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1ª edição, São Paulo

Copyright @2018 por Ariane Fonseca

Capa: Ariane Fonseca


Foto: Pexels
Revisão: Barbara Pinheiro
Diagramação digital: Ariane Fonseca

Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, datas e


acontecimentos reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados.

É proibido o armazenamento e/ou reprodução de qualquer parte desta obra


através de quaisquer meios sem o consentimento da autora.

A violação autoral é crime, previsto na lei nº 9.610/98, com aplicação legal


pelo artigo 184 do Código Penal.
Dedico esta obra aos que se permitem perder o fôlego pela vida.
LÍVIA

Viro de bruços e apoio o rosto entre as mãos, entretida com as páginas


à minha frente. Suspiro, encantada, percebendo minha perna balançar para
frente e para trás. Pareço uma adolescente apaixonada.

Não tenho mais 17 anos, no entanto, realmente meu coração palpita


forte.

Sempre fico parecendo uma boba toda vez que leio um livro. Não
consigo controlar essas reações físicas pelos personagens literários.

Eu sei.

Soa patético, né?

Ainda mais, para uma mulher feita, entrando para o último ano do
curso de Medicina. Quem me vê em ação na faculdade ou no estágio, jamais
imaginaria que a Lívia séria e compenetrada fica suspirando pelos cantos
assim.

Sonhando com amores improváveis.

Pelo menos, eles salvaram minha vida lá atrás.

Olho no relógio da cabeceira, já são quase nove horas da noite de um


sábado frio de inverno. Eu deveria sair um pouco, curtir como pessoas da
minha idade fazem, antes de terminar o curso e entrar em uma rotina ainda
mais insana com a residência em psiquiatria.

Mas não sou todo mundo, como bem ensinou minha mãe.
Se não estou focada no meu objetivo de salvar vidas, estou imersa em
outros mundos, conhecendo novas histórias e lugares por meio dos livros.

A porta do quarto se abre, de repente, em um rompante, mostrando


uma Luana agitada e enrolada em uma toalha. Observo-a rapidamente e volto
à atenção para meu exemplar de “O morro dos ventos uivantes”.

— Liv, tem certeza de que você não quer vir com a gente hoje? —
Sinto-a parar na minha frente, mas não levanto novamente o olhar. — Vai ser
super legal o show. Paulo também vai.

Paulo… meu coração acelera sem pedir permissão só de ouvir o seu


nome. Merda!

Isso está ficando sério demais.

— Tenho.

Luana insiste todo fim de semana para que eu saia com ela, porém,
tenho paciência zero para baladas. Odeio barulho alto, muita gente
aglomerada e tenho pavor de lugares apertados, onde não consigo respirar
direito.

Sou claustrofóbica.

Moramos juntas desde que cheguei à cidade, dividindo uma quitinete


perto do campus da faculdade. Nos damos bem em quase tudo, menos quando
o assunto é diversão.

— Pelo amor de Deus, quando você vai se divertir de verdade? Se não


está se matando no trabalho, tá aí, enfurnada nesses livros.
— Pra mim isso é diversão. — Continuo com olhos fixos nas páginas.

— O Paulo insistiu pra eu convencer você, sabia? Ele disse que já


desistiu de te convidar.

— Ele sabe que não gosto disso.

— Você poderia dar uma chance pra ele, né? Tá na cara que está
caidinho por você. Fico só vendo a baba escorrer de longe.

— De novo isso não, Luana, pelo amor de Deus! — Pela primeira vez,
encaro-a, firme. — Para de dar uma de cupido, que coisa chata. Não tem nada
a ver.

— No fundo você sabe que está afim também, só tem medo de deixar
acontecer.

Minhas mãos ficam suadas e, por mais que tente voltar a prestar
atenção nas letras que dançam nos meus olhos, não consigo.

Não tem mais como negar, para mim, pelo menos, que ele mexe
comigo. Mas isso nunca vai acontecer. Somos como água e óleo. Não faço
seu tipo. Definitivamente, não faço.

Minhas curvas avantajadas passam bem longe das silhuetas das


mulheres que sempre vejo atracadas no seu pescoço. Lindas, de tirar o fôlego,
prontas para estampar um catálogo de revista de moda.

— Você viaja, Luana! Olha as meninas que ele sai, e olha para mim.
Só na sua cabeça que existe algo recíproco entre nós.

— Sabia! — ela grita dando pulinhos, quase fazendo meu coração


saltar da boca. Puta que pariu, que susto! — Recíproco quer dizer que alguém
sente. Se você acha que ele não, então, no caso é você que sente. Ato falho,
baby. Eu sabia! Eu sabia!

Merda! Nem ferrando que vou admitir meus sentimentos pelo


garanhão da faculdade. Primo da minha melhor amiga.

Esse, aliás, é o único motivo que me faz ter contato com ele. Paulo é
do tipo que se destaca em festas, que faz as mulheres e até os homens virarem
o pescoço ao vê-lo. Alto, forte, musculoso, com os olhos verdes cristalinos.
Aqueles olhos… Perco o ar toda vez que os meus se prendem aos seus
durante uma conversa ou outra.

Já eu não sou de me socializar, tenho 1,58m e peso uns bons quilinhos


acima do recomendável para minha altura.

Por causa da Luana acabamos ficando próximos. Ele vem aqui quase
todo dia, tira sarro da minha cara, bagunça meu cabelo e, geralmente,
passamos um tempão tagarelando. O diálogo flui naturalmente.

Até demais para o meu gosto.

A primeira vez que o vi, confesso, o julguei fútil e daqueles babacas


de academia. Mas ele é muito mais do que isso. Impressionantemente, muito
mais. É gentil, educado, bom ouvinte. Paulo até gosta de ler, chegamos a
trocar alguns exemplares dos clássicos.

Mas é só isso.

Tornei-me como uma outra prima para ele, uma amiga legal para
conversar, como sempre sou catalogada. Nada mais. Não me iludo ao ponto
de imaginar algo além.

— Chega desse assunto — digo, levantando da cama onde estou


deitada. — Vou ao centro, preciso procurar um livro no Sebo da Liz.
— Essa hora, Liv? Para de ser medrosa e fugir do assunto!

— Sim, eles ficam abertos até as dez. — Ignoro, categoricamente, a


última frase sobre fugir. É o que faço de melhor.

— Tem certeza de que não quer sair com a gente? Por favor! —
implora, segurando minha mão. — Se dê uma chance, amiga. Dá uma chance
para o Paulo. Eu conheço meu primo, convivemos a vida toda. Ele está
diferente. Você pensa que fica de conversinha assim com outras garotas?
Nunca o vi dessa forma! E ele também não fica mais andando com aquelas
loiras falsificadas. Ele está gost…

— Por favor, não faz isso, Lu. Estou bem assim, não quero problemas.

— Mas…

Não quero ouvir!

Pego meu casaco, as chaves do carro e saio, sem olhar para trás.

Preciso respirar. Preciso desesperadamente respirar.

Estranhamente, o ambiente ficou fechado, como se todo ar tivesse sido


sucumbido. Mas é só meu coração acelerado, galopando no peito
descompassado.

Vai passar… Vai passar. Sempre passa.


PAULO

Meu olhar ansioso para o lado de fora do posto, nossa parada


estratégica sempre antes das noitadas, deve estar muito na cara. Jéssica me
encara, brava. Desde que a dispensei, dois meses atrás, a garota não larga do
meu pé. Sempre tenta me seduzir com sua beleza estonteante.

Ela é realmente gostosa. Muito gostosa. Em outros tempos eu


aproveitaria isso sem pestanejar.

Antes de uma certa garota se infiltrar em todos os meus pensamentos,


eu, com certeza, estaria dentro dela. Agora. Provavelmente, no banheiro
feminino deste lugar inóspito.

Passo a mão pelo rosto, cansado. Caralho! Desde quando eu fiquei tão
idiota? Não tenho problema nenhum em chegar em uma mulher, faço isso
com maestria, modéstia à parte. Mas com ela não consigo.

É como se Lívia fosse imune aos encantos que todas as outras


enxergam.

Quando a conheci, me senti atraído instantaneamente. Ela não é a


garota mais bonita que já vi, é verdade. Entretanto, sua beleza é diferente,
única. Suas curvas me deixaram louco… Principalmente, sua bunda rebitada,
envolta em um quadril largo e a cintura fina. Aqueles peitos também não
passaram despercebidos.

Ahh, merda! Estou ficando excitado só de imaginar minha boca


neles…

Contudo, não foi isso que me deixou no estado em que me encontro


hoje. Esse aperto no peito que sinto toda vez que ela sorri ao me ver entrar no
seu apartamento, ou quando noto o brilho no seu olhar contando sobre o
trabalho durante nossas longas conversas, com certeza, é mais forte do que
uma mera atração física.

Eu quase não posso acreditar que isso aconteceu. Não consigo


identificar desde quando, em que momento essa façanha explodiu dentro de
mim. Mas é real. Estou apaixonado. Pela primeira vez na vida, apaixonado.

Lívia é incrível! Linda, inteligente, esforçada. Uma pessoa que coloca


os problemas dos outros na frente dos seus. Apesar de ser imune aos meus
encantos, ela consegue me enxergar de verdade. Ela consegue me ver além do
rosto bonito.

Avisto o carro de Luana cruzar a esquina e meu coração acelera, sem


pedir licença. Ajeito-me no balcão, inconscientemente, na esperança que,
desta vez, ela tenha aceitado sair conosco. Que me dê uma abertura longe da
nossa rotina habitual que parece deixá-la distante demais.

A esperança, entretanto, logo se esvai ao constatar que minha prima


está sozinha. Lívia não veio. De novo. Não consigo disfarçar a decepção no
rosto.

— Desculpa, não consegui convencê-la. — Luana se aproxima de


mim, cabisbaixa. — Está acontecendo alguma coisa que você queira me
contar?

Eu sempre tive uma boa relação com minha prima, somos melhores
amigos. Contudo, não consegui abrir o jogo com ela sobre Lívia. No fundo,
acho que tenho medo de Luana não apoiar, achar que não sou bom suficiente
para sua amiga e me afastar.

Eu não suportaria não ver mais aquele lindo sorriso todos os dias. É
como um combustível que me empurra para frente.
— Não — desconverso, tomando, em um único gole, o restante da
minha cerveja já quente.

— Eu te conheço, Paulo. Desembucha! Você está afim dela, não está?


Me diga, eu preciso saber.

Não a encaro. Continuo fitando minha latinha de cerveja, em conflito.

— Ela gosta de você — minha prima solta, como se não fosse


responsável por provocar uma erupção de adrenalina no meu corpo.

— O quê? Como você sabe? Ela que disse? — Faço um monte de


perguntas, afoito, sem dar tempo de resposta. Vejo Luana sorrir.

— Peguei os dois no pulo hoje, o corpo fala mais que as palavras.


Vocês sabem, né? — comemora, vitoriosa.

— Do que você está falando? — Tento manter a linha de raciocínio,


mas meu cérebro fica repetindo inúmeras vezes “ela gosta de você”.

Caralho! Será?

— Vou te falar só uma coisa, priminho: mostre à Liv que você a vê


mais do que uma amiga. Faça-a se sentir desejada. Ela acha que jamais vai ter
uma chance com você porque não faz seu tipo.

— O QUÊ? — exclamo alto, chamando atenção das pessoas ao redor,


que nos olham em curiosidade. — Como ela pode pensar isso?

Como ela não percebeu meu olhar de lascívia? Meu desejo latente
toda vez que está perto? Isso até muito antes de notar que estou sentindo algo
maior.
— Liv tem seus demônios. Não cabe a mim te contar, talvez um dia te
fale. Você precisa lutar por ela para descobrir.

— Galera, vamos?! — um dos meus amigos chama da porta da loja de


conveniência do posto. — O show vai começar em breve, ainda tem chão pela
frente.

Vejo o pessoal começar a sair, mas não consigo me mover. Lívia acha
que não a desejo, sendo que só consigo pensar nela nos últimos meses. Todo
tempo. Cada maldito pensamento.

Respiro fundo, tentando raciocinar como agir.

Um medo absurdo de ela me afastar invade o peito.

— Vamos relaxar um pouco no show. Refresca a cabeça. Esperou até


agora, não adianta fazer nada no desespero, tá? Ela vai estar no mesmo lugar
amanhã.

Aceno, ainda atônito, e resolvo seguir o conselho da minha prima.

Preciso acalmar esse coração.


LÍVIA

Só quando saio do Starbucks é que percebo como está tarde. Perdi a


noção do tempo depois que comprei o livro que queria no Sebo e decidi ler
algumas páginas tomando café. Já devorei quase tudo.

O vento sopra forte no meu rosto, bagunçando o cabelo negro. Aperto


as mãos no casaco e acelero o passo. Como é proibido estacionar nas avenidas
centrais, tive que deixar o carro em uma rua paralela. Não teria problema se
uma lâmpada queimada tornasse o local perigoso, sem gente caminhando por
lá.

Merda! Devia ter ido direto para casa.

Um estrondo vindo do lado direito me assusta, fazendo-me dar um


salto para o canto da calçada. Parece um… Quando me toco que estou no
lugar errado, na hora errada, dois caras encapuzados vêm correndo em minha
direção. De imediato, não percebem minha presença, então, abaixo-me
próximo da lixeira.

— O que você fez, seu idiota? — o mais alto questiona, tirando seu
capuz.

— Ele reagiu, atirei sem pensar —o segundo homem defende-se,


também se desfazendo do pano no rosto.

— Agora estamos fodidos, vamos sair logo daqui.

A palavra “atirei” me deixa em desespero. Ao tentar sair correndo,


esbarro na lixeira e chamo a atenção dos dois homens.

— Quem está aí? — o cara maior pergunta, correndo em minha


direção, e me pega pelo braço.

— Eu… eu… — Estou tremendo de nervoso.

— Mas que merda, ela viu nossos rostos. E agora?

— Puta que pariu. Vamos levar!

Sou puxada com força para um beco mal iluminado. Tento lutar para
não entrar no carro, mas sou golpeada com uma arma na cabeça e fico tonta.
Vejo o sujeito que me segura abrir o porta-malas.

Ah, não. Meu Deus!

Porta-malas não! Não vou conseguir…

Sou jogada com tudo no fundo do ambiente pequeno e escuro.

Não posso… ver… não consigo… respirar.

***

— Socorro! Socorro! Socorro! — grito sozinha.

Lívia, por favor, mantenha a calma. Se desesperar, só vai piorar a


situação. O relógio e a agitação são meus maiores inimigos agora. Tento me
manter analítica, como aprendi na faculdade de Medicina, em vão.

O local apertado e escuro não me deixa pensar. O pânico invade cada


poro e percorre pelas veias.
Eu tenho um celular no bolso da frente da calça, mas a terra está
cobrindo todo meu corpo, até a altura dos seios. Preciso pegá-lo e pedir ajuda,
contudo, só de lembrar como parei aqui minhas mãos começam a tremer.

Ao sair do carro, percebi que estávamos em uma grande área de


vegetação. Parecia uma floresta, não reconheci o local. Os homens me
colocaram ajoelhada próximo de uma árvore. O menor queria atirar de uma
vez, no entanto, o mais alto achava perigoso deixar tanto vestígio assim.

Enquanto eles discutiam, consegui soltar a corda que amarrava as


minhas mãos. Pensei que se saísse correndo, talvez ainda tivesse uma chance
de sobreviver. Antes tivesse ficado lá para esperar o que fariam.

No momento em que levantei e saí correndo, os dois dispararam atrás


de mim. Entrei em uma caverna, a primeira coisa que apareceu na minha
frente. Péssima ideia. Encurralada e distraída, caí em uma espécie de vala
alta, pequena e com uma passagem estreita para o outro lado. Fiquei zonza,
acho que quebrei a perna. Quando me dei conta e olhei para cima, os homens
estavam atirando na parede, fazendo uma avalanche de terra cair sobre mim.

Só não morri na hora porque me arrastei para o lado e entrei com parte
do tronco na passagem. Não sei se era melhor ter morrido logo ou ficar
agonizando aqui.

Não vou conseguir sair.

Olho para frente e não vejo nada. A passagem é muito estreita e


totalmente escura. Ou quer dizer que a saída está bem longe ou que não tem
saída, pois não há nenhum fecho de luz. Como mal consigo respirar, fico com
a segunda opção.

Decido tentar tirar meu braço debaixo da terra. Do lado que está o
celular a mão ficou presa, mas a outra, por sorte, consegui salvar quando a
areia caiu. Se as duas estivessem soterradas, podia começar a rezar e desistir
de vez.
Tento me mexer, está muito pesado.

A falta de ar vem de novo.

Calma!

Tento repetir o mantra na minha mente.

Tem tanta coisa que eu queria ter feito, não acredito que vou acabar
assim. Não acredito que não terei a oportunidade de dizer ao Paulo o que
sinto, por medo. Não sentirei o gosto dos seus lábios carnudos, o peso da sua
mão no meu corpo.

Sei que estou me sabotando.

Ele realmente mudou nos últimos tempos. Passa mais tempo


conversando comigo, fica me olhando perdido, não tem mais mulheres
penduradas no seu pescoço.

Acho que não é coisa da cabeça da Luana. É real. Muito real. E eu


perdi a oportunidade por medo.

As lágrimas voltam a tomar o meu rosto.

Este lugar fechado me traz péssimas memórias. Não posso me deixar


levar por elas.

Não. Não. Não.

***
— Gorda, baleia, saco de areia! Gorda, baleia, saco de areia! — O
coro em uníssono me faz deslizar pela parede da sala que guarda os
materiais de limpeza da escola.

Coloco as mãos no ouvido e fecho os olhos, tentando fazê-las


sumirem.

— Você é patética, garota! Achou mesmo que o João ia estar aqui


esperando por você? Ele nem sabe que você existe. Foi tudo invenção nossa.

Gargalhadas, das três meninas mais populares do colégio,


reverberam pelo pequeno cômodo.

— Por que vocês fizeram isso? — Minha voz é tão baixa e falha que
mal posso me escutar.

Mais gargalhadas.

Manu, uma loira alta e magra, se aproxima com uma fita adesiva.
Puxa meu cabelo e coloca o material na minha boca. Carla, a ruiva mais
cobiçada da turma, amarra minhas mãos e meus pés com uma corda.

— Se você abrir a boca para alguém que fomos nós que fizemos isso,
da próxima vez, será bem pior. Ouviu, sua gorda ridícula?

Meu Deus, o que está acontecendo?

Tento gritar, mas só burburinhos são ouvidos.

Elas continuam rindo como se fosse engraçado fazer isso com uma
pessoa que nunca fez nada a elas.
De repente, vejo-as saindo da sala e desligando a luz. Ouço barulho
de chaves.

Elas vão me trancar aqui.

Merda!

Ninguém vai me achar tão cedo. A sala fica em um local afastado,


longe dos professores e alunos.

Tento a todo custo levantar, empurro objetivos próximos com o rosto


para fazer barulho. Rastejo. Chuto.

Nada.

Lágrimas tomam meu rosto desesperadamente.

Estou começando a ficar com falta de ar. O lugar é muito fechado,


escuro e apertado.

Vejo o sol se pôr pela janela. Nada acontece.

Meu soluço é tão grande que já molhou todo meu uniforme.

Estou fraca. Sem forças nem para chorar mais.

Encosto a cabeça na parede e resolvo apenas concentrar minha


atenção na respiração.

Ela precisa continuar.


***

Balanço a cabeça espantando as lembranças.

Foram 6 horas trancada. Graças a minha mãe, que fez uma revolta na
escola, a diretora organizou uma força-tarefa em cada cômodo do colégio e eu
fui achada.

Sofri bullying dos 7 anos até o Ensino Médio por ser gordinha, mas
esse dia foi o pior.

Foi quando tudo mudou.

Por medo de represálias, eu não contei para ninguém quem tinha feito
aquilo. Minha família me culpou, ficou no meu pé. Só tinha o apoio da minha
mãe. Ela tentava entender, estava preocupada com os sinais.

A cada dia uma coisa nova acontecia, e eu ficava quieta. Aquilo me


sufocou de uma tal forma que entrei em depressão. Não queria fazer nada. Só
queria chorar e não acordar mais.

Eu não queria viver.

Até que em uma tarde nublada de outono eu, realmente, decidi colocar
fim à vida. Cheguei a segurar os comprimidos na mão e levá-los na altura da
boca. Hoje eu dou graças a Deus de ter desistido, mas eu tentei. E não me
culpo por isso.

Naquela época, naquela situação, eu não sabia o que fazer. Estava


perdida.

A terapia e os livros me salvaram.


Por isso, escolhi fazer Psiquiatria, para ajudar outras pessoas e,
também, porque gosto muito de ler até hoje.

Eles me deram uma nova luz.

No final do Ensino Médio eu já estava bem melhor. Inclusive, para me


envolver em relacionamentos. Nenhum durou, é verdade, contudo, eu tentei.

É uma luta diária para não deixar a baixa autoestima vencer.

Paulo é tão bonito, tão forte, na minha cabeça traumatizada não faz
muito sentido ele se envolver comigo, porém… talvez… seja verdade que é
recíproco.

Respiro fundo.

Ele me faz tão bem que só em pensamento me deixa mais calma. Eu


preciso dar um jeito de pegar meu celular, nem que seja para fazer uma
ligação e ouvir sua voz. Faço a segunda tentativa de tirar a mão, está muito
escuro e o tempo passa rápido demais.

Pelas minhas contas, já faz uma hora que estou aqui. Levando em
consideração a histeria do começo e esse esforço para alcançar o aparelho,
tenho menos de uma hora de vida. O ar vai ficar cada vez mais escasso. Foco!

Uso a mão que está livre e começo a cavoucar a terra. Se eu conseguir


soltar um pouco, fica mais fácil me mexer. Minha respiração está ofegante,
muito difícil economizar oxigênio e manter a calma ao mesmo tempo.

— Ahhhhhhhhhhhhhhhhh, que merda! — grito, em desespero.

Não vou desistir, não posso fazer isso.


Pelo menos, tenho que tentar, nem que acabe morrendo. Continuo
retirando a terra, devagar, para não gastar muito oxigênio. Está funcionando.
O braço já começa a se mexer melhor. Empurro meu corpo para dar mais
impulso e sinto uma fisgada na perna. Como dói! Tenho quase certeza de que
está quebrada.

Consigo encostar os dedos no bolso que está o celular. Cavouco mais


rápido agora, na ânsia de discar os números. Estou ficando sufocada, mas nem
me importo.

Só quero conseguir.

Eu vou conseguir.

— Obrigada, meu Deus! — digo baixinho, chorando, quando retiro


minha mão presa segurando o aparelho.

Rapidamente o aperto para ter um pouco de luz. Esta escuridão me


deixa ainda mais apavorada. Droga! Percebo que só tem um pauzinho de sinal
e que a bateria está acabando. A lei de Murphy tinha que imperar.

Clareio o local para ter mais noção de onde estou e percebo que estava
certa. O desespero volta a tomar conta com tudo e a sensação de que não vou
mesmo sair viva daqui é certa. O ar está escasso porque o que deveria ser o
fim da passagem está cheio de pedras, deve ter se fechado com o tempo.

Um soluço do fundo da minha alma preenche o local. Estou olhando


para o celular, e sei que só tenho uma chance de morrer em paz e abrir meu
coração. Preciso ouvir a voz do Paulo.

Disco o número e engulo seco, enquanto aguardo-o atender. Só toca


duas vezes.
— Liv, tudo bem? — ele pergunta, preocupado. — Tô tentando te
ligar faz horas, você não atende. A Luana disse que você foi ao Sebo. Vim
ficar com você, pra gente ver a um filme. Desisti de balada hoje. Tô aqui na
porta do prédio, te esperando.

— Paulo… — Não consigo esconder a emoção de ouvi-lo.

— Você tá chorando? O que aconteceu? Lívia, pelo amor de Deus, me


fala o que houve.

A ligação está péssima, e a bateria já no finalzinho. Vou ter que fazer


isso rápido.

— Paulo, escuta o que vou dizer. Eu… eu estou presa numa caverna,
com mais da metade do corpo soterrada.

— O quê? Lívia, o que você tá falando? Onde você tá? O que


aconteceu? Qual caverna?

— Paulo, amor, escuta — peço, sem nem perceber que disse “amor” e
ele se cala na mesma hora. Sua respiração está acelerada. — Não tem como
sair daqui. Já faz um tempão que estou nessa situação, não tenho mais tanto
oxigênio.

— Me fala onde é, pelo amor de Deus… — questiona, desesperado,


percebo que entrou no carro e está correndo.

— Shhh… Por favor, deixa eu terminar. Preciso criar coragem para te


dizer uma coisa. Peço desculpas por ligar pra você assim, só que eu precisava
ouvir sua voz.

—Liv…— Paulo diz baixinho e meu coração se aperta. Tem que ser
agora.
— Eu estou apaixonada por você — falo, em meio à lágrimas. —
Acho que estou desde que te conheci…

Ele fica em silêncio de novo e começa a chorar. Começa a chorar


desesperadamente e o acompanho.

— Eu também estou, Liv. Você é a melhor coisa que já aconteceu na


minha vida. Por favor, aguenta firme que eu vou conseguir salvar você. Por
favor, só não des…

A bateria acaba.

Coloco o aparelho em cima do peito enquanto uma lágrima solitária


cai.

Ele também sente. É real.


LÍVIA

Abro os olhos, atordoada, tentando me lembrar de onde estou. Coloco


as mãos no rosto para ver se ainda estou viva e belisco meu braço para
acordar.

— Estou viva, ainda estou viva! — grito, desesperada, sorrindo e


chorando ao mesmo tempo.

Meu Deus, que pesadelo! Estou ofegante. Devo ter pegado no sono e
nem percebi. Lembro que fui mesmo ao Sebo, mas eu voltei cedo. Não fui ao
Starbucks.

Eu não fui!

Parecia tão real, eu podia ter morrido de verdade. Eu podia nunca mais
ver o Paulo, nunca mais vê-lo e nem dizer o que sinto.

Levanto correndo, pego meu casaco, o celular e as chaves.

É uma segunda chance!

Preciso encontrá-lo agora mesmo. Não posso mais perder nenhum


segundo escondendo isso.

O tempo é precioso demais para esperar.


PAULO

Entro no apartamento e caminho desanimado até o sofá. Minha cabeça


está estourando. Jogo meu corpo no estofado e olho para o teto, impaciente.

Não tive o mínimo pique para ficar no show. Só consigo pensar nas
palavras de Luana, de imaginar que posso ser correspondido nesse sentimento
estranho e esmagador que aperta meu peito.

Pego o celular no bolso da calça e fito o visor.

Será que eu deveria ligar?

Dim dom.

O som da campainha me assusta, logo quando crio coragem para


procurar o nome da Lívia nos contatos.

Quem será a essa hora?

Dim dom.

Mais uma vez.

Só falta ser a vizinha aqui do lado, me viu chegar e está tentando


puxar assunto. Ela vive querendo repetir a dose de noites quentes que tivemos
no passado.

Não vou atender.


Dim dom.

Dim dom.

Dim dommmmmmmmmmmm.

Mas que porra!

Seja quem for do outro lado, está desesperado. Levanto, mesmo a


contragosto, e abro a porta.

Não pode ser.

Fico estático, encarando uma Lívia ofegante e nervosa à minha frente.


Seu cabelo está todo desgrenhado, mas parece que nunca a vi tão linda.

— Liv…

Silêncio.

— Seu prédio não é seguro — ela fala, de repente, atropelando as


palavras. — Luana me deu o cartão de entrada dela quando fui procurar você
no show. Disse que estava em casa, que não teve cabeça para balada hoje. Eu
entrei e ninguém perguntou nada…

Sorrio achando graça do seu nervosismo, ela acompanha. Um lindo


sorriso que faz meu coração bater mais rápido.

— Você foi ao show? Atrás de mim? — Toco as mãos no seu rosto e


ela me olha profundamente.
— Sim…

— O que aconteceu?

Silêncio, mais uma vez. Estamos em uma batalha interna que me deixa
ansioso.

— Eu… eu acordei!

— Como? — Arqueio uma sobrancelha, confuso.

— Tive um pesadelo horrível em que estava soterrada e ia morrer. —


Continuo encarando-a, tentando entender onde quer chegar. Ela respira fundo,
como se criasse coragem para dizer as próximas palavras. — Eu só pensava
em você, em como perdi tempo em não dizer meus sentimentos.

— Seus sentimentos? — questiono, com um sorriso enorme.

— Sim… eu… eu. — Silêncio.

— Você? — incentivo-a, aproximando-me.

— Eu… eu estou apaixonada por você — Lívia confessa e cora,


baixando o olhar.

Automaticamente seguro seu queixo e o levanto. Sua respiração


pesada toca meu rosto de tão perto que estou.

— Você está apaixonada por mim? — Não consigo disfarçar a euforia


na minha voz.
— Mais do que você possa imaginar.

— Ahhh, Liv… — Abraço-a forte e a tiro do chão, rodando seu corpo


na porta de casa. O gritinho de susto, seguido de uma gargalhada, quase faz
meu peito explodir de alegria. — Estou sonhando também ou isso é verdade?
— pergunto, ainda com ela nos meus braços.

— É verdade. Muito verdade!

— Você me fez o homem mais feliz do mundo, sabia? — sussurro em


seu ouvido, colocando-a no chão e deixando-a de frente para mim. — Eu
também estou apaixonado por você.

Ela sorri, como se essas palavras fossem a melhor coisa que já ouviu
na vida. Eu retribuo, sabendo que são. Para mim, pelo menos. Eu já fiquei
com muitas mulheres, mas nenhuma delas me fez sentir 1% do que estou
sentindo agora.

Nunca tive o coração acelerado, as mãos suando, o frio na barriga…

Pensei que jamais fosse querer me amarrar em alguém, contudo, neste


momento, tocando o rosto macio da Lívia e percebendo sua felicidade, tenho
a convicção de que é tudo o que eu quero.

Chego ainda mais perto, quase fundindo nos corpos. Deus, eu quero
muito beijá-la! Lívia parece ler meus pensamentos e morde o lábio inferior,
não desviando o olhar. Meu autocontrole simplesmente evapora.

Coloco uma mão no seu pescoço e com a outra, aperto sua cintura, no
mesmo instante em que toco sua boca. Tem sabor de menta.

Delicioso.
Lívia aceita-me tímida, mas logo se entrega a nossa irrefreável
atração, permitindo que eu a invada. Não perco tempo.

Eu preciso dos seus lábios como preciso do ar.


LÍVIA

Eu já idealizei várias vezes como seria beijar Paulo.

Nem a minha mais fértil imaginação chegou perto disso. É


simplesmente incrível. Travamos uma nova batalha, desta vez, de línguas e
mãos ávidas por extravasar todo esse sentimento.

Seu cheiro é tão bom que fico inebriada. Sua boca carnuda logo parte
dos meus lábios para o pescoço, a orelha, o tronco… Tiro meu casaco e jogo
longe.

Estou perdendo o controle rapidamente e nunca fiquei tão feliz por


isso.

Paulo fecha a porta do seu apartamento e me empurra na parede,


pegando-me novamente.

Meu lado pessimista tenta atrapalhar, alertando que ele pode estar
incomodado com o peso. Logo espanto esses pensamentos.

Ele não parece nenhum pouco incomodado, pelo contrário.

— Você é tão gostosa, Liv — sussurra no meu ouvido, enquanto


mordisca o local.

Sorrio, jogando meu pescoço para trás. Definitivamente, não está.

Entrelaço as pernas na sua cintura definida e Paulo começa a caminhar


em direção ao sofá. Ele se senta e me deixa no seu colo, voltando a atacar
minha boca.
Acabei de experimentar e já estou viciada nos seus lábios.

O beijo se aprofunda cada vez mais, deixando um eco de suspiros e


gemidos pelo ar.

— Eu quero tanto você — Paulo solta com a voz rouca.

— E eu você.

Minha confirmação faz a íris dos seus olhos cristalinos mudar de cor.
Há desejo lá. Muito desejo. Tiro sua camiseta preta em tempo recorde,
enquanto ele segura a barra do meu vestido de manga para desfazer-se dele.

Instintivamente, seguro sua mão.

— Você não prefere que eu fique vestida? — pergunto, tímida.

Merda! Eu não queria demonstrar tanto receio, no entanto, é mais


forte do que eu.

— Olha para mim! — Paulo exige, com o tom mais duro, segurando
meu queixo. Obedeço. — Você é linda, gostosa, exatamente assim. Eu me
apaixonei por você toda. Sua alma, seu corpo, seu jeito. Não se esconda de
mim, amor.

Amor.
Ele disse amor.

Sorrio e respiro aliviada.


Paulo realmente me quer. De qualquer forma.

Tomo a iniciativa e me levanto do seu colo arrancando meu vestido.


Ele fica atônico, mordendo os lábios.

— Linda! — elogia, rouco, quando fico só de calcinha e sutiã na sua


frente.

Arranco as últimas peças vagarosamente, adorando as reações do seu


corpo ao me ver nua. Nunca me senti assim, tão desejada.

E é maravilhoso.

Quando não aguenta mais, Paulo me puxa novamente para seu colo e
me beija. Um beijo de tirar o fôlego, como o primeiro.

De suprimir meu oxigênio, esse gás essencial para nos manter vivos.

Se todos nossos beijos forem assim, o que eu mais quero é perder o ar


com ele para o resto da vida.

Uma vida que se mostrou totalmente diferente do que eu imaginei


anos atrás.

Ainda bem que eu acreditei nos livros.

No fundo, eu sabia que ia encontrar alguém para amar o meu


desarrumado. Para rir do meu jeito desengonçado e gostar das minhas
imperfeições.

Uma hora ou outra ele aparece. Alguém que vai nos amar exatamente
do jeito que somos.
SETEMBRO AMARELO
O suicídio mata 1 brasileiro a cada 45 minutos e 1 pessoa a cada 45
segundos em todo o mundo.
Depressão não é frescura nem invenção da cabeça de quem está passando
por isso.
Não julgue, ajude! Ligue 188.
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