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Sempre fico parecendo uma boba toda vez que leio um livro. Não
consigo controlar essas reações físicas pelos personagens literários.
Eu sei.
Ainda mais, para uma mulher feita, entrando para o último ano do
curso de Medicina. Quem me vê em ação na faculdade ou no estágio, jamais
imaginaria que a Lívia séria e compenetrada fica suspirando pelos cantos
assim.
Mas não sou todo mundo, como bem ensinou minha mãe.
Se não estou focada no meu objetivo de salvar vidas, estou imersa em
outros mundos, conhecendo novas histórias e lugares por meio dos livros.
— Liv, tem certeza de que você não quer vir com a gente hoje? —
Sinto-a parar na minha frente, mas não levanto novamente o olhar. — Vai ser
super legal o show. Paulo também vai.
— Tenho.
Luana insiste todo fim de semana para que eu saia com ela, porém,
tenho paciência zero para baladas. Odeio barulho alto, muita gente
aglomerada e tenho pavor de lugares apertados, onde não consigo respirar
direito.
Sou claustrofóbica.
— Você poderia dar uma chance pra ele, né? Tá na cara que está
caidinho por você. Fico só vendo a baba escorrer de longe.
— De novo isso não, Luana, pelo amor de Deus! — Pela primeira vez,
encaro-a, firme. — Para de dar uma de cupido, que coisa chata. Não tem nada
a ver.
— No fundo você sabe que está afim também, só tem medo de deixar
acontecer.
Minhas mãos ficam suadas e, por mais que tente voltar a prestar
atenção nas letras que dançam nos meus olhos, não consigo.
Não tem mais como negar, para mim, pelo menos, que ele mexe
comigo. Mas isso nunca vai acontecer. Somos como água e óleo. Não faço
seu tipo. Definitivamente, não faço.
— Você viaja, Luana! Olha as meninas que ele sai, e olha para mim.
Só na sua cabeça que existe algo recíproco entre nós.
Esse, aliás, é o único motivo que me faz ter contato com ele. Paulo é
do tipo que se destaca em festas, que faz as mulheres e até os homens virarem
o pescoço ao vê-lo. Alto, forte, musculoso, com os olhos verdes cristalinos.
Aqueles olhos… Perco o ar toda vez que os meus se prendem aos seus
durante uma conversa ou outra.
Por causa da Luana acabamos ficando próximos. Ele vem aqui quase
todo dia, tira sarro da minha cara, bagunça meu cabelo e, geralmente,
passamos um tempão tagarelando. O diálogo flui naturalmente.
Mas é só isso.
Tornei-me como uma outra prima para ele, uma amiga legal para
conversar, como sempre sou catalogada. Nada mais. Não me iludo ao ponto
de imaginar algo além.
— Tem certeza de que não quer sair com a gente? Por favor! —
implora, segurando minha mão. — Se dê uma chance, amiga. Dá uma chance
para o Paulo. Eu conheço meu primo, convivemos a vida toda. Ele está
diferente. Você pensa que fica de conversinha assim com outras garotas?
Nunca o vi dessa forma! E ele também não fica mais andando com aquelas
loiras falsificadas. Ele está gost…
— Por favor, não faz isso, Lu. Estou bem assim, não quero problemas.
— Mas…
Pego meu casaco, as chaves do carro e saio, sem olhar para trás.
Passo a mão pelo rosto, cansado. Caralho! Desde quando eu fiquei tão
idiota? Não tenho problema nenhum em chegar em uma mulher, faço isso
com maestria, modéstia à parte. Mas com ela não consigo.
Eu sempre tive uma boa relação com minha prima, somos melhores
amigos. Contudo, não consegui abrir o jogo com ela sobre Lívia. No fundo,
acho que tenho medo de Luana não apoiar, achar que não sou bom suficiente
para sua amiga e me afastar.
Eu não suportaria não ver mais aquele lindo sorriso todos os dias. É
como um combustível que me empurra para frente.
— Não — desconverso, tomando, em um único gole, o restante da
minha cerveja já quente.
Caralho! Será?
Como ela não percebeu meu olhar de lascívia? Meu desejo latente
toda vez que está perto? Isso até muito antes de notar que estou sentindo algo
maior.
— Liv tem seus demônios. Não cabe a mim te contar, talvez um dia te
fale. Você precisa lutar por ela para descobrir.
Vejo o pessoal começar a sair, mas não consigo me mover. Lívia acha
que não a desejo, sendo que só consigo pensar nela nos últimos meses. Todo
tempo. Cada maldito pensamento.
— O que você fez, seu idiota? — o mais alto questiona, tirando seu
capuz.
Sou puxada com força para um beco mal iluminado. Tento lutar para
não entrar no carro, mas sou golpeada com uma arma na cabeça e fico tonta.
Vejo o sujeito que me segura abrir o porta-malas.
***
Só não morri na hora porque me arrastei para o lado e entrei com parte
do tronco na passagem. Não sei se era melhor ter morrido logo ou ficar
agonizando aqui.
Decido tentar tirar meu braço debaixo da terra. Do lado que está o
celular a mão ficou presa, mas a outra, por sorte, consegui salvar quando a
areia caiu. Se as duas estivessem soterradas, podia começar a rezar e desistir
de vez.
Tento me mexer, está muito pesado.
Calma!
Tem tanta coisa que eu queria ter feito, não acredito que vou acabar
assim. Não acredito que não terei a oportunidade de dizer ao Paulo o que
sinto, por medo. Não sentirei o gosto dos seus lábios carnudos, o peso da sua
mão no meu corpo.
***
— Gorda, baleia, saco de areia! Gorda, baleia, saco de areia! — O
coro em uníssono me faz deslizar pela parede da sala que guarda os
materiais de limpeza da escola.
— Por que vocês fizeram isso? — Minha voz é tão baixa e falha que
mal posso me escutar.
Mais gargalhadas.
Manu, uma loira alta e magra, se aproxima com uma fita adesiva.
Puxa meu cabelo e coloca o material na minha boca. Carla, a ruiva mais
cobiçada da turma, amarra minhas mãos e meus pés com uma corda.
— Se você abrir a boca para alguém que fomos nós que fizemos isso,
da próxima vez, será bem pior. Ouviu, sua gorda ridícula?
Elas continuam rindo como se fosse engraçado fazer isso com uma
pessoa que nunca fez nada a elas.
De repente, vejo-as saindo da sala e desligando a luz. Ouço barulho
de chaves.
Merda!
Nada.
Foram 6 horas trancada. Graças a minha mãe, que fez uma revolta na
escola, a diretora organizou uma força-tarefa em cada cômodo do colégio e eu
fui achada.
Sofri bullying dos 7 anos até o Ensino Médio por ser gordinha, mas
esse dia foi o pior.
Por medo de represálias, eu não contei para ninguém quem tinha feito
aquilo. Minha família me culpou, ficou no meu pé. Só tinha o apoio da minha
mãe. Ela tentava entender, estava preocupada com os sinais.
Até que em uma tarde nublada de outono eu, realmente, decidi colocar
fim à vida. Cheguei a segurar os comprimidos na mão e levá-los na altura da
boca. Hoje eu dou graças a Deus de ter desistido, mas eu tentei. E não me
culpo por isso.
Paulo é tão bonito, tão forte, na minha cabeça traumatizada não faz
muito sentido ele se envolver comigo, porém… talvez… seja verdade que é
recíproco.
Respiro fundo.
Pelas minhas contas, já faz uma hora que estou aqui. Levando em
consideração a histeria do começo e esse esforço para alcançar o aparelho,
tenho menos de uma hora de vida. O ar vai ficar cada vez mais escasso. Foco!
Só quero conseguir.
Eu vou conseguir.
Clareio o local para ter mais noção de onde estou e percebo que estava
certa. O desespero volta a tomar conta com tudo e a sensação de que não vou
mesmo sair viva daqui é certa. O ar está escasso porque o que deveria ser o
fim da passagem está cheio de pedras, deve ter se fechado com o tempo.
— Paulo, escuta o que vou dizer. Eu… eu estou presa numa caverna,
com mais da metade do corpo soterrada.
— Paulo, amor, escuta — peço, sem nem perceber que disse “amor” e
ele se cala na mesma hora. Sua respiração está acelerada. — Não tem como
sair daqui. Já faz um tempão que estou nessa situação, não tenho mais tanto
oxigênio.
—Liv…— Paulo diz baixinho e meu coração se aperta. Tem que ser
agora.
— Eu estou apaixonada por você — falo, em meio à lágrimas. —
Acho que estou desde que te conheci…
A bateria acaba.
Meu Deus, que pesadelo! Estou ofegante. Devo ter pegado no sono e
nem percebi. Lembro que fui mesmo ao Sebo, mas eu voltei cedo. Não fui ao
Starbucks.
Eu não fui!
Parecia tão real, eu podia ter morrido de verdade. Eu podia nunca mais
ver o Paulo, nunca mais vê-lo e nem dizer o que sinto.
Não tive o mínimo pique para ficar no show. Só consigo pensar nas
palavras de Luana, de imaginar que posso ser correspondido nesse sentimento
estranho e esmagador que aperta meu peito.
Dim dom.
Dim dom.
Dim dom.
Dim dommmmmmmmmmmm.
— Liv…
Silêncio.
— O que aconteceu?
Silêncio, mais uma vez. Estamos em uma batalha interna que me deixa
ansioso.
— Eu… eu acordei!
Ela sorri, como se essas palavras fossem a melhor coisa que já ouviu
na vida. Eu retribuo, sabendo que são. Para mim, pelo menos. Eu já fiquei
com muitas mulheres, mas nenhuma delas me fez sentir 1% do que estou
sentindo agora.
Chego ainda mais perto, quase fundindo nos corpos. Deus, eu quero
muito beijá-la! Lívia parece ler meus pensamentos e morde o lábio inferior,
não desviando o olhar. Meu autocontrole simplesmente evapora.
Coloco uma mão no seu pescoço e com a outra, aperto sua cintura, no
mesmo instante em que toco sua boca. Tem sabor de menta.
Delicioso.
Lívia aceita-me tímida, mas logo se entrega a nossa irrefreável
atração, permitindo que eu a invada. Não perco tempo.
Seu cheiro é tão bom que fico inebriada. Sua boca carnuda logo parte
dos meus lábios para o pescoço, a orelha, o tronco… Tiro meu casaco e jogo
longe.
Meu lado pessimista tenta atrapalhar, alertando que ele pode estar
incomodado com o peso. Logo espanto esses pensamentos.
— E eu você.
Minha confirmação faz a íris dos seus olhos cristalinos mudar de cor.
Há desejo lá. Muito desejo. Tiro sua camiseta preta em tempo recorde,
enquanto ele segura a barra do meu vestido de manga para desfazer-se dele.
— Olha para mim! — Paulo exige, com o tom mais duro, segurando
meu queixo. Obedeço. — Você é linda, gostosa, exatamente assim. Eu me
apaixonei por você toda. Sua alma, seu corpo, seu jeito. Não se esconda de
mim, amor.
Amor.
Ele disse amor.
E é maravilhoso.
Quando não aguenta mais, Paulo me puxa novamente para seu colo e
me beija. Um beijo de tirar o fôlego, como o primeiro.
De suprimir meu oxigênio, esse gás essencial para nos manter vivos.
Uma hora ou outra ele aparece. Alguém que vai nos amar exatamente
do jeito que somos.
SETEMBRO AMARELO
O suicídio mata 1 brasileiro a cada 45 minutos e 1 pessoa a cada 45
segundos em todo o mundo.
Depressão não é frescura nem invenção da cabeça de quem está passando
por isso.
Não julgue, ajude! Ligue 188.
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