma acidez inundou um
pouco da intriga correndo em minhas veias.
A porta se abriu novamente. Desta vez, uma mulher com
longos cabelos pretos presos em um rabo de cavalo alto ficou
no caminho.
— Ele assinou?
Bay concordou.
A mulher estendeu a mão com a palma para cima e fez um
gesto para entregá-la.
Bay deu a ela os papéis e ela os folheou, olhando para mim
entre cada linha de assinatura, como se pudesse de alguma
forma dizer se eu tinha usado tinta invisível ou um nome falso.
— Legal, vou buscar os caras. — A porta se fechou com um
ruído silencioso.
— Os caras?
Bay sorriu.
E foi assim que passei o tempo até às cinco da manhã
curtindo com os caras do Without Grey.
O dinheiro trocou de mãos depois que a porta se abriu e eu
gritei como se um palhaço com uma faca de açougueiro
estivesse me perseguindo.
Freddy se moveu pela ampla placa de controles deslizantes e
botões fazendo sabe-se lá o quê. Mas eu estava fascinado por
Bay estar do outro lado do vidro, sentada com Camden para
uma das canções que Lockwood ficou de fora.
Ela saltou para fora do estúdio e agarrou meu braço, quase
o arrancando do lugar.
— Eles querem usar meu violão de apoio para preencher o
som do álbum. — A felicidade derramou por ela em ondas.
Uma felicidade contagiante que não pude deixar de absorver.
— Isso é incrível. — Corri minha mão ao longo da lateral de
sua bochecha, seu cabelo roçando nas costas da minha mão me
fazendo cócegas.
O resto dos caras entrou no estúdio.
— Eles já ouviram você cantar?
Todos os olhos se voltaram para nós.
— Você também canta? — Camden descansou seu braço
nas costas da cadeira de Freddy e a olhou de cima a baixo.
Por uma fração de segundo eu queria pular sobre as duas
pessoas entre nós e quebrar a maldita mandíbula dele. Meu
braço apertou a cintura dela.
— Ela canta.
— Dare. — Ela sussurrou para mim através dos dentes
cerrados.
— Apenas tente. — Eu beijei a lateral de sua cabeça.
Segurei sua mão e me posicionei atrás dela. Seu pulso
martelou contra o meu aperto ou talvez fosse por causa do quão
apertado eu estava segurando ela de volta.
Ela abriu a boca e cantou o primeiro verso e refrão de
“Emotional Gridlock”.
Os caras olharam para ela boquiabertos.
— Por que diabos você não nos contou? — Camden saltou
de seu encosto contra a placa.
Ela abaixou a cabeça, suas bochechas indo além do
vermelho-tomate, e deu de ombros.
— Isso foi demais, Bay. — Ele sorriu para ela e ela sorriu de
volta.
A porra do monstro no meu peito foi enfiado bem no
fundo. Ela merecia sua chance de brilhar.
— Gente, vocês conseguiram?
— Conseguimos, Maddy, e você não vai acreditar quem
sabe cantar.
A cabeça de Maddy se inclinou e ela assentiu e rabiscou em
seu tablet com sua caneta.
— Arquivando isso. Já que vocês terminaram, precisamos
sair. Estaremos de volta amanhã. Freddy, obrigada como
sempre.
— Sempre que precisar, Madison.
— E Bay, vemos você amanhã?
Bay olhou para mim com a boca aberta.
— Sem dúvida.
No caminho de volta, eu estava mais empolgado do que ela.
Ela se sentou inclinada em seu banco, me observando.
— Você não está surtando com isso? Você tocou com
Without Grey! Você se sentou ao lado de Camden Holmes e
tocou uma música nova que ninguém nunca ouviu antes. E
você cantou para eles.
— Confie em mim, o cantar está me fazendo voar alto, mas
tocar com eles? Parece mais natural agora. Eu estava
definitivamente surtando na primeira vez.
Eu quase saí da estrada.
— Você já fez isso mais de uma vez?
— Há um mês. Tivemos algumas sessões entre as datas da
turnê deles.
— Puta que pariu, Bay. — Como eu nunca a vi? Tipo,
realmente a vi. Haviam pessoas que andavam pelos corredores
como se fossem deuses porque conseguiram ingressos da
terceira fila para vê-los em sua última turnê e Bay se sentou ao
lado deles em um estúdio tocando junto como se ela
pertencesse ali. E ela pertencia. Ela era boa nesse nível.
— É bem legal. — Ela estava tentando minimizar a noite
inteira.
— Isso nem mesmo chega perto de descrever tudo.
O sol da manhã insinuou que sua chegada se aproximava.
Ela cobriu a boca com uma mão, capturando seu bocejo.
— Você vai conseguir ficar acordada na escola?
Seu ombro pulou.
— Tenho feito isso desde o primeiro ano. Não há razão para
pensar que não consigo agora.
— Vou trazer um café para você e te dar uma carona para a
escola. — Eu tinha o suficiente para passar pela loja de
conveniência e comprar um café para nós dois. Ela adoraria um
mocha.
— Não precisa. Vou na minha bicicleta.
— Bay, qual é. Me deixe levá-la. — Entrando na escola com
meu braço ao redor do ombro de Bay, todos saberiam que
estamos juntos.
Estacionamos em sua garagem. Ela abriu a porta e saltou do
meu carro como se, de repente, ele tivesse se tornado
eletrificado.
— Está tudo bem. Eu vou ficar bem. Tenho que encontrar
Piper mais cedo para revisar as anotações para a prova de
biologia. — Ela enfiou a cabeça pela porta aberta.
— Eu posso ir mais cedo.
— Realmente, Dare. Não é grande coisa. — Ela mordeu o
lábio e então percebi.
Ela não queria que ninguém soubesse que estávamos juntos.
É por isso que ela não acenou para mim quando eu estava
jogando bola com Knox no quintal ou nunca falou comigo na
escola, a menos que fosse necessário, como em nosso projeto de
grupo. Algumas vezes fiquei em seu armário e jurei que a tinha
visto, apenas para ela desaparecer.
— Talvez pudéssemos…
— Obrigada por vir esta noite. Te vejo na aula. — Ela
fechou a porta antes que eu pudesse responder.
Dirigi de volta para a casa silenciosa como se estivesse
sentado sob minha própria nuvem escura. Servindo-me de uma
tigela de cereal e não colocando o leite, que tinha estragado, eu
o mastiguei, tentando não dissecar todos os sentimentos que
corriam por mim. O auge de Bay finalmente me contando para
onde ela estava indo. O quão puto fiquei quando chegamos lá.
Como foi bom para ela se virar para mim quando era hora de
cantar e depois como me senti, como se tivesse levado um chute
nos dentes com um par de chuteiras recém-abertas por ela
quase pular do meu carro em movimento com a ideia de ser
vista comigo na escola.
A agitação nas minhas entranhas era feia e irritada. E me fez
querer colocar meu tênis e correr até desmaiar.
Minha hora tinha chegado – de novo. A grande celebração para
encerrar nossa temporada de conquistas coroadas estava aqui.
Esta era a quinta realizada na minha casa este ano.
Não tinha sido ideia minha dar a festa esta noite, mas
quando Knox e Bennet sugeriram, eu não tinha dito não. Eu
deixei o comitê de planejamento da festa assumir, dando-lhes
acesso à minha casa como sempre fiz.
Uma vantagem de ter uma casa onde as pessoas se
aglomeravam para festas era que eu nunca precisava comprar
minha própria bebida. Mas ele voltaria em breve. A nuvem
sempre pairando na distância esperando para entrar em minha
vida e rasgá-la em pedaços novamente. A cada dia que ele estava
fora facilitava a respiração, mas quanto mais tempo ele ficava
fora, mais pesado ficava, porque era apenas uma questão de
tempo até que ele voltasse.
Esta noite era a noite para esquecer tudo isso – pelo menos
por um tempo. Esta era a festa do último ano para encerrar
todas as festas. Por que eles não queriam tê-la em uma das casas
chiques com piscina, eu nunca saberia.
Eu me inclinei no balcão da cozinha com uma cerveja na
mão. O balcão de linóleo rachado e deformado era o lugar
perfeito para mais caixas de cerveja e algumas garrafas de licor
que alguém havia arrumado. Rolei a garrafa entre as mãos,
fingindo que estava prestando atenção em qualquer história de
viagem de recrutamento que Bennet estava contando. Com a
cabeça baixa, encarei a boca aberta da minha cerveja. A mesma
cerveja que eu estava bebendo desde que eles trouxeram os
barris, três horas atrás.
Festas eram fáceis de sair impune quando seu pai não dava a
mínima para você e ficava na estrada 300 dias por ano. Ainda
eram 65 dias muito curtos para mim. Outro fator era não ter
nada que valesse a pena no lugar inteiro. Era simples, o que o
tornava perfeito para menores de idade barulhentos do ensino
médio beberem e tocarem música alta a noite inteira.
Da janela da cozinha, pude ver diretamente a casa de Bay. A
luz estava apagada em seu quarto. O alívio passou por mim. Ela
mencionou ir para o estúdio esta noite depois da equipe de
palco, o que significava que ela não estaria em casa antes do
amanhecer.
Eu não a queria perto desses idiotas. Além de Knox, eu
nunca iria querer nenhum desses caras respirando o mesmo ar
que ela. Mas uma parte de mim deixou essa festa acontecer
mesmo quando eu não queria por raiva. Quando Bennet
enviou a mensagem, eu poderia ter dito não. Eu poderia ter dito
a ele que ficaria para a próxima, mas não disse.
Ela me dispensou. No dia seguinte à nossa noite no estúdio,
de alguma forma, onde quer que eu estivesse, ela não estava.
Nos corredores, seu armário permaneceu fechado. Na aula, ela
sempre mantinha o olhar fixo na frente da sala, rabiscando
anotações, embora todos os outros já tivessem se estabelecido
há muito tempo em seu padrão de espera do último ano.
Engoli minha cerveja quente, jogando a garrafa na pilha de
latas e copos plásticos transbordando da lata de lixo. Os
calouros foram encarregados de limpar a merda depois das
festas do time. Peguei outra cerveja, abri a tampa e terminei
antes que pudesse me conter. Alguém distribuiu copos
plásticos vermelhos de ponche e, em vez de acenar recusando
como sempre fazia, peguei um e virei a metade.
O licor forte zumbiu em minhas veias, indo direto para
matar.
Foi um remédio para a queimadura dela fugindo do meu
carro. Fugindo de mim. Talvez na luz do amanhecer, o que
quer que ela sentisse por mim empalideceu em comparação a
passar as madrugadas com Without Grey.
E eles a ouviram cantar. A agente deles tomou nota disso. O
que aconteceria quando ela tivesse sua grande chance? Ela já
estava tocando no estúdio com uma das maiores bandas que
explodiram no topo das paradas. Sua vida tinha uma trajetória
que a impulsionou em direção a coisas que eu nem poderia
imaginar.
Neste momento, tudo o que eu poderia esperar era uma
vaga reserva em um time universitário para preencher uma
lacuna em sua lista, na esperança de ainda me tornar
profissional. Se eu fizesse isso, seria então digno dela?
As pessoas ao meu redor riam e gritavam, jogando gelo umas
nas outras, deslizando em cerveja e água dos coolers que
encharcavam o chão. Cantos desafinados acompanhavam a
música estrondeando o balcão contra minhas costas.
Agora, cercado por todas essas pessoas, eu queria sair. Fora
da minha própria casa e fora desta vida que eu tenho vivido por
tanto tempo. Eu não conseguia nem começar a descobrir como
começar algo novo, como escapar de onde fui colocado.
Eu não sabia dizer por que enviei a mensagem – talvez eu
tenha me reduzido ao status de peso leve depois de não ter
festejado muito desde que Bay e eu começamos a sair. Ou talvez
fosse outra coisa, algo que eu não queria enfrentar.
Ou cinco.
A bile que não tinha nada a ver com a bateria de ácido que
eu acabei de ingerir veio correndo pela minha garganta.
15
No futebol americano, tackle significa interceptar o avanço de um jogador
adversário, com a posse da bola, derrubando-o ao chão. É o movimento que
finaliza a maioria das jogadas e é a principal ação que um defensor deve executar.
Minha mão voou pelo papel, tentando preservar este
momento com o grafite, como se fosse ser apagado da minha
memória ou roubado de mim. Cada hora, que antes estava
correndo para minha liberdade e meu futuro, agora estava
correndo para um tempo sombrio em que Bay não estaria a
uma cerca de madeira frágil de distância de mim.
Eu a levei para o Ruby’s, mas ela não quis se sentar lá dentro.
Ela se abaixou, quase quebrando meu banco do passageiro,
tentando não ser vista por ninguém de nossa escola que pudesse
estar passando o tempo no estacionamento.
Depois de alguns apertos de mão e falando merdas
enquanto nosso pedido era preparado, voltei para o carro sem
ter certeza de que ela não tinha se escondido no porta-malas.
Voltamos para minha casa, já que sua mãe não estava
trabalhando esta noite.
— Sua mãe pensa que você está com Piper, não é?
As pontas de suas orelhas ficaram vermelhas e ela deu um
longo gole em seu milkshake de baunilha. Suas bochechas
ficaram sugadas como um peixe preso a um aspirador de pó.
— Talvez.
— Ela desaprovaria? — Não que eu a culpasse.
— Ela se preocuparia. É o que os pais fazem, certo?
Eu concordei. Bons pais. Isso é o que bons pais fazem. Os de
merda fazem muito pior. Segurei meu lápis com mais força, a
madeira rangendo em meu aperto.
Concentrando-me novamente no papel, respirei fundo e me
acomodei de volta à cena, sombreando os altos e baixos do
tecido de sua camisa ao redor de seu ombro.
— Já posso ver? — Ela se inclinou para frente, abaixando a
borda para trás com o dedo.
Peguei o bloco de esboços de volta para o lugar, segurando-
o mais perto do meu peito, virando meu pulso em um ângulo
estranho para manter as linhas onde eu as queria.
— Ainda não acabei. — Por que eu tinha tirado ele da
gaveta? Eu nunca deixei ninguém saber que eu os estava
desenhando antes. Sempre tinha sido através das janelas, do
banco do motorista do meu carro, ou de algum lugar que
ninguém me conhecesse – sentado aqui na frente dela,
traçando intimamente cada centímetro do corpo que eu tinha
me tornado tão familiarizado, era uma experiência nova.
Mas eu precisava capturar a maneira como ela olhava para
mim. Eu não fui capaz de manter meus dedos parados depois
que terminamos nossa comida.
Ela franziu o nariz para mim. As marcas do óculos, que ela
colocou na minha mesa, ainda apareciam em cada lado da
ponte de seu nariz.
Eu me inclinei para frente, empurrando-a de volta na cama.
O cinto da minha calça jeans tilintou e seu olhar disparou para
minha virilha. Por que ela simplesmente não tirou a blusa e
montou no meu colo?
Eu reprimi um gemido. Ela me provocava de maneiras que
me faziam questionar que porra eu estava fazendo. Por que eu
não fazia nada? Escalar pela janela dela ou pela porta dos
fundos, assistir a um filme e adormecer com uma garota em
meus braços não era exatamente como eu era conhecido, mas
me sinto bem.
Suas dicas não estavam sendo exatamente sutis, mas não era
a primeira vez que eu interpretava o atleta alheio.
— Vai ser eu com uma cabeça gigante em um skate
segurando um pirulito? — Ela voltou à posição na minha cama.
Esta era a primeira vez que mostro a alguém um dos meus
esboços rápidos, mas, por ela, eu faria isso. Por ela, eu faria
qualquer coisa.
Rindo, olhei para as linhas e curvas de lápis que não
conseguiam capturar um décimo de sua beleza. Essa garota fez
algo louco comigo. Ela me fez pensar coisas loucas sobre o que
eu realmente queria na vida, quem eu queria ser e com quem
eu queria estar.
No entanto, não estaria ajudando ninguém se eu acabasse
como frentista de um posto de gasolina e a impedisse de fazer o
que amava.
O treinador ainda não tinha dito nada, e eu nunca ouvi falar
de alguém assinando uma carta de compromisso assim tão
tarde em sua carreira.
Aparentemente, a notícia tinha se espalhado sobre mim,
porque as ligações pararam mesmo depois de verificarem com
o treinador para saber se eu tinha sido contratado. A equipe
que ainda estava interessada tinha que estar desesperada – bem,
eu também estava. Mas Bay ajudou a remover essas bordas
irregulares.
Sua voz era perfeita. Ela tirava algo de você, algo escondido
tão profundamente que te assustava. Quando ela tocava para
mim, os sentimentos eram tão crus e puros que era a borda da
navalha entre o prazer e a dor. Por mais que eu quisesse manter
tudo para mim, outras pessoas precisavam ouvir suas palavras,
se ela apenas permitisse.
Virando-a em meus braços, tomei um gole de seus lábios.
Como todas as outras vezes, um pouco não era suficiente.
“Faminto” era a única palavra que vinha à mente sempre que
nossos toques iam além de esbarradas.
Seus lábios eram pecaminosamente deliciosos, assim como a
refeição que ela fez para mim e as músicas que ela cantou para
mim. Bay tinha me arruinado para qualquer uma que viesse
depois dela, e eu não queria que houvesse mais ninguém. Era
como se ela tivesse sido enviada como um presente para mim
depois de tantos anos na escuridão. Uma luz, brilhante e
quente, para me guiar para fora das fossas da minha vida.
Ela montou em mim, esfregando seus quadris contra mim.
Meu pau estava com força total, rebelando-se contra os
limites do meu jeans e falhando miseravelmente. A dor
prazerosa se espalhou da minha virilha para o resto do meu
corpo. Eu reprimi um gemido.
— Você está nervoso com o seu jogo?
Eu agarrei sua cintura, tentando segurá-la no lugar para
limpar a névoa de sexo que nublava meu cérebro. Minha ereção
só estava pensando em uma coisa e não era no futebol. Eu cerrei
meus dentes e desviei meu olhar da nossa colisão coberta de
tecido e da pulsação do meu pau.
— Tudo o que preciso fazer é o que sempre faço.
— E o que é? — Ela colocou os braços em volta do meu
pescoço e brincou com o cabelo da minha nuca.
Um arrepio desceu pela minha espinha. Um animal
rastejante de felicidade sussurrando em meu ouvido que agora
era a hora. Foda-se todos os meus grandes planos, eu deveria
jogá-la na cama e mostrar a ela o quanto ela me deixava louco.
— Jogar como se fosse o último jogo da minha vida.
Seus dedos estavam me enlouquecendo. Tão macio com um
pequeno puxão a cada carícia.
— Por quanto tempo mais você vai bancar o cavalheiro?
Eu engoli, engasgando com o ar como se meus pulmões
tivessem esquecido como funcionar.
— Vamos jogar um joguinho. — Seus dedos desabotoaram
minha calça jeans.
Fechei minhas mãos sobre as dela.
— Nós…
Ela empurrou o dedo contra meus lábios. Tinha gosto de
minhocas azedas de goma que ela tinha comido antes.
— O nome do jogo é Bay Consegue Fazer o Que Ela Deseja.
— Sua mão empurrou para dentro do meu jeans sobre o cós da
minha boxer.
A antecipação se enrolou em meu peito como uma cobra
esperando para atacar.
Sua mão envolveu minha protuberância e tirou toda a
minha força para eu não conseguir afastá-la.
Libertando meu pau, ela o acariciou para cima e para baixo
com um olhar maravilhado em seu rosto. Sua inexperiência era
o centro das atenções, o que só me fez desejá-la mais. Eu queria
mostrar a ela o quão bom isso poderia ser, e não ter outra pessoa
estragando todas essas primeiras vezes apressando-a ou
forçando-a mais longe do que ela se sentia confortável.
Um movimento da sua mão e quase a derrubei. Seu aperto
era firme, mas macio. Eu cerrei meus dentes com tanta força
que minha mandíbula doía.
— Estou fazendo isso direito? — Ela olhou para mim, sua
mão continuando a me enlouquecer. O frenesi estava
crescendo. — Você pode me mostrar como você gosta?
Meu peito se apertou com força como se eu tivesse pego
uma interceptação e corrido para a end zone. Com um aceno de
cabeça, cobri sua mão com a minha e bombeei para cima e para
baixo em minha dureza.
O olhar de determinação em seu rosto teria me feito rir, se
eu não estivesse a segundos de jorrar nesta cadeira.
Bastou um toque suave de seu polegar sobre a cabeça do
meu pau e eu estava acabado. O espasmo me atingiu como se
esta fosse minha primeira vez. E foi – minha primeira vez com
Bay.
Ela continuou me bombeando até eu ficar hipersensível ao
seu toque. Nossas mãos estavam revestidas com a evidência de
como seu toque fez eu me sentir bem. Minha cabeça
mergulhou e um calor formigante ameaçou me engolir inteiro.
Mas eu não iria terminar o jogo agora.
Limpando nós dois, tentei manter minha frequência
cardíaca sob controle.
— Agora é minha vez de jogar.
Ela olhou para mim com um zumbido no seu peito.
— Como assim?
— Você realmente pensou que eu iria deixar você me
satisfazer e depois deixá-la sem nada?
— Eu não fiz isso para que você fizesse qualquer coisa
comigo. Eu só quis fazer. — O rubor de suas bochechas e a
maneira como ela abaixou a cabeça me mostraram o quão certo
eu estou em não pular direto na cama com ela. Como eu
provavelmente teria assustado ela para caralho e feito ela correr
para as colinas.
— Talvez eu só queira também. — Eu a puxei para frente
pelo cós do short.
Ela arfou, seus lábios se separando.
Meus dedos se moveram para os botões de seu short. Um
calafrio a percorreu com o estalo do plástico contra o tecido.
Eu deslizei minhas mãos por ela, mergulhando sob o cós.
Suas mãos cobriram as minhas, segurando-as no lugar.
— Eu... eu não acho.
— Só até onde você quiser. — Eu troquei da minha cadeira
para a cama.
Suas sobrancelhas arquearam.
Girando-a, eu a sentei entre minhas pernas com suas costas
pressionadas contra meu peito.
Ela olhou por cima do meu ombro, a pergunta ainda em
seus olhos.
Dei um beijo em seu pescoço e corri uma mão ao longo de
sua coxa, roçando contra a barra do short.
Minha outra mão deslizou sobre sua barriga e mergulhou no
início de seu short desabotoado, passando pelo cós de sua
calcinha e pelas suas ondas até o prêmio para fazê-la se sentir tão
bem quanto eu.
Suas costas descansaram contra as minhas. Ela afundou
contra mim enquanto eu separava seus lábios e afundava meus
dedos nela. Primeiro um e depois acrescentando um segundo.
— Dare! — Ela gritou e apertou os dedos em minhas coxas.
Eu só queria poder ver seu rosto. A visão de perfil dela era
linda. Seus olhos fechados, os lábios entreabertos, pequenos
suspiros e gemidos saindo de seus lábios.
Meu pau voltou à vida, mas eu só tinha um foco.
Seus dedos me agarraram com mais força e eu usei meus
dedos e polegar para manter os arrepios e suspiros crescendo.
Suas coxas apertaram com força em volta da minha mão e eu
continuei, dedilhando seu clitóris até que suas costas
arquearam e ela disparou para frente.
Eu a agarrei, segurando ela com um braço em volta de seu
peito. Salpicando seu pescoço com beijos, pisquei para conter
as lágrimas que brotavam em meus olhos. Ela confiou em mim
o suficiente para colocar seu prazer em minhas mãos. Com
todas as fibras do meu ser, eu a amava.
E eu nunca enfrentei nada mais assustador do que isso em
minha vida. Ela era o meu coração. Assisti-la ir embora seria
como cortá-lo fora e deixá-lo sair pelo mundo andando por aí
sem mim.
— A gravação começou há noventa segundos. — A voz de
Freddy estalou pelo interfone do estúdio. Ele não acendeu a
luz, mas eu podia sentir seu olhar impaciente em mim do outro
lado do vidro.
Alguém ligou o aquecedor aqui? Eu puxei meu colarinho.
Eu encarei o violão, não querendo olhar para a janela porque
então eu veria o reflexo de mim mesma e Freddy do outro lado.
Uma respiração instável assobiou pelos meus lábios trêmulos.
Eu os lambi, mas toda a minha boca estava seca como uma bola
de algodão.
Por que eu concordei com isso? Freddy tinha praticamente
me trancado aqui dentro até que eu prometi que daria uma
chance à gravação de uma única faixa.
— O que aconteceu, garota? Você tem tocado aí há semanas
com uma das maiores bandas do mundo e não teve medo de
palco. E você cantou na frente deles.
Um flash meu em um palco quase me fez voar para fora do
banquinho e para a lata de lixo mais próxima.
— Não era a minha música que eu estava tocando. E o que
eu fiz quase nem foi cantar.
Ele balançou a cabeça.
— Vou fazer uma pausa e te dar algum tempo para se
recompor. Só temos uma hora até o próximo cara chegar. —
Empurrando-se de volta em sua cadeira, ele me deu um joinha
antes de sair do lado da cabine.
Eu fechei meus olhos com força e voltei para o dia em meus
degraus dos fundos. Lembrei-me do calor do olhar de Dare em
mim, embora não o tivesse reconhecido na hora. Eu estava
tocando para ele. Imaginando ele, eu abri meus dedos, e eles se
encaixaram nas cordas do violão como se nunca tivessem saído.
Eu tinha me acovardado em sua casa. Não havia uma palma
da mão no rosto grande o suficiente para o que eu tinha feito.
Eu estava tão empenhada em andar no Expresso Dare, e sua
tentativa de reciprocidade oral quase me causou um ataque
cardíaco. Não significa que seus dedos não eram mágicos. Era
um compromisso que eu assumiria em qualquer dia da semana.
A porta do estúdio abriu novamente e Freddy voltou para
dentro. A luz banhou Dare, sentado, esperando, assistindo.
Talvez eu esteja sendo um pouco zelosa demais com toda
essa coisa de “perder minha virgindade”, mas ele seguiu meu
exemplo e não me pressionou, embora eu tenha sido a única
pressionando. Eu deixei minha cabeça cair para trás e imaginei
as notas na minha cabeça.
A primeira começou como um zumbido no meu peito antes
de eu abrir a boca e soltar as letras que já tinha memorizado.
Era uma música sobre a única pessoa na qual eu fui capaz de
escrever algo sobre nos últimos dois meses. As únicas letras que
não pareciam bobas e banais eram aquelas sobre ele.
As vibrações das cordas zumbiam em meus braços enquanto
eu segurava a nota final e abria os olhos.
As luzes acenderam através do vidro e eu arfei.
Dare permaneceu atrás de Freddy com seus braços cruzados
em seu peito.
Meu coração bateu forte. Lambi meus lábios e tirei a alça do
violão de meu ombro.
Empurrei a porta do estúdio, sentindo como se estivesse
andando em uma lama, ou debaixo d'água com pesos de cinco
quilos em meus tornozelos. Certificando-me de que o violão
não batesse no batente da porta, saí para o corredor.
Ele parou no corredor escuro e silencioso, a porta da cabine
de som fechando silenciosamente atrás dele. Ele segurava meu
estojo de violão em sua mão.
— Quanto daquilo você ouviu? — Meus dedos flexionaram
ao redor do pescoço do violão. Eu o segurei entre nós dois como
se pudesse me proteger do constrangimento.
— Cada nota. — Ele pegou o violão de mim e se agachou,
colocando-o na caixa forrada de veludo com reverência, como
se até mesmo um solavanco fosse ser um desastre.
As travas se fecharam e ele olhou para mim com um
pequeno sorriso triste no rosto. De pé, segurando o estojo, ele
envolveu um braço em volta de mim, pressionando a palma da
mão espalmada contra minhas costas.
— Você vai surpreender todo mundo um dia.
Ele ficou um pouco embaçado e eu pisquei de volta o brilho
em meus olhos, minhas narinas dilataram e um pequeno som
escapou da minha garganta.
— Eu gostaria que você pudesse sentir a maneira como suas
músicas me fazem sentir. É como se você tivesse aberto meu
peito e estivesse segurando meu coração em suas mãos.
— Isso não parece uma coisa boa.
— É a coisa mais louca, e me faz esquecer como respirar
quando estou ouvindo você. Nunca existiu ninguém como
você antes.
Eu zombei.
— Há muitas outras pessoas por aí como eu, tentando fazer
sucesso. E esse não é o meu negócio. Eu canto para quem eu
quero, sobre o que eu quero.
— Estou nessa lista.
— É praticamente uma lista exclusiva de uma pessoa só.
Seu sorriso era ofuscante. Mesmo no corredor escuro, era
como uma explosão alta de filme, e a força disso bateu no meu
peito. Por que ele foi o único que me fez sentir assim?
Freddy saiu do estúdio e me entregou um CD da gravação
da sessão e disse que limparia os arquivos de áudio e os enviaria
para mim digitalmente mais tarde.
— Você foi ótima, garota. Basta dizer e eu mexo todos os
pauzinhos que tenho para fazer algo acontecer para você.
Eu balancei minha cabeça.
— Esse mundo não é para mim. Mas talvez eu faça mais
trabalhos de estúdio na Califórnia.
Ele resmungou como se não estivesse nada feliz com isso.
— Faça como quiser, garota.
Dare e eu saímos para o carro dele comigo debaixo de seu
braço.
— Vamos ouvir. — Ele pegou o CD e tentou colocá-lo em
seu aparelho de som.
Eu o peguei de volta e coloquei no painel.
— De jeito nenhum. Eu mal consigo me ouvir quando estou
lá, não vou me ouvir pelo seu sistema de som.
Ele riu e entrelaçou os dedos nos meus pelo resto do
caminho de volta para minha casa.
— Porra. — A cabeça de Dare caiu e a minha disparou para
cima.
Um buraco se abriu em meu estômago, inesperado, sem
aviso prévio, infelizmente absolutamente no pior momento.
Estacionado na minha garagem estava o sedan verde-
caçador da minha mãe.
Como se não fosse ruim o suficiente, no segundo em que
chegamos na entrada, a porta da frente se abriu. Ainda em seu
uniforme, minha mãe caminhou em direção ao carro como se
cada passo pudesse quebrar a passarela de concreto.
— Bay Eleanor Bishop, você tem alguma ideia de que horas
são?
Os faróis de Dare inundaram sua postura carrancuda no
centro do pára-brisa.
Trocamos olhares e por um segundo pensei apenas em dizer
a ele para dar a ré. Eu poderia cantar na esquina por dinheiro.
Ele desligou o motor.
Lá se vai a fuga rápida.
Ela contornou a lateral do carro e abriu a porta.
— Você tem ideia do quão preocupada com você eu estava?
Estou em casa há quase duas horas. Há quanto tempo você vem
fazendo isso?
Seu olhar se desviou para o banco de trás do carro, onde
Dare tinha gentilmente apoiado meu violão, completando com
o cinto de segurança.
— Você foi para o estúdio?
Antes mesmo que eu pudesse pensar em refutá-la, o CD
demo que Freddy havia me dado caiu no meu colo, como um
presente para os deuses da punição dos pais.
Seu olhar se lançou entre mim, Dare, o violão e o CD
brilhando na luz interior do carro dele.
— Para casa, agora. — Cada palavra foi carregada com os
explosivos de eu nunca mais poder sair de casa novamente. Ela
pressionaria o detonador e eu não seria capaz de sair até o meu
segundo semestre de faculdade.
— E Dare. Achei que você fosse mais responsável do que
isso.
As mãos dele agarraram o volante com mais força. Os
músculos de sua mandíbula pulsavam e latejavam como se ele
estivesse a um segundo de explodir, mas ele manteve o olhar
concentrado à frente.
Corri para pegar meu violão e acabar com sua audiência
com o meu constrangimento.
Andando na frente do carro, seguindo atrás de minha mãe,
eu murmurei “sinto muito”. No brilho das luzes não consegui
ver seu rosto, mas seu motor ligou e acelerou antes que ele
engatasse a marcha ré e saísse da garagem, enquanto a porta da
frente se fechava atrás de mim.
— Eu não posso acreditar que você fez isso. Há quanto
tempo? — Ela ficou com os braços cruzados sobre o peito. —
Quanto tempo, Bay?
— Desde janeiro.
— Você está fazendo isso há cinco meses?
Eu abaixei minha cabeça.
— Janeiro do ano passado.
Ela arfou.
— Você está mentindo para mim há quase um ano e meio.
Você tem ido ao estúdio. Pensei que tivéssemos um acordo.
Pensei que eu pudesse confiar em você.
— Não é como se eu estivesse usando drogas ou bebendo.
Estou trabalhando no estúdio para ganhar dinheiro extra e
estou… e estou tocando.
— E Dare?
Meus ombros caíram.
— Às vezes ele me dá uma carona, para que eu não ande de
bicicleta tão tarde da noite.
— E isso é tudo o que ele está fazendo? Só te dando uma
carona?
Minha cabeça disparou para cima.
— Sim.
Seu olhar se estreitou.
— Nem sei se posso confiar em você, Bay. Quem sabe o que
você tem feito nos últimos meses, quando eu confiei que você
esteve aqui segura em casa?
— Não existe estar segura em casa, mãe. Não existe estar
segura nunca. Irei embora em alguns meses e poderia estar
fazendo exatamente a mesma coisa. Você não teria ideia. Eu
estava tomando todas as precauções que podia. Mas você acha
que existe algum lugar onde qualquer uma de nós esteja segura?
— Eu nem quero pensar sobre quando você se for.
— Está chegando, quer você queira ou não. Assim como
papai se foi. Você pode trabalhar o quanto quiser, mas isso não
muda nada.
— Agora você está cheia de atitude comigo porque estou
trabalhando para colocar comida na mesa e um teto sobre
nossas cabeças?
— Não, mãe, eu não estou. Mas eu tocando música – você
nunca foi capaz de suportar. É a minha única conexão com meu
pai e você não aguenta ouvir. Toda vez que você vê o violão,
parece que está revivendo o dia em que ele morreu novamente.
Claro que vou esconder isso de você. Claro que vou fazer isso,
porque é a única coisa que me resta dele, e às vezes minha
música é a única maneira que sinto que posso respirar. — Eu
desabei, minhas lágrimas me sufocando e meus soluços
martelando tão forte na minha cabeça que parecia que a dor ia
explodir.
Ela envolveu os braços ao meu redor e pressionou minha
cabeça contra o seu peito.
— Eu estava assustada. Eu estou assustada. Com tanto
medo de perder você como eu o perdi. Como você se sente em
relação à música? É assim que me sinto em relação a você. Você
é o que me resta dele e você vai embora.
Eu me agarrei ao braço dela.
— Sinto muita falta dele.
— Eu também, querida. — Nós nos sentamos no meio do
chão da sala de estar até que nós duas ficamos com os olhos
vermelhos e minha garganta estava seca.
Ela me acompanhou escada acima com o braço em volta da
minha cintura. Depois de eu colocar meu pijama, ela se sentou
na beira da minha cama e afastou meu cabelo do rosto.
— Nós duas tivemos uma noite agitada. Descanse um
pouco.
— Estou de castigo, não estou?
Ela sorriu.
— Ah sim. Com certeza. A maior certeza. — Sua risada
ficou presa em seu peito e ela deu um beijo na minha testa. —
Mas podemos conversar sobre isso pela manhã.
Na porta, ela apagou a luz e fechou-a atrás de si.
O mais silenciosamente que pude, peguei meu telefone da
minha bolsa.
Uma mensagem de Dare apareceu na tela no segundo em
que apertei o botão de início.
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Touch football é uma definição de futebol tátil, sendo uma versão informal
do futebol americano, principalmente caracterizada por jogadores sendo tocados
ao invés de abordados.
para garantir minha liberdade. A carcereira não
disse quando será. Tenho certeza de que será
bem a tempo de tudo em nosso último ano
acabar.
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Linebackers (LB) são membros do time de defesa e se posicionam pelo
menos 4 metros atrás da linha de scrimmage, atrás dos homens da linha defensiva.
O objetivo do Linebacker é defender contra passes curtos, fazer tackles e atacar o
quarterback adversário.
antes de trazê-la com força contra o meu peito e correr para a
end zone.
Primeira jogada finalizada e eu pude sentir a atenção voltada
para mim. Joguei a bola de volta para o árbitro e voltei para a
minha linha. Meu campo. Finalmente, minha hora.