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Copyright © 2021 por Juliana Dantas

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autorização por escrito do autor, exceto no caso de breves citações
incluídas em revisões críticas e alguns outros usos não comerciais
permitidos pela lei de direitos autorais.

Esse é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, lugares,


negócios, eventos e incidentes são ou os produtos da imaginação
do autor ou usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com
pessoas reais, vivas ou mortas, ou eventos reais é mera
coincidência.

Título Original: Corações de Gelo Parte 1


Revisão: Sheila Mendonça
Capa: Jéssica Gomes
Sumário

PLAYLIST (DISPONÍVEL NO SPOTIFY)


PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
EPÍLOGO
CORAÇÕES DE GELO PARTE 2
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
EPÍLOGO
SOBRE A AUTORA
Playlist (disponível no Spotify)
Avisos

Este livro pode conter conteúdo sensível e/ou provocar gatilho


emocional.
Prólogo

“Querido Nick”

Reconheço a letra cursiva, perfeitamente arredondada assim


que o envelope cai do meio do livro, pousando sobre meus pés.
Por um momento, não sou capaz de nada a não ser tentar
fazer o ar voltar aos meus pulmões.
E quando finalmente abaixo e o apanho, segurando o
envelope já um tanto amarelado pelo tempo entre os dedos, acaricio
meu próprio nome, escrito com um leve relevo trêmulo, sentindo
meu peito se apertando de uma dor que julguei amortecida.
Um misto de saudade, revolta e pesar, me faz hesitar, antes
de abri-lo e retirar de lá a carta escrita com a mesma letra do
envelope.

Querido Nick

Se estiver lendo esta carta, é porque já não estou mais aqui…


Capítulo 1

O mundo a minha volta desaparece lentamente. Os gritos


entusiasmados nas arquibancadas. A voz da minha mãe, estridente
e autoritária, que sempre se sobressai a tudo mais, até a da minha
técnica, que nunca erguia o tom, nem quando estava brava comigo,
sempre mantendo o timbre controlado com o sotaque russo que ela
nunca perdeu, mesmo depois de estar há trinta anos no Canadá.
E no vácuo que se segue, escuto apenas o som dos meus
patins deslizando pelo gelo, como música para meus ouvidos.
Quando era criança, costumava achar que eram notas musicais e
até cantarolava enquanto patinava no lago congelado atrás da
nossa casa, compondo minhas próprias canções.
Eu ainda acho que o som do aço contra o gelo é como
música, mas não há mais a satisfação pueril de apenas deslizar pelo
espaço gelado. Patinar agora é minha profissão.
Um conjunto de técnicas, ordem e estratégia.
Um meio para um fim.
Com um único objetivo: vencer.
Mesmo em apresentação como a de hoje, apenas um
espetáculo recreativo em Vancouver, nunca perco o foco. Pode não
estar valendo uma medalha olímpica, mas ainda assim, tenho que
ser a melhor.
Ou vou querer perder a posição de patinadora artística mais
talentosa do Canadá e uma das melhores do mundo?
E se eu me esquecer disso de vez em quando, minha mãe
está sempre ali para me lembrar, nem que tenha que usar meios
não muito amorosos.
Os sacrifícios que fiz.
Os obstáculos que venci.
Tudo o que perdi para conquistar aquela posição.
E são esses pensamentos que sempre passam pela minha
cabeça, como um mantra quando fecho os olhos, o público silencia
e a música — desta vez, de verdade — começa e abro os olhos,
sorrio e estendo a mão para a única pessoa cujo toque ainda é bem-
vindo.
Christian Jackson, meu parceiro há quase cinco anos, sorri de
volta, com seus olhos azuis e covinhas irresistíveis e cabelos
castanhos perfeitamente arrumados.
E o show começa.
Por aqueles três minutos que dançamos e completamos
saltos, giros e levantamentos e arremessos, tudo com a graça, a
unidade e a química que sempre esperam de nós, o mundo é um
lugar perfeito.
Quero viver naquele mundo pra sempre.
Mas a vida real sempre volta, quando a música termina e os
aplausos explodem na arena.
Christian me abraça.
— Tudo bem?
Sacudo a cabeça em afirmativa, enquanto nos viramos para o
público agradecendo, alguém joga um buquê de flores e eu o pego,
sorrindo, enquanto deslizamos para fora da pista.
Christian ainda segura minha mão e sinto seus dedos me
apertando, descanso os olhos no rosto bonito e noto preocupação
em sua expressão.
Chris me conhece mais do que qualquer pessoa e sabe que
por baixo do sorriso radiante que todos querem ver da fantástica
medalhista de ouro Kiara Willians, estou gritando.
É um grito silencioso que começou baixinho como o rosnado
de um filhote com frio e foi aumentando com o passar dos anos,
transformando-se em um ressoar agudo e alto o suficiente para
ameaçar quebrar o gelo que revestia minhas emoções. Emoções
essas que eu mantinha bem escondidas no fundo da minha mente.
Ninguém queria ver aquelas emoções.
Eles queriam a perfeição.
O salto perfeito. O sorriso perfeito.
A garota de ouro da patinação artística canadense.
— Seu triple salchow estava horrível.
A voz de gelo chega até mim, assim que alcançamos a
mureta que circunda a pista e o sorriso desaparece do meu rosto
enquanto pego o protetor de lâminas da mão de unhas bem-feitas.
Essa é Maude Willians, minha mãe, com suas roupas finas,
postura altiva e olhar afiado no rosto tão parecido com o meu. Não
há nenhum calor em seus olhos claros, assim como não me lembro
de escutar alguma palavra calorosa vinda dos lábios bem
maquiados. Ela ajeita os cabelos loiros, num tom bem mais claro
que os meus, agora fruto de tintura, com impaciência.
— Mãe, era só uma apresentação boba!
— Há dois meses das Olimpíadas, não podemos admitir
erros, Kiara!
— A culpa foi minha, estava distraído — Chris vem ao meu
socorro e eu lhe lanço um olhar agradecido. Chris conhece a ira
interminável da minha mãe.
Para Maude, eu deveria ser sempre nada menos que
impecável.
— As pessoas esperam muito de você! Por isso pagaram
ingresso, por isso estão aqui!
Reviro os olhos saindo da pista e tentando não ficar irritada
com aquela ladainha que escuto há anos.
Há quase vinte anos para ser mais exata, quando minha mãe
me viu deslizando pelo lago no fundo da nossa casa e fazendo
piruetas que ninguém tinha me ensinado, mas que eu já fazia com
graça, e decidiu que eu ia ser uma patinadora profissional.
Meu pai achou um absurdo levar uma menina que tinha
menos de quatro anos para treinar, mas mamãe estava convencida
de que eu seria uma futura medalhista e este foi o estopim para que
ela fizesse nossas malas e nos mudássemos da cidade pequena
que vivíamos, e onde papai era professor, para Vancouver. Com
aquela idade, não entendi que nossa pequena aventura era, na
verdade, o divórcio dos meus pais. Na semana seguinte que
chegamos a Vancouver, eu estava matriculada em uma aula de
patinação.
— Não se preocupe, Maude.
Uma patinadora usando rosa pink que ofusca meus olhos
passa por nós retirando a proteção de plástico de suas lâminas.
— Se a princesinha de gelo não for perfeita, eu serei no seu
lugar.
— Bem que você queria, Alana — Christian desdenha.
Alana Percy é minha concorrente desde que tínhamos 12
anos e competimos pela primeira vez.
— Não seja cretina, Alana. — Seu parceiro, Tyler, a puxa pela
mão e pisca para nós.
Tyler é um cara tão legal, não sei como ele pode suportar
Alana Percy.
— Vai deixar essa garota te ultrapassar? — Mamãe continua.
— Alana e Tyler estão loucos pelo ouro também.
— Mas eles têm o bronze no campeonato canadense, não
vão chegar nem perto de nós, mesmo que Alana queira — Chris
argumenta.
A apresentação de Alana e Tyler começa e giro para sair dali.
— Pra mim já deu.
— Não pode ir! — Maude me censura.
— Eu nem queria vir hoje e você insistiu!
— Você precisa de visibilidade agora, mais do que nunca. E
patrocínio.
— Eu já tenho patrocínios...
— Não o suficiente! Não o que alguém como você merece.
Tenho que falar com você sobre uma proposta de publicidade com a
De Santi.
— Hoje não, mãe...
Continuo meu caminho e Christian vem atrás de mim.
— O que você tem?
— Nada...
— Eu te conheço, tem alguma coisa te incomodando...
Suspiro pesado.
— Só... Toda essa pressão, os treinos pesados para as
Olimpíadas, todo mundo esperando que sejamos perfeitos e ainda
tenho que ser simpática e encarnar a queridinha da patinação.
Estou de saco cheio.
Ele toca meu braço.
— Eu sei que é pressão demais, mas... Não parece só isso.
Desvio o olhar, odiando que Christian seja tão sensitivo.
— Eu não sei o que está acontecendo. É como se, de uns
dias para cá, tudo fosse demais. Como se eu fosse uma impostora.
Não sou essa pessoa que todos acham que sou, Chris. E você sabe
por que... — Minha voz sai cheia de uma angústia antiga e que
quase sempre consigo manter sob controle.
E é este o problema.
A cada dia que passa, sinto o controle escapando das minhas
mãos.
Isso tem me desconcentrado, me deixado angustiada e
ansiosa.
Christian aperta meu braço.
Ele sabe.
— Precisa relaxar. Talvez sair da cidade por alguns dias.
— Está bem — ironizo. — Temos treino e minha mãe está me
torrando a paciência para conseguir mais trabalhos de publicidade.
— Foda-se a Maude. Sua saúde emocional é mais
importante, embora ela não entenda isso. Tire uns dias de folga. Já
sei, meu irmão tem uma casa em Whistler. Ele pode te emprestar.
— Então vem comigo.
— Não posso. É aniversário do meu sobrinho, você sabe.
— O futuro patinador.
— Não fale isso para Trevor, ele ia odiar. — Chris faz uma
careta.
A família de Chris é superconservadora e ele teve que lutar
para convencê-los para praticar um esporte “de menina ou bichas”
como ouvi seu pai falar uma vez, com um desdém preconceituoso.
— Mas você deveria ir, de verdade. Sinto que vai explodir a
qualquer momento e não quero ver isso.
Eu assinto. Ele tem razão.
Antes que entre no vestiário uma horda de adolescentes
aparece segurando câmeras e pedindo fotos.
Forço um sorriso enquanto os atendo.
— Quero ser como você, Kiara — uma menina que não deve
ter mais do que 12 anos diz animada.
— Tem certeza, é muito trabalho.
Ela não faz ideia, penso.
Dietas, treinos, dores, críticas.
A pressão interminável para ir além dos limites.
As pessoas viam a perfeição exterior sem saber todos os
sacríficos que fazíamos.
— Vocês são namorados? — outra menina pergunta e
Christian pisca para mim, me puxando para beijar meu rosto.
— Claro que não. — Sua negativa não convence as meninas
que suspiram quando nos afastamos, ainda mais que Chris está me
abraçando.
Não adianta dizer que não estamos romanticamente
envolvidos, que a química que demonstramos na pista de gelo é
fruto de uma amizade e unidade que conquistamos através dos
anos com muito treino e confiança mútua.
As pessoas querem ver romance e eu e Christian começamos
a usar aquele anseio a nosso favor. Negamos com um sorriso
malicioso de quem guarda um segredo.
E eles não imaginam que temos mesmo um segredo. Mas
não o que esperam.
— Vou pedir a chave para meu irmão, ok? — ele comenta
quando me deixa na porta do vestiário.
— Obrigada.
— Por que não vai hoje jantar comigo e assistir Ame-a ou
Deixe-a enquanto todo mundo imagina que estamos trepando?
— Eu preciso dormir, garanhão. — Reviro os olhos, mas
estou rindo, quando ele me beija e se afasta.
— Olha só se não é o casalzinho de ouro do gelo.
Eu me viro ao ouvir a voz rouca e máscula que um dia tinha
me feito suspirar e me deparo com Dimitri Ivanov se aproximando,
com seus patins pendurados no ombro.
Sim, ele ainda é lindo como um modelo, com seus cabelos
escuros e pele clara de vampiro de filme adolescente.
Mas hoje, Dimitri não causa nada em mim a não ser repulsa.
Eu me viro, com o intuito de ignorá-lo e entrar no vestiário,
mas Dimitri se aproxima e segura a porta.
— Me deixa passar — sibilo, tentando não me irritar com sua
arrogância de macho escroto. Ou não ficar nervosa com o fato de
ele estar muito perto e se inclinando para mim.
— Você está bonita, Kiara. Os anos te fizeram bem.
— Sai da minha frente.
Ele sorri.
— O que foi? A gente costumava se dar bem, lembra? Acho
até que era meio apaixonada por mim quando éramos dupla.
— Isso foi há muito anos e eu era uma idiota.
— Eu gostava... Devia ter te chamado pra sair... — ele se
inclina — Ainda lembro daquele beijo...
Meu coração dispara de horror e levanto a mão num instinto,
para afastá-lo.
— Não toque em mim!
Ele ri, meio irritado e motivado a me dobrar.
— Ei, o que foi? Vai dizer que é verdade que tem um romance
secreto com o Jackson? Só um beijinho pelos velhos tempos...
E para meu horror, passa os braços à minha volta me
prensando contra a porta.
O ar é retirado do meu peito e vejo tudo escuro quando me
debato e grito, em pânico.
Dimitri se afasta, erguendo as mãos no ar com um olhar entre
incrédulo e assustado.
— Ei, estava brincando. Calma!
Luto para respirar, meu olhar aterrorizado começando a
enxergá-lo novamente.
— Não toque em mim de novo, nunca mais! — consigo dizer,
antes de empurrar a porta e entrar.
Tropeço até a pia e ainda respiro por arquejo, meu coração
dói ao bater.
Tudo dói.
Uma lágrima escorrega e eu a enxugo com a mão trêmula.
Obrigo-me a me acalmar enquanto me arrasto até o banco e
retiro meus patins. Eu me odeio agora. Tenho raiva de mim mesma
por ser assim.
O olhar confuso de Dimitri volta à minha mente. Ele não faz
ideia. Ninguém sabe que tenho pavor de qualquer aproximação
masculina, o gelo pelo qual deslizo todos os dias está nas minhas
veias agora. Congelou minha pele e meu coração para sempre.
De repente escuto um som vindo de um dos banheiros. Apuro
os ouvidos. Uma tosse e o inconfundível engasgar de vômito.
Tem alguém passando mal.
Então uma descarga é dada e a porta se abre e eu vejo Diana
Colombo, a dupla de Dimitri saindo.
Ela está pálida, mas fica sem graça ao me ver.
— Tudo bem? — pergunto com cuidado.
— Sim, apenas... alguma coisa que comi, acho.
Ela passa por mim, lava as mãos e a boca. Tenta limpar o
rosto sem tirar a maquiagem. Eles se apresentarão depois de Alana
e Tyler.
— Eu costumava vomitar quando comecei. Ficava nervosa.
Ela sorri através do espelho. Ainda não parece bem.
— Nunca fiquei nervosa. Com certeza não é isso.
Claro, Diana tem muitos anos de carreira assim como eu.
Recordo-me de quando senti raiva dela por ter me substituído com
Dimitri.
Parece em outra vida agora.
— Dimitri está lá fora te esperando.
— Ele gosta de você.
— Claro que não — nego rápido, mas desvio o olhar,
vermelha, ao me lembrar da brincadeira boba lá fora. — Dimitri
gosta de qualquer mulher que lhe dá atenção.
— Isso é verdade — concorda e eu me pergunto se eles são
algo mais do que parceiros. — Você foi ótima hoje.
— Não fui não.
— Você é o tipo de patinadora que mesmo quando é ruim é
boa. Com certeza o ouro já é seu.
— Vocês esperam demais de mim. — Solto meu cabelo loiro-
escuro que cai em ondas até minhas costas, e começo a tirar a
maquiagem.
— Não entendo porque você e Dimitri se separaram, eram
perfeitos juntos.
Desvio o olhar, não querendo me recordar de quase seis anos
atrás, quando eu e Dimitri éramos a dupla queridinha da patinação,
a promessa de ouro olímpico e glória.
Isso nunca aconteceu. Não com nós dois juntos pelo menos.
E tento evitar a devastação que a lembrança me causa.
— Vocês são ótimos juntos — elogio, ignorando seu
comentário.
E vejo uma sombra nos olhos de Alicia.
— Talvez não por muito tempo.
E ela se afasta antes que eu possa perguntar o que quis
dizer.
Mas não me interessa.
Eu me apresso em me arrumar e sair antes que outras
patinadoras apareçam. Não estou com humor para fingir ser legal
hoje.

Está anoitecendo quando chego ao meu apartamento.


Tomo um longo banho e ligo a TV, só querendo esquecer.
Pego meu celular e espio minhas redes sociais. A assessoria que
minha mãe contratou já atualizou minhas fotos com imagens da
apresentação de hoje. Rolo os comentários, onde vários fãs
especulam se eu e Chris somos um casal e abro um sorriso irônico.
É cômodo para mim que pensem dessa maneira. Assim, não
preciso ter que responder por que não tenho um namorado.
Nunca tive nos últimos seis anos.

Quando acordo na manhã seguinte, o tempo está horrível. Há


previsão de neve e como prometido, Chris deixou as chaves da
casa de seu irmão na portaria do meu prédio, mas ainda hesito em
seguir seu conselho.
Enquanto tomo um café preto e espio meu celular, cheio de
recados da minha mãe.
“Você tem um ensaio fotográfico hoje à tarde, para uma
matéria na Revista Vogue. Não esqueça. E uma reunião amanhã
com a diretoria da De Santi. Eles querem você para uma campanha
publicitária, enorme. Vai ser um patrocínio incrível. Você sabe de
quem estou falando? Da marca de motos. E acho que deveria
treinar mais horas hoje, seus giros não estão corretos e...”
Aperto para parar o áudio.
Sem pensar muito no que estou fazendo, coloco algumas
roupas na mochila e pego as chaves da casa do irmão de Chris.
Apenas alguns dias, digo a mim mesma.

Porém, enquanto a tarde cai nas montanhas, sinto que ficar


sozinha não está funcionando.
Observo a neve cair quando pego meus patins e jogo sobre
os ombros, ainda sentindo a mesma angústia que me acompanhava
há algum tempo, enquanto deixo meus pés avançarem pela neve,
os flocos frios beijando meu rosto.
Se eu fosse sincera comigo mesma, poderia admitir que ela
estava ali há anos, escondida do resto do mundo e até de mim
mesma.
Eu não preciso ficar sozinha e longe da pressão de ser quem
querem que eu seja apenas por um tempo.
Desejo ficar longe para sempre.
Não da patinação, que eu amo, concluo, quando chego perto
do lago congelado e ponho meus patins, meus pés deslizando pelo
gelo quase como se tivesse vontade própria. Mas queria que a
patinação tivesse o mesmo gosto de quando eu patinava no lago
congelado atrás de casa.
Como patino agora, apenas sentindo o vento nos meus
cabelos, o frio cortar meu rosto e o barulho da lâmina sobre o gelo
compondo a mais linda canção que aquece meu coração.
E não para a glória, dinheiro e fama.
Um dia, eu concordei com a minha mãe. Era tudo o que eu
queria.
Ser a número um. A patinadora perfeita. Ganhar medalhas e
aclamação.
Mas isso foi antes.
As lembranças ruins invadem minha mente antes que eu nem
sequer tenha tempo de afastá-las. De repente, o grito que eu vinha
tentando manter preso escapa da minha garganta num som dolorido
que faz tudo se estilhaçar dentro de mim e romper em soluços
doloridos que sacodem meu corpo.
Não sei o que é pior.
Se é isso ou o nada.
Ajoelho no gelo, deixando a dor fluir.
A neve se misturando as minhas lágrimas.
Sinto-me devastada.
Cansada de ser assim. Do que me transformou nisso.
Neste ser frio como o gelo.
Talvez eu devesse ficar ali. Para sempre.
Deixar a neve se fundir com o gelo do meu coração.
Tornarmo-nos um só ser glacial.
Não sei quanto tempo passo ali, o frio tomando meu corpo e
congelando minhas emoções, até que escuto, como se vindo de
muito longe, uma voz.
Abro os olhos. A neve está mais forte agora quando a figura
se aproxima. Ele veste um casaco com capuz que mal dá pra ver
seu rosto.
Acho que seus lábios se movem.
Ele está gritando comigo?
Não consigo ouvir.
Não consigo me mexer, me dou conta.
Congelei.
De repente, a figura está mais próxima, mãos estão me
tocando. Puxando-me.
Meu cérebro acorda parcialmente.
Não.
Não toque em mim.
Não suporto que toque em mim. Dói.
Talvez eu tenha me debatido, mas os braços agora estão me
prendendo com força, e me vejo sendo erguida, a neve ficando para
trás, quando sou carregada através dos flocos caindo.
E sem forças, me deixo levar, me aconchegando ao calor que
vem do homem que me carrega através dos pinheiros. Meu cérebro
ainda está lutando, em pânico, mas meu corpo não tem força para
reagir.
Fecho os olhos e deixo de lutar.
Quando abro os olhos de novo, estamos em um quarto. E
minhas roupas estão sendo tiradas do meu corpo.
Eu me debato fracamente, com medo.
Não.
Não tire minha roupa, por favor...
— Ei, eu preciso livrar você da roupa molhada.
Escuto a voz rouca e profunda.
— Não... — Começo a chorar, porque percebo que não
consigo me mover.
Estou à mercê dele.
Não. Não. Não.
Começo a tremer. Meus dentes batem um no outro.
Parte das minhas roupas desaparece.
Minha pele formiga.
O homem se afasta e quase respiro aliviada, mas ele volta.
Uma coberta pesada é posta em cima de mim. Eu continuo a
tremer.
Nunca senti tanto frio na minha vida e de repente meu corpo
começa a reagir, a lutar pela vida.
— Estou congelando...
Escuto minha própria voz trêmula balbuciar.
E percebo que estou pedindo socorro.
O homem está me carregando de novo e me vejo sentada em
uma poltrona em frente à lareira no colo do homem.
Sei que em algum lugar do meu cérebro está cogitando a
inadequação daquela situação.
Enquanto outra está em total estado de horror.
Mas também há outra parte, a que se aconchega ao calor do
seu peito desnudo e morno, buscando calor.
Escuto o som do seu coração retumbando em meu ouvido, o
cheiro de pinheiro e neve. Seus braços me apertam forte e eu deixo.
Aprecio as mãos deslizando por minhas costas, protetoras,
levando o frio embora.
E trazendo o calor.
Fecho os olhos, suspirando quando o tremor vai se
acalmando.
Meu próprio coração, que estava congelado, começa a
derreter.
E deslizo para o sono.
Capítulo 2

Acordo desorientada e me espreguiço naquele instante cheio


de névoa entre o acordar e o despertar total, onde a consciência
ainda está confusa. Pouco a pouco, começo a emergir e perceber a
realidade à minha volta. Estou muito confortável embaixo do que
acredito ser o edredom mais macio que já vi na vida. Aqui é quente
e aconchegante e não contenho um gemido de satisfação me
virando e aspirando o cheiro bom do travesseiro. Não consigo definir
o que é, mas é gostoso e bem-vindo. E definitivamente não é meu
travesseiro. Este pensamento me faz despertar totalmente, e me
viro de barriga para cima, ainda confusa, e abro os olhos, piscando
algumas vezes até focalizar o teto alto de madeira que nunca vi.
Sento-me e meu olhar varre o ambiente estranho e se arregala ao
vislumbrar a paisagem deslumbrante através de grandes janelas de
vidro que tomam toda a parede em frente à cama. Pinheiros, neve e
as montanhas ao fundo. É de tirar o fôlego. Viro a cabeça e o quarto
tem detalhes de madeira por toda parte com troncos que acredito
serem de verdade fazendo as vezes de colunas, sobre a janela,
sobre a cama e as paredes cinzas. Mas é quando avisto a poltrona
de couro marrom em frente à lareira que meu cérebro clareia.
Recordo-me de mim mesma deslizando sobre o lago, com
pensamentos ruins enchendo minha cabeça de angústia. Depois a
neve sobre meu corpo. E a sensação entorpecente bem-vinda.
Então, o homem estranho com capuz se aproximou e me tirou
de lá.
Minha nossa, aquilo aconteceu mesmo ou delirei?
Toco meu próprio peito, amedrontada e confusa, enquanto me
lembro de como cheguei ali. Da sensação de frio supremo e de
como o homem havia me aconchegado em frente à lareira até que o
calor voltasse ao meu corpo. E eu estava tão desesperada por calor,
que deixei que ele tirasse minha roupa, recordo-me agora,
abaixando o olhar para constatar que estou vestindo apenas
calcinha e sutiã. Levo a mão à boca, ainda meio em choque e vários
pensamentos passam por minha mente como uma avalanche.
Em sã consciência, eu jamais teria deixado aquele homem
pôr as mãos em mim, muito menos me carregar como um fardo de
lenha congelado para sua cama, deduzindo que estou na cama
dele, claro, e muito menos que tirasse quase todas as minhas
roupas e ainda por cima — estremeço de horror — me abraçasse
junto ao seu corpo. Também desnudo, evoco agora, chocada.
Porém, não só permiti como apreciei. Ainda mais: ansiei por
aquele calor como se daquilo dependesse minha vida.
E dependia mesmo. Eu teria morrido de hipotermia se aquele
homem não tivesse me achado.
Me salvado.
E onde ele estará agora, ou melhor, onde estou?
Jogo as cobertas para o lado e me levanto. Minhas roupas
não estão em lugar algum, mas noto uma camiseta em cima de uma
cadeira e a visto. O chão é quentinho, provavelmente tem
aquecimento, assim como toda a casa. Então, arrisco a sair do
quarto, sentindo certo receio por toda aquela situação atípica.
Um instinto de proteção grita que eu tenho que achar minhas
roupas e dar o fora dali o mais rápido possível. Embora não faça
ideia de onde esteja, não deve ser longe do lago e longe da casa do
irmão de Chris.
Só que também estou cheia de curiosidade. Quem é aquele
cara?
“Vai querer mesmo ficar e se arriscar a descobrir? Corra!”.
De novo, uma voz amedrontada sussurra dentro de mim.
Porém, minha razão diz que se aquele cara quisesse fazer algum
mal pra mim, ele já teria feito quando eu não tinha a menor condição
de impedir.
“Talvez ele estivesse esperando você descongelar, assim
como o peru de Natal e te devorar no jantar.”
Solto uma risada nervosa agora, cogitando se devo correr e
fugir. Só que está nevando forte lá fora e nem sei onde diabos estão
minhas roupas.
Certo. Primeiro, achar minhas roupas. E também achar o
homem e agradecer por sua ajuda e dar o fora dali. Com neve ou
sem neve, decido. Não querendo admitir que no fundo, estou
mesmo morrendo de curiosidade de saber mais daquele cara.
Eu só não sei por quê.
Não tenho este tipo de interesse em ninguém desde que tinha
17 anos. Então, talvez por isso, sinta certa empolgação por aquela
sensação de curiosidade.
Percorro um curto corredor e me deparo com um conceito
aberto com uma sala, cozinha e sala de jantar. Ali também é cheio
de troncos de madeira, dando uma impressão rústica e luxuosa ao
mesmo tempo. Avanço, ainda meio confusa em direção às grandes
janelas da sala e abro uma porta e estou em um deque fechado. Há
vidro por todo lado e mais à frente, envolta em vapor, noto uma
hidromassagem. Ou um ofurô, não sei bem ao certo. Mas há água e
vapor.
E um homem emergindo dela de costas.
Nu.
Puta. Que. Pariu.
Permaneço paralisada, em choque, uma parte do meu
cérebro ordenando as minhas pernas que deem meia-volta. Fuja.
Mas aquela outra parte curiosa. Nova. Está sussurrando para
que eu fique, mesmo sem saber o porquê.
Acredito que tudo dure apenas alguns segundos, enquanto a
parte curiosa vence e fico ali, observando o homem que sai da
banheira através da névoa de vapor, despido e molhado.
Então ele se vira e me vê.
Por um instante, seus olhos estão chocados, como se tivesse
esquecido da minha presença — ou somente não esperava me ver
ali, na verdade.
Mas ele não se move e percebo que não estou respirando
enquanto o analiso. Cabelos escuros, barba por fazer em um rosto
másculo que aparenta já ter passado dos trinta. Ele é bonito,
admiro, talvez não de um jeito convencional, mas tem uma beleza
rústica. E num misto de medo e audácia, não consigo evitar meus
olhos deslizarem pelo corpo molhado.
Em todos aqueles anos, o corpo masculino não me despertou
nenhuma curiosidade ou interesse. Muito pelo contrário.
Porém, me pego admirando o corpo moreno. Tatuagens
percorrem parte dos braços e há alguns outros desenhos
espalhados pela pele com uma penugem de pelos que cobre o peito
e desce pela barriga de tanquinho e mais abaixo.
Oh droga, levanto o olhar rápido, corando como uma menina
de 14 anos ao ver um cara despido pela primeira vez.
E foi realmente a idade que vi um cara nu pela primeira vez.
Eu me recordo de como fiquei curiosa, e interessada em
espiar Dimitri no vestiário, e de como desenvolvi uma paixonite por
ele desde então. Ele foi o primeiro cara que me fez sentir desejo,
algo tão abstrato até aquele momento. Eu o seguia, curiosa e
inquieta, e ao mesmo tempo que queria esconder aquela excitação
também desejava que ele me notasse.
Com o tempo, aquele entusiasmo foi diminuindo, mesmo
porque Dimitri não era qualquer cara, e sim o meu parceiro. E eu
achava que minha mãe me mataria se deixasse que ele colocasse a
mão em mim sem ser para patinar.
Bem, eu tinha me enganado com o senso de proteção da
minha mãe, porque quando eu precisei, ele não existiu, penso com
aquela velha dor no peito sombreando meus sentidos, o que faz eu
voltar ao presente.
Sim, definitivamente, Dimitri não tinha nada a ver com este
cara na minha frente.
Quando peguei Dimitri pelado no vestiário, ele tinha 16 anos,
e, embora fosse bonito, ainda era um menino.
Este cara na minha frente é um homem. Um homem muito
atraente, devo admitir.
Um homem que, percebo agora, está me estudando com a
mesma curiosidade com que eu o estudei.
Essa constatação causa sentimentos conflitantes. O velho
temor que me faz repelir qualquer tipo de olhar de interesse surge
de imediato. Porém, junto à ideia de fuga ainda há aquela
curiosidade nova que está espiando por uma fresta que eu julgava
cimentada dentro de mim.
— Vejo que ainda está viva.
Escuto a voz do homem pela primeira vez e estremeço,
voltando à realidade.
Droga.
Enrubesço, dando-me conta da situação insólita.
Que diabos ainda estou fazendo ali, examinando um homem
estranho pelado?
Dou um passo atrás, horrorizada comigo mesma.
— Oh, me desculpe, eu... — balbucio, saindo quase correndo
da varanda e voltando ao quarto. Sento-me na cama, levando a mão
ao peito.
Meu coração está disparado.
Estou com vergonha.
Estou surpresa comigo mesma, por meu comportamento até
ali.
Estou perturbada por ter um pequeno pensamento dentro de
mim que está tomando força sem que eu consiga evitar.
Eu não estou correndo.
Sim, meu coração está disparado, mas é de constrangimento,
não é repulsa.
Não consigo evitar uma sensação que se parece com alívio.
É perturbador e inebriante ao mesmo tempo.
Quando escuto passos se aproximando, me levanto rápido,
sem saber o que fazer.
O mesmo homem surge, agora vestindo um roupão.
— Me desculpe se te assustei — ele diz e reparo que sua voz
é rouca e áspera.
Não há calor em seu timbre. Apenas certa frieza que me
desconcerta.
— Eu que tenho que pedir desculpa — consigo dizer. — Na
verdade, acho que primeiro tenho que agradecê-lo por ter...
— Evitado que morresse congelada?
Agora há rispidez em sua voz.
— O que diabos estava pensando?
Enrubesço de novo, como uma menina pega fazendo uma
malcriação e sendo repreendida pelo pai.
Só que aquele cara não é meu pai, ele deve ser uns dez anos
mais velho do que eu, ou mais, mas não acredito que tenha idade
para ser meu pai.
— Eu estava apenas patinando no lago... — Eu me recordo
de toda angústia que me fez ficar lá, prostrada, mas jogo para o
fundo da mente.
Eu nem sei quem é aquele cara, não preciso lhe dar
explicação.
— Imprudente — ele praticamente rosna. — Poderia ter
morrido.
— Mas não morri — rebato com certa impaciência.
Quem diabos aquele cara pensa que é para falar daquele
jeito comigo? Começo a me irritar.
— Não, não morreu. — Ele passa por mim e abre um closet
do outro lado da cama.
Caramba, ele não vai se trocar na minha frente, né?
— Se me disser onde estão minhas roupas, eu preciso ir
embora. — Abaixo o olhar para mim mesma usando apenas aquela
camiseta que deve ser dele e me sinto muito inapropriada.
— Suas roupas ainda estão úmidas, mas pode vestir isso. —
Ele se vira e joga algumas peças em cima da cama. — E não vai
conseguir ir a lugar nenhum agora, está caindo uma nevasca.
— Oh... Mas a casa onde estou hospedada deve ser perto.
— Escuta aqui, moça...
— Kiara — eu o corrijo. — Meu nome é Kiara.
Espero que diga o seu nome, mas ele não diz quando
continua.
— Não quero ter que resgatá-la de novo na neve.
— Eu não acho que vá precisar...
— Se pretende ser imprudente, escolha outro dia. Não vou
permitir que se arrisque lá fora novamente.
Desta vez levanto a sobrancelha, irritada com o tom
autoritário dele.
— Não pode me impedir se eu quiser sair.
— Não, não posso. Mas espero que seja um pouco mais
responsável com a própria segurança. E a minha. Se você sair, me
verei obrigado a acompanhá-la para que não se machuque.
— Eu agradeço por ser tão... — Prepotente, quero dizer, mas
me controlo — protetor, mas certamente, eu posso muito bem
caminhar, com todo cuidado, até a casa de Trevor.
— Oh, seu namorado está esperando?
Detecto curiosidade em sua pergunta, ou é impressão minha.
— Não, estou sozinha. — Não respondo se tenho namorado
ou não. Não é da conta dele.
— Mais um motivo para permanecer aqui até que a nevasca
acabe.
— Mas já vai anoitecer. — Espio lá fora e o crepúsculo já está
caindo.
— Talvez passar a noite aqui — diz tranquilamente pegando
algumas roupas ao sair do quarto.
O quê?
Não!
Respiro fundo e me aproximo da cama. Pego as roupas que
ele me ofertou.
É um pijama masculino de flanela xadrez, que vai ficar
enorme em mim, mas é melhor que continuar desfilando só de
camiseta.
Então, eu me visto e dobro a manga e a barra da calça.
Avisto a porta entreaberta de um banheiro e vou até lá. Estudo
minha imagem no espelho. Meu rosto está pálido e há olheiras
embaixo dos meus olhos acinzentados. Meus cabelos naturalmente
ondulados estão parecendo um ninho de passarinho e passo os
dedos entre eles para parecer menos tenebrosos.
Quando saio do banheiro noto que a noite já caiu por
completo e lá fora está tudo tomado pela neve.
O estranho tem razão, não posso sair daquele jeito, mas
passar a noite ali?
Meus olhos se arrastam até a cama e me pergunto se o
estranho deitou ali comigo depois de ficarmos em frente à lareira.
E me surpreendo por não sentir a repulsa que deveria sentir.
Isso me perturba.

Passo algum tempo no quarto, esperando que a neve pare de


cair, mas isso não acontece e começo a temer que teria mesmo que
passar a noite ali.
Caminho para fora do quarto, ainda um tanto constrangida e a
sala está numa suave penumbra, o fogo arde na lareira e ao lado o
homem está sentado numa poltrona escura. Em uma das mãos ele
segura um livro, que lê compenetrado e em outra tem uma caneca,
pela garrafa com líquido âmbar que está pousada na mesa ao lado
desconfio do teor daquela caneca.
Desta vez, ele veste uma calça jeans, camisa branca e uma
blusa de lã e está usando óculos de leitura de aro escuro.
— Olha, tem razão, vou ficar aqui até passar a nevasca e
depois vou embora.
Ele levanta o olhar e por um momento tenho a impressão de
que está com o pensamento muito longe. Em algum lugar ruim se
levar em conta sua expressão.
— Você está aí.
Não entendo suas palavras.
— Você disse que eu devia ficar — respondo na defensiva.
Seus dedos passam pelos cabelos, agora secos e ele retira
os óculos.
— Sim, e parece que vai ficar por um longo tempo... —
Aponta para a outra poltrona ao seu lado.
Ainda meio constrangida, eu me sento.
— Quer beber?
— Não bebo nada alcoólico. — Há certa censura em minha
voz.
— Se está preocupada de eu ser um alcoólatra inconveniente
não fique. É apenas o bom e velho chocolate quente. Com
conhaque.
— Ah... Talvez eu aceite.
Ele se levanta e, mordendo os lábios, eu me inclino e espio
para ver qual é o livro que ele deixou na mesinha da poltrona.
On the Road.
— Conhece Jack Kerouac?
Ele retorna antes do esperado e eu largo o livro, vermelha.
— Não, não conheço.
Pego a caneca que me estendeu enquanto ele senta
novamente.
Eu me viro para frente, levando a caneca à boca. Não tem
conhaque.
— Você parece amedrontada.
Eu o encaro.
— Não deveria estar?
— É uma garota bonita sozinha em meio a uma nevasca com
um homem estranho. Entendo que esteja.
Tento não me ater ao calor ridículo que cobriu minhas
bochechas por ele se referir a mim como uma garota bonita.
Minha nossa, que diabos está acontecendo comigo?
Assopro o chocolate, apreensiva.
Eu devia mesmo estar com medo dele.
Mas estou com medo de mim.
— Não precisa ter medo. — Sua sentença sai de forma
ríspida e talvez perceba que não combina com o que quer
transparecer. — Está segura aqui — continua de forma mais suave,
ou ao menos parece uma tentativa.
Tenho a impressão que aquele homem nunca foi suave em
sua vida.
Ele é como um pedaço de lenha bem cortado, rústico e belo
ao mesmo tempo.
— Talvez se me dissesse seu nome, eu ficaria mais tranquila.
Quando ele hesita, franzo a testa.
— Ou devo deduzir que é um fugitivo da polícia escondido
aqui?
Nossa, será que ele é? Meu cérebro grita, o que é ridículo
claro.
Não é?
Eu o estudo novamente, me recordando das tatuagens. Há
algo perigoso nele, como se estivesse se esforçando para ser
polido.
— Nick — responde por fim. — E não sou um fugitivo fora da
lei.
Eu escondo o sorriso na caneca.
— Talvez você seja — completa.
Eu o encaro.
— Por que acha isso?
— Apenas especulando, Kiara... — ele diz meu nome
devagar e um arrepio transpassa minha espinha.
Só porque ele disse meu nome?
Viro-me para frente de novo, assustada.
— Não sou uma fugitiva.
— Nada na sua ficha policial então?
— Nadinha. E na sua?
— Então é mesmo uma boa menina?
Não gosto muito quando ele me chama de menina. Fica
parecendo que ele quer parecer muito mais maduro do que eu.
Ok, talvez ele seja.
Em resposta, dou de ombros, sem querer responder.
Eu posso ser considerada uma boa menina em muitos
aspectos.
Mas lá no fundo, sou uma impostora.
Aquele cara não tem ideia do que eu fiz. Do que fui capaz.
Do que me traz pesadelos toda noite, e que, por mais que
tente, não consigo esquecer. A culpa e o vazio que vão sempre
existir.
Ninguém sabe.
— Mas aposto que deve ter uma ficha criminal. — Decido
virar os holofotes para ele.
— Por que acha?
— Suas tatuagens.
Ele ri. Não é um riso bem-humorado.
Mas mesmo assim, o mesmo arrepio me surpreende de novo
e agora ele vem acompanhado de um frio na barriga.
— Desculpa, foi algo ridículo de se dizer — eu me corrijo, me
sentindo uma provinciana boba. — Hoje em dia todo mundo tem
tatuagem.
— Você não tem.
— Eu tenho.
Ah merda. Por que fui abrir a boca?
Ele levanta a sobrancelha.
— Eu não vi.
Aí eu enrubesço porque me lembro que ele me viu de
calcinha e sutiã.
Mordendo os lábios, eu me viro e coloco o cabelo de lado,
mostrando o pequeno escrito na minha nuca.
E para minha surpresa, ele se inclina para olhar de perto.
Sinto seu hálito perto. Morno.
Então, o toque quase sutil do seu dedo.
Quase dou um pulo, me afastando, o coração disparado.
— Não põe a mão em mim!
— Me desculpe. — Ele volta ao lugar. — Apenas fiquei
curioso.
Estou constrangida por ter agido daquele jeito.
— Tudo bem. Apenas não gosto que toquem em mim… sem
permissão — corrijo para não parecer tão esquiva.
Ele parece intrigado.
— Eu toquei em você.
Certamente ele está falando de quando me tirou da neve e
depois me despindo e me abraçando.
— Você pediu para não te tocar — parece se recordando
agora —, mas se eu não te tocasse, congelaria e morreria.
— Eu sei, claro — digo rápido porque é verdade e não quero
continuar com aquela conversa. — Esquece.
Ele fica me encarando e me pergunto o que se passa na sua
mente.
Ele parece querer perguntar: por quê?
Mas eu morreria antes de contar.
— O que significa a tatuagem?
Ele me surpreende ao perguntar, mas eu não respondo.
— Acho que aceito um pouco do seu conhaque. — Estendo a
minha caneca e ele levanta a sobrancelha, mas coloca um gole da
bebida no meu copo.
Eu tomo e acho gostoso.
Ficamos em silêncio então enquanto observamos a neve cair
lá fora.
Sinto-me como se estivesse em outra dimensão.
Ali, não sou a medalhista da patinação artística Kiara Willians.
Não há glória ou cobranças.
Não há nada lá fora, além da neve que nos mantém longe do
mundo real.
Será que é por isso que estou me sentindo daquele jeito?
Uma estranha para mim mesma?
A patinadora Kiara Willians tinha o coração de gelo. Mas hoje,
eu apenas sinto um calor morno no peito que desconfio que não
tenha muito a ver com as brasas da lareira ou do aquecedor que
mantém o frio lá fora.

Sem querer, acabo cochilando, pois acordo com uma coberta


sobre meu colo e um cheiro de tomate e manjericão rescende o
ambiente.
— Com fome?
A voz de Nick vem da cozinha e eu me levanto, me
espreguiçando.
Acho que nunca dormi tão fácil em toda minha vida, penso
enquanto avanço até a grande ilha que separa os ambientes.
— Não achei que estivesse, mas o cheiro é bom.
— Sente-se. — Aponta para uma banqueta e coloca um prato
de talharim na minha frente. E uma taça de vinho, que sei que não
devo tomar, mas não recuso.
Só uns golinhos não vão fazer mal nenhum.
Nossa, há quanto tempo que não como massa? Nádia e
minha mãe me chicoteariam se me vissem enrolando o macarrão no
garfo e levando à boca com gosto.
Só hoje, digo a mim mesma.
Aqui, no mundo paralelo, posso esquecer minhas obrigações
e aparentemente estou esquecendo minhas encanações também,
concluo ao observar Nick, sentado à minha frente. Ele não está
usando mais os óculos e a cozinha está mais iluminada e noto que
seus olhos são de um castanho-claro lindo. Como um felino.
De repente ele levanta o olhar e me pega o encarando.
— Minha boca está suja?
Eu enfio a cara no prato, sem graça.
— Nem perguntei se come massa, mas parece que sim —
comenta quando devoro todo o macarrão.
— Não lembro quando comi massa pela última vez —
confesso.
— Por que não come?
Hesito em dizer o motivo. Não quero que ele saiba quem eu
sou.
Não ainda.
Ou talvez ele nunca saiba, provavelmente em breve eu sairei
daquele refúgio e nunca mais o verei novamente.
Este pensamento me enche de desolação que não estou
preparada pra sentir. É ridículo.
Talvez não seja por ele, afinal, eu mal o conheço.
Mas por mim, pelo que estou sentindo, embora ainda não
queira nomear o sentimento.
— Você mora aqui? — Evito responder sua pergunta.
— Não. — Nick não parece disposto a falar de si, enquanto
eu estou muito curiosa sobre ele.
— É uma casa bonita. — “E tem cara de ser muito cara”,
penso, mas mantenho o pensamento pra mim.
Nick também não responde se aquela casa é dele ou não.
Talvez esteja ali como eu estava na casa de Trevor, como um
empréstimo.
— Posso... Posso perguntar o que você faz pra viver? —
arrisco.
— Eu lido com motos.
Só isso, bem vago.
O que quis dizer? Que é um mecânico?
Vendedor de motos?
Corredor de motos? Ou mesmo um membro de uma gangue
como aquele seriado?
Eu me pergunto se ele não está curioso sobre mim,
aparentemente não, concluo com certo desapontamento.
Pego a taça de vinho e tomo um gole, meu olhar vagando
pela cozinha e encontrando meus patins jogados num canto com
minhas botas de neve.
Será que ele sabe quem eu sou? Aqui no Canadá as pessoas
adoram patinação e eu definitivamente sou a queridinha do
momento, sempre nas redes sociais, em peças publicitárias e até
programas de TV. Mas Nick não parece o tipo de cara que liga pra
essas coisas.
De repente ele levanta a cabeça e seu olhar captura o meu.
Perco o ar com toda a intensidade que emana da íris
castanha e uma lufada de calor atravessa minha pele, chega a meu
sangue, que pulsa mais rápido, meu coração batendo de um jeito
desconhecido até então, enquanto aquele calor envolve meu íntimo,
pesa em meu estômago, aperta meu ventre e explode entre minhas
pernas de forma inesperada e chocante.
“Estou atraída por este cara.”
Finalmente confesso a mim mesma, dando nome ao que
estou sentindo.
É assombroso.
É fascinante.
E tão “não eu” que me deixa tonta.
Nick se levanta de repente.
— Fique à vontade.
Ele não diz aonde vai, mas noto que se fecha em uma sala
que parece um escritório.
Eu me levanto e pego os pratos, levando-os à pia e os
lavando. É o mínimo que posso fazer já que ele me fez um jantar.
Depois, eu volto a me sentar e apanho o livro que ele largou
ali e o abro, começando a ler.
É uma leitura interessante, sobre amigos que caem na
estrada na geração pós Segunda Guerra.
E não sei quanto tempo estou lendo quando a luz se apaga
de repente.
Assustada, fecho o livro, sem saber o que fazer.
— Kiara?
Escuto a voz de Nick e me viro, ele está se aproximando
segurando o celular.
— O que aconteceu?
— Algo aconteceu com a luz.
Ele senta ao meu lado e digita rápido e então suspira.
— Parece que é algum problema com todas as casas,
possivelmente por causa da nevasca.
Estremeço, preocupada.
— Bem, melhor irmos dormir. — Ele se levanta e eu fico no
mesmo lugar.
— Você tem um quarto de hóspedes? — balbucio, incerta.
— Só há lareira no meu quarto. A casa estará gelada em
pouco tempo se a eletricidade não voltar.
Hesito, incerta. O velho medo me domina, esmagando a
recém-descoberta atração.
Nick estende a mão.
— Vamos apenas dormir, Kiara. Só não quero que congele de
novo. — Há certa impaciência em sua voz.
Mas alguma coisa em seu olhar me fez pegar sua mão e me
deixar guiar para o quarto escuro, onde somente as chamas da
lareira crepitam quebrando o silêncio.
Nunca dividi a cama com um homem e estou prestes a fazer
com um estranho.
Capítulo 3

Quando chegamos ao quarto, corro até o banheiro e lavo meu


rosto e tento escovar meus dentes com os dedos. Minhas
bochechas estão coradas e meu coração disparado. Sinto um misto
de expectativa e receio na boca do estômago quando volto ao
quarto.
Quando meus olhos rastejam até a cama, e observo Nick
afastar as cobertas, agora usando só uma calça de pijama, dou um
passo atrás, minha coragem vacilando.
— Não posso fazer isso.
Ele me encara e não consigo ler sua expressão.
— Nem te conheço, não vou... — Minha voz se alquebra e
pisco notando que estou prestes a chorar e me sinto ridícula. —
Deve me achar uma idiota. — Suspiro.
Ele larga as cobertas.
— Não está sendo idiota. Eu vou ficar na poltrona. Você fica
com a cama.
— Não, não faça isso por mim. A casa é sua e eu sou a
intrusa. Fique com a cama. — Antes que ele possa insistir, já
avanço até a poltrona e pego a coberta que ainda está lá e me
sento. — Eu fico com a poltrona.
Não consigo ver Nick daquela posição, mas ele não se mexe
por alguns instantes.
— Pode ser desconfortável passar a noite aí, mas fique à
vontade para fazer o que te deixa segura, Kiara — diz por fim.
Não há entonação em sua voz. Talvez certo cansaço. Mas
respiro aliviada quando escuto o colchão se mover denunciando que
ele se deitou e me forço a respirar normalmente.
Enxugo as lágrimas que escaparam dos meus olhos e cerro
as pálpebras, tentando ignorar que há um homem deitado em uma
cama há alguns passos de mim.
E quando estou quase deslizando para o sono, ainda escuto.
— Será bem-vinda aqui.

Acordo confusa e gelada.


Vasculho em volta do quarto escuro, sem saber onde estou
por alguns segundos até que minha mente clareia.
Estou na casa de Nick.
O cara misterioso que me tirou da neve.
E a lareira agora está apagada, por isso está tão frio. A
eletricidade ainda não voltou.
E Nick tem razão, é mesmo desconfortável dormir ali, admito,
mexendo meu pescoço dolorido e tremendo gelada.
Eu me viro e espio a cama. Nick está debaixo das cobertas,
de costas para mim.
— Nick? — chamo baixinho, mas ele não responde. Está
adormecido.
Hesito por alguns instantes, mas o frio é maior e então me
levanto e caminho até a cama, quase na ponta dos pés.
Meu coração disparado quando seguro a ponta do cobertor e
mergulho embaixo dele com o mesmo receio de uma criança
entrando pela primeira vez no mar. Quase nem respiro quando deito
a cabeça no travesseiro, os dedos segurando o tecido com força, o
corpo tenso, duro como uma taboa, que ainda treme de frio, assim
como meus dentes.
Arrisco olhar para o lado e Nick não se mexeu. Ainda meio
receosa eu me viro, observando suas costas e sem pensar muito no
que estou fazendo, me aconchego mais perto, o calor que irradia do
seu corpo atraindo o meu, até que esteja grudada nele.
Suspirando, me rendo, assim como naquela tarde, deixo que
o calor de sua pele abrace o gelo da minha com um bem-vindo
choque térmico que arrepia os pelos do meu corpo, mas de forma
boa.
E pouco a pouco, o frio vai dando lugar à calidez e fecho os
olhos, relaxando como se estivesse em contato com o próprio sol.
Quando percebo que a respiração de Nick mudou, denunciando que
ele acordou e constrangida, faço um movimento para me afastar,
sou surpreendida quando sua mão surge puxando a minha, para
que eu continue perto, e me vejo agora abraçada a seu corpo, com
a mão dele sobre minha, em sua barriga.
Meu coração voltou a disparar, num misto de medo e
expectativa.
— Está tudo bem. Apenas se aqueça. — A voz de Nick está
rouca de sono e eu nem ouso me mexer, meio em choque.
Meio apreciando estar ali, grudada em sua pele morna, com
minha mão presa na dele, com a palma na sua barriga.
Uma parte da minha consciência murmura confusa que não é
nada adequado estar ali, mas há outra parte, talvez mais ligada ao
instinto, que está gostando mais do que deveria.
Relaxo o corpo, assim como meu coração que vai se
acalmando e batendo devagar. A sonolência aquieta meus
pensamentos. E deslizo para uma bem-vinda inconsciência.

Quando acordo novamente, a claridade do dia cinza


atravessa o quarto e abro os olhos para constatar que ainda estou
grudada em Nick, só que agora estou com a cabeça deitada em seu
peito.
Caramba, como aquilo aconteceu?
Eu nem ouso me mexer, escutando seu coração batendo num
ritmo compassado embaixo do meu ouvido.
Os braços dele estão à minha volta, me mantendo perto.
Nossas pernas estão entrelaçadas e nossos quadris
encaixados.
Minha nossa.
De novo sou acometida por sentimentos conflitantes.
Algo em mim quer se afastar, rejeitando aquela intimidade
forçada.
Mas também há uma vontade de ficar ali, confortavelmente
aninhada ao homem que ainda é um estranho.
Mas um estranho que me salvou de morrer congelada na
neve. Que me aqueceu, duas vezes, e que em nenhum momento se
aproveitou disso.
E me surpreendo com o sentimento de segurança que
percebo que acalma meu coração.
E então, meus sentidos se atêm em outros detalhes.
Aspiro o cheiro bom que irradia dele. Não sei o que é, mas é
gostoso e bem-vindo. Talvez algum perfume masculino que nunca
senti antes.
Levanto a cabeça devagar e descanso o olhar em seu rosto
adormecido. Corajosa, ergo a mão e toco a barba e como ele nem
se mexeu, prossigo com minha inspeção. Deslizo os dedos pelo
peito com uma penugem suave sob os músculos bem-feitos.
Ele tem a pele bronzeada de quem passa bastante tempo ao
sol e há pequenas coisas escritas numa tatuagem em sua costela.
Sem me conter eu me inclino para ler e me surpreendo que está
escrito em francês. Reconheço a frase.
Porque é a mesma que tem na minha nuca.
Plus que ma propre vie.
Mais que a própria vida.
Só que a minha tem uma data embaixo e a dele tem um
monograma.
Com a letra N e C entrelaçados.
N de Nick? E C de quem?
Antes que consiga prosseguir, uma mão surge debaixo da
coberta e segura meu pulso.
Levanto a cabeça, assustada, para me deparar com Nick de
olhos abertos olhando pra mim.
Nem um de nós diz nada, e sustento seu olhar sonolento e
confuso. E por um momento tenho a impressão de que ele não sabe
quem eu sou.
Bem, ele não sabe mesmo.
E nem eu sei quem ele é.
Mesmo assim, permaneço ali, presa a ele.
De repente, algo muda. De forma sutil e quase imperceptível.
Mas eu sinto.
Sinto na boca do meu estômago.
No arrepio que percorre minha espinha.
No ar a minha volta que se torna rarefeito, dificultando minha
respiração e me deixando fraca.
No calor que irradia do toque dos dedos dele em meu pulso e
que se espalha como brasa em minha pele, causando um alvoroço
dentro de mim.
E de súbito, estou muito consciente do meu corpo.
Do corpo dele embaixo do meu.
Das nossas pélvis em contato.
E do calor que se concentra exatamente ali, onde começo a
pulsar e desejar e sem nem mesmo pensar no que estou fazendo,
me movo para mais perto e no instante seguinte, o aperto no meu
pulso se torna firme e outra mão desce para meu quadril, me
segurando.
— Não faça isso — ele me repreende e eu me arrepio com o
tom rouco de sua voz.
Que acaricia meus ouvidos.
E percebo que ele está começando a ficar excitado embaixo
de mim.
Por um momento suspenso no tempo, luto entre o instinto de
me afastar e outro mais primitivo de me apertar mais contra sua
ereção.
Porém, um barulho de carro estacionando seguido de uma
buzina quebra seja lá o que estava rolando entre nós e Nick me
solta, me afastando e saindo da cama.
Ele vai até a janela e espia lá fora.
Eu fico ali, sentada, mordendo os lábios e tentando entender
o que diabos tinha acontecido.
Aliviada que não tenha prosseguido.
Lamentando que tenha acabado.
Quão paradoxal é isso?
Devia estar enlouquecendo.
Ele se vira pra mim, e sua expressão é tão fria como o gelo lá
fora.
— Vista-se. Precisa ir embora.
E sem mais, ele sai do quarto.
O quê?
Atordoada, saio da cama, e reparo que a eletricidade voltou
em algum momento. O fogo está crepitando na lareira e minhas
roupas estão cuidadosamente dobradas em uma cadeira.
Nick havia se levantado em algum momento antes de mim,
concluo.
E mesmo assim, ele me deixou na mesma cama que ele.
Por quê?
De repente, escuto vozes.
Droga, tem gente ali e ruborizo ao pensar em ser pega em
flagrante.
Flagrante do quê? Eu nem faço ideia de quem está na casa,
mas apresso-me em me vestir. Entro no banheiro, lavo o rosto e a
boca rápido, ajeitando o cabelo de qualquer jeito e saio do quarto,
querendo pegar meus patins e vestir minhas botas para dar o fora
dali.
Quando chego à sala, olho pela janela e Nick está em frente a
um carro conversando com uma mulher loira elegante que aparenta
ter a mesma idade que ele.
A mulher se vira e dou um passo atrás, não querendo ser
vista.
Quem é ela?
A namorada dele, talvez? Uma voz sussurra desconfiada
dentro de mim.
Será?
O que eu sei sobre aquele cara? Nada.
Suas palavras quando avistou o carro e a mulher voltam até
mim.
“Você precisa ir embora.”
Meu estômago vai ao chão e eu me sinto uma idiota.
Corro para a cozinha e apanho minhas botas as calçando,
mas quando procuro meus patins não os encontro.
Percorro a sala e chego até o cômodo que Nick entrou ontem.
É uma biblioteca e tem uma escrivaninha de mogno escuro
em um canto e meu olhar é atraído para os porta-retratos em cima
dela.
Eu me aproximo e observo que no primeiro tem um casal de
idosos. O homem parece uma versão mais velha de Nick.
Seus pais?
Mas é o próximo porta-retratos que me surpreende.
Um Nick bem mais novo está abraçado a uma mulher loira
jovem. Ela está vestida de noiva. É a foto de um casamento. O
casamento de Nick.
E quando pego o porta-retratos, perco o fôlego por ver que a
mulher é aquela lá fora, conversando com ele.
A esposa dele.
Com a mão trêmula, coloco no lugar, mas uma curiosidade
mórbida me faz ir em frente e me sentir ainda pior pela próxima foto.
A versão bem mais jovem da mulher está sorrindo para a
câmera com uma proeminente barriga de grávida.
E na próxima, Nick segura um bebê.
— Estes patins são seus?
Eu me viro ao ouvir a voz infantil e o retrato cai da minha
mão.
Uma menina está olhando pra mim, segurando meus patins.
Ela está com os cabelos escondidos em uma touca e veste
um grande casaco de inverno branco.
Minha nossa. Aquela deve ser filha do Nick?
Nick não só era casado como tinha uma filhinha?
“Mas por que está espantada? Você não sabia nada dele.
Nick apenas foi cordial com você. Convidou-a para sua cama
apenas porque estava frio. Você que foi uma boba por se sentir
atraída por um cara por quem não sabia nada.”
Minha consciência está me esmurrando agora e me sinto uma
idiota.
— O gato comeu sua língua? — A menina sorri.
— É, sim, são meus. — Estendo as mãos e os apanho das
pequenas mãos, mais do que nunca querendo sumir dali.
— Quem é você? — a menina indaga curiosa.
— Eu não sou ninguém — respondo dando meia-volta e
saindo do cômodo, avisto uma porta da cozinha que dá para os
fundos da casa e estou quase a alcançando quando escuto passos
atrás de mim.
— Olá.
Merda.
Eu me viro e a mulher de Nick está me encarando.
Capítulo 4

A mulher tem um olhar frio como gelo que beira a repulsa.


Ela sabe?
“Sabe o quê? Não tem nada pra saber!", me defendo
mentalmente.
Se bem que, qual esposa ficaria feliz em saber que uma
desconhecida dividiu a cama com seu marido? Mesmo
inocentemente?
Bem, não tão inocente assim, eu me recordo do que
aconteceu ao acordarmos, e o pensamento me faz corar e querer
me enfiar no buraco mais fundo do mundo e nunca mais sair.
— Meu nome é Cláudia — ela diz.
Cláudia.
Como o monograma. N & C.
— Nick me contou o que aconteceu. Ele é mesmo um bom
samaritano, não? — Sua voz está cheia de ironia e ela me mede
com censura.
— Desculpe, eu preciso ir... — E me viro abrindo a porta e
saindo para o dia claro.
Quase corro pela neve que agora derrete, me distanciando de
Nick e de sua família. E respiro aliviada quando avisto a casa de
Trevor. Ela fica a uns cinco minutos da casa de Nick.
Talvez eu até pudesse ter arriscado ir andando até ali, mesmo
com a nevasca. E aí nada do que aconteceu naquela última noite
teria acontecido.
Seria melhor?
Entro na casa e a primeira coisa que vejo é meu celular
esquecido sobre a bancada da cozinha, com um monte de
mensagens de texto e de voz da minha mãe.
Claro que ela está desesperada atrás de mim. Eu nem me dei
ao trabalho de avisar que estava saindo da cidade, justamente para
que ela não me impedisse. Também há mensagens de Christian.
Começo com as dele, perguntando se cheguei bem e depois de
algumas horas dizendo que minha mãe o está perturbando
querendo saber onde estou. Ele ainda tentou ligar algumas vezes e
na última mensagem demonstrou preocupação por eu não
responder.
Decido ligar primeiro para ele.
— Oi, estou viva — digo assim que ele atende.
Escuto sua risada do outro lado da linha.
— Imagino que tenha desligado o celular para não atender a
louca da Maude?
— Não, isso sempre me passa pela cabeça, mas já entendi
que é melhor atender Maude, porque as consequências de ignorá-la
são bem piores.
— Ela está atrás de você, já me ligou várias vezes. Tive que
dizer que você saiu da cidade, que tirou uns dias de folga, mas que
não sabia onde estaria.
— E ela aceitou isso?
— Claro que não. E ainda te chamou de irresponsável porque
tem uma certa reunião em uma tal De Santi.
Fecho os olhos soltando um palavrão.
— É, acho que ela comentou alguma coisa sobre um
patrocínio, publicidade, ou sei lá.
— Olha, melhor ligar pra ela. Porque já estou temendo que
venha até aqui usando uma arma para me ameaçar.
— Tudo bem, me desculpe por isso.
— Mas se sabe que não pode ignorá-la, por que não
atendeu?
Solto um suspiro profundo, decidindo o que vou contar a
Christian.
— Olha, longa história.
— Opa, o que rolou? Você está bem?
— Agora estou.
— Como assim? O que aconteceu?
— Eu te conto hoje à noite, pode ser?
— Hoje?
— Sim, eu vou voltar. Não está adiantando ficar aqui.
“E quero esquecer que Nick e sua família de comercial de
margarina estão há cinco minutos de distância, Deus me livre cruzar
com ele de novo nessa vida.”
— Tá certo então. Festa do pijama?
Não consigo conter um sorriso.
— Combinado.
Assim que desligo, o celular toca e eu nem preciso olhar para
saber quem é.
— Onde diabos se meteu?
— Estou em Whistler.
— Fazendo o que aí?
— Precisava tirar uns dias de descanso...
— Descanso? Você tem muitos compromissos, onde está a
sua responsabilidade?
— São só alguns dias, mãe...
— Não pode simplesmente sumir e não dizer onde está,
Kiara! Estou atrás de você desde ontem.
Respiro fundo, para não me estressar. Não vai adiantar brigar
com Maude, porque ela sempre vence.
— Eu não sumi. Estou na casa do irmão do Chris em
Whistler...
— Ele está com você? Aquele garoto podia ter me dito que...
— Ele não está comigo, estou sozinha.
— Não estou entendendo porque viajou sozinha para
Whistler, tendo tantos compromissos...
— Precisava espairecer.
— Espairecer do quê? Está de brincadeira? Há pouco tempo
das Olimpíadas, você começa com essas palhaçadas, Kiara?
— Uma coisa não tem nada a ver com a outra...
— Tem tudo a ver! Você é a número um e vai continuar
assim, pelo menos se depender de mim, porque se depender de
você...
— Mãe, para, sério.
— Você tem que ouvir!
— Talvez por você não me deixar em paz que eu precisava
sumir! — estouro.
— Não te deixar em paz? Eu cuido da sua carreira e faço
tudo para que brilhe! Você é a melhor! Nas pistas de gelo e fora
delas. Tem patrocínios que permitem que possa apenas treinar e se
dedicar e não tem que trabalhar para pagar o próprio traje, como
muitas atletas! Então para de reclamar e de ser ingrata! Me acha
chata? Pois deve tudo a mim! Quando foi que tomei decisões
erradas, Kiara?
— Quer mesmo que eu diga?
Eu me arrependo do que disse assim que as palavras saem
da minha boca.
— Está sendo injusta.
— Certo, desculpa. Só estou nervosa e sob muita pressão.
— A pressão faz bem pra crescer. Você tem que se dedicar
agora. Tem apenas mais alguns anos como patinadora competitiva.
Não pode desperdiçar seus melhores anos com distrações!
Quantas vezes eu escutei aquela mesma frase?
Quando tinha 13 anos e queria ir a uma festinha do pijama
com as amigas e ouvia um não.
Quando um garoto me convidou pra sair com 14 e não tive
permissão.
Quando queria só dormir e descansar, mesmo estando com
uma gripe forte e fui obrigada a treinar.
Ou tantas outras vezes. Coisas bobas sem importância,
permitido a todos e que eu era impedida. Ou situações sérias às
quais deixei a decisão nas mãos de Maude e agora era tarde.
O tempo não volta.
Convivemos com aquelas decisões e suas consequências
eternamente.
Mesmo não sendo nossas.
— Eu sei — respondo por fim.
— É bom que eu sempre relembre! Agora volte para
Vancouver e esteja na reunião às 17 horas na De Santi. A proposta
deles é incrível, vai ver. Acho que com o dinheiro que vão lhe pagar
pela campanha poderá comprar até uma casa para nós. Aí em
Whistler até, se preferir. Não seria incrível, termos nossa própria
casa de neve?
— Espera, campanha?
— Sim, eles querem que você seja o rosto da empresa na
campanha para as Olimpíadas.
— Mãe, não vou ter tempo para essas coisas. Sabe que os
treinos ficarão mais intensivos...
— Você vai conseguir. É só não se distrair.
— Daqui a pouco você diz que não preciso dormir!
— Não seja impertinente. Claro que precisa dormir. Mas não
precisa ficar assistindo TV e burlando sua dieta comendo doces com
Christian.
— Não fazemos isso.
— Eu sei que faz. Esse garoto, às vezes, acho que é um
atraso pra você. Se ainda estivesse com Dimitri...
— Mas não estou e sabe por quê!
— Está bem, tem razão.
— Preciso desligar e pegar a estrada, está bem? Chego
antes do almoço em Vancouver.
— Então podemos almoçar juntas e lhe conto sobre a
proposta da De Santi.
— Não vai dar. Vou encontrar a Naomi.
— Tudo bem, mas não se atrase. E vista-se bem, por favor!
Reviro os olhos, Maude tem uma obsessão com a minha
aparência que beira o ridículo. Mas me vi concordando porque
aprendi através dos anos e inúmeras discussões infrutíferas que era
o melhor a fazer.
— Tudo bem.

***

— Por que acho que quer me dizer alguma coisa que não
está dizendo?
Suspiro, um tanto apreensiva ao encarar Naomi.
Eu havia chegado há mais de meia hora e lhe contado sobre
a minha semana, como sempre, reclamado da minha mãe, de como
vinha me sentindo sufocada ultimamente e o de sempre.
Naomi é minha terapeuta há uns três anos, desde que minha
mãe decidiu que eu precisava de ajuda. Óbvio que não acreditei
nem um momento que isso era uma preocupação genuína de
Maude, com o fato de que eu não conseguia lidar sozinha com
meus traumas. Ela tinha percebido que mesmo com todo seu
esforço para me manter na linha, treinando e me tornando uma das
atletas mais prestigiadas do país, havia uma parte das minhas
emoções que estava fora de controle. E se elas explodissem, a
Kiara Willians, seu projeto tão bem elaborado, corria o risco de não
existir.
Assim, comecei a conversar com Naomi Harris uma vez por
semana. E realmente tinha me ajudado muito poder me abrir com
alguém que entendia e estava disposta a me ajudar. Porém, a
terapia não era um anjo milagroso que conseguiria tirar as memórias
ruins de dentro de mim. Elas ainda estavam ali. Estariam para
sempre me fazendo companhia. Mas pelo menos Naomi me ajudava
a lidar melhor com elas e seguir em frente. Fazia-me ter esperança
de alguma espécie de cura um dia. Porque até agora, apenas
consegui não enlouquecer, fazer bem o meu trabalho e ser a boa
menina que todos esperavam que eu fosse. Obviamente, ainda há
muito caminho pela frente. Como o fato de eu não conseguir lidar
com as aproximações masculinas de forma saudável.
Bem, sim, eu tenho algo para contar a Naomi em relação a
isso.
— Eu conheci alguém esses dias.
Hum, eu me arrependo da escolha de palavras.
Conheci alguém, dá a impressão de que eu me interessei por
alguém em um encontro ou algo do tipo, o que definitivamente não
aconteceu.
O suave levantar da sobrancelha escura de Naomi demonstra
surpresa.
— Alguém, você quer dizer um homem?
— Sim, um cara — suspiro pesadamente, sem saber por
onde começar.
— Então me conte como foi. — Naomi parece estar animada,
afinal esse era um assunto no qual ela não tinha conseguido me
ajudar.
Eu achava que não ia mudar nunca. Acho que até tinha
aceitado que eu jamais teria algum interesse no sexo masculino de
novo.
Ou interesse em sexo.
Mas um estranho que me tirou da neve mudou tudo.
Um estranho casado, penso, me sentindo idiota como eu
sempre me sentia ao lembrar.
— Como te falei, não estava bem e depois da última
apresentação, Chris me sugeriu passar uns dias em Whistler. Eu
aceitei e praticamente fugi pra lá, sem avisar ninguém e mesmo
tendo um monte de compromisso aqui. Só que chegando lá, ficar
sozinha não estava ajudando e fui patinar em um lago próximo.
Enfim, acho que o peso da angústia foi demais e eu caí e fiquei lá
no frio.
— Kiara, que perigo, que tipo de pensamentos estavam
passando por sua cabeça? Sabia que podia morrer de hipotermia?
Há preocupação na voz de Naomi.
— Sei o que está passando pela sua cabeça, mas não acho
que estava com algum pensamento suicida nem nada.
— Você não é suicida. Teimosa e às vezes inconsequente,
sim.
— Eu só queria... não pensar. Não pensei nas
consequências. Mas quando me dei conta, tinha começado a nevar
e eu não conseguia me mexer. E aí apareceu um cara estranho e
me tirou de lá.
— E você permitiu?
— Eu estava morrendo congelada, não havia como afastá-lo,
embora o tempo todo meu cérebro repudiasse aquele toque. Mesmo
assim, ele me carregou para sua casa e tirou minha roupa. E me
aqueceu com seu próprio corpo.
— Como se sentiu?
— Eu tentava afastá-lo, mas não tinha forças. Senti medo,
porque se pudesse jamais ele teria me tocado e me abraçado.
— Mas não tinha como e foi obrigada a deixar.
— Sim, e eu ainda estava muito confusa e precisando de
calor e em algum momento a repulsa virou necessidade e eu não só
deixei que ele me embalasse como apreciei e relaxei, adormecendo,
afinal.
— Ele salvou você.
— Sim, me salvou...
— E o que aconteceu depois?
Eu lhe contei sobre acordar praticamente nua e de encontrar
o homem pelado.
— E você se sentiu atraída por ele?
— Talvez não naquele momento. Ele é um cara atraente e eu
notei isso.
— Mas você não costuma notar. Não mais.
— Sim, por isso mesmo eu ainda estou meio perplexa com
tudo.
— E em algum momento você se deu conta de que estava
sentindo atração por ele.
— Sim, eu ainda estava meio confusa e com medo. Acho que
nem precisa ter meu histórico para estar sozinha no meio de uma
nevasca com um estranho e ficar receosa.
— Com certeza não, mas no seu caso, era uma bomba-
relógio. Você surtou em algum momento?
— Aí que está. Não. Ainda havia certo medo, mas também eu
estava cheia de curiosidade e em algum lugar dentro de mim, acho
que me senti segura. Acha que sou louca?
— Não. Talvez você tenha deixado seus instintos dominarem.
Sentiu que estava em segurança.
— Como eu podia saber, eu nem o conhecia. Me parece bem
inconsequente, ainda mais pra mim.
— É possível. Acredita em energia? Se estamos abertos,
receptivos, sentimos a energia à nossa volta. A energia das
pessoas.
— Isso é muito sobrenatural para alguém da ciência não?
Ela ri.
— Isso é física.
— Se você diz.
— Embora no seu caso acho que podemos chamar de
química.
— Eu só sei que fiquei presa lá, e um tanto atordoada,
curiosa e era como se não fosse eu.
— Ou era você. A Kiara verdadeira. De antes.
— Você acha que é possível?
— Tudo é possível, Kiara. Eu sempre te disse. Está tudo na
sua mente. Você libera seu medo e aprisiona suas emoções. Algo
nesse cara, talvez uma química verdadeira, tenha feito você se
permitir não sentir medo. E sentir emoção. Atração. E o que mais
aconteceu?
Eu lhe conto até o momento em que fomos dormir e do meu
medo de ficar na mesma cama que ele.
— É compreensível. Qualquer mulher ficaria receosa.
— Ele não fez absolutamente nada ou tentou me convencer,
acho que nem havia nenhum interesse em mim, deste tipo.
— Sexual?
— Sim.
— Achou isso bom ou ruim?
— Naquele momento, eu não achei nada. Eu sabia que
estava acontecendo alguma coisa, nem sabia direito o que era, mas
eu estava gostando porque não me sentia assim há tanto tempo. E
já tinha até perdido as esperanças. Então achar um cara atraente,
sentir uma força magnética como se me puxasse em direção a ele e
não sentir medo. Era quase extraordinário.
— Sim, extraordinário para você. Mas é natural. A atração
entre duas pessoas é natural.
— Não pra mim.
— Temos conversado sobre isso há bastante tempo e você
sempre reluta. Talvez seja a hora de começar a explorar. Agora você
sabe que é possível. Não é preciso ter medo de entrar em contato
com a sua sexualidade e suas emoções. É saudável. E talvez este
homem seja alguém importante para você.
— Só que eu não te contei tudo.
— Hum, você disse que ele não estava interessado em você.
— Bem, houve um momento...
Eu lhe conto sobre voltar à cama e o que tinha rolado quando
acordamos.
— Então a atração era mútua.
— Eu não sei. E nem tive como descobrir, porque chegou um
carro. E era a mulher e filha dele.
Desta vez os olhos de Naomi se arregalam.
— Ele era casado?
— Pois é. Acho que por isso não tentou nada.
— Hum, isso é uma pena. Eu estava ficando animada por
finalmente você conhecer um homem por quem se atrai e que
poderia te ajudar a sair dessa concha que se escondeu.
— Enfim, eu me senti uma idiota e fiquei com raiva de mim
mesma e dele também.
— Acha que ele era um canalha?
— Não sei dizer. Como eu falei, ele não tentou nada. Tirando
aquele momento quando acordamos. — Eu não consigo evitar corar.
— Pode ser indício de que ele também sentia a mesma
atração. Ou apenas um instinto físico natural.
— Eu sei. Mas acho que cheguei a pensar que havia algo
rolando entre nós, sabe. Acho que me enganei.
— Bem, esses enganos acontecem.
— É uma merda. Estou tão... frustrada.
— Deveria ficar feliz.
— É mesmo?
— Olha quanto progrediu. Você se permitiu se atrair por
alguém. É um despertar. Talvez este cara não seja pra você, mas
ele te ajudou a ver que ainda é possível. Você é uma mulher jovem,
bonita. Pode viver tantas experiências, se apaixonar tantas vezes.
— Não estou apaixonada, por favor!
— Não disse isso. Eu disse que pode se apaixonar. É só se
permitir. Viver. Não foi bom o que sentiu?
Eu assinto.
Claro que foi bom. E é por isso que me sinto tão frustrada.
Passei anos em um limbo emocional e físico. E saí dele para
quebrar a cara com um homem casado.
— É muito patético — suspiro —, mas pelo menos eu nunca
mais vou ver esse cara de novo.

— Você está atrasada.


Maude caminha em minha direção com seus saltos batendo
no chão no saguão do prédio elegante no centro da cidade que ela
havia me informado o endereço.
Retiro os fones de ouvido dizendo a mim mesma para ser
boazinha.
— Me desculpe. — Eu meço Maude. — Está bonita, mãe.
Maude está sempre linda. Seus cabelos claros estão
escovados e brilhantes em um elegante corte até os ombros e hoje
ela veste um terninho rosa-claro que combina com a maquiagem
sutil.
Lembro que teve uma época que sentia inveja de sua beleza
e almejava ser como ela.
Mas nunca vou ser. Nem física, nem emocionalmente. Quer
dizer, talvez eu e Maude sejamos parecidas um pouco. Maude está
sempre no controle de suas emoções, sempre calculando o próximo
passo com maestria, nunca deixando nada ao acaso. Ela planejou
cada etapa da minha carreira e veja aonde chegamos. Nada
atrapalha a ambição de Maude Willians.
— Não posso dizer o mesmo de você, podia ter caprichado
mais. — Ela segura meu braço e me encaminha para o elevador.
Eu contenho um sorriso. Depois da terapia, eu fui pra casa,
tomei um banho e abri meu closet observando a infinidade de
roupas bonitas e de grife, muitas delas presentes das marcas que
adoravam que eu as vestisse para todos copiarem. Achei que
estava bem, usando um conjunto de calça e blusa de lã preto, que
eu julgava elegante e discreto.
— Eu caprichei — retruco.
— Tantas roupas bonitas que você tem! Hoje você tem que
impressionar...
Antes que eu consiga responder, a porta do elevador se abre
e uma moça oriental nos cumprimenta, pedindo que a acompanhe.
Nós chegamos até uma sala de reunião decorada em tons de
cinza e preto com uma vista magnífica da cidade.
E um homem de terno escuro se aproxima com um sorriso
educado.
— Olá, Kiara, que prazer finalmente conhecê-la. — Ele
estende a mão de forma amigável.
Hesito como sempre faço, incerta do que fazer.
O homem parece desconsertado e minha mãe se adianta.
— Sim, e eu sou a mãe e empresária, Maude Willians, o
senhor é Nick de Santi?
A menção do nome Nick me traz uma sensação de déjà-vu
inesperado.
Que coincidência desagradável.
— Não, não sou o Nick. — O homem sorri apontando para a
mesa e minha mãe me puxa para que nos sentemos e o homem faz
o mesmo. — Eu sou o CEO da empresa, Matt Balvin.
— Achei que Nick de Santi fosse o dono da empresa.
— Sim, ele é o maior acionista, mas há dois anos, Nick
deixou a direção da empresa. — A voz do homem adquire um tom
grave.
— Eu entendi que a reunião seria com o próprio Senhor De
Santi. — Maude não parece satisfeita e é a cara dela fazer isso. O
cara é o maldito CEO e ela acha pouco.
— Mamãe, por favor... — sussurro constrangida, mas antes
que eu continue, ouvimos a porta se abrir e Matt Balvin olha através
de nós.
— Sim, aí está ele.
Eu me viro ao ouvir passos se aproximando e tomo o maior
susto da minha vida ao ver que quem está entrando na sala é Nick.
O Nick que me tirou da neve em Whistler.
Ele é Nick de Santi?
Capítulo 5

Por um momento, acho que estou tendo algum tipo de


alucinação enquanto Nick se aproxima com os olhos fixos em mim.
E senta do outro lado da mesa, perto de Matt Balvin.
— Desculpe a demora.
A voz grave e meio rouca é a mesma que eu me lembro. A
mesma barba por fazer. Os mesmos olhos castanho-claros e os
mesmos cabelos escuros.
— Espero que não tenham esperado muito. — Ele finalmente
desvia os olhos de mim para minha mãe.
— Não, acabamos de entrar na sala — Matt explica.
— Então, é o Senhor De Santi. — Minha mãe se apruma,
mais interessada agora que está falando com o dono da empresa.
Puta. Que. Pariu.
Não estou alucinando.
Nick de Santi é o cara que me tirou da neve. Com quem
passei uma noite na mesma cama.
O cara por quem, contrariando todas as expectativas, eu tinha
me sentido atraída.
O cara casado, que tem até uma filha e que eu achei que
nunca mais iria ver na vida.
Está na minha frente, trocando palavras com minha mãe
sobre negócios, campanhas de marketing e patrocínios, muito sério
e compenetrado.
Ele é a porra de um empresário milionário. Ou algo assim.
— Kiara?... — minha mãe me chama e eu volto à realidade,
percebendo que estava aérea, presa em meus pensamentos
caóticos, enquanto os demais conduzem a reunião.
— Sim, me desculpe, estava distraída. — Cravo a atenção
em Nick e ele sustenta meu olhar. E há certo divertimento no fundo
da íris âmbar.
E me dou conta, mais confusa ainda, que estou perplexa ao
vê-lo ali, mas ele não parece nem um pouco surpreso.
Que diabos está acontecendo?
— A senhorita está bem? — Ele levanta a sobrancelha, de
forma irônica.
Coro, ao me recordar, mesmo sem querer, dele acordado
grudado em mim. Meu rosto esquenta ainda mais, de vergonha, e
desvio o olhar.
Ele não vai falar nada? Vai continuar fingindo que nunca nos
vimos?
Começo a sentir raiva daquela situação bizarra. E percebo
que não quero revelar a Matt e minha mãe que já conheço Nick de
Santi de uma maneira muito inusitada.
Bem, eu já o vi nu.
Eu já o senti excitado, caramba!
E agora ele está aqui, como se nunca tivesse me visto
antes.
— Sim, estou apenas... surpresa, Senhor De Santi. — Não
consigo evitar o sarcasmo em minha voz.
Quero que ele me explique que diabos está acontecendo ali,
e ao mesmo tempo desejo que ele não fale nada. Não na frente dos
demais pelo menos.
Porém, estou indignada e confusa e quero respostas.
Teria sido apenas uma coincidência?
Ele sustenta meu olhar e por um momento espero que ele vá
falar sobre já nos conhecermos, mas ele desvia a atenção para
Matt, que está falando sobre a história da empresa, enquanto se
levanta e abaixa a luz e uma tela desce e começa uma
apresentação.
— Vamos mostrar a história da De Santi — Matt explica.
Minha mãe me cutuca enquanto imagens de corridas de
motocicleta aparecem na tela.
— O que está acontecendo com você? — reclama baixinho e
eu apenas dou de ombro.
— Nada.
E em vez de prestar atenção no que está sendo apresentado,
me vejo desviando a atenção para o homem na minha frente e fico
vermelha por ele estar me encarando também.
Desvio rápido o olhar para a tela, onde um homem que
parece Nick, mas com o cabelo e bigode estilo anos setenta surge
ao lado de várias motos sendo construídas.
Entendo que aquele é o pai de Nick, quem fundou a De Santi.
E depois surge uma versão mais jovem de Nick,
provavelmente com uns vinte anos, participando de competições de
motociclismo e então, Nick um pouco mais velho no mesmo lugar
que o pai, em uma fábrica, agora mais moderna.
— Nick assumiu a De Santi há dez anos, depois de participar
de competições de motociclismo pelo mundo — Matt explica. — E a
transformou em uma marca mundial, expandindo os negócios não
só para motores, mas transformando a De Santi em uma marca
forte, desejada quase como as maiores marcas até então.
A luz se acende e eu pisco para me acostumar.
— E continuamos expandindo. Quando a De Santi surgiu em
1975, já existiam muitos fabricantes de motocicletas pelo mundo. O
que motivou o nosso fundador, Hudson De Santi, a querer construir
as melhores motos, com os preceitos de qualidade e inovação.
Assim conquistamos posições de liderança em importantes
competições de motociclismo e fomos aprimorando nossos
negócios. Estamos presentes em cerca de cem países e fabricamos
motos para neve, carros de golfe, bicicletas elétricas, geradores,
helicóptero de controle remoto, e muito mais.
— É impressionante — mamãe comenta obviamente muito
interessada agora. — Então você participava da competição? —
questiona a Nick.
— Sim, participei, durante alguns anos.
— E largou tudo para assumir os negócios da família? Isso é
louvável.
— Na verdade, Nick passou mais de um ano viajando pelo
mundo antes disso.
— A De Santi parece mesmo muito próspera. E eu e Kiara
estamos felizes que queira patrociná-la.
— Sim, mas queremos também contratá-la para uma
campanha publicitária — Matt explica.
— Eu não sei por que iam querer investir em uma patinadora
— eu me intrometo e minha mãe bufa ao meu lado.
— Kiara, cala a boca! — sibila.
— A De Santi vem diversificando seu meio de atuação —
Matt continua. — E estamos investindo em uma linha de acessórios
e roupas com nossa marca. Por isso a ideia de contratar alguém do
esporte, mas que tenha um público maior e influência entre os
jovens.
— Mas isso é maravilhoso! — Mamãe sorri. — Estamos
abertos à proposta de vocês.
Matt começa a falar de números, dinheiro e minha mãe está
quase salivando ao meu lado. É uma campanha que vai durar
meses, e que tomará bastante tempo.
— É tudo maravilhoso...
— Não — interrompo e todos os olhos se voltam pra mim. —
Estou há dois meses das Olimpíadas de inverno. Tenho que treinar
e não acho que poderia dispor de tempo para tudo isso.
— Kiara, claro que vai haver tempo! Não pode desperdiçar
essa oportunidade!
— Nós não desejamos de maneira alguma atrapalhar seus
treinos, Senhorita Willians — Matt diz. — Na verdade, você está
aqui hoje apenas para que façamos nossa proposta e decidir se
está interessada.
— Claro que estamos interessadas...
— Mamãe.
— A ideia da coleção ainda está em desenvolvimento. Como
expliquei, queremos que o público se identifique, e não só com a De
Santi como marca de motos, mas queremos expandir nossa área de
atuação, para atingir um público maior. E todo o desenvolvimento
será feito inspirado na sua imagem.
— E o que isso quer dizer?
— Queremos acompanhá-la durante esses dois meses.
— Me acompanhar, como assim?
— Você seguirá com seus treinos e rotina, e nós a
acompanhamos e desenvolvemos toda a concepção.
— E quem fará isso?
— O Nick está à frente de toda a concepção.
Eu arregalo meus olhos, incrédula.
Nick não esboçou qualquer reação.
Mas só pode ser uma brincadeira, não é?
Se eu aceitar, terei Nick de Santi na minha cola por dois
meses?
— Não — eu me vejo dizendo.
— Kiara! — Minha mãe está branca feito papel enquanto eu
me levanto.
— Desculpa, mas não estou interessada.
E ignorando os chamados da minha mãe, eu quase corro da
sala, o elevador está no andar e eu entro, apertando o botão do
térreo e encostando a cabeça no vidro atrás de mim.
Que diabos foi aquilo?
Ainda parece fruto de algum sonho bizarro.
Nick, o estranho de Whistler, era Nick de Santi e não só
queria me contratar para uma campanha milionária, mas ainda
queria ficar me acompanhando por dois meses. Mas nem pensar!
Saio do elevador e corro até onde estacionei meu carro, o
celular está tocando e sei que é minha mãe, mas ignoro.
Entro no carro e dou partida, só voltando a respirar quando
coloco uma boa distância entre mim e o prédio da De Santi.
Sei que não posso ir pra casa, porque minha mãe com
certeza estará lá para gritar comigo e me obrigar a aceitar a
proposta deles.
Tenho noção de que estou sendo irracional, mas como vou
aguentar ter Nick de Santi acompanhando todos meus passos? E eu
que achava que nunca mais iria vê-lo!
A verdade é que ainda me sinto humilhada por ter descoberto
que ele é casado. E furiosa comigo mesma porque ainda me sentia
atraída por ele.
Quão patética eu sou?
Por isso não posso aceitar aquela proposta.

Depois de cansar de dar volta, ligo para Chris, perguntando


se posso ir pra sua casa em vez de ficarmos na minha como
combinamos e ele diz que tem uma proposta melhor.
— A Everly e o Gabe nos convidaram para jantar, ia mesmo
te ligar.
— Ótimo. Nos encontramos lá?
Everly e Gabe são ex-patinadores que se aposentaram há
três anos e de quem eu e Chris somos bons amigos.
Eles são casados e Everly está grávida de seis meses.
— O que aconteceu, você parece tensa — Chris indaga
quando nos encontramos em frente à casa de Everly e Gabe.
— Podemos não falar sobre isso? Só queria me distrair hoje,
posso?
Ele aperta minha mão.
— Pode tudo!
Sorrio, aliviada.
Por isso que eu amo Chris.
Everly abre a porta, me abraçando animada.
— Você está enorme! — Chris brinca.
Everly revira os olhos puxados de ascendência chinesa.
— Nem me fale! Entrem logo, está congelando hoje!
Entramos, tirando o casaco e aspiro o cheiro bom de tempero
que recende na casa.
— Gabe está cozinhando?
— Claro que sim, só por isso que me casei com ele! — Everly
brinca quando vamos para a cozinha.
Gabe sorri entre as panelas.
— Olha que honra, a grande Kiara Willians na minha humilde
residência!
— Para de ser bobo! — Eu me instalo na banqueta da ilha,
enquanto Everly pergunta sobre as novidades do mundo da
patinação.
— E nenhuma fofoca? — Gabe especula nos servindo
yakissoba.
— Ah, eu tenho uma ótima. — Chris se inclina. — Estão
dizendo que Diana Colombo está grávida.
— O quê?
— A garota do Dimitri? — Gabe indaga, chocado.
— Não é a garota do Dimitri! Pelo que sei, eles são só
parceiros — Everly corrige.
— A gente também era. — Ele pisca.
— É sério isso, Chris?
Estou chocada também, mas imediatamente me vem a
imagem de Diana vomitando no vestiário.
— Pelo menos é o que Alana está espalhando.
— Alana é uma grande fofoqueira! Deve ser invenção —
Everly comenta.
— Ela continua encrenqueira? — Gabe questiona divertido.
— Aquela vai morrer encrenqueira — Chris ri —, mas vamos
ver se é só uma fofoca, ou verdade.
— Há meses das Olimpíadas? Que confusão seria? — Everly
especula.
— Seria o fim pra ela — Chris diz.
— Mas Alana ainda está dizendo pra todo mundo que o bebê
é do Dimitri.
Everly me encara.
— Acha que pode ser verdade, Kiara?
— Como posso saber? Eu e o Dimitri mal nos falamos.
— Sempre achei uma lástima que se separassem.
— Você fala como se fôssemos um casal!
— Poderiam ter sido. Achei que acabariam como a gente.
— Ninguém é como vocês. — Sorrio com certa inveja quando
o casal troca um selinho carinhoso e Gabe passa a mão na barriga
da esposa.
Será que um dia eu poderia ter algo assim?
Engraçado que eu nunca parei para pensar nisso? Nunca me
permiti ter este tipo de sonho. Apaixonar-me.
Ter uma família.
A comida desce como chumbo por minha garganta, pesando
em meu estômago.
Óbvio que nada mudou. Este tipo de vida que Gabe e Everly
têm nunca vai ser pra mim. Eu sempre soube.
E sempre disse a mim mesma que não importava.
Eu tinha a glória da patinação e só isso bastava.
Então por que agora sinto uma espécie de inveja do casal
amoroso na minha frente?

Quando estamos indo embora, Chris pede carona, pois veio


de táxi.
— Acha que um dia a gente vai ter algo assim? — questiona.
— Assim como?
— Everly e Gabe.
Eu suspiro. Acho que os pensamentos de Chris estão em
sintonia com os meus.
— Ninguém é tão perfeito como Everly e Gabe. — Sorrio.
— Eu achava que você e Dimitri seriam como eles.
— Ah não, de novo esse papo?
— Acha mesmo que a Diana está grávida?
— Eu a vi vomitando esses dias.
— Hum, talvez não seja só fofoca da Alana. E acha que pode
ser mesmo do Dimitri?
— Não é da nossa conta. — Estaciono em frente à casa de
Chris.
— Isso te abala?
Eu mordo os lábios, tentando analisar o que sinto.
Abala?
Sim, mas acho que não do jeito que Chris está pensando. Eu
já superei meus sentimentos por Dimitri há muito tempo.
Mas sempre haveria um lado meu que lamentaria por aquele
futuro que um dia eu também achei que seria meu.
Não posso negar que um dia, sonhei que eu e Dimitri
seríamos como Gabe e Everly.
Mas tudo isso se perdeu.
Assim como eu me perdi.
Meu celular começa a tocar e vejo que está cheio de
mensagens da minha mãe.
— Droga.
— O que foi?
— Maude.
— O que rolou?
— Posso dormir aqui? Maude está no meu apartamento. Ela
não vai me deixar em paz e não quero falar com ela hoje.
— Claro, mas só se me contar o que está rolando.
Quando entramos na casa de Chris, os pais dele, Ester e
Roger, ainda estão na sala assistindo TV.
Eu sempre especulo quando Chris vai deixar a casa da
família, mas ele não parece estar preocupado com isso.
Os Jackson, na verdade, são bem tradicionais e adoram ter
os filhos por perto. Trevor, o irmão mais velho de Chris, que é
jogador profissional de Hóquei, mora na mesma rua que os pais e
só se mudou quando se casou há quatro anos.
— Kiara, que surpresa. — Ester sorri ao me ver. — Chris não
me falou que viria.
— Ester, a Kiara é de casa, ela pode vir quando quiser. —
Roger pisca com malícia.
— Foi uma decisão de última hora. — Sorrio de volta.
— A gente vai dormir. — Chris me puxa para seu quarto e
reparo que ele está um pouco contrariado.
— O que foi?
— Meu pai fica todo feliz quando vem aqui.
— Eu sei, eles me amam. — Eu me jogo na sua cama e ele
se joga ao meu lado.
— Você sabe por que eles ficam felizes. Amanhã vou ter que
ouvir de novo a conversa “porque você e Kiara não assumem que
estão juntos”.
— Antes você não se importava. Até gostava que eles
pensassem assim.
— Estou começando a ficar de saco cheio de fingir.
— Acho que estamos em sintonia nisso também.
Ele me encara confuso.
— Vai me contar o que está rolando?
Eu conto a ele tudo o que rolou em Whistler e também sobre
a reunião da De Santi.
— Minha nossa, que coincidência bizarra!
— Estou tão frustrada! Achei que nunca mais fosse ver este
cara e agora isso!
— Você sempre pode dizer não.
— Sabe que não vou conseguir.
— Você é adulta. Maude não pode reger sua vida como a
orquestra particular dela.
— É fácil falar. Mas no fim, vou acabar aceitando. Como não
aceitar?
— E você está a fim deste cara?
— Não sei. Só quero ficar longe dele.
— Mas se está a fim dele...
— Não ouviu o que eu disse? Ele é casado! Além do mais...
acha que ia dar certo? Você sabe... — Perco o ar por um instante e
Chris segura minha mão.
— Ei, se acalma.
— É que... achei que isso nunca mais fosse mudar. E de
repente, eu conheço este homem que coloca tudo em outra
perspectiva. É assustador.
— Sei o que está dizendo.
— Vamos dormir. — Eu me levanto para preparar minha
cama no sofá, como sempre. Bem diferente do que os pais de Chris
imaginavam.

Na manhã seguinte, passo no meu apartamento para tomar


banho, trocar de roupa e pegar minhas coisas e ir para o ginásio
treinar.
Estamos aquecendo quando Nádia chega e me chama para
uma conversa.
Nádia é uma mulher ruiva e magra de cinquenta e poucos
anos que já teve sua era de ouro na patinação. Ela se casou com
um canadense e se mudou para o país há trinta anos, tornando-se
treinadora.
— Sua mãe me ligou.
— Ah, claro. Quando? O que ela te disse, que eu sumi?
— Ela disse que estava preocupada e perguntou se eu sabia
onde tinha se metido.
— Eu estava em Whistler. Apenas tirei um tempo.
— Eu sei. Chris me disse e pediu para não contar a sua mãe.
— Sabe como ela é. — Aparentemente Nádia ainda não
sabia sobre o aconteceu na De Santi ontem.
— E você está bem? Maude comentou algo sobre não estar
bem ultimamente. Segundo as palavras dela, você anda um tanto
rebelde.
Eu reviro os olhos.
— Não sou rebelde.
— Mas Chris disse que era pra cancelar os treinos até que
voltasse.
— Era só alguns dias, pra que tanto barulho! E eu voltei, não?
— Sua mãe apenas se preocupa. Assim como eu. Não podia
cancelar os treinos.
— Certo, eu voltei, e tudo voltou ao normal. Satisfeita?
— Sim, agora vá para o gelo. Não temos tempo a perder.
Porém, assim que eu me sento para tirar os protetores dos
meus patins, tomo um susto ao ver minha mãe se aproximando e ao
seu lado está Nick de Santi.
Por um momento, penso em correr e fugir, mas claro que não
posso agir como uma criança rebelde que Maude me acusa de ser.
Então respiro fundo e me aprumo.
Eu devia saber que Maude não deixaria eu me safar.
— Aí está você! — Ela me encara com um aviso claro no
olhar.
“Me obedeça.”
Eu nem ouso olhar para Nick, mas sua presença é bem difícil
de ignorar, a alguns passos atrás da minha mãe.
— Mãe, o que faz aqui?...
— Eu estive em seu apartamento ontem e te esperei, onde se
meteu?
— Eu dormi no Chris. — Sei que Nick está ouvindo e espero
mesmo que ele deduza que estou transando com Christian.
Talvez assim eu me sinta menos humilhada pelo episódio de
Whistler.
Ela se vira para Nick.
— O Senhor De Santi está aqui para ver o seu treino.
Arrisco levantar o olhar e Nick está com as mãos no bolso.
Ele está todo de preto, usando uma camiseta e calça preta e uma
jaqueta de couro.
Parece perigoso e fora do lugar ali.
E sua expressão é indecifrável e me deixa inquieta.
— Por quê? — Há contrariedade na minha voz e não finjo o
contrário.
Minha mãe dá um passo na minha direção e segura meu
braço com força, abaixando o tom.
— Pare de ser mal-educada, agora! Não estou nada contente
com seu comportamento! Me envergonhou na frente do Senhor
Balvin e do Senhor De Santi. Tem sorte de que ele não ficou bravo e
foi compreensivo! Mas vamos conversar depois.
— Algum problema aqui? — Nádia se aproxima notando a
tensão.
Mamãe sorri.
— Nenhum. Nádia, este é Nick de Santi, eles vão patrocinar a
Kiara.
— Que ótimo. A Kiara e o Chris, acredito. São uma dupla.
Minha mãe faz uma expressão de pouco caso.
Em alguns momentos, eu e Chris temos a mesma atenção
como uma dupla, mas mamãe adora deixá-lo de fora para que eu
receba toda a glória, e dinheiro, certamente, ela preferia que eu
patinasse sozinha em vez de em dupla.
Mas eu tentei por um ano inteiro, depois de deixar Dimitri, e
foi um fracasso, até encontrar Chris.
E ela teve que engoli-lo.
— Sim, o patrocínio se estende a Christian Jackson, porém
estamos contratando a Senhorita Willlians para uma grande
campanha publicitária — Nick responde.
Quero gritar que ainda não assinei nenhum contrato, mas sei
que não vai adiantar nada.
Quero mesmo aturar a ira da minha mãe caso insista em
dizer não?
Quero tirar aquela oportunidade de Chris? Só porque estou
com medo de ficar perto de Nick de Santi?
Meus ombros caem, em derrota.
Sei que sou voto vencido.
Não é sempre assim?
— Vá para o gelo, Kiara — Nádia ordena.
Relanceio o olhar para a pista e Chris está lá, o olhar curioso
sobre o que está rolando.
Eu me viro, tiro os protetores dos patins e sigo para perto de
Chris.
— Quem é aquele?
— Nick de Santi.
Os olhos dele se arregalam.
— Minha nossa, isso é uma intervenção?
— Com certeza.
— Ei, atenção os dois, quero que se concentrem numa
sequência de twist lift — Nádia pede.
Twist lift é um elemento onde a parceira é lançada no ar e
executa rotações antes de ser pega novamente pela cintura, por seu
parceiro, e então é colocada no gelo sobre um pé. Twist é um
elemento de alto valor de pontuação e por isso Nádia exige que
sejamos perfeitos.
Então, empurro as emoções para o fundo da mente e ergo os
ombros, começando a treinar com Chris.
Equilibrar-se sobre as lâminas é algo natural pra mim, porém,
não é fácil ignorar que em algum lugar Nick de Santi está me
observando e mais distraída do que normal, acabo indo ao chão
depois de alguns saltos.
— Kiara, concentre-se! — Nádia grita e Chris estende a mão
para me puxar de volta com um olhar divertido.
— A culpa não foi minha.
— Eu sei — bufo limpando o gelo que ficou nas minhas
laterais depois da queda.
Ouso girar o olhar para fora da pista e lá está ele. Sentado na
arquibancada com o olhar indecifrável fixo em mim e em Chris.
— Merda — sussurro voltando a atenção para meu parceiro.
— Vamos logo com isso.
— Machucou, princesinha de gelo? — A voz debochada vem
de trás de mim e me viro para ver Alana rindo enquanto gira.
Sinceramente eu não preciso das provocações de Alana hoje.
— Deve saber como é — retruco e ela faz uma careta.
— O que quer dizer?
— Se passasse mais tempo treinando em vez de ficar
inventando fofoca, talvez chegasse a algum lugar e não precisaria
ficar soltando ironias de pura inveja pra cima de mim.
— Uou! — Chris exclama admirado. Eu não sou de responder
às provocações de Alana.
— Alana, pare com isso. — Tyler a puxa e nos lança um olhar
de desculpa.
— Como o Tyler aguenta essa nojenta? — indago, me
afastando, mas percebo que os dois estão discutindo.
— Esqueça eles e se concentre — Nádia grita.
Não sei quanto tempo ficamos no gelo, até que Nádia diz que
por hoje basta.
— Já? — indago patinando até a mureta que circunda a pista.
— Você não está nem um pouco concentrada hoje. Amanhã,
vamos compensar.
— Tudo bem. — Não nego que estou aliviada quando saio da
pista e pego os pedaços de plástico, deslizando pelas lâminas de
quatro milímetros de largura.
Vou para o vestiário e me visto rápido, pensando se
conseguirei desviar de Nick de Santi, porém, quando estou saindo
do centro, na companhia de Chris, dou de cara justamente com
quem não gostaria de encontrar.
Ele está ali, claramente me esperando, encostado em uma
moto e por um momento, eu paro sem saber como agir.
Ainda parece incrível que aquele cara de Whistler e este são
a mesma pessoa.
Chris nota meu nervosismo e segura minha mão que eu
aperto de volta.
— Você deve ser Christian Jackson — Nick indaga e percebo
que seu olhar desviou rápido para a mão de Chris segurando a
minha.
— Sim, e você é Nick de Santi. Estou sabendo sobre o
interesse de patrocínio para a Kiara.
— Se estende para você também, vamos entrar em contato
com seu pessoal — Nick responde friamente, mas se vira pra mim.
— Só que primeiro precisamos acertar com Kiara. Podemos
conversar?
De novo, não há muita entonação em sua voz grave e não sei
o que se passa em sua mente.
Quero responder que não desejo ter nenhuma conversa com
ele, mas sei que seria imaturo e mal-educado.
Eu me viro para Chris, que solta minha mão.
— Nos vemos amanhã?
— Sim... — E sem pensar, eu me inclino e o abraço, antes
que se afaste.
Nick não fala nada quando pega um capacete e estende pra
mim.
Ele quer que eu suba na moto com ele?
Dou um passo atrás.
— Quer que eu suba nessa moto com você?
Em resposta, ele pega outro capacete e coloca em si mesmo,
subindo na moto e me encara em desafio.
— Você vem?
Capítulo 6

Fico ali, segurando o capacete. Eu devia jogar na calçada e


dar meia-volta, o deixando falando sozinho, mas também estou
curiosa para saber o que quer falar comigo.
Aquele convite para termos uma conversa em particular é
infinitamente melhor do que ter que conversar com ele junto a
Maude.
— Aonde vamos? — indago meio ríspida.
— Tomar um café.
Mordo os lábios ainda hesitando. Os sentimentos duelando
dentro de mim, quase numa guerra. O instinto de fugir e a
necessidade de saciar aquela curiosidade estranha que me domina
quando estou na presença dele.
É como se existissem duas Kiaras.
A Kiara amedrontada e a Kiara atraída.
Para minha surpresa, a segunda vence.
— Ok — concordo e levanto o braço para colocar o capacete,
mas me atrapalho ao fechá-lo e Nick se inclina de forma impaciente
tirando minha mão do caminho e ele mesmo fechando no meu
queixo.
Não consigo evitar sentir arrepios onde seus dedos tocam, o
que é absolutamente ridículo.
E volto a sentir certo medo quando ele dá partida.
— Sobe.
Ai meu Deus.
Vou mesmo fazer isso?
Com o coração saltando no peito, eu me vejo passando a
perna pela moto e me sentando atrás de Nick. A moto treme
embaixo de mim e eu quase me desequilibro, sem alternativa
colocando as mãos em sua cintura de forma hesitante.
— Segura direito, se não quiser cair. — A voz está impaciente
quando, sem aviso, suas mãos tocam as minhas, puxando-as até
que elas estejam firmes em sua barriga e assim estou abraçada a
Nick de Santi quando a moto arranca pela rua.
Meu estômago se aperta de medo e adrenalina quando
seguimos em alta velocidade, tudo à minha volta se transforma num
borrão barulhento. De repente a moto faz uma curva e prendo a
respiração, jurando que vamos cair, quando me vejo inclinada para
a direita e me agarro mais a Nick, sem pensar no que estou fazendo
enquanto enterro a cabeça em seu ombro e fecho os olhos.
E como se vindo de muito longe escuto uma risada e quando
o corpo de Nick treme sob meus braços, percebo que é ele que está
rindo.
— Está com medo? — grita por cima do barulho da moto e do
vento.
Eu me sinto meio boba e me dou conta de como estou tão
prensada nele que nem sei como não o estou sufocando.
Forço meus braços a relaxarem e levanto a cabeça, abrindo
os olhos ao notar que ele está estacionando.
Ainda estou meio anestesiada quando salto e ele faz o
mesmo, retirando o capacete e passando os dedos pelo cabelo em
desalinho.
E então se vira pra mim e sem avisar estende as mãos para
retirar o capacete da minha cabeça. Respiro fundo quando me vejo
livre e ele permanece perto, inclinando-se ligeiramente em minha
direção, me estudando.
— Tudo bem?
Consigo sacudir a cabeça em afirmativa, corando, enquanto
dou um passo atrás e tento ajeitar meu cabelo que deve estar
terrível.
— Vai vomitar? — Nick ainda parece incerto sobre minha
sobriedade.
— Não, só estou um pouco em choque.
— Nunca andou de moto? — Ele pendura os capacetes no
guidão.
— Parece idiota, mas nunca.
— Nunca? — Ele está mesmo surpreso.
— Por que o espanto? — Fico na defensiva.
— E o que achou da experiência? — ele questiona colocando
as mãos no bolso da calça e seu olhar parece um tanto divertido.
— Assustadora. Desculpa por ter te agarrado daquele jeito. —
No mesmo instante percebo que usei palavras erradas.
Não gosto de colocar a palavra “agarrar” e Nick de Santi na
mesma sentença.
Parece meio... pervertido.
Desvio o olhar à nossa volta e estamos no estacionamento de
um... parque?
— Onde estamos?
— No Jardim Botânico.
Ele caminha na minha frente e não resta alternativa a não ser
segui-lo enquanto ele para em frente ao que parece ser uma
bilheteria e compra nossas entradas.
Eu ainda o sigo quando entramos.
— Nunca veio aqui?
— Nunca tive a oportunidade. Achei que íamos tomar um café
ou algo assim?
— Ainda vamos.
Ele se dirige a um prédio à direita e abre as portas de vidro
fazendo sinal para eu passar primeiro e percebo que estamos em
um café.
Ele vai até a atendente e pede dois cafés, e tento não ficar
brava por não ter perguntado o que eu ia querer.
— Quer açúcar? — indaga quando a moça lhe passa dois
copos descartáveis.
— Que bom que perguntou. — Não escondo o sarcasmo.
Ele levanta a sobrancelha enquanto adoça os dois copos.
— Não quer café?
— Poderia só ter perguntado.
Ele não se dá ao trabalho de se defender, apenas me passa o
copo.
— Vamos caminhar. — De novo segue na frente e sai do café
e faço uma careta.
Choveu e está frio.
— Não acho que hoje seja um dia perfeito para caminhar em
um parque — reclamo, mas o sigo pela alameda.
— O dia perfeito somos nós que fazemos — responde
tomando seu café e não consigo evitar meu olhar ficar preso em seu
perfil bonito.
Ele se vira de súbito me flagrando o encarando e desvio o
rosto, meio sem fôlego e envergonhada.
— Vai continuar fingindo que não nos conhecemos? —
Aproveito logo para entrar no assunto espinhoso.
— Fiquei com a impressão de que não gostaria que eu
citasse esse fato.
— Eu ainda não entendo... Como pode... é muito bizarro.
— Foi uma coincidência eu encontrá-la no lago.
— Mas então sabia o tempo todo quem eu era?
Ele assente e não parece sentir a menor culpa.
Isso me irrita e paro, encarando-o.
— Podia ter me dito, me senti uma idiota quando o encontrei
naquela sala de reunião. Em vez disso, mentiu pra mim.
— Eu não menti para você, Kiara.
Sua voz é firme e agora ele parece meio contrariado.
— Fiquei muito surpreso quando me dei conta de quem você
era.
— Mas já sabia quem eu era, é esquisito. Não entendo
porque não disse nada.
— Não pareceu importante.
— Desculpa, mas continua confuso.
— Eu pretendia lhe dizer, mas você fugiu correndo.
Abaixo o olhar, contrariada ao me lembrar porque fugi, mas
não quero dizer isso a ele.
Ou talvez ele saiba.
Porém não insiste quando dou de ombros e volto a andar.
— Acho que isso não tem mais importância agora.
Espero que com isso entenda que pretendo esconder o
pequeno detalhe de que ele me tirou do lago congelada e esquentou
meu corpo com o seu, não só uma, mas duas vezes e que virou
meu mundo frio e cinzento de ponta-cabeça desde então.
— Foi por isso que saiu daquele jeito da reunião da De Santi?
— Sim, eu estava chocada por ver você.
— Sinto muito, não era minha intenção assustá-la. E nem há
motivos para não aceitar a nossa proposta.
Ele tem razão em partes.
— Não deveria ter saído correndo daquele jeito. Foi imaturo,
mas estava confusa.
— Há mais algum motivo para não querer aceitar?
Mordo os lábios, indecisa.
Óbvio que não lhe direi que ainda estou atraída por ele e que
este é o motivo.
— Estou me preparando para as Olimpíadas de inverno. Eu e
Chris estaremos muito ocupados e...
— O motivo é o Christian?
— Como assim?
— Vocês parecem bastante íntimos. Quando pesquisamos
sobre vocês, acreditei que era apenas especulação de fãs, mas hoje
percebi que não.
Desvio o olhar, posso dizer que tinha razão. Eu e Chris não
somos um casal, mas percebo que será mais seguro que continue
pensando que estamos juntos.
Então só dou de ombros.
— Isso não é da sua conta e de ninguém.
— Realmente não é, mas se não aceitar a nossa proposta,
preciso de um motivo.
— Não disse que não...
Volto a caminhar.
Nick não diz nada enquanto caminhamos lado a lado e de
repente me deparo com uma escultura peculiar que chama minha
atenção. É um casal sentado em um banco. O homem tem uma
bolsa grande que parece uma mala, o que implica que ele está
prestes a fazer uma viagem. A mulher está enrolada em seu corpo
como se o amasse profundamente. Seus braços estão cruzados
sobre o peito e uma mão está agarrando a jaqueta do homem. Sua
cabeça está inclinada para ela e um de seus braços está envolto em
suas costas.
Eu me abaixo para ler o título Desparture – Partida.
Não sei o que há na escultura, mas algo nela me comove.
— É linda — murmuro ainda presa aos detalhes e à emoção
que ela transmite.
— Minha esposa adorava essa obra.
Eu me viro, quase esquecido que Nick está ali.
Primeiro um tanto chocada por ele ter citado a esposa, o que
me causa um mal-estar ao lembrar da mulher. Claudia. E o jeito que
ela me olhou como se soubesse que eu tinha dormido abraçada ao
marido dela.
Eu me viro para olhá-lo, mas ele está com a atenção na
escultura, porém, seus pensamentos parecem estar longe.
— Sempre que vínhamos aqui, ela fazia questão de visitá-la.
Acho que se identificava com o... tema.
— Tema?
— A obra remete a uma despedida. George Lundeen, o
escultor mora no Colorado, ele diz que a escultura foi baseada em
um esboço de 1973 que ele fez quando viu um casal em uma
estação ferroviária italiana. Nós sempre discutimos se a palavra
"partida" significa que o casal na escultura está prestes a fazer uma
viagem juntos ou a se separar. Suspeito que a última ideia seja
verdadeira porque apenas o homem tem uma mala e a mulher o
agarra com o punho cerrado como se não quisesse perdê-lo. — Ele
sorri nostálgico. — Ela gostava de pensar em possíveis histórias de
fundo quando via estátuas. E se identificava com a mulher que
ficava para trás.
— O que quer dizer? — Eu me vejo fascinada pela história.
— Quando nos conhecemos, eu tinha vinte anos e estava
partindo para competir na Europa. Houve muitas partidas. E ela
sempre dizia que de alguma maneira sentia que um dia eu partiria
de vez, a deixando para trás. É irônico pensar que foi justamente o
contrário.
— Como assim?
Seu olhar descansa no meu e não estou preparada para a
tristeza que enxergo no fundo da íris âmbar.
— Ela morreu há dois anos.
Perco o ar por um instante.
— O quê? Eu vi sua esposa lá em Whistler. Ela se apresentou
pra mim. Claudia.
— Claudia? Claudia era irmã da minha esposa, Claire.
— Oh — sussurro ainda confusa e chocada me dando conta
da confusão que fiz.
Eu me recordo do pequeno diálogo que tivemos. Eu e a
mulher que acreditei ser esposa de Nick.
Ela me tratou com rispidez. Até certo ciúme. Ou acreditei ser
isso. Mas em nenhum momento ela disse que era esposa de Nick.
Eu deduzi porque ela era uma versão mais velha da mulher
do retrato.
Minha nossa, então Nick não é casado?
— Você não é casado — repito apalermada e não
conseguindo esconder o alívio vergonhoso que sinto.
E enrubesço em seguida, mas Nick não parece ter percebido.
— Sou viúvo há dois anos.
Há certa rudeza em seu tom.
— Por isso foi embora?
Enrubesço ainda mais, querendo mentir, mas acho que é
tarde.
— Sim, fiquei envergonhada.
— Por quê?
Ele vai mesmo me fazer falar?
— Claudia não pareceu ficar feliz em me ver com você. E
como deduzi que era sua esposa...
— Ainda não entendi porque achou que ela era minha
esposa.
— Eu vi o retrato no escritório. Desculpe, não me ache
enxerida, apenas fui atrás das minhas botas e vi as fotos. E como
não tinha dito nada sobre ser casado, me senti... meio enganada.
— Por que diabos eu ia te enganar?
— Para me levar pra cama?
Ah merda, eu quero tomar as palavras de volta assim que
elas sobrevoam entre nós.
Acho que nunca estive tão constrangida na vida.
— Achou que eu queria trepar com você?
Perco o ar com a escolha de palavras cruas.
E tento conter minha imaginação que por alguns instantes
visualizou exatamente o que Nick estava sugerindo.
Meu rosto cora agora e não é mais de vergonha.
Provavelmente meu corpo inteiro está corado.
Mas não consigo esquecer como acordamos grudados
naquela manhã.
Da sensação de tê-lo tão perto.
De tê-lo excitado tão perto.
O que teria acontecido se Claudia e a filha dele não tivessem
aparecido?
— Responde — ele exige ante meu silêncio.
— Você quem está dizendo — murmuro.
— Eu não sou um aproveitador de meninas indefesas, Kiara.
— Não sou uma menina — rebato quase por instinto.
Não me agrada que Nick me veja como uma menina.
Obviamente sou mais nova que ele. Talvez uns dez anos ou
12, não mais do que isso, acredito. Ele não tem idade pra ser meu
pai, por exemplo.
Não gosto que ele interprete qualquer coisa que pudesse
acontecer entre nós dois como algo pervertido.
— Não tinha nenhuma intenção sexual com você naquela
noite. Eu apenas a tirei do lago e a mantive aquecida.
— Você fica de pau duro toda vez que faz uma boa ação?
Levo a mão à boca, horrorizada quando retruco Nick.
Minha nossa, eu disse mesmo isso?
Que diabo estou fazendo?
Nick parece ter perdido a fala, chocado com o que eu disse e
eu quero que um buraco se abra no chão e eu enfie a cabeça lá pra
sempre.
— Oh meu Deus, esquece o que eu disse, eu não... — Cubro
o rosto com as mãos, me sentando ao lado da escultura.
Por um momento, acho que Nick vai me deixar ali, sozinha
com meu constrangimento, mas ele senta ao meu lado.
— Kiara, olhe pra mim.
Há certa suavidade em sua voz firme e obedeço.
— Eu preciso te pedir desculpas por aquilo. Realmente não
faria sentido eu te dizer que não havia nenhuma intenção, quando...
Enfim, me desculpe. Foi algo... instintivo. Acredite em mim quando
digo que não iria nunca me aproveitar de você.
De repente um déjà-vu me faz sentir falta de ar.
Aquelas palavras. Ditas por outra boca.
A boca de alguém que, diferentemente de Nick, era de
confiança.
Que eu nunca imaginaria...
— Os homens dizem isso quando lhes convém.
Desvio o olhar limpando as lágrimas que nem senti estar
vertendo.
Ele se levanta.
— Não eu, mas se acha que sou capaz de me aproveitar de
você, talvez devamos parar por aqui. — Parece realmente ofendido
e eu não sei o que pensar.
Eu tenho um histórico.
Eu deveria nunca mais acreditar nesse tipo de promessa.
Mas a Kiara que me torno perto de Nick é desconhecida pra
mim, e é ela quem se levanta e segura seu braço, o impedindo de
se afastar.
— Fica.
Seu olhar desce para onde meus dedos o tocam e eu o solto.
— Me desculpe, eu não lido bem com... — não consigo
continuar.
Mas percebo que subitamente, Nick compreende.
Há entendimento em seu olhar.
Ele não sabe de tudo, mas pode imaginar.
— Não peça desculpas.
— Olha, acho que você sabe que vou aceitar a proposta da
De Santi.
— Não quero que aceite apenas porque sua mãe a está
coagindo.
— Ela não está me coagindo.
O que é uma tremenda mentira, e talvez Nick já tenha
percebido que Maude tem muita influência sobre minhas escolhas.
— É uma proposta praticamente irrecusável. Muitos atletas
morreriam por algo assim. E ajudaria Chris também.
— Chris é importante pra você.
— Claro que sim, somos parceiros. E acho que não entendo
porque ele não está incluso na campanha que querem fazer.
— Nós temos um interesse em atingir um público feminino,
por isso a escolhemos.
— E eu não entendo ainda por que quer ficar... atrás de mim.
— Faz parte do processo criativo. Você será o rosto que
representará a marca. Precisamos conhecê-la. Quero conhecer
sobre patinação artística e sua relação com o esporte. Sobre o que
a motiva. Suas ideologias, paixões, o que a move.
— Isso parece bem profundo.
Ele sorri.
E eu sinto meu pulso acelerar.
Inferno.
— Quero conhecer você. Quem é Kiara Willians, a pessoa por
trás do ídolo da patinação.
— E eu vou descobrir quem é você também? — arrisco de
forma desafiadora.
— Sei que não me conhece. E não fingirei ser um santo. Sou
humano, cheio de falhas e se me permitir ficar por perto, talvez não
goste de mim. Mas eu garanto, que jamais, nunca, me aproveitaria
de você, como acho que já fizeram. Não sou este homem, Kiara.
— Por que acha que não vou gostar de você?
— Um dia talvez descubra.
— Talvez não goste de quem eu sou também.
Ele estende a mão.
— Temos um acordo?
Eu confio em sua palavra?
Deveria estar com medo do fato de ele dizer que eu podia ter
motivos para não gostar dele.
Mas em vez disso, me vejo segurando sua mão e sacudindo
a cabeça em afirmativa.
Ignorando que gosto do calor que a palma áspera transmite a
minha.
Capítulo 7

Quando chego em casa, não me surpreendo ao encontrar


minha mãe. O que faz a animação que eu estava sentindo desde
que disse a Nick que concordava em assinar com a De Santi
arrefecer.
Eu sei que é um tanto paradoxal estar animada com aquela
perspectiva sendo que há algumas horas eu estava relutante.
Porém, não posso mentir a mim mesma que tinha muito a ver
com o fato de eu não querer ficar perto de Nick, depois do que
aconteceu em Whistler, afinal, não é nada saudável se atrair por um
homem comprometido. No entanto, desde que Nick desfez a minha
confusão, sinto uma certa empolgação com o que estaria por vir.
Nem sei se é seguro me sentir assim. A verdade é que não
consigo me lembrar do tempo em que a perspectiva de ter a
companhia de um homem era atraente pra mim. Por muito tempo
achei que nunca mais ia sentir aquela empolgação. Aquele frio na
barriga num misto de medo e ansiedade.
Claro que Nick explicou que não tinha interesse em mim, e
isso devia ter me feito cair na real, mas de certa forma, ele garantir
aquilo me deixou segura. Eu tinha medo dos homens que se
interessavam por mim, tinha me transformado numa mulher de gelo,
afastando qualquer aproximação, como forma de me proteger de
algo que eu sabia que podia sair do controle.
O único que me deixava segura era Chris, porque nossa
relação era totalmente platônica.
Só que não dá para comparar Nick e Chris.
Eu não me sinto atraída por Chris.
Então o que acontecerá com aquela atração enquanto Nick
me acompanhar naquelas semanas? Ela se extinguirá como uma
chama sem ser alimentada pelo fogo? Talvez o fato de ele me
garantir que eu estava segura tenha me dado coragem de pagar pra
ver.
Assim, depois de concordar em ir até a De Santi na manhã
seguinte para finalmente assinar o contrato, Nick havia informado
que precisava ir embora, mas que chamaria um táxi para me levar
até o centro de treinamento.

Agora, avanço até a minha cozinha onde mamãe está


arrumando alguns mantimentos em meu armário.
— Oi mãe, o que está fazendo aqui?
Ela me lança um olhar irado.
— Jogando fora essas porcarias que encontrei.
Droga, Chris deixou algumas barras de chocolate da última
vez que me visitou.
— Quantas vezes terei que dizer que não é pra comer
açúcar?
Respiro fundo, tentando não ficar contrariada. Não vai
adiantar.
— Não tem nada tão calórico assim...
Ela fecha o armário me encarando com censura.
— Deveria ser mais responsável. Acha que vai conseguir
fazer seus saltos estando gorda?
— Mãe...
— Nunca deveria ter concordado que morasse sozinha.
— Eu sou adulta, já falamos sobre isso...
— Adulta? Agindo do jeito que age? Como sair daquele jeito
ontem na reunião da De Santi?
— Eu sei que foi horrível, desculpa.
— Tem muita sorte de Nick de Santi concordar em te dar uma
chance... ele pediu para conversar com você, eu insisti para estar
junto, mas ele afirmou que seria melhor conversar com você a sós.
— Sim, nós conversamos e concordei em voltar lá e assinar o
contrato, satisfeita?
— Mas não havia a menor chance de você discordar! Eu não
ia permitir que fizesse algo deste tipo!
— Sei muito bem. Agora já que resolvemos isso, vou tomar
um banho.
Eu torço para que Maude já tenha ido embora quando saio do
chuveiro, mas ela está ali no quarto mexendo no meu closet.
— Estou escolhendo uma roupa decente para você ir até a
De Santi amanhã.
— Mãe, sério, eu posso fazer isso. Será que pode ir embora?
Quero descansar.
— Descansar coisa nenhuma, tem aula de pilates hoje! Já
que cancelou ontem.
— Certo, eu me esqueci — resmungo colocando um moletom
em vez do pijama que planejei.
— E consegui inventar uma desculpa para as fotos que ia
fazer e fugiu! A Vogue lembra?
— Sim, eu me lembro.
— Foi remarcada para depois de amanhã, espero que não
invente nada dessa vez.
— Mais alguma coisa? — Eu me sento na penteadeira,
pegando minha escova.
— Seu pai.
— O que tem meu pai?
— Ele quer que vá visitá-lo no aniversário dele, mas eu já
disse que estará ocupada.
— Mãe, claro que eu vou!
— Não deveria. Para Ben ficar torrando sua cabeça com
asneiras, como sempre? Sabe que ele odeia o jeito que cuidamos
da sua carreira.
— Ele apenas se preocupa...
— E eu não? Ninguém se preocupa mais com você do que
eu! — Ela arranca a escova da minha mão e começa a desfazer os
nós, assim como fazia quando eu era pequena.
Não posso deixar de olhar para a imagem de nós duas e
sentir que de alguma forma nada mudou.
***
Na manhã seguinte, encontramos Matt Balvin na mesma sala
de reunião nos escritórios da De Santi para assinar o contrato e não
posso negar que fico decepcionada quando Nick não está presente.
— Achei que Nick de Santi estaria aqui — minha mãe
comenta o que eu estava louca pra fazer, porém sem coragem,
quando terminamos de assinar todos os papéis.
— Nick teve que comparecer a uma atividade na escola da
Mackenzie.
— Mackenzie?
— A filha dele.
— Mas ele é um homem de negócios e a contratação da
Kiara deveria ser algo importante para ele dar atenção.
— Mãe...
— Sabe que eu tenho razão. Me parece meio descaso do
Senhor de Santi com você! Tenho certeza de que essa menina deve
ter uma mãe para cuidar dela.
— A esposa do Nick morreu, Senhora Willians —
Matt esclarece. — Nick é viúvo há dois anos e desde então decidiu
deixar a direção da empresa para se dedicar melhor à filha.
Minha mãe recua, embora não pareça abalada pelo mau
julgamento que fez.
— Mas neste projeto, achei que ele estaria à frente, tanto que
insistiu em acompanhar Kiara...
— Sim, Nick está à frente deste novo empreendimento,
porque é muito pessoal pra ele.
— Pessoal? — indago, muito curiosa.
— Sim. Claire estava bastante envolvida com a empresa. Ela
e Nick trabalhavam juntos em várias ideias. E a ideia de estender a
marca da De Santi a vestuários e investir em um público mais
feminino e diversificado foi dela. Infelizmente ela faleceu e o projeto
foi arquivado. Porém, Nick o retomou agora e por isso ele está
dando uma atenção especial a isso. É uma homenagem a Claire —
Matt fala com carinho.
— Compreendo — minha mãe anui. — Muito triste um
homem jovem como ele ser viúvo.
— Sim, todos nós sentimos a partida de Claire.
— O senhor a conhecia?
— Sim, eu e Nick somos amigos de adolescência.
Hum, de repente encaro Matt Balvin com olhos mais atentos.
Até ali, ele era apenas um executivo da De Santi, não
imaginei que fosse amigo de longa data de Nick.
De repente sou acometida por uma onda de curiosidade
inadequada e tenho que me conter para não me inclinar e sabatinar
Matt sobre a vida de Nick.
Como seria o Nick jovem? O que o levou a competir no
motociclismo?
E principalmente quem era Claire, a mulher que o conquistou
e partiu tão cedo?
— E o Senhor De Santi nunca quis se casar novamente? —
minha mãe questiona.
— Mãe, não seja inconveniente! — murmuro, mortificada.
— Não, Nick era muito apaixonado por Claire — Matt
responde. — Eles foram muito felizes, nos oito anos em que foram
casados, e estiveram juntos por cinco anos antes. Ainda está sendo
muito difícil para ele.
— Uma pena, um homem atraente como ele, deveria se
casar novamente. O senhor é casado?
— Mãe! — sibilo, constrangida.
Mas Matt Balvin deve ser um homem paciente, pois não
parece incomodado com as perguntas inconvenientes da minha
mãe.
— Não, eu sou solteiro.
— Mãe, podemos ir? — eu peço, querendo parar de passar
vergonha. — Tenho treino ainda.
— Sim, vamos indo.
Nós nos despedimos de Matt Balvin e reclamo com a minha
mãe no elevador por ter sido invasiva.
— Invasiva? Perguntei apenas coisas que ninguém tem
problema de responder!

***

Estou no gelo há duas horas quando sinto uma comichão na


nuca, como se alguém estivesse me observando e, ao me virar para
as arquibancadas, avisto Nick de Santi.
Meu coração salta no peito, ansioso, sem que eu consiga
evitar.
— Kiara, concentra neste death spiral!
Escuto a voz de Nádia gritando e volto a atenção para Chris
que está me encarando com um olhar divertido.
— Seu chefe chegou.
— Cala a boca! — Fico na posição para fazermos o
elemento, que consiste no patinador segurar a parceira por uma das
mãos enquanto ela gira em volta dele, horizontalmente, rente ao
gelo.
Death spirals tem alto grau de dificuldade e pontuam. Nádia
insiste que treinemos com afinco, horas seguidas, todos os
elementos, para depois passarmos a coreografia e ao programa que
apresentaremos propriamente dito. Patinação é sobretudo fazer seu
corpo memorizar todos os movimentos e isso se consegue com
repetição, quantas vezes for preciso.
Geralmente, sou muito concentrada e, por mais que eu possa
não ter dias bons — emocionalmente falando — sempre esqueço de
tudo no gelo.
Porém, estou muito consciente de Nick me observando. O
que será que se passa em sua mente?
Acredito que ele não tenha conhecimento sobre patinação no
gelo, provavelmente está assistindo como qualquer leigo, admirando
a beleza dos movimentos, e não a minha técnica. E ainda assim,
fico nervosa, como se algum juiz de prova importante estivesse me
analisando. Mesmo tentando manter o olhar em Chris, a toda hora
desvio a atenção para onde Nick está e franzo o olhar ao vê-lo com
uma mulher sentada ao seu lado parecendo entretidos em uma
conversa.
— Aquela não é a Peyton conversando com o De Santi? —
Chris indaga, percebendo meu olhar.
Sim, reconheço agora, Peyton Percy, irmã mais velha de
Alana, foi uma lenda durante os anos em que patinou. Ela se
aposentou há seis anos, dona de dois mundiais e uma medalha
olímpica. Pelo que eu sabia, ela se casou e tem um filho. Mesmo
assim, houve uma época em que ela era sempre vista nos treinos e
nas competições com Alana. Mas há algum tempo eu não a vejo por
ali.
E não posso deixar de me questionar o que ela está
conversando com Nick. Assim como Alana, Peyton não gosta de
mim.
Quando Nádia dá o treino por encerrado, Tyler e Alana
também terminam e claro que ela não poderia deixar de vir me
atormentar.
— Fiquei sabendo que assinou com a De Santi, um contrato
milionário?
— Sim, está bem informada. — Coloco os protetores de
patins, louca para ir me vestir.
— A bruxa da sua mãe deve estar bem feliz. Vai poder pagar
mais uma plástica naquela cara amassada dela.
— Segura a inveja, Tonya! — Chris a provoca.
— Do que me chamou? — Alana se irrita por Chris a chamar
de Tonya, fazendo uma alusão a Tonya Harding, a famosa
patinadora americana problemática que foi acusada de ter planejado
um ataque a uma patinadora concorrente na década de noventa.
— Alana, pare com isso. — Tyler se aproxima, e em seus
olhos orientais, vejo um pedido de desculpas pelos comentários
maldosos de sua parceira. — Parabéns, Kiara. Realmente incrível.
— E ele se vira para Chris, estendendo a mão.
— Parabéns para você também, cara.
Chris sorri e aperta a mão de Tyler, que o puxa para um
abraço e noto, divertida, que Chris ficou vermelho.
— Ele é um gato. — Alana continua olhando em direção a
Nick, que agora se aproxima com Peyton. E correndo na frente vem
um garotinho.
— Oi tia Alana! — Ele pula na garota que sorri e acho que é
a primeira vez que Alana Percy exibe um sorriso genuíno.
E fico me perguntando se Alana é desagradável só comigo.
Mas aí me lembro das fofocas que ela supostamente espalhou
sobre Diana e Dimitri. Que, aliás, não apareciam há dois dias para
treinar.
— Ei, eu conheço você! — O menininho aponta pra mim. —
Eu vi você dançando no gelo, igual a tia Alana! Seus giros são
maneiros! Pode me ensinar?
E sem aviso, ele abraça minha cintura assim como fez com a
tia, me deixando sem ação. Levanto a mão, não sabendo o que
fazer.
Eu me sinto constrangida, ainda mais quando Alana e Peyton
bufam, contrariadas.
— A mamãe pode te ensinar ou a tia Alana! — Peyton puxa o
filho, para meu alívio.
— Mamãe disse que hoje é seu aniversário! — o garotinho
diz à tia, animado.
— Sim, é aniversário da tia Alana — é Peyton quem confirma.
— Convidou seus amigos para a festa hoje?
Alana faz uma careta, obviamente ela não ia me convidar
para comemorar seu aniversário, já que não somos amigas.
— Duvido que a princesinha do gelo vai se dignar a aparecer
em uma festa de quem não tem medalha de ouro.
— Bem, algumas pessoas têm medalhas, mas não tem
caráter — Peyton dardeja e quase perco o fôlego ao perceber a
alfinetada.
— Oi, Kiara.
Meu olhar desvia para Nick, que está um pouco afastado do
grupo. Certamente ele ouviu Peyton.
— Oi.
— Já está pronta?
Alana desvia o olhar de mim para Nick, com a sobrancelha
levantada, com certeza pronta a fazer algum comentário maldoso.
— Eu vou só trocar de roupa.
E me afasto rápido.
— Continua metida.
Ainda escuto Peyton.
— Ei, espera. — Chris me alcança.
Eu paro, irritada.
— Por que elas me odeiam, sério?
— Não se deixe abalar por elas.
— Mas Alana está sempre pronta a me provocar. É ridículo! E
agora Peyton, caramba! Sinceramente eu não preciso disso para me
tirar a concentração!
— Olha, vou falar com o Tyler, ok? Ele parece ser o único que
tem algum controle com a Alana.
— Seria bom que ela parasse de ser infantil — resmungo
entrando no vestiário e me apressando em me trocar.
Quando saio do prédio, Nick de Santi está me aguardando
como ontem e eu mordo os lábios, meio hesitando ao me aproximar
de onde ele está, encostado na moto.
Hoje ele veste uma camisa branca e a mesma jaqueta de
couro.
— Achei que estaria hoje na assinatura do contrato.
— Eu tinha um compromisso.
— Sim, com sua filha — murmuro.
Ele não responde, como se não quisesse falar sobre sua filha
comigo. E sinceramente, não sei se é um assunto que eu queira
falar com ele.
Mas é meio surreal pensar que Nick é um homem vivido. Que
já teve uma longa história com uma mulher. Uma mulher que o
deixou há dois anos com uma filha pequena.
— O que fará agora?
— Eu vou pra casa. Hoje por um milagre não há nenhuma
programação. Eu costumo fazer aulas de balé e pilates. E vira e
mexe tenho algum compromisso como entrevista, fotos, essas
coisas chatas. Amanhã tenho treino de manhã e à tarde tenho uma
sessão de fotos.
— Certo, então acho que a deixarei descansar.
— Por que não vem comigo? — eu me vejo dizendo.
Minha nossa, de onde saiu aquilo?
— Achei que fosse para sua casa.
— Sim, isso. Podemos jantar e conversar. — Meu coração
está disparado enquanto prossigo.
Eu nunca fiz algo assim.
Nunca tomei a iniciativa de convidar um cara para ir até meu
apartamento, para jantar comigo.
A não ser Chris.
Como Nick não responde de pronto, sua expressão é aquela
que não consigo definir, eu tento corrigir meu convite.
— Você disse que queria me conhecer. Acho que seria
interessante conhecer onde eu vivo, e podemos conversar sobre...
patinação artística. Ou sei lá o que precisa para o seu projeto.
Meu rosto está corado de mil tons de vermelho de
constrangimento, mas, ao mesmo tempo, há algo novo em meu
íntimo.
Uma alegria pela coragem de arriscar a fazer algo que nunca
fiz.
— Tudo bem — Nick concorda por fim e eu quase respiro
aliviada.
— Você me segue?
Sigo para meu carro e estou quase tão ansiosa como quando
vou participar de alguma competição valendo medalha.
Meu apartamento fica em Downtown Vancouver, não longe
de onde treinamos e quando estaciono e saio do carro, Nick salta da
moto e vem em minha direção. A tarde está caindo dando lugar ao
crepúsculo, o céu tingido de vários tons de laranja e espero que isso
disfarce o rubor no meu rosto que parece ser um elemento
constante toda vez que Nick está por perto.
Nós seguimos para o elevador e quando as portas se fecham
começo a sentir uma certa inquietação que vai aumentando
conforme abro a porta do apartamento para que Nick entre comigo.
Meu apartamento é bastante espaçoso e tem uma bela vista
dos prédios do centro e do mar.
Maude fez questão de escolher a decoração, porque na
época eu estava ocupada treinando dia e noite para o mundial. Eu
fiquei um pouco decepcionada por não poder cuidar daquele detalhe
pessoalmente, mas pelo menos Maude tinha bom gosto e eu
apreciei o trabalho.
— Aqui é muito bonito. Mora sozinha? — Nick indaga
andando pela sala.
— Sim, eu me mudei há pouco mais de um ano.
— Você tem 23 anos. Morou sempre com sua mãe antes?
— Morei. Aliás, foi muito difícil convencer Maude de que eu
poderia morar sozinha.
— É o que os adultos deveriam fazer.
Noto uma certa acidez em sua voz que me deixa contrariada.
— Minha vida... Não é como a das outras pessoas da minha
idade.
Eu me dirijo para a cozinha abrindo a geladeira.
— Queria te oferecer algo para beber, mas só tem leite e chá
gelado — digo com uma careta.
— Imagino que uma atleta não deva passar as noites
tomando vinho — Nick rebate divertido, com um arremedo de
sorriso que me faz sentir borboletas na barriga.
— Não, realmente.
— Você me convidou para jantar. Você cozinha?
Eu coro, constrangida.
— Na verdade, não sou boa com isso. Minha mãe controla o
que eu como e, geralmente, me alimento do que a nutricionista
orienta.
— Nunca sai da linha?
— Tento não sair, mas escorrego quando Chris está aqui e...
Eu paro ao me lembrar que deixei Nick imaginar que eu e
Chris tínhamos um envolvimento romântico.
— Chris dorme muito aqui com você?
— Às vezes... — respondo evasiva. — Olha, acho que não foi
uma boa ideia te convidar. Talvez devêssemos sair para jantar ou
algo assim. Profissionalmente, não estou querendo dizer um
encontro, claro.
Meu Deus, que diabos estou fazendo?
Óbvio que Nick tinha entendido que não íamos a um
encontro.
— Você costuma sair para encontros?
— Que pergunta é essa? — balbucio confusa.
— Apenas uma pergunta. Não é o que combinamos, que eu
precisaria te conhecer? — Ele parece achar nada demais.
— É, claro.
— E qual a resposta?
— Eu não tenho tempo para isso. — Aplico a resposta que
uso sempre e que parece satisfazer a todos os curiosos com minha
vida amorosa.
— Por isso fica com Chris?
— Olha... Não há nada entre mim e Chris — confesso.
— Você deu a entender que tinha.
Eu coro.
— Eu sempre faço isso. Evita perguntas embaraçosas.
— Que tipo de perguntas embaraçosas?
— As pessoas costumam ficar curiosas sobre o que faço na
minha vida privada. Por que não tenho um namorado é a pergunta
mais frequente.
— E por que não tem um namorado?
Eu hesito.
Tenho a impressão de que Nick está me desafiando a dizer a
verdade.
Mas recuo.
— Minha carreira na patinação é minha prioridade.
— Sempre foi assim?
— Sim, patino desde os três anos. Comecei a patinar em
dupla com 14 e ganhei um nacional, foi aí que minha mãe percebeu
que eu deveria ser medalhista olímpica.
— Sua mãe?
— Nós duas — corrijo. — Amo patinar. É minha vida. Acho
que sempre vai ser. Sou grata a minha mãe por ter percebido que
eu tinha esse talento e me incentivado. Ela abriu mão de muitas
coisas para me trazer pra cá e para que eu pudesse ter o melhor
treino e preparo.
— E você abriu mão de muitas coisas?
Desvio o olhar para a janela, meus pensamentos vagando
para outro lugar, outro tempo. Decisões que não poderiam nunca
serem mudadas e que moldavam toda a nossa vida.
O tempo não volta.
E certas escolhas são irreversíveis, por mais que elas
permaneçam nos assombrando para sempre.
Uma escolha sempre implica uma renúncia.
Aprendi isso muito cedo e nunca vou esquecer.
— Todos nós abrimos mão de alguma coisa, não? —
respondo por fim com um sorriso triste. — Minha mãe, por exemplo,
abriu mão do meu pai.
— O que aconteceu?
— Papai foi contra que mamãe me colocasse na patinação
sendo tão nova. Ele achava que eu nem tinha idade pra escolher e
para saber de tudo o que teria que renunciar por este esporte.
Então, quando ela me trouxe para Vancouver, o casamento acabou.
— O que seu pai faz?
— Ele é professor, em uma pequena cidade há duas horas
daqui. Ele faz aniversário em breve, devo visitá-lo.
— Acha que a culpa do fim do casamento dos seus pais é
sua?
Aquela pergunta coloca o dedo em uma ferida que ainda é
dolorida.
— Como não achar?
— Não acho que a culpa seja sua. Eles eram os adultos. As
crianças nunca têm culpa de nada.
— Você faria algo assim, pela sua filha? Abrir mão de um
amor, como a minha mãe fez por mim?
— Minha filha é e sempre será prioridade. Meu maior amor.
Eu abriria mão de qualquer coisa por ela. Seria capaz de qualquer
coisa por ela.
Há voracidade em sua voz e dá pra perceber o quanto ele
ama a filha.
Como deve ser pra ele, cuidar de uma criança sozinho, sem a
mãe?
Isso não deveria importar pra mim, afinal Nick só estará ali
por alguns meses, me cercando com sua presença magnética e
revirando meus sentidos do avesso sem nem perceber.
— Acho que os pais devem mesmo colocar os filhos e a
felicidade deles como prioridade — eu concordo.
— Acha que é isso que sua mãe faz?
Noto uma certa ironia em sua voz que me intriga.
— O que você quer dizer?
— Peyton Percy não parece nutrir muita simpatia por sua
mãe.
— Ah, claro. Peyton e Alana me odeiam. Imagino que ela
deve ter destilado muito veneno contra mim.
— Ela disse que você é metida e arrogante.
— Eu posso imaginar... O que mais ela disse? — indago com
curiosidade mórbida.
— Que todos dizem que é feita de gelo, que não é amiga de
ninguém, a não ser de Chris.
— Bem, eu sou apenas reservada — tento me explicar. — As
pessoas não entendem muito bem este conceito.
O que Nick não sabe é que nem sempre eu fui assim.
— Ela disse que abandonou Dimitri Ivanov dias antes de um
mundial importante.
Ah merda, respiro fundo, sentindo dor de estômago por ter
que voltar aqueles dias sombrios.
— Ela não sabe dos verdadeiros motivos.
— Então tem um motivo?
Mordo os lábios, hesitando.
— Não tem mais importância — desconverso. — Isso foi há
muito tempo. Seguimos em frente.
— Ela também disse que sua mãe apavora as outras
participantes.
— O quê? Isso é absurdo. — Solto uma risada incrédula.
Maude não é simpática com ninguém, mas dizer que ela
apavora minhas concorrentes já é demais.
— E ela disse que tem certeza que sua mãe é responsável
pela intoxicação de Alana no mundial do ano passado, que a deixou
fora das finais.
Arregalo a boca, horrorizada.
— O quê?
Alana tinha mesmo passado mal e ficado fora das finais do
último mundial por uma intoxicação alimentar, mas suspeitar que
minha mãe tinha algo a ver com isso era uma acusação ridícula.
— Isso é mentira!
— Apenas repetindo o que ela disse.
— É tudo absurdo. Nem ela e nem Alana vão com a minha
cara, por isso inventam essas bobagens sem sentido!
— Ela disse que tinha outras histórias pra contar, mas que
teria que marcar um jantar.
— Ah meu Deus, ela deu em cima de você?
Nick dá de ombros.
— Eu não sei. Talvez só quisesse me alertar sobre você e
sua mãe.
— Alertar? Você acreditou em algo do que ela disse?
— Não costumo acreditar em nada que não tenha provas.
Há certa dureza em sua voz que me deixa com um aperto no
estômago.
— É isso que está fazendo aqui? Coletando provas para me
incriminar ou algo assim?
— A não ser que tenha algo que te incrimine.
Ele está falando sério?
— Isso é ridículo. Não sou mau-caráter, nem minha mãe. Se
você prefere acreditar em fofocas das irmãs Percy, o problema é
seu!
Eu passo por ele, disposta a abrir a porta e mandá-lo embora,
mas ele segura meu braço.
— Ei, calma.
Respiro fundo, lutando para me acalmar.
— O que está fazendo aqui, Nick?
— Você sabe, estou conhecendo você. Temos um contrato e
um projeto a desenvolver.
— E se descobrir que sou uma pessoa horrível? — murmuro.
— Você é?
— Às vezes, sim.
— Às vezes eu também acho que sou.
Sua voz parece cansada e ele me solta, passando os dedos
pelo cabelo.
Ele está próximo e volto a sentir aquela eletricidade fluindo de
sua pele pra minha.
É assustador. É maravilhoso.
É como se estivesse o tempo todo à beira de um precipício,
sabendo que se pular, não haverá volta.
De repente meu celular toca e aproveito para pegá-lo no
bolso, atendendo ao ver que é Chris.
— Ei, tudo bem?
— Sim, o que está fazendo?
Relanceio um olhar para Nick.
— Nada.
— Que tal se divertir um pouco? Estou indo para a festa da
Alana.
— Ir a uma festa de Alana Percy não é o que eu chamo de
divertimento.
— Por que não? Estará todo mundo lá. Você nem vai ter que
conversar com ela.
— Ela não me convidou.
— Ela convidou sim.
— Mentira.
— É sério. Tyler pediu que fôssemos, disse que ia conversar
com a Alana e que devíamos nos aproximar dela porque no fundo,
ela é uma pessoa legal por baixo dos chifres do diabo e tal.
Eu rio.
— Eu não sei...
— Vou te mandar o endereço por mensagem, nos
encontramos lá umas dez horas, ok? — E ele desliga sem me dar
chance de dizer não.
Eu encaro Nick.
— Chris está indo à festa de Alana hoje e quer que eu vá
também.
— Por que não vai?
— Pelo fato óbvio que Alana me odeia, mas eu também não
frequento muitas festas.
— Deveria ir.
— Quer ir também? — Pela segunda vez no dia me
surpreendo comigo mesma.
— Sim, eu vou com você.
Capítulo 8

Ainda me pergunto que diabos estou fazendo quando


caminho pelo saguão do meu prédio horas depois.
Estou usando um vestido preto de mangas compridas. Justo
e curto. E saltos. Maude teria orgulho de mim, pois me esmerei na
maquiagem e até escovei meus cabelos.
Não quero confessar a mim mesma que me esforcei para
ficar bonita porque Nick de Santi vai me acompanhar.
Depois que aceitou o meu convite, ele foi embora e disse que
passaria em algumas horas para me buscar.
Agora saio do meu prédio e me deparo com Nick dentro de
um carro preto, seus olhos me seguem enquanto eu me aproximo e
faço um sinal para ele não sair do carro, enquanto me apresso em
abrir a porta do passageiro e entrar.
Estou um pouco ofegante quando pouso meus olhos em sua
figura toda vestida de preto. Ele nunca me pareceu tão atraente. Há
algo de perigoso em Nick, talvez pela aparência morena, a barba
quase rústica, ou as tatuagens que sobem por seus bíceps,
desaparecendo dentro da camiseta escura.
— Você é pontual. — É seu comentário jocoso.
Sorrio nervosa.
— Tento ser.
— Pronta?
Faço uma careta.
— Não sei ainda o que vou fazer lá.
— Se divertir? — Ele levanta uma sobrancelha com um olhar
divertido e tenho a impressão de ver certo desafio ali.
Não sei se uma festa de Alana Percy pode ser divertida, mas
a perspectiva de ter uma noite ao lado de Nick me deixa quase
eufórica.
Ele dá a partida, o carro deslizando quase silenciosamente
pela rua.
— Nada de moto?
— A noite está fria e imaginei que usaria um vestido ou algo
assim. — Ele vagueia o olhar para mim por alguns segundos, mas é
o suficiente para eu enrubescer.
Será que ele está me achando atraente?
Isso não deveria ser importante, mas é.
Quero que Nick me ache bonita.
— Você costuma... sair assim? — Arrisco uma conversa.
— Assim como?
— Baladas, festas, bares, essas coisas.
— Quando eu era jovem, sim.
— Nossa, você fala como se fosse um velho.
Ele ri, uma risada rouca e deliciosa que faz minha barriga
tremer.
— Eu tenho uma filha, as prioridades mudam.
Não faço nenhum comentário depois disso.
Não me sinto à vontade para falar sobre a filha dele. Isso me
lembra que ele é tão diferente de mim e dos caras com que convivo.
A maioria dos caras na patinação são garotos.
Nick é um homem.
Um homem que já amou e perdeu. Um homem que
aparentemente vive para criar a filha pequena.
E pensar nisso me deixa desapontada, porque sei que ele
deve estar ali comigo apenas para desenvolver uma campanha para
sua empresa.
Enquanto não consigo evitar aquela ebulição de sentimentos
dentro de mim. Sentimentos que antes estavam congelados,
encontraram em Nick uma faísca que ateou fogo em todos eles, e
agora eles queimam lentamente, se transformando em um incêndio
dentro de mim, que temo uma hora não conseguir conter.
Desvio o olhar para as luzes da cidade, permanecendo em
silêncio, já não vendo tanta graça na noite que antes parecia
promissora.
Sinto-me meio boba agora por, sem nem mesmo perceber,
estar nutrindo ideias românticas em relação a Nick de Santi.
Justo eu, a garota de coração de gelo.
Chegamos ao bar, onde está rolando a festa de Alana, e saio
do carro, antes que Nick abra a porta pra mim.
— Tudo bem? — Ele me estuda quando entramos e a música
alta nos engolfa.
— Não sei se é uma boa ideia — murmuro um pouco
arrependida.
— Se não quiser ficar pode ir embora.
— Agora já estou aqui. Chris está me esperando. E eu fiz
você vir até aqui.
— Não tem que fazer nada para agradar ninguém. Nem
Chris. Muito menos eu, Kiara.
Antes que eu consiga responder, Chris aparece.
— Olha só quem veio! — Ele me abraça e se vira para Nick.
— Ei, Nick De Santi está aqui! — Ele olha pra mim, curioso.
— Nick está me acompanhando para fazer uma pesquisa,
sabe, para a campanha da De Santi. — Enrubesço porque sei que
Nick estar ali comigo parece algo mais do que uma simples relação
comercial.
— Ah, entendi... E aí, pronta pra diversão?
Ele segura minha mão e me puxa em direção ao amontoado
de pessoas no bar, banda tocando, gente dançando e muita bebida.
Olho para trás, e Nick está nos seguindo. No ambiente
semiescuro não consigo ver sua expressão.
Nós nos aproximamos de uma roda de pessoas e eu
reconheço, Alana e Tyler, entre alguns outros conhecidos da
patinação.
— Ora, ora, se não é a princesinha de gelo! Desceu do
olimpo para confraternizar com os pobres mortais? — Alana
dardeja.
— Oi Alana, feliz aniversário. — Ignoro seu comentário
mordaz e aceno para os outros. — Oi para todo mundo.
Mas Alana já está com sua atenção atrás de mim.
— Uau, Nick de Santi.
— Olá, Alana — Nick a cumprimenta.
— O que é isso? — Ela aponta para nós dois. Sei que sua
pergunta está cheia de malícia e não gosto disso.
— Nick estará acompanhando a Kiara por algumas semanas,
ele está desenvolvendo uma linha de roupas para a De Santi, e terá
a Kiara como inspiração — Christian responde apertando meus
ombros. — Que orgulho, hein garota.
Posso ver os olhos de Alana brilhando de raiva.
— Hum, se acha um cubo de gelo interessante!
— Alana, menos. — Tyler toca seu braço — Que tal irmos
buscar mais bebida? — E ele a puxa em direção ao bar.
— Ei, Christian, vamos dançar? — Molly, uma garota que
compete solo na patinação, sorri para Christian.
— Claro! — Ele se vira pra mim. — Vamos?
— Não, acho que vou apenas observar por enquanto.
Ele aperta meu braço.
— Por favor, se divirta hoje.
— Vou me divertir — garanto.
Ele se vira para Nick.
— Ei, Nick, que tal convencer a nossa patinadora a beber
uma cerveja para relaxar?
— Eu não bebo cerveja, Chris...
— Acho uma boa ideia. — E ele se afasta até o bar.
— Estou mesmo surpreso de ver você com ele aqui, o que
está rolando?
— Nada, não põe ideias na cabeça.
— E você está até sexy hoje. Não sou eu que tenho ideias.
— Chris, pare!
— Se eu fosse você, mandava ver.
— Não seja ridículo. Nick não tem nenhum interesse em
mim...
— Não? O que ele está fazendo aqui?
— Ei, Chris, vamos! — Molly insiste e Chris pisca pra mim se
afastando para a pista.
Sorrio meio sem graça para os outros me sentindo deslocada
e me sento em uma mesa próxima.
Nick se aproxima com duas cervejas.
— Acho que nunca tomei cerveja na vida.
Ele se senta ao meu lado e bate a garrafa na minha.
— Para tudo tem uma primeira vez.
— Minha mãe me mataria — resmungo tomando um gole.
Hum, não é ruim.
Talvez beber um pouquinho não tenha problema algum.
Todos os outros estão bebendo.
Nick me observa com um olhar curioso.
— Você parece meio deslocada.
— Eu não costumo... confraternizar desse jeito — confesso.
— Por que é uma patinadora e não tem tempo para se
divertir?
— Também por isso.
— Você é tão jovem. — Ele parece estar falando para si
mesmo. — Devia estar aproveitando sua vida.
— Mas eu aproveito. Ganhando medalhas — digo com falsa
altivez.
— Sim, você é mesmo incrível patinando.
Esquento por dentro com o elogio. Claro que recebo muitos
elogios sobre minhas habilidades, mas vindos de Nick tem um gosto
diferente.
— O que estou querendo dizer é que só se é jovem uma vez.
— Como você era... jovem?
— Na sua idade eu estava viajando o mundo, competindo
também. Mas eu me divertia, ia conhecer os bares da cidade e
encher a cara.
— Se eu bebesse toda noite, nem conseguiria acordar no dia
seguinte.
— Não precisa ser toda a noite. Todo mundo deveria fazer
alguma loucura de vez em quando. É muito chato seguir todas as
regras.
— Acha que eu sou chata?
— Você que está dizendo.
Eu me sinto contrariada.
Não quero que Nick me ache uma chata que não sabe se
divertir.
“Mas é o que você é, não?”
Uma voz zombeteira sussurra dentro de mim, me irritando.
— Certo. Vou seguir seu conselho. — E eu me levanto,
sentindo-me desafiada e ao chegar no balcão, peço algumas
garrafas de cerveja.
Volto à mesa carregando todas as garrafas e Nick ri.
— O que é isso?
— Apenas mostrando a você que sou capaz de me divertir.
— Sabe que não estou dizendo que tem que ficar bêbada,
não é?
— E se eu ficar? Nunca fiquei bêbada antes. É horrível?
— Depende.
— Minha mãe diz que não é seguro para uma mulher ficar
bêbada.
— Talvez ela tenha razão. Mas se ficar bêbada hoje, eu
prometo que cuido para que fique segura.
Ele bate a cerveja na minha de novo e bebemos em silêncio.
Facilmente eu percebo que bebi mais uma garrafa e me sinto
bem.
— Imagino que deve ter tido muitas aventuras no
motociclismo — indago, curiosa, querendo que ele me fale mais
dele.
Que me fale tudo sobre ele.
— Sim, foi. Mas depois ainda viajei por um ano pela Europa
de moto.
— Apenas por viajar?
— Sim, um dos períodos mais incríveis da minha vida.
— Sozinho?
Uma sombra tolda seu olhar.
— Não.
— Você viajou com a... Claire?
— Sim, nós viajamos juntos, antes de nos casarmos.
Encosto a cabeça no sofá atrás de mim, sentindo que minha
cabeça começa a rodar, assim como meus pensamentos.
Fico imaginando um Nick mais jovem, com a aparência ainda
mais perigosa que agora, em cima de uma moto com uma garota
loira colada nele.
Claire.
Como será que era Nick como namorado?
Como marido?
Amante?
— Você já ficou com Dimitri Ivanov? — Nick me surpreende
com a pergunta.
Sigo seu olhar e percebo que Dimitri entrou no bar com
Diana.
Ele está se aproximando da roda de amigos de Alana.
Mordo os lábios pensando no passado, sentindo como nunca
ele pesar em meu estômago.
— Não posso dizer que tivemos um relacionamento... —
sussurro.
— Já esteve em um relacionamento?
Sacudo a cabeça em negativa.
Nick está me encarando agora, me avaliando.
Sustento seu olhar, porque não quero me virar para nenhum
outro lugar.
— Kiara, não vai ficar aí a noite inteira.
Somos surpreendidos por Tyler que avança em nossa
direção.
— Vem dançar.
Sorrio sem graça, segurando minha cerveja.
Já tomei quantas?
— Estou bem.
— Traz a cerveja. — E ele me puxa pela mão, me fazendo
levantar e me puxando para a pista.
Por alguns instantes, não consigo reagir, talvez pelo fato de
sentir que estou um pouco tonta e com passos incertos.
— Acho que estou um pouco bêbada. — Solto uma risada,
dando-me conta de que não achei ruim Tyler ter me tocado. Mesmo
porque agora, ele já me soltou e está dançando na minha frente.
— Eu também. — Ele ri e não consigo evitar acompanhá-lo.
Chris se aproxima, e me abraça, dançando.
— Tudo bem? — Sua voz está um pouco preocupada.
— Sim, estou ótima.
Ele me encara.
— Está meio bêbada?
— Acho que sim.
— Minha nossa, vivi pra ver isso.
— Não sabia que beber podia nos deixar assim. — Sorrio
languidamente acompanhando seus passos na pista. — Eu acho
que gosto de estar bêbada.
E fecho os olhos, deixando a música dominar meus sentidos,
ditando os movimentos, sentindo-me livre.
Não resisto ao impulso de arrastar meu olhar de volta a Nick,
um arrepio transpassa meu corpo ao vê-lo me observando.
Sinto a pele vibrar, como se uma onda magnética nos
conectasse de uma forma estranha e irresistível. Minha mente
esvazia de qualquer pensamento e, naquele momento, eu vivo e
respiro para o que ele me faz sentir, apenas com um olhar, porque é
tão novo e eletrizante e não posso evitar querer mais.
Estou ficando facilmente viciada no olhar de Nick de Santi.
Então, de repente, ele desvia o olhar me privando de sua
atenção e sinto como se toda a energia fosse drenada do meu
corpo, esfriando meus sentidos.
— Então, está transando com Nick de Santi.
A voz irritante de Alana, sussurrada quase no meu ouvido,
atrás de mim, me faz virar e ela está sorrindo com ironia pra mim.
— O que disse?
— Você ouviu. Assim é fácil conseguir bons patrocínios! O
Chris sabe que tem que te dividir? Se bem que pelo que ando
desconfiando, o Chris deve querer pegar o De Santi junto com
você...
— Que merda está falando? Por que é uma pessoa tão
ruim?
— Eu sou ruim? Tem certeza?
— O que essa idiota está te falando, Kiara? — Dimitri surge
do meu lado.
— Lá vem o imbecil que depois de anos ainda continua louco
pra tirar seu collant! Parece que perdeu o posto, Dimitri, e faz
tempo. Agora a Kiara pega um milionário! Coração de gelo, mas
boceta interesseira...
— Por que não cala sua boca ridícula? — Dimitri avança para
cima de Alana que levanta o queixo, não parecendo intimidada.
— Gente, que isso? — É a voz de Chris que está do meu
lado e vejo que está todo mundo prestando atenção em nós.
— O que foi? Vai mesmo defender essa garota que te largou
antes de um mundial? — Alana prossegue com o ataque.
— O que você tem a ver com isso? Por que não cuida da
própria vida em vez de inventar merda sobre os outros? Você não
passa de um monte de lixo, invejoso e mentiroso! Sei muito bem
que foi você quem inventou essas merdas sobre a Diana.
— Dimitri, pare. — Diana aparece, mas ele continua.
— Estou de saco cheio de você!
— Não foi mentira! Diana está grávida, e por que não assume
que está comendo sua parceira? Vai continuar se fazendo de
santinha, Diana? Depois eu que sou a mentirosa e ruim! Todos
vocês me dão nojo, um pior que o outro e posando de bonzinhos!
Não tenho culpa que Diana não conseguiu manter as pernas
fechadas pra você, que, aliás, paga de perfeitinho, mas todos
sabemos que só te levam a sério por causa do seu pai, o grande
Andrey Ivanov! E essa metida a besta da Kiara consegue patrocínio
trepando com donos de empresa!
Perco o ar com suas acusações que chegaram a um nível
execrável.
— Por que não enfia suas mentiras sujas em seu rabo
virgem, sua filha da puta escrota e sem talento algum que ninguém
quer? É este seu problema, não é? — Dimitri grita.
— Você que é um babaca escroto... — Alana empurra Dimitri
que num instinto a empurra também.
Alana não parece intimidada, começando a esmurrá-lo e no
momento em que Dimitri levanta a mão, não sei se para se defender
ou agredir Alana, Tyler se põe na frente e empurra Dimitri, que
revida, dando um soco em seu estômago. Tyler embaralha as
pernas nos degraus da pista e cai para trás.
Chris e outros caras seguram Dimitri que está furioso.
Alana corre para Tyler, gritando coisas que nem entendo,
enquanto aponta para Dimitri.
— Você machucou o Tyler!
Então eu noto que Tyler virou o pé e está urrando de dor.
— Minha nossa, ele se machucou de verdade? — Chris
ajoelha ao seu lado.
— Pelo amor de Deus, pra que isso? — Diana sussurra. —
Você bateu no Tyler, está maluco?
— Eu não quis machucar ele — Dimitri balbucia passando a
mão pelos cabelos. — Queria calar a boca fofoqueira dessa filha da
puta que inventou mentiras sobre você.
— Não são mentiras! — Diana confessa por fim, começando
a chorar. — Sinto muito.
Dimitri agora está encarando Diana, embasbacado. Tyler está
gemendo no chão e Alana parece histérica.
Seguranças da boate aparecem ao mesmo tempo que sinto
alguém segurando meu braço.
Olho para trás para ver Nick me puxando para longe da
confusão.
Mas ainda escuto Alana gritando.
— Nada disso teria acontecido se Dimitri não viesse defender
a Kiara! Tudo culpa dela...
— Não fui eu — murmuro, ainda meio em choque com aquela
confusão toda.
— Vamos embora daqui. — Nick me guia para fora do bar até
que estejamos na rua e respiro fundo quando ele me solta para
pegar a chave do carro.
Tropeço nos meus próprios pés, percebendo que estou mais
tonta do que imaginava.
Nick abre a porta e praticamente me empurra para dentro,
dando a volta e se sentando ao volante.
Levo a mão à testa, fechando os olhos, mas só me sinto mais
tonta.
— Não me sinto bem... — Solto uma risada nervosa. —
Minha cabeça está rodando...
— Você bebeu mais do que devia. — Há reprimenda em sua
voz enquanto dá partida.
Abro os olhos, confusa.
— Você disse que eu era chata...
— Não disse para ficar bêbada.
— Não acredito que toda aquela confusão aconteceu. —
Gemo desalentada. — Alana me odeia.
— Alana parece ter muitos problemas internos para ser
daquele jeito.
— E todos nós não temos?
O carro para em um sinal vermelho e o olhar de Nick recai
sobre mim na semiescuridão do carro.
— Você tem?
Apenas aceno com a cabeça, minha garganta fechando.
— Estou tão cansada... — Solto um murmúrio dolorido
sentindo lágrimas quentes se formando em meus olhos. — Alana
tem razão, eu sou uma farsa. Todos acham que sou perfeita, mas
não sou... — Sinto aquela velha dor inundando meu peito de
desolação. — Eu sou oca por dentro. Não tem nada aqui.
Arrancaram de mim... — Meus soluços cortam o ar, sem que eu
consiga evitar enquanto desabo em lágrimas.
Estou tão perdida em minha dor, que só reparo que o carro
parou quando Nick abre a porta do passageiro e me puxa para fora.
Meu olhar vagueia em volta e estamos em um jardim
estranho.
— Não é meu prédio...
— Acho que não está em condições de ficar sozinha hoje.
Nick me puxa para uma alameda e percebo que estamos em
frente uma casa branca. Ele abre a porta e acende a luz.
Vislumbro um hall elegante e uma escada de madeira escura.
— Aqui é sua casa? — murmuro confusa.
— Sim.
Minha nossa, Nick me trouxe para a casa dele?
Subitamente me sinto um pouco alerta. As lágrimas já se
foram, embora ainda esteja meio extenuada e perdida.
Porém, agora também sinto aquela expectativa ansiosa que
me acomete toda vez que Nick está perto. Como se algo fosse
acontecer.
Como se algo tivesse que acontecer.
Meu coração dá um pulo quando ele segue em frente, ainda
com minha mão entre a sua. Eu o sigo, meu olhar recaindo sobre
nossos dedos entrelaçados.
Um sorriso se distende em meus lábios, porque percebo que
não estou com medo, contrariando todas as expectativas.
Muito pelo contrário.
Talvez seja a embriaguez que me deixa corajosa e
inconsequente.
Ou talvez seja só ele.
Nick de Santi.
Chegamos a uma sala e ele me faz sentar no sofá escuro.
Agradeço por isso porque ainda estou tonta, mas deixo meus
olhos curiosos varrerem o ambiente. É moderna em tons de branco,
preto e cinza. Com fotos de motos em uma parede toda preta.
Muito masculino.
Muito Nick.
Vagamente me dou conta que Nick se afastou e há uma
cozinha à frente, separada por uma grande ilha.
Nick retorna e estende um copo de água.
— Não estou com sede. — Minha língua dá uma enrolada,
mas Nick insiste.
— Beba. Pode ficar desidratada.
Eu o obedeço, ingerindo pequenos goles.
Nick ainda está parado na minha frente, me observando com
um olhar crítico. Isso me desconcerta.
— Você pode sentar? Está me deixando mais tonta me
olhando assim.
Ele senta ao meu lado.
— Assim como?
— Como se fosse me dar uma bronca e me pôr de castigo.
— Talvez mereça. — Agora há certo divertimento em sua voz.
— Não sou uma criança.
— Eu sei, Kiara. — Ele recosta a cabeça no sofá soltando um
suspiro profundo, os dedos bonitos castigando os cabelos.
Acompanho aquele movimento como se estivesse
hipnotizada.
É esse efeito que ele tem sobre mim.
Ele me hipnotiza. Poderia passar anos apenas apreciando
Nick de Santi.
Eu me viro, sentando de lado, encolhendo as pernas no sofá,
para vê-lo melhor.
Sua beleza rústica é inquietante, deixa meus sentidos em
alerta.
Como se algo nele tivesse o poder de despertar todas as
minhas células que estavam adormecidas até então, criando uma
necessidade inédita dentro de mim.
E sinto aquela necessidade na boca do estômago, no meu
coração acelerado, no calor que aquece minha pele e se espalha
como fogo em brasa e se transforma em um pulsar proibido e
ansioso entre minhas coxas.
— Está melhor?
Eu me surpreendo com sua pergunta, quando ele abre os
olhos e os prende em mim.
Sacudo a cabeça em afirmativa e ele pega o copo da minha
mão. Nossos dedos se tocam por segundos e estremeço, puxando-
os num reflexo, surpresa com os arrepios que transbordam com
aquele simples toque.
Nick confunde meu gesto e se afasta imediatamente
enquanto coloca o copo na mesa de centro.
— Me desculpe.
— Por quê?
— Você não gosta de ser tocada.
— Bem, você já pegou na minha mão hoje. E eu sobrevivi. —
Estendo a mão, sem pensar no que estou fazendo e seguro a dele.
Sua pele é quente e levemente áspera e passo meus dedos
pelo dorso.
— Por que não gosta que te toquem?
Arrasto o olhar de volta para seu rosto.
— Não te contaram? Eu tenho um coração de gelo —
sussurro com um sorriso triste, abaixando o rosto, quando ele vira a
mão e agora estou tocando sua palma.
— Então temos algo em comum. Também já me acusaram de
ter um coração gelado.
Sem pensar, ergo a mão e toco seu peito, onde o coração
bate rápido.
— Parece quente. — Levanto a cabeça e seu olhar captura o
meu.
Perco o ar.
A energia vibrando em meu íntimo, vinda diretamente dele.
— Seria possível dois corações congelados se aquecerem
em contato um com o outro? — Minha pergunta sai num sussurro e
tudo o que eu sinto é aquele desejo quase compulsório de estar
mais perto dele.
E é o que eu faço.
Avanço sem desviar o olhar e mergulho meus lábios nos de
Nick de Santi.
Capítulo 9

No instante em que minha boca toca a dele é como se uma


lufada quente de vida fosse injetada em meu coração, acendendo
luzes piscantes que brilham por trás das minhas pálpebras fechadas
e faz meu corpo inteiro vibrar.
Vivo. Quente.
Pulsante.
Com um gemido me deixo levar pelas sensações, projetando
a língua para sentir seu gosto, meus lábios devorando a boca
masculina como se fosse o último alimento do mundo.
E eu estou faminta.
Estou com fome de Nick de Santi.
Com um gemido, minhas mãos seguram seu rosto, a barba
contra meus dedos é áspera e macia ao mesmo tempo e intensifica
os arrepios que descem por minha espinha e faz tudo tremer dentro
de mim.
Então, Nick deixa escapar um ruído rouco e grave do fundo
da garganta que faz uma explosão de prazer atingir meu ventre,
mas em seguida, sinto seus dedos em meus braços, não me
puxando para perto como desejo mais que tudo naquele momento,
mas para me afastar.
Abro os olhos, ofegante e perdida, ainda sentindo as
vibrações do beijo em toda minha pele e Nick está se afastando,
levantando do sofá.
— O quê?... — balbucio, confusa.
— Isso não pode acontecer, Kiara. — Suas palavras soam
bruscas e por um momento apenas o encaro atordoada, meu
cérebro levando alguns segundos para compreender toda a
situação.
E, então, é como se eu caísse em mim.
Minha nossa, eu beijei Nick de Santi!
Eu, Kiara Willians, que não podia nem conceber aceitar uma
aproximação masculina, tinha tomado a iniciativa de ir pra cima de
um cara.
E eu ainda quero ir pra cima dele.
Engulo em seco, minha mente rodando, talvez ainda do
álcool ingerido ou pela avalanche de acontecimentos inéditos dos
últimos minutos.
Ainda sinto um resquício de desejo. Porém, Nick está
olhando pra mim como se tivéssemos cometido o maior erro do
mundo.
Ele se afastou.
Ele me afastou.
A verdade atinge meu estômago e uma dorzinha incômoda
começa a se alastrar por meu peito.
— Eu achei, eu... — “Eu achei que você estivesse atraído por
mim também”, é o que eu quero dizer, mas não consigo.
— Sinto muito, mas está confusa. Deve ser a bebida.
Sacudo a cabeça, aturdida.
Um misto de vergonha, pesar e raiva domina minhas
emoções.
Fixo meu olhar em Nick, em pé ali na minha frente. Sua
expressão é fria como gelo e eu quase rio da ironia.
— Por que estou aqui, Nick? Que diabos quer de mim? — O
questionamento escapuliu da minha boca sem que eu conseguisse
me conter.
Nick está me confundindo e estou mais tonta do que nunca.
Ou será que confundi tudo em meio a minha inexperiência e
empolgação pelo que ele me fazia sentir?
— Quero que vá dormir. O quarto de hóspede é a segunda
porta à direita no segundo andar. Você não está bem. Vai esquecer
de tudo isso amanhã.
Porra, ele está sendo condescendente?
Eu o observo se afastar, subindo as escadas.
Quero gritar. Quero chorar.
Ou talvez apenas me levantar e ir embora, e colocar a maior
distância possível entre Nick de Santi e o meu inconveniente desejo
por ele.
Não sei quanto tempo ainda permaneço ali, abraçando meus
joelhos e lutando contra meus próprios demônios, que hoje estão
todos acordados e brigando entre si.

Desperto de repente, assustada e no mesmo instante sei que


tem algo errado. Sento-me na cama e deixo meu olhar vagar a
minha volta.
Estou em um quarto estranho. Numa cama estranha.
Meu cérebro demora alguns instantes para rebobinar a fita
dos últimos acontecimentos e quando finalmente começo a me
lembrar, solto um gemido desalentado e me jogo na cama de novo,
cobrindo o rosto com as mãos.
A festa de Alana. Nick.
A briga.
E depois eu e Nick em seu sofá.
E o beijo.
Puta que pariu, aquilo aconteceu mesmo?
Sinto uma espécie de contentamento proibido e secreto ao
me recordar.
Toco meus lábios, rememorando a sensação.
Quero guardá-la para sempre, mas quero esquecer que pra
Nick foi um erro.
Lembrar-me disso faz um pouco do meu contentamento
esvair, mas o que posso fazer?
Talvez eu só seja mais uma garota tola, como muitas outras.
Isso me dá um certo alento. Naomi me falava sobre isso, sobre eu
me permitir ser normal. Viver, sentir, cair e sofrer e me levantar de
novo.
Eu posso fazer isso?
Como? Não tenho ideia.
Tudo o que tenho feito nos últimos anos é me arrastar
sozinha pelo chão gelado, tentando respirar. E Nick chegou ateando
fogo em tudo, porém, ele também esconde um coração de gelo sob
a pele quente.
Como posso sair desse quarto, encarar Nick e perdoar que
ele não me deseje? Porque tudo o que eu quero é fazê-lo voltar
atrás. Quero que ele segure minha mão e me puxe para perto, onde
anseio estar.
Nick me deu um fora, não tem como colocar de outra
maneira.
Provavelmente não faz ideia de que para ele, foi só um
momento, mas pra mim, mudou tudo.
Com um suspiro, jogo as cobertas para o lado e me dou
conta de que estou com o mesmo vestido.
E como foi que eu cheguei até o quarto? Não me recordo.
Nick me trouxe até ali? Pensar nisso me deixa um pouco
perturbada.
Minha bolsa está sob uma cadeira e pego meu celular,
verificando a hora.
Ainda é cedo.
Talvez eu consiga chamar um táxi e dar o fora dali, sem ter
que encarar Nick. Com este pensamento, pego meus sapatos e
minha bolsa, saindo do quarto, e caminho tentando não fazer
barulho, meus pés afundando no tapete escuro no corredor e eu me
pergunto qual porta será o quarto de Nick.
Ainda há uma certa vontade de ficar e...
E o quê?
Confrontá-lo?
Dizer que precisamos falar sobre o beijo?
Eu preciso ter o mínimo de orgulho e discernimento para
aceitar que nada do que secretamente desejei desde que acordei
em sua casa em Whistler e me atraí por ele, vai acontecer, concluo,
descendo as escadas.
Mas sei que permanecer na companhia de Nick só vai fazer
eu me afundar mais naqueles sentimentos proibidos e não
correspondidos.
E eu temo não ter condições de lidar com aquilo.
No fundo, eu sei que não posso.
Ainda sou frágil demais. Quebradiça demais. Se Nick me
segurar e me soltar, eu vou me espatifar no chão e quebrar em mil
pedaços que nunca mais poderão ser juntados.
— Oi, eu te conheço.
Dou um pulo de susto ao me virar quando chego ao térreo e
escuto a voz infantil as minhas costas.
E lá está a garotinha.
É a filha de Nick.
Enrubesço por ter sido pega em flagrante.
E me dou conta que em nenhum momento ontem, eu tinha
atinado que a filha de Nick provavelmente deveria estar na casa.
Todavia, como no outro dia em Whistler, ela veste um casaco rosa e
uma touca, como se estivesse acabando de chegar da rua.
— Mackenzie, tire o casaco e venha comer.
A voz nos interrompe e eu me viro para ver a mulher
entrando na sala.
Ela arregala os olhos surpresa ao me ver.
É Cláudia. A cunhada de Nick que eu achei que fosse a
esposa dele.
— Olha tia, a moça do gelo! — Mackenzie exclama, animada.
— Lembra dela? A gente viu ela patinando na TV! E ela estava lá na
nossa casa na neve. Eu segurei os patins dela. — Ela me encara
com os olhinhos curiosos. — Cadê seus patins?
Eu não sei o que dizer. Estou petrificada.
Claudia se aproxima. Ainda tem sobre mim aquele olhar de
censura e desconfiança.
— Mackenzie, faça o que eu pedi. Vai se atrasar para a
escola.
A criança faz cara de quem vai retrucar, mas algo na
expressão da tia deve tê-la alertado que é melhor obedecer.
— Está bem. Você vai tomar café com a gente, patinadora?
— Kiara, meu nome é Kiara — eu a corrijo e sinto certo
divertimento.
— O meu é Mackenzie. — A menina sorri.
— Mackenzie, vá comer seu cereal — Claudia insiste quase
ríspida agora e a menina corre para a cozinha.
Então a mulher fixa o olhar frio em mim.
— Não sabia que Nick estava com... visitas.
Eu coro de constrangimento.
O que está se passando na mente dela?
— Eu não sou uma visita, quer dizer... — eu me atrapalho,
piorando a situação.
— Acho que não fomos apresentadas corretamente? —
Claudia olha pra mim como se eu fosse um inseto pronto a ser
esmagado. — Quando me deparei com você lá em Whistler fugiu
correndo. — Eu sou Cláudia Fisher, cunhada de Nick. Ele me disse
que a De Santi a contratou para uma campanha. Não sabia que pra
isso tinha que dormir com Nick.
— Oh, eu apenas não estava bem ontem, depois de um...
evento. E Nick foi gentil me deixando dormir em seu quarto de
hóspede — explico vermelha.
— Devo acreditar nisso?
Minha nossa, qual o problema daquela mulher?
— Eu não estou entendendo...
Ela solta um risinho maldoso.
— Você é uma jovenzinha bonita e Nick é um homem
atraente e rico.
— Oh, não, eu... — balbucio sem saber como parar aquele
ataque.
— Deve estar cheia de ideias na cabeça, mas devo alertá-la
para não nutrir esperanças. Nick ainda ama Claire.
— Claire... morreu — eu me vejo dizendo e sei que foi a coisa
errada quando os olhos de Claudia escurecem.
— Nick sofreu e ainda sofre muito com a perda de Claire.
Você chegou há cinco minutos e não faz ideia de nada do que eles
viveram. Foram 13 anos juntos. Eles eram extremamente
apaixonados e devotados um ao outro. E a filhinha deles. Nick ficou
devastado quando ela se foi. Ele ainda está devastado.
— Me desculpe, mas está confundindo tudo...
— Estou mesmo? Por acaso é coincidência eu chegar à casa
de Nick em duas manhãs e encontrá-la com ele? Eu não sou idiota.
Nick pediu que Mackenzie dormisse na minha casa ontem porque
tinha um compromisso de trabalho, mas vejo agora que não é bem
assim. Nick me surpreende porque ele jamais se envolveu com
ninguém depois da partida de Claire, mesmo apenas por sexo fácil.
Eu ruborizo de constrangimento.
— Não estou transando com Nick.
— Poupe dos detalhes. Minha irmã deve estar se revirando
no túmulo por Nick trazer uma mulher na casa dela.
— Ei, patinadora, quer dizer, Kiara.
Eu me surpreendo quando Mackenzie se aproxima e me
puxa pela mão.
— Vem ver o desenho que eu fiz.
Eu a acompanho, um tanto aliviada de ser poupada de mais
acusações de Claudia.
Ela senta na mesa e aponta para a folha sulfite, pegando um
giz de cera.
Espio o desenho que mais parece um monte de rabisco, mas
sorrio para a menina.
— É muito bonito.
— Vou desenhar você patinando!
— Mackenzie, já comeu? — Claudia se aproxima, irritada.
Eu me afasto da menina enquanto Claudia se mexe pela
cozinha.
E avisto em cima de um aparador alguns porta-retratos, como
aqueles que vi em Whistler.
E todos têm Claire De Santi em algum momento de sua vida.
Ela sorrindo em uma praia, usando um biquíni vermelho. Depois ela
grávida em diferentes estágios. Segurando a bebê Mackenzie em
várias fotos enquanto ela crescia. Até uma última, onde a menina
deveria ter uns três anos.
Sinto um aperto no peito ao vislumbrar aquelas fotos. Claire
parecia cheia de vida e beleza.
E ela tinha o amor de Nick.
E uma linda filha.
Parecia uma vida perfeita.
Uma vida que eu nem conseguia imaginar ter, mas que
contemplando aquelas fotos agora me deixa com uma sensação de
vazio inexorável.
Então, pego um porta-retratos onde Claire está abraçada com
outra mulher muito parecida com ela em seu casamento. Claudia.
— Vocês eram muito parecidas.
— Éramos gêmeas.
— Oh... deve ser bom, ter um irmão. Eu sou filha única —
não sei por que estou dizendo aquilo. Talvez para tentar ter uma
conversa civilizada com a mulher que escolheu me detestar.
— Sim, foi bom ter alguém, quando não se conhece os
próprios pais.
— Como assim?
— Eu e Claire fomos abandonadas ainda bebês. Nunca
conhecemos nossos pais de verdade. Vivemos boa parte da vida
em um orfanato.
— Sinto muito.
— Claire sempre sofreu muito por isso. Por essa falta de raiz.
Acho que por isso ela sempre quis ter uma família, filhos... Foi
injusto ela ir tão cedo. Mas nunca vamos esquecê-la.
Somos interrompidas pelo barulho de passos se aproximando
Nick surge descendo as escadas. Sua expressão é uma máscara de
contrariedade, enquanto olha de mim para Cláudia.
— O que faz aqui, Cláudia?
— Mackenzie precisava de uns materiais para a escola, por
isso passamos aqui antes e ela está tomando café. — Sua voz é
acusadora quando se vira mim. — Podia ter avisado que tinha...
uma amiga aqui.
Ai merda. Aquele “amiga” parecia mais um “vadia”.
— Oi papai, olha o desenho que eu fiz! — Mackenzie se
aproxima do pai.
Ele pega o sulfite, sorrindo com orgulho.
— É lindo.
— Eu vou desenhar a Kiara agora.
— Não, você vai escovar os dentes para eu te levar à escola
— Claudia retruca.
— Sim, escute a tia Claudia.
— Papai, vamos ver a Kiara patinando de perto?
Nick parece contrariado, mas sorri para a menina.
— Vá escovar os dentes, depois conversamos.
E quando a menina se afasta junto com a tia, ele olha pra
mim de forma estranha e percebo que ainda seguro o porta-retratos
com a foto de sua esposa.
Ele se aproxima e o tira das minhas mãos, como se eu o
estivesse maculando.
— Ela era muito bonita — sussurro enquanto os olhos dele
continuam nas fotos.
— Ela era meu sol. — Uma dor antiga rasteja por sua voz e
faz algo doer em mim também.
Seus dedos tocam a foto. E percebo, perdendo o ar, que ele
está usando uma aliança. Ela não estava ali ontem.
Por que ele a recolocou?
Para lembrar a si mesmo que não deveria beijar garotas
iludidas?
Garotas que sentem inveja de uma mulher morta?
— Você ainda a ama. — Não é uma pergunta.
— Amar alguém que não podemos ver é o maior suplício de
todos.
Fecho os olhos, algo no que ele disse atingiu o fundo do meu
peito. Um lugar onde eu nunca me permiti ir.
— Talvez eu saiba o que é isso — sussurro e quando ele me
encara, eu desvio o olhar.
Às vezes, tenho a impressão de que Nick quer algo de mim
que não consigo entender.
Mas o que ele pode querer de mim quando ama outra
mulher?
Talvez eu tenha mesmo confundido tudo em minha ilusão.
— Eu vou te levar embora — ele diz por fim.
— Tudo bem.
Eu me apresso em colocar meus sapatos que havia largado
no chão e acompanho Nick para fora da casa.
Entramos em seu carro em silêncio e mordo os lábios incerta
do que dizer.
Quando chegamos em frente ao meu prédio, eu salto e me
surpreendo quando Nick faz o mesmo.
Nós nos encaramos na rua, o vento frio me fazendo
estremecer.
— Sinto muito por ontem — Nick diz me surpreendendo.
— Eu não. — Que se dane. Provavelmente Nick não vai
querer olhar na minha cara nunca mais. — Eu queria te beijar.
E sem me conter, eu me aproximo, sentindo a conhecida
onda magnética que me faz querer me fundir a ele.
— Eu lamento que você não queira o mesmo.
— Às vezes o que queremos é a única coisa que não
devemos ter.
— E o que você quer de mim, Nick? De verdade?
Eu espero com o coração em suspenso.
Ainda com esperanças tolas que não deveria ter.
— E o que você quer, Kiara?
Ah, Nick.
Se eu te contar, você vai me dar?
— Queria ser uma pessoa diferente. Queria não me sentir
vazia e fria o tempo todo. Queria ser a pessoa que um dia eu fui,
mas que ficou perdida em algum lugar do caminho. Queria não estar
querendo coisas de alguém que parece ser mais gelado do que eu.
Eu sei que não preciso dizer com todas as letras o que quero
para ele entender.
Porém, Nick dá um passo atrás, recuando.
Mantendo-me longe.
— Eu não tenho nada a dar a ninguém, Kiara. O que eu tinha,
morreu com Claire.
— Então o que estamos fazendo aqui?
— Mantendo as coisas como devem ser.
Eu assinto, engolindo a decepção e sorrio do mesmo jeito
que sorri todos aqueles anos. Com uma falsa alegria que escondia a
devastação que me abalava por dentro.
— Obrigada pela carona. — Eu o dispenso, dando meia-volta
e entrando no prédio e o sorriso morre antes mesmo que eu entre
no elevador.
E quando chego no meu andar, surpreendo-me ao ver Dimitri
sentado em frente a minha porta.
Capítulo 10

— Dimitri?
Ele levanta a cabeça e seus olhos estão vermelhos, como se
tivesse passado a noite inteira acordado. Ainda está com as
mesmas roupas que usava ontem na festa de Alana, então
provavelmente ainda não dormiu.
— Oi, Kiara. — Ele se levanta. Sua voz está cheia de
angústia cansada.
— Você dormiu? Está com as mesmas roupas de ontem.
— Você também. — Seu olhar me mede e quando descansa
em meu rosto há uma pergunta muda ali.
Eu coro, porém levanto a cabeça.
— Não te devo satisfação.
Ele sacode a cabeça em afirmativa, passando os dedos pelos
cabelos.
— O que está fazendo aqui Dimitri, na minha porta a essa
hora da manhã?
— Eu queria conversar com alguém.
— Comigo? — questiono surpresa.
Eu não tenho uma conversa de verdade com Dimitri há muito
tempo.
— Está tudo desabando e eu só conseguia pensar que queria
falar com você.
— Não temos nada pra falar. A gente mal trocou duas
palavras nesses últimos anos.
— Nós éramos melhores amigos. Você esqueceu?
— Nós éramos até você mostrar um lado assustador que eu
nunca vi. — Minha voz sai engasgada com todo o horror que
presenciei naquela noite longínqua.
— Você me cortou da sua vida depois daquela noite. Nunca
me contou de verdade o que aconteceu.
— Porque eu desejo esquecer.
— Queria tanto ter conversado com você naquela época,
tentado explicar...
— Acha que tem explicação?
— Meu pai pediu que eu ficasse longe de você.
A menção ao pai de Dimitri, que era nosso técnico na época,
faz meu estômago revirar.
— E você sempre faz tudo o que o grande Andrey Ivanov
manda — dardejo com ironia ao me lembrar daquela época horrível
que preferia esquecer. — Sinceramente, Dimitri, não deveria ter
vindo aqui.
— Eu não posso entrar? Conversarmos?
— Não vai entrar na minha casa.
— Você tem medo de mim.
— Você machuca as pessoas, Dimitri. Ontem mesmo achei
que ia agredir Alana, e mesmo ela sendo daquele jeito...
— Eu não consigo... evitar. É como se houvesse dois de mim.
Ontem quando Alana me provocou, era como se eu saísse do meu
corpo e ficasse só um monstro.
— Acho que devia ir embora. — Dou um passo atrás.
— Tudo bem, eu não deveria mesmo estar aqui. Mas tive
uma discussão horrível com Diana. Ela está mesmo grávida.
— Você é o pai do bebê?
Ele ri sem humor.
— Por que todo mundo acha isso?
— Acho que é o óbvio.
— Eu me lembraria se tivesse engravidado minha parceira.
Eu me viro, disposta a acabar com aquela conversa que já
está me desestabilizando.
— Vá embora, Dimitri.
Ele assente e aperta o botão do elevador.
Seu olhar captura o meu. Há tanta desolação ali que, de certa
forma, eu me reconheço nele.
Um dia, Dimitri e eu fomos tão próximos que um sabia o que
o outro estava pensando, mas quando seus pensamentos se
tornaram tão turvos quanto um oceano tempestuoso, me levando
junto para suas profundezas, eu consegui sair de lá para cair em
outra tempestade ainda mais perigosa.
E desde então eu vinha tentando apagar os resquícios que
deixou em mim.
— Você me odeia?
Eu não respondo.
— Eu senti sua falta, Kiara.
Ele se vira e entra no elevador.
***
Naquela manhã, Diana e Dimitri e toda a confusão da festa de
Alana são o assunto do momento. Não se fala em outra coisa entre
os patinadores.
Assim que cheguei ao ringue, Christian perguntou se eu
estava bem, disse que ficou muito preocupado comigo, que me ligou
depois, mas não atendi. Decido não contar que passei a noite na
casa de Nick, mesmo porque é um assunto espinhoso e se fosse
contar a Chris, teria que levar algum tempo e Nádia estava furiosa
com toda a falta de concentração. Ela ordenou que parássemos de
prestar atenção nas fofocas e fôssemos trabalhar em nossos edge
jumps, que são os saltos sem a ajuda dos toepicks, como axel, loop
e salchow.
E já estamos no gelo por algumas horas quando noto a
presença de Nick nas arquibancadas.
Meu coração dá um salto, maior que aqueles que estou
treinando com Chris, mas desvio o olhar, sentindo um misto de
sensações desencontradas.
Toda vez que vejo Nick é como se uma chavinha fosse
acionada dentro de mim, ligando um interruptor e iluminando tudo.
Esquentando tudo.
Mas não consigo me esquecer do beijo e de como ele me
afastou.
E do olhar de dor enquanto contemplava a foto da esposa
morta.
Nick de Santi é apaixonado por outra mulher e as palavras
cheias de maldade de Claudia fizeram sentido pra mim. Nick não
está interessado em mim, ele ainda sofre pela perda da esposa. E
se eu continuar me deixando levar pelo que ele me faz sentir, vou
cair e quebrar a cara no chão.
E não sei se terei forças para me reerguer.
Sou como uma escultura de gelo, frágil e delicada, suscetível
à ruptura ao menor descuido de manuseio.
Só que Nick não faz ideia.
Para ele, é apenas uma transação comercial, pra mim, o
despertar de um longo sono que dura anos.
— Por hoje é só! — Nádia dá o treino por encerrado.
Eu e Chris seguimos para o vestiário.
— Nick de Santi está aí — ele diz estudando minha reação.
Eu me viro pra ele.
— Chris, será que pode me fazer um grande favor?
— O quê?
— Nick tem esse projeto que precisa ficar na minha cola por
um tempo, para elaborar a campanha, mas não quero ficar sozinha
com ele.
Os olhos de Chris se apertam em alerta.
— O que ele fez?
— Nada.
— Está com medo de ficar com ele? Se esse cara fez alguma
coisa...
— Na verdade, a questão é justamente o contrário disso.
— Como assim?
— Podemos conversar depois? Eu vou me vestir, tenho uma
sessão de fotos, acho que Nick virá junto e quero saber se pode vir
também.
— Claro, tinha musculação, mas cancelo.
— Você pode ficar com a gente o tempo todo?
— Se isso te deixa segura, sim.
Eu sorrio, agradecida.
— Obrigada. Vou me trocar e nos encontramos lá fora.
Estou mais tranquila quando entro no vestiário, com essa
solução.
Não quero mais ficar sozinha com Nick, não por medo dele,
mas por medo de mim mesma. Com Chris por perto, não ficarei o
tempo todo vulnerável.
Estou acabando de me vestir quando Diana entra no
vestiário.
Ela parece pálida e descomposta, enquanto abre um dos
armários e começa a tirar suas coisas.
— Oi, Diana, tudo bem?
Ela força um sorriso, sentando no banco e começando a
arrumar a bolsa.
— Vai demorar um pouco pra eu ficar bem.
Eu me sento à sua frente.
— Eu sinto muito...
Mordo os lábios, hesitando em entrar no assunto delicado.
— Você vai... fazer um aborto?
Ela me encara e sacode a cabeça em negativa.
E isso me surpreende.
— Estamos chegando às Olimpíadas de Inverno. Se você
mantiver a gravidez...
— Eu sei, mas não vou fazer isso. Não posso.
Ela se levanta, levando sua mochila.
— Vai desistir?
— Devia ficar feliz. Uma a menos para concorrer contigo.
— Então estão mesmo fora?
— Sim.
— E Dimitri, o que acha disso?
— Dimitri está puto comigo. Talvez ele me odeie tanto quanto
odeia você agora. Talvez tenha alguma maldição sobre ele que faz
suas parceiras o abandonarem.
— Como pode desistir de uma Olimpíada? — enquanto
questiono aquilo, escuto a voz da minha mãe na minha cabeça, me
questionando algo parecido.
— Como pode alguém se livrar de um bebê? — Diana
devolve se levantando e saindo do vestiário.
Deixando-me sozinha com meus fantasmas.
Quando saio do centro, Chris está conversando com Nick.
— Olá, Nick, tudo bem? — Eu me aproximo, tentando
demonstrar uma descontração blasé.
— Sim, tudo bem.
Não consigo decifrar sua expressão.
Nick é mestre em esconder o que realmente está pensando e
sentindo.
— Contei a Nick que você tem uma sessão de fotos e que
vou acompanhá-la.
— Sim, isso mesmo. Você vem? — indago a Nick.
Quero que ele diga que não, mesmo sabendo que ficarei
decepcionada.
Mas ele assente.
— Certo.
Eu lhe falo o local das fotos, um estúdio não longe dali e me
afasto com Chris.
— Senti certa tensão no ar, ou foi impressão minha? — Chris
indaga quando entramos no meu carro. — Vai me contar o que rolou
ontem?
Suspiro, dando partida.
— Eu o beijei.
— O quê?
— Foi... um erro.
— Como assim? Como foi isso?
— Depois daquela confusão, ele me levou embora e eu
estava meio bêbada. Então ele me levou para a casa dele.
— Não me parece algo legal de se fazer.
— Não foi assim. Eu estava chorosa e me sentindo péssima
com tudo. E quando estávamos lá, acho que justamente por eu
estar bêbada, me deixei levar e o beijei.
— Ele te beijou de volta?
— Por um momento.
— E foi legal?
— Foi... incrível.
— Isso devia ser algo bom.
— Não quando ele me afastou e disse que não devia ter
acontecido. Então ele foi para o quarto dele e disse para eu ficar à
vontade para ir para o quarto de hóspede.
— Nossa, que banho de água fria.
— E hoje para completar, quando acordei a cunhada estava
lá e a filha dele.
— Nossa, ele tem uma filha?!
— Sim, ela estava na casa da tia, mas elas apareceram lá de
manhã. Eu me senti muito constrangida.
— Me deixa adivinhar, a filha dele te odiou porque tem ciúme
das namoradas do pai.
— Primeiro que não sou a namorada do Nick e nem sei se ele
tem namoradas. E a menina foi legal comigo. Ficou me chamando
de patinadora.
Chris ri.
— Mas quem me tratou muito mal foi a tal de Claudia, a irmã
da esposa do Nick.
— Sério?
— Sim, ela foi horrível, me destratou e fez com que eu me
sentisse uma vadia, que estava ali para dormir com o Nick.
— Bem que você queria.
— Para, Chris.
— Desculpa. — Ele ri.
Estaciono em frente ao estúdio e damos a conversa por
encerrada.
Quando entramos, noto que Nick já está ali, provavelmente
veio mais rápido porque está de moto e para minha consternação,
ele está conversando com a minha mãe.
— Aí está ela. — Mamãe me mede de forma crítica como
sempre e não gosta nada quando vê Chris ao meu lado. — E você
está fazendo o que aqui?
— Eu vim com a Kiara, queria ver como seriam as fotos. —
Chris sorri descontraído.
— Kiara, vá se vestir. Eu trouxe alguns collants, como
pediram, não sei qual vão escolher.
Eu me afasto, a produtora me acompanha para o camarim,
onde experimento alguns trajes que usei nas últimas apresentações,
até que ela escolhe um branco com prateado.
Fazem minha maquiagem e cabelo e quando saio todo o
cenário está montado para as fotos e o fotógrafo se apresenta
pedindo que eu fique à vontade e faça algumas poses típicas dos
passos de patinação.
Com minha visão periférica, noto que Nick está ali, ao lado de
Chris e da minha mãe, e me sinto constrangida em estar usando
aquele collant. O que é ridículo, já que eu uso aquele traje o tempo
todo. Porém, saber que Nick está de olho em mim, me deixa
inquieta e muito consciente dos meus movimentos.
A sessão dura algumas horas e quando termina eu me
apresso em me vestir e mamãe me acompanha enquanto me troco.
— Não entendi porque trouxe o Chris.
— Por que não?
— Você precisa dar atenção a Nick de Santi.
— Mas ele está aqui, não?
— Ele comentou que gostaria de conversar com você depois
da sessão, sugeriu te levar até a fábrica de motos, para que
conhecesse, mas Chris disse que você já se comprometeu em ir
com ele até o hospital visitar Tyler Chan.
Hum, eu não sabia de nada daquilo, mas acredito que Chris
deduziu que eu não queria mais estar com Nick hoje e avisou que
iríamos ao hospital visitar Tyler.
— Sim, não sei se ficou sabendo da confusão ontem.
— Sim, Nádia me contou.
Minha mãe falava com Nádia todo dia, para perguntar como
estavam indo meus treinos, quando ela mesma não aparecia no
centro para me acompanhar.
— Foi horrível.
— E eu não gostei nada de saber que estava lá. Quem te deu
permissão para ir a uma festa no meio da semana?
— Era aniversário da Alana.
— Aquela menina malcriada e invejosa! Vocês nem são
amigas.
— Eu sei, mas...
— E já sei que foi ela quem começou a confusão.
— Na verdade, foi Dimitri.
— Ah, tinha que ser. Não deve se envolver com essa gente,
Kiara. Quantas vezes tenho que dizer? Você não tem amigos, tem
concorrentes!
— Mãe...
Ela arruma meus trajes no cabide, colocando-os nas bolsas.
— E agora veja só! Tyler provavelmente não vai mais
competir.
— Não deve ter sido tão sério assim. — Eu me sento em
frente ao espelho para tirar o penteado elaborado do meu cabelo.
— E aquela menina, Diana Colombo, parece que também
não.
— Ela vai ter o bebê. — Eu fixo o olhar na figura da minha
mãe atrás de mim. Ela se vira devagar me encarando com seus
olhos frios.
— Ela é uma tola.
— Ela é corajosa...
— Corajosa? Acabar com a carreira assim?
— Ela ainda pode voltar depois que tiver o bebê.
— Não seja ingênua! Diana tem 28 anos. Acabou para ela.
Ainda mais agora que abandonou o parceiro há pouco tempo das
competições olímpicas.
— Eu também abandonei meu parceiro.
— Vai mesmo comparar? São situações diferentes...
Não tão diferentes assim...
— Mas você se refez — minha mãe continua —, era jovem e
continuou competindo, voltou melhor do que nunca e embora eu
tenha minhas restrições quanto ao Christian Jackson, não posso
negar que vocês têm uma ótima conexão e a dupla funciona. Você
foi medalhista mundial e agora será olímpica! E o que Diana vai ter?
Um bebê chorão que lhe dará trabalho pelo resto da vida.
— Você se arrepende?
— O quê?
— De ter ficado comigo? — indago baixinho.
Ela desvia o olhar, as mãos ocupadas em ajeitar os cabides.
— Algumas vezes eu me arrependi sim.
Ouvir aquilo dói.
Eu sabia que minha mãe era modelo antes de engravidar de
mim. Que ela e meu pai não esperavam que eu aparecesse. E que
foi papai quem insistiu para que eles se casassem. Logo depois, os
dois se mudaram para o interior, onde papai dava aulas e minha
mãe virou dona de casa, cuidando de mim.
Até que ela me viu patinando e decidiu que eu seria uma
estrela do gelo.
E a partir daí, nada tinha mais importância para Maude
Willians do que este sonho.
— Mas olhe pra você. É uma estrela. — Ela sorri. — Tenho
orgulho de você, Kiara. E vai continuar me dando orgulho.
Eu me pergunto, quando desvio o olhar, pegando minha bolsa
para ir embora, se ela sentiria orgulho de mim se eu tivesse virado
as costas para a patinação.
Quando saímos, Nick não está mais ali e sinto certa
decepção.
— Onde está Nick? — indago a Christian.
— Ele teve que ir, já que vamos ao hospital.
Minha mãe se despede e eu e Chris vamos para o carro.
— Como Tyler está? — questiono a caminho do hospital.
— Não sei direito, mas Alana está muito nervosa.
— Alana, falou com ela?
— Sim, eu liguei pra ela pra saber sobre Tyler. Ela está
enlouquecida com a possibilidade de ele não ficar bom a tempo de
competir.
— Nossa.
Nós chegamos ao hospital e Tyler parece pálido sobre os
lençóis, com o pé engessado.
— E aí, como você está? — Chris pergunta.
— Não muito bem, como pode ver.
— E já tem uma ideia de quando voltará a treinar?
Ele sorri tristemente.
— Provavelmente daqui a uns seis meses.
— O quê? — eu e Chris indagamos ao mesmo tempo.
— Sim, estou fora dos jogos olímpicos.
— Nossa, sinto muito... — murmuro, chocada.
Eu gosto muito de Tyler e é uma pena que isso tenha
acontecido com ele.
De repente, meu celular toca e eu vejo o nome de Nick
piscando.
Eu peço licença para atender e saio do quarto, tentando
conter as batidas bobas do meu coração.
— Alô?
— Oi, Kiara, é o Nick.
— Oi...
— Amanhã agendei uma visita à fábrica De Santi para você,
tudo bem?
— Sim, claro.
— Você está bem? — Sua voz é hesitante e parece
preocupada.
— Sim, estou ótima. — Imprimo uma animação que estou
longe de sentir.
Ainda mais quando me viro e vejo Alana se aproximando com
cara de poucos amigos.
— Então, nos vemos amanhã? — Dou a chamada por
encerrada.
— Sim, até amanhã.
Eu desligo e Alana está na minha frente.
— Que porra está fazendo aqui? Veio rir da nossa cara?
— Claro que não! Viemos ver como Tyler está. Estou muito
triste por ele não poder mais competir.
— Eu duvido. Você e a bruxa da sua mãe devem estar rindo!
Mas pelo menos o idiota do Dimitri também não vai mais, já que a
Diana vai ter o bebê, pelo que fiquei sabendo.
— Sim, fiquei sabendo também. É tudo muito triste.
— Triste para uns, felicidade para outros!
Ela entra no quarto e Christian aparece.
— Vamos?
— Que triste, não é? — comento quando entramos no carro.
— Tyler está arrasado.
— Eu imagino.
— E Alana está puta e nem dá pra não concordar com ela.
Também ficaríamos se algo nos impedisse de competir agora.
— Sim. Amanhã à tarde vamos à fábrica De Santi. Nem ouse
marcar outro compromisso. Vai comigo!
— Claro que sim. Parece que agora seremos irmãos
siameses. — Ele sorri. — E que tal ir jantar lá em casa hoje?
— Amo a comida da sua mãe, aceito o convite.
Ficar com a família de Christian seria bom para me distrair
dos meus problemas.
Quando chegamos à casa dele, Trevor está lá com o pai de
Chris.
Trevor é um cara bonito, alto e forte, com cabelos escuros e
sorriso largo.
— Olha só se não é o casalzinho de ouro — ele nos
cumprimenta.
— Oi, Trevor.
— Cadê a Fiona e o Asher? — Chris pergunta sobre a
cunhada e o sobrinho.
— Asher está tirando uma soneca. Fiona está na cozinha
ajudando a mamãe com a comida. Sabe como é, coisa de mulheres.
— Cozinhar não é só coisa de mulheres. — Não consigo
evitar comentar. O machismo do irmão de Chris me irrita muito.
— Claro, patinar no gelo também, é o que vocês dizem... —
ele continua rindo e joga uma almofada em Chris, que está fazendo
cara feia, embora nunca tenha coragem de parar as brincadeiras
idiotas de Trevor. — Ei, não te chamei de bichinha!
— Filho, pare de brincadeira boba — Roger o interrompe. —
Christian não é gay e nem patinação artística é esporte só de
mulheres, não é filho?
— Claro que não, já disse muitas vezes para esse cretino —
Chris comenta ignorando o papo sobre sexualidade.
Isso me deixa muito irritada, como sempre.
A família de Christian é conservadora e preconceituosa. Eles
jamais o aceitariam se ele contasse a verdade a eles. Por isso
adoram acreditar que nós dois estamos juntos.
— Aposto que o Chris só patina pra poder pegar nas
patinadoras gostosas — Trevor comenta e ele e o pai riem.
Chris se joga em cima do irmão, os dois começando uma luta
boba de macho.
Até que o pai os manda pararem.
— Pare de pegar no pé do seu irmão — pede a Trevor. —
Veja Andrey Ivanov. Foi uma lenda. Christian será como ele, não é
filho? Se chegar a um décimo do que foi Andrey, estarei feliz!
Eu disfarço uma careta de asco quando citam Andrey, o pai
de Dimitri.
— Vamos comer? — A mãe de Chris entra na sala
interrompendo a conversa e todos seguimos para a cozinha.

***
Na manhã seguinte, nós treinamos ainda com a fofoca sobre
Dimitri e Diana correndo solta. Só que agora se somou a isso o
acidente de Tyler, que o impedirá de competir.
E quando terminam os treinos, eu não me surpreendo ao ver
Nick de Santi.
Chris confirmou que vai nos acompanhar e eu agradeço muito
por isso.
Preciso me livrar do que sinto por Nick urgentemente e é só
no que penso quando saímos do complexo esportivo e ele está lá
nos esperando.
— Vou adorar conhecer a fábrica De Santi — Chris diz
animado.
Nick parece confuso por um instante, mas não diz nada
quando eu comento que chamei Chris para ir conosco.
E quando seu olhar se fixa no meu, percebo que ele entendeu
minha jogada.
Nick sabe que estou evitando ficar sozinha com ele depois do
que aconteceu em sua casa naquela noite.
Por um momento eu aguardo sua reação. Acho que uma
parte de mim deseja que exija que Chris se afaste, mas em vez
disso ele apenas concorda.
— Tudo bem. Será bom ter Christian conosco. Acredito que
ele estará sempre a partir de agora, não é?
Eu aceno com a cabeça, meio decepcionada por Nick
concordar tão facilmente. Mas o que eu queria?
Nick devia estar aliviado por não ter que lidar comigo sozinho.

Assim, seguimos para a fábrica e é incrível conhecer como


são fabricadas motos como a de Nick. Ele parece orgulhoso
enquanto nos conduz pela linha de montagem e até Chris parece
animado, e no fim diz que quer aprender a andar de moto.
— Parece irado.
— Kiara morreu de medo — Nick comenta divertido.
E isso me deixa constrangida e surpresa, por ele lembrar e
por comentar com Chris sobre isso, em forma de brincadeira.
Nick é um cara sério e raramente eu o vejo sorrir, ou ser
descontraído.
Vê-lo assim só junta mais alguns arrepios aos outros que ele
me faz sentir.
Não quero que Nick seja um cara legal, porque já basta eu
me sentir atraída por sua beleza rústica. Não quero ficar derretida
porque ele é bonito por dentro também.

Assim, passam os dias.


Nick comparece a alguns treinos, fica me observando de
longe e tirando minha concentração.
Um dia, cheguei e ele estava conversando com Nádia.
Eu indaguei o que ele queria, e ela disse que Nick estava
perguntando sobre mim.
Eu fiquei surpresa, mas se pensar que ele estava “me
estudando” para fazer seu projeto, então não era tão surpreendente
assim.
Eu comparecia à sessão de fotos, entrevistas e vários
compromissos relacionados às competições, como ir escolher como
seria meu traje.
E Nick, como prometido, estava em alguns desses
compromissos. Só que agora, eu não desgrudava de Chris, e com a
aproximação dos jogos, ele realmente deveria estar comigo na
maioria dos compromissos, que englobavam nossa dupla. Mas
algumas vezes, ele não precisava estar junto, como quando minha
mãe e minha equipe de assessoria de comunicação marcavam algo
para as redes sociais. Mesmo assim, eu fazia questão de mantê-lo
junto.
E Nick não parecia se importar. Ele parecia circunspecto e
interessado, mas de forma quase analítica. Como se eu fosse uma
nova moto que ele estava construindo e não uma pessoa.
Isso me irritava porque enquanto os dias se transformavam
em semanas, eu acordava todos os dias pensando em que
momento eu iria vislumbrar sua figura atraente nas arquibancadas,
tirando um pouco do meu sossego e fazendo meu ventre se apertar
numa expectativa proibida. E ia dormir fantasiando com o único
momento em que seus lábios estariam sobre os meus.
E comecei a achar que aquela atração em vez de se esvair
estava crescendo como um incêndio numa floresta seca.
Sem controle e sem que eu soubesse como apagar.
Eu e Christian intensificamos os treinos, começando a ensaiar
nosso programa e as fofocas sobre Dimitri, Diana, Tyler e Alana
diminuíram. Mas fomos surpreendidos numa tarde quando ficamos
sabendo que Dimitri e Alana estavam treinando juntos.
— O quê? — Eu encaro Molly, a portadora da notícia bizarra.
— Pois é, está todo mundo passado!
— Mas eles se odeiam! — balbucio.
Nem consigo imaginar Dimitri e Alana juntos sem se
matarem.
— Sim, concordo com você, mas parece que foi a única
maneira que acharam de tentar competir agora.
— Isso é loucura, não dá tempo de se entrosar — Chriz diz e
tenho que concordar com ele.
Molly se afasta e eu e Chris nos encaramos chocados.
— Acha que é sério isso?
— Alana e Dimitri são as pessoas mais difíceis que conheço,
mas também são as mais obcecadas. Se eles não se matarem,
antes, talvez dê certo — ele diz. — Acabamos por hoje? — indaga
a Nádia.
— Sim, terão o fim de semana de folga, mas segunda-feira
aqui, sem falta. Aí, chega de folga. Vamos direto até estar tudo
perfeito. Não temos tempo a perder.
— Hoje seu chefe Nick de Santi não veio te vigiar? —
Christian brinca quando estamos indo para o vestiário.
Mordo os lábios, contrariada. Por mais que eu tente, não
consigo ficar aliviada quando Nick não aparece.
Muito pelo contrário.
— Hoje eu tenho que ir até a De Santi. Recebi uma
mensagem de uma pessoa chamada Jade Harry, diretora de
Marketing, marcando uma reunião com eles. Daqui a uma hora.
Não quero pensar que aquela reunião será pra dizer que o
projeto entrou em outra fase e agora Nick não terá mais que ficar na
minha cola.
Deveria ficar feliz, mas só sinto decepção.
— Você vem, né?
— Desculpa, mas hoje não vai dar. Tenho uma consulta no
fisioterapeuta, sobre aquela dor na panturrilha.
— Tudo bem... Acho que Nick nem estará lá.
— Olha, Kiara, Nick parece ser um cara legal.
— Nunca disse que ele não era.
— Conversamos muito sobre você.
— Como é que é?
— Oras, acho que sabia. Ele não quer saber tudo sobre
você?
— E o que ele pergunta?
— Sobre nossa história juntos, como eu a vejo.
— E o que diz?
— Que você é a pessoa mais maravilhosa do mundo.
Eu rolo os olhos.
— Bobo!

Quando eu chego a De Santi, sou recebida por uma equipe


dirigida por Jade, uma mulher de trinta e poucos anos muito
simpática e direta.
Ela mostra alguns modelos desenhados, croquis de roupas
esportivas e parece tudo muito bonito.
— Lembram muito as roupas que eu uso para treinar.
— Sim, Nick as desenhou baseando-se em você.
— Ah... Não sabia que Nick desenhava.
— Ele desenha tudo o que quiser. Inclusive alguns modelos
de motos. É um cara talentoso. Peça qualquer coisa para ele, que
ele aprende e faz. Enfim, até as cores são baseadas nos collants
que usa para apresentações. A linha ficará incrível.
— Então... Acabou a minha parte, digamos assim?
— Agora estamos na fase de criação, mas ainda temos um
longo caminho. Mas Nick te manterá informada.
— Claro.
Quando saio da reunião, já anoiteceu.
Olho para o céu escuro e sinto-me triste.
Entro no carro e dou partida.
Será que Nick estava na De Santi e não quis me encontrar
deliberadamente?
Em vez de dirigir de volta para casa volto ao centro esportivo.
Não quero ir pra casa ficar sozinha.
Hoje, preciso fazer a única coisa que parece que eu nasci pra
fazer.
Patinar.
Eu me aproximo do ringue e sento, calçando meus patins.
Olho para o local vazio. Gelado.
Pego o celular e sem pensar muito no que estou fazendo eu
me vejo ligando para Nick.
A chamada demora alguns instantes, até que escuto a voz
máscula.
— Kiara?
— Oi... — Agora que ele atendeu não sei o que dizer.
— Tudo bem? Algum problema?
— Problema? Diga-me você.
— O que quer dizer?
— Você não estava na reunião na De Santi hoje. — Há
queixa na minha voz e eu odeio, mas não consigo evitar.
Quem sou eu para cobrar qualquer coisa de Nick?
— Não precisam de mim lá.
Mas eu preciso, isso conta? — Quero sussurrar, mas me calo.
— Está tudo bem? — ele insiste. — Onde você está?
— No centro.
— A essa hora?
— É bom patinar sozinha, à noite. Me ajuda a me livrar dos
meus demônios.
— Que demônios, Kiara?
— Queria te mostrar alguns deles...
— Não deveria ficar aí sozinha. Eu vou te buscar, ok?
E sem mais, ele desliga.
Fico ali olhando para o aparelho, ele disse mesmo que ia vir
me buscar?
Talvez eu tenha ouvido direito. Talvez eu já esteja delirando.
Tiro as proteções de plástico e entro no gelo, começando a
deslizar.
Não sei quanto tempo se passa, talvez apenas alguns
minutos quando escuto passos se aproximando e vejo Nick.
Todo vestido de preto, como um anjo caído.
— Você está aqui...
— Eu disse que estava vindo te buscar.
— Não quero ir agora, quero patinar. Eu preciso me lembrar
porque estou aqui.
— Eu não vou embora.
— Então talvez deva patinar comigo? Tem coragem?
Aponto para uma caixa cheia de patins ao lado do ringue.
Ele parece que vai declinar, eu me viro e deslizo no gelo até
escutar o barulho de outros patins atrás de mim e me viro para ver
Nick patinando na minha direção.
Capítulo 11

Eu o observo, surpresa.
— Sabe patinar?
— Não como você.
Ele desliza facilmente pelo gelo à minha volta.
Tenho a impressão que Nick é um desses caras capazes de
fazer qualquer coisa.
— Acho que ninguém patina como você.
— Como sabe? Não entende nada de patinação.
— Como sabe que não entendo?
— Entende?
— Tem razão, não faço ideia do porque de todos os
movimentos e saltos. Apenas admiro como são belos.
— Bem, talvez eu possa te explicar alguns, vamos ver. Isso é
um camel spin. — Eu giro com meu torso e a perna livre,
perpendiculares formando um T.
Volto em posição normal.
— Existem muitos tipos de spin. Camel, layback, sit...
Faço outro elemento girando em um pé só, com minhas
costas arqueadas para trás.
— Isso é um layback spin.
E deslizo pelo gelo, fazendo um double axel perfeito.
— E isso é um double axel. O axel é considerado o salto com
maior dificuldade técnica entre os seis tipos de salto da patinação
artística.
— Você faz parecer muito fácil.
— É fácil pra mim. — Sorrio.
— Você é mesmo incrível, Kiara.
Meu peito expande com um elogio que já ouvi tantas vezes,
mas vindo dele tem um sabor diferente.
— Muitos patinadores são incríveis.
— Imagino que sim, mas eu tenho observado você. A
maneira que se move com Christian, a conexão e a confiança que
tem um no outro é surreal. Não havia essa conexão com Diana e
Dimitri, por exemplo.
Não gosto quando ele cita Dimitri.
— Você tinha essa conexão com Dimitri?
— Eu acreditava que sim...
— Por que parou de patinar com ele?
Eu não respondo.
Deslizo para longe, girando, saltando e realizando vários
elementos até ficar cansada. Sei que Nick está ali me observando e
toda vez que nossos olhares se encontram, ele parece estar
esperando que eu exploda a qualquer momento.
Não sei quantas vezes circulei, perdendo o fôlego e já
sentindo meus músculos sem aquecimento adequado reclamando.
— Você deveria parar agora.
Escuto sua voz mais perto do que imaginava quando caio
pela primeira vez. Abro os olhos para ver Nick pairando sobre mim,
com a mão estendida.
Eu a seguro, sentindo sua palma quente contra a minha, fria,
e ele me puxa me erguendo e me tirando do chão. Nossos olhares
se encontram e respiro com dificuldade, não por causa do exercício,
mas pela intensidade do olhar dele.
Nick não faz nenhum movimento para sua mão soltar a minha
e me surpreendo quando o sinto segurando minha outra mão,
nossos dedos se entrelaçando devagar.
A energia que sempre sinto quando ele está perto me envolve
como um choque elétrico, me aquecendo de fora para dentro,
derrubando minhas defesas. Ainda estamos deslizando devagar, ele
me empurrando delicadamente pelo gelo, nossos olhares presos um
no outro.
— Você disse que não gosta que te toquem, mas confia em
Chris.
— Eu demorei um pouco para confiar nele.
— Por quê?
— Porque tinha medo que me machucasse... — sussurro.
— Não tem medo de mim? — Sua voz sai baixa e rouca e
arranha meu ventre.
Sem resistir, dou um passo à frente, nos forçando em direção
contrária, mas não sem antes nossos corpos estarem roçando. O
calor que emana do corpo dele derrete o meu.
— Eu tenho medo que nunca mais me toque... — confesso
fechando os olhos e encostando a testa em seu queixo.
Seus dedos acariciam os meus, enviando arrepios para todas
as minhas terminações nervosas. Sinto seus lábios em minha
têmpora e suspiro me deixando levar ainda mais para perto dele,
nosso ritmo aumentando.
Levanto a cabeça, mergulhando em seu olhar âmbar que me
tira o fôlego.
— Acabou? — indago baixinho.
— Acabou o quê?
— Sua pesquisa sobre mim.
Ele acena positivamente confirmando o que eu já
desconfiava.
— E acha que agora sabe tudo sobre mim?
— Não.
— E ainda quer saber?
— Você disse que ia me mostrar seus demônios.
— Eles estão aqui... — sussurro.
— Aqui?...
Aceno positivamente, incapaz de falar. Fragmentos de
lembranças ruins escapando daquele lugar escondido onde as
mantenho trancadas, e me deixando fraca e indefesa.
— Kiara?...
Escuto a voz de Nick como se vinda de muito longe e percebo
que cruzei aquela linha tênue entre a realidade presente e o horror
do passado, sendo tragada para um lugar onde só havia medo e
desolação.
Meus olhos turvos demoram um instante para focalizar o
rosto bonito de Nick.
— O que aconteceu com você?...
Sua pergunta me faz recuar, soltando nossos dedos
entrelaçados.
Sacudo a cabeça em negativa, lutando para respirar.
Dou-lhe as costas e saio da pista, nem paro para colocar as
proteções da lâmina, fujo para o vestiário e quando chego lá, sento
no banco de madeira e escondo o rosto entre as mãos, os soluços
rompendo meu peito.
Sinto raiva por ainda deixar aquilo me afetar tanto.
Sinto medo de nunca mais conseguir ser eu mesma.
— Kiara?
A voz de Nick interrompe meu choro e eu me levanto,
enxugando as lágrimas com raiva, enquanto fico de costas pra ele,
como se ainda fosse possível esconder minha dor.
— Devia ir embora.
— Eu não vou a lugar nenhum.
— Por favor, Nick...
— Eu não vou sair daqui sem você — insiste com uma voz
firme.
Eu me seguro na pia, voltando a chorar.
Imagino que Nick vai cansar do meu surto e vai dar o fora.
Mas quando levanto o olhar para o espelho, ele ainda está ali.
— Não vou deixá-la sozinha assim — afirma cruzando os
braços enquanto se senta no banco.
Reparo que ele tirou os patins.
— Não vou pôr a mão em você. Não vou fazer nada que não
queira. Vou apenas esperar que se recomponha e venha comigo.
— Ir com você?
— Eu a levarei para casa.
— Acha que valeu a pena?
— O quê?
— Acho que já percebeu que não tenho nada inspirador. É
apenas ilusão e gelo.
— Está enganada.
Eu me viro, com raiva no olhar.
— Quer mesmo saber o que me deixou assim? — As
palavras saem estranguladas da minha garganta. — Eu fui
violentada. Aqui... — Engasgo com a dor. A lembrança. A raiva. —
Neste mesmo lugar e tudo o que eu queria era esquecer que aquilo
aconteceu, mas as lembranças nunca vão embora. Nem terapia,
nem voltar a patinar, nem lutar com todas as minhas forças faz eu
esquecer que algo precioso foi tirado de mim. E então, você me tirou
do gelo, me tocou e eu senti, por um ínfimo segundo, que eu ainda
estava viva. Que eu ainda podia sentir e desejar o toque de alguém.
Deslizo para o banco e me deixo cair ao seu lado, respirando
com dificuldade.
— Sinto muito. — A voz de Nick chega junto com a sua mão,
que segura a minha sobre o banco.
Eu não a afasto. Como afastar o único toque que eu desejei
em muito tempo?
E é isso que mais dói.
Olho para sua mão morena sobre a minha e levanto o olhar
para seu rosto. Por um momento apenas respiramos. E então ele
levanta a outra mão e toca minha bochecha, enxuga minhas
lágrimas.
Suspiro com seu toque, porque não consigo evitar.
Estou quebrada em mil pedaços e quando Nick me toca é
como se fosse capaz de juntar todos os pedaços no lugar. Tenho
certeza que meus anseios estão claros como água cristalina em
meu olhar.
E escuto um som vindo do fundo de sua garganta quando ele
se inclina e me beija, os lábios deslizando com avidez sobre os
meus.
Solto um gemido confuso, ansioso e deslumbrado, mas Nick
se afasta do mesmo jeito que se aproximou. Abro os olhos,
resfolegando e ele está me encarando com um olhar intenso que é
um espelho do meu e faz tudo estremecer em mim.
— Me desculpe — diz, mas os dedos ainda estão no meu
rosto e ele ofega como eu.
— Não, não peça desculpas. Tudo o que tenho são
lembranças ruins deste lugar. Por favor, quero apagá-las da minha
cabeça. Quero substituir todas as memórias de algo que não
escolhi, por isso... por você me tocando, porque eu quero. Porque é
tudo o que eu quero...
Com um gemido rouco, ele captura meus lábios de novo.
Desta vez, sem freios, sem amarras. Apenas o desejo nos
consumindo e nos guiando.
Meu corpo inteiro se eletriza e derrete ao mesmo tempo. As
sensações explodem em minha pele com uma força assustadora. E
de repente sou puro instinto. Eu me ergo. Nick abre os olhos,
brilhando de um desejo feroz.
E eu perco o ar por um instante, apenas apreciando aquele
homem maravilhoso sentado à minha espera. E eu vou a seu
encontro, deslizando para o colo dele, ainda de patins, e nós dois
gememos quando nossos quadris colapsam. Meu ventre é sugado
por um prazer agudo e avassalador e segurando sua cabeça, abaixo
meus lábios para os dele de novo, devorando-os com vontade,
nossas línguas se encontrando e se entrelaçando numa dança
selvagem enquanto esfrego meus quadris nos dele, ansiando por
aplacar aquela dor que pulsa em meio às minhas coxas. E meu
interior derrete quando sinto sua ereção ali roçando em mim através
das camadas de roupas. E mordo seus lábios, enfio os dedos em
seus cabelos escuros e me deixo levar por aquele desejo alucinante
e inédito.
É isso.
Isso que eu quero.
Que eu preciso.
Não há nada mais na minha mente. Nem passado, nem
presente, nem futuro.
Estou flutuando em uma onda de calor incandescente,
deixando-me guiar por meus mais profundos desejos que voltam à
vida depois de um longo inverno.
E tem tudo a ver com este homem. Este cara que me beija de
volta com urgência, mas não está me tocando.
Levanto a cabeça, encarando-o ofegante e confusa, para me
dar conta de que suas mãos estão longe de mim.
E então eu entendo.
E acho que me apaixono por Nick naquele momento. Quando
ele não faz um movimento para não me amedrontar, mesmo quando
ele está tão excitado quanto eu.
— Não quero assustá-la.
— Não está me assustando.
— Você já esteve com um homem assim? — Sua voz baixa e
ríspida de desejo faz meu estômago palpitar.
Sacudo a cabeça em negativa. Rubor aquece minhas
bochechas.
— O que você quer de mim, Kiara?
— Ponha suas mãos em mim — exijo baixinho. — Eu preciso
sentir suas mãos em mim.
E sem desviar o olhar do meu, ele levanta uma mão e seus
dedos tocam meu rosto, meus lábios entreabertos e ainda úmidos
dos seus beijos, e sem pensar no que estou fazendo obedeço meu
desejo e os capturo para dentro da minha boca, sentindo o gosto
salgado da sua pele. Os olhos de Nick escurecem de desejo.
E sua outra mão encontra meu quadril me apertando contra
sua ereção ainda maior agora.
Mas isso não me assusta. Muito pelo contrário, faz meus
músculos internos se contraírem de vontade de saber como seria
senti-lo dentro de mim.
— Onde você quer que eu a toque? — indaga roucamente.
Eu pego sua mão e a levo até o cós da minha calça,
respirando com dificuldade em expectativa.
E sem precisar pedir mais, Nick infiltra a mão na minha calça
e na minha calcinha.
Solto um gritinho de susto e prazer, perdendo o ar.
Ele segura meu olhar.
— É isso que você quer?
Seus dedos encontram meu clitóris que pulsa com mais
intensidade.
— Sim... — Exalo o ar com força.
— Você quer que eu te dê um orgasmo?
Oh Deus... A voz dele é como açoite em meu íntimo.
Fecho os olhos e minha cabeça cai para trás, meus olhos
revirando quando Nick me acaricia lentamente, perversamente, dois
dedos deslizando para dentro de mim.
— Ah sim... — Ofego movendo meus quadris, buscando atrito
e gemendo alto quando consigo todo meu corpo concentrado
naquele ponto onde Nick acaricia.
Sinto seus lábios quentes em meu queixo, em meu pescoço,
a barba roçando em minha garganta e elevando os arrepios em
minha pele e eu só consigo gemer e me mover, perdida nas
sensações mais incríveis do mundo. Respirando Nick de Santi.
Até que as sensações explodem em meu ventre e eu me
desmancho contra seus dedos, gemendo alto e me segurando nele
na queda infinita que é meu orgasmo.
Volto à Terra ainda sem ar, ainda perdida e confusa com o
que acabou de rolar ali.
Abro os olhos e Nick está me encarando com aquele seu
olhar intenso, que está se transformando em minha kriptonita.
— Tudo bem?
Sacudo a cabeça em afirmativa, porque não confio na minha
voz.
Estou desnorteada.
Fraca e feliz.
Acho que é assim que as pessoas se sentem quando
quebram uma maldição. Porque é como eu me sinto agora. Livre.
Muito vagamente, sinto que Nick está me colocando sentada
no banco e está se afastando.
— Posso te levar pra casa agora?
Sua voz um tanto distante esfria um pouco meu ânimo, mas
não o suficiente, quando ainda quase posso sentir sua mão em mim.
Sacudo a cabeça em afirmativa.
Ele se afasta do vestiário e eu respiro fundo me levantando.
Lavo meu rosto e olho minha imagem no espelho. Ainda estou
vermelha e um pouco ofegante.
Ainda pareço a mesma, mas sei que no fundo está tudo
diferente.
Volto ao ringue, pego meus patins e calço meus tênis.
Nick está na porta do centro me esperando.
Sinto-me meio sem graça agora sem saber como agir.
O que vai acontecer agora?
— Você está com seu carro? — ele indaga.
— Sim, estou.
— Eu vou te acompanhar até sua casa.
Assinto e entro no meu carro.
Nick entra no carro dele, não está de moto hoje, e sim
dirigindo o mesmo carro que foi me buscar no dia da festa de Alana.
Ainda estou meio flutuando em ondas de contentamento e
expectativa quando estaciono em frente a minha casa e Nick salta
comigo.
Quero convidá-lo para subir. Mas não sei se devo.
— O que vai acontecer agora? — sussurro, incerta.
Nick passa os dedos pelos cabelos, parece tão incerto como
eu.
— Quero conversar com você, mas acho que hoje
aconteceram coisas demais...
Eu tenho que concordar.
— Amanhã eu vou à casa do meu pai — eu me vejo dizendo.
— Fica perto de Whistler. Você quer vir comigo?
Talvez levar Nick para conhecer meu pai, não seja o mais
apropriado agora, mas eu simplesmente obedeço a vontade que eu
tenho de trazê-lo comigo.
— Amanhã estarei com minha filha.
Mordo os lábios, decepcionada.
Eu tinha esquecido completamente que Nick tem uma vida.
Uma filha.
Uma mulher morta.
Que ele ainda ama.
Jogo aqueles pensamentos que ameaçam me deprimir para o
fundo da mente.
— Você pode trazê-la. — Não sei de onde sai aquele convite,
mas se eu quero de alguma maneira manter Nick ali, preciso aceitar
sua vida além de mim. E isso inclui sua filha.
Isso é assustador pra mim. Mas mais assustador ainda é ver
Nick se afastar de vez.
— Tudo bem. — Nick concorda e eu abro um sorriso. —
Amanhã eu passo as 11 para te pegar?
— Sim, perfeito.
Ele se vira para entrar no carro, mas eu toco seu braço.
— Nick, nós... vamos falar sobre o que aconteceu, não é?
Ele hesita.
E então toca meu rosto. Seu toque é como injeção de vida em
minhas veias.
Está se tornando vital.
— Sim, nós vamos conversar, Kiara.
— Se eu pedisse para me beijar, você me beijaria?
Ele se inclina e beija minha testa.
Não é o beijo que eu esperava, mas não posso reclamar, pois
ele já se afasta e entra no carro.
Nick não pode voltar atrás.
Agora eu sei que ele me deseja também.
Não vou deixar aquilo escapar. Não agora que eu encontrei.
Eu já me escondi e fugi das minhas emoções por tempo
demais.
Capítulo 12

Estou um tanto nervosa quando recebo a mensagem de Nick


avisando que está chegando na manhã seguinte.
Confiro minha imagem no espelho e pego meu casaco, pois a
temperatura já caiu bastante e na cidade onde meu pai mora,
Squamish, é ainda mais frio, sendo nas montanhas.
Assim que chego à calçada, o carro de Nick está
estacionando e eu entro, sentando no banco de passageiro.
Como sempre, sua imagem causa um impacto em mim e eu
me pergunto se um dia me sentirei diferente, mas por enquanto só
consigo admirar como ele parece maravilhoso vestindo uma
camiseta branca e um cardigã de lã creme.
— Oi. — Sorrio, animada.
— Oi, Kiara.
A voz infantil vem do banco de trás e eu me viro para ver a
filha de Nick. Ela veste o mesmo casaco rosa que vestia outro dia e
os cabelos estão soltos emoldurando o rosto delicado.
— Olá... Mackenzie — eu a cumprimento, muito sem saber
como agir.
— A gente vai ver a neve hoje, não é papai? — ela comemora
quando Nick dá a partida.
— Sim, querida, nós vamos.
Reparo que a voz de Nick muda totalmente quando ele se
dirige à filha. Ele usa um tom doce e amoroso, que é inédito pra
mim.
Eu me pergunto se ele usava o mesmo tom para falar com
Claire.
Pensar em Claire tira um pouco do brilho de expectativa do
dia, mas eu tento não pensar nisso.
Não é como se Nick fosse casado e eu a outra.
“Ele disse que ainda a ama.”, uma voz intrometida desdenha
dentro de mim, mas tento ignorá-la.
Pegamos a estrada Highway 99. O caminho é lindo,
margeado por mar e montanha e Mackenzie enche o pai de
indagações infantis que Nick responde com toda paciência. Essa
interação me faz lembrar minha infância com meu pai e me deixa
nostálgica.
— Está quieta — Nick comenta em certa parte do caminho e
eu reparo que Mackenzie parou de tagarelar, pois adormeceu.
— Você parecia bem ocupado respondendo qual a
profundidade do mar para sua filha — comento divertida.
— Crianças são assim, e ela está naquela idade curiosa em
que acha que os pais sabem tudo.
— E você não sabe tudo?
— Eu gostaria, mas na maior parte do tempo tenho que
inventar ou recorrer ao Google.
— Você parece fazer o tipo pai legal.
— O que é um pai legal?
— É diferente dos pais autoritários, que estão sempre dando
bronca e mandando o filho manter a linha.
— E que tipo de pai foi o seu?
— Acho que ele foi como você. — Eu suspiro. — Sinto falta
dele.
— Você o visita bastante? Squamish não é longe de
Vancouver.
— Não tanto quanto gostaria, mas os treinos e tudo o mais
me mantêm ocupada.
— Você sempre parece muito ocupada.
— Sim, eu sempre estou ocupada.
— E você é feliz assim?
— O que quer dizer?
— Você é incrível na patinação, mas ela toma muito tempo da
sua vida.
— Se eu não me dedicasse como me dedico não seria tão
incrível assim.
— Você já abriu mão de muitas coisas por isso?
— E não é assim a vida? Uma sucessão de escolhas e
renúncias?
— Você está feliz com suas escolhas?
— Você está? — Eu viro a pergunta para ele e percebo que
Nick se surpreendeu, o perfil bonito ficando tenso.
— Sim, a maior parte do tempo.
— Você escolheu Claire em detrimento do motociclismo?
— Não foi assim. Eu comecei a competir muito jovem, nem
tinha 18 anos, e Claire surgiu na minha vida quando eu tinha 20. Ela
sabia que eu teria que partir constantemente. Mas também sabia
que eu sempre ia voltar. Por isso, nunca pediu que eu escolhesse
entre ela e as competições.
Eu me pergunto se agiria do mesmo jeito se estivesse no
lugar de Claire. Se teria a confiança de deixar um homem como Nick
ir.
E se fosse o contrário? Se eu me apaixonasse e tivesse que
escolher entre a patinação e este amor?
Em todas as vezes em que a patinação esteve de um lado da
balança contra qualquer outra coisa, eu escolhi a patinação.
Mas não sem arrependimentos que me marcariam para
sempre.
— E um dia, eu senti que era hora de parar, que eu tinha
conquistado tudo o que queria conquistar e podia voltar para ter o
meu "pra sempre".
Mas o "pra sempre" nunca veio, concluo com tristeza.
Sinto meus olhos marejados, por pensar na dor de Nick.
A dor de amar alguém que não existe mais.

Chegamos a Squamish na hora do almoço e está nevando,


Mackenzie está acordada e animada quando saltamos do carro em
frente à casa do meu pai.
E eu também me animo ao ver meu pai saindo da casa com
um sorriso largo.
— Finalmente lembrou que tem pai! — Ele me abraça forte e
eu aspiro seu cheiro único.
Papai é um homem alto e forte, na casa dos cinquenta anos
com fartos cabelos ainda pretos.
— Feliz aniversário, pai.
Ele se vira para Nick que segura a mão de Mackenzie.
— E este é seu convidado, suponho, Nick de Santi.
Eu havia ligado para meu pai ontem e avisado que traria Nick.
Não dei muitos detalhes, apenas contei a história sobre o patrocínio
e que ele estava me acompanhando em alguns lugares naquele
mês. O que não deixa de ser verdade.
Papai estende a mão e Nick o cumprimenta.
— Muito prazer, Ben Willians, pai dessa beldade olímpica e
quem é essa pequena? — Ele sorri para Mackenzie.
— Essa é minha filha Mackenzie — Nick responde e
Mackenzie acena um pouco tímida.
Mas papai, sendo um professor do ensino fundamental, adora
crianças.
— Olá, Mackenzie, que lindo nome!
Vamos entrar, antes que congelem.
Entramos na casa tirando nossos casacos e os pendurando
no hall de entrada.
Entrar na casa da minha infância sempre me deixa nostálgica
e com saudade de um tempo que não existe mais.
— Hoje nós comeremos um assado de carneiro — papai diz
orgulhoso —, mas ainda precisamos de alguns minutos de
cozimento.
Ele se vira para Mackenzie, que parece um tanto entediada
no meio dos adultos agora.
— E a senhorita gosta de livros?
— Eu gosto, sim. Ainda estou aprendendo a ler, mas meu pai
lê pra mim toda noite.
— E que tal conhecer uma biblioteca cheia de livros?
— O que é uma biblioteca, papai? — Ela se vira para o pai,
confusa.
— É tipo uma livraria — Nick responde divertido.
— Ah, eu sei o que é biblioteca.
— Então, eu tenho uma biblioteca, cheinha de livros, quer ir
ver?
— Eu quero! — Os olhos da menina se iluminam.
— Sim, venha comigo, senhorita.
Mackenzie acompanha meu pai para o andar de cima.
— Meu pai ama livros e como dá aula para crianças, tem
muitos livros infantis em sua biblioteca.
— Mackenzie vai amar. Ela adora que eu leia pra ela.
— Meu pai lia muito pra mim também.
— Imagino que ele foi um bom pai.
— Sim, o melhor.
— Ele sabe... O que aconteceu com você? — Nick indaga
com cuidado e eu me surpreendo por ele voltar a minha confissão
de ontem.
Sacudo a cabeça em negativa.
— Não. Só a minha mãe... Será que podemos não falar sobre
isso?
— Achei que íamos falar sobre...
— Eu quis dizer sobre o que aconteceu entre nós dois e não
sobre o meu passado que eu desejo esquecer — eu o corto.
Antes que Nick possa falar qualquer coisa, Mackenzie volta
correndo e se joga em seu colo.
— Olha o que eu ganhei!
Ela mostra a Nick um livro infantil com uma grande lagarta
verde na capa. Eu o reconheço. Porque era um dos meus preferidos
quando tinha a idade de Mackenzie.
— Não é legal? O papai da Kiara disse que era o preferido
dela. Vai ler pra mim?
— Claro que sim, querida. — Ele sorri para a menina.
Meu pai volta à cozinha e diz que o carneiro está pronto.
Nós nos sentamos pra comer e ele sabatina Nick sobre seu
trabalho, a De Santi e sua época como motociclista.
— Eu tive uma moto, Maude me fez vender.
— Sério, pai? Nem sabia disso.
— Faz muito tempo, antes de você nascer.
— Papai, posso patinar lá fora? O Ben disse que tem um lago
lá fora congelado!
— Você não tem patins, Mackenzie.
— Ainda temos vários patins de quando a Kiara era pequena
por aqui — papai responde.
Mackenzie pula de alegria enquanto meu pai vai buscar os
patins.
Nick me encara.
— Você patinaria com ela?
— Eu? — Sinto-me assustada.
— Acredito que é a pessoa mais indicada e Mackenzie está
pedindo por isso há um tempo.
Eu quero dizer não, mas Nick acharia que não quero ficar
perto da filha dele.
— Tudo bem.
Eu me levanto e vou até a lavanderia onde papai está com
Mackenzie. Ele calça na menina patins que lhe servem direitinho.
Pego um par pra mim e o calço.
E encaro Mackenzie apreensiva, mas sorrio para a menina.
— Vamos? — Estendo a mão e ela segura.
Saímos para a neve e eu a seguro firme para não se
desequilibrar até que chegamos ao lago e começamos a deslizar.
— Olha, estou conseguindo. — Ela sorri pra mim.
— Sim, muito bem!
Olho para trás, e Nick e meu pai estão juntos na varanda nos
observando.
— Me ensina a fazer aqueles giros, Kiara... — Mackenzie
pede e eu a atendo, começando a lhe explicar movimentos simples
e a segurando para que ela consiga fazer.
Mackenzie ri, mesmo quando cai e parece estar se divertindo
muito.
Em dado momento eu a solto, e ela desliza sozinha pelo gelo
se virando e acenando pra mim e sinto um vazio antigo se remexer
em meu peito, deixando-me triste.
— Acho que já chega. — eu a interrompo.
— Já? Vamos ficar mais!
— Eu acho que seu pai talvez já queira ir embora.
— Está bem.
Ela me dá a mão de novo e voltamos para a casa.
Assim que chegamos à varanda, solto sua mão e me afasto.
Entro na casa e me sento para tirar meus patins.
Meu pai se aproxima e senta ao meu lado.
Nick continua na varanda com Mackenzie.
— Está tudo bem?
— Sim está.
— Eu gostei do seu Nick.
— Pai, não é meu Nick. — Enrubesço.
— Mas tenho a impressão que você quer que seja.
Eu não consigo negar.
— É complicado.
— Ele me contou que é viúvo.
— Sim, ele é. — Não conto ao meu pai que Nick ainda não
superou a esposa.
— Querida, eu estou feliz por você. Sabe que nunca achei
saudável viver apenas para a patinação. Embora tenha orgulho de
você e do que conquistou. A vida é muito mais. E ela está
passando.
— Eu sei...
Meu pai não faz ideia do que aconteceu comigo há seis anos.
Minha mãe e eu concordamos que deveríamos manter
apenas entre nós. E eu não gostaria mesmo que alguém soubesse.
Meu pai ficaria arrasado e não tinha nada que ele pudesse fazer.
Além do mais, eu não queria que isso fosse motivo para mais uma
desavença entre Maude e ele.
— Então, se gosta deste homem, viva isso. Há muito mais na
vida do que competir.
Ele beija meus cabelos e Nick entra com a filha.
— Está pronta para ir, Kiara?
— Sim.
Eu me despeço do meu pai e entramos no carro.
Começa a nevar forte assim que entramos na estrada e Nick
se preocupa.
— Acho que devíamos ir para Whistler, é mais próximo. Tudo
bem?
— Sim, está ficando ruim a estrada mesmo...
— Talvez tenhamos que passar a noite lá. Você se importa?
Eu sinto arrepios na espinha de imaginar que estarei com
Nick na mesma casa em que nos conhecemos.
— Não, não me importo.
Chegamos a Whistler ainda com o dia claro e Mackenzie
continua dormindo. Nick a tira do carro e a leva para o quarto. Eu
fico esperando na sala até que ele volta.
— Ela brincou muito hoje, está cansada.
— Eu imagino.
— Você quer... beber um café, um chocolate? O que quer
fazer?
Mordo os lábios, hesitante.
Agora que estamos ali, praticamente sozinhos, já que
Mackenzie adormeceu, sinto-me ansiosa e inquieta.
Lembro das palavras do meu pai.
Viva isso.
Respiro, reunindo toda a coragem que disponho.
— Será que podemos... Usar a hidro?
Os olhos de Nick se franzem levemente em surpresa, mas em
seguida brilham de algo perigoso que devasta meu ventre.
— Acho que não há problema.
Ele caminha para a área do deque e eu o sigo com o coração
batendo forte em expectativa.
Medo e ansiedade criando um coquetel explosivo dentro de
mim.
Observo a neve cair pela parede de vidro enquanto Nick liga
a hidro e escuto a água começa a encher.
Minha coragem desvanece um pouco quando penso em ficar
nua na frente de Nick.
— Claudia deixou algumas roupas de banho no quarto de
hóspede. É o segundo no corredor.
Eu me viro para Nick me perguntando se ele leu meu
pensamento.
— Você pode usá-las — ele continua.
— Você vai usar?
— Acho que seria apropriado.
— Não faça isso por mim. Eu já te vi nu mesmo. — Sorrio e
me afasto.
Caminho até o tal quarto e quando chego lá, retiro minhas
roupas, mas hesito.
Não quero usar roupas que pertencem à cunhada de Nick
que claramente me detesta.
Olho minha imagem no espelho e percebo que tampouco
quero recuar.
Eu quero viver aquilo.
Agora. Aqui.
Com Nick.
Pego uma toalha e enrolo no meu corpo caminhando até a
hidro.
O vapor tomou conta do ambiente quando eu me aproximo e
Nick já está lá dentro.
Eu avanço sem desviar o olhar e antes que me falte coragem,
deixo a toalha cair.
O olhar de Nick varre meu corpo como labareda, e me sinto
linda.
Isso me dá coragem de continuar e entro na hidro, a água
quente me envolvendo até os seios e me recosto encarando Nick.
— Acho que agora estamos quites.
— Não deveria fazer isso, Kiara. — Sua voz é rouca e ríspida.
Reconheço ali o desejo que faz minhas coxas tremerem.
— Não fazer o quê? Não desejar você? Tarde demais... —
Sussurro e obedecendo ao anseio mais profundo do meu corpo e do
meu coração, eu me aproximo dele até que estejamos frente a
frente.
— Posso tocar em você? — imploro e não espero resposta.
Sua respiração sai pesada enquanto toco as tatuagens em
seu peito, a fina penugem de pelo ouriçando meus mamilos que
ficam duros de vontade de se esfregarem ali. E é o que eu faço, me
aproximo mais, meus seios roçando na rocha que é seu peito. Nick
solta um gemido que é um misto de protesto e prazer que excita
todas as minhas terminações nervosas, meu sangue se eletriza nas
veias e aquele leve contato serve para fazer uma lança de prazer
pulsar em meio as minhas coxas. Minhas mãos seguem por seus
braços, os bíceps se contraindo ao meu toque, e deixo os dedos
deslizarem pelas tatuagens ali. Abaixo meu olhar, inspecionando-as.
Toco uma tatuagem que é o desenho do rosto de uma mulher.
Claire.
— É por isso que não quer me tocar. Porque ela ainda está
aqui. — Toco seu peito onde o coração bate com força.
— Eu queria ao menos que me desejasse...
Quando capturo seu olhar, vejo fúria e fogo, e ele segura
minha mão e a abaixa sob a água, levando-a até sua ereção.
Perco o ar.
— Isso é suficiente para você?
Sua outra mão se infiltra em meu cabelo me puxando para
perto, respiro seu hálito quente, me embebedando nele.
— Sabe o quanto eu venho lutando contra isso? — Ele inclina
a cabeça e desliza os lábios por meu pescoço até chegar ao meu
ouvido enquanto sua mão faz meus dedos o acariciarem. —
Quantas vezes eu pensei em você exatamente assim, com a mão
em meu pau?
Minha nossa, começo a respirar por arquejo, minha mente
rodando e meu corpo em ebulição com suas palavras cruas.
Então ele larga minha mão e seus dedos se enfiam em meus
quadris, me levando para perto até que eu esteja em seu colo e
nossos lábios se encontrem num beijo profundo e urgente.
E derreto inteira com seu gosto em minha língua, suas mãos
subindo por minhas costas e seu pau entre minhas pernas.
Eu me esfrego nele, gemendo do prazer puro e delicioso que
o atrito me causa, mas não é suficiente.
Levanto a cabeça e mergulho meu olhar no seu.
— Eu quero você... dentro de mim... agora, por favor...
Não me importo de estar implorando. A necessidade que eu
tenho é fremente.
Mas uma sombra tolda seu olhar.
— Kiara, você torna tudo muito difícil para mim quando me
implora assim...
— Por favor... Eu preciso saber como é... querer alguém e
ter.
Uma lágrima desliza por meu rosto e Nick se inclina e a toma
em seus lábios.
E no segundo seguinte, ele está se erguendo e me puxando
para fora da hidro. Apenas vejo tudo como um borrão, quando ele
me pega no colo e me leva até o quarto.
Sinto os lençóis mornos embaixo de mim e depois Nick se
ajoelha na minha frente. Nu e lindo.
Ele coloca um preservativo, sem desviar os olhos dos meus.
Eu respiro pesado, sentindo meu interior pulsando de
necessidade dele.
E o puxo pra mim, nossos lábios se encontrando enquanto
ele afasta meus joelhos. Eu o sinto ali, hesitando e pedindo licença
quando levanta a cabeça e me encara com uma pergunta muda no
olhar.
— Sim...
Ele segura minhas mãos acima da cabeça e mergulha em
mim, quase gentilmente.
Eu arqueio o corpo, querendo-o sentir inteiro e ele vem.
Profundo e me preenchendo totalmente.
Ficamos assim, alinhados e sem nos mexer, por um instante.
Seu olhar está em mim, estudando minha reação.
— Tudo bem?
Sacudo a cabeça em afirmativa.
— É a primeira vez que estou assim com um homem, de
verdade... — sussurro com um sorriso trêmulo — não me deixa
fazer nada errado...
— É a primeira vez que estou com uma mulher em dois anos
— Nick rebate com sua voz rouca e deliciosa começando a se
mover devagar dentro de mim. — Não me deixe fazer nada errado.
Um sorriso curva o canto da sua boca e ele me beija. E
quando me encara de novo, sinto-me tonta com a intensidade do
seu olhar.
— Eu vou foder você agora, Kiara Willians.
Ah, meu Deus, sim!
Fecho os olhos e solto um grito quando ele empurra entre
minhas coxas vezes sem fim, cada vez mais rápido e profundo,
nossas respirações se misturando assim como nossos gemidos, e
não demora para eu sentir um orgasmo intenso explodindo em meu
ventre e Nick engole meus gemidos com seus lábios, segurando
meus tremores, até que ele mesmo afunde o rosto em meu ombro e
solte um longo gemido de libertação que é como música para meus
ouvidos.
E decido, ali, suada e ofegante, com o peso do corpo de Nick
de Santi sobre mim, que quero ouvir aquele som até o fim dos meus
dias.
Ah Deus, em que enrascada eu me meti.
Abro os olhos quando Nick se afasta e sai da cama, pelo
canto do olho, o vejo ir até o banheiro e se livrar do preservativo no
vaso, dando descarga.
Ele volta pra cama e deita ao meu lado, puxando as cobertas
sobre nós.
Eu me deito de lado, me sentindo vazia e cheia ao mesmo
tempo.
Aquele homem mudou tudo. E agora tudo o que eu quero é
que ele deixe que eu entre em seu coração.
Porque ele já entrou no meu.
A neve cai lá fora, quando eu me esgueiro para perto dele,
como fiz naquela noite e sem conseguir me conter, começo a chorar.
— Kiara? — ele me chama e abro os olhos quando toca meu
cabelo. — Tudo bem?
Não consigo falar. Nick me puxa para perto e me abraça.
O choro vai acalmando e sinto o coração de Nick em meu
ouvido.
— Por que está chorando?
— Eu não te contei tudo... sobre o que aconteceu comigo.
Minha voz é só um sussurro quando finalmente revelo a Nick
o meu maior segredo. O meu maior erro.
— Eu engravidei. — Um soluço corta meu peito de novo. — E
desisti de um bebê. Eu desisti da minha filha...
Epílogo

Querido Nick

Se está lendo essa carta, é porque já não estou mais aqui.


Espero que me perdoe por eu ter te deixado sozinho com
nossa menina.
Você lembra o quanto a desejamos, o quanto esperamos por
ela?
Infelizmente a minha doença não permitiu que ela nascesse
do meu corpo. Todos nossos bebês se foram, mas pelo menos
agora terei a esperança de encontrá-los no paraíso.
E você ficará com a nossa Mackenzie.
E se há uma dor que levo em meu peito é o medo que ela
cresça sem saber sobre suas raízes. Sei que conversamos sobre
isso, sobre lhe contar que ela tem uma outra mãe biológica quando
crescer e puder entender. Mas se eu morrer, por favor, faça isso
agora. Não deixei Mackenzie crescer como eu e Claudia, sem saber
quem são seus pais verdadeiros.
Sei que você a amará e a protegerá para sempre, porque em
seu coração, ela lhe pertence. Mas ela tem uma mãe também.
Quando adoeci e descobri que poderia não sobreviver ao
tratamento, tomei a liberdade de descobrir o nome da mãe biológica
de Mackenzie.
O nome dela é Kiara Willians.
Quero que a encontre.
Convença essa moça de que não há dom maior no mundo do
que ser mãe. Mackenzie precisa de amor materno e eu acredito que
apesar de ter tido motivos para dá-la em adoção, essa garota não
deixou de amar a filha.
Por favor, atenda este último desejo do meu coração.
Para sempre sua.
Mais que a própria vida.

Claire.
Corações de Gelo Parte 2
Copyright © 2021 por Juliana Dantas

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta


publicação pode ser reproduzida, distribuída ou transmitida por
qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação
ou outros métodos eletrônicos ou mecânicos, sem a prévia
autorização por escrito do autor, exceto no caso de breves citações
incluídas em revisões críticas e alguns outros usos não comerciais
permitidos pela lei de direitos autorais.

Esse é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, lugares,


negócios, eventos e incidentes são ou os produtos da imaginação
do autor ou usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com
pessoas reais, vivas ou mortas, ou eventos reais é mera
coincidência.

Título Original: Corações de Gelo Parte 2


Revisão: Sheila Mendonça
Capa: Jéssica Gomes
Prólogo

Para a mãe da minha filha

Talvez você esteja se perguntando por que estou lhe


escrevendo essa carta. Eu não sei seu nome e nem você o meu, me
disseram que é melhor assim, mas hoje, quando beijei seu rostinho
pela primeira e última vez, eu me despedi e desejei do fundo do
meu coração que você pudesse ser o que eu nunca poderei.
Por favor, se ela perguntar de mim, diga que eu a amei, mais
que a própria vida. Que só quando ela nasceu descobri o significado
de amar alguém a ponto de a felicidade dela ser mais importante do
que a minha.
Eu estava perdida por um longo tempo, amaldiçoando a
maneira que ela foi concebida. Amaldiçoando tudo o que tive que
abrir mão, mesmo que seja por um tempo. Amaldiçoando o fato de
que, porque ela existe, eu nunca mais serei a mesma.
E quando ela segurou o meu dedo eu tive que soltá-la. Não
porque não a queria, mas porque soube que ela era tão preciosa
que merecia tudo o que fosse maravilhoso neste mundo.
E eu não sou essa pessoa.
Prometa que ela sempre terá o amor de uma mãe. Que você
será essa mãe e quando ela tiver idade suficiente a deixe livre para
fazer suas escolhas.
Eu não sou livre para fazer minhas escolhas agora, e,
sinceramente, ela merece ter uma família. Merece além de uma
mãe, um pai. E você e seu marido poderão lhe proporcionar isso.
Todos os dias da minha vida, eu vou desejar que ela seja
feliz.
Se souber que ela é feliz em algum lugar do mundo, talvez
algo valha a pena.
Capítulo 1

Nick

— Você não devia tomar café.


Paro o movimento de levar a cafeteira à caneca e subo meu
olhar. Ela está sentada na bancada com aquele seu sorriso
presunçoso que sempre usa quando quer parecer superior.
Aquele sorriso que eu odiava quando nos conhecemos, mas
que aprendi a amar com o tempo. E não é assim o amor? Gostar do
que nos agrada é fácil.
— E você não deveria estar aqui. — Continuo a encher a
caneca, apesar do seu olhar de censura.
— Café te deixa nervoso, Nick. — Agora ela usa aquele tom
condescendente que faria mais sentido com uma criança, como
nossa filha Mackenzie.
— Às vezes só café para me fazer querer ficar acordado. —
Levanto a mão, como se fazendo um brinde a isso, e tomo um longo
gole da bebida amarga.
— Você pensou no que te pedi? — indaga devagar, daquele
jeito que é uma tentativa de me fazer ceder a alguma vontade sua.
— Sim, eu pensei. É só o que eu tenho feito, mas não tenho
certeza se é uma boa ideia.
— Por favor, Nick. Você sabe que tenho razão. Por
Mackenzie.
Colocar a felicidade de Mackenzie em pauta é golpe baixo. E
ela sabe disso, como também sabe que, por mais que eu tenha
sérias restrições àquele pedido, eu o farei porque ela pediu e acima
de tudo porque de certa forma, talvez tenha razão e Mackenzie
precise disso.
— Sim, tudo o que eu faço é por ela.
— Quero que faça coisas por você também. O que anda
fazendo por você, meu amor? Além de tomar café amargo?
Tomo outro gole de café ignorando o tom mandão de sua voz.
— Melhor que isso só um bom conhaque.
— Por favor, não deve beber, sabe disso. — Agora ela parece
triste.
Me deixa triste também.
— Não está bebendo mais do que deve, não é?
Respiro fundo, voltando a atenção para a janela da cozinha.
Está nevando lá fora. Seria um dia perfeito para passar um tempo
esquiando em Whistler.
— O que você é agora? — resmungo. — A droga da minha
consciência?
— Acho que sou exatamente isso, não?
Ela ri. Não é um riso cristalino ou bonito. Claire tem uma
risada histriônica, daquelas que saem pelo nariz e que faz qualquer
um rir junto de tão bizarra.
Outra coisa que aprendi a amar com o tempo.
Outra coisa que morreria para poder escutar de novo.
Fecho os olhos, ansiando continuar ouvindo.
Mas a única coisa que escuto então são os pequenos passos
se aproximando.
Respiro fundo e viro o rosto para onde Claire estava.
Mas encontro apenas o vazio.
Claire não está ali. Ela morreu há dois anos.
Agora ela só existe nas minhas lembranças. Nas memórias
que parecem cada vez mais apagadas, como um desenho de uma
criança que vai sumindo do papel conforme o tempo passa.
— Papai!
Os passinhos que ouvi agora estão mais próximos e sinto a
tristeza indo embora quando a criança de cinco anos entra correndo
na cozinha e se joga contra mim.
Eu a pego no colo, sentindo seus bracinhos se enrolando em
volta do meu pescoço e aspirando seu cheiro único. Cheiro de casa
e amor.
— Bom dia, querida.
Eu a coloco na cadeira.
— Bom dia, papai. Posso não ir à escola hoje?
— Por que não iria?
— Porque está nevando.
— Não é uma nevasca. Claro que vai à escola.
Eu me movo pela cozinha pegando o cereal e o leite na
geladeira para preparar seu café da manhã.
Meu celular vibra em cima da bancada e paro para olhar o
visor. É um recado de Matt me recordando da reunião que teremos
às 10h.
— Podíamos ir patinar. Por favor, você prometeu! —
Mackenzie choraminga e meu estômago se aperta.
É algo parecido com medo e pressentimento que jogo para o
fundo da mente.
Mackenzie é apenas como qualquer menina de sua idade
que quer se divertir patinando no gelo no inverno.
— Sabe que não adianta fazer manha para conseguir o que
quer. Agora coma seu cereal — interrompo seu choramingo e seus
ombrinhos caem enquanto ela pega a colher.
Apanho o celular, respondendo a Balvin.
— Mas a gente não vai patinar nunca? — insiste e desta vez
eu rio e me abaixo para beijar seus cabelos.
— Se comer todo o cereal.
— Sério? — Sorri animada.
— Sim, acho que podemos fazer melhor. Podemos ir para
Whistler amanhã. Podemos esquiar. Acho que já pode começar a
aprender, o que acha?
— Prefiro aprender a patinar... usar aquelas roupas bonitas,
sabe?
— Bom dia!
Mackenzie interrompe sua imaginação quando Claudia entra
na cozinha retirando as botas na entrada e tirando a neve de seus
cabelos tão iguais aos de Claire.
Ainda me recordo de quando as conheci, de como não
conseguia distinguir uma da outra. Felizmente com o tempo, passei
a reconhecer Claire muito bem, e a perceber as diferenças sutis
entre elas.
— Bom dia, Claudia.
— Tia, o papai vai me levar pra patinar!
Claudia olha pra mim, com a sobrancelha levantada,
enquanto se aproxima de Mackenzie, pegando um guardanapo
para limpar sua boca.
— Ah é?
— Ela está pedindo, talvez a gente encontre alguma pista já
aberta?
— Eu posso ver. E então mocinha, já tomou seu café, que tal
subir e trocar de roupa para irmos pra escola?
— Está bem. — Mackenzie arrasta suas pantufas de ursinho
saindo da cozinha.
— Estou pensando em levar Mackenzie hoje à tarde para
Whistler — comunico à Claudia, voltando a atenção ao celular.
— Hoje ela tem um aniversário.
— Não estou sabendo nada disso.
— Mas eu sei, afinal, sou eu quem cuida da agenda da
Mackenzie.
— Que tom é esse? E você fala como se Mackenzie tivesse
muitos compromissos, mas ela só tem balé, escola e natação, pelo
que me lembre.
— Mas ela tem atividades com os amiguinhos, por exemplo.
Você não sabe tudo.
— Eu sei o bastante. Ela é minha filha.
— Olha, não estou te criticando. Sei que faz o que acha
suficiente.
— O que quer dizer?
— Que você é o pai. Claro que certas coisas só uma mãe
sabe. Mackenzie precisa de uma mãe.
— A mãe da Mackenzie morreu.
— Sim, minha irmã morreu. O que quero dizer é que nem
sempre um pai consegue suprir todas as necessidades de uma
garotinha.
— Mas eu tento. Faço tudo pela minha filha. Desde que
Claire se foi, me dedico a cuidar dela. Larguei a administração da
minha empresa para isso.
— Mas você ainda trabalha.
— Claro, se eu não trabalhar, do que vamos viver?
— Isso que estou querendo dizer...
— Sinceramente não sei onde quer chegar.
— Eu acho que Mackenzie deveria ir morar comigo.
— O quê? Está louca?
— Não, estou sendo objetiva. Eu já ajudo você a cuidar dela.
Eu me dedico muito a ela. Também deixei meu trabalho e minha
vida de lado para isso.
— E eu agradeço. Mas não pode levar minha filha da minha
casa. Da casa dela.
— Então eu podia mudar pra cá.
— Não. Isso não é necessário. E nem pense em levar minha
filha daqui, eu não vou permitir.
— Calma, Nick, nossa, não era pra ficar bravo. Era só uma
ideia. Para o bem da Mackenzie. Uma figura feminina...
— Chega desse assunto, não tem o menor sentido.
— Certo, me desculpe. Vou ajudar a Mackenzie a se trocar.
Eu posso levá-la para a escola.
— Tudo bem. Vou me trocar também, tenho uma reunião logo
mais na De Santi.
Claudia se afasta dando o assunto por encerrado, mas
continuo a pensar na discussão mesmo quando já estou na
empresa com Matt Balvin, o CEO da De Santi. Nós nos conhecemos
desde adolescentes e compartilhamos a paixão por motos. Porém,
enquanto decidi seguir carreira no motociclismo competitivo, Matt
foi pra faculdade e se formou com louvor em negócios, conseguindo
uma vaga na De Santi quando meu pai ainda a administrava.
Quando eu me casei e finalmente decidi assumir os negócios do
meu pai, foi Matt quem me ensinou tudo sobre administração e se
tornou meu braço direito. Então, quando Claire morreu e eu me
afastei da direção da empresa, nada mais natural do que Matt
assumir o leme.
E agora, ele me encara com um olhar especulativo depois de
me mostrar, juntamente com a design, as ideias para as peças para
a nova linha de vestuários e acessórios da De Santi.
Este projeto foi ideia de Claire, que era formada em moda e
antes de nos casarmos tinha um estúdio com Claudia. Porém,
Claudia tinha uma personalidade forte e as duas batiam de frente
muitas vezes e a aconselhei a deixar a sociedade com a irmã. Na
época, a ideia era que Claire ficasse em casa, porque queríamos ter
filhos logo e ela se dedicaria a isso por um tempo. Só que nossos
bebês nunca vingaram e Claire começou a se inquietar. Perguntei
se queria voltar a trabalhar, que poderia ter algum cargo na De Santi
e ela teve a ideia de expandirmos para uma linha de roupas
esportivas. Infelizmente, esse projeto nunca saiu do papel porque
descobrimos seu câncer.
— E aí, o que achou? — Samara Larson, uma mulher de
descendência asiática de trinta e poucos anos, está me encarando
ansiosa.
— Parece interessante. — Remexo nos croquis. — Mas Matt
deve ter te informado que estamos negociando com uma patinadora
artística para estrelar a campanha.
— Ah, sim. Kiara Willians. — Ela sorri. — O Matt me disse,
mas ela ainda nem assinou o contrato e acredito que estará bem
ocupada com as Olimpíadas tão perto. Você me deu um prazo e
preciso começar o projeto.
— Você não entendeu. Kiara vai ser a inspiração para o
projeto.
— Como assim?
— Achei que tivesse explicado. — Lanço a Balvin um olhar
irritado.
— Expliquei, mas acho que não ficou claro para a Samara. A
ideia é que todo o projeto seja inspirado em Kiara Willians. Ela é
uma jovem influência e acreditamos que a colocar como a cara da
nova linha, De Santi atingirá um público jovem. E claro, os Jogos
Olímpicos já são dela, é o que dizem, então ela estará mais em alta
ainda.
— E como vai ser isso? Eu terei encontros com ela, faremos
reuniões, ou...
— Não — eu a interrompo. — Eu mesmo cuidarei disso.
— Achei que eu faria...
— Samara, esse projeto era da minha esposa. Você mesmo
teve acesso a alguns de seus desenhos e ideias. Assim como os
esboços que eu mesmo fiz. Por isso eu quero cuidar dessa questão
eu mesmo. É pessoal.
Ela não imagina o quanto, penso com ironia.
Matt está reticente. Ele sabe.
E não concorda com minha ideia.
— Então, eu mesmo acompanharei Kiara Willians e a
conhecerei a fundo e assim te direi o que eu quero para essa
coleção. Entendido?
Samara recolhe seu material, o colocando na pasta. Não
parece muito satisfeita, mas sinceramente não estou nem aí.
Tem muitas coisas em jogo ali, que ela não faz ideia.
E quero que continue assim.
E se não estiver satisfeita em participar do projeto pode pular
fora, não me importo, com certeza acharei outros designers para
trabalhar conosco.
Mas não encontrarei outra Kiara.
— Certo, terminamos por aqui? — Matt se apruma e Samara
se levanta.
— Sim, acho que é isso.
Ela descansa o olhar em mim antes de sair.
— Acho que poderíamos nos reunir para um drinque em
breve.
Matt levanta a sobrancelha de forma surpresa e divertida.
Eu não vejo nenhuma graça.
Ante o meu silêncio, Samara enrubesce como uma colegial.
— Para falarmos do projeto, claro.
— Eu entrarei em contato quando achar necessário. — Acho
que minha resposta saiu mais dura do que pretendia, mas algo na
postura da designer me irritou.
Ela sorri amarelo.
— Claro, tenham um bom dia.
A mulher se afasta fechando a porta da sala de reunião atrás
de si e Matt me encara rindo.
— Ela está muito a fim de você.
— Que merda é essa?
— Opa, calma. Só falei o que é óbvio, drinque pra falar de
negócios? Sabemos quais negócios são e não envolvem vocês
vestidos.
— Para de ser engraçadinho.
Eu não tenho encontros amorosos.
Matt sabe muito bem. Mas isso não impede que ele me
critique dizendo que preciso voltar a sair e a conhecer mulheres.
Mas como fazer isso quando ainda me sinto casado?
Faz dois anos que Claire se foi. Ficamos juntos por 13 anos e
eu acreditei que seria pra sempre. Por quatro anos ela lutou contra a
doença terrível que foi consumindo seu corpo pouco a pouco sem
que eu nada pudesse fazer a não ser assistir a mulher que eu
amava definhar.
E mesmo quando os médicos disseram que nenhum
tratamento a faria melhorar, foi difícil me conformar que não havia
mais nada a fazer e que em breve ela partiria pra sempre me
deixando sozinho com Mackenzie.
Claire sempre foi uma pessoa prática e realista. Ela lutou até
o dia em que soube que de nada adiantaria. Então, pediu que eu a
deixasse ir em paz.
— Sei que vai sentir minha falta, mas quero que fique bem.
Por Mackenzie. Ela precisa de você. Não quero vê-lo chorando
pelos cantos para sempre como um viúvo amargo — ela pedia com
um sorriso mandão. — Escutou, né?
— E como vai saber? Não vai estar aqui.
— Ai é que se engana. Vou te assombrar se não fizer o que
eu mando!
— Nós não acreditamos nisso.
Ela sorriu com tristeza porque naquele momento, segurando
sua mão fraca, e assistindo a vida deixar seus olhos antes
brilhantes, eu queria acreditar em um céu. Acreditar em espíritos e
fantasmas. Eu receberia de bom grado o fantasma de Claire me
assombrando para sempre.
— É sério. Você vai sofrer, mas vai passar. Eu prometo. E se
houver alguma coisa além da vida, eu vou estar sempre olhando por
você e Mackenzie. E vou sorrir quando você voltar a sorrir porque
tem alguém no seu coração de novo.
— Não, meu coração vai congelar para sempre.
— Eu duvido. A vida é uma só e ela foi feita para ser vivida e
para amar e sermos amados. Você vai amar de novo, tenho certeza.
— Não queria estar conversando com você sobre isso.
— Nós conversamos sobre tudo, lembra?
— Até sobre minha nova amante jovem e boa de cama que
vai me consolar na viuvez? — Fiz piada porque eu amava vê-la rir.
E ela riu.
— Amante jovem? Aposto que já está pensando nas
possibilidades, hein? Homens! São todos uns animais.
— Estou brincando. Sabe disso.
— Eu não estou, você é gostoso demais pra ficar fora do
mercado, Nick de Santi.
— Eu já estou fora do mercado há 12 anos.
— Entendeu o que quis dizer. Agora parece horrível de se
pensar, mas tenho certeza que seu coração não vai congelar, e se
congelar, um dia, uma mulher sortuda vai derretê-lo.
Assim, quando ela sucumbiu, todos nós já estávamos
preparados para sua partida, porém, o luto é algo doloroso e
pesado. Não houve a fase da revolta, mas a saudade permaneceu.
Seguir em frente ouvindo seu riso apenas na minha imaginação foi
tudo o que me restou. Assim como nossa filha Mackenzie, que não
nasceu do nosso sangue, mas era amada como se fosse. Cuidar
para que ela fosse feliz era minha missão a partir de então. E
mesmo que a saudade e a dor tenham se aquietado no peito com o
passar do tempo, eu não pude evitar congelar meu coração.
Não tinha nenhuma vontade de conhecer outras mulheres.
Não acho que havia algo em mim ainda para dar a alguém.
Talvez minha paixão tenha morrido com Claire.
Volto ao presente, quando Matt fecha seu notebook me
encarando de forma especulativa.
— Vai mesmo levar isso adiante?
Respiro fundo.
Sim, eu vou continuar?
— Acho que é tarde para voltar atrás. Você já marcou a
reunião com Kiara Willians.
— Na verdade, estou conversando com a mãe dela, Maude
Willians, que é empresária dela. Aliás, uma mulher bem difícil.
— Não é a Senhora Willians que me preocupa.
— Claro que seu interesse é na filha, a linda patinadora
Kiara. — A frase está cheia de ironia. — Será que não era
infinitamente mais fácil e ético você abordar essa moça e lhe contar
a verdade e ver no que dá?
— Dizer que ela é mãe biológica da minha filha? A garotinha
que ela abandonou? Por mais que eu tenha investigado sobre Kiara
Willians não tem como saber quem ela é de verdade. Como posso
confiar a ela minha filha?
— Ela é a mãe.
— Ela a abandonou.
— Não sabe os motivos.
— Pode ser uma pessoa horrível e se ela for, não poderei
seguir esse desejo de Claire.
Eu não fazia ideia que Claire gostaria que eu encontrasse a
mãe biológica de Mackenzie, até o dia em que encontrei a carta no
meio do livro preferido dela. Parecia um tanto arriscado que ela
tenha deixado a carta ali, porque eu poderia nunca achar. Embora,
provavelmente ela saberia que por mais que eu evitasse por um
tempo as coisas que fazíamos juntos, porque era doloroso demais,
uma hora eu voltaria aos meus velhos hábitos, já conformado de
que os faria sozinho.
Não sei quanto tempo Claire achou que demoraria para eu
encontrar a carta, mas foram quase dois anos.
Eu a havia encontrado há dois meses e fiquei chocado com
seu pedido. Por um tempo, rechacei aquela ideia.
Essa tal de Kiara provavelmente não tinha o menor interesse
de ser confrontada com seu passado, tendo que encarar uma
criança que ela mesma abandonou sem pensar duas vezes.
Mas a carta permaneceu ali, me espiando, como se a própria
Claire saísse da minha imaginação exigindo que eu seguisse seu
último desejo.
Por Mackenzie.
“Ela precisa de uma mãe.”
Será mesmo? Mackenzie era muito pequena quando Claire
se foi, eu tentava manter viva a memória dela em sua cabecinha,
mas sabia que hoje, a ideia de Claire era apenas algo muito abstrato
em sua mente infantil.
Claudia nos ajudava muito, claro. E eu mesmo havia deixado
a direção da empresa para me dedicar mais a minha filha. Porém,
ela estava crescendo e por mais que Claudia fosse muito presente,
era apenas a tia.
E Mackenzie tem uma mãe. Uma mãe biológica que não a
quis, eu relembro com raiva.
Mesmo assim, Claire parecia ter uma fé inabalável de que
aquele encontro deveria acontecer. E eu sabia que não conseguiria
rasgar a carta e fingir que Claire nunca havia feito aquele pedido.
Eu podia ao menos conhecer essa mulher. E assim, verificar
se era digna de confiança para conhecer Mackenzie.
Por isso contratei detetives e fiquei surpreso ao descobrir que
ela era uma patinadora famosa.
Não era nada do que eu esperava dela.
Kiara Willians tinha só 23 anos, possuía uma beleza loira
estonteante e era uma atleta olímpica medalhista. E não só isso. Ela
brilhava em campanhas publicitárias, revistas e programas de TV.
Sorria e era simpática. Flertava com seu parceiro, em frente a
especulações de que os dois eram um casal. O que eles nunca
confirmaram, porém, era o que davam a entender.
Tirando isso, sua carreira era regida pela mãe, Maude. Que
se divorciou do pai que morava em outra cidade.
Agora ela se preparava para as Olimpíadas e todos
acreditavam que seria medalha de ouro.
Mas quem era de verdade a garota por trás da patinadora
artística?
E por que ela havia deixado a filha para adoção?
Ela tinha 17 anos quando concebeu Mackenzie. Claro, muito
jovem e no início de uma carreira que se tornou brilhante. Será que,
se tivesse ficado com Mackenzie, ela teria a mesma carreira?
Provavelmente era este o motivo da adoção.
Kiara Willians desistiu de ser mãe por causa da carreira.
Isso me deixava com raiva.
O tanto que Claire quis conceber e isso nunca foi possível pra
ela. E Kiara jogou a chance de ser mãe no lixo por umas medalhas
e fama. Ok, talvez estivesse sendo muito cruel. Mas eu não estava
nem um pouco disposto a facilitar para aquela garota.
O detetive conversou com algumas pessoas próximas e uma
colega havia dito que Kiara era ambiciosa e fazia de tudo para
ganhar, inclusive algumas coisas ilícitas. “Será que era verdade? A
garota disse que não tinha como confirmar, mas vai saber?”.
A verdade é que eu tinha medo de minha filha estar em
contato com essa mulher ainda desconhecida.
“Claro que ela poderia dizer que não queria ver Mackenzie e
era seu direito, mas e se quisesse? O que eu faria?”
Então, quando retomamos o projeto da linha esportiva, e Matt
deu a ideia de fazermos a campanha com alguma atleta famosa, eu
me vi propondo o nome de Kiara Willians. Matt achou a ideia ótima
até eu lhe contar qual era meu plano. Eu não diria nada sobre
Mackenzie, apenas aproveitaria a oportunidade de conhecê-la
melhor e só então, decidir se lhe contaria sobre a filha biológica que
abandonou.
Parecia um plano um tanto antiético, mas passei por cima da
minha consciência.
Precisava conhecer Kiara Willians e esta era uma maneira.
— Certo. Parece que está mesmo disposto a fazer do seu
jeito.
— Sim, estou.
— Vai estar na reunião amanhã?
— Não, estarei em Whistler. Preciso sair da cidade, estou
com a cabeça cheia. — Cheia de alucinações, quero dizer, mas me
calo. — Amanhã Claudia levará Mackenzie.
— Eu achei que ia querer estar na reunião.
— Prefiro que trate primeiro as questões contratuais e
quando tudo estiver certo, eu a conhecerei.
— Por que acho que tem certeza de que ela é uma má
pessoa?
— Eu não sei.
— E me diz, e se ela for uma boa garota. Já pensou nisso?
Se for horrível como acha, pode ir em frente sem se sentir culpado
por não atender o pedido de Claire e eu entendo. Mas e se ela for
uma boa pessoa, o que fará?
— Acho que terei que decidir em breve.
— Acha que Mackenzie vai entender?
— Ela sabe que é adotada. Claire sempre quis deixar isso
claro. Embora eu duvide que entenda de verdade o conceito.
— Talvez ela fique feliz em conhecer a mãe de verdade.
— Acha que ela sente falta de ter uma mãe?
— Pode ser, ela ainda é bem criança.
— Claudia me disse isso hoje. — Conto a ele a discussão
com Claudia.
— Claudia é apaixonada por você.
— Que bobagem.
— Você esquece que saiu com ela antes de sair com Claire.
— Isso foi há 15 anos — rechaço aquele absurdo.
Sim, eu havia conhecido Claudia antes de Claire, em um bar.
Eu estava meio bêbado, confesso, e lembro que a achei bonita e lhe
passei uma cantada. Ela havia correspondido, um tanto bêbada
também e trocamos um beijo antes dela precisar ir embora e me dar
seu telefone.
Eu havia ligado para ela no dia seguinte e combinamos de
sair para jantar.
Quando bati no seu apartamento, ela estava descalça,
usando roupas casuais e de cara lavada, mas ainda linda. Perguntei
se tinha esquecido que íamos sair e ela sorriu e disse que iria se
arrumar e estaria pronta rápido.
Nós saímos pra jantar e foi uma noite incrível. A garota que
eu achei bonita era também divertida e espirituosa.
Só que quando eu a convidei para ir para minha casa, ela
confessou que não era Claudia, e sim sua irmã gêmea, Claire.
A princípio achei que fosse alguma doida que gostava de ver
novelas demais, porque aquela história era absurda. Mas ela ria
muito insistindo que não era Claudia. Eu não vi graça nenhuma na
brincadeira, apesar de Claire achar hilário e dizer que ela e a irmã
brincavam muito com isso. Que eu deveria levar na brincadeira
também, mas como dizer a ela que eu estava mais interessado
ainda agora? Bem, eu acabei lhe confessando exatamente isso e
Claire ficou séria e me beijou.
Indaguei como é que ela iria resolver isso com Claudia, mas
ela me garantiu que Claudia não se importaria. Que ela estava
inclusive saindo com outro cara no momento também.
Eu acreditei, porque Claire tinha um jeito muito persuasivo de
me convencer das coisas, e ela usaria isso muitas vezes ainda no
nosso relacionamento.
Encontrei Claudia de novo algumas semanas depois, quando
eu e Claire já estávamos sérios e fiquei um tanto sem graça de revê-
la e, confesso, até mesmo preocupado de me sentir atraído por ela
também, como quando nos conhecemos. Mas isso não aconteceu.
Ela não parecia brava com a irmã e confirmou que estava mesmo
namorando também. Quis indagar então por que ela havia me
beijado, mas resolvi deixar aquele assunto morrer.
Agora Matt dizer que Claudia estava apaixonada por mim era
ridículo.
— Certo, se não quer enxergar...
— Está sendo ridículo. — Eu me levanto dando a reunião por
encerrada. — Estou indo para Whistler. Se precisar de mim, mande
uma mensagem.
— Acredito que estará tudo sob controle.
Nós saímos juntos da sala.
— Amanhã veremos como será a reunião com a sua
patinadora e a mãe bruxa.
— Minha patinadora e a mãe bruxa? Que diabos?
Matt ri.
— Ok, não teve graça. Ou teve sim! Você devia rir mais, meu
chapa! Eu aqui tentando fazer graça e você sério.

Eu ainda estou preso nas palavras de Matt quando caminho


na neve naquela tarde.
Ele estava brincando, mas havia uma certa preocupação no
fundo de sua brincadeira. Eu sei do que ele estava falando. Matt
sentia falta de uma outra versão minha. Uma versão que estava
perdida em algum lugar agora e que não sei se conseguiria resgatá-
la um dia.
Paro e olho para o céu. Claire não chegou a conhecer aquela
casa. Eu havia comprado o terreno e disse que esperaria ela ficar
boa para começarmos a construir do jeito que ela quisesse. Mas ela
adoeceu e nunca conseguiu sequer vir até ali. E agora é o local para
onde eu me refugio quando quero desconectar de suas lembranças.
Não que seja fácil, mas quando me sinto muito triste e começando a
cair naquela pequena vala de desespero que de vez em quando
ainda me pega desprevenido, venho para Whistler, onde não há
lembranças algumas da presença de Claire e tento me ater ao
presente.
Aonde sou um viúvo solitário de coração de gelo.
Lembro de seu pedido, que eu não fosse um viúvo chorão
pelo resto da vida.
— Estou tentando, Claire, estou tentando — murmuro para
mim mesmo.
Eu sinto o peso da solidão. Até mesmo as criaturas de
coração congelado ainda podem ansiar por algum calor, nem que
seja aquele que Matt às vezes propõe que eu desfrute. Sexo.
Paixão. Qualquer coisa que dure algum tempo e que acalente pelo
menos o corpo, e aquiete minha mente.
Porém, eu fui um homem fiel. Quando era jovem, nem tanto.
Eu e Claire tivemos nossos altos e baixos em nosso relacionamento
antes de nos casarmos. Momentos em que eu estava viajando e ela
sozinha. Nós dois caímos em tentações e confusões. Mas nos
gostávamos e nos perdoávamos. Quando nos casamos juramos que
seríamos diferentes, que seríamos fiéis, sobretudo a nossos
sentimentos e a nosso compromisso um com o outro. Eu achava
que Claire não tinha muita fé na gente, na verdade ela sempre foi
uma criatura realista. Mas dali em diante nunca houve outra mulher
para mim. Eu jurei que a faria feliz e foi o que tentei fazer até o dia
em que enterrei seu caixão sob a terra.
Então como se livrar daquele sentimento de que, se eu
sequer ousasse desejar outra mulher, eu estaria a traindo?
A verdade é que estou cansado da solidão. Mas estou com
medo de que, se me deixar levar por outra paixão, Claire vai se
perder na minha memória.
E eu me apego àquele resquício de lembranças, nas minhas
alucinações com sua presença para mantê-la junto a mim.
Mesmo sabendo que eu preciso deixá-la ir.
A neve começa a cair com mais força e eu interrompo meus
passos, pretendendo voltar para casa antes que piore. Eu fiquei
frustrado quando cheguei à cidade e descobri que iria cair uma
nevasca e que as pistas de esqui estavam fechadas. Por isso, decidi
sair para caminhar e espairecer.
Porém, antes que eu me volte, vislumbro o que acredito ser
alguém deitado na neve.
— Mas que diabos?...
Caminho até lá me perguntando quem seria maluco de estar
deitado no meio da neve com aquele tempo.
E quando me aproximo, noto que é uma mulher.
Eu me ajoelho e, como previ, ela está tremendo e quase
roxa.
Afasto os cabelos claros do seu rosto e ela abre os olhos
assustados enquanto suas mãos se debatem, rechaçando meu
contato.
E então eu a reconheço.
Eu a vi apenas por fotos e vídeos. Sempre dançando com
maquiagem pesada, ou em peças publicitárias.
Mas não há dúvidas. Aquela moça congelando sob a neve é
Kiara Willians.
A mãe biológica da minha filha.
Capítulo 2

Kiara

Acordo desorientada, a cabeça pesando e meus olhos


doendo, como quando dormimos chorando. Por um momento, tudo
parece confuso como uma névoa em minhas lembranças, mas ao
me mover e abrir os olhos noto as vigas de madeira acima de mim,
a paisagem exuberante da neve na grande janela em frente à cama
e minha mente clareia.
Nick.
Estou acordando na cama de Nick de Santi, como naquela
primeira vez em que ele me tirou da neve, impedindo que eu
congelasse.
Mas dessa vez é diferente.
Tudo é diferente.
Porque eu deixei — na verdade, acho que meio que implorei
— que ele transasse comigo.
E foi maravilhoso.
Cerro minhas pálpebras e me permito lembrar de cada
detalhe precioso. Minha coragem de ir até ele na hidro, nua, e
expressar exatamente o que estava querendo e sentindo. E ele me
quis da mesma maneira. Trouxe-me para sua cama e transformou
meu corpo frio e inóspito em algo quente e vibrante.
Levo minha mão ao peito, sentindo meu coração bater forte.
Vivo.
Estou viva.
Um sorriso se distende em meus lábios e eu me sento,
virando a cabeça para o lado da cama e querendo encontrá-lo. Acho
que ainda me encontro em uma espécie de êxtase profundo. Um
arrebatamento que toma conta das minhas emoções que me faz
querer rir e talvez até chorar um pouco, porque tudo parece demais
para manter preso dentro de mim.
Eu mantive minhas emoções trancadas por muito tempo.
Chega.
Quero vivê-las. Expressá-las. Senti-las.
Mas estou sozinha na cama.
Então, de repente, outra lembrança volta à minha mente,
fazendo todo meu contentamento arrefecer.
Eu contei a Nick.
Depois do sexo, me sentindo feliz e nova, abri meu coração e
lhe confessei meu maior segredo, me recordo agora.
— Eu engravidei. — Um soluço corta meu peito de novo. — E
desisti de um bebê. Eu desisti da minha filha...
Sinto meu coração despencar, e dificuldade de respirar.
Jogo as cobertas para o lado e praticamente me arrasto até o
banheiro.
Abro a torneira da pia e jogo água no meu rosto. Estou
suando frio.
Tremendo, deixo-me cair até o chão, ainda nua. Luto para
respirar. Luto para manter aquelas lembranças escondidas. É assim
que tenho vivido nesses cinco anos.
Escondendo-as de mim mesma.
Eu era uma farsa. Há cinco anos eu sorria, patinava e andava
por aí como se não tivesse dado a minha filha a estranhos.
A criança concebida no momento mais escuro e cruel da
minha vida. Que eu odiei por longos meses em que tive que
carregá-la. Cheia de medo e de ressentimento.
Deixei que Maude cuidasse de tudo dizendo que ela ia “se
livrar daquele problema e eu teria minha vida e carreira de volta”.
Rezei para que ela tivesse razão. Só queria que acabasse.
Carregar aquele ser dentro de mim só me fazia lembrar daquele
momento tenebroso.
Eu achava que, quando ele se fosse, eu estaria livre das
lembranças.
Só que um dia, acordei com dores excruciantes. Maude não
estava comigo. Fiquei apavorada e senti que ia nascer. Liguei para o
médico e tentei não entrar em pânico. Maude havia marcado uma
cesariana. “Vai ser indolor e você não vai ver nada.”, ela dizia. Mas
não houve tempo. Os paramédicos chegaram e me levaram. Passei
por toda a dor do parto sozinha, expulsando o pequeno ser que
sugava minha vida por nove meses, apenas desejando que a dor
passasse e que nascesse. E em algum momento, entre aquela luta,
entre gritos, choro e suor, ela saiu de mim. Lembro de ter me
deitado exausta, as enfermeiras sorrindo e dizendo “Você tem uma
linda menina.”.
Eu tenho?
Confusa e ofegante, sem forças, assisti aquele ser sujinho
ser posto em cima do meu peito.
E foi ali que eu perdi meu coração.
Como o mundo inteiro podia mudar numa fração de segundo.
No bater de um coração todo novo junto ao meu?
Depois, ela foi levada e eu ainda me sentia anestesiada.
Maude chegou esbaforida e preocupada, mas dando um
chilique com os médicos quando descobriu que eu tive um parto
normal. Não adiantava nada explicarem a ela que a criança já
estava nascendo. Depois, ela acariciou meu cabelo e disse que tudo
ia ficar bem agora. Que já havia um casal esperando pela bebê. E
foi quando eu me dei conta do que tinha feito. Do que tinha
permitido. Tive vontade de pedir que não a levasse. Que eu poderia
ficar com ela, que contrariando tudo o que senti nos últimos meses,
eu tinha me apaixonado por ela. Pela minha filha. Porém, eu não
tive certeza de que era o certo a fazer. Tirar dela a oportunidade de
crescer em um lar feliz. Com uma mãe e um pai. Sem nunca saber
que ela era fruto de uma violência. Porque, por mais que eu sentisse
aquela conexão, aquele amor que eu nem sabia que existia,
também sabia que eu estava longe de esquecer.
E havia minha carreira, como dizia Maude a todo tempo,
como se intuindo que em algum lugar da minha mente havia a
vontade de desistir de dá-la em adoção.
E claro, havia a própria Maude. Que sempre dizia que sabia o
que era melhor pra mim.
Não era o que as mães faziam?
E provavelmente o que eu deveria fazer era o mesmo. Abrir
mão daquela criança para que ela crescesse feliz.
Na manhã em que eu ia ter alta, Maude demorou para
chegar, porque com certeza ela teria impedido as enfermeiras de
trazê-la para mim, agora toda limpinha. Ela segurou o meu dedo, me
encarando com seus olhinhos claros inocentes e desejei que ela
fosse sempre assim. Memorizei seus traços, pedi perdão por deixá-
la ir e me despedi. Fazendo uma prece silenciosa para que tivesse
uma mãe infinitamente melhor do que eu poderia ser.
Assim, minha bebê se foi para sempre, para sua nova família.
E eu só podia seguir em frente, voltar toda minha paixão para a
única coisa que eu podia ter: minha carreira na patinação artística.
Seu nascimento se tornou o segredo mais bem guardado da
minha existência.
E agora eu me pergunto por que tinha contado a Nick.
Talvez porque em muito tempo eu me senti feliz. Completa.
Mas a quem eu queria enganar? Eu poderia estar apaixonada
por Nick, poderia ter rompido aquele pânico de contato físico, de
sentir paixão. Poderia estar com meu corpo saciado e pronto para
mais e com meu coração derretido por aquele cara, esperançosa de
que ele sentisse pelo menos um pouquinho do que eu sentia por
ele.
Mas sempre existiria aquele vazio. O lugar que deveria ser
daquele bebê que, se hoje eu encontrasse na rua, não
reconheceria.
Uma menina de cinco anos que saiu de mim, mas que foi
minha apenas por um tempo ínfimo.
Ou seja, eu poderia ter encontrado uma maneira de ser feliz,
finalmente. Mas, no fundo, sempre haveria uma culpa latente, como
se a felicidade não me pertencesse. Como se a felicidade completa
de verdade estivesse naquele bebê segurando meu dedo.
Mas ela estava perdida pra mim.
Ela tinha pais amorosos. Foi o que as pessoas da agência de
adoção haviam garantido. Eu queria conhecê-los, mas Maude disse
que o casal preferia sigilo. Mesmo assim, sem Maude saber, eu
havia escrito uma carta à nova mãe. Tentei aplacar minha
preocupação e minha culpa, porque não havia mais nada que eu
pudesse fazer.
No fim, acreditei que fiz o melhor para aquela criança.
E agora, Nick sabe.
Não me recordo muito do que aconteceu depois da minha
confissão. Eu comecei a chorar, sem conseguir falar e Nick apenas
me abraçou. Em algum momento eu devo ter adormecido.
O que será que está se passando pela cabeça dele? Estará
curioso? Me julgando?
Respiro fundo, abrindo os olhos e pensando rápido no que
fazer.
E decido que não quero contar mais nada a Nick, não agora.
É um assunto íntimo e doloroso demais. Terei que entrar em
detalhes que são difíceis. Não quero voltar àquele tempo, àquelas
lembranças.
Estou cansada demais de me culpar e de sofrer por algo que
não tem mais volta.
Será que eu não mereço ser feliz? Nem um pouquinho? Não
mereço viver aquela paixão e deixar de lado os meus demônios?
Nick disse que queria ver os meus demônios e eu deixei que
ele os vislumbrasse, mas agora chega.
Ele não pode fazer nada com o que me aconteceu. Não tem
nada a ver com ele.
Quero mostrar a Nick o que eu tenho de bom. De bonito.
Quero que ele me veja assim, desejável. Feliz.
Capaz de fazê-lo feliz.
Porque eu não posso esquecer que ele ainda tem uma
ligação com a mulher dele que morreu. Talvez tenhamos isso em
comum, nenhum de nós tem o coração inteiro para dar ao outro.
Mas a parte que está ali, que estava ali ontem à noite, pode servir.
Quero ser feliz de novo e quero que Nick seja feliz de novo
também.
Quero isso agora.
Sem pensar no passado ou no futuro.
Com essa nova resolução, eu me levanto e entro no chuveiro.
Tomo um banho rápido levando os resquícios de dor e lágrima.
Escovo meus dentes depois e vejo que há uma camisa de Nick
pendurada ali, e a visto.
Quando abro a porta do quarto, Nick está sentado na poltrona
perto da lareira acesa. Ele tem o olhar preso nas chamas, como se
o pensamento estivesse longe.
Por um momento, hesito, tomada de um certo
constrangimento do dia seguinte que talvez até seja normal, já que
nunca passei por isso. Mas também há aquele anseio, aquele
desejo de estar perto, de sentir de novo seu toque e saber que não
imaginei aquela química perfeita.
— Nick? — eu o chamo e ele vira a cabeça em minha
direção. Noto que usa apenas uma calça de pijama. Seu olhar é
impassível enquanto me aproximo devagar.
Nick me estuda meu rosto com uma expressão que julgo ser
receio e preocupação. Mas também há mais lá quando ele abaixa o
olhar para meu corpo que veste apenas sua camisa que mal chega
as minhas coxas.
Eu paro a sua frente, sem saber o que devo fazer, até que ele
estende a mão e um pequeno sorriso se abre em meu rosto, quando
eu a seguro e me aconchego em seu colo. Por um instante, ele
apenas me abraça e eu respiro fundo, adorando seu cheiro de
banho tomado e colônia pós-barba e sinto que ele está me
aspirando também.
Até que levanto o olhar e o encaro sorrindo. Nick está sério,
não correspondendo ao meu sorriso. Minha animação cai um pouco.
Ele toca meu rosto, coloca uma mecha de cabelo atrás da
minha orelha. Ainda parece pensativo. Quase grave.
Então algo me ocorre e me deixa apreensiva.
— Você está arrependido?
— Do que exatamente? De ter te conhecido? De ter me
atraído por você quando é a última coisa que eu devia fazer? De...
— De ter transado comigo? — eu o interrompo. Acho que é o
mais importante pra mim agora.
— Eu deveria.
— Por quê? Por causa de Claire?
Eu quero dizer que ela não está mais aqui, mas eu estou, só
que me calo.
Seria algo insensível de se dizer.
— Existem coisas... Que podem te magoar — ele diz
devagar.
E algo no tom de sua voz me faz colocar os dedos em sua
boca.
— Então não me magoe.
Ele segura meu pulso e beija meus dedos. Um arrepio quente
desce por minha espinha e faz o desejo se enroscar em meu ventre.
E os olhos de Nick brilham do mesmo desejo.
Pego sua mão e levo aos meus lábios, beijando seus dedos.
Seu olhar agora é puro fogo e minha pulsação acelera.
— Você gosta de mim?
— Mais do que deveria.
— Me acha bonita?
Ele ri. A primeira risada do dia e enche meu peito de
contentamento.
Quero vê-lo rir mais. Quero ver Nick rir sempre.
— Você sabe que é deslumbrante.
Desço sua mão para meu seio.
— Se eu pedisse para me tocar, você me tocaria?
Ele aperta meu seio de leve, mas percebo que ainda há
hesitação.
E me recordo da confissão que fiz e que até agora ele não
tocou no assunto.
E descubro que não quero falar sobre isso.
Não ainda.
Solto sua mão, que cai sem vida ao meu lado e desvio o
olhar para a lareira.
— Você quer falar sobre o que me disse ontem? — Ele
interpreta o meu silêncio.
Sacudo a cabeça em negativa.
Ele se apruma e segura meu rosto, me fazendo encará-lo.
— Kiara, acho que devemos conversar...
— Não. — Coloco de novo os dedos em seus lábios, o
silenciando. — Eu não quero falar sobre isso. Será que pode
esquecer o que contei? Sei que parece... bizarro, mas não é um
assunto que eu me sinta à vontade pra falar.
— Eu entendo isso, mas...
— Não, não quero falar de nada ruim com você agora. Eu
queria apenas que você me beijasse, que me tocasse, que
transasse comigo de novo. Por favor?
Levo meus dedos trêmulos à blusa e a abro, revelando meus
seios.
— Toque-me, Nick... por favor — Ofego e com um gemido
rouco, ele me beija com força, engolindo minhas súplicas. E
qualquer receio que há em minha mente se esvai com a quentura
dos seus lábios contra os meus, com sua língua se enroscando na
minha, com seus dedos calejados apertando meus seios.
— Sim... — sussurro quando sua boca deixa a minha para
trilhar um caminho de fogo por meu rosto, minha garganta, até me
erguer o suficiente para que meus seios estejam sob sua língua,
dura e quente, castigando meu mamilo.
Enfio os dedos em seus cabelos, jogando a cabeça para trás,
amando e querendo mais.
— Mais... — expresso meu desejo e com um gemido Nick me
empurra para o chão, e num segundo estou deitada no tapete em
frente à lareira.
E ele está sob mim, deslizando os beijos úmidos por meu
estômago, meu ventre e prendo a respiração quando adivinho seu
intuito, antes de ele erguer o olhar pra mim e por fim enfiar a cabeça
entre minhas coxas.
Solto um gemido surpreso quando sinto o calor de sua língua
me lambendo devagar, fazendo um caminho perverso por aquelas
áreas sensíveis enquanto eu tremo inteira, a pulsação entre minhas
pernas lateja e gemidos incoerentes escapam de minha garganta. E
ele imprime um ritmo mais urgente, ávido, como se eu fosse algo
saboroso.
E não demora para que eu esqueça tudo a não ser o que ele
faz comigo e solte um grito de libertação quando um orgasmo
intenso me toma inteira, me fazendo trepidar e levitar por segundos
incríveis.
Abro os olhos e observo Nick se afastar até a mesa de
cabeceira e vejo um preservativo brilhar em sua mão. Mordo os
lábios, ofegante, mas ansiosa de novo quando ele tira a calça e se
ajoelha na minha frente, o colocando sob sua ereção.
Ah, sim.
Eu quero mais.
Acho que nunca vou me cansar daquele homem.
E ele vem, e me beija, mas em vez de me penetrar, nos move
até que eu esteja em cima dele. Abro os olhos, um pouco assustada
e ele sorri de forma sexy.
— Quero te ver cavalgando por cima de mim.
— Então me ensina...
Ele segura meus quadris e me faz abaixar sobre sua ereção
e eu arquejo, ao me sentir preenchida, e suas mãos grandes me
ensinam o ritmo, sigo seu domínio e movo meus quadris, nossos
olhares presos um no outro.
— Está bom assim? — indago ainda um pouco insegura e ele
aperta meus seios.
— Você é perfeita.
E eu me sinto assim mesmo agora.
Perfeita.
O prazer mais incrível crescendo em meu íntimo de novo, e
aquele homem bonito me encarando como se eu fosse a mulher
mais linda do mundo.
E eu quase posso acreditar que eu sou única pra ele.
Eu quero ser.
Eu vou ser, decido, antes de fechar os olhos e jogar a cabeça
para trás quando o prazer se torna grande demais para conter.
Quando termina, estou exausta sobre ele e ficamos assim,
até nossa respiração voltar ao normal.
Sinto-me leve e feliz.
Maravilhosa.
Queria ficar assim pra sempre, mas sei que há um mundo lá
fora além de nós.
E também sinto meu estômago roncando e solto uma
risadinha, vermelha.
Encaro Nick, mas percebo que ele adormeceu.
Sem querer acordá-lo, eu me levanto e jogo uma coberta em
cima dele.
Corro para o banheiro de novo, tomo uma ducha rápida e
visto a mesma camisa, saindo do quarto.
Porém, eu paro, quando vejo a filha de Nick sentada no sofá
da sala com os olhinhos presos na TV.
Ah caramba, e agora?
Ela levanta o olhar e me vê antes que eu pense se seria
melhor fugir para o quarto de novo.
— Bom dia, Kiara! — Ela sorri animada.
Ainda veste pijama e pantufas de coelhinho. Os cabelos
loiros embaraçados e olhinhos remelentos.
Por um instante sinto um aperto no peito me lembrando que
minha filha tem a sua idade. E que eu não sei como ela é.
Será que ela se parece com Mackenzie?
Eu não me permito pensar muito nisso, mas às vezes, deixo
minha imaginação correr, mesmo não devendo, mesmo sabendo
que vou sofrer por dias depois por deixar minha mente pensar nela.
— Bom dia, Mackenzie. — Recupero minha voz tentando
sorrir, para não assustar a menina.
— Cadê o meu pai?
— Ele está dormindo. — Fico vermelha sem saber o que se
passa na cabeça da criança. — Você acordou faz tempo?
— Meu pai foi no meu quarto mais cedo, mas pedi pra dormir
mais e ele disse que eu podia. Acho que ele aproveitou para dormir
mais também.
Ah sim, então Nick se certificou que a menina estava
dormindo antes de voltar ao quarto.
— Sim, acho que foi isso.
— Mas acho que vou acordá-lo. Estou com fome.
— Posso preparar alguma coisa pra você comer, tudo bem?
Não faço ideia do que ela come, mas não deve ser difícil.
Ela pula do sofá animada e vem na minha direção, pegando
minha mão e me puxando para a cozinha.
— Sim! Eu quero ovos mexidos e morangos. E suco também!
E você sabe fazer aqueles bolinhos pequenos com confeito em
cima?
Ah minha nossa, não acredito que seja isso que crianças
comem de manhã.
Novamente Mackenzie está aproveitando que sou uma
estranha para pedir coisas nada apropriadas.
— Hum, posso fazer ovos e ver se temos morango, mas bolo
confeitado, não sei não.
— Ah, está bom. — Seus ombrinhos caem.
Vou até a geladeira e pego os ovos. Quando me viro ela está
do meu lado.
— Deixa eu te ajudar!
— Certo, eu deixo você colocar os ovos na tigela, ok?
Ela pula animada e puxa uma cadeira para meu lado subindo
em cima.
Eu lhe passo o ovo.
— Bata na tigela um pouquinho e quando quebrar você
coloca dentro.
— Eu sei fazer, eu sei! — insiste e bate o ovo, que arrebenta
na sua mão antes de ir pra tigela.
Não contenho a risada.
— Tem que ser com mais cuidado.
— Eca! — Ergue as mãozinhas sujas, rindo também.
Eu a inclino sobre a pia e lavo seus dedos melecados.
— Eu vou fazer hoje, você observa, ok? Da próxima vez eu
deixo você tentar de novo, combinado?
— Combinado!
Mas enquanto eu bato os ovos e Mackenzie fica observando
com os olhinhos curiosos eu colocá-los no fogo me pergunto se
haverá próxima vez.
Eu dormirei outras vezes com Nick e conviveremos com a
filha dele?
E percebo que eu quero isso. Que Mackenzie é uma menina
doce e fácil de gostar.
— Já podemos comer? — indaga ansiosa, quando apago o
fogo.
— Claro, vá para a bancada.
Ela corre e se senta.
Eu coloco os ovos em seu prato e ela come deliciada.
— Eu adorei, Kiara. Prova! — Pega o garfo e leva para minha
boca eu o experimento.
É, podia ficar melhor, mas nada mal.
Pelo menos a criança gostou.
— Hum, muito bom.
— Só faltam os bolinhos confeitados. — Ela pisca e rimos
juntos.
— Não acho que bolinhos confeitados são bons para o café.
Duvido que seu pai aprovaria.
— É, ele não deixaria não. Mas quem ficaria brava é minha
tia.
— Ah, claro. Sua tia Claudia.
Não posso deixar de sentir ainda um certo ranço pela mulher
que não ia com a minha cara.
Então levanto o olhar e Nick está na porta da cozinha nos
observando com um olhar estranho.
Eu fico vermelha me perguntando se ele está bravo porque
estou com a filha dele, mas acho que é exagero meu.
— Papai! — Mackenzie vê o pai e sorri. — Olha, Kiara fez
ovos pra mim!
Nick retribui o sorriso.
— Que bom.
Quando ele se aproxima, beija os cabelos da menina. Eu me
afasto automaticamente, porque ele se interpôs entre nós e tenho
uma impressão esquisita de que Nick está afastando a menina de
mim.
— Você queria suco também, não é? Será que temos suco
de laranja? — eu indago a menina.
Nick vira pra mim.
— Pode deixar que eu sirvo minha filha.
Ele passa por mim e pega o suco na geladeira.
“Opa. Que foi aquilo?”
Dou de ombros e sirvo o resto do ovo pra mim.
— Você quer ovo? Posso fazer mais — pergunto a Nick.
— Não, não tenho fome, vou só fazer um café. Pode comer.
Ele está meio sério e é um tanto perturbador.
Talvez se sinta culpado por ter transado comigo agora que
está com a filha?
Ele confessou ontem que não esteve com ninguém nesses
dois anos. Deve ser algo inédito para Mackenzie ter uma mulher
com ele.
— Nós vamos ficar aqui hoje, papai? — Mackenzie pergunta
de boca cheia.
— Não, nós só vamos tomar café e já vamos embora — Nick
responde enquanto mexe em seu celular e toma café.
Ah, eu me sinto meio desapontada. Mas o que esperava?
Eu tenho compromissos em Vancouver. Uma Olimpíada se
aproximando.
Quando termino de comer, lavo o prato na pia.
Nick se aproxima com a caneca e seguro seu pulso.
— Me desculpe — sussurro baixinho.
Ele franze a testa, confuso.
— Acho que não gostou que eu fizesse café pra sua filha.
Uma sombra passa por seu olhar.
— Não é nada disso, mas não vamos falar sobre isso agora.
“Oh. Então tinha mesmo algo?”
Sinto meu estômago se revirar.
Relanceio o olhar para Mackenzie que já pulou da bancada e
vai para frente da TV.
— Acho que esqueci da sua filha ontem... E hoje. — Fico
vermelha. — Não sei o quanto disso é inapropriado. — Aponto pra
mim mesma. Nick já está vestido, reparo.
— Não fizemos nada inapropriado na frente de Mackenzie.
— Mesmo assim, eu não sei muito como agir e se... como vai
ser a partir de agora.
Deixo no ar que eu quero que ele me diga que vamos
continuar juntos.
Que vamos ir em frente naquele... o quê?
Caso?
Namoro?
— Olhe, eu preciso muito conversar com você, mas...
— Sim, certo. Não é o momento. Vou me arrumar para irmos.
Eu me afasto para o quarto, visto minhas roupas e penteio
meu cabelo.
Quando volto para a sala, escuto Nick e Mackenzie em algum
lugar da casa, provavelmente ele está a ajudando a se arrumar.
Pego minha bolsa e minutos depois, eles aparecem.
Seguimos para o carro e Mackenzie tagarela sobre seus
desenhos preferidos, perguntando se eu conheço. Obviamente eu
não faço ideia da maioria e ela fica indignada.
— Mas como não conhece a Patrulha Canina? Você tem que
assistir. Eu tenho todos os DVDs. Posso emprestar para a Kiara,
papai?
— Não acho que a Kiara tenha tempo, ela é uma atleta
ocupada.
Ele fala isso sério, quase como uma acusação e eu me
encolho.
Talvez Mackenzie tenha percebido o tom do pai porque
também se cala e em pouco tempo ela está adormecida.
Quando chegamos em frente a minha casa, Mackenzie
acorda e diz que precisa ir ao banheiro.
— Nós logo chegaremos em casa, filha.
— Mas eu quero ir agora.
— Ela pode subir no meu apartamento — eu ofereço.
Nick hesita, mas acaba concordando.
Nós subimos e eu mostro pra Mackenzie onde é o banheiro e
ela corre pra lá.
Eu encaro Nick.
— Você está estranho.
— Me desculpa. É que... minha cabeça está cheia de
coisas... — Ele parece atormentado.
— Disse que precisávamos conversar.
— Sim, tem razão. Será que podemos... jantar hoje?
— Um encontro? — Não consigo evitar as borboletas na
minha barriga enquanto sorrio, mas Nick continua sério.
O sorriso morre no meu rosto.
— Você vai me dar o fora, não é? — sussurro já meio
apavorada. — É isso, vai me dizer que foi um erro e que odiou ficar
comigo...
— Eu não odiei ficar com você.
Mas também não está dizendo que não foi um erro.
E nem que não vai me dar um fora.
Sem pensar, eu me aproximo e beijo sua boca.
Meus dedos crispados em sua camisa não querendo deixá-lo
ir.
Nick corresponde ao beijo, mas se afasta.
— Eu sei que tem um passado, Nick. — Eu o encaro. — Sei
que ainda tem Claire em algum lugar do seu coração. Eu entendo
isso. Mas tudo o que eu te peço é o agora. É isso... — Eu me aperto
contra ele e vejo o desejo em seu olhar. — Nós. Não importa o
passado ou o futuro. Apenas... vamos viver isso. Eu só queria ser
feliz pelo menos um pouquinho. Se você tiver algo pra me dizer que
vai me magoar, não diga. Por favor?
— Acabei! — Mackenzie volta.
E eu solto Nick, antes que ele responda.
— Então vamos. — Ele se vira pra filha.
Mackenzie vem até mim e me surpreende ao abraçar minha
cintura.
— Tchau, Kiara.
Eu sorrio, enternecida.
— Tchau, Mackenzie.
Nick segura a mão da filha e eu abro a porta pra eles.
Mackenzie segue chamando o elevador e Nick me encara.
— Eu te pego hoje às oito, ok?
— Ok.
Ele se vai e eu fecho a porta.
E me pergunto como conter a ansiedade até hoje à noite.
Capítulo 3

Nick

Eu nunca fui um homem de muita fé. Meus pais, Beatrice e


Hudson eram hippies que viveram o auge da década de setenta,
livres antes de eu nascer, anos depois de casados, e sempre me
criaram sem muito apego religioso. Claire, ao contrário, era crédula
no sentido amplo da palavra. Ela acreditava em tudo o que era
mágico e imaterial. Adorava ter uma religião por semana, às vezes
mais de uma. Acreditava que existia um mundo além do nosso e
que o destino regia nossas vidas como se fôssemos marionetes.
E eu nunca acreditei em nada disso. Porém, como explicar
que a mulher que encontrei no gelo era Kiara Willians, a mãe
biológica da minha filha, que eu armei um plano para conhecê-la em
breve, apenas para averiguar se ela era uma pessoa digna de
confiança?
Ainda lembro que fiquei alguns segundos em choque, até que
ela soltou um gemido trêmulo e entrei no modo de emergência.
Uma breve olhada em volta para ver se estava sozinha, vi
seus patins. Ela estava patinando? Será que caiu? Porém, não dava
tempo de fazer conjecturas naquele momento. Peguei os patins e
carreguei a garota gelada até minha casa, tirei sua roupa, mesmo
ela se debatendo assustada e a aqueci com meu próprio corpo, até
que se acalmasse.
Depois, quando finalmente adormeceu, longe do perigo, a
coloquei na cama e saí do quarto, ainda surpreso e em choque.
Que diabos ela estava fazendo ali, caída na neve? Senti uma
certa raiva de sua atitude temerária. Não percebeu o perigo? Que
estava prestes a cair uma nevasca?
Enfim, decidi que não me interessava os motivos da garota
estar na neve. Talvez eu devesse lhe contar toda a verdade quando
acordasse. Encontrá-la ali seria um sinal de que não adiantava nada
fazer planos quase maquiavélicos de como seria nossa
comunicação? O destino estava rindo da minha cara agora, a
jogando aos meus pés?
Ainda confuso, decidi entrar na hidro e foi assim que ela me
encontrou. Ambos ficamos em choque por um momento, afinal, eu
estava nu. Nada apropriado. Ela correu para o quarto e eu me senti
corando feito um colegial, o que era ridículo.
Certo, eu tinha que pensar rápido, o que ia fazer?
Decidi, então, não contar nada. Eu poderia seguir com o
plano. Claro que ela iria saber que eu era Nick de Santi em algum
momento, mas talvez, o fato de ela estar ali, a minha mercê — e
estaria por algum tempo, já que a nevasca estava forte — fosse
uma primeira oportunidade para observá-la.
E assim eu decidi.
O problema foi que Kiara era diferente do que deduzi.
Ela era tímida, quase arisca e amedrontada. E lembro-me de
meu choque ao ver sua tatuagem. Era a mesma frase que eu tinha
tatuado. E eu e Claire a fizemos em algum momento depois do
nascimento de Mackenzie.
Plus que ma propre vie.
“Mais que a própria vida.”
Era como eu acreditava que era nosso amor.
Mas a morte venceu a vida, a levando.
E que coincidência bizarra era aquela, já que Kiara tinha a
mesma frase. Quando eu toquei os dizeres, fascinado, ela se
encolheu dizendo que não gostava que a tocassem. Isso acendeu
um alerta em mim, uma desconfiança de que em algum momento
alguém a tinha machucado.
Eu garanti a ela e a mim mesmo que estava segura comigo.
Porque era verdade, ela estava.
Só que enquanto a noite prosseguia, comecei a reparar em
como ela era bonita. Seu cabelo loiro-escuro parecia macio. Seu
rubor era fofo. Seus olhos, ora assustados, ora curiosos, eram
atraentes como o mar mais profundo. Perigoso e maravilhoso.
E eu me dei conta, em algum momento, entre intrigado,
surpreso e irritado, que eu a achava atraente. Muito.
Obviamente, esmaguei aquele pensamento. Era ridículo.
Além de muito inapropriado. Mesmo que Kiara não fosse quem
fosse, ela ainda era uma garota que estava confiando em mim para
mantê-la em segurança.
Mas a luz acabou e tive que oferecer minha cama. Ela
recusou, assustada. Chorou enquanto ia para o sofá desconfortável.
Fez algo doer em meu coração vê-la assim. Me deu vontade de
confortá-la, mas me mantive longe.
E a noite, ela veio.
Acordei com seu corpo ainda gelado buscando calor no meu.
E sem pensar, segurei sua mão e a mantive perto.
E enquanto ouvia ela finalmente relaxar e começar a
ressonar, relaxada contra meu corpo, nossos dedos entrelaçados,
eu me dei conta que fazia mais de dois anos que não sentia o calor
de alguém junto ao meu.
E surpreendentemente apreciei isso.
Julguei que era um ato inocente, mas quando acordei,
estávamos entrelaçados de outra maneira, com nossos quadris se
roçando e os dedos curiosos de Kiara perambulando por minhas
tatuagens.
E quando nossos olhares se encontraram, não pude evitar
sentir uma lança aguda de desejo me atingir sem que eu previsse
ou esperasse. E assim, eu estava de pau duro roçando em Kiara
Willians.
E pior, vislumbrei no olhar dela o mesmo desejo.
Puta. Que. Pariu.
Até hoje eu me pergunto o que diabos teria acontecido, se o
carro de Claudia não tivesse estacionado em frente a casa,
quebrando aquele encantamento bizarro e impróprio.
E quando Kiara partiu, sem ao menos se despedir, senti
alívio.
Porque eu estava irremediavelmente atraído por ela e não
poderia deixar aquilo ir em frente.
Mas foi.
Eu fui.
Decidi ir à reunião e me apresentar logo, me deparando com
o olhar chocado e furioso dela, ao fugir da sala.
Ainda assim, fui atrás dela. Eu a convenci a continuar no meu
plano.
Convencido que tudo estava sob controle. Era apenas uma
questão de conhecê-la e saber se deveria ou não lhe contar sobre
Mackenzie.
Porém, eu só me afundava mais naquela atração, porque
percebia cada vez mais que aquela atração era recíproca.
E quando finalmente sucumbi e a beijei na minha casa, me
senti horrível depois, porque, quando eu fugi, Claire estava ali,
esperando por mim, me vendo me masturbar pensando em outra
mulher.
Eu sabia que ela não era real. Era minha maldita consciência
me pregando peças.
Mas pedi desculpas. Como um maldito adúltero.
— Você está apaixonado por ela — foi o que sussurrou em
meu ouvido antes de desaparecer.
Era absurdo.
Não podia estar apaixonado por Kiara. Era apenas uma
atração. Provavelmente estava tão atraído porque não fazia sexo há
tempos.
Depois, disse a Kiara que ainda amava minha esposa morta.
E me senti um cretino porque percebi que isso a magoou e então
senti agora como se estivesse sendo desleal com Kiara.
Quão louco era isso?
Disposto a me afastar de vez, decidi seguir os conselhos de
Matt e levei Samara para jantar. Só para achar a noite maçante e
sem sentido.
E Kiara começou a aparecer apenas na companhia do seu
parceiro, Chris, o rapaz bonito que eu achei que era seu parceiro de
cama também, cuja possibilidade descartei quando Kiara contou
que não tinha encontros.
O que era de se esperar talvez, pois eu já tinha percebido
que algo traumático aconteceu com ela. E eu me perguntava com
certo medo se fora assim que Mackenzie fora concebida, porque a
paternidade biológica ainda era uma incógnita. Kiara não falava de
nenhum relacionamento passado que pudesse ter resultado em uma
gravidez indesejada. Cogitei se seu antigo parceiro, Dimitri, poderia
ser o genitor, mas era impossível saber a não ser que Kiara
contasse.
Cheguei inclusive a fazer perguntas sobre ela com Nádia, sua
treinadora e até mesmo com outras patinadoras, como a irmã de
Alana, a garota encrenqueira que odiava Kiara. E esta ainda acusou
a mãe de Kiara de ser a culpada de uma intoxicação alimentar da
irmã.
Obviamente, eu não acreditei nessas coisas. Agora, que eu já
conhecia um pouco Kiara, não a via fazendo isso. Porém, ainda
tinha Maude. Ela era claramente uma mulher obcecada com a
carreira da filha. Isso ficou claro.
E me perguntava se o fato de Kiara ter aberto mão da filha
poderia também ter a ver com a pressão materna. Ficou bem óbvio
que Maude exercia um grande poder sobre a vida de Kiara.
Assim, as semanas passaram e eu tive que lidar com uma
atração inesperada e com a ideia cada vez menos abstrata de que
talvez eu devesse revelar a verdade sobre minha aproximação. E
talvez assim, saber tudo sobre a concepção de Mackenzie e o
passado obscuro de Kiara.
Então, nos reencontramos no ringue de patinação e ela
desnudou sua alma.
Nunca senti tanto ódio, pensando no que fizeram com ela.
Era injusto que uma garota bonita e jovem que deveria estar
vivendo plenamente sua sexualidade fosse feita de gelo.
Mas ela derreteu sob meu toque. E isso foi o céu e o inferno.
Eu a beijei. Eu a toquei, quis tirar a dor dos seus olhos, de
suas memórias. Do seu corpo. Quis substituir com meu carinho,
com todo o prazer que eu podia dar pra ela.
E finalmente entendi os motivos de ter dado a filha. Kiara não
queria estar com uma criança fruto de uma violência.
Voltei pra casa dizendo a mim mesmo que eu tinha que
contar a ela sobre Mackenzie. E que não sabia como é que ia me
livrar daquela atração que estava descongelando todas as minhas
emoções.
Já não podia dizer a mim mesmo que era só sexo.
Eu queria transar com ela até que não se lembrasse de nada
ruim. Até que só tivesse as memórias da minha mão em seu corpo.
Só que eu não podia.
O mais importante ainda era Mackenzie, e eu tinha que me
concentrar nisso. Por isso decidi que era hora de colocá-las juntas e
sentir a partir dali o que eu podia fazer.
Não havia sequer uma pequena desconfiança em Kiara. Ela
tratou Mackenzie com uma gentileza educada, como se ela fosse a
filha de um conhecido.
E não posso negar que isso doeu. Vê-las patinando juntas, e
saber que eram mãe e filha e não tinham a menor ideia.
O quão cruel era isso?
E o quão cruel eu seria de contar e revirar a vida dela do
avesso, justamente agora que precisava estar bem para as
Olimpíadas mais importantes da sua vida?
Eu disse a mim mesmo que não contaria. Não por enquanto.
No fundo, não sabia quando nem onde. E, na verdade, nem
se era mesmo o certo.
Porém, perdi a batalha em Whistler.
Eu me deixei atrair por sua sedução inocente. Por aquele
anseio que via em sua íris clara. E amei cada segundo que estava
com ela.
Apaguei o passado. Ignorei o presente e cheguei a fingir que
aquilo era o começo de um futuro.
Até que ela me confessou chorando sobre a filha perdida.
E caí no abismo de novo. Ela apenas chorou até adormecer,
sem conseguir falar mais nada, e, no fundo, eu sabia que se tivesse
continuado, eu teria que ter confessado o meu segredo também.
A merda é que senti uma espécie de alívio. Porque eu sabia
que a partir do momento em que contasse a verdade sobre
Mackenzie, Kiara iria me desprezar. E não podia culpá-la.
O problema é que eu não queria que ela me desprezasse.
Queria que ela me amasse, porque eu começava a amá-la.
Eu já tinha amado antes. Intensamente, e achei que fosse pra
sempre.
Mas aquele amor morreu, deixando apenas as memórias do
que ele foi um dia. E mantive meu coração trancado, com medo de
amar de novo. Com medo de esquecer o que vivi com Claire, como
se fosse uma traição vil e colocar outra pessoa em meu coração.
Mas Kiara deslizou com seus patins para dentro do meu
coração mesmo eu lutando contra.
Claire tinha razão. Eu podia amar de novo.
Eu já estava amando de novo e ironicamente a mãe da nossa
filha.
E agora eu só conseguia lamentar que não ia durar. Porque
ela ia me odiar quando eu lhe contasse o que fiz.
Lamentei não ter contado a verdade desde o começo. Será
que se eu tivesse lhe revelado quem era naquela mesma tarde da
nevasca, as coisas teriam sido diferentes? Eu já me sentia atraído.
Já sentia a conexão.
O que teria acontecido? Talvez ela não tivesse motivo para
ter raiva de mim. Não faço ideia de como reagiria com Mackenzie.
Talvez ficasse assustada, mas em algum momento Mackenzie a
conquistaria. E talvez eu poderia pedir para sair comigo. Talvez a
gente chegasse no mesmo ponto em que estamos agora, mas não
em cima de mentiras.
Então passei a viver este inferno.
Quando deslizou para meus braços de manhã, eu só queria
que ela não saísse nunca mais dali.
E ela pediu que eu não a magoasse. Como fazer isso?
Como um belo covarde egoísta, aceitei o que estava me
oferecendo, me perdi de novo em seu corpo, em seus gemidos.
E fiquei assustado pra caramba quando a vi interagindo com
Mackenzie, que parecia tão à vontade com ela.
Eu me senti meio apavorado.
Vislumbrei por um momento a possibilidade de Kiara,
contrariando minhas expectativas, querer ficar com Mackenzie.
E pior, só Mackenzie. Porque não havia a menor
possibilidade de ela me perdoar depois que descobrisse o que fiz.
Como seria?
Eu podia abrir mão da minha filha para Kiara?
Na casa dela, ela estava chateada comigo, percebeu meu
comportamento esquivo. E eu não sabia mais o que fazer.
Marquei aquele jantar para conversarmos sabendo que eu só
tinha que fazer uma coisa.
Contar a verdade, para o bem ou para o mal.
Porém, ainda sem ter certeza se este era o momento, afinal,
Kiara estava prestes a embarcar nas Olimpíadas, o que isso faria
com sua mente?
Ela ficaria devastada.
Não, eu não podia contar agora.
Mas também não poderia continuar com ela.
Eu tinha que fazer o que ela disse que eu iria fazer. Precisava
lhe dar o fora.
Capítulo 4

Kiara

— Kiara concentra! Precisa caprichar nos twists!


A voz de Nádia atravessa as camadas de pensamentos
desconexos que rondam minha mente e eu pisco, me posicionando.
Com um movimento gracioso, Chris me lança no ar e executo
as rotações antes de ser pega pela cintura e pousar no gelo com
um pé só.
— Pode melhorar! — Nádia insiste.
Pela sua voz ela não está nada satisfeita. E, claro, este
elemento tem um alto valor na pontuação da dupla e deve sair
perfeito.
— Quem é que está distraída hoje?
Chris indaga quando deslizamos para fora do gelo, depois de
horas treinando.
— Não tem noção de quanta coisa está me distraindo agora
— confesso e ele levanta a sobrancelha, mas antes que possa falar,
escuto um grito irado no outro lado da pista, que chama nossa
atenção.
E Alana está se levantando, limpando o gelo da roupa e
xingando Dimitri que acabou de lançá-la ao chão.
— Nossa, como é que estão indo juntos? Eles parecem que
vão se matar a qualquer momento.
Chris solta uma risada, colocando a proteção na lâmina e eu
faço o mesmo.
— Talvez se matem mesmo.
— Kiara, espero que amanhã esteja menos distraída.
Estamos com o tempo apertado agora. Amanhã vamos treinar a
coreografia e espero que esteja concentrada, hein?
— Claro, Nádia.
Forço um sorriso de concordância e ela não parece acreditar,
pelo franzir de sua testa. Sei que se pergunta o que deu em mim.
Mas a única coisa que consigo pensar agora é que em
algumas horas estarei com Nick de novo.
A ansiedade me corrói por dentro, assim como um certo
receio sobre o que ele quer conversar comigo.
— Quer jantar hoje? — Chris indaga enquanto nos
aproximamos dos vestiários.
— Tenho um compromisso.
— Hum... Como assim?
— Nossa, eu tenho tanta coisa pra te contar, mas acho que
vai levar horas e horas e tenho que ir pra casa tomar um banho e
me arrumar.
— Parece que estamos falando de um encontro?
— Sim, estamos falando de um encontro.
— Uau! Espera... Nick de Santi?
— Como sabe?
— Para ter este brilho no seu olhar, só podia ser. Mas eu
achei que este romance tinha subido no telhado.
— Eu também achei.
— Certo. Vá pra casa, mas amanhã, vai ter que me contar
em detalhes. Talvez eu também tenha algumas coisas pra te contar.
— Ele pisca entrando no vestiário masculino.

Quando chego em casa, vejo que continuo recebendo


mensagens iradas da minha mãe. Estou respondendo com o intuito
de enrolá-la, dizendo que ando muito ocupada treinando e me
concentrando, mas sei que, se não ligar pra ela logo, pode aparecer
ali para me vigiar e é a última coisa que quero no momento.
O que Maude diria quando eu lhe contasse que estou
transando com Nick de Santi? Provavelmente ela surtaria. Maude
odeia qualquer coisa que me tire a concentração da patinação.
Ainda mais agora.
Então apenas lhe garanto que já estou em casa, minto que
vou tomar um banho relaxante e dormir, para ela me deixar em paz
e corro para o banho.
Nossa, eu nunca na vida adulta fui a um encontro e sinto meu
estômago revirando de inquietação enquanto me arrumo colocando
um vestido preto e me maquiando. Eu geralmente estou arrumada
em público, não porque sou excessivamente vaidosa, mas porque
minha mãe diz que preciso passar uma imagem impecável, inclusive
na aparência. Mas acho que hoje, pela primeira vez, me sinto bem
em me arrumar para estar bonita. Para me sentir segura.
Porém, quando estou voltando para a sala, conferindo se
coloquei tudo na bolsa, me deparo com Maude entrando no meu
apartamento com cara de poucos amigos.
Sinto o velho temor quando ela me lança um olhar curioso e
sério.
— Aonde vai toda arrumada assim? Entendi que ia dormir e
descansar.
— Eu... Eu vou jantar fora.
— Com quem?
Hesito. Não quero dizer.
Não quero que Maude estrague aquela experiência com
algum comentário horrível.
Ou que Deus me livre tente me impedir de sair. Porque eu
tenho medo de que ela consiga.
— Vamos, diga — insiste com autoridade. — Você mentiu
deliberadamente. Está indo, sabe Deus onde sem me avisar,
sabendo que eu não permitiria, não é? Por isso mentiu, como pode
ser tão irresponsável? Estamos com o pé nas Olimpíadas! Sua vida
é só treinar e descansar para estar bem para o próximo treino!
Agora me diz que tem um encontro? Você não tem encontros!
Por um momento, eu me encolho, a velha culpa e medo me
corroendo.
Ela tem razão. Eu deveria estar com a cabeça apenas nas
Olimpíadas. Um bom estado de concentração é tão importante
quanto um bom condicionamento físico, técnica perfeita, coreografia
e programas impecáveis.
Mas, inferno, eu faço a mesma coisa há anos. A vida inteira.
Treinar. Dedicar-me. Concentrar-me apenas em um objetivo
na minha vida: a patinação.
Eu abri mão de tantas coisas...
Tanto tinha sido tirado de mim e olhando para trás, que tipo
de felicidade real eu tive?
Que momento me senti realmente viva, senão quando estava
patinando?
Ontem, com Nick, senti mais emoção do que senti na minha
vida inteira e só quero agora experimentar mais disso.
Eu quero viver.
Quero sentir.
Quero descobrir o que mais pode ter para mim além de
ganhar medalhas.
Aquela certeza bate em minha mente e se expande em meu
peito.
Levanto a cabeça, encarando minha mãe, a mulher que
acredita piamente que não há nada tão importante quanto as glórias
da patinação, sabendo que algo está mudando irreversivelmente
dentro de mim.
E não posso e não quero que Maude me impeça de ir em
frente.
— Eu tenho um encontro sim. — Aprumo os ombros e tento
imprimir um tom casual a minha afirmação. — Acho que é normal,
não é? Eu posso perfeitamente ser uma boa atleta e ainda sair para
me divertir quando tenho vontade.
Os olhos se estreitam perigosamente.
— Você está louca? Será que não entende que não é como
as outras pessoas?
— Mas eu quero ser. — Meu tom de voz muda para
imperativo. Já chega. — Não vou mais ficar sob essa pressão
horrível que você impõe.
— Eu? Fala como se eu fosse a grande vilã! É a carreira que
você escolheu, a carreira que lhe dá frutos e que tem hora para
acabar! Não pode jogar fora por causa de um encontro com... Com
quem vai sair? Me responde?
— Não é da sua conta, mãe.
— O quê?
— Sim, é isso. Com quem eu saio não é da sua conta. Agora
se me der licença, eu tenho que ir.
Pego meu celular, ignorando que Maude continua gritando e
saio do apartamento.
Praticamente corro e entro no elevador, enviando um recado
a Nick para que me diga onde podemos nos encontrar, pois não
quero que ele venha me buscar e correr o risco que Maude o veja.
Desço direto para a garagem e entro no carro, saindo do
prédio e respirando quase aliviada, porém meu estômago começa a
doer quando lembro de como respondi para Maude. Eu nunca fiz
isso antes. Até podia tentar me rebelar de vez em quando, mas no
fim ela sempre me convencia a fazer as coisas do jeito que achava
que era o certo. Me convencia que era o certo.
O jeito dela.
O celular pisca e vejo que Nick informa que vamos ao Five
Sails. Coloco o endereço no GPS e tento conter as batidas do
coração, mas ignoro que Nick manda mais uma mensagem
perguntando se está tudo bem.
Provavelmente ele está estranhando que tenha decidido ir
direto.
Quando chego lá, um manobrista leva meu carro e descubro
que o restaurante muito fino é dentro do Hotel Pan Pacific. Sou
levada à mesa que Nick reservou e contrariando meus hábitos peço
um drink alcoólico para esperá-lo.
Sinto-me um tanto nervosa agora e com frio na barriga,
porém, também com uma espécie de euforia que se nega a
arrefecer.
E depois de alguns minutos, Nick se aproxima. Ele está
vestindo um terno casual preto e faz meu coração disparar com sua
beleza quase agressiva.
— Oi. — Sorrio, sem me conter, porém ele permanece sério.
— Oi, Kiara. — Sua voz é quase grave.
Faz a animação em meu íntimo esfriar um pouco.
O garçom se aproxima e ele pede apenas água.
E quando o moço se afasta, ele olha com censura para minha
bebida.
— Não está dirigindo?
— Apenas alguns goles, não acho que sairei daqui e baterei
o carro na primeira esquina — respondo de forma irônica.
— Achei que eu ia te buscar em sua casa. — Ele não parece
feliz e de repente algo me ocorre.
— Você ia desmarcar? Ia até minha casa, mas não ia me
trazer aqui, não é?
Nick desvia o olhar, os dedos nervosos passando pelo
cabelo.
Um medo frio começa a me devorar por dentro.
O garçom se aproxima e pergunta se estamos prontos para
fazer nossos pedidos.
Eu peço salada e peixe e Nick um filé.
Então o silêncio recai sobre a mesa novamente.
“O que há de errado?”
Eu me recordo de mais cedo. De quando ele me deixou na
minha casa e disse que queria conversar comigo. De como eu
indaguei se ia me dar o fora.
“É isso? Nick vai dizer que não quer mais nada comigo.”
Sinto um súbito nó na garganta.
Mas quando abro a boca para indagar que merda ele vai
fazer, seu celular toca.
Ele pega o aparelho e seu olhar parece preocupado quando
se levanta.
— Desculpa, preciso atender.
Ele se afasta e respiro fundo, tentando não me desesperar.
Tentando não sofrer com antecedência. Ele não ia me trazer pra
jantar só pra me dar um fora, ia?
Bem, agora parece que ele nem queria me trazer pra jantar,
me recordo que não negou quando lhe indaguei sobre isso.
O garçom volta com nossos pratos ao mesmo tempo que
Nick retorna e toma seu lugar.
— Me desculpe, era algo com minha filha.
— Mackenzie está bem? — Quero perguntar se há algum
problema com a menina. Se é por isso que ele parece distante e
preocupado.
— Sim, está tudo bem — desconversa, mas não continua o
assunto.
Eu tento comer, mas a comida tem gosto de papel. A noite
que eu tinha projetado tanto está se tornando um fiasco.
— Por que tenho a impressão de que não queria estar aqui?
— indago finalmente, cansada daquele silêncio tenso.
Nick levanta o olhar, sua expressão é uma incógnita.
Não consigo decifrar o que se passa em sua mente naquele
momento.
— Me desculpe, estou sendo um cretino.
— Está sendo confuso. Foi você quem disse que queria
jantar comigo e agora é como se estivesse odiando.
— Não tem nada a ver com você.
— Não? Agora vai vir a famosa frase clichê, não é você, sou
eu? — Começo a me irritar.
Eu posso ser inexperiente nesses jogos. Posso estar louca
por ele e muito disposta a insistir para que admita que somos
incríveis juntos e que podemos ser ainda mais se permitir.
Mas não vou aguentar que Nick me trate como uma idiota,
agindo carinhoso em um momento e com frieza distante em outro.
Nick descansa os talheres e parece estar organizando os
pensamentos antes de falar.
Eu espero com um frio na alma.
Talvez eu já saiba o desfecho, mas insisto em uma última
esperança.
— Não posso ficar com você, Kiara.
Ali está. O que eu temia.
Já desconfiava.
E mesmo assim, recebo como um soco no estômago,
perdendo o ar.
— Por quê? — indago quase fria. Quase calma demais,
quando por dentro estou desmoronando.
Nick respira fundo. Parece se conter. Parece ter um monte de
coisa pra me dizer, porém, apenas segura minha mão trêmula por
cima da mesa, apertando meus dedos. Seus olhos brilhando com
algo que parece... pesar.
— Eu nunca deveria ter deixado as coisas chegarem onde
chegaram.
— Mas deixou.
— Sinto muito.
— Achei que... — Que ao menos gostasse um pouco de mim.
Que me desejasse, quero dizer.
Claro que ele tinha confessado que ainda gostava da mulher
morta. Eu posso entender.
Posso esperar que ele se apaixone por mim como eu tinha
me apaixonado por ele. Nós temos algo. Temos uma fagulha que
poderia se transformar em um incêndio. Poderíamos queimar e
renascer juntos, como Fênix nascida das chamas. Novos, brilhantes.
Perfeitos.
Será que ele não vê?
Não percebe que descongelou minhas emoções?
Que se ele permitir, eu posso descongelar as dele?
— Eu te disse que poderia não gostar de mim um dia, Kiara.
— Não gostar? — Solto uma risada que é mais um engasgo.
— Seria muito fácil se eu não gostasse. Mas eu não consigo evitar.
E eu não entendo por que está me dando o fora, assim, sem nem ao
menos permitir...
— Eu não posso. Há coisas... — ele hesita. — Talvez um dia
você entenda...
— Eu sei que ainda ama a Claire. Eu entendo isso.
Nick se cala.
Talvez ele não queira me magoar mais dizendo que não pode
se apaixonar por mim, porque ama outra mulher, embora ela esteja
morta.
Eu quase sinto muito por ele.
Estou devastada por ter me enganado, por ter me permitido
construir tanta esperança.
Acho que fui um idiota.
Solto minha mão da dele e enxugo as lágrimas que nem
percebi que estavam vertendo e afasto minha cadeira.
— Fui uma idiota por achar que ao menos você me
desejasse. Acho que me enganei.
— Kiara...
Eu me levanto.
— Acho que já chega, Nick. — Eu me afasto por entre as
mesas, os anos treinando para manter minha emoção controlada,
ajuda a manter minha expressão impassível agora, enquanto espero
que tragam meu carro.
Então sinto a mão de Nick no meu braço.
Ele me faz encará-lo. Está diferente agora. Há uma certa
ferocidade em sua expressão, me faz perder o fôlego.
— Não pense que eu não te desejo. Que eu não te quero.
Que talvez eu continue querendo mesmo quando você se afastar.
Eu sou louco por você desde o dia em que acordamos juntos
naquela primeira manhã, e sabe disso. Mas não posso me deixar
levar por essa atração, por mais incrível que seja. Por mais que eu
queira mesmo agora te levar para qualquer lugar que eu possa te
foder de novo. — Seu rosto quase encosta no meu e eu respiro ele,
respiro suas palavras. — Quando digo que sinto muito por estar te
magoando me afastando é a mais pura e dolorosa verdade.
O manobrista abre a porta do carro pra mim.
— Apenas me esqueça. Siga em frente e concentre sua
mente no que deve ser importante pra você agora. As Olimpíadas.
Adeus, Kiara.
E ele praticamente me empurra para dentro do carro e bate a
porta.
Ligo o carro com as mãos trêmulas e me afasto, observando
sua imagem ficando pequena pelo retrovisor.
E só consigo voltar a respirar quando ele desaparece.
“Que foi aquilo?”
Respiro uma longa golfada de ar. O choro rompe em meu
íntimo e deixo fluir. Bato no volante com raiva de mim, por ter sido
boba.
Com raiva de Nick por mandar um monte de mensagens
confusas, me fazendo ainda querer dar meia-volta e ir atrás dele.
Dizer que a patinação não é o mais importante.
Que ele está rapidamente se tornando algo grandioso em
meu pensamento e em meu coração, assim como todas aquelas
novas emoções descontroladas.
Mas eu vou em frente.
Nick deixou claro que, apesar de se sentir atraído por mim,
por algum motivo, ele não quer continuar.
E eu só posso lamentar.
Acabo parando o carro algum tempo depois em frente à casa
de Chris.
Preciso de um ombro amigo para desabafar e estou com
medo de que Maude esteja me esperando em casa para dizer um
“bem feito, eu sabia que ia dar merda”.
A mãe de Chris abre a porta pra mim e me abraça.
— Kiara, querida, não a esperava aqui.
— Tudo bem? O Chris está?
— Ele está no quarto, acho. Eu e o pai dele saímos pra jantar
e acabamos de chegar, Chris disse que sairia com um amigo, não
vimos quando ele retornou.
— Eu posso ir lá falar com ele?
Algo no tom urgente da minha voz alertou a mulher e ela me
encara mais atentamente.
— Está tudo bem? Andou chorando, querida?
— Estou bem, só... precisava falar com Chris.
— Claro, pode ir.
— Obrigada.
Passo por ela e subo para o quarto de Chris.
Bato uma vez e entro acendendo a luz e estanco chocada ao
ver que Chris não está sozinho.
Ele surge debaixo das cobertas com Tyler Chon.
— Ah meu Deus!
Não sou eu quem exclama horrorizada, e sim a mãe de Chris
que eu não tinha percebido que estava atrás de mim e agora vê
claramente o que eu estou vendo.
Capítulo 5

Kiara

— Você está bem?


Chris levanta a cabeça do prato de cereal e me encara com
um sorriso triste.
Estamos na bancada da minha cozinha depois da noite
maluca que foi ontem quando flagramos ele e Tyler em sua cama.
Primeiro a mãe dele tinha gritado e chamado a atenção do
pai que veio correndo achando que a casa estava pegando fogo e
por um momento, Roger pareceu não entender o que realmente
estava acontecendo até que o próprio Chris, surpreendendo a todos,
apresentou Tyler como seu namorado e se levantando fechou a
porta na nossa cara.
Depois de uns bons minutos de silêncio constrangedor, onde
Ester e Roger pareciam perdidos em seu próprio choque, Roger se
virou pra mim muito sério e perguntou se eu sabia e não tive
escolha a não ser dizer que sim, mas que não iria falar nada, já que
quem tinha que conversar com os pais era o próprio Chris.
Quando decidi que deveria ir embora, Chris saiu do quarto
com Tyler, o levando até a porta. E depois pediu que eu esperasse
na sala, enquanto ele conversava com os pais na cozinha.
Escutei gritos indignados, choro e repreensão. Até que Chris
voltou com o rosto inchado de chorar e me puxou para fora.
Voltamos pra minha casa e de certa forma, acho que foi bom
deixar meu próprio drama amoroso de lado pra cuidar de Chris, que
finalmente tinha saído do armário para os pais e, como eu
desconfiei, não estavam muito a fim de aceitar aquela realidade.
— Acho que vou ficar — ele responde.
— Eles vão acabar aceitando, você vai ver. Assim que passar
o choque.
— Eu deveria ter contado há muito tempo.
— Eu concordo. E... você e Tyler, hein?
Ele solta uma risadinha.
— Quanto tempo está rolando?
— Na verdade, a paquera há algum tempo, mas ontem foi a
primeira vez que saímos de verdade.
— Eu fico feliz por você. Tyler é incrível.
— Ele é sim... Mas o que foi fazer em casa ontem? Não tinha
um encontro?
Eu suspiro empurrando o prato de cereal, voltando a sentir
meu peito apertar ao pensar na discussão com Nick.
— Eu levei um fora. — É minha vez de sorrir tristemente.
Chris fica sério, salta do banco e vai para meu lado, me
abraçando. E então começo a chorar e conto tudo a ele.
— Eu sinto muito. — Chris enxuga meu rosto.
— Eu também.
— O que vai fazer?
Eu me levanto pegando nossos pratos e levando para a pia.
— O que posso fazer? Ele não quer ficar comigo.
— Eu sei, mas parece tão injusto que o primeiro cara depois
de...
— Não continua — eu o interrompo.
— Me desculpe, mas você merece ser feliz.
— Segundo a minha mãe, a única felicidade possível é
ganhar a medalha de ouro. Talvez ela tenha razão e eu deva voltar a
focar nas Olimpíadas.
— Mas e depois?
— Depois o quê?
— A vida não é só isso.
— Eu sei, mas não posso fazer nada agora.
— Só me prometa uma coisa. — Ele se aproxima e segura
minhas mãos. — Sei que está triste agora, porque estava gostando
de verdade desse cara e até entendo. Ele é sexy pra cacete e foi o
primeiro por quem você se atraiu depois de um longo período
congelando as emoções. Mas Nick de Santi não é o único homem
do mundo. Eu tenho certeza de que você pode encontrar outros
caras, menos complicados, de preferência.
— Ou talvez eu deva aprender a ser feliz sozinha? Não tem
nenhum problema nisso, tem? Mulheres têm que aprender a serem
autossuficientes.
— Você pode sim, mas é mais divertido se apaixonar.
— E quebrar a cara?
— Faz parte. Isso é viver. Pode ser divertido. Talvez quebre
alguns corações pelo caminho também enquanto se diverte. Você
aprendeu com Nick de Santi que sexo pode ser divertido, não
aprendeu?
Eu fico vermelha.
— Sim, ele foi bom nisso.
— Muito bem, então assim que estiver mais animada, vamos
sair e você vai ser bem vadia por aí.
— Chris!
Nós dois rimos.
É uma coisa que eu não consigo imaginar.
Mas entendo o que Chris está querendo dizer, embora ainda
pareça algo muito remoto que eu queira ficar com outros caras no
momento.
Será mesmo que Nick de Santi foi apenas o primeiro de
muitos? Que a partir de agora eu serei capaz de encarar a paixão
como algo bem-vindo?
Acho que só o tempo dirá por que por enquanto a única coisa
que consigo fazer é ainda querer Nick.
— E então, quem sabe um dia, você encontre um cara pra
chamar de seu, que vai te amar como você merece. Que talvez
fique pra sempre, tenha uma família.
Solto sua mão, uma dor aguda transpassando meu peito.
— Não.
Ele toca meus cabelos.
— Não pode achar que por causa do que aconteceu, você
não merece isso.
— Eu a abandonei... — sussurro engasgada com a velha
culpa me oprimindo.
— Não, você deu a ela uma família. Fez o que achava melhor
no momento, para ela.
— Mas não melhor pra mim. Eu repeti por todos esses anos
que estava tudo bem. Mas era mentira. Não está tudo bem, acho
que nunca vai estar. Como se consegue conviver com uma perda
dessas?
— Eu não sei te dizer, querida. — Ele me abraça e eu suspiro
me soltando.
— Acho que chega de lamentação, vamos treinar.
— Tem certeza?
— O que mais me resta? — Forço um sorriso radiante. — A
não ser continuar sendo a Kiara Willians, a melhor patinadora do
Canadá, uma das melhores do mundo, pronta para arrebentar nas
Olimpíadas de Inverno de Vancouver? O show tem que continuar.

E por algumas horas é o que fazemos. Entre Twists, Camel


Spin, Death Spiral, Lutz e por aí em diante, enquanto treinamos
nossa coreografia.
Eu dou tudo de mim, para congelar de novo meu coração
partido e ser apenas o que esperam que eu seja: a patinadora
artística perfeita.
— Muito bem, hoje está melhor — Nádia elogia enquanto
deslizamos para fora da pista, suados e ofegantes.
Eu e Chris batemos as mãos num Hi5.
— Dá licença? — Alana passa por nós me empurrando no
processo para entrar na pista.
— Ei, não precisa empurrar! — rebato irritada com sua
grosseria.
Ela se volta, girando os patins.
— O que foi?
— O que foi é que você podia parar de ser uma vaca!
Chris solta um riso abafado e Alana fica vermelha de raiva,
provavelmente surpresa com meu ataque. Eu raramente me deixo
levar pelas provocações de Alana.
— Você é uma vaca, não eu! Já transou com o Nick de Santi?
Desta vez sou eu quem enrubesce. E não de raiva.
— Alana, cuida da sua vida — Chris se intromete.
— Para de defender essa metida a besta! Mas quer saber,
não vou mesmo perder meu tempo brigando com você! Eu e Dimitri
vamos mostrar do que somos capazes no ringue, e pode esquecer o
ouro que todo mundo acha que é de vocês.
— Ah vai? Vocês estão treinando juntos há o quê? Cinco
minutos e acham que vão ser páreo? — Chris debocha. — Fora que
parecem que vão se matar a qualquer momento. Vocês se odeiam,
não sei como conseguem patinar juntos.
— Eu não sou obrigada a gostar do Dimitri pra fazer uma boa
dupla com ele. E quer saber, o pai do Dimitri está na cidade e está
nos treinando pessoalmente e Andrey Ivanov é o melhor técnico do
mundo, então. — Ela levanta o dedo do meio, patinando para o
ringue, mas já não escuto mais nada. Meu ouvido começa a zunir a
partir que ela disse o nome.
Andrey Ivanov.
— Kiara? — A voz de Chris vem de como se de muito longe,
mas eu já estou mergulhada em terror.
— Eu preciso ir...
Deslizo as proteções nos patins e enquanto estou em rota de
fuga, trombo com alguém, que segura meus ombros.
— Ei, com pressa?
Levanto o olhar para Dimitri.
Os mesmos olhos.
Os olhos que fizeram parte do meu pesadelo por um longo
tempo e que com muito custo consegui apagar da minha memória.
— Kiara? — Dimitri franze o olhar, um tanto preocupado e eu
me desvencilho de suas mãos.
— Não ponha a mão em mim.
Em um segundo, Chris está me resgatando e me puxando
para longe de Dimitri.
— Meu Deus, Kiara, você está bem?
Ele entra no vestiário comigo, que ainda bem está vazio
naquele momento.
Eu me sento e luto para respirar.
— Não...
— Fique calma. Isso é inesperado, não fazia ideia de que um
dia Andrey ia voltar.
— Mas voltou... — Minha voz é só um frio estrangulado.
Andrey Ivanov, meu antigo treinador. Meu e de Dimitri, seu
filho.
Que havia ido embora para trabalhar com a equipe russa, a
melhor do mundo, há cinco anos, está de volta.
— Você precisa se acalmar. Infelizmente, esse cretino voltou,
mas certamente não vai ficar muito, deve ser só até as Olimpíadas.
Dimitri deve ter pedido para que ajudasse ele e Alana, por que só
assim para eles terem alguma chance.
— Eu não queria ver esse homem nunca mais...
— Eu sei. Mas... o que pode fazer? Você escolheu não o
denunciar, depois...
— Eu não podia, eu...
Não quero lembrar daquele tempo horrível.
Da dor. Da vergonha.
Maude disse que seria o fim pra mim se eu o denunciasse.
Andrey Ivanov era uma lenda da patinação artística mundial,
respeitado e temido.
Intocável.
E eu só queria esquecer e fingir que não tinha acontecido.
O celular do Chris vibra e ele o pega.
— Droga, preciso ir. Marquei uma reunião de família agora no
jantar.
— Claro, pode ir.
— Tem certeza? Vai ficar bem? Não quero te deixar assim.
— Sim, só fiquei abalada.
Ele me abraça.
— Qualquer coisa me liga, por favor.
— Pode deixar. Vá conversar com sua família e boa sorte.
Tento sorrir para tranquilizá-lo, mas estou longe de estar
tranquila.
É como voltar no tempo e me sentir a mesma garota
machucada e amedrontada de anos atrás, quando confiei na última
pessoa que deveria.
Abraço meus joelhos e continuo ali, tremendo e caindo cada
vez mais no bueiro cheio de memórias hostis que é minha mente.
Até que meu celular toca e contemplo o nome de Nick.
Por um momento, não quero atender. Não quero falar com
ele, depois de tudo, mas também me recordo que ele esteve ali
comigo. Que me tocou para que eu tivesse novas memórias no
lugar das sujas e sangrentas.
E de repente tudo o que quero é estar com ele de novo e
esquecer.
Aperto o celular e ponho no meu ouvido.
— Nick? — Minha voz sai trêmula e perdida. — Por que está
me ligando? Achei que não quisesse nunca mais falar comigo.
— Nunca disse isso e eu te liguei para saber se está bem.
Pode não acreditar, mas eu me importo.
— Se importa?
— Mais do que deveria.
Eu começo a chorar.
— Kiara, o que foi? — Ele fica alerta.
— Ele está aqui...
— O quê? Quem está aí?
Eu só consigo soluçar.
— Onde você está? — Nick insiste.
— No centro...
— Fique aí, eu vou te buscar.
Ele desliga e não sei quanto tempo estou ali, tremendo e
chorando, até que sinto as mãos de Nick me segurando e me
levando em sua direção.
— Pronto, estou aqui...
Eu choro mais ainda, e agora a dor está fazendo tudo
colapsar dentro de mim. Muito remotamente, sinto que ele está me
levando, quando abro os olhos, estou no carro dele, com Nick
dirigindo pela cidade.
A mão de Nick segura a minha e contemplo nossos dedos
entrelaçados, agora soluçando baixinho.
O dia está findando quando chegamos a sua casa,
reconheço. Nick sai do carro e abre a porta pra mim, me puxando
para fora. Deixo que ele me leve pra dentro, sem fazer objeção.
Ele me leva até a cozinha e me senta em uma cadeira alta. E
em seguida me dá um copo de água e vejo que tem um comprimido.
— Acha que precisa disso?
Eu encaro seu rosto preocupado e sacudo a cabeça,
tomando a água em pequenos goles.
— Não quero tomar calmante...
— Apenas me diz o que eu posso fazer para te ajudar.
— Você pode me abraçar? — Uma lágrima silenciosa cai por
meu rosto.
Nick hesita por um momento e vejo várias emoções
traspassarem seu rosto, mas ele se aproxima e me envolve com
seus braços.
Aspiro seu cheiro único, que está se tornando tão querido e
necessário e choro baixinho, porque ainda há tanta dor para se
esvair de dentro de mim.
Ele acaricia minhas costas e beija meus cabelos, me aperta
forte. E eu só quero que nunca me solte, porque se ele soltar eu vou
me espatifar no chão como uma escultura de gelo em mil pedaços
que temo nunca mais serem recompostos.
— Você quer falar sobre isso? — indaga contra meus cabelos
depois de um tempo em que o choro vai diminuindo.
Levanto a cabeça para encará-lo.
Tão perto. Tão bonito.
E sem pensar, puxo sua cabeça e colido meus lábios nos
seus.
Nick me beija por um momento, com a mesma fome e
intensidade e eu gemo perdida no seu gosto, meu corpo
esquentando de forma instantânea e meu coração sofrido se
enchendo dele.
— Kiara... — Ele tenta se desvencilhar.
— Por favor, me faça esquecer? Eu só quero lembrar que há
mais além do terror e da dor. Por favor... por favor...
Então, com um gemido rouco, ele me beija de novo. E agora
ambos estamos perdidos em gemidos aflitos e mãos afoitas.
Em segundos, enlaço minhas pernas em sua cintura e Nick
me segura, me levando para cima.
Isso!
Sinto lençóis frios abaixo de mim e o corpo dele em cima do
meu enquanto beijos molhados enchem minha boca de sensações
que se espalham por minha pele como fogo em brasa.
Não há mais gelo. Apenas fogo.
E prazer.
E desejo por mais.
— Tira minha roupa — exijo, arquejante e ele se afasta, se
ajoelhando na minha frente e começando a tirar meus patins que eu
nem tinha percebido que ainda usava.
Parece que demora uma eternidade, Nick se embola com os
cadarços, xingando baixinho.
— Inferno, vamos assim mesmo. — Ele desiste e agarra
minha blusa, a tira pela minha cabeça, abaixando a cabeça e
colocando meu sutiã para o lado para chupar meu mamilo com
força.
Dói e é delicioso, faz um prazer doce e úmido se instalar
entre minhas pernas e seguro a sua mão, a levando para lá.
Ele enfia os dedos no cós da minha calça e me acaricia.
— Assim... isso é tão bom...
— O que você quer? — Ele morde meus lábios, minha
garganta.
Torço meus dedos em seus cabelos.
— Você...
— Assim? — Enfia um dedo dentro de mim.
— Mais...
Ele enfia três e arqueio as costas, começando a pulsar contra
sua mão.
— Não... Mais... — Insiro a mão entre nossos corpos e toco
sua ereção e ele geme, e se ajoelha, me livrando da calça com certa
dificuldade por causa dos patins e abaixa as próprias calças. Pega
um preservativo na gaveta da cabeceira e desliza por si mesmo
antes de se abaixar sobre mim, subir uma das minhas pernas de
patins e tudo e me penetrar em uma só estocada firme.
Grito, deliciada com a sensação de tê-lo me fodendo daquele
jeito e mantenho meus olhos abertos enquanto ele estoca com
força, o suor cobrindo seu peito bonito, seu olhar feroz me
devorando, enquanto meus seios pulam com a força do seu sexo
sendo empurrado cada vez mais rápido dentro de mim, até que o
orgasmo explode em meu ventre, me fazendo cerrar as pálpebras e
soltar um longo gemido de satisfação, as ondas de prazer
trepidando meu corpo.
— Meu Deus, você é linda gozando com meu pau dentro de
você. — Ele bate com mais força os quadris, se inclinando para me
beijar e cinjo minhas pernas a sua volta, rebolando os quadris em
sua direção e querendo que ele sinta o mesmo que eu.
— Só você me faz gozar assim... — sussurro em seu ouvido
e Nick solta um gemido rouco e profundo, em sua própria satisfação,
desabando em cima de mim.
Um longo tempo se passa em que nenhum de nós se mexa
até que Nick levanta a cabeça e tira os cabelos do meu rosto suado.
— Você está bem?
Sacudo a cabeça em afirmativa, ainda me sentindo flutuar.
Nick se afasta e vai até o banheiro se livrar do preservativo.
Eu me sento e começo a tirar os patins, que saem fácil, com
minha habilidade de anos.
Nick volta ao quarto e vê os patins no chão. Seu olhar é
quase divertido.
— Acho que você machucou minha bunda com eles.
Eu cubro a boca com a mão rindo.
E Nick me acompanha enquanto se senta ao meu lado e
puxa os lençóis para cima de nós.
— Me desculpe.
— Tudo bem. Acho que foi sexy transar com você assim.
Trocamos um olhar cúmplice e de repente eu quero tanto que
seja sempre assim.
Mas não é.
Estou ali porque eu surtei.
E me lembrar disso faz a dor voltar ao meu peito. Mas é
diferente agora.
Já não estou surtando ou em pânico.
Estou quase calma. Embora seja triste lembrar, eu sei que foi
algo que aconteceu há cinco anos.
Que ele não pode me ferir de novo.
Que eu sou mais forte do que isso.
Então, eu começo a falar.
— Andrey Ivanov é um dos maiores patinadores artísticos de
todos os tempos. Ganhou muitas medalhas pela Rússia. Quando se
aposentou, veio para o Canadá e se casou com uma canadense, a
mãe de Dimitri. Eles se divorciaram quando Dimitri ainda era
pequeno. Eu comecei a treinar com Dimitri com 14 anos. Minha mãe
ficou radiante, afinal, Andrey era o melhor. Ele era muito rígido, mas
não diferente de muitos treinadores. Eu e Dimitri seguimos todas as
regras, ambos queríamos ser os melhores. Só que enquanto íamos
crescendo, meus sentimentos foram mudando. Eu não podia sair ou
ter encontros, minha mãe não deixava, acho que foi normal eu me
apaixonar por Dimitri que era o garoto mais próximo de mim. Mas
Dimitri também estava mudando. Ele era legal, mas às vezes se
rebelava. Ficava intratável. Tinha um humor terrível. Um dia,
estávamos treinando à noite no centro e ele estava em um desses
dias. Andrey havia se ausentado por um momento e eu caí na
besteira de beijar Dimitri. Ele riu de mim, eu fiquei brava e
humilhada e acho que xinguei ele de menino mimado e falei
algumas besteiras, para irritá-lo porque estava me sentindo mal.
Então, começamos a brigar e ele me bateu. Me deu um tapa, eu caí
no gelo, apavorada. Andrey apareceu. Dimitri estava me olhando
também assustado, como se arrependido. Andrey pediu que ele
fosse embora.
“Eu corri para o vestiário, assustada, tirei meus patins e
estava me trocando quando Andrey apareceu. Eu estava de
calcinha e sutiã, chorando. Ele entrou e me abraçou. Por um
momento, não vi problema algum porque estava nervosa. Acho que
ele queria apenas me consolar. Até hoje eu não sei se ele queria
apenas isso mesmo, mas... perdeu o controle.”
— Ele não tinha o menor direito. — Nick rosna friamente
segurando minha mão. — Se não quiser falar mais nada, acho que
eu já entendi.
— Então de repente eu senti que seu toque mudou — eu
continuo a falar — Eu tentei me afastar incomodada, mas ele não
deixou. Ele sussurrava que estava tudo bem... senti que ele estava
excitado e quando percebi o que estava rolando era tarde demais.
Ele era mais forte do que eu, me empurrou contra a pia, rasgou
minha calcinha e... me violentou. — Minha voz é só um sussurro.
— Meu Deus. — Nick aperta meus dedos.
— Depois, eu só chorava, ferida e assustada. Ele ainda me
abraçou e pediu desculpas. — Eu choro baixinho agora. O mesmo
choro da menina de antes. — Disse que eu não podia contar a
ninguém, porque isso ia acabar com a carreira dele e com a minha.
Eu me vesti e fui embora. Contei à minha mãe. Ela ficou tão
nervosa, me fez entrar na banheira, esfregou meu corpo. E disse
que eu ia dormir e esquecer. Que tudo ia ficar bem.
— Sua mãe não a levou à delegacia?
Sacudo a cabeça em negativa.
— E eu acho que nem queria, estava arrasada. Só sentia
vergonha. Não queria que ninguém soubesse daquilo. Quando no
dia seguinte, ela me disse que deveríamos esquecer o que
aconteceu, eu concordei. Acho que fiquei aliviada. Eu era só uma
criança, nem entendia direito as implicações que aquilo teria na
minha vida.
“Ela falou com Andrey. Não sei o que, na verdade. Eu estava
assustada de voltar a treinar e só chorava. Ela disse que iríamos
tirar férias. Que eu ficaria bem depois de um tempo e que Andrey
prometeu nunca mais fazer nada contra mim, mas só de pensar em
voltar eu tinha calafrios. E em algumas semanas descobri que
estava grávida... E a partir daí tudo virou um pesadelo. Nossas
férias duraram muito mais do que algumas semanas, onde ela me
convenceu que eu deveria fazer um aborto. Mas eu estava tão
apavorada que me negava a sair do quarto por semanas. Até que
não havia mais tempo para fazer um aborto e mamãe disse que
tudo ia ficar bem porque iriamos dar o bebê em adoção. Fiquei
sabendo que Andrey deixou o país e eu fiquei aliviada. Mas Dimitri
encontrou outra parceira, já que eu tinha tirado um ano sabático —
digo com ironia. — Fiquei chateada, maldisse aquela criança dentro
de mim, a culpava de tudo.”
— Você nunca a quis mesmo? — A voz de Nick soa estranha
ao meu lado.
Eu dou de ombros, de repente não conseguindo mais falar. A
parte que eu deixava minha filha ir era a mais difícil.
— Não por toda gestação, mas quando ela nasceu, eu a
amei. — Começo a chorar. — Só que era tarde demais. Um casal já
estava esperando e no fim acho que talvez tenha sido melhor assim.
Ela foi criada por pais amorosos e não sabendo que foi fruto de uma
violência.
Nick fica calado depois das minhas confissões e me sinto
esvaziada.
“O que será que está pensando de mim agora?”
— Você me acha uma pessoa horrível, não é? — Tento
desvencilhar minha mão, envergonhada por todo aquele relato, mas
Nick não me deixa ir.
Ele segura meu rosto.
— Você não é horrível. Você foi abusada. Andrey Ivanov
nunca deveria ter ficado impune pelo que te fez.
— Eu nunca teria coragem de contar nada. Eu tenho
vergonha...
— Não é você que tem que sentir vergonha, e sim aquele
filho da puta abusador. Ele deveria estar na cadeia.
— Ele estava fora do país, foi melhor assim, eu só não queria
vê-lo nunca mais, mas ele voltou para treinar Dimitri e Alana.
— Não vou deixar que ele chegue perto de você. Aliás, talvez
ainda possa denunciá-lo e...
— Não — eu o interrompo. — Eu não consigo, não me faça
fazer isso, quero esquecer. Eu vou dar um jeito de esquecer... Só
me abraça por favor, e me deixa ficar aqui hoje?
Nick me abraça. E nos deitamos juntos.
— Se você pudesse — Nick indaga baixinho — encontrar sua
filha hoje... você gostaria?
É uma pergunta estranha.
Eu sinto aquela pontada de dor que sinto sempre que penso
nela.
“Eu gostaria?”
— Eu nunca vou encontrá-la. Mas... Se fosse possível, eu
voltaria no tempo e nunca a deixaria ir.
Nick não fala nada.
De repente eu me recordo de Mackenzie.
— Nick, sua filha...
Ele fica um pouco tenso.
— Ela está na casa da tia dela, não se preocupe.
Eu me acalmo e fecho os olhos.
Sentindo o coração de Nick em meu ouvido e seus dedos
acariciando meus cabelos, eu adormeço.
Quando acordo, o dia está raiando e Nick está todo vestido
sentado em uma poltrona ao lado da cama.
Noto que está nevando lá fora. O inverno está chegando.
Eu me sento meio sem graça, puxando o lençol para o peito,
quando Nick se levanta e se senta na minha frente, e esticando a
mão acaricia meu cabelo.
Ontem ele ficou comigo, mesmo depois de ter me dado o fora
e agora ele sabia tudo sobre mim.
Todos os meus segredos.
— Você está bem?
— Eu quero ficar. Eu devo te pedir desculpas por ter te
atacado ontem?
Ele sorri.
— Não, não precisa.
— Obrigada por ter ido me buscar. Significou muito.
— Eu faria de novo.
— Eu preciso ir embora, não é? — Eu me recordo que não
estamos juntos de verdade. Que Nick já deixou claro sua posição,
mas, então, ele me surpreende.
— Fique. Eu... tenho algo para te falar. — Ele parece bem
sério.
“Pelo menos não vai terminar comigo de novo porque isso ele
já fez.”, penso com ironia.
E a verdade é que não quero me separar dele ainda.
Tudo parece melhor quando estamos perto.
— Eu preciso sair um momento — ele parece tenso —, mas,
por favor, fique e me espere?
Lembro que tenho ensaio, mas quero ficar.
— Eu fico.
Ele se levanta e sai.
Fico deitada por alguns minutos até que jogo as cobertas
para o lado e vou para o banheiro, tomo uma ducha e tento me
arrumar, colocando minhas roupas de volta, já que ele falou que vai
voltar com Mackenzie.
Infelizmente, não tenho o que calçar, pois vim de patins,
então desço descalça e de repente escuto um barulho.
“Tem alguém na casa? Será que Nick tem empregados,
talvez?”
Vou em direção ao barulho e entro no que parece ser o
escritório de Nick.
E paro surpresa ao ver que Claudia está ali na sala.
— Claudia?
Ela levanta o olhar e está pálida, igual a um fantasma
enquanto segura o que parece ser uma carta na mão.
— Você...
— Me desculpe, há quanto tempo está aqui, eu não a vi
entrar. — E muito menos começar a fuçar nas coisas de Nick, quero
acusar.
— É você nessa carta... Kiara.
Ela vem em minha direção. Seu olhar está cheio de horror e
isso me assusta. O que deu naquela mulher?
— O que está falando? Que carta?
Ela estende a carta.
— A carta da minha irmã para Nick... Você é Kiara... A mãe
da Mackenzie, meu Deus...
O quê?...
Por um momento eu não atino o significado do que ela diz.
— Não entendi, mãe da Mackenzie? Mãe da Mackenzie é
sua irmã Claire.
— Claire não é a mãe biológica de Mackenzie, ela e Nick a
adotaram.
— Como assim? Eu vi a foto dela grávida.
— Ela esteve grávida umas três vezes, uma vez chegou a
segurar até o sexto mês, mas as crianças sempre nasciam mortas.
E descobrimos que ela estava doente... Ela sempre quis ter um
bebê e Mackenzie foi adotada.
Minha nossa, de repente o significado do que ela diz começa
a entrar na minha mente.
Mackenzie não é filha biológica de Nick e Claire.
É adotada.
“Como minha filha foi.”, uma voz sussurra dentro de mim e
então outra coisa que Claire disse me atinge como um soco no
estômago.
— O que você disse? Você me chamou de...
— Mãe da Mackenzie! — ela grita.
— Não... isso é absurdo...
— Está aqui, na carta. Ela pede que Nick encontre a mãe
biológica da Mackenzie que se chama Kiara, acha que é uma
coincidência? Você sabia? É por isso que está com Nick?
Ah meu Deus, minhas pernas vergam e vejo tudo escuro.
Começo a ter ânsia, a mente rodando ao me recordar da
primeira vez que vi a filha de Nick.
Sinto o chão fugir aos meus pés quando finalmente entendo.
Mackenzie.
A minha filha.
Capítulo 6

Kiara

— Olhe aqui! — Claudia sacode a carta na minha frente e eu


a pego com as mãos trêmulas, lendo as palavras de Claire para
Nick.
E lá está.
O meu nome.
E Claire pedindo que Nick encontre a mãe biológica de
Mackenzie.
É verdade.
Uma cortina se desprende na frente dos meus olhos.
Algumas vezes, nos meus sonhos mais secretos, devo ter
desejado que algo assim acontecesse. Que me fosse permitido
conhecê-la. Saber como é seu rosto, seu sorriso, sua voz. Saber se
o que almejei pra ela, ter pais amorosos em um lar feliz, se
concretizou. Mas nunca, em mil anos, imaginei que a bebê de quem
me despedi há cinco anos era a filha de Nick.
Mackenzie...
Fecho os olhos e me deixo cair na cadeira mais próxima
enterrando o rosto entre as mãos e chorando de uma emoção que
não sei explicar.
Mas a maior dela é a raiva de Nick.
De decepção por ele ter me enganado todo aquele tempo.
“Tenho algo para contar a você.”, ele disse hoje antes de sair.
Ah meu Deus, não.
Ele sabia. Nick sabia o tempo todo.
Ele havia me procurado e inventado aquela história de
contrato de publicidade apenas por isso? Por quê?
Mas ele me encontrou no gelo. E me salvou.
Ele me aqueceu com seu próprio corpo e deixou que nossos
corações se conectassem e derretessem.
Agora, eu vejo tudo sob um outro prisma. Sua seriedade. O
jeito que se afastava de mim, quando era óbvio que estávamos
atraídos.
Dizendo que um dia eu ia descobrir coisas dele que não ia
gostar.
O ciúme da filha em Whistler, depois de dormirmos juntos.
E depois ele me deu o fora. Afastou-me.
O tempo inteiro, estava me enganando. Enquanto eu chorava
e contava sobre a violência que sofri, meus traumas. A minha filha
perdida.
Ele sabia de tudo. Sabia que eu estava falando da garotinha
que ele criava.
Ah não.
Não. Não. Não.
— Claudia, o que está acontecendo aqui?
Escuto a voz de Nick e levanto a cabeça. Claudia ainda está
ali, o corpo rígido e a expressão em choque, enquanto estou
encolhida desabando no sofá de Nick, que agora olha de mim pra
Claudia, confuso.
— Eu descobri a carta de Claire — grita cheia de acusação.
— Que tipo de jogo está fazendo?
Nick empalidece.
Eu só consigo tremer, a raiva começando a crescer dentro de
mim.
— Saia, Claudia. — Nick segura a porta.
— Não, eu tenho que...
— Saia agora, eu tenho que falar com a Kiara.
— Kiara? — De repente escuto uma voz atrás de Nick e me
surpreendo ao ver que Chris está ali.
“O que Chris está fazendo ali?”
— Deixe-nos também, Chris — Nick pede.
Chris me encara. Seu olhar é de preocupação e pena.
— Chris... — eu o chamo, choramingo, porque quero que ele
venha até mim e me tire dali.
— Eu sei, querida. Nick me contou.
“Contou? Nick contou a Chris? É por isso que ele está ali?”
— Mas vocês precisam mesmo conversar, eu vou estar aqui.
Ele sai fechando a porta atrás de si e estou sozinha com
Nick, que me encara com um olhar consternado.
— Eu ia te contar...
— Quando? — sussurro me levantando. — Você teve mil
oportunidades! Minha nossa, eu nem sei como pôde armar tudo
isso... essa história de publicidade, por quê?
— Eu queria saber quem você era. Precisava te conhecer
melhor e saber se poderia lhe apresentar Mackenzie.
— Isso foi maquiavélico!
— Eu não sabia que tipo de pessoa você era! Sim, eu sei que
não foi muito ético, mas no fundo eu só queria provas de que não
era uma boa pessoa, ou que não tinha o menor interesse de
conhecer a filha que abandonou!
Dou um passo atrás, atingida por suas palavras, imaginando
que tipo de pessoa Nick deve ter imaginado que eu era.
Afinal, eu era a mãe que não queria a própria filha.
Que tipo de pessoa horrível fazia isso? E não foi assim que
eu me senti até hoje?
— Nunca quis magoar você deliberadamente. — Nick
continua. — Eu não estava concordando com o pedido da Claire.
Jamais me passou pela cabeça procurar a mãe biológica de
Mackenzie. Quando a adotamos, Claire decidiu que assim que ela
entendesse, deveríamos lhe contar a verdade, porque não queria
arriscar dela descobrir de maneira errada e ficar magoada se
sentindo enganada. E tentamos explicar a Mackenzie como foi que
ela chegou a nossas vidas.
— Ela sabe que é adotada? — Eu me surpreendo.
— Sim, embora obviamente não deva entender direito ainda
este conceito, mas ela sabe que não nasceu da barriga de Claire.
Então, a ideia da minha esposa era que quando crescesse, se
Mackenzie quisesse saber sobre suas origens, se quisesse tentar
conhecer os pais biológicos, não iríamos interferir, seria uma
escolha dela, mas confesso que no fundo, nunca concordei. Nós
éramos os pais. Nós a amávamos assim. Ela não precisava de
ninguém, mas Claire foi criada em orfanato com Claudia, como deve
ter lido na carta. Ela se ressentia de nunca ter sabido quem eram
seus pais e por isso não queria o mesmo para Mackenzie. Eu achei
essa carta há alguns meses e desde então venho me debatendo se
queria arriscar apresentar uma estranha a minha filha, uma estranha
que embora seja sua mãe de sangue, poderia ser qualquer tipo de
pessoa. Eu não podia arriscar, Kiara. Eu sei que me odeia agora,
mas eu fiz pra proteger minha filha.
— Você não queria me contar, não é? Não queria que
Mackenzie me conhecesse...
— Não, eu não queria. Porque eu achava que você não podia
ser uma boa pessoa.
— Mas você me conheceu... — Você me fodeu, quero dizer,
lembrando de todas as vezes em que dei em cima de Nick, em que
me joguei em cima dele, praticamente implorando para que ele
ficasse comigo.
Quero acusá-lo de me usar. De me enganar enquanto me
levava pra cama, mas posso culpá-lo disso?
Nick nunca tomou a iniciativa. Foi sempre eu.
Isso talvez só torne tudo pior.
Eu me apaixonei por Nick enquanto ele o tempo todo só
estava me analisando. Juntando provas para manter Mackenzie
longe de mim.
— Sim, eu te conheci. — Sua voz se suaviza. — Eu nunca
imaginei que ia te encontrar daquele jeito na neve. Nem que
teríamos que passar a noite juntos e...
— Nem que eu iria passar o tempo todo me atirando em cima
de você. Deve ter me achado patética! Por que me levou pra cama,
Nick? Por que quando viu que eu não era uma psicopata que queria
prejudicar Mackenzie, não me disse a verdade? Esse tempo todo...
— Recomeço a chorar e Nick se aproxima, tenta me tocar, mas eu o
empurro.
— Não, não ponha a mão em mim. — Eu o empurro de novo,
lhe dando alguns socos no peito, que Nick não impede. — Eu odeio
você agora... não tinha o direito! — O direito de fazer eu me
apaixonar por você quando tudo era um jogo. E, principalmente, não
tinha o direito de esconder de mim que minha bebê perdida estava
tão perto.
Ah Meu Deus.
Não posso suportar.
Finalmente vou perdendo a força e Nick me segura sem que
eu consiga impedir. Soluço em seu peito.
Ainda tentando entender o novo mundo que se abre aos
meus olhos.
Nick não é só o viúvo bonito e misterioso com coração de
gelo. Ele é o homem que adotou minha filha.
O homem que todo o tempo desde que o conheci escondia
este fato de mim.
Mackenzie...
A menina que estava segurando meus patins quando a
conheci. Que patinou comigo na casa do meu pai.
A criança que só existia na minha imaginação, agora ganha
um rosto, uma voz. Um sorriso.
E como posso encará-la?
Como posso...
Não consigo.
A culpa, o medo e a dor oprimem meu peito a ponto de eu
quase sufocar e empurro Nick de novo, um novo pavor agora
tomando conta de mim.
Não posso continuar ali, não quero aquela nova realidade.
É demais pra mim.
— Eu preciso sair daqui...
— Kiara...
— Não, Nick, não se aproxime. — Coloco minha mão entre
nós. — Já chega. O que fez foi horrível. E não quero te ver na minha
frente nunca mais — dardejo dando meia-volta e abrindo a porta.
Chris vem em minha direção e eu me jogo em seus braços.
— Me leva daqui...
— Sim, vamos. — Ele me aperta e me leva para fora, me
colocando em seu carro.

Não consigo me lembrar do trajeto que foi feito e como


cheguei na minha casa, mas Chris estava comigo enquanto eu
gritava e me desesperava a cada minuto que eu lembrava o que
aconteceu.
Em algum momento, comecei a me acalmar, embora tivesse
a impressão de que não ia ficar bem nunca mais.
Agora, estou na minha cama e Chris volta para meu lado me
dando uma xícara de chá e se senta ao meu lado.
— Nem consigo imaginar pelo que está passando agora.
Eu o encaro, acho que é a primeira vez que realmente o vejo
naquele dia horrível.
— O que estava fazendo na casa de Nick?
— Ele me ligou cedo e disse que precisava falar comigo.
— Falar o quê?
— Nós nos encontramos, e ele me contou tudo. Sobre
Mackenzie.
— Ele contou pra você...
— Ele sabia que ia precisar de um amigo que te amparasse
porque já intuía que iria odiá-lo quando contasse.
— Então, ele ia me contar mesmo... — Não sei se isso me
faz sentir melhor. Acho que nada vai me fazer sentir melhor agora.
— Ele deveria ter contado assim que te conheceu — Chris
diz. — Falei isso pra ele. Não tinha direito de te esconder, ainda
mais porque estavam envolvidos...
Fecho os olhos, não quero mais pensar em Nick nesses
termos.
Porque não tem como continuar alimentando o que sinto
depois de tudo.
— Estou com tanta raiva...
— Eu sei, mas independente do que o Nick fez, o mais
importante agora é que você descobriu sua filha...
— Não — eu o interrompo, com um estremecimento de
horror. — Não posso.
— Não pode o quê?
— Não posso encarar isso.... encarar ela. — Uma lágrima
silenciosa rola por meus olhos. — Não consigo.
— Calma. — Chris faz com que eu encoste a cabeça em seu
peito. — Não precisa se preocupar com isso agora. Eu entendo que
é demais para processar.
Eu acabo adormecendo.
Quando acordo, Chris não está ali, deixou um bilhete dizendo
que foi trocar de roupa, mas que vai voltar.
Já anoiteceu.
Eu tomo um banho e me arrasto até a cozinha e quando
chego lá descubro que Maude está me aguardando.
— Posso saber o que deu em você? Nádia disse que faltou
ao treino! Será que vou ter que começar a te levar todos os dias
para que cumpra suas responsabilidades... E por que ainda não
está vestida? Esqueceu que temos um compromisso? Vá agora se
vestir e maquiar para pôr um pouco de cor no seu rosto. Temos um
jantar beneficente com pessoas importantes do Comitê Olímpico!
Vai ter imprensa lá e será ótimo verem você...
— Eu achei minha filha.
Maude arregala os olhos.
— O que, do que está falando?
Abro a boca e conto a ela tudo sobre Nick de Santi e
Mackenzie.
— Isso não pode ser... O que este homem pensa que é? O
que está me contando é um disparate! Nos enganar desse jeito e...
Pra quê? Ele adotou a criança, ele que cuide dela, você não tem
culpa se a mãe adotiva morreu! Ele não pode surgir aqui, te
contratar com falsos pretextos, e ainda te seduzir, meu Deus! —
Maude se aproxima e segura meus ombros. — Por que não me
contou? Como pôde deixar as coisas chegarem e este ponto, ir pra
cama com este homem e agora isso? Kiara, estamos há semanas
das Olimpíadas e você vai se concentrar como? Eu vou matar este
Nick de Santi, não, vamos processá-lo, ele não pode ficar...
Eu me desvencilho.
— Chega, mãe! Não ouviu o que eu disse?
— Claro que ouvi! Filha, estou devastada também! Mas estou
mais preocupada com sua cabecinha com essa história vindo à tona
agora! Nick de Santi é um monstro por fazer isso com você justo
agora...
— Eu não sei o que fazer... — sussurro, perdida e
angustiada.
— Não precisa fazer nada. — Ela toca meu rosto. —
Entendeu? Nick de Santi não pode te obrigar a nada! Vamos
esquecer que ele existe.
— Esquecer? Isso é possível? Mãe, ela tem cinco anos... e
eu não posso... não consigo lidar com isso...
— Eu sei, querida. Mas não precisa lidar com nada agora.
Pelo menos por enquanto. Você tem que se concentrar. É para isso
que estamos lutando há anos. Para a sua glória. O seu momento é
agora e tem que se manter focada. Eu entendo que o que
aconteceu é horrível, mas vai superar, estou aqui e não vou deixar
nada te atingir e te atrapalhar. Vai continuar treinando. Comendo
direito e... vou ligar para Naomi. Amanhã mesmo, você vai encontrá-
la. Ela vai te ajudar, ok? Vai ficar tudo bem.
Sacudo a cabeça em afirmativa, porque eu quero acreditar na
minha mãe.
Quero voltar a ser a Kiara de antes de Nick de Santi.
Não consigo lidar com tudo o que ele me trouxe agora.
E acho que sinto certo alívio quando Maude me leva para o
quarto, me faz colocar um vestido fino e me maquia.
E quando saltamos do carro em frente à horda de fotógrafos
e fãs, eu sou de novo a Kiara Willians medalhista mundial. A
patinadora artística perfeita. A garota de ouro.
Mas ninguém sabe que por dentro, meu coração está
estilhaçado.

Na manhã seguinte, a primeira coisa que me recordo é que


eu tenho uma filha.
E sinto meu estômago revirando.
Fecho os olhos e luto para respirar e esquecer.
— Querida, tem que se levantar e ir treinar. — Maude surge
com uma xícara de chá abrindo minha janela.
— Você dormiu aqui?
— Vou ficar aqui agora.
Eu quero abrir a boca e dizer que de maneira nenhuma
preciso dela ali, mas é mentira.
Não quero ficar sozinha e Chris não pode ficar vivendo
comigo, porque ele tem sua vida. Maude é minha mãe, mesmo com
todos os seus defeitos.
E ela sabe a verdade e está disposta a me fazer esquecer
por enquanto que há um mundo além do ringue de patinação e é
disso que eu preciso agora.
Preciso me concentrar na patinação para não enlouquecer.
— Vou marcar um horário com Naomi.
— Não. Não quero falar com ninguém.
— Tem certeza?
— Sim.
Não quero falar com minha terapeuta, não quero falar com
ninguém.
Naquela semana, eu e Chris treinamos separados,
concentrados no nosso programa. É um alívio não ter que ver
ninguém no centro. Eu ainda me recordo, para piorar, que Andrey
está na cidade.
— Sim, eu soube. Mas ele não é nem louco de chegar perto
de você. — Maude havia dito quando lhe contei.
Eu me recordo de Nick dizendo que Maude deveria ter me
levado à delegacia na época. “Será que teria sido melhor?”
“O que teria acontecido?”
Naquela época, eu nem conseguia me imaginar falando em
voz alta o que ele me fez. E, na verdade, ainda agora, sinto-me mal
de me imaginar contando ao mundo.
Cinco anos se passaram. O tempo não volta. E só podemos
aprender a conviver com nossas decisões passadas.
“Mas às vezes o passado retorna em forma de uma
menininha de cinco anos que não deveria existir.”, meu cérebro
insistia em me lembrar, principalmente quando vou dormir à noite,
quando estou sozinha, sem Maude a vigiar meus passos.
E sempre que penso nisso, sinto um medo tão profundo que
acho que vou ser devorada por ele.
Nick estava tentando entrar em contato e eu só soube pela
minha mãe, porque eu o bloqueei no meu celular.
— Eu falei para ele não te procurar nunca mais e que nossos
advogados iriam entrar em contato em breve. Sei que temos o
contrato para o projeto da De Santi, que não podemos desfazer e
também não acho justo que você perca todo este dinheiro e
publicidade, ainda mais agora. Mas não vamos mais lidar com ele.
Fique tranquila.
“Sim, eu fiquei tranquila, mas até quando?”
“Eu poderia fingir que Nick não existia pra sempre?”
“E a criança?”
— Você está maravilhosa, filha — Maude me elogia quando
ajeito meu collant verde brilhante no lugar.
Hoje é o dia da apresentação de Natal no Pacific Coliseum, a
arena que pertence ao Vancouver Giants, time júnior de Hóquei, que
foi adaptada para acolher os torneios de Patinação Artística nas
Olimpíadas de Inverno. Todos aguardavam aquela apresentação
porque será uma espécie de esquenta para os Jogos Olímpicos dali
a algumas semanas.
— Não acredito que estamos há dias do Natal. — Chris surge
ao meu lado quando começamos andar em direção ao ringue.
Seremos os últimos a nos apresentar e fiz questão de me
manter no camarim, pois não queria ver ninguém.
Porém, agora, enquanto me aproximo do ringue, escuto a
música do casal que deve estar se apresentando e os gritos do
público, começo a hiperventilar.
Chris segura minha mão.
— Tudo bem?
Forço um sorriso.
— Sim...
— Eu queria ir à sua casa te ver, mas Maude me proibiu.
Eu olho para trás, Maude se aproximando com Nádia e sinto
raiva, embora eu entenda o que ela está fazendo.
— Ela só quer me proteger.
— Não sei se é assim que se protege alguém, a mantendo
em uma bolha.
— Talvez eu precise dessa bolha.
— Bolhas são estouradas quando menos se espera, Kiara.
Sei que o que está acontecendo com você não é fácil, mas se
esconder e fingir que nada está acontecendo não vai adiantar.
Estamos falando de uma criança.
Eu estremeço, o medo pesando no meu estômago.
— Não sei como lidar com isso, com ela — sussurro baixinho,
parando quando nos aproximamos do local para esperar para entrar.
— Estou lutando para não enlouquecer, para não explodir, porque
estou perdida...
Chris acaricia meus braços.
— Se acalme. Eu nem deveria estar falando disso agora. Eu
só me preocupo. Não acho que sua mãe lida com isso da melhor
maneira. Não deixe ela envenenar você.
— E o que eu posso fazer?
— Está deixando Maude tomar as rédeas como antes. Não
vê? Não deixe ela fazer o que quer, independente de sua vontade
até que seja tarde demais. É uma mulher agora. Você pode fazer o
que quiser.
— E seu eu não souber?
— Você sabe. Só precisa ter coragem.
— Prontos?
Nádia se aproxima.
A apresentação terminou e ao virar o rosto, vejo que é Dimitri
e Alana.
Eles deslizam até a saída. Estão discutindo baixinho. Claro,
típico.
Porém, de repente não é neles que está minha atenção, e
sim no homem de meia-idade alto e corpulento que se aproxima
deles.
Andrey Ivanov.
Um calafrio toma meu corpo.
Até agora eu tive sorte de não me deparar com ele, mas
deveria saber que não dava para fugir desse confronto para sempre.
— Precisam melhorar muito — reclama com Dimitri e Alana.
— Seu filho é um imbecil e me deixou cair!
— Você errou o tempo! — Dimitri rebate.
— Chega vocês dois. Vamos melhorar o que tem que ser
melhorado, não vão me envergonhar...
— Olá, Andrey — Nádia se aproxima o cumprimentando.
E então os três se viram e eles nos veem.
Os olhos de Andrey, azuis intensos como os de Dimitri, se
prendem em mim por apenas um momento, antes de voltar para
Nádia.
Claro, pra ele eu não sou nada agora.
Quase sinto alívio.
Mas queria que ele não fosse nada pra mim também.
Meu estômago dá um giro.
— Vamos, Kiara, concentre-se. — Sinto os dedos como
garras da minha mãe em meu braço. — Não perca o foco!
É uma ameaça.
Estremeço quando ela me impulsiona à frente.
Andrey passa por nós com apenas um aceno de cabeça, eu
desvio o olhar, me sentando para tirar as proteções dos patins.
Dimitri pisca quando me vê com seu deboche habitual.
— Boa sorte!
Alana está bufando quando senta ao meu lado pra colocar as
proteções em seus patins.
— Nem precisa de boa sorte, depois deste imbecil me deixar
cair e quase quebrar meu nariz qualquer apresentação vai ser
melhor.
— Você podia deixar de ser uma vaca e parar de reclamar!
Estou cansado de você gritando comigo o tempo todo.
— Dimitri, não fale assim com ela. — Eu me vejo me
intrometendo e nem sei por quê.
Ambos se viram pra mim, surpresos por eu me dar ao
trabalho de defender Alana, que nem merece.
— Se detestavam um ao outro nem deveriam formar uma
dupla! Provavelmente você a deixou cair porque não tem conexão e
nunca vai ter se não se permitirem! Você sabe disso, Dimitri. Não é
culpa só da Alana! E chamar ela de vaca, embora ela seja mesmo,
não vai adiantar nada! Ela é uma vaca, mas é sua parceira. Deveria
matar e morrer por ela. E nunca a deixar cair.
Eu me levanto e passo por ele, tremendo ainda de nervoso.
Não sei o que me deu de falar daquele jeito com eles.
Dimitri e Alana não são da minha conta.
Os apresentadores nos chamam e Chris segura minha mão,
me levando para a pista.
Mal consigo respirar, ao som dos aplausos.
Chris aperta meus dedos.
— Está gelada.
— Não consigo respirar...
— Kiara...
Eu solto sua mão e rodopio, me posicionando para o começo
do nosso programa, fecho os olhos e tento apagar tudo.
Preciso me concentrar.
Mas meu peito está retumbando alto, quase explodindo meus
tímpanos.
Meu estômago está revirando e minhas pernas tremem.
Abro os olhos e a música começa.
Deslizo por instinto, Chris me pega para o primeiro Death
Spiral, seguida de um Edge Jump e então nos soltamos deslizando
pelo gelo com alguns passos e giros, e meus olhos se prendem na
última pessoa que eu gostaria de ver.
Andrey está na grade, assistindo.
Eu me desequilibro, Chris arregala os olhos, mas me
mantenho sob as lâminas, minha respiração falhando.
Meu coração falhando.
Eu simplesmente vou em frente. Percebo que saí da
coreografia. Chris está tentando me seguir. Eu começo a chorar.
— Kiara, volte! — Chris grita.
Sacudo a cabeça, tentando continuar.
É só isso que eu posso fazer.
E só o que eu fiz em cinco anos.
Eu a deixei por isso. Por este gelo sob meus pés.
Para a glória e gritos dos fãs que adoram a maravilhosa Kiara
Willians.
Para a medalha que estou prestes a ganhar em breve...
E pra quê?
Meu coração é oco e gelado.
Nada daquilo importa.
Aquele homem horrível havia tirado minha inocência e
colocado um ser dentro de mim que eu odiei por nove meses.
Um ser que quando eu descobri que precisava de amor, que
eu a amava, era tarde.
Claire e Nick a levaram. Eles a criaram e a transformaram na
menina linda e doce que eu conheci.
E que agora me é oferecida de novo...
Oh Deus, eu quero.
Eu a quero e não sei como fazer isso.
Eu giro e giro e salto.
De repente, não consigo mais.
Interrompo meus passos. A música continua. Chris se
aproxima e me abraça, enquanto eu caio, ele cai comigo.
O silêncio é sepulcral na arena. E eu só escuto meu choro e
meu coração.
Nádia se aproxima com a minha mãe.
— O que foi? Se machucou? — Nádia indaga.
— Kiara, o que está fazendo? — Maude está tirando os
braços de Chris da minha volta. — Pare agora com isso, entendeu?
Pare de chorar e continue! Nádia vai mandar voltar a música e
vocês podem começar de novo e...
— Chega! — grito, soltando meu braço. — Chega! Não grita
comigo!
— Kiara....
— Eu não posso fazer isso... — Eu me viro pra Chris e Nádia.
— Desculpa...
Deslizo para fora do gelo, ignorando tudo e todos, até que
esteja em um camarim, que nem é meu, bato a porta e a tranco
porque não quero que Maude me encontre.
Eu me movo, cega e perdida, e caio no chão, embolando
meus patins, abraçando meu corpo trêmulo.
— Kiara?
Levanto a cabeça, e Alana está ali. É o camarim dela,
percebo.
Não consigo falar. Não consigo respirar.
Em um segundo, Alana está abaixada ao meu lado, ela
abraça meu corpo trêmulo e enfia minha cabeça entre meus joelhos.
— Porra, respira, respira... — Sua voz é autoritária, mas
suave, atravessa a densa camada de sofrimento e dor do meu
cérebro e atinge meus pulmões. — Está tendo um ataque de
ansiedade, pânico, ou tudo junto, sei lá... Só respira — ela fala no
meu ouvido. — Deixa tudo sair... grite se quiser. Não vou te soltar...
E eu abro a boca e grito.
Capítulo 7

Kiara

Não sei quanto tempo se passa até que eu consiga respirar


normalmente de novo. Eu e Alana estamos sentadas no chão,
encostadas na parede. E ela me encara com um olhar especulativo.
— Eu não sabia que você tinha... esses ataques.
— Eu não tenho. Quer dizer, não é algo habitual.
— Não tem diagnóstico, quer dizer?
— Parece saber muito disso.
— Todos nós temos nossos esqueletos, não é? Eu devia
imaginar que a princesinha tinha os seus.
— Vai começar a brigar comigo agora?
— Acho que não devo chutar cachorro morto, não é o que
dizem?
— Por que me odeia?
— Eu odeio todo mundo e boa parte do tempo também odeio
a mim mesma. Então, não se sinta especial.
— E odeia Dimitri.
— Atualmente, mais que todo mundo. Você o odiava também,
por isso o deixou?
— Não foi por isso...
— O que aconteceu hoje?
— Eu a deixei... — sussurro. — Eu a deixei e não sei o que
fazer agora que ela está aqui...
— Deixou quem?
— Minha filha... Há cinco anos.
— Porra, você tem uma filha?
Antes que eu possa começar a me arrepender de estar
confessando um segredo daqueles para Alana, escutamos alguém
mexendo na maçaneta da porta.
— Alana, abra essa porta.
É Dimitri.
— Vai embora! — Alana grita.
— Por que está trancada aí? Se não abrir eu vou arrombar.
— Dimitri, eu mandei você ir embora!
Então, de repente a porta se abre e Dimitri está na nossa
frente.
— Qual o seu problema? — Alana se levanta irritada. — A
porta estava trancada!
— E eu tenho a chave! Eu sabia que podia começar com
suas gracinhas e...
De repente ele se vira e me vê.
— Kiara? Estão todos atrás de você! Me disseram que teve
um problema ou algo assim na sua apresentação... O que você
tem? — Ele parece reparar no meu rosto inchado de maquiagem
derretida. E encara Alana. — Que merda fez com ela, sua bruxinha
filha da puta...
— Ei, eu não fiz nada!
— Dimitri, Alana não fez nada. Na verdade, ela me ajudou.
— Alana? Te ajudou? — Ele encara Alana. — Você odeia a
Kiara.
— Eu não odeio!
— Claro, seu problema, na verdade, é inveja.
— Ah, cale a boca!
— Cale a boca você — ele a interrompe e se abaixa diante de
mim. — Kiara, está me preocupando pra cacete, o que está
acontecendo?
De repente, olhando nos olhos de Dimitri, me dou conta de
que ele faz parte daquela história por mais sórdida que seja.
Mackenzie é irmã dele.
— Alana, pode nos deixar a sós? — sussurro com uma súbita
decisão.
— O que... Ah meu Deus, o bebê era do Dimitri!
— Que bebê? — Dimitri olha de mim para Alana, confuso.
— Não, mas eu preciso falar com Dimitri, por favor?
Algo no meu tom de voz deve tê-la convencido porque ela
assente.
— Avise para o Chris que estou aqui. A mais ninguém — eu
peço. — E peça para ele me esperar aí fora.
Ela sai, fechando a porta atrás de si.
— Do que Alana está falando?
Dimitri se senta no banco na minha frente.
O que eu vou contar agora vai devastar a vida dele.
— O bebê é minha filha.
— Filha? Você tem uma filha?
— Faz cinco anos. Eu a dei em adoção.
— Cinco... — De repente ele entende. — Quando me
deixou... Foi por isso, você estava grávida?
— Sim, eu estava.
— Meu Deus, Kiara, por que não me contou?
— Eu não contei para ninguém, só a minha mãe soube na
época.
— E você deu essa criança?
— Sim...
Ele passa a mão pelos cabelos, aturdido.
— Mas... eu nem sabia que tinha um namorado.
— Eu não tinha, eu... eu fui estuprada, Dimitri.
Seus olhos se arregalam em choque.
— O quê?
— Pelo seu pai. Andrey Ivanov me violentou.
Agora Dimitri está pálido, decodificando de minhas palavras.
— O que está dizendo...
— O que você ouviu.
— Isso é... absurdo! Por que está inventando isso?
— Acha que eu ia inventar uma história dessas? Por que não
está acreditando? Por que estou acusando o grande Andrey Ivanov
de ter abusado de mim quando eu tinha 17 anos? Você se lembra
daquela noite em que treinamos pela última vez? A noite em que me
bateu?
Ele empalidece ainda mais.
— Claro que você lembra. Seu pai te mandou embora. Eu
estava magoada com você. Porque eu te beijei e você riu de mim.
Seu pai te mandou embora. Foi naquela noite.
— Não consigo acreditar... Você nunca disse nada! Se fosse
verdade você teria denunciado!
— Ele me ameaçou. Minha mãe também achou melhor que
esquecêssemos. Eu estava com medo e envergonhada, só queria
esquecer. Mas não pude, porque eu estava grávida.
Dimitri se levanta, andando de um lado para o outro como um
tigre enjaulado, até que esmurra a parede.
Eu me levanto, Dimitri que lide como quiser com o que lhe
contei.
— Por que está inventando este monte de merda do meu pai,
porra? O que você ganha com isso?
— Eu não ganho nada com isso, não tenho por que eu
inventar uma história horrível dessas.
— Quer mesmo que eu acredite?
— Acredite no que quiser. Pergunte ao seu pai.
Abro a porta e Chris está me esperando.
— Meu Deus, quase me matou do coração.
— Me leva embora...
— Precisa se trocar.
Eu noto que ele já está vestido.
— Não quero ir ao camarim, minha mãe deve estar lá e
Nádia...
— Tudo bem.
Ele tira o casaco que usa e põe nos meus ombros.
Alana olha através de mim para Dimitri, que está socando a
parede como se quisesse derrubar o prédio.
— Que merda é essa?
Seguro seu braço quando ela faz menção de entrar.
— Deixe-o, ele está fora de si. Pode te machucar.
— Ele que tente. Eu quebro as pernas finas deste babaca
antes que ele consiga acabar comigo.
Eu temo por Alana quando ela insiste e entra no camarim,
mas Chris já está me levando. Talvez ela tenha razão e seja páreo
para Dimitri.
Ou pelo menos consiga acalmá-lo.
No fundo, Dimitri sabe que o que eu contei é verdade.
Ele só precisa lidar com o próprio horror.
Eu lido com o meu há cinco anos.

Quando chegamos ao estacionamento, me surpreendo ao ver


Tyler que abre a porta do passageiro pra mim.
— Tyler, nem sabia que estava aqui...
— Eu não ia perder essa apresentação.
— Duvido que foi grande coisa. — Eu me recordo, com um
estremecimento, do show que eu dei.
Imagino o que todos devem estar especulando.
Minha mãe deve estar surtando e Nádia muito preocupada.
— Avise a Maude que estou com Kiara, antes que ela quebre
tudo aí.
Escuto Chris dizer no celular quando entra no carro. Ele
desliga e me lança um sorriso nervoso enquanto Tyler dá partida.
— Era Nádia, eu tinha que avisar que achei você e que
vamos embora. Ela vai recolher suas coisas.
— Obrigada, Chris.
— Para onde vamos? — Tyler indaga.
“Sim, para onde vou?”
Não quero ir para meu apartamento. Onde Maude aparecerá
a qualquer momento, me confrontando.
O carro para em um farol e deixo meu olhar vagar através da
janela. Estamos passando por uma rua comercial e mesmo com a
luz da tarde caindo, já podemos ver luzes e decoração de Natal por
todo lado. Avisto uma mulher saindo com duas crianças de uma loja
de brinquedos e meu coração se aperta. De repente, eu sei onde
preciso ir.
— Me leve na casa de Nick.
Chris me encara através do retrovisor com um olhar
preocupado.
— Tem certeza?
Sacudo a cabeça em afirmativa.
Mesmo não tendo certeza de nada. Estou apenas
obedecendo a um instinto que me diz que talvez tenha chegado a
hora de sair da bolha autoimposta.
Ainda morro de medo de dar qualquer passo à frente, mas
Chris tem razão, não posso me esconder pra sempre.
Alguns minutos depois, Tyler para o carro do outro lado da
rua da casa de Nick.
Eu não me mexo, meu coração batendo forte no peito e
minhas mãos geladas.
— Kiara? — Chris me chama. — O que vai fazer?
— Eu não sei. Talvez eu nem devesse estar aqui...
— Mas você quer estar. Precisa sair e enfrentar.
De repente, um carro para em frente a casa e um homem
bonito sai de lá. A porta da casa se abre e prendo a respiração
quando Nick aparece. Ele olha direto para o outro lado da rua e
compreendo que ele sabe que estou ali.
— Eu avisei a ele que estávamos vindo — Chris diz.
Tyler destrava a porta.
O homem e Nick conversam por um instante. Então
reconheço Matt Balvin, ele está diferente sem o terno de CEO.
— Quem é aquele? — Chris pergunta.
— Matt Balvin, CEO da De Santi. Amigo do Nick.
Chris abre a porta e sai, depois abre a porta pra mim e
estende a mão.
— Não seja covarde. Eu fico com você, se você se sentir
melhor.
Seguro sua mão e saio do carro.
E noto que os olhos de Nick se fixam em mim e de repente
me sinto ridícula, ainda toda maquiada, com o cabelo preso cheio de
gel e gliter e usando um traje verde brilhante de apresentação, por
baixo do casaco de Chris. Pelo menos eu tirei os patins, que seguro
em minha outra mão, embora agora esteja descalça.
— Eu devia ter trocado de roupa...
— Olha, pai, a Kiara!
Eu paro de respirar olhando em direção à voz infantil e,
quando dou por mim, Mackenzie está saindo da casa e correndo em
minha direção.
Ela sorri quando passa por Chris e abraça minha cintura.
— Olha só, seus patins!
Encaro Nick do outro lado da rua em pânico. Ele já está
atravessando e vindo em nossa direção com Matt Balvin.
— Mackenzie, não podia ter corrido deste jeito — ralha com a
filha que me soltou e agora está pulando usando seu casaco rosa e
touca com pompons.
— Mas é a Kiara, e olha a roupa dela que linda! É brilhante.
Eu fecho o casaco, abraçando o próprio corpo,
envergonhada.
Mas não consigo tirar os olhos arregalados de Mackenzie.
É a primeira vez que a vejo depois de saber a verdade. Que
ela saiu de dentro de mim e ainda parece incrível que seja aquele
mesmo bebezinho minúsculo.
Minha filha.
Essa é minha filha, meu cérebro repete sem parar.
— Mackenzie, Matt vai levar você para tomar um chocolate
quente e ver o Papai Noel — Nick anuncia.
— Oba! A Kiara vai também? E quem é este? — Ela aponta
para Chris que sorri pra menina estendendo a mão como um
cavalheiro de filme da Disney.
— Eu sou Christian, o parceiro de patinação da Kiara.
— Você também patina? Que demais!
— Sim, é demais mesmo.
— Vamos, Mackenzie? — Matt estende a mão para a menina
que o segue, tagarelando.
Eu a acompanho com o olhar até que ela entra no carro e
ainda acena até o carro desaparecer de vista.
— Vamos entrar? — Nick me encara muito sério.
— Sim, ela vai entrar — Chris responde por mim.
— Eu posso falar, Chris.
— Achei que tinha perdido a língua — ele brinca. — Quer que
eu vá contigo?
— Não, tudo bem.
— Vamos te esperar aqui.
— Obrigada.
Ele volta ao carro e Nick faz um sinal para eu acompanhá-lo.
Eu o sigo, ainda incerta, ainda com medo, mas agora me
sinto diferente depois que finalmente revi Mackenzie.
Há também um anseio.
Uma vontade de continuar contemplando aquele ser completo
e novo.
Meu.
De alguma forma eu sinto que ela é minha, embora não saiba
o que fazer com aquela posse.
“Ela não é sua, ela pertence a Nick de Santi.”, uma voz
sussurra dentro de mim.
Claro, ele é o pai dela, mesmo não sendo biologicamente.
E ela teve uma mãe, que morreu. Por isso que estou aqui,
porque Claire pediu. De repente lamento não poder conhecer essa
mulher. A amada de Nick. A mulher que Mackenzie chamou de mãe
por três anos.
Agora ela não tem mais mãe.
“Ela pode ter você.”
Pode?
O que eu tenho a oferecer a não ser uma história triste sobre
seu nascimento? A culpa de tê-la afastado? Como vou contar isso a
ela, como aquela criança pode me perdoar se eu mesma não me
perdoo?
— Você está descalça — Nick comenta quando entramos e
ele fecha a porta atrás de si.
Eu fico vermelha.
— Eu estava no meio de uma apresentação e... — Dou de
ombros, minhas mãos segurando firmes os patins contra o peito.
— Sim, Chris me enviou uma mensagem contando isso, mas
espero que me conte você mesma, se quiser.
Mordo os lábios, hesitante, ainda usando aquela roupa
bizarra e descalça parada na frente daquele homem que há alguns
dias era meu amante.
Nós estivemos ali mesmo naquela casa, nos devorando. E
tudo o que eu desejava era que ele pudesse se apaixonar por mim.
Pudesse me querer ao seu lado. E me dar nem que fosse um
pedacinho do seu coração e livre acesso ao seu corpo.
Porque eu estava disposta a dar tudo pra ele, como nunca
quis dar a ninguém.
E no fim, era tudo um castelo de mentiras e ilusões.
Como uma escultura de gelo que se esfacelou no chão
depois da queda.
— Estou me sentindo ridícula — confesso.
— Você está bonita.
Ah merda.
Ele está me encarando intensamente. Fazendo um calafrio
traspassar minha espinha e meu rosto esquentar constrangido e
deliciado.
Porque percebo que senti falta dele.
— Está frio lá fora, precisa tomar algo quente. Deixe seus
patins aí.
Eu coloco os patins no chão e o sigo até a cozinha.
Sento em frente à bancada enquanto Nick me serve uma
xícara de chá e coloca na minha frente.
Eu a pego e aprecio tomar o líquido quente.
— Eu tentei falar com você, mas acredito que bloqueou meu
número.
Ele vai direto ao ponto.
— Sim, eu não queria falar com você.
— Imaginei. Eu queria ir atrás de você e forçá-la a me ouvir e
entender, mas decidi que o melhor era lhe dar tempo. E sua mãe
apenas ameaçou me processar e disse para me manter longe e não
estragar sua vida.
— Ela só queria me proteger.
Nick não parece concordar, mas não fala nada.
— O que aconteceu hoje de verdade? Você parece
devastada.
Abaixo o olhar, sem saber por onde começar.
— Estou devastada desde o dia em que saí daqui, na
verdade.
— Eu sinto muito. Por isso deixou a apresentação hoje?
— Andrey Ivanov estava lá — sussurro ainda sentindo o
mesmo asco da hora em que o vi. — E eu surtei.
Nick parece com raiva agora e inala forte pelas narinas.
— Ele fez alguma coisa com você?
— Não, ele me ignorou. Mas estar no mesmo local que ele,
depois de tanto tempo... Ainda é difícil.
— Ele deveria estar na cadeira.
— Ele é o pai da Mackenzie.
— Não. — Nick bate na mesa. — Eu sou o pai da Mackenzie.
Aquele cretino abusador não pode ser chamado de pai só porque
biologicamente a concebeu.
— Eu também não deveria ser chamada de mãe... Eu
também só a concebi e a deixei ir...
— Mas você foi a vítima. Era praticamente uma criança,
sendo influenciada por sua mãe e sem saber o que fazer. Não te foi
dada muita opção.
— Eu não sei... Não sei o que fazer agora. Eu estava com
medo. Estou com medo.
— Do quê?
— Disso... dessa nova realidade onde minha filha existe e
pode me conhecer e eu posso conhecê-la. Como posso, depois de
tudo, querer ser... o quê? O que pretendia quando me procurou?
Claire disse naquela carta que Mackenzie ia precisar de uma mãe,
mas não sei se é possível ser a mãe dela depois de tudo. Estou
perdida e apavorada e...
— Eu quero contar a Mackenzie.
— O quê? — Empalideço.
— Quero contar que você é a mãe dela.
— Não tem esse direito!
— Eu tenho, porque ela é minha filha. — Sua voz adquire um
tom imperial.
— Sim, tem razão. Eu queria dizer que não. Que ela é minha
filha, mas não é. Esse é o problema. O fato de eu tê-la concebido
não faz de mim uma mãe. Acho que foi um erro vir aqui...
— Vai virar as costas para ela? É sua chance de consertar
tudo. Você disse que se voltasse no tempo, mudaria isso. Não pode
voltar no tempo, mas pode mudar a realidade a partir de agora.
— Achei que ficaria feliz se eu me afastasse, não é o que
sempre quis?
— Isso foi antes de te conhecer. Eu sei que tem amor para
dar a Mackenzie. Eu posso dividi-la com você.
Fecho os olhos, uma onda de emoção desconhecida
golpeando meus sentidos com as palavras de Nick.
Parece perfeito.
Parece assustador.
Como algo tão mágico que pode se desvanecer no ar quando
eu tentar tocar.
O celular de Nick vibra e ele o apanha, olhando a mensagem.
— Matt está voltando com Mackenzie, ela está impaciente. —
Ele me avalia, como se estivesse esperando o que quero fazer.
Eu me encolho, ainda com medo.
— Eu quero ir embora.
— Tudo bem. Não vou forçá-la a nada.
Eu me levanto e ele me acompanha até a porta, abrindo-a.
Vislumbro o carro de Tyler ainda ali, me esperando.
Nick se abaixa e pega meus patins. E quando passa para
minhas mãos, nossos dedos se tocam. Eu mordo os lábios,
ansiando que ele me toque e ao mesmo tempo sentindo como se
fosse errado agora.
E estou puxando as mãos quando ele me mantém ali.
Nossos olhares se encontram e eu prendo a respiração.
— Amanhã é véspera de Natal. Quero que venha passar
conosco. Comigo e Mackenzie.
Finalmente ele me deixa ir e dou um passo atrás.
— Eu não sei se isso é certo.
— Você pode decidir.
Eu me viro e quase corro pela rua ao encontro de Chris que
abre a porta pra mim.
Ainda relanceio o olhar uma última vez para a imagem de
Nick que vai diminuindo até desaparecer, pensando em sua
proposta.
E em meus desejos e medos.
“O que vou fazer?”
Capítulo 8

Kiara

— Será que posso ir pra sua casa hoje? — pergunto a Chris.


— Claro que sim, se não se importar que minha mãe inventou
de fazer um jantar pré-Natal, para que eu levasse o Tyler.
— Sério que sua mãe convidou o Tyler para jantar?
— Sim, ela foi quem aceitou mais rápido, meu pai ainda está
tentando.
— Pelo menos ele está tentando...
Eu fico feliz por Chris. Ele sempre se preocupou com a
reação dos pais se revelasse sua sexualidade.
Quando chegamos à casa dos Jackson, aprecio as luzes de
Natal enfeitando a fachada. E noto meu carro estacionado em
frente.
— Este é meu carro?
— Sim, pedi que Nádia o trouxesse pra cá.
Eu vou até lá e pego minha bolsa, aliviada de que vou poder
trocar de roupa.
— Obrigada. Está muito bonito — elogio a decoração.
— A mãe do Chris caprichou. — Tyler sorri me puxando para
dentro.
Eu corro para trocar de roupa e quando retorno, os pais de
Chris me recebem muito bem, e expressam preocupação, porque,
afinal, eles estavam lá na apresentação.
— Minha querida, você está bem?
— Estou sim, foi só algo momentâneo — desconverso.
— Mamãe, deixe a Kiara em paz, ela só quer jantar sem ter
que responder perguntas chatas.
— Claro, vamos logo para a mesa então, espero que goste de
peixe, Tyler — o pai de Chris indaga e Tyler responde que sim,
seguindo-o.
— Desculpa minha mãe. — Chris aperta minha mão quando
seguimos mais atrás.
— Tudo bem... Nossa, seu pai parece estar aceitando bem
também. Até conversa com Tyler.
— Ele fica meio sem graça ainda. Pediu que nunca, jamais,
beijasse Tyler na sua frente ou algo assim, enquanto minha mãe me
encheu de pergunta inconveniente. Você não tem ideia do filme de
terror que foi.
Eu rio um pouco de sua careta, mas quando me sento à
mesa, reparo que o irmão de Chris não está ali com sua esposa e
filho. Trevor mora na mesma rua que os Jackson e sempre está na
casa dos pais.
— Cadê o Trevor?
Chris esboça uma expressão triste.
— Ele não vem.
— Trevor é um cabeça-dura — Ester resmunga e Roger
segura sua mão.
— Deixe ele. Não é fácil pra ninguém.
Um clima tenso se instala por um momento e eu entendo que
Trevor não está aceitando que Chris saiu do armário.
— Hum, este peixe está ótimo. — Quebro o silêncio, para
tentar descontrair, sentindo uma raiva imensa de Trevor, por fazer
aquilo com Chris. Ele está claramente chateado.
Chris é muito apegado ao irmão e adora o sobrinho.
Depois do jantar, pego meu celular e está cheio de ligações e
mensagens da minha mãe.
Droga, eu preciso falar com ela, porque provavelmente está
na minha casa e se eu não der notícia, capaz de aparecer ali na
casa do Chris e não quero Maude perturbando a família dele.
— Vou dar uma volta e aproveitar para ligar pra minha mãe —
aviso ao Chris.
— Quer que eu vá com você?
— Não, melhor fazer isso sozinha. E preciso de um pouco de
ar também.
— Tudo bem. Não vai longe, está muito frio.
Caminho pela rua de Chris e ligo para minha mãe.
— Onde você se meteu? — ela grita assim que atende.
— Não grite, mãe, estou bem.
— Está bem? E como acha que eu estou? Estava quase
chamando a polícia! Este moleque Chris não queria me dizer onde
estava!
— Agora estou na casa dele.
— Vou agora aí te buscar.
— Não, por favor, não faça isso. Eu vou dormir aqui e
amanhã nós conversamos, ok? Só preciso de um tempo.
— Você está sendo irresponsável! O que aconteceu hoje foi
horrível! Parar a apresentação daquele jeito? O que estava
pensando?
— Eu surtei, não percebeu? — Aumento o tom de voz,
cansada de Maude se preocupar apenas se meu programa era
impecável na patinação. — Não estou bem, você sabe disso! Olha
tudo o que estou passando! Minha filha está perto de mim e não sei
o que fazer com isso, o cara por quem me apaixonei me enganou e
agora Andrey Ivanov está de volta! Acha que não é motivo suficiente
para estar abalada? Estou um lixo! E você só se preocupa se estou
patinando direito e com essa merda de Olimpíada! — desabafo.
— Calma, Kiara. Não seja injusta. Óbvio que eu sei pelo que
está passando. Por isso que insisti que deveria ir a sua psicóloga,
mas você não quis.
Isso ela tem razão.
— Não acho que a Naomi poderia fazer milagre.
— Mas ela te ajudaria! Precisa jogar essas emoções para o
fundo da mente e seguir em frente! Não é justo que deixe tudo
desabar agora! Por favor, Kiara, seja sensata! Faltam poucas
semanas! Sabe que depois do seu showzinho, Nádia marcou uma
reunião com você e Chris amanhã cedo. Ela está muito preocupada.
— Certo, estarei lá. — Suspiro.
— Onde estava agora à tarde?
Eu hesito, não quero contar que estive com Nick e que vi
Mackenzie. Maude surtaria.
— Não tem importância.
— Filha, volte pra casa. Estou aqui te esperando, vamos
resolver isso...
— Não, mãe. Não insista. Amanhã estarei na reunião com
Nádia, ok?
Eu desligo, torcendo para que ela tenha entendido e não
venha querer me buscar, quando me dou conta que estou em frente
à casa de Trevor.
Ele está ali, limpando a fachada cheia de neve.
— Oi, Trevor.
Ele vira e me vê, vindo em minha direção.
— Oi, Kiara, o que faz aqui?
— Estou na casa do seu irmão e vim dar uma volta.
Trevor parece desconfortável quando eu cito Chris.
— Ele me contou que não está falando com ele. — Decido
ser direta.
— Isso não é da sua conta. — Ele é direto também ficando na
defensiva.
— Talvez não seja, mas vou falar o que acho mesmo assim.
Acho que deveria parar de ser babaca.
— O quê?
— Sim, está sendo ridículo. Chris pode amar quem ele quiser,
homem ou mulher, porque não é da sua conta.
— Isso não está certo.
— E quem é você para ditar essa regra? Não tem o menor
sentido! Agora vai excluir o Chris da sua vida porque ele tem um
namorado? Que, aliás, é um cara incrível e ele está feliz! Nunca vi
Chris tão feliz e se tem alguém que merece ser feliz é ele, porque
Chris é a pessoa mais maravilhosa que eu conheço. Ele é o melhor
homem que eu conheço, independente se transa com outro homem!
E ele está chateado porque você está sendo um conservador bobo!
Até seus pais estão se esforçando, acho que devia fazer o mesmo.
E sem mais eu dou meia-volta, retornando para a casa de
Chris.

***
Na manhã seguinte, estou ligeiramente nervosa quando
entramos no escritório de Nádia no fim da manhã.
Minha mãe, como eu previ, já está lá e vem até mim, me
abraçando.
— Filha, você está bem?
— Estou, mãe.
Óbvio que todo mundo ali sabe que não estou nada bem, mas
preciso ao menos tentar sair do bueiro no qual caí nas últimas
semanas.
— Eu gostaria de conversar com a Kiara a sós — Nádia pede.
Minha mãe não gosta muito, mas permite que eu fique
sozinha com Nádia enquanto se afasta com Chris, que fecha a porta
atrás de si com um sorriso de encorajamento pra mim.
Nós nos sentamos e Nádia começa a falar.
— Kiara, eu sei que está com algum problema emocional e
que isso afetou ontem sua performance. E eu queria que fosse
sincera comigo, porque estou muito preocupada. Sua mãe
conversou comigo há algumas semanas, disse que eu não deveria
fazer perguntas, apenas continuar o treinamento, mas acho que eu
errei.
Respiro fundo, sabendo que não posso esconder aquela
história de Nádia. E começo a lhe contar toda a verdade.
Ela está me fitando, consternada depois do meu relato
dolorido.
— Minha nossa, Kiara, estou chocada que Andrey tenha feito
algo assim com você. Ele deveria ter sido exposto! Nunca ficar por
aí impune!
— Eu só queria esquecer — sussurro entre lágrimas, que
não consigo conter. Acho que sempre vou sofrer quando contar
aquela história.
— Eu entendo agora por tudo o que está passando e o que
aconteceu. A questão é que estou muito preocupada com seu
descontrole emocional. Foi grave o que aconteceu ontem, você
poderia ter sofrido uma queda e se machucado gravemente, podia
ter machucado Chris. Eu não sei mais se é seguro te deixar entrar
num ringue deste jeito.
— Mas que opção eu tenho? Minha mãe tem razão, eu só
posso me esforçar para me manter focada e ir em frente. São as
Olimpíadas de Inverno, a mais importante da minha vida. Tudo o
que eu abri mão foi para chegar até aqui. Eu não tenho mais nada.
— Você tem sim. Você tem sua vida, que não é só patinar,
embora isso tome boa parte dela. Mas não é só isso. E não tem só o
agora. Você é jovem, e mesmo tendo os anos contados para
competir, não precisa ser sua última Olimpíada, tem pelo menos
mais umas duas que pode tentar ganhar medalhas, se isso for tão
importante. É tão importante assim, Kiara?
“Claro que é.”, quero responder.
Mas na minha mente, relembro Mackenzie sorrindo e
correndo na minha direção. Vejo aquele bebê que saiu de dentro de
mim e que foi levado embora e o quanto meu coração sentiu sua
falta. O quanto eu me enganei por todos aqueles anos que estava
tudo bem, que eu não precisava de mais nada a não ser a glória da
patinação, quando, no fundo, estava vazia.
Então Nick de Santi surgiu, me ensinou o que era paixão e
trouxe Mackenzie de volta.
Agora minha vida e minhas emoções estão um caos e me
sinto perdida, com vários caminhos a minha frente, sem saber por
qual seguir.
Porque eu começo a entender o que Nádia está querendo
dizer e é assustador e libertador ao mesmo tempo, saber que sim,
eu tenho uma opção.
Mas toda decisão implica numa renúncia.
Fecho os olhos e vejo a mim mesma agora deslizando pelo
gelo, mas não mais a profissional que sou, e sim a garotinha que
patinava apenas pelo simples prazer de deslizar pelo gelo.
Eu não sou mais aquela menininha, ela se perdeu dentro de
mim.
Eu a deixei ser soterrada pela tonelada de expectativas que
foram criadas.
— Algo horrível aconteceu com você, Kiara. Você já deixou
isso definir sua vida por muito tempo. — Nádia continua. — E agora
está te destruindo. Talvez esteja na hora de usar isso para se tornar
mais forte.
Sacudo a cabeça sentindo algo se quebrando em meu íntimo
quando finalmente entendo.
Um soluço rompe meu peito e eu choro pelo sonho que
cresceu dentro de mim desde pequena.
Pela glória que achei que merecia e que persegui por tanto
tempo. Achei que isso fosse o ápice, o melhor que eu poderia ser.
Mas eu quero ser mais.
— Eu não vou mais competir nessas Olimpíadas, não é? —
sussurro num fio de voz.
“Meu Deus, estou mesmo renunciando a isso?”
— Eu não acho que esteja em condições emocionais de se
arriscar, mas a decisão é sua.
— Peça para Chris entrar.
A única pessoa que pode me manter na competição agora é
Chris. Porque se eu desistir, estarei destruindo o sonho dele
também.
Chris entra na sala e Nádia explica tudo a ele.
E depois eu o encaro.
— Não quero acabar com seu sonho, Chris.
Ele segura minha mão.
— Era o nosso sonho, mas Nádia tem razão. Não pode
arriscar se machucar. Eu não me perdoaria.
— E como eu vou me perdoar fazendo você não competir?
— Você não é só minha parceira. É minha amiga. É parte do
meu coração agora, e se você está mal eu também estou. É essa a
nossa conexão, para o bem ou para o mal. Eu só quero que fique
bem. — Ele sorri, chorando agora também. — E ainda temos anos
pela frente. Acho que podemos deixar Dimitri e Alana felizes um
pouquinho, talvez até consigam ganhar um ouro agora que não
estamos no páreo.
Eu rio com um engasgo.
— Se eles não se matarem.
— Sim, claro. — Ele aperta meus dedos.
E então Nádia dá a conversa por encerrada.
Eu me levanto e saio da sala, sabendo que agora terei que
encarar minha mãe.
Porém, há uma estranha calma em mim, nascida da
resolução mais difícil que já tomei.
Não tem mais volta.
Quando eu saio, Maude está vindo em minha direção, Nádia
já contou a ela.
— Você ficou louca?
— Não, mãe, estou bem lúcida.
— Não pode largar as Olimpíadas! Não vou permitir.
— Maude, Kiara não está bem, não é seguro, na verdade —
Nádia se intromete.
— Você não sabe de nada! Se por acaso se negar a continuar
treinando Kiara eu vou atrás de outro treinador.
— Quem? O estuprador do Andrey?
Minha mãe empalidece.
— Quem você pensa que é para falar comigo assim?
— E você deveria ter denunciado o homem que abusou da
sua filha, agora ele está por aí, colhendo as glórias do seu nome
sujo, e sabe Deus se não fez isso com outras garotas e continua
fazendo!
— Isso não é da sua conta!
— E acho que meu trabalho acaba por aqui. — Nádia levanta
as mãos, dando a discussão por encerrada da sua parte. — Kiara e
Chris estão fora e agora só lhe resta se conformar.
Ela se afasta e Maude está espumando de raiva.
— Você não pode fazer isso, Kiara! Olha o que está jogando
fora!
— Mãe, sinceramente, não vou ficar aqui escutando você
gritar. Não vai adiantar.
Ela segura meu braço, me impedindo de prosseguir.
— Não vire as costas pra mim! Eu dei minha vida pra você e
agora está agindo como uma irresponsável!
— Estou sendo responsável, isso sim! E sou eu quem decide,
não você!
— Não é bem assim!
— É assim! Eu sou adulta. Respeito e até agradeço tudo o
que faz por mim, como empresária, mas se está brava comigo e não
concorda com minhas decisões, pode pedir demissão e me deixar
em paz!
— O quê? Eu sou sua mãe!
— E vai sempre ser minha mãe, mas eu também sou mãe!
— Que absurdo!
— Sim, eu sou. Ou pelo menos eu quero ser, sempre quis e
você não deixou! Mas agora chega. O destino me deu uma segunda
chance e não vou desperdiçar. Estou apavorada e não sei o que vai
acontecer, mas eu vou em frente.
— Você está cometendo um erro terrível. — Maude dá um
passo atrás. — Mas tem razão, é adulta, não é? Pois seja adulta e
jogue sua carreira no lixo! Vá brincar de casinha com este mentiroso
do Nick de Santi e aquela menina que não, ela não é sua filha. Você
abriu mão dela há cinco anos.
— Eu concordei com tudo o que quis fazer, porque estava
assustada! Só queria minha vida de volta.
— E você teve! Porque eu tomei a decisão correta!
— Mas quando ela nasceu eu a amei! E só abri mão porque
era tarde demais, porque sabia que nunca iria permitir que ficasse
com ela e porque, no fundo, acreditei ser a melhor decisão.
— E acha mesmo que pode ser mãe agora? Acorda, Kiara,
está sendo absurda!
— Não fale assim!
— Eu falo como quiser. Tudo o que fiz por você e não dá
valor, espero que sua filha um dia não faça o mesmo com você.
Olhe o que ganhamos sendo mãe! Só a ingratidão!
— Ah cale a boca, mãe! Está sendo amarga e injusta! Por
que não consegue me apoiar?
— Porque eu quero que seja uma medalhista olímpica! É
talentosa o bastante e está jogando suas chances fora! Mas tudo
bem. — Ela respira fundo. — Vá, eu vou lhe dar tempo. Não
poderemos fazer nada na véspera de Natal. Eu vou esperar que
volte a si.
— Não vou mudar de ideia, sinto muito, mãe. — Enxugo
minhas lágrimas. — Feliz Natal.
E saio para encontrar Chris, sem olhar para trás.
Com o coração partido por não ter o apoio da minha mãe,
mas o que eu poderia esperar?
Maude é obcecada pela minha carreira.
Mas eu tenho outras prioridades agora, só espero que um dia
ela entenda.
Capítulo 9

Nick

Observo a neve cair lá fora enquanto tomo um longo gole de


café, depois do almoço. Hoje é véspera de Natal, o que sempre me
deixa um pouco depressivo, desde que Claire se foi e eu e
Mackenzie ficamos sozinhos.
O primeiro ano foi terrível, mesmo com Claudia vindo ficar
conosco. Na verdade, ela estava mais triste do que eu, e felizmente
Mackenzie ainda era muito pequena para notar o quanto os adultos
estavam miseráveis enquanto abria todos os seus presentes.
No ano seguinte, passamos na fazenda do meu pai, o local
onde ele tinha se refugiado há alguns anos desde que se
aposentou, a algumas horas da cidade. Minha mãe e ele se
divorciaram quando eu ainda era adolescente e papai, inclusive,
chegou a se casar de novo mais duas vezes, assim como minha
mãe se casou de novo e atualmente mora na Austrália já há sete
anos. Claudia pediu para irmos juntos, afinal, eu e Mackenzie
éramos a única família que ela tinha. Eu não queria passar o Natal
com Claudia, porque ela falava o tempo inteiro de como Claire
estaria se sentindo se tivesse conosco e isso só me deixava mais
triste. Mas me sentia culpado de afastá-la justamente nesse feriado.
Ainda mais porque Mackenzie era sua única parente agora.
Porém, este ano minha tristeza é diferente.
Penso em Kiara e em como ela parecia devastada ontem
quando conversamos.
Eu havia mantido contato com Christian, o tempo inteiro
naquelas semanas desde que ela descobriu sobre Mackenzie.
Sabia que ela ficaria abalada e também com raiva de mim.
Afinal, eu me aproximei dela com falsos pretextos e ainda por
cima, nos envolvemos sem que eu conseguisse evitar. E então, era
tarde demais para voltar atrás, eu só podia lamentar ter omitido que
era o pai adotivo de sua filha.
Tomei a decisão de não revelar a verdade, pelo menos
enquanto estivesse neste momento tão crucial. Não queria jogar
uma bomba dessas quando ela precisava estar concentrada nas
Olimpíadas. E também não poderia ficar com ela enquanto não
passava de um mentiroso.
Terminar com ela naquele jantar foi horrível porque percebi
que não queria afastá-la. Que em vez disso queria dizer que sim, eu
estava me apaixonando por ela, queria levá-la para minha cama e a
manter lá, assim, como permitir que fizesse parte da minha vida,
mesmo ainda não sabendo como poderia dar certo.
Eu nunca imaginei me apaixonar de novo. Não quando ainda
cultivava a saudade de Claire. Porém, Kiara entrou no meu coração
e agora ela tinha um lugar cativo lá.
E pensar que eu iria magoá-la quando contasse a verdade
me destruía um pouco mais a cada dia.
Porém, eu não consegui poupá-la porque o homem que
abusou dela apareceu, a desestabilizando. Ainda me recordo de
como fiquei abalado de vê-la encolhida naquele vestiário, tremendo
e assustada, quando fui buscá-la. E tudo o que eu queria era tirar o
sofrimento dos seus olhos.
De suas lembranças.
Por isso não resisti quando ela pediu que ficássemos juntos
de novo. Eu a levei para a cama que dividi com minha esposa e não
senti nem um pingo de culpa. Nem depois, quando a paixão deu
lugar à calmaria. Eu só sentia paz porque contrariando todas as
expectativas, parecia tão certo ter Kiara ali.
Era como se o fantasma de Claire que rondava meu
subconsciente tivesse desaparecido.
E percebi que finalmente estava pronto para seguir em frente.
Eu queria seguir em frente.
Queria aquela garota quebrada e traumatizada ali, na minha
cama. Na minha vida.
Queria que ela descobrisse sobre Mackenzie e que pudesse
deixar que finalmente ela fosse a mãe que deveria ter sido e não foi.
Só havia um pormenor. Eu precisava contar a verdade.
E, infelizmente, a possibilidade de Kiara me odiar era grande.
Eu teria que arriscar. Eu me encontrei com Christian e lhe contei a
verdade, pedi que viesse comigo para amparar Kiara quando ela
não me quisesse mais.
E rezei para que depois do choque e da raiva, com o tempo,
quem sabe, ela pudesse me perdoar.
Eu não podia adivinhar que ela iria descobrir da pior forma
possível através de Claudia.
E então, tudo virou um inferno.
Kiara me odiava e não estava lidando bem com a revelação
de que Mackenzie era sua filha.
E isso doía.
Mesmo que ela nunca mais me quisesse, eu queria que ela
ao menos aceitasse amar Mackenzie.
— Não vai falar mais comigo?
Eu me viro ao ouvir a voz de Claudia.
Ela havia chegado há algum tempo, e estava brincando com
Mackenzie.
Eu a estava ignorando desde o dia em que, furioso, a mandei
embora da minha casa quando mostrou a carta a Kiara.
A carta que ela nunca deveria ter encontrado.
— Você não tinha o direito de fazer o que fez — respondi com
frieza.
— E você tinha? Foi um mentiroso!
— Não era da sua conta a maneira que resolvi lidar com o
pedido de Claire.
— Ela era minha irmã! Você deveria ter me contado sobre o
último desejo dela! Como pôde trazer uma estranha para sua casa?
Para a vida de Mackenzie?
— Não era uma estranha, era a mãe biológica dela.
— Uma estranha! Uma mulher que deu a filha para outras
pessoas criarem. Por que Claire inventou que uma pessoa dessas
podia querer ver a filha que abandonou depois de tantos anos? É
ridículo e você deveria ter queimado essa carta!
— Era um pedido de Claire, eu jamais poderia ignorar! Acha
que também não fiquei com medo de trazer a mãe biológica para a
vida da minha filha?
— Mas trouxe! E ainda dormiu com ela! Quão nojento isso é?
— Você não sabe de nada...
— O que eu sei é que você perdeu o juízo! Quando Claire
pediu que entrasse em contato com a mãe biológica, acredito que
não foi com o intuito de que essa mulher também tomasse o lugar
dela na sua cama!
— Cale a boca, você está falando merda.
— Ah estou? Não perdeu tempo em transar com aquela
patinadora!
— Sim, eu dormi com ela. E isso não é da sua conta!
— É sim se você põe em risco minha sobrinha.
— Mackenzie nunca esteve em risco. E se você quer saber,
eu menti para a Kiara justamente porque queria testá-la antes.
Queria descobrir que tipo de pessoa ela era.
— É, Matt me contou algo sobre isso, uma história bizarra!
Foi muito antiético.
— Eu sei, não me orgulho, mas era minha filha, e sim eu
queria protegê-la. Se você estava tão preocupada com a segurança
dela, eu também estava e fiz o que fiz por isso.
— Também levou a patinadora pra cama pelo bem de
Mackenzie? Está querendo não só dar uma nova mãe a Mackenzie
como também ter uma nova esposa?
— Talvez eu queira!
Claudia empalidece dando um passo atrás como se eu
tivesse lhe agredido.
— Não pode fazer isso. E Claire?
— Claire morreu! Eu a amava, a amei por todos os anos que
estivemos juntos, mas eu estou vivo!
— E eu também estou, mas você não percebe isso, não é?
Desta vez sou eu que dou um passo atrás ao entender o que
Claudia está dizendo.
— Claudia...
Minha nossa, Matt tinha razão?
Ela enxuga uma lágrima com um sorriso irônico.
— Você me trocou tão fácil pela Claire.
— Eu nunca... Eu não podia imaginar que você, depois de
todo este tempo... Eu me casei com sua irmã.
— Claro que casou. Ela te roubou de mim.
— Não foi assim.
— Foi exatamente assim. Era assim que Claire era. Ela
seguia suas vontades independentemente de quem ia passar por
cima no processo.
— Claire não era assim.
— Ah, sim, ela era uma santa! Olha, eu amava minha irmã.
Ainda a amo. Vou sentir falta dela todos os dias enquanto eu viver.
Mas nunca vou perdoá-la por ter roubado de mim a vida que era pra
ser minha!
— Eu sinto muito. — Eu me compadeço de Claudia.
Nunca imaginei que ela nutrisse algum ressentimento pelo
que aconteceu em nossa juventude.
— Nós ficamos juntos uma vez, Claudia. Foi legal. Eu gostei
de você, me interessei, claro. Mas quando conheci Claire... foi
diferente. Foi mais. Foi amor. Eu sinto muito ter que dizer isso, mas
tenho a impressão de que, mesmo que Claire não tivesse feito
aquela brincadeira de ir no seu lugar, talvez eu tivesse me
apaixonado por ela do mesmo jeito, porque era pra ser.
— Você não tem como saber!
— É verdade, não tenho. Mas foi assim que aconteceu. E
nossas vidas seguiram.
— A minha vida nunca seguiu.
— Deveria ter seguido. Eu e Claire nos casamos, criamos
uma família.
— Só que ela morreu. E sofri tanto, mas um dia eu pensei
que talvez fosse minha chance com você. Eu esperei que talvez um
dia você olhasse pra mim diferente. Que se apaixonasse por mim,
como se apaixonou por Claire.
— Eu sinto muito, mas sabe que não vai acontecer.
— E saber que você se apaixonou por essa garota... E ela é a
mãe da Mackenzie, como posso concorrer com isso?
— Não me apaixonei por Kiara porque ela é a mãe da
Mackenzie.
— Mas está apaixonado.
— Sim.
Claudia funga, sacudindo a cabeça.
— Eu fui uma boba.
— Não, não foi. Eu só acho que precisa seguir em frente. Não
tenha ressentimento de algo que aconteceu há tanto tempo, não
fique pensando que podia ser diferente. Precisa viver sua vida. Se
permitir apaixonar-se por outra pessoa. Talvez até tenha sua própria
família.
— Eu vou embora.
— Achei que ia ficar conosco.
— Minha melhor amiga, Sage, me chamou para passar o
Natal com ela e o marido. — Ela dá de ombros. — Eu declinei
porque ela insiste que tem que me apresentar o irmão dele.
— Não precisa ir embora. Sei que gostaria de ficar com
Mackenzie.
— Estou muito chateada agora, Nick. Desculpa.
— Sinto muito.
— Eu já deixei os presentes a Mackenzie.
Eu a acompanho até a porta e a abraço para me despedir.
Sinto que, para Claudia, é uma despedida de tudo o que ela
insistiu em nutrir em todos aqueles anos.
E desejo que ela supere e encontre sua felicidade.
Assim que volto para a sala, Mackenzie vem até mim
segurando um livro.
— Papai, lê pra mim essa história?
— Claro, querida.
Eu me sento com ela em frente à lareira e a ponho em meu
colo.
Percebo que o livro que ela quer que eu leia é o mesmo que o
pai de Kiara lhe deu.
Eu começo a ler a historinha e Mackenzie boceja.
— Está com sono?
— Estou um pouco... Mas hoje é Natal, não quero dormir.
— O Natal ainda vai demorar um pouco, quer tirar uma
soneca?
Eu a pego no colo e a levo para cama.
— Papai?
— Sim? — Ajeito sua coberta e ela abre os olhos me
encarando.
— Kiara é a minha mãe?
Sinto um baque no estômago. “De onde surgiu aquela
pergunta?”.
“Será que ela ouviu e eu e Claudia discutindo? Eu deixei
escapar alguma coisa?”
— Por que está perguntando isso?
— Porque mamãe me disse uma vez que a minha mãe de
verdade, sabe, aquela que me levou na barriga, era uma patinadora.
“O quê?”
Eu seguro os ombros de Mackenzie, atônito, a fazendo sentar
na cama.
— O que está falando, filha? Sua mãe te disse isso quando?
“Minha nossa, será verdade? Claire teria contado sobre Kiara
a Mackenzie?”
— Ela me contou um dia. Sabe, a gente sempre conversava
sobre um monte de coisas. Ela me dizia que ia embora e que não
poderia mais voltar. Que ia morar no céu. Eu ficava triste, não queria
ficar sem uma mãe, mesmo ela ficando o tempo todo deitada
naquela cama.
Ah Deus, Claire morreu há dois anos, Mackenzie só tinha três
anos, ela mal se lembrava de muitas coisas relacionadas à mãe.
Não podia imaginar que ela se lembrasse dos últimos
momentos de vida de Claire.
Mas me recordo que eu a levava para a cama de Claire, no
escritório, onde montamos todo o aparato hospitalar quando os
médicos a desenganaram e a trouxemos para passar seus últimos
dias em casa. Eu as deixava sozinhas, conversando, e Claire lhe
contava histórias até se cansar e então eu levava Mackenzie.
— Eu nem sabia que se lembrava dessas coisas...
— Algumas coisas eu me lembro, papai. E a mamãe disse
que não era pra eu ficar triste, porque um dia eu teria outra mãe.
Que minha verdadeira mãe iria voltar e cuidar de mim. E eu lembro
bem, ela falou “sua mãe é uma patinadora muito bonita”. E a Kiara é
uma patinadora e é bonita. Aí eu fiquei pensando que talvez fosse
ela.
Toco seus cabelos, mirando seus olhinhos esperançosos
esperando minha resposta e sei que não posso mais mentir.
Ainda não sei se Kiara vai voltar, se ela vai querer Mackenzie,
mas eu não posso mentir pra minha filha.
— Sim, ela é sua mãe.
— Eu sabia! — Ela abre um sorriso feliz, pulando em meu
colo. — Eu sabia!
— Você gosta da Kiara, não é? — Eu a abraço.
— Claro que sim. Mesmo que ela não fosse minha mãe. —
Ela sorri pra mim.
Acaricio seu rosto.
— Mas ela gosta de mim também?
Sinto meu peito se apertar.
— Sim, ela te ama muito.
Eu sei que Kiara ama Mackenzie, ela a amou mesmo quando
não podia vê-la. E só está confusa e com medo com tudo o que
essa mudança de ter Mackenzie em sua vida implica.
Então, eu faço uma promessa ali, olhando para os olhos da
minha filha, que eu vou trazer Kiara para ela.
Eu vou cumprir o último desejo de Claire.
Mesmo que Kiara esteja perdida para mim, ela ainda pode ser
a mãe de Mackenzie.
— Agora vá dormir.
— Eu vou fazer um pedido para o Papai Noel, será que ainda
dá tempo?
— Acho que dá sim. Feche os olhos com força e faça um
pedido que ele escuta.
Ela faz o que mandei e eu sorrio.
— Pronto, eu fiz!
— Só me conta o que pediu.
Se ela pedisse algum brinquedo além do que já tinha pedido,
talvez ainda tivesse tempo de providenciar.
— Eu pedi que a Kiara viesse passar o Natal com a gente.
Ah filha, acho que posso fazer o mesmo pedido.
— Se o Papai Noel chegar, você me acorda? — Pula para
debaixo da coberta.
— Claro que sim.
Ela fecha os olhinhos e ainda permaneço ali até que
adormeça e saio do quarto.
Estou descendo as escadas quando escuto a campainha
tocar.
E quando eu abro a porta, Kiara está ali.
— O convite para o Natal ainda está de pé?
De repente, eu acho que acredito em Papai Noel.
Capítulo 10

Kiara

Contemplo Nick quando ele abre a porta pra mim, abraçando


o pacote de presente contra meu peito como um escudo.
Desde que discuti com Maude e saí da casa da Nádia com
meu sonho olímpico destruído, eu só pensava em uma coisa.
Eu queria ver Mackenzie.
Queria aceitar o convite de Nick para o Natal.
Chris ficou feliz quando eu lhe disse o que pretendia fazer e
ainda me convenceu de que eu tinha que comprar um presente.
Agora cá estou eu, parada na frente de Nick de Santi,
tremendo de medo do que está por vir.
Como posso ter medo de uma menininha de cinco anos?
Nick faz um sinal para eu entrar e passo por ele, ainda
hesitante.
Não escuto nenhum barulho de criança, mas sei que ela está
ali em algum lugar e que pode aparecer a qualquer momento, o que
me deixa mais amedrontada ainda.
— Mackenzie está dormindo — Nick diz e eu quase respiro
aliviada. — O que é isso? — Ele aponta para o pacote que seguro.
— Um presente... para Mackenzie.
Ele sorri.
— Vem, vamos deixá-lo na árvore.
Ele me leva até a sala de estar onde uma grande árvore está
enfeitada e já há alguns presentes ali.
— Mackenzie é a única criança da família, claro que ela é
mimada com um monte de presente — diz com ironia enquanto eu
coloco o pacote junto com os outros. — E isso porque nem coloquei
aí o que ela pediu para o “Papai Noel”. — Faz aspas com os dedos.
Eu o encaro, apavorada.
— Não sei como fazer isso — confesso.
— Você quer fazer, é o importante.
— Mesmo assim... estou morrendo de medo. É tudo novo e
inesperado. Nunca achei que ia encontrar minha filha. Não sei como
isso pode funcionar.
— Nós teremos tempo para definir. Agora precisa relaxar. Vou
lhe servir algo quente para beber. Fique à vontade.
Ele faz um sinal para eu me sentar em frente a uma das
poltronas perto da lareira. Tiro meu casaco e me sento, tentando me
controlar.
Nick retorna e me dá uma caneca.
— Chocolate quente. Com um pouco de conhaque, acho que
precisa.
Esboço um sorriso sem graça.
— Obrigada.
Nick se acomoda na outra poltrona e de repente eu me sinto
sem graça.
Tudo está um pouco formal demais e desconfortável.
— Isso me lembra um pouco do dia em que ficamos presos
na casa em Whistler depois que me tirou da neve — comento. —
Naquele dia eu estava me sentindo tão perdida. Era como se eu
pudesse me esfacelar a qualquer momento. Acho que nunca te
agradeci de verdade pelo que fez.
— Eu estava me sentindo da mesma maneira quando te
encontrei.
Desvio o olhar, me perguntando se ele está falando de algo
mais amplo.
Mas não tenho condições ainda de lidar com Nick, naquele
nível.
Estou aqui apenas por Mackenzie e quero me concentrar
nisso.
— Quando você me reconheceu?
— No mesmo instante.
— Fico imaginando o que se passou pela sua cabeça.
— Eu pensei que era uma coincidência bizarra que justo você
estivesse ali, mas logo só pensava em tirá-la do gelo e aquecê-la.
— Você poderia ter me contado. Naquele dia...
— Acha que estaria mais preparada para escutar a verdade
naquele momento?
— Não, acho que de qualquer maneira ficaria em choque,
mas pelo menos não iria te odiar pelo que fez.
— Então me odeia?
Descanso meu olhar em seu rosto bonito. Só olhar pra ele faz
meu coração bater mais rápido e isso é uma droga.
E procuro a raiva que deveria estar sentindo ainda pelo que
fez, mas não a encontro.
— Não quero ter ressentimentos, Nick — respondo por fim. —
Você é o pai da Mackenzie. E é por ela que estou aqui.
Desvio o olhar porque os dele são intensos demais.
Parecem buscar algo dentro de mim e temo que ele ache. E
não quero ser aquela boba de novo, me jogando em cima dele.
Já estou confusa e assustada demais para colocar minha
paixão com Nick em pauta também.
Ele já tinha deixado claro que ainda amava Claire e talvez
tenha se atraído por mim, mas não quero me colocar naquela
situação de competir com uma mulher morta.
— Claro, Mackenzie é tudo o que importa — ele concorda por
fim.
Deixo meu olhar vagar para fora, a neve caindo.
— Só você e Mackenzie estão aqui?
— Sim, seremos só nós três.
— Você nunca me contou se tem família. — Sinto-me curiosa
de repente.
— Sou filho único, tenho alguns parentes, mas todos
distantes. Minha mãe está morando na Austrália e não somos muito
próximos. Ela deixou meu pai quando eu era adolescente. Está
casada de novo agora. E meu pai tem uma fazenda há algumas
horas daqui. Ano passado passamos o Natal com ele. Este ano ele
está viajando com a nova namorada. Ele já se casou mais duas
vezes depois da minha mãe e acredito que talvez eu ganhe uma
nova madrasta em breve — Nick diz divertido.
— Não parece ressentido com a situação dos seus pais.
— Na época, eu fiquei chateado, mas sempre entendi que era
uma decisão deles. E eu já era quase adulto.
— Meus pais se separaram quando eu era bem pequena,
nem lembro direito como eram juntos.
— Sua mãe e seu pai nunca se casaram de novo?
— Não. Meu pai chegou a ter uma namorada com quem ficou
alguns anos, no fim não deu certo. Eu perguntei pra ele uma vez se
não pretendia se casar nunca mais e ele disse que estava velho pra
isso. Que vivia bem sozinho.
— E sua mãe?
Eu me mexo, incomodada, ainda sentindo frustração pela
briga de mais cedo e por ela não concordar que me aproxime de
Mackenzie.
— Minha mãe é obcecada demais com a minha vida para
viver a dela.
— Você já é adulta, não precisa deste tipo de obsessão.
— Eu sei, mas... desde pequena vivemos assim. Eu e ela.
Mamãe deixou meu pai para vir para Vancouver comigo e fazer de
mim uma grande patinadora artística.
— E você sempre quis isso?
— Quando era pequena acho que não entendia. Eu só queria
patinar e me divertir. Era fácil pra mim, e mesmo quando os treinos
começaram a ficar mais pesados, e eu tinha que deixar de ir brincar,
ou comer só o que minha mãe mandava, e nem sempre coisas
gostosas como eu queria, ou ser livre simplesmente pra não fazer
nada, Maude sempre estava ali para me dizer que eu tinha que
fazer aqueles sacrifícios porque eu seria uma grande medalhista
olímpica. Eu seria a melhor do mundo. E ouvi isso por anos. Claro
que acreditei e era o que eu queria também. Gostava de ser
querida, de ter meu trabalho e sacrifício reconhecidos. Quando me
tornei adolescente, as coisas mudaram um pouco, porque eu já não
era uma criança que só podia obedecer em tudo. Eu descobri que
havia um mundo além da patinação. Comecei a querer sair, me
divertir, namorar...
— Deixa eu adivinhar. Maude não deixava nada disso.
— Não, ela não deixava. Eu acabava obedecendo sempre,
porque sabia que ela tinha razão. Se eu quisesse a excelência, teria
que fazer sacrifícios. Aí veio Dimitri... e Andrey. — Meu estômago
embrulha ao pensar naqueles anos. De como eu e Dimitri éramos
perfeitos juntos. Como Andrey com sua técnica rigorosa nos
transformou nos melhores. Fecho os olhos e sacudo a cabeça, para
tirar aquelas memórias do meu pensamento. — Nunca imaginei que
aquele homem a quem eu confiava quase como um pai poderia
fazer o que fez. Então tudo acabou. O sonho olímpico meu e de
Dimitri. Claro, meses depois, quando já não estava mais grávida,
Maude tratou de procurar outra dupla pra mim, ela voltou com força
total com sua ideia de que eu ainda seria a melhor. E não me
restava mais nada a não ser me apegar a essa ideia também. Eu
tinha perdido tudo, sacrificado tudo por isso.
— O que Maude disse sobre Mackenzie?
— Ela está brava comigo e não só por isso... Eu desisti das
Olimpíadas.
— O quê?
— Nádia não achava seguro, eu não estou emocionalmente
bem. Esse tipo de modalidade é sobre memória muscular. Se sua
mente embaça, seu corpo não consegue lembrar o que tem que
fazer. Pode ser perigoso. Então decidi que não estou em condições
de prosseguir agora.
— E Christian?
— Ele entende. Eu senti muito por ele, mas seria perigoso
para nós dois.
— Eu sinto muito, Kiara. Sabe que depois que decidi que
você merecia saber sobre Mackenzie, que não era a pessoa ruim
que eu achei que poderia ser, decidi não te contar por causa disso.
Eu não queria te atrapalhar quando deveria estar focada nas
Olimpíadas.
— Sério?
— Sim, mas também sabia que não podia continuar... com
você.
Entendo o que ele quer dizer. Por isso terminou comigo. Não
conseguiria manter a mentira.
“Mas isso quer dizer que ele queria ficar comigo?”
Tenho medo de perguntar.
— Agora eu me sinto culpado. Sei o quanto era importante.
— Era importante, mas desde que soube de Mackenzie...
Acho que tudo mudou de perspectiva. Sim, estou triste, afinal foram
anos de treinamento e não era só uma glória minha. Tinha Christian
também. Mas, no fundo, acho que estou aliviada. Parece que tirou
um peso dos meus ombros. A verdade é que eu já não estava bem
antes. Eu acho que nunca estive bem.
— Você pode ficar agora.
— Acha possível? Eu não sei como.
— Tudo vai ficar bem.
Ele parece ter certeza disso, mas eu ainda não consigo ter
aquela segurança.
— Terminou? — indaga apontando para meu chocolate.
— Sim, terminei.
Eu me levanto.
— Acho que eu posso lavar isso.
Eu vou para sua cozinha, abro a torneira lavando a caneca,
porque de repente estou um pouco inquieta.
Sei que Mackenzie pode aparecer a qualquer momento.
— Você precisa se acalmar.
Eu quase dou um pulo quando sinto as mãos de Nick nos
meus ombros.
— Kiara, olhe pra mim.
Ele me faz girar.
Está tão perto que me faz perder o fôlego, substituindo a
inquietação em meu íntimo por outro tipo de sensação.
Não menos inquietante.
— Vai ficar tudo bem.
— Não sei como encará-la. Como vai ser, como...
— Ela já sabe.
— O quê?
— Ela me surpreendeu hoje me perguntando se você era a
mãe dela.
Levo a mão à boca, chocada.
— Como é possível?
— Claire lhe contou. Eu não fazia ideia. Na verdade, antes de
morrer, Claire lhe disse que a mãe dela era uma patinadora. E
quando conheceu você, ela fez a associação.
— Minha nossa... — Eu começo a tremer inteira. — Ela
sabe...
— Sim, eu lhe confirmei hoje mais cedo. Sei que nem sabia
se você iria vir, ou como iria lidar com tudo, mas não podia mentir
pra ela.
Eu me desvencilho de Nick, desabando na primeira cadeira
que encontro, ainda passada.
Mais assustada do que antes.
Eu tinha até cogitado, em meio a meu medo, pedir a Nick que
não contasse a Mackenzie a verdade. Mas agora é tarde.
Ela sabe.
Sempre soube...
Nick senta em uma cadeira na minha frente e puxa minha
mão para as suas.
— Kiara, me escute. Está apavorada à toa.
— Tem certeza? — Solto um riso nervoso. — Não faço ideia
de como agir.
— Mackenzie é uma criança maravilhosa. E você já sabe
disso.
— Mas...
— Deixe as coisas fluírem naturalmente.
— Eu não sei o que ela espera de mim. Ou o que você
espera de mim.
— Eu só quero que a ame. E Mackenzie vai te amar também.
— Não acho que maternidade seja só isso.
— Não, não é. Mas podemos começar com isso. As questões
práticas, vamos decidindo com o tempo.
— Questões práticas?
— Sim.
— O que quer dizer? Eu não sou a mãe dela. Não no sentido
da lei, digamos assim. Ela não é minha responsabilidade.
— Você gostaria de ter essa responsabilidade?
“Eu gostaria?”
Ah minha nossa.
— São tantas coisas pra pensar, implica em tanta coisa. Eu
não sei onde ela estuda, que tipo de comida ela come, se tem
alguma alergia, se já esteve doente... Eu nem sei a cor preferida
dela!
Nick ri.
— Sim, são muitas coisas que não sabe. Mas vai descobrir.
— Papai?
De repente eu prendo a respiração ao ouvir a voz de
Mackenzie e os passos se aproximando.
Nick aperta meus dedos.
— Fique calma. Só aja normalmente.
Sacudo e cabeça em afirmativa, tentando acalmar a mim
mesma.
E então ela surge.
Os cabelos em desalinho, e seu olhar vai de Nick para mim e
ela arregala os olhos ao notar minha presença.
— Kiara!
E sem aviso, corre e pula em cima de mim, prendendo os
braços em meu pescoço.
E eu a abraço porque não tem outra coisa que eu possa
fazer.
E porque é como se eu a abraçasse pela primeira vez.
Aspiro o cheiro de seus cabelos, acaricio suas costas e sinto
seu coração batendo junto ao meu.
E é como se me sentisse completa pela primeira vez em
cinco anos.
— Você sabe que é minha mãe? — Ela me encara com os
olhinhos brilhando.
Eu solto um riso que é mais um soluço.
— Eu sei sim...
De repente eu me pergunto se ela se ressente. Se entende
que eu a mandei embora. Que estive longe por cinco anos,
deixando que outra mulher fosse sua mãe.
Mas Mackenzie não parece se preocupar com nada disso, ou
talvez ela ainda nem entenda a situação a este nível.
Ela só parece feliz e animada.
— Vamos fazer biscoito de Natal, papai? — diz de repente,
como se não tivesse mudado meu mundo em poucos segundos.
— Claro — Nick responde e Mackenzie pula do meu colo me
puxa no processo. — Vem, Kiara, vamos fazer biscoitos.
— Eu acho que nunca fiz biscoitos...
— Como não? Todo Natal tem que fazer biscoito! —
Mackenzie insiste imperativa. — Eu vou te ensinar a fazer...
Nick começa a espalhar ingredientes na mesa.
— Vá lavar a mão, filha.
Mackenzie corre para fazer o que o pai pediu e Nick me
encara.
— Viu, tudo normal.
— Normal? Meu coração parece que vai sair pela boca! E eu
nunca fiz biscoito! Aliás, ela não é muito criança pra fazer isso?
— Claro que não faz nada. Eu tive que aprender porque ela
insistiu muito. E ela inventa de fazer biscoito o ano todo, não só no
Natal. Então melhor aprender também.
Ele começa a colocar ingredientes em uma tigela.
— Faz parecer fácil. — Quero dizer que ele faz parecer fácil
cuidar de uma criança e ele entende.
— Não é fácil não. É cansativo e às vezes assustador, mas
ela vale a pena.
— Isso eu acredito.
Mackenzie volta correndo.
— Deixa eu mexer! — Pula em uma cadeira para alcançar,
tentando tirar a colher de Nick, que a impede. — Primeiro vá colocar
seu avental. Kiara a ajuda.
Eu arregalo os olhos sem saber o que fazer.
— Está pendurado ali. — Ele aponta onde tem vários aventais
pendurados, e pego um pequeno que tem o nome de Mackenzie.
Eu me aproximo e o coloco, amarrando atrás.
— Obrigada, Kiara. Agora eu! — exige e Nick lhe passa a
colher, ela mexe toda feliz.
Nick pega uma forma e pede que eu ligue o forno.
— Pelo menos ligar o forno você sabe, não é?
Eu rolo os olhos com a afronta.
— Acho que sim.
— Não costuma cozinhar?
— Não, faço apenas o básico e Maude costuma levar tudo o
que preciso comer pronto pra mim.
— Já está na hora de aprender a fazer a própria comida,
não?
— Eu sei fazer minha própria comida — Mackenzie diz.
— Ah sim. — Nick pisca. — Agora me deixa terminar.
Ele retira a colher dela e acrescenta mais farinha. A massa
fica densa e ele a coloca sobre uma superfície polvilhada e
Mackenzie retira de um saquinho um monte de moldes de ursinhos
e árvore de Natal.
— Vem, Kiara, vamos fazer biscoitinhos!
Eu me aproximo e a ajudo a fazer e é realmente divertido ver
como ela se diverte.
Depois Nick coloca tudo na forma e leva ao forno.
— E agora nós vamos tomar chocolate?
— Depois. Agora é hora de a senhorita jantar.
Eu olho pra fora notando que a noite já caiu.
Nick pega algo na geladeira e põe no forno.
— Come lasanha, Kiara?
— Acho que agora eu como, afinal não tenho que contar as
calorias, já que não vou mais competir. — Abro um sorriso meio
triste.
Ainda dói um pouco pensar nisso.
— Então também pode tomar um vinho?
— Eu quero vinho — Mackenzie, que estava abaixada em
frente ao forno vigiando os biscoitos, diz.
— Daqui a 13 anos você vai poder.
— Mas é muito tempo, papai.
— Pois é. Que tal subir e tomar banho antes do jantar?
— E podemos ver um filme de Natal enquanto esperamos o
Papai Noel depois?
— O papai Noel só vem amanhã, já falei, mas podemos ver
um filme sim. — E ele olha pra mim. — O que acha da Kiara te
ajudar?
Mackenzie assente e me puxa pela mão, ainda lanço um
olhar de pavor a Nick que apenas dá de ombros.
Chegamos ao quarto de Mackenzie, que é o que acredito ser
o quarto típico de uma menina daquela idade, com muito rosa,
ursinhos e bonecas pra todo lado.
— Seu quarto é bonito — elogio, sem saber o que fazer.
— É sim! O seu quarto também é rosa?
— Não, não é. Mas eu já tive um quarto assim quando tinha
sua idade.
— A gente podia brincar de boneca! — ela sugere.
— Achei que seu pai disse que era pra tomar banho e jantar.
— Ah é.
— Eu não sei como posso te ajudar — confesso. — O que
precisa? Você toma banho sozinha?
— Bem, eu tomo sim, já sou uma menina grande e não um
bebê! Mas a tia Claudia ou o papai, depois me fiscalizam pra ver se
estou limpinha, sabe? Eles ficam perguntando “Limpou atrás da
orelha? Esfregou bem o pé?”.
Eu rio.
— Certo, então eu posso te fiscalizar também.
Nós vamos para o banheiro e ligo a torneira da banheira, e a
ajudo a tirar a roupa e a entrar na banheira.
Sento-me do seu lado e fico espiando enquanto ela brinca
com bichinhos de plástico.
Acho que poderia ficar para sempre assim, observando seus
movimentos, ouvindo sua voz, decorando todos os seus traços.
“E nossa, quão surreal é isso?”
Eu estava morrendo de medo de Mackenzie, e, na verdade,
eu ainda estou um pouco amedrontada, mas a maneira que ela
reagiu à novidade de que tem uma mãe, além daquela que se foi há
dois anos, foi inesperada.
É um alívio.
Embora eu me pergunte se ela entende realmente o que uma
mãe significa?
“E eu sei?”, me pergunto.
O exemplo que eu tenho é Maude. Tento me lembrar como
minha mãe era quando eu era criança. Ela era muito bonita, brigava
quando eu a abraçava com as mãos sujas. Era muito disciplinadora,
sempre me dando bronca se eu falava de boca cheia, ou não tinha
modos. Também havia muitos horários. A hora de ir pra escola, as
intermináveis horas patinando que dominava tudo, fora o balé. As
horas de brincar eram poucas e sempre pareciam insuficientes.
Será que Maude deixava eu brincar mais tempo do que deveria na
banheira? Eu duvido muito. Claro, ela não era sempre séria. Ficava
feliz, me aplaudia e me abraçava quando eu fazia algo incrível na
pista de patinação, quando eu aprendia a fazer um elemento novo e
difícil. Aí ela ficava orgulhosa e me deixava sempre fazer alguma
coisa diferente. Como tomar um sorvete ou dormir mais tarde, ou
algum brinquedo que eu quisesse muito. Porém, enquanto eu
crescia, ela se tornava cada vez mais rígida e menos amorosa. Os
momentos de abraços e pequenos agrados foram sumindo. Eu não
fazia mais do que minha obrigação, ela dizia. Era para orgulhar a
mim mesma que eu devia patinar melhor que todo mundo. E se
queria ser a melhor, eu não poderia ser como os outros. Não haveria
encontros, festinhas, bebedeira com amigos.
Não haveria a possibilidade de ser a mãe daquela menininha
linda que agora sorri pra mim, estendendo o braço para que eu a tire
da banheira.
Meu coração que até há pouco tempo era feito de gelo,
derrete com um amor que eu nem sabia que existia.
E que é bem-vindo e enche meu ser de contentamento e paz.
Não quero ter medo. Não quero fugir daquele sentimento.
Eu não faço ideia de como ser a mãe que ela precisa que eu
seja, mas vou deixar que ela me ensine e me mostre. E eu vou
tentar com todas as forças ser o melhor que eu puder.
Sorrio de volta e pego a toalha a envolvendo e a tirando da
banheira.
Ajudo a colocar um pijama que ela escolheu para descermos
para jantar.
Nick nos observa com um olhar contemplativo quando
Mackenzie se senta à mesa garantindo que lavou atrás da orelha.
— É bom mesmo. — Nick faz uma falsa voz autoritária e puxa
uma cadeira para eu me sentar. — Tudo bem? — sussurra em meu
ouvido quando eu me sento e eu aceno.
— Acho que vai ficar.
Ele aperta meus ombros antes de me soltar e se sentar.
Mackenzie tagarela sobre alguns filmes de Natal que assistiu
e eu apenas fico observando os dois interagirem, o quanto de
paciência que Nick tem.
Depois, Mackenzie me puxa para a sala.
— Você vai assistir a um filme com a gente, né, Kiara?
Eu olho pra Nick. Está ficando tarde e talvez eu deva ir
embora e voltar amanhã? Não combinamos nada de eu dormir ali.
— Claro que ela vai ficar. Amanhã ela vai abrir os presentes
com você.
— Eba!
Eu o encaro enquanto Mackenzie vai para o sofá e mexe no
controle remoto.
— Tudo bem mesmo eu ficar? Acho que nem pensei sobre
isso...
— Claro que sim. Amanhã é Natal. A não ser que tenha
algum compromisso?
— Não, não tenho. Eu geralmente fico com Chris, ou vou para
a casa do meu pai.
— Não passa com sua mãe?
— Ela não gosta de comemorar o Natal. Sempre acaba
fazendo alguma viagem... — Então algo me ocorre. — E Claudia?
Não virá?
Uma sombra passa pelos olhos de Nick.
— Claudia não passará conosco este ano.
Quero perguntar por que, mas me calo.
Imagino que Nick não deve ter gostado de Claudia ter me
mostrado a carta de Claire.
E não posso negar que me sinto aliviada de Claudia não estar
ali. Ela claramente não gosta de mim e acho que poderia ficar um
clima ruim.
— Vocês não vêm? — Mackenzie nos chama.
Nick segura minha mão e me puxa para o sofá.
Mackenzie colocou um filme do Grinch e gargalha enquanto a
aventura se desenrola na tela. E no fim, ela está bocejando e
sonolenta.
— Acho que está na hora de dormir. — Nick anuncia.
— Mas eu quero ainda comer biscoitos... A gente nem
decorou, papai.
— Amanhã faremos isso. — Nick desliga a TV. — A Kiara vai
te ajudar a ir pra cama, o que acha?
— Eu? — Arregalo os olhos, surpresa, mas Mackenzie não
percebe, pois estende os braços pra mim.
Eu hesito, Nick me lança um olhar encorajador e eu a pego
no colo.
Ela passa os bracinhos e pernas por meu corpo, bocejando.
— Boa noite, papai.
— Boa noite, querida.
— Não se esqueça de escovar os dentes, hein?
Certo, eu posso fazer isso.
Quando chegamos ao seu banheiro, eu a incentivo a escovar
os dentes e depois a levo pra cama, ajeitando o cobertor em cima
dela.
— Você vai estar aqui amanhã? — indaga sonolenta.
— Claro que sim.
— Sabe o que eu pedi para o Papai Noel?
— Imagino que um monte de brinquedo.
Ela ri.
— Sim, pedi um monte, papai disse que o Papai Noel vai falir.
— Eu duvido.
— Mas hoje eu fiz outro pedido. Pedi que você viesse ficar
com a gente.
Meus olhos se enchem de lágrimas e eu acaricio seu rosto.
— Acho que o Papai Noel é bem eficiente, pois realizou o seu
desejo.
— Mas... você vai embora?
— Bem, eu não moro aqui.
— Eu sei, quero dizer, igual a minha outra mamãe que foi
para o céu.
— Ah Mackenzie. Não, eu não vou, prometo. E mesmo que
eu não more aqui, eu sempre vou te visitar e você pode me visitar
também. Aposto que seu pai com o tempo pode até deixar você
dormir na minha casa, você gostaria?
— Sim, eu gostaria muito! E você vai me buscar na escola,
como as outras mães? Sabe, é sempre meu pai que me busca, ou a
tia Claudia, mas nunca tive uma mãe para ir me buscar como as
outras crianças.
— Claro, eu vou te buscar sempre que quiser.
— E vai me ensinar a patinar como você?
— Se você quiser, sim.
— Eu quero! Amanhã?
— Se seu pai concordar, podemos patinar sim.
— Vai ser tão legal!
— Agora vá dormir, para amanhecer logo e Papai Noel trazer
seus presentes.
— Ele já trouxe o melhor de todos! Uma mamãe nova!
Eu me inclino e beijo seu rosto, lutando para não chorar.
— Boa noite, querida.
Eu apago o abajur e me levanto, saindo do quarto. E quando
fecho a porta, Nick está ali.
— Como foi?
Eu solto a respiração.
— Maravilhoso. — Sorrio e ele sorri de volta. — Ainda estou
com medo, porque não pode ser tão fácil assim, mas...
— Não é fácil mesmo. Quanto mais você a amar, mais vai se
preocupar, mais vai se cobrar. E não pense que ela é esse anjinho
sempre. Às vezes ela é rebelde, respondona, faz traquinagem. E
vou dizer, ser disciplinador não é mole.
— Eu aposto que tira de letra. É um pai incrível.
— Eu tento ser o melhor que ela precisa. Mas todo dia é um
aprendizado.
— Você está fazendo um bom trabalho, ainda mais sem uma
mãe.
— Agora ela tem uma mãe.
Mordo os lábios, gostando de ouvir aquilo, mas ainda incerta
de como vamos funcionar. Juntos.
“Juntos?”
Sinto um frio na barriga.
Incerteza de como eu e Nick estamos naquela história.
E tentando me lembrar que não posso começar a ter ideias.
Isso não é sobre mim e Nick.
É sobre Mackenzie e sobre eu descobrir como ser uma mãe
para ela.
— Eu acho que já é tarde. Deve estar cansada.
— Sim, foi um longo dia.
— Tudo bem ficar aqui? Você não parece muito à vontade.
— É que... fico um pouco sem graça com... o nosso histórico
— Enrubesço. — Penso que talvez você não se sinta à vontade
comigo aqui, na sua casa. E da última vez que eu estive aqui, eu
praticamente avancei em cima de você, aliás, acho que toda às
vezes que ficamos juntos fui eu quem pulei em cima de você...
Enfim, esquece o que estou falando. Só queria deixar claro que não
vai acontecer. Eu sei o que estou fazendo aqui. Acredito que tenha
um quarto de hóspedes?
“Minha nossa, que tanta merda estou dizendo?”
Nick me encara impassível.
Droga, eu só quero que ele saiba que não vou mais bancar a
boba deslumbrada com ele.
— Claro. Você pode ficar no quarto de hóspedes. É o terceiro
quarto à direita — ele diz por fim.
— Obrigada. Boa noite.
Avanço pelo corredor, tentando não me sentir decepcionada.
“O que eu esperava?”. Claro que não ia pular na cama de Nick de
novo.
Entro no quarto que tem um banheiro adjacente e tirando
minhas roupas, entro no chuveiro tomando um longo banho morno.
E estou saindo de lá quando levanto o olhar e Nick está na
porta do quarto.
Seguro a toalha com força contra o corpo, vermelha. Notando
que ele também já tomou banho e está usando apenas uma calça
de pijama.
Eu me sinto quente e não só de constrangimento.
— Eu vim te trazer um pijama. — Nick aponta para a cama
onde tem um pijama xadrez. — É um pijama meu. Acho que já usou
uma vez.
Eu assinto.
— Obrigada...
Ele vira saindo do quarto, e eu corro para o banheiro de volta.
Mas no instante seguinte me surpreendo quando Nick aparece na
porta do banheiro.
— Nick?...
— Quer saber? Você disse sempre que é você quem avança
em cima de mim e tem razão, mas acho que está na hora de eu
tomar a iniciativa agora. — E com poucos passos ele está na minha
frente.
Eu mal respiro, surpresa e com o coração aos saltos.
Nick está tão perto que sinto o calor do seu corpo atingindo o
meu, lançando ondas magnéticas em direção a minha pele, que
arrepia e esquenta.
— Se quiser me mandar embora, tem dois segundos — diz
com a voz rouca e eu não consigo nem respirar que dirá falar.
Então ele levanta a mão e afasta meu braço. A toalha cai no
chão e simples assim estou nua na frente dele.
Meu corpo inteiro cora, à medida que ele arrasta o olhar para
baixo e depois volta para meus olhos.
Começo a ofegar, o sangue correndo rápido nas minhas veias
e se instalando em forma de um pulsar urgente entre minhas
pernas.
Nick leva a mão ao cós da própria calça e a tira rápido e
quando ele se ergue eu não contenho meu olhar que rasteja até sua
ereção.
Eu quero ele dentro de mim.
Agora.
Começo a deslizar para uma doce inconsciência. Desejando.
Ansiando.
Precisando.
— Vire-se — pede quase de forma rude.
Ah minha nossa.
Faço o que ele mandou e me arrepio inteira quando ele se
aproxima atrás de mim, afastando meu cabelo e beija minha nuca,
exatamente onde está a minha tatuagem.
— Plus que ma propre vie — sussurra. — É como estou
começando a te desejar.
Ele desliza os lábios por minha pele, minha garganta, a pele
atrás da minha orelha recebe um beijo cálido e cerro os olhos,
soltando um gemido baixo, me encostando nele, fraca de desejo.
— Olha pra mim — ordena em meu ouvido e abro os olhos,
sustentando seu olhar intenso através do espelho, enquanto ele
enche as mãos com meus seios. — Você é linda. — Uma mão
desliza por minha barriga. — Sexy. — E pousa entre minhas pernas.
— E eu só quero foder você até que nenhum de nós pense em mais
nada. É isso que quer? — Ele esfrega os dedos entre minhas coxas,
me deixando mais molhada a cada segundo.
— Sim...
— Sim? — Sinto sua mordida em meu pescoço e um beliscão
em meu clitóris que pulsa contra seus dedos.
— Por favor... você está me deixando louca, Nick...
Com um rosnado, Nick me vira e me ergue até que eu esteja
sobre a pia, com ele entre minhas pernas e sua língua mergulhando
entre meus lábios. Gememos juntos, perdidos num beijo saudoso e
ruidoso. Estou latejando inteira e enfio as unhas em seus ombros,
quando ele guia seu pau para dentro de mim.
Ele estoca forte, rápido e preciso. Os dedos marcando meus
quadris e a testa encostada na minha, enquanto respiramos pesado
e gememos alto, até que o prazer colapsa em meu ventre e Nick
engole meus gritos enquanto goza comigo naquele momento
perfeito.
Estou fora do ar depois e, de relance, percebo que Nick nos
levou para a banheira e que estou encostada em seu peito sob a
água morna.
— Agora você para de falar que é sempre culpa sua — ele diz
e eu não consigo conter o riso.
Ah meu Deus. Aconteceu mesmo?
Ainda sinto meu corpo levitando e agora minha mente está
leve.
Mas meu coração ainda está confuso.
Com medo de acreditar de novo.
— O que estamos fazendo, Nick? — sussurro.
Ele beija meus ombros.
— Acabamos de fazer sexo.
— Você entendeu! — Eu me viro para encará-lo. — Acha que
isso... Nós dois... não pode piorar tudo?
— Piorar o quê?
— Ainda nem sei como serão as coisas com Mackenzie. Não
sei se consigo ficar confusa com isso entre a gente também.
— Kiara, eu quero você. — Ele fica sério. — E eu acho que
você me quer também.
Ele está falando de desejo, só que eu sinto muito mais,
porém, não quero dizer. E não quero me enganar que Nick pode vir
a sentir o mesmo por mim também.
— Eu quero que tudo fique bem e acho que é cedo para
termos essa certeza. Mas não consigo ignorar o que eu sinto. O que
eu quero. E ao menos que você não queira, eu vou entender e parar
de te atacar, do contrário vou avançar pra cima de você. Está vendo,
nem vai mais ter este trabalho.
Eu rio.
— Então por que não deixamos as coisas fluírem? — ele
conclui.
— Fluírem?
— Sim. Tudo é novo pra você e é novo pra mim também.
Com Mackenzie e com o que nós sentimos. Então, vamos deixar as
coisas seguirem. Um dia de cada vez. Eu quero conhecer você,
quero que Mackenzie te conheça. E quero que nos conheça
também.
— Acho que posso aceitar isso — digo ainda incerta e Nick
me beija devagar e persuasivamente.
— Agora vamos dormir.
Nós nos enxugamos e vestimos nossos pijamas.
E Nick me surpreende se deitando ao meu lado e me
abraçando.
— Nick?
— Hum?
— Obrigada por ter me convidado para o Natal. Por confiar
em mim com Mackenzie. Significa muito pra mim.
— Obrigado você, por estar aqui.
— Mackenzie disse que pediu ao Papai Noel que eu
estivesse aqui — digo baixinho me recordando daquele momento
extraordinário.
— Eu fiz esse mesmo pedido também — ele sussurra e eu
sorrio no escuro.
Se eu pudesse pedir algo de Natal acho que pediria a mesma
coisa.
Pediria exatamente aquele momento.
Capítulo 11

Kiara

Quando acordo na manhã seguinte, estou sozinha na cama e


está nevando lá fora.
É Natal e estou na casa de Nick de Santi.
E eu tenho uma filha.
Minha nossa, ainda parece que entrei em um portal e estou
vivendo a vida de outra pessoa.
Eu me levanto e depois de uma rápida passada pelo banheiro
para me tornar minimamente apresentável, desço as escadas e
encontro Nick sentado no sofá tomando café e Mackenzie no chão,
desenhando.
— Bom dia. — Nick sorri ao me ver e Mackenzie levanta o
olhar me notando.
— Você acordou, finalmente! — Ela parece contrariada. — Eu
quero abrir os presentes, mas o papai disse que eu devia esperar
você acordar e ele não deixou eu ir te acordar!
— Me desculpe, acho que dormi tarde. — Fico vermelha ao
lembrar por quê. E nem ouso olhar para Nick porque ficaria mais
vermelha ainda e a verdade é que não sei se devemos dar alguma
bandeira a Mackenzie sobre o que anda rolando entre nós.
Crianças não entendem muitas coisas, mas não são cegas.
— Sim, agora você pode abrir seus presentes — Nick lhe dá
permissão e ela pula animadíssima, indo até a árvore.
Nick se aproxima e segura minha mão, acariciando meu
pulso.
— Tudo bem?
— Sim, um pouco confusa ainda, mas tudo bem.
— Vou pegar um café pra você, ok? Mackenzie ainda vai
demorar com esse monte de presentes.
— Obrigada.
E sem aviso, ele se inclina e me beija rápido.
Eu me afasto, ruborizada.
— Nick, não faça isso.
— Por que não?
— Mackenzie!
— Ela não está prestando atenção e se ela me vir te beijando,
não vai achar problema algum.
Eu franzo o olhar.
— Ela te viu beijando muitas mulheres?
— Só a Claire, é óbvio que nem deve se lembrar. Eu te disse
que nunca fiquei com ninguém depois de Claire, você não acredita?
Bem, é difícil acreditar que um homem sexy como Nick tenha
ficado sozinho por dois anos.
— Vem me ajudar, Kiara! — Mackenzie grita com dificuldade
com um laço e Nick me solta, indo para a cozinha e eu me sento ao
lado da menina, a ajudando a abrir o laço. Tem um cartão de
Claudia.
— É um presente da sua tia Claudia.
— Que legal! — Ela rasga o pacote e é uma boneca Barbie.
— Que linda!
— É linda sim.
Nick retorna e senta próximo, mas permite que eu continue a
ajudar Mackenzie sozinha.
E ela abre um monte de presentes, até que chega ao pacote
que eu trouxe.
— Este é um presente da Kiara — Nick anuncia e ela arregala
os olhos ao abrir a caixa e ver o par de patins.
— Uau, são patins como os seus! Novinhos!
— Sim, espero que goste...
— Eu amei, Kiara. — Ela pula em cima de mim, me
abraçando. — Eu quero colocar agora, agora!
— Agora não — Nick a interrompe. — Por que não pega
aquele pacote ali e dá para a Kiara?
É a minha vez de arregalar os olhos.
— Pra mim?
— Sim, um presente para você, não é Natal?
Eu pego o pacote e me sento ao seu lado, o abrindo,
revelando um lindo colar de ouro branco com um pingente de patins.
— É lindo... Mas eu não comprei nada pra você.
— Há cinco anos você me deu um presente que nunca vou
poder agradecer o suficiente.
— Bem, posso dizer que você também já tinha me dado um
presente. — Contemplo Mackenzie, ainda extasiada entre pacotes
de presentes.
— Eu fiz um presente pra você também, Kiara — Mackenzie
me dá uma folha de sulfite com um desenho. — Eu que fiz hoje de
manhã, olha! — Ela aponta para o desenho de uma mulher loira
com uma criança ao lado. Ou pelo menos é o que ela quis desenhar.
— Esta é você, e esta sou eu!
— Oh, é lindo, obrigada. — Eu a abraço.
— Por que não tem eu neste desenho? — Nick faz cara de
chateado.
— Não deu tempo, papai. Eu vou fazer outro, está bem?
— Que tal agora tomarmos café da manhã?
— Com os biscoitinhos? Ainda precisamos decorá-los!
— Sim, vamos decorar seus biscoitos.
Nós vamos pra cozinha e quando estamos decorando os
famosos biscoitos, a campainha toca. Nick vai atender e quando ele
volta tem um ar grave no rosto.
— Kiara, pode vir aqui?
Eu o sigo até o corredor.
— Sua mãe está aqui.
— Minha mãe? — Eu me surpreendo.
— Sim. — Nick percebe minha hesitação. — E eu acho que
devia conversar com ela.
— É, acho que tem razão.
Eu avanço até a sala e Maude se levanta quando me vê.
Ela está séria, mas vem até mim e me abraça.
Eu gosto de abraçá-la, mas ainda estou ressentida.
— O que está fazendo aqui, mãe?
— Precisamos conversar.
Eu respiro fundo e me sento.
— Certo. O que vamos falar? Se está aqui para tentar me
dissuadir mais uma vez de desistir de ficar com a minha filha ou
para dizer que devo voltar à Olimpíada, perdeu seu tempo.
— Não vou negar que continuo não concordando com essas
suas decisões.
— Olha, mãe. Sinceramente, hoje é Natal. Não quero ficar
brava e brigar com você.
— Eu sei... Mas eu me preocupo demais com você. Passei
anos cuidando de você e de sua carreira. E agora não pode querer
que simplesmente eu ache normal que jogue tudo fora.
— Não estou jogando tudo fora! Estou buscando a minha
felicidade. Fazendo o que devia ter feito há anos. Tomando as
rédeas da minha vida.
— O que quer dizer?
— Que não vou mais escutar tudo o que diz. Não vou seguir
suas regras. Não vou viver conforme o que você acha melhor pra
mim. Não quando eu não acho isso. Já está claro que nós
divergimos sobre este assunto. Você acha que eu devo abdicar de
tudo pela patinação. E foi o que eu fiz até hoje.
— E por isso é a melhor!
— Mas não quero só ser a melhor. Ou, na verdade, nem sei
se quero ser a melhor. Eu quero ser feliz! Quero comer o que eu
tenho vontade, dormir o quanto tiver vontade, ter amigos, me
divertir. Viajar, ir a festas, fazer qualquer coisa que eu queira apenas
porque é o que estou com vontade. E acima de tudo, eu quero ser a
mãe da minha filha.
— Você não sabe o que é ser uma mãe, em tudo o que
implica.
— Não sei mesmo. Mas uma coisa, eu sei. Eu quero ser bem
diferente de você.
Eu sei que a magoou assim que as palavras saem da minha
boca, mas não consigo evitar. Eu preciso dizer.
— Está sendo tão injusta. Tudo o que eu fiz foi o melhor pra
você. É isso que as mães fazem.
— Fez o que era melhor pra você, não pra mim. Era um
sonho seu, de glória e fortuna...
— E quem não quer? Eu quis tanto tudo isso quando me
tornei modelo! E eu quase tive! Eu tinha uma carreira promissora,
mas engravidei de você e seu pai me convenceu que a maior
aventura que eu podia viver era ser esposa e mãe. Mas adivinha?
Não era! E quando percebi que era tão talentosa, eu soube que
precisava fazer você viver o que eu não vivi.
Eu abro um sorriso triste.
— Está vendo. Eram seus sonhos não meus.
— Eram seus sonhos sim. Você amava patinar...
— E eu amo. Mas não quero sacrificar tudo por isso. A vida é
muito mais. Quero ao menos tentar ser uma pessoa completa.
— Você vai se arrepender tanto, assim como eu me
arrependi...
— E daí? Talvez tenha razão. Talvez um dia eu me arrependa
de ter largado as Olimpíadas, mas neste momento, estou em paz.
Eu quero ser feliz agora. E o que me faz feliz é estar aqui,
conhecendo a Mackenzie.
— E transando com este homem.
— Sim, mãe, estou transando com Nick de Santi. E estou feliz
com isso. Você sabe que eu passei cinco anos sem nem ao menos
suportar que algum homem me tocasse! E deveria ficar feliz por
agora eu não ser mais aquela garota traumatizada e infeliz!
— Não deveria deixar a paixão por um homem definir o que
vai fazer da sua vida!
— Não estou fazendo isso. Estou fazendo por mim! E se eu
decidir que, o que eu quero é viver uma paixão, é assim que vai ser.
Eu nunca vivi isso, mãe, nunca nem sequer me apaixonei. Você
nunca permitiu que eu vivesse essas experiências...
— A culpa é minha? Não tenho culpa se Andrey Ivanov
abusou de você.
— Não, não tem, mas a maneira que lidou com o ocorrido não
foi certa!
— Eu fiz o melhor! O que eu podia fazer?
— Você podia tê-lo denunciado!
— E o escândalo? Acha que ia mudar o que aconteceu? Ele
já tinha feito o mal, agora só nos restava passar por cima disso e
continuar! É assim que nós fazemos, Kiara! Assim é o mundo!
— O que quer dizer?
— Eu também já fui abusada.
— O quê?
— Você acha que foi a única a sofrer isso? Vai ficar surpresa
se perceber que a maioria de nós, mulheres, já passou por alguma
situação assim!
— Por que nunca me disse?
— Porque eu passei por cima disso! Eu era modelo, estava
sempre com homens correndo atrás de mim e muitos deles não se
contentavam com um não. Eu e algumas amigas estávamos em
uma festa uma vez e me deram algo pra beber. Eu não lembro de
nada. Acordei depois muito mal e nua na cama de um playboy
qualquer.
— Meu Deus, mãe. Isso é horrível.
— Sim, é horrível. Mas só me fez mais forte.
— Não o denunciou?
— Claro que não, pra quê? Ele era um cara rico, e certeza
que no mundo em que vivemos eu seria desacreditada. Afinal, eu
era a garota que desfilava de calcinha por aí! A corda sempre
arrebenta para o lado mais fraco. E no fim eu só seria exposta e
envergonhada! Então, eu não denunciei Andrey Ivanov, porque no
fundo não ia adiantar nada. Eu só ia jogar seu nome na lama!
Mulheres são abusadas o tempo inteiro, é mais normal do que
imagina.
— Isso... não é normal, mãe. Não dá pra gente se calar e
deixar continuar acontecendo.
— Está sendo ingênua se acha que ia adiantar alguma coisa.
— Não quero que aconteça algo assim com a minha filha.
— Infelizmente, não tem como protegê-la de tudo.
— Sim, do mesmo jeito que não conseguiu me proteger.
— O que vai acontecer agora, Kiara?
— Eu acho que preciso de um tempo. Vou me dedicar a
conhecer Mackenzie.
— E ficar com este Nick de Santi? Acha que isso vai ter
futuro?
— Não sei. Não faço ideia do meu futuro, só sei o que eu
quero agora.
Eu me levanto, dando a conversa por encerrada e a levo até
a porta.
— Por favor, pense direito. Não jogue sua carreira fora. —
Maude ainda tenta mais uma vez.
— Não pretendo jogar, mas por enquanto é assim que as
coisas são. E eu acho que não deve mais trabalhar pra mim, mãe.
— O que é isso? Está me demitindo?
— Sim, sinto muito.
— Mas o que eu vou fazer? Minha vida é cuidar de você!
— Eu sou adulta. Posso cuidar de mim mesma.
— E sua carreira?
— Vou decidir isso depois. Agora acho que deveria ir. Eu vou
ficar bem. Espero que um dia você veja que eu fiz o melhor pra mim.
E que estou feliz. E tomara que seja capaz de ficar feliz por mim.
Tchau, mãe. Bom Natal.
Eu volto pra sala e me sento, ainda tremendo da conversa
com minha mãe.
Nick vem até mim, senta ao meu lado e toca minha mão.
Eu conto a ele o que conversei com minha mãe.
— O que pretende fazer?
Eu o encaro com uma resolução tomando forma em minha
mente.
— Eu sei o que tenho que fazer.

***
Encaro as pessoas reunidas naquela sala enquanto me
coloco em frente ao púlpito.
Na primeira fila estão Nádia e Chris. E ao seu lado meu pai,
que sorri pra mim, me encorajando.
Eu demorei cinco anos para fazer aquilo e por mais que me
doa agora, quando abro a boca e começo a relatar o que Andrey
Ivanov fez comigo, eu sei que tomei a decisão correta.
A cada palavra, sinto como se um peso fosse tirado do meu
peito, eu sei que essas memórias vão me ferir pra sempre, mas
agora pelo menos eu posso usar isso para me fortalecer. Em um
ponto minha mãe tinha razão, não quero que isso me soterre para
sempre e nem me defina. Quero estar além dessa experiência
horrível.
Algumas semanas se passaram desde o Natal, e os jogos
olímpicos estão começando. Eu sei que o que estou fazendo vai
causar um grande escândalo e vai afetar muitas pessoas, mas não
posso mais me calar.
Andrey Ivanov tem que pagar pelo que me fez.
— Eu sei que demorei cinco anos para revelar o que
aconteceu e para denunciar o meu agressor — eu concluo. — Como
muitas mulheres eu me calei, envergonhada. Mas não devemos
mais nos calar. A coragem de estar aqui vem do desejo de que
outras garotas não passem o que passei. Espero que a justiça seja
feita. Obrigada.
Eu encerro a coletiva. Papai vem até mim e me abraça, me
levando para fora, junto com Nádia e Chris.
Contar ao meu pai o que aconteceu foi muito difícil e ele teve
uma briga terrível com a minha mãe, e me incentivou na ideia de
denunciar Andrey, mesmo tanto tempo depois.
Eu ainda hesitei um pouco, sem saber se aquele era o
momento.
Tive inúmeras conversas com minha terapeuta, Naomi, até
que enfim, decidi que já esperei demais.
Estou começando uma nova fase da minha vida, preciso
deixar o passado para trás. Não sei o que vai acontecer com
Andrey, se ele pagará judicialmente pelo que fez, mas,
sinceramente, não me interessa. Eu fiz o que achei que tinha que
fazer. Agora quero esquecer que ele existe.
Quando chegamos à rua, me despeço de Chris, Nádia e meu
pai, e entro no carro, sentindo-me mais leve.
Encaro o homem no volante e ele segura minha mão.
— Você está bem?
Sacudo a cabeça em afirmativa.
Nick estava com Mackenzie no carro me aguardando. Ela
está adormecida agora.
Ele havia decidido que deveríamos tirar uns dias de folga em
Whistler para nos afastar de todo o barulho que minha denúncia
acarretaria e eu concordei.
Naquelas semanas, eu estava quase todo o tempo com ele e
Mackenzie e cada dia eu sentia mais que fiz a coisa certa.
Quando chegamos a Whistler, Mackenzie está acordada, e
ansiosa para patinar.
— Vamos, por favor! O lago está congelado! — Ela pula
animada e eu concordo sorrindo para Nick.
Pegamos nossos patins e caminhamos até o lago congelado.
Mackenzie está feliz enquanto seguro sua mãozinha e a
ensino alguns passos básicos.
— Será que um dia vou ser igual a você? Bem famosa?
— Se você quiser, pode ser sim. É livre pra ser o que quiser,
querida...
— E posso te fazer uma pergunta?
— Claro.
— Eu posso te chamar de mãe?
Eu sorrio, emocionada.
— Sim, se você quiser.
— Eu quero! — E ela solta da minha mão patinando com
destreza pelo gelo.
Eu me viro e vejo Nick nos observando.
Eu deslizo até ele, que me pega pela cintura e me beija.
Naquelas semanas, nós estávamos fazendo como ele
sugeriu.
Deixando fluir.
— A Mackenzie acabou de perguntar se pode me chamar de
mãe!
Ele sorri.
— Ela me perguntou isso e eu disse que devia perguntar a
você. E ela me perguntou outra coisa.
— O quê?
— Perguntou se você era minha namorada.
— E o que respondeu?
— Disse que ainda não tinha perguntado formalmente. E
então?
Mordo os lábios, com o coração explodindo.
— É um pedido?
— É um sim?
Sorrio, feliz.
— Sim, pode ser um sim.
Ele segura meu rosto e me beija devagar.
— Vem mamãe, vamos patinar! — Mackenzie nos chama e
desta vez eu puxo Nick comigo.
Acho que as coisas estão fluindo muito bem.

***
Alguns meses depois, estaciono o carro em frente ao
endereço que Nick havia me pedido para encontrá-lo.
Olho ao redor, achando esquisito porque estamos em um
terreno onde não há nada, a não ser um lago atrás.
— Será que o GPS me levou para o lugar errado?
Eu saio do carro meio perdida e já estou pegando o celular
para ligar pra Nick quando escuto o barulho da moto e Nick surge.
— O que estamos fazendo aqui? Eu não posso demorar.
Tenho que buscar Mackenzie na escola!
Ele tira o capacete e sorri pra mim, saltando e vindo na minha
direção.
“Minha nossa, como ele pode ficar mais lindo a cada dia que
passa?”
Já faz seis meses que estamos juntos e eu ainda sinto o
mesmo frio na barriga cada vez que ele sorri.
Foram os meses mais intensos da minha vida. Embora não
possa dizer que foram fáceis.
Minha mãe ainda não fala comigo direito, e há alguns meses
ela decidiu se mudar para os Estados Unidos, onde está agenciando
uma patinadora. Bem, boa sorte pra ela.
Depois da minha denúncia, mais denúncias surgiram contra
Andrey e ele está sendo processado por inúmeras vítimas.
Eu fiquei surpresa, Nick disse que não deveria ficar. Os
abusadores nunca cometem um crime uma vez só.
Nádia continua treinando eu e Chris, mas agora levamos as
coisas um pouco menos a sério. Nós dois decidimos que queremos
curtir a patinação e não nos tornarmos escravos dela. Se
ganharmos medalhas, tudo bem, e se não ganharmos tudo bem
também. Nós dois estamos em outra fase da vida, curtindo coisas
mais importantes.
E agora eu praticamente moro na casa de Nick, embora não
me tenha me mudado oficialmente. E sim, eu sou a mãe de
Mackenzie em todos os sentidos, embora ainda seja todo dia um
aprendizado.
— Gostou daqui?
— Não tem nada aqui...
— Pode ter uma casa.
Levanto a sobrancelha.
— Uma casa?
— Eu comprei o terreno.
— Espera, quer construir uma casa aqui?
— Sim, já coloquei a minha casa à venda.
— Por quê?
Ele segura minha mão.
— Porque aquela casa faz parte da minha história, mas é
outra história. E quero começar uma nova história agora.
De repente um anel surge na sua mão.
— Kiara, quer casar comigo?
Eu levo a mão aos lábios, chocada, com o coração acelerado
no peito.
— Está me pedindo em casamento?
Nick sorri.
— Sim, estou. Quero me casar com você. Começar uma
história com você, uma nova vida. Eu te amo, Kiara. Quero passar o
resto dos meus dias ao seu lado, quero que criemos Mackenzie
juntos e que, se você quiser, tenhamos outros filhos.
— Outros filhos?
Ele ri.
— Parece apavorada agora.
— Não, eu... estou sim, estou chocada! — Eu começo a
chorar.
Em todos aqueles meses eu me apaixonava cada dia mais
por Nick e ele parecia sentir o mesmo por mim também, mas nós
nunca conversamos sobre sentimentos, sobre para onde estávamos
indo, mesmo porque o nosso foco maior era Mackenzie, mesmo que
todas as noites nós passássemos conhecendo o corpo um do outro.
— Eu achei que ainda amava Claire.
Ele fica sério.
— Claire sempre vai ter um lugar no meu coração. Mas ela se
foi e faz parte do meu passado. O presente é você. O futuro é você.
Nós. Juntos. Até o dia em que quiser.
— E se eu quiser pra sempre?
— Isso quer dizer que me ama?
— Não seja idiota, meu coração é seu desde o dia em que
me tirou do gelo. Claro que te amo. É óbvio que eu aceito casar com
você.
Nick escorrega o anel para meu dedo e me abraça me
erguendo do chão.
“Seria possível dois corações congelados se aquecerem em
contato um com o outro?”
Sim, era muito possível.
Epílogo

Kiara,

Se está lendo esta carta é porque tudo aconteceu como eu


queria.
Você finalmente está com Mackenzie e minha querida bebê
tem uma mãe de novo. Eu li sua carta entregue pela agência e
como prometi, fui a mãe de Mackenzie pelo tempo que me foi
concedido. Mas, infelizmente, estou partindo e a deixando sozinha.
E agora, acho que chegou o momento de lhe devolver sua
menininha. Não sei quais os seus motivos, mas pela sua carta, eu
sei que você a ama e que pode ser uma mãe maravilhosa.
E agora eu te faço o mesmo pedido. Seja a mãe dela, lhe dê
o amor que ela precisa. Eu sei que pode.
E se não for pedir demais, será que não pode ter um pouco
de amor para Nick também? Talvez eu esteja sendo um pouco
sonhadora, mas eu acredito em destino e em histórias que precisam
ser vividas. Eu e Nick éramos uma história que precisava ser vivida.
Não éramos perfeitos, mas fizemos o melhor com o que tínhamos.
Ele é um homem maravilhoso e me fez feliz. E eu acredito que o fiz
feliz também. Eu desejo que ele ame de novo, que seja feliz de
novo. Que tenha mais filhos, desta vez com o seu sangue e com
seus olhos.
Eu tenho que confessar que eu te vi patinando um dia. Você
parecia um anjo de tão linda e se eu pudesse escolher alguém para
o Nick, acho que seria alguém assim. E quando você saiu do ringue
e passou por mim, quis falar com você, mas me faltou coragem.
Você tropeçou e eu te ajudei a levantar e notei sua tatuagem.
Plus que ma propre vie.
Mais que a própria vida.
A mesma tatuagem que eu e Nick dividimos.
O que mais poderia ser isso a não ser o destino?
Pedir-lhe isso está fora do meu alcance, mas eu posso torcer,
seja lá onde eu estiver.

Claire.

Fim
Nota da autora

O primeiro agradecimento é pra você leitor. Obrigada por ler este


livro! Espero que tenha amado a leitura e não esqueça de deixar
uma avaliação! E se gostou, indiquei Corações de gelo para que
mais pessoas possam se emocionar!
Agradeço também minhas beta readears, Pri, Gllauce, Mariana e
Erika. Os Igs parceiros pela inestimada ajuda com divulgação,
minha capista talentosa, Jessica, Sheila, minha revisora que sempre
segura meus b.os. E a Thatha, minha amiga que mora em
Vancouver e me ajudou a conhecer a cidade quando estive lá!
E eu pretendo escrever um Spin Off, para contar a história de Dimitri
e Alana, mas ainda não tenho previsão! Fiquem de olho!

Grande abraço.
Ju

PS. A pré-venda do livro físico de Corações de gelo já está


disponível no meu site
Sobre a autora
Juliana Dantas

(Departure – George Lundeen)


Apaixonada por livros, séries e viagens, a paulista Juliana
Dantas envolveu-se com a escrita em 2006, escrevendo fanfics
dos seus seriados e livros preferidos. Estreou como autora
independente na Amazon em 2016 e hoje possui mais de 40 títulos
na plataforma Kindle, além de livros publicados pela Editora Harper
Collins - selo Harlequin, DVS Editora e Editora Pandorga. Em 2020,
sua série Julie & Simon teve os direitos de adaptação para produção
audiovisual contratados pela produtora Lupi.
Com mais de 100 milhões de páginas lidas no Kindle, sua
escrita transita livremente entre dramas surpreendentes e
romances leves e divertidos. Seus títulos sempre passam pelo
ranking de mais vendidos da plataforma, além de já ter três deles na
lista de mais vendidos da Veja.

E-books Publicados na Amazon:


O Leão de Wall Street
Vendetta – Livro 1
Vendetta – Livro 2
Vendetta – Livro 3
Vendetta – Livro 4
A Verdade Oculta
Segredos que ferem
Linha da Vida
Longe do Paraíso
Espinhos no Paraiso
Juntos no Paraíso
Espera – Um conto de O Leão de Wall Street
Cinzas do Passado
Trilogia Dark Paradise (Box)
A Outra Irmã
Segredos e Mentiras
Por um sonho
O Highlander nas sombras
Quando você chegou
O segurança de Wall Street
Box Vendetta
Uma noiva de natal
Um noivado nada discreto
O dia dos namorados de Julie e Simon
Um sonho de Princesa
As infinitas possibilidades do nunca
Desastres sexuais ( Conto Amor, amizade e outros desastres)
Box Romances Inesquecíveis
No silêncio do mar
O que escolhemos esquecer
Um bebê Inesperado
Um bebê de natal ( conto da série Julie & Simon)
Quase uma duquesa
Desafiando a Gravidade
O que escolhemos perdoar
A irresistível face da mentira
Entre o crime e a nobreza Livro I
Entre o crime e a nobreza Livro II
Um brinde a realeza
Box Henry & Sophia
Black – O lado escuro do coração – Ato I
Black – o Lado escuro do coração – Ato II
Black – o Lado escuro do coração – Ato III
White – O que eu não te contei
Um natal sem Julie (Um conto de Julie e Simon)
Supernova – As infinitas possibilidades do nunca pelos olhos
de Nathan
Inesquecível
Nosso Último Segredo
Liam
Corações de Gelo
Red – Mestre dos desejos
Se arrependa de mim

Livros físicos

A verdade oculta – Editora Pandorga


Segredos e Mentiras – Independente
Quando você chegou – Independente
Uma noiva de natal – Independente
Um noivado nada discreto – Independente
Um bebê Inesperado - Independente
No silêncio do Mar – Harper Collins – Harlequin
As Infinitas Possibilidades do nunca – Independente
A irresistível face da mentira – DVS Editora
O Leão de Wall Street – Independente
Black – O lado escuro do coração – Ato I – Independente
Black – o Lado escuro do coração – Ato II – Independente
Black – o Lado escuro do coração – Ato III – Independente
A outra irmã – Independente
White – O que eu não te contei – Independente
O que escolhemos esquecer – Independente
Supernova – Independente
Inesquecível – Independente
Desafiando a gravidade - Independente
Nosso Último Segredo – Independente
Vendetta – Independente
O segurança de Wall Street/ Espera. – Independente
Liam – Independente
Longe do Paraíso – Independente
Espinhos no Paraiso – Independente
Juntos no Paraíso – Independente

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Uma noiva de natal - Audible


Um noivado nada discreto - Audible
O que escolhemos esquecer - Audible
Box Vendetta - Audible
As infinitas possibilidades do nunca - Audible

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